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Análise sobre o trabalho didático e suas formações no Brasil

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O papel utilizado neste livro é biodegradável e renovável. Provém de florestas plantadas que dão emprego a milhares de brasileiros e combatem o efeito estufa, pois absorvem gás carbônico durante o seu crescimento! A tinta utilizada na impressão das páginas é à base de soja, cujo componente é renovável e atóxico que não degrada o meio ambiente.

Prof. Dr. Amilcar Araujo Pereira UFRJ/ Faculdade de Educação

Prof. Dr. Edgar César Nolasco UFMS/ Campo Grande-MS

Prof. Dr. Gilberto José de Arruda UEMS/ Unidade de Dourados

Prof. Dr. Matheus Wemerson G. Pereira UFMS/Campo Grande-MS

Prof. Dr. Giovani José da Silva UFMS/Campus de Nova Andradina

Profª. Dra. Helena H. Nagamine Brandão Universidade de São Paulo - USP-SP

Profª. Dra. Joana Aparecida Fernandes SilvaUFG/Goiás

Prof. Dr. João Wanderley Geraldi Universidade do Porto, Portugal/ INEDD/Universidade Siegen/Alemanha e Unicamp

Profª. Dra. Léia Teixeira Lacerda UEMS/ Unidade de Campo Grande

Profª. Dra. Maria Cecília Christiano Cortez de Souza Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Profª. Dra. Maria Leda Pinto UEMS/ Unidade de Campo Grande

Prof. Dr. Marlon Leal Rodrigues UEMS/ Unidade de Campo Grande

Roosiley dos Santos Souza UFMS-MS

Conselho Editorial Life Editora

1ª EdiçãoCampo Grande - MS - Brasil

2015

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Nota
CENTENO

CoordenaçãoValter Jeronymo

Projeto GráficoDiagramaçãoLife Editora

Capa: Quadro do Pintor:

RevisãoOs proprios autores

Impressão e AcabamentoLife Digital

Proibida a reprodução total ou parcial, sejam quais foremos meios ou sistemas, sem prévia autorização dos autores.

Direitos Autorais reservados de acordo com a Lei 9.610/98

Copyright © by Ana A. Arguelho de Souza Carla Villamaina Centero Samira Saad Pulchério Lancillotti (orgs.)

Life EditoraRua Américo Vespúcio, 255 - Santo AntonioCEP: 79.100-470 - Campo Grande - MSFones: (67) 3362-5545 - Cel.: (67) [email protected] • www.lifeeditora.com.br

O Trabalho Didático em Exame, Ana A. Arguelho de Souza, Carla Villamaina Centero e Samira Saad Pulchério Lancillotti (orgs.)- Campo Grande, MS, Life Editora, 2015.

240p.

ISBN 978-85-8150-270-0

1. Educaão 2. Prática docente 3. Pesquisa I. TítuloCDD - 370

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Souza, Ana A.Arguelho de Centero, Carla Villamaina Lancillotti, Samira S. Pulchério (orgs.)

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Centeno

Ana Aparecida Arguelho de SouzaMestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso

do Sul/UFMS (1994). Doutora em Letras – Literatura pela UNESP/Assis (2003). Docente e pesquisadora da UEMS (Universidade Esta-dual de Mato Grosso do Sul). É docente e pesquisadora da Universi-dade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, atuando no Bachare-lado em Letras; no Programa de Mestrado Profissional em Educação – PROFEDUC/UEMS e no Programa de Mestrado Acadêmico em Letras/UEMS. Pertence ao Conselho Editorial das Revistas:Estação Literária/UEL; da Revista Educação e Linguagens/UNESPAR e RE-VELL - Revista de Estudos Literários da UEMS. É autora dos livros O mundo dos homens gregos e latinos/Editora UFMS; O humanismo em Clarice Lispector: um estudo do ser social em A hora da estrela/Musa Editora e Literatura Infantil na Escola: a leitura em sala de aula/Au-tores Associados. É organizadora da obra O processo educativo na atu-alidade: fundamentos teóricos, pela Editora UNIDERP, do Caderno de Linguagens Conceituais e Caderno de Linguagens Estéticas. Tem sua produção publicada em diversos periódicos e livros na área de Educa-ção e Letras do país. É vice-líder do grupo Literatura e Humanidades – UEMS/CNPQ. Participa em projeto interinstitucional, financiado pelo CNPQ: A organização do trabalho didático na perspectiva de educadores da Escola Nova (1930-1970).

Carla Villamaina CentenoMestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Gros-

so do Sul (2000) e Doutora em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2007). Atualmente é professora adjunta do Mestrado Profissional em Educação da Unidade Universi-

Sobre as Organizadoras

tária de Campo Grande e cursos de graduação em Pedagogia e Geogra-fia. É autora dos livros Educação e Trabalho na Fronteira de Mato Grosso - estudo histórico sobre o trabalhador ervateiro (1870-1930)/UFMS/ e organizadora dos livros em co-autoria: A história dos ervais sob a ótica dos trabalhadores rurais/GOVMS; Educação e Diversidade Cultural/UNIDERP e A organização do trabalho didático na História da Edu-cação/Autores Associados. Tem artigos publicados em periódicos nas áreas de História e Educação. É coordenadora de projeto interinstitu-cional, financiado pelo CNPQ: A organização do trabalho didático na perspectiva de educadores da escola nova (1930-1970).

Samira Saad Pulchério LancillottiMestre em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso

do Sul/UFMS (2000) e Doutora em História e Filosofia da Educação, pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP (2008). Atu-almente é docente e pesquisadora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/ UEMS, na Unidade de Campo Grande, com atua-ção no Mestrado Profissional em Educação PROFEDUC/UEMS e no curso de graduação em Pedagogia. É autora do livro: Deficiência e Trabalho: redimensionando o singular no contexto universal/ Autores Associados e uma das organizadoras do livro Educação Especial em Foco: questões contemporâneas/UNIDERP. Sua produção acadêmica ainda conta com artigos difundidos em periódicos da área de educa-ção, capítulos de livros e trabalhos apresentados em eventos científi-cos. Atualmente participa de projetos interinstitucionais financiados pelo CNPq, A organização do trabalho didático na perspectiva de edu-cadores da Escola Nova (1930-1970) e pela FUNDECT, A inclusão escolar de alunos com deficiência sensorial: estudo sobre as tecnologias assistivas. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisa “Sociedade, Histó-ria e Educação” – GEPSE/UEMS, vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisa “História, Sociedade e Educação no Brasil” – HISTEDBR/UNICAMP.

O trabalho didático na escola moderna tem sido objeto de in-vestigação do Grupo de Pesquisa (GEPSE), que se debruça de longa data sobre sua organização, dentro de uma perspectiva na qual a escola não só é pensada de forma articulada com a sociedade que a circunda, mas considerando, ainda, sua natureza histórica.

Em razão disso, atendendo às exigências do Mestrado Profis-sional em Educação – PROFEDUC / UEMS / Unidade de Campo Grande e também como possibilidade de tornar públicas as pesquisas desenvolvidas pelosalunos e pelos mestres que concluíram o progra-ma sob orientação dos pesquisadores do GEPSE, dentro da linha de pesquisa – Organização do Trabalho Didático – é que este livro vem a público.

Para enriquecer as reflexões sobre essa temática, que dá nome à linha, convidamos pesquisadores da UEMS que pertencem ao GEP-SE bem como de outras instituições que comungam conosco não só a mesma temática, mas as investigações acerca de uma determinada concepção de educação e de pesquisa, de inspiração marxiana. Com estes, de alguma forma e em vários momentos, temos compartilha-do e debatido nossas preocupações e questões sobre a organização do trabalho didático, na perspectiva de uma concepção histórica de edu-cação. Assim, esta obra apresenta dez trabalhos, agrupados em blocos temáticos.

O primeiro bloco é constituído por dois trabalhos que tratam de forma ampla a relação entre a educação, história e sociedade. Am-bos conferem a necessária abrangência e radicalidade ao tema, razão porque, com eles, abrimos este livro.

A professora Maria Lucia Paniago, do curso de Educação Física da UFMS e membro do Instituto Lukács, em Trabalho didático: ar-ticulações e reciprocidades,estabelece as relações do trabalho didático

Apresentação

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ou PROFEDUC?
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seria possível manter na mesma linha, sem separar a sigla?
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com a categoria trabalho nos termos mais amplos da sociedade capi-talista. A autora busca refletir se e como o trabalho didático se insere como elemento determinante nas relações de poder e, nesse sentido, leva a termo uma discussão que envolve categorias relacionadas e re-ciprocamente articuladas, quais sejam: trabalho, sociedade burguesa, Estado e educação – seja no seu sentido mais amplo e/ou no seu aspec-to formal. Contribui desse modo para ampliar e aprofundar a impor-tante relação entre educação e sociedade nos patamares da sociedade do capital.

Na sequência, a contribuição das pesquisadoras Mara Regina Martins Jacomelie Luciana Cristina Salvatti Coutinho, ambas do Pro-grama de Educação da UNICAMP, sob o título O trabalho didático na história da educação básica brasileira: uma abordagem histórico--pedagógica. Trata-se de reflexão abrangente, que recupera o trabalho didático na sociedade brasileira, em sua gênese e em seus diferentes momentos, ao longo da história da educação no Brasil. A amplitude da discussão, dada pela inserção histórica da educação e, especialmen-te, a recorrência a uma pedagogia histórico-crítica, que constitui o horizonte da educação em uma perspectiva marxista, confere extrema relevância ao texto das pesquisadoras.

Os três próximos trabalhos formam o segundo bloco, discutin-do os elementos da organização do trabalho na ótica da história da educação brasileira. Esse olhar é de suma importância para pontuar a natureza histórica das questões que tem sido objeto de nossas inves-tigações.

O primeiro trabalho,Fernando de Azevedo, o ensino de socio-logia e a produção de compêndios para a Escola Normal (1935-1940), éde autoria da professora Silvia Helena Andrade de Brito, do Progra-ma de Pós-Graduação em Educação da UFMS e de Janaina Silva de Oliveira, licenciada em Pedagogia. A investigação recupera um ex-pressivo momento da educação brasileira, a Escola Nova, sob a ótica de um dos seus mais importantes intelectuais, Fernando de Azevedo. Discute, dentro da organização do trabalho escolanovista, os compên-dios produzidos pelo referido educador, a saber, “Princípios de Socio-

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Jacomeli e
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colocar em itálico
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logia”, de 1935, e“Sociologia Educacional”. A radicalidade e o rigor da análise conferem máxima relevância a este trabalho.

Diálogo sobre alfabetização, da professora Enilda Fernandes, do curso de Pedagogia / Campo Grande / UEMS,faz uma discussão histórica das cartilhas na sociedade capitalista, a partir do diálogo entre os pesquisadores da área. Além de indicar o caráter pragmático do aprendizado da leitura e da escrita por via desse material didático, a partir de uma concepção de alfabetização, nos patamares da Ciên-cia da História, a autora apresenta uma significativa e radical reflexão acerca da alfabetização. Assim, assenta essa prática escolar em um pa-tamar científico infinitamente mais elevado do que as análises sobre alfabetização pautadas nas teorias especializadas que têm informado esse campo do conhecimento.

O professor Paulo EdyrBueno de Camargo nos contempla com mais um trabalho sobre o período da Escola Nova, no Brasil: João To-ledo (1879-1941): a concretização do ideário escolanovista no ensino público paulista nas décadas de 1920 a 1930. Diz o autor: “o que sin-gulariza e dá relevância ao estudo do professor primário João Toledo é justamente o fato de ele ser um prático, isto é, alguém que tentava concretizar em suas aulas os princípios da Escola Nova”. Toledo, por meio do livro “Didática” disseminou pelo Brasil as ideias e práticas da Escola Nova, constituindo assim um legado significativo para a com-preensão da História da Educação no Brasil, o que torna fundamental este trabalho do professor Paulo Edyr.

Na sequência, dois trabalhos constituem um terceiro bloco em que a reflexão dos autores gira em torno de instituições específicas, conferindo concretude à organização do trabalho didático.

De autoria do professor SandinoHoff, da Universidade Anhan-guera /UNIDERP e da professora Maria Angélica Cardoso, da UFMS, A organização do trabalho didático em duas escolas família agrícola sul-mato-grossenses, analisa a prática educativa de duas escolas localizadas em municípios de Mato Grosso do Sul que funcionam em regime de internato, proporcionado pela estrutura da Pedagogia da Alternância, organizada em períodos de formação nas escolas e nos

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assentamentos ou pequenas propriedades. Os autores tomam como base o “método histórico-crítico” e categorias definidas por Alves (2005) e Saviani (2007). A importância do trabalho reside no sucesso do esforço em materializar a organização do trabalho didático em es-colas para trabalhadores.

Na outra ponta do movimento da escola contemporânea, Edio-ne Maria Lazzarimestre pelo PROFEDUC/UEMS e Carla Villamai-na Centeno pesquisadora do PROFEDUC /UEMS, no texto O ensi-no de história do curso de pedagogia do centro de educação a distância da Anhanguera – UNIDERP investigam o livro texto “Ensino de Histó-ria” utilizado no Curso de Pedagogia à Distância, como parte do Ma-terial Didático Impresso – MDI- para a EaD no Brasil. As reflexões deixam entrever o caráter conservador do curso, que anuncia inova-ções por meio de novas tecnologias enquanto adotaum instrumento de trabalho que “não está adequado nem é suficiente para formar o docente para atuar no ensino de História para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental”.

O quarto bloco reúnetrês textos que discutem o trabalho di-dático nas singularidades de diferentes disciplinas: Educação Física, Literatura e Filosofia.

Ronaldo Rodrigues Moisés, mestre em Educação pelo PROFE-DUC / UEMS e Samira Saad PulchérioLancillotti, pesquisadora do PROFEDUC / UEMS, no texto Organização do trabalho didático na Educação Física – implicações para uma educação pela cultura corporal, tecem ponderações de caráter histórico para chegar à análise da orga-nização do trabalho didático na disciplina de Educação Física.

Retomam cada um dos elementos que compõem tal organi-zação e apontam, dentre as singularidades deste campo disciplinar, a possibilidade de atentar às características particulares dos alunos, con-dição que, se bem compreendida e explorada, pode favorecer práticas educativas enriquecedoras para o amplo e heterogêneo leque de alu-nos que acorrem à escola contemporânea.

Maria Helena Batista de Almeida, mestranda em Educação pelo PROFEDUC / UEMS e Samira Saad PulchérioLancillotti, pesqui-sadora do PROFEDUC / UEMS apresentam o trabalho Clarice Lis-

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Lazzari mestre (espaço entre nome e palavra)
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colocar texto no mesmo nível da frase
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pectore as sutis mensagens do conto infantil “a vida íntima deLaura”. As autoras, dentro de uma possibilidade de usar a literatura infantil como elemento significativo do trabalho didático, em razão das dimensões históricas, estéticas e pedagógicas da obra literária, utilizam um conto da escritora Clarice Lispector para demonstrar as possibilidades que a obra oferece como fonte por onde se pode apreender a história, for-mar o gosto estético e forjar valores. Demonstram assim, a importân-cia da utilização de textos literários como instrumentos de trabalho, propícios à formação humana.

Para encerrar o conjunto das reflexões, o trabalho, A filosofia no manual didático: conceitos e materialidade em confronto. Os au-tores Vivaldo Bispo dos Santos, mestrando em Educação pelo PRO-FEDUC / UEMS e Ana A. A. de Souza, pesquisadora do PROFE-DUC / UEMS discutem os manuais didáticos de filosofia, dentro da perspectiva da Ciência da História, a partir do diálogo travado com os pesquisadores da área. A diferença estabelecida no debate reside na radicalidade da crítica dos autores que trabalham com a hipótese da falência da Filosofia do manual didático enquanto corpo de conhe-cimento capaz de “fazer o homem pensar” nesta sociedade. O enten-dimento é o de que, na modernidade são outros os instrumentos do pensamento e a análise dos manuais didáticos de filosofia em uso nas escolasconfirmam a hipótese.

As organizadoras

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Letra maíuscula
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espaço: de Laura

Sumário

Sobre as organizadoras ..................................................................... 05

Apresentação ..................................................................................... 07

O Trabalho Didático: Articulações e Reciprocidades.Maria Lucia Paniago ........................................................................... 15

O Trabalho Didático na História da Educação Brasileira: Uma Abor-dagem Histórico-pedagógicaMara Regina Martins JacomeliLuciana Cristina Salvatti Coutinho ..................................................... 35

Fernando de Azevedo e a Produção de Compêndios para o Ensino de Sociologia (1935-1940)Silvia Helena Andrade de BritoJanaina Silva de Oliveira1.................................................................... 65

Diálogos sobre AlfabetizaçãoEnilda Fernandes ................................................................................ 87

João Toledo (1879-1941): A Concretização do Ideário Escolanovis-ta no Ensino Público Paulista nas Décadas de 1920-1930 Paulo Edyr Bueno de Camargo ......................................................... 109

A Organização do Trabalho Didático em Duas Escolas Família Agrícola Sul-Mato-GrossensesMaria Angélica CardosoSandinoHoff .................................................................................... 133

O Ensino de História do Curso de Pedagogia do Centro de Educação a Distância da Anhanguera-UNIDERPEdione Maria LazzariCarla Villamaina Centeno................................................................. 153

Organização do Trabalho Didático na Educação Física - Implicações para uma Educação pela Cultura CorporalRonaldo Rodrigues MoisésSamira Saad PulchérioLancillotti ...................................................... 175

Clarice Lispector e as Sutis mensagens do Conto Infantil “A Vida Ín-tima de Laura”Maria Helena Batista de AlmeidaSamira Saad PulchérioLancillotti ...................................................... 199

A Filosofia no Manual Didático: Conceito e Materialidade em Con-forontoVivaldo Bispo dos SantosAna Aparecida Arguelho de Souza .................................................... 215

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espaço entre nomes: Pulchério Lancillotti
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confronto

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Maria Lucia Paniago1

Introdução

Neste texto, trataremos do complexo da educação, fundado na categoria trabalho, no seu aspecto formal abordando o tema trabalho didático, que diz respeito ao modo de transmitir os conhecimentos construídos de forma articulada e recíproca pelas gerações que se su-cedem. Partindo desse princípio, estamos considerando a relevância de uma reflexão sobre o tema, pautada na perspectiva marxiana na medida em que, ao apreender a essência do modo de produção capi-talista, Marx é capaz de explicar as relações mais íntimas desta socia-bilidade, até o presente, o que possibilita restabelecer na totalidade o fundamento material e o fundamento política do mundo dos homens. Dessa perspectiva, entendemos com Marx que a realidade social não é algo estático e definitivo, mas que, ao produzir-se e reproduzir-se, sempre em patamares mais elevados, pode e deve ser transformada nas suas relações de produção e nas suas formas sociais em geral.

A questão que nos motiva à reflexão é compreender “se” e “como” o trabalho didático se insere como elemento determinante nas relações de poder, nos marcos da sociedade capitalista. Para tanto, este trabalho pretende levar a termo uma discussão que envolve cate-gorias relacionadas e reciprocamente articuladas, quais sejam: traba-lho, sociedade burguesa e educação – seja no seu sentido mais amplo, presente em todos os momentos da vida social, e/ou no seu aspecto formal. Assim, temos por objetivo apontar as determinações materiais 1. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Docente da UFMS - Campus do Pantanal/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Membro do Instituto Lukács.

O Trabalho Didático: Articulações e Reciprocidades.

16 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

do trabalho didático no interior da escola, considerando suas articula-ções recíprocas com a totalidade social.

Levando em conta que a educação, no contexto da sociedade capitalista, é a esfera social que trata da transmissão de conhecimen-to, compreendê-la à luz da ontologia marxiana, significa considerar o processo de desenvolvimento humano real a partir das condições de existência humana e do modo como esta se produz e reproduz. Pois são os “homens históricos reais”, os indivíduos vivos, na sua vida empí-rica que, sob determinadas condições de desenvolvimento das forças produtivas, constroem a sociedade, produzindo e propagando o co-nhecimento através de sucessivas gerações, alterando, assim, a ordem social a partir da criação de novas necessidades que vão surgindo desse processo. Diz Marx (1985a, p. 172):

Animais e plantas, que se costumam considerar produtos da Natureza, não são apenas produtos talvez do trabalho do ano passado, mas, em suas formas atuais, produtos de uma trans-formação continuada por muitas gerações, sob controle huma-no e mediada por trabalho humano.

Ainda afirma o filósofo alemão:

Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua pró-pria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. (MARX, 1985a, p. 297)

Podemos, então, dizer que o sentido ontológico do ser social é o trabalho, como relação metabólica entre o homem e a natureza. Pro-cesso em que o homem, por seu próprio ato intencional, por meio de suas próprias forças naturais, de sua corporalidade, braços, pernas, ca-beça e mãos, transforma a natureza para satisfazer as suas necessidades vitais como comer, beber e vestir; isso compreende a “[...] produção

17O Trabalho Didático em Exame

da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procria-ção, [que] aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação natural, de outro como relação social [...]” (MARX, ENGELS, 2007, p. 34).

É pela realização do trabalho que o homem se faz homem na medida em que por esse processo se entende a cooperação de vários indivíduos, não importando em que condições, modo ou com que fi-nalidade isso ocorre. O que diferencia os homens dos animais “[...] não é o fato de pensar, mas sim de começar a produzir seus meios de vida.” (MARX, ENGELS, 2007, p. 87, grifo nosso). Desse modo, o trabalho é um fato inquestionável para a existência humana e que pode ser comprovado cotidianamente na reprodução do indivíduo e das sociedades.

Desde o início apresenta-se uma conexão material dos homens entre si, sujeita às sempre novas necessidades e ao modo como cada for-mação social transforma a natureza em meios de produção e de subsis-tência. Cabe considerar que são as objetivações singulares de todos os indivíduos que produzem novas necessidades e possibilidades objetivas e subjetivas para totalidade social. Essa conexão de vários indivíduos entre si envolve não apenas a relação direta de um com o outro, mas a relação entre gerações. Para Marx (2004, p. 107, grifos do autor),

Posto que também sou cientificamente ativo, etc., uma ativi-dade que raramente posso realizar em comunidade imediata então sou ativo socialmente porque [o sou] enquanto homem. Não apenas o material de minha atividade - como a própria língua na qual o pensador é ativo - me é dado como um pro-duto social, a minha própria existência é atividade social; por isso, o que faço a partir de mim, o faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência de mim como ser social.

As transformações da natureza, realizadas pelo homem de for-ma intencional e teleológica a partir do trabalho, implicam em deriva-ções de atividades nele fundadas, a depender do modo pelo qual ob-

18 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

jetiva essa conexão material. Os diferentes complexos que advém do trabalho são uma peculiaridade da divisão do trabalho. Efetivamente, essa categoria do trabalho humano acontece no momento em que se dá a divisão entre trabalho material e trabalho intelectual.

As primeiras formas de divisão do trabalho surgem no momen-to em que o processo de trabalho se realizava pela produção comum da tribo ou família consanguínea, de forma coletiva como proprieda-de comunal, o que garantia a igualdade de condições de existência de todos os seus membros. Historicamente, com o desenvolvimento de novas relações sociais, e consequente produção excedente, pelo do-mínio sobre a produção na domesticação e criação de animais e na agricultura, criam-se as condições para o surgimento da propriedade privada e das classes sociais.

Instauram-se, então, novas relações de produção, o que permite o aumento da população com distintas funções produtivas e diversi-dade de trabalho na organização da produção. Nos diferentes perí-odos históricos, a divisão do trabalho assume características diversas a depender das relações sociais de produção, que significam variadas formas de propriedade. Considerado o fundamento da divisão do tra-balho, podemos afirmar com Marx que a processualidade dessa cate-goria se manifesta em todas as formas sociais de produção que têm como base os antagonismos de classe, quais sejam, o escravismo, o feu-dalismo e o capitalismo.

No modo de produção regido pelo capital, a relação entre o processo de desenvolvimento da divisão social do trabalho e a com-plexificação da produção de mercadoria revelam a especificidade da produção fundada na exploração do trabalho alheio para obtenção de lucro, isto é, na relação de compra e venda da força de trabalho, diferentemente das formações sociais anteriores. A industrialização tornou a exploração do trabalho social mais lucrativa, sob a ordem, o controle e a disciplina do capital, possibilitando a potencialização do processo do trabalho. Como derivações do trabalho no processo metabólico intencional entre o homem e a natureza, atividade exclu-

19O Trabalho Didático em Exame

sivamente humana2, a diversidade de atividades prolifera multiplican-do-se sempre em razão, agora, das necessidades de reprodução e am-pliação do capital.

Com a consolidação do sistema do capital e o desenvolvimen-to da maquinaria na indústria, revoluciona-se o modo capitalista de produzir. E como a existência humana está diretamente relacionada a como os homens produzem sua vida material, modificam-se também todos os aspectos da vida social. A educação como uma atividade de-rivada do trabalho, como um complexo social, umbilicalmente rela-cionada e articulada com todos os outros complexos3 dele advindos, sofre as mesmas determinações materiais impostas por esse modo de produzir a vida humana.

O caráter ontológico da educação como um dos complexos sociais

Como um pôr teleológico4, a educação se constitui em um complexo universal que propicia a mediação entre os homens e a so-ciedade. É uma atividade essencialmente social, pois nascida no pro-cesso de constituição do ser social, a partir do trabalho. Entretanto, é distinta dele e não se resume a ele, isto é, a educação estabelece com ele uma relação de identidade da identidade e da não-identidade5. É a partir e pelo trabalho que os complexos sociais vão se formando em articulação orgânica com o trabalho e entre si. É na realização de ações teleológicas de transformação da natureza, ou seja, o trabalho cons-2. “Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. [...] o que distin-gue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. [...] Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.” (MARX, 1985a, p. 297-298)3. Categoria lukacsiana, que tem no trabalho o seu fundamento e diz respeito a novas formas alternativas de atividade humana para a satisfação das sempre novas necessidades da reprodução do homem social, que se articulam entre si, produzindo também sempre diferentes e novos complexos, exemplificados pela educação, linguagem, Direito, polícia, Estado, arte, religião, ciência, política, ser social (como complexo dos complexos), etc., determinados pelos nexos da totalidade social. ( Lukács, 2013).4. Cf. Lukács, Para uma ontologia do ser social 2, 2013.5. Cf. Lukács, Para uma ontologia do ser social 2, 2013, p. 297. Ver também LESSA, S. Para compreen-der a ontologia de Lukács, 2007, p. 50.

20 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

ciente, que o indivíduo constrói o mundo objetivo e se constrói. Para as objetivações teleológicas é condição indispensável um

sólido conhecimento da esfera da realidade que se intenciona trans-formar. Todo ato de trabalho é orientado por finalidades, a partir da captura do real pela consciência, para transformar com êxito a reali-dade segundo aquela finalidade previamente idealizada. Assim, para a consecução de uma transformação teleológica da realidade é indispen-sável a seleção e a investigação dos meios materiais apropriados que permitam a objetivação do fim perseguido idealmente. Dessa pers-pectiva, as finalidades serão invariavelmente construídas socialmente.

Nesse sentido, podemos considerar que há uma dependência ontológica da educação em relação ao trabalho, não de forma absolu-ta, mas relativa. Uma autonomia relativa e de determinação recíproca.

[...] A autonomia estabelecida nesses complexos deriva do fato de que eles, para realizar funções específicas, essencial-mente distintas do intercâmbio entre homem e natureza, as-sumem características particulares que os diferem do trabalho. (LIMA; JIMENEZ, 2011, p. 79)

A relação de identidade da educação com o trabalho se carac-teriza pelo fato de que o trabalho como modelo de toda a práxis6 so-cial, é também matriz da objetivação de posições teleológicas, que se evidencia na educação. Entretanto, na educação não estão postas as teleologias primárias – o intercâmbio entre homem e natureza –, mas sim as posições teleológicas secundárias – aquelas teleologias que se dirigem a vários sujeitos, com o objetivo de influenciá-los a agir por si mesmos sobre determinadas posições do gênero (LUKÁCS, 2013). Todavia o resultado desse processo pode não corresponder a intenção original, uma vez que

[...] além da presença dos fatores citados em relação às posi-

6. Segundo Paulo Netto e Braz (2007, p. 55, grifo do autor), “A práxis envolve o trabalho, que, na verda-de, é o seu modelo [...] deve-se distinguir entre formas de práxis voltadas para o controle e a exploração da natureza e formas voltadas para influir no comportamento e na ação dos homens [...]”. Aqui trata-se da relação entre os indivíduos que atuam sobre si mesmos – a práxis educativa.

21O Trabalho Didático em Exame

ções teleológicas primárias, na objetivação de posições teleo-lógicas secundárias, a alternativa do indivíduo - alvo da tele-ologia secundária - também pode ser diferente da finalidade posta. (LIMA; JIMENEZ, 2011, p. 80)

Reafirmando, é a partir do trabalho que surgem todos esses mo-mentos da realidade social. Como nós humanos não nascemos com atributos genéticos para atender às nossas necessidades vitais, é de ab-soluta importância que aprendamos o que as sucessivas gerações cons-truíram e permanecem construindo intencionalmente para suprir tais necessidades. Ai está a imprescindibilidade histórica da educação para a apreensão de conhecimentos, habilidades, comportamentos, valo-res, o que nos capacita a nos tornarmos conscientemente indivíduos aptos para a vida social. De acordo com Lima e Jimenez (2011, p. 84),

A educação é imprescindível em todos os modos de organiza-ção social porque sua função consiste em articular o singular ao genérico, reproduzindo no indivíduo as objetivações pro-duzidas ao longo do desenvolvimento do gênero humano e, com isso, possibilitando a continuidade do ser social.

O que os homens constroem coletivamente, isto é, o resultado das objetivações humanas universais e genéricas, se constitui em patri-mônio da humanidade. É nos apropriando desse patrimônio que nos tornamos humanos. É nesse processo que nos tornamos membros do gênero humano e que a educação, no seu sentido mais amplo, tem lu-gar na reprodução do ser social. É pela apropriação dos conhecimen-tos construídos historicamente pelo conjunto dos homens que nos inserimos no processo social. O trabalho é a categoria que faz a me-diação entre os homens e a natureza, por sua vez é a educação que faz a mediação dos homens entre si, como categoria fundada no trabalho.

Diferentemente dos outros seres vivos (esfera biológica), cuja reprodução é sempre uma reposição permanente do mesmo, a essência biológica do homem modifica-se e renova-se, em quantidade e quali-

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dade, initerruptamente, o que configura o caráter próprio do gênero humano e que não pode ser transmitido por processos naturais.

[...] O surgimento do complexo da educação no ser social está atrelado a essa necessidade fundamental para a continuidade do homem enquanto ser genérico. A educação surge para de-sempenhar essa função imprescindível: através dela, cada in-divíduo singular se apropria das objetivações que constituem os traços da sociabilidade, as características humano-genéri-cas produzidas pelos próprios homens. (LIMA; JIMENEZ, 2011, p. 84)

As modificações no modo de produção refletem em todos os aspectos da vida social. No complexo da educação isto não é diferente. Por ser um dos complexos do ser social, a educação sofre as consequ-ências das transformações no processo de trabalho. Como apontamos inicialmente, do escravismo ao capitalismo as transformações na di-visão do trabalho vão atingindo novos patamares pela complexifica-ção da produção. Sendo a educação parte da totalidade social e como esta totalidade não se constitui apenas no ajuntamento dessas partes, mas traduz-se na articulação recíproca entre elas, a educação, também está inserida no processo da divisão do trabalho. Nas palavras de Marx (1985b, p. 88), “O que é válido para a divisão manufatureira do tra-balho no interior da oficina vale para a divisão do trabalho no interior da sociedade [...]”.

Mais precisamente a partir da “[...] separação entre as potên-cias espirituais do processo de produção e o trabalho manual [...]”, a educação assume uma formalidade didática não existente até então (MARX, 1985b, p. 44). “[...] nas comunidades primitivas, o ensino era para a vida e por meio da vida. Segundo Ponce (1986, p. 19) “[...] As crianças se educavam tomando parte nas funções da coletividade [...]”, isto é, a transmissão do conhecimento se realizava coletivamente de geração para geração. Quando a propriedade privada se instá-la na passagem da sociedade primitiva para a sociedade escravista, o conhe-

23O Trabalho Didático em Exame

cimento também é privatizado, constituindo um processo educativo dicotomizado entre o trabalho intelectual e o trabalho material, privi-legiando classes sócias determinadas.

Isso produz uma desigualdade de educação correspondente à desigualdade social. Surge assim

[...] Uma forma de educação para aqueles que realizam o tra-balho manual e que são as classes exploradas e dominadas (a ampla maioria). Outra forma para aqueles que realizam o tra-balho intelectual e que fazem parte das classes exploradoras e dominantes (uma pequena minoria). (TONET, 2011, p. 142)

Com a sociedade burguesa, que declara a igualdade natural de todos os homens, mas apenas nos âmbitos jurídico e político, a uni-versalização da educação passa a ser uma exigência demandada pela lógica do capital, uma vez que é da natureza intrínseca deste último a relação desigualdade real e igualdade formal.

O desenvolvimento das forças produtivas, no interior do modo de produção capitalista, desenvolve também a divisão social do traba-lho instaurada em outros complexos da totalidade social. A educação formal, escolar, como uma dimensão do complexo educação, tem no trabalho didático a sua objetivação.

Trabalho didático como práxis social

Ao examinarmos o trabalho didático – uma dimensão da edu-cação formal – como ato de realização da atividade escolar, antes é relevante observar que a concepção de educação como trabalho não é unânime, nem mesmo no campo do marxismo. Do ponto de vista ontológico, nosso entendimento a esse respeito é de que tanto no seu sentido mais amplo quanto o seu aspecto formal, a educação é uma necessidade histórica. Essa construção histórica nos leva a compreen-der, como vimos anteriormente, que a aprendizagem é uma necessida-

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de para a existência humana e que a educação é uma necessidade social que nasce das demandas da sociedade, portanto, uma mediação das relações entre os homens.

Dessa perspectiva, estamos falando do complexo da educa-ção como um dos complexos fundados no trabalho e não como tra-balho no sentido ontológico, ou seja, transformação intencional da natureza. Portanto, tratar da questão “trabalho didático” subentende abordá-lo como meio selecionado, dentre outras alternativas7, para a objetivação do ensino. É na modernidade que o trabalho didático as-sume um caráter especificamente de organização técnica do trabalho escolar, constituída pela relação professor-aluno, a mediação dos ins-trumentos didáticos e técnico-pedagógicos e os conteúdos específicos a serem ensinados. Essa forma de organizar o ensino surge com a esco-la comeniana e, apesar das modificações metodológicas e de conteúdo que se processaram ao longo do tempo, em essência, permanece até nossos dias.

O trabalho didático, como realização da educação escolar, tal qual outras dimensões da totalidade social, transformou-se pela sua subsunção8 ao capital, na transição do modo artesanal para o modo manufatureiro de ensinar. No período da baixa Idade Média (sécu-los XI a XV) o trabalho didático organizava-se com um único mestre (preceptor), em quem se concentrava todo o saber a ser transmitido. O atendimento aos alunos era feito individualmente e a um número muito pequeno destes (quando não apenas um ou dois), o que se pode considerar como privilégio dos jovens da classe dominante. Para os

7. No processo do homem se tornar homem, ele se defrontou com diversas situações em que foi neces-sário dar-lhes soluções. Isso foi exequível porque a partir da análise da situação real elevada a pergun-tas, em um processo de ideação das respostas concretas encontradas, ele pode escolher dentre variadas alternativas aquilo que considerou mais adequado à situação posta, o que só é possível pela mediação da consciência. Isso é uma “[...] forma peculiar de resposta ao mundo objetivo [...]”, um “[...] processo de acumulação a base ontológica do incessante acréscimo de novos conhecimentos, ao longo do tempo acerca da natureza e da sociedade.” Cf. Lessa, 2007, p. 23-24.8. Subsunção, para Marx (1985b, p.88), é o movimento de objetivação do trabalho pela submissão deste ao capital: “Sobre esse fundamento, cada ramo específico da produção encontra empirica-mente a configuração técnica que lhe é adequada, aperfeiçoa-a lentamente e cristaliza-a rapidamen-te, assim que é atingido certo grau de maturidade. O que aqui e acolá provoca modificações é, além de novos materiais de trabalho fornecidos pelo comércio, a mudança paulatina do instrumento de trabalho.”

25O Trabalho Didático em Exame

filhos da classe produtiva “[...] nunca existiu [...] um local que fosse exclusivo das crianças e dos jovens.” (MANACORDA, 2007, p. 119). Para estes, a educação dava-se pelo trabalho.

A reunião de preceptores com seus respectivos discípulos em um espaço único propiciou maior objetivação do trabalho didático, tal qual a divisão do trabalho na cooperação o fizera ao agrupar os ar-tesãos sob o mesmo teto, propiciando a passagem à manufatura. Esse foi um novo passo em direção à divisão do trabalho no interior da escola.

É no período manufatureiro que Comenius9 (2006) elabora a sua proposição de ensino nos moldes do modo de produção regido pelo capital que se consolidava. O educador morávio propõe, nesse momento, para a educação formal o potente e alienante instrumento do professor – o “livro” didático, que alavancou a divisão do trabalho na escola em concepção e execução. Parafraseando Marx (1985b), e por analogia, podemos dizer que o “livro” didático não livra o profes-sor do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. Assim, o professor10 da escola comeniana não se reconhece nas escolhas e na atividade de ensino, pois a função social do seu trabalho no capitalismo tem por pressuposto incondicional a produção da mercadoria educação. Na sociedade do capital, trabalhador, educação, arte, esporte, lazer, etc., tudo se resume à mercadoria.

A subsunção da educação ao capital cria as condições para o sur-gimento de um ensino que fragmenta e simplifica o conhecimento. Os avanços tecnológicos e científicos na produção capitalista, sob o regi-me consolidado da maquinaria nas fábricas, revolucionaram o modo de produção capitalista e todos os aspectos da vida social (MARX, 1985b). O advento do sistema do capital, 9. Jan Amos Comenius (1592-1670), bispo e educador nascido em Nivnice, Moravia, hoje República Tcheca, autor de Didática magna (1621-1657).10. Professor é aquele que ensina. O que difere o preceptor do professor comeniano é que o primeiro era portador de um conhecimento que superava indubitavelmente o dos outros homens e responsável por toda a formação do aluno, ministrava aulas apenas aos filhos de famílias abastadas, recebendo bons salá-rios, em razão da complexidade de sua atividade, e atendendo a um número reduzido de alunos (muitas vezes apenas aos filhos dos seus contratantes). O segundo exercia uma tarefa simplificada pela divisão do trabalho docente, que permitia um grau de conhecimento inferior ao primeiro e que, portanto, barateava os custos do ensino, além de atender a um número muito maior de alunos ao mesmo tempo, orientando--se pelos guias do professor, segundo a disciplina que ministrava (Paniago, 2013).

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[...] sem nenhuma consideração para com a mão humana, em seus elementos constitutivos −produziu a bem moderna ciên-cia da tecnologia. As coloridas configurações, aparentemente desconexas e ossificadas, do processo de produção social se dissolveram em aplicações conscientemente planejadas e sis-tematicamente particularizadas, de acordo com o efeito útil tencionado das ciências naturais [...] (MARX, 1985b, p. 89).

O cientificismo assume o controle da produção. Tudo passa a ser planejado cientificamente. A experiência do professor a partir de sua habilidade intelectual é substituída pela condição de mero apên-dice na indústria da educação de massa.

A divisão social do trabalho esvazia o trabalho do professor, como aquele capaz de orientar o caminho da apropriação do conheci-mento. A sua habilidade minuciosa de ensinar “[...] desaparece como algo ínfimo e secundário perante a ciência [...]” (MARX, 1985b, p. 44). Diz o nosso autor: o processo de trabalho na maquinaria “[...] é o meio mais poderoso de elevar a produtividade do trabalho, isto é, de encurtar o tempo de trabalho necessário à produção de uma mercado-ria [...]” (MARX, 1985b, p. 28), estendendo essa possibilidade para todos os complexos sociais.

Mesmo tendo elaborado sua proposta ainda no período ma-nufatureiro, Comenius antecipa-se ao estruturar uma organização de ensino que planifica o trabalho do professor. No campo do conheci-mento, o educador objetiva a divisão do trabalho propondo “a arte universal de ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 2006). Como pre-cursor de uma proposta de ensino nos moldes da divisão do trabalho no sistema do capital, ele considera a expansão da escola necessária para a instrumentalização de homens que assegurassem a construção dos Estados nacionais.

Ensinar tudo a todos, para o educador morávio, significava: en-sinar com economia de tempo e esforço e de modo fácil e quase espon-tâneo, onde um único professor ensinaria a muitos alunos, ao mesmo tempo, intensificando a exploração do trabalho. Comenius elaborou o

27O Trabalho Didático em Exame

seu método fundado na ordem da natureza, da “política”, da “ciência”, considerando atividades rigorosamente planejadas, trabalho didático articulado em tempo determinado e conteúdos sistematicamente or-ganizados em um processo gradual, elementos esses, que deveriam ser realizados por “meios apropriados e modos estabelecidos”. Dizia o autor que assim deveria ser a arte de ensinar – uma boa disposição técnica do tempo, das coisas e do método. Assim afirma Comenius (2006, p.110):

Que essa educação não seja cansativa, mas facílima: que aos exercícios de classe não sejam dedicadas mais de quatro horas, de tal modo que um só preceptor possa ensinar até cem alunos simultaneamente com um trabalho dez vezes menor do que o atualmente necessário para ensinar apenas um.

Acreditava o educador, ser

[...] um absurdo que os mestres não distribuam os estudos, para si e para os alunos, de tal modo que uns não se sucedam naturalmente aos outros, mas que cada matéria seja completa-da em dado limite de tempo. (COMENIUS, 2006, p. 160).

O meio de produção da educação escolar, para a consecução da proposta comeniana, como já afirmado, foi o “livro” didático como instrumento de trabalho do professor, que ao liberá-lo do esforço in-telectual, torna-o apenas um acessório do processo de ensino. Esses mesmos elementos permeiam ainda hoje, o cenário objetivo da edu-cação escolar.

Ao longo dos séculos algumas mudanças ocorreram, mas não tão significativas ao ponto de fugir da essência alienante da educação formal, escolar sob a determinação do capital. Ao contrário, isso de-monstra a tendência à prevalência da produção e intensificação das alienações, das misérias materiais e culturais.

A organização escolar segue o mesmo padrão da organização verificável no processo industrial. Segundo Marx (1985a), tão logo o

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capitalista se liberta do trabalho manual pela grandeza de seu capital, consequentemente, transfere a função de controle da produção a um supervisor que de forma direta e contínua controla os trabalhadores como representação e personificação do poder do capital. É o Esta-do, através do seu sistema de ensino, que cumpre esse papel segundo os desígnios do capital, uma vez que sua função na sociedade de clas-ses é a de ordenador e protetor das relações pautadas no capital. É do Estado que emanam as determinações para a educação formal. É ele que organiza o currículo nacional. É através dele que o conhecimento transmitido na escola se apresenta ideologicamente simplificado, vul-garizado e sonegado.

O que importa ao capital é a formação do trabalhador, para a sua reprodução e ampliação. Para isso utiliza-se de todos os meios e tem na educação escolar um grupo de indivíduos com a incumbência de garantir a sua reprodução (legisladores, professores, supervisores, gerenciadores, funcionários etc.), fazendo “[...] com que do interior deste complexo, da sua prática cotidiana, se desenvolva uma concep-ção de mundo que não apenas justifica a sua existência, como ainda o torna fundamental para a ‘civilização’.” (LESSA, 2012, p. 37-38). São os gerenciadores e supervisores do capital que desempenharão “a fun-ção exclusivamente repressiva” como “personificação dos interesses do capital”.

É a partir da burocratização hierarquizada do ensino que os conteúdos curriculares são ditados à escola. O professor, como tra-balhador11 do complexo da educação, é excluído do planejamento e controle de seu próprio trabalho. A organização e o desenvolvimento do trabalho didático se realizam de forma alheia e exterior a ele. Isso não quer dizer que do ponto de vista das características humanas, sua subjetividade não esteja presente. Porém, ele perde o controle e o do-mínio da totalidade do processo global de sua práxis e, portanto, não realiza as objetivações materiais e ideais enquanto ser social que é.

11. O trabalho do professor, no modo de produção capitalista, se caracteriza pela valorização do capital, pois gera mais-valia (na escola privada), mas “[...] não produz meios de produção ou de subsistência como produto final; [...] seu trabalho não aumenta o capital social global na reprodução do capital.” (PANIAGO, 2013, p. 22)

29O Trabalho Didático em Exame

Isto faz com que as “forças espirituais” do trabalho, a sua sub-jetividade, sejam atrofiadas no processo de trabalho alienado. Dessa forma se revela a natureza do modo de produção capitalista, que trans-forma o “[...] trabalhador em acessório consciente de uma máquina parcelar [...]”, ou seja, o “livro” didático e a tecnologia digital (MARX, 1985b, p. 87).

Embora na escola pública e gratuita não haja extração de mais--valia, ressaltamos a afirmação do poder de dominação como forma ideológica para a conformação “[...] com a regra geral pré-estabelecida da reprodução societária [...]” (MÉSZÁROS, 2005, p. 26, grifo do autor).

Com o aumento progressivo da complexificação social e da di-visão do trabalho em diferentes atividades humanas, todo o conheci-mento que diz respeito a cada profissão específica passa a ser transmi-tido por práticas educacionais planejadas e controladas pelo grupo de indivíduos que garantem a reprodução do capital. Assim, o trabalho didático, como meio de objetivação do ensino e elemento da práxis escolar, cumpre sua função na divisão social do trabalho vinculada à reprodução da sociedade capitalista.

Desde sua origem o trabalho didático surge como resultado da complexificação do trabalho na sociedade burguesa e, portanto, subsumido aos interesses das classes dominantes. Ele corresponde, na educação, à função da divisão social do trabalho na indústria, intensi-ficando a exploração no âmbito da escola e mantendo o controle po-lítico, administrativo e ideológico do processo educacional, na prepa-ração de trabalhadores com “[...] determinado nível de conhecimento e de comportamento para que o sistema capitalista possa funcionar.” (TONET, 2014, p. 13).

Tal qual na produção, na educação formal, escolar o capital também dita a ordem, impõe o controle e a disciplina contra as resis-tências dos professores na organização de suas atividades e viabiliza a potencialização do processo de trabalho. Isso acontece pela desti-tuição da mediação, regulação e controle que o professor possuía na totalidade do processo de trabalho. Este é o “[...] modelo de toda a

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práxis social, de qualquer conduta social ativa.”, no sistema capitalista (LUKÁCS, 2013, p. 83).

Considerações finais

Diante do quadro esboçado, é possível dizer que se na sociedade hodierna o que predomina é a obtenção de lucros extorsivos, descon-siderando os meios mais aviltantes utilizados para tal; se tomarmos como verdadeiro que a educação no âmbito escolar, através do traba-lho didático, está submetido ao capital e que, portanto, assume função específica na reprodução desta sociedade, me parece evidente a im-possibilidade de qualquer contribuição direta para as transformações necessárias à superação da exploração do trabalho alheio.

Grande parte dos autores que tratam da educação a conside-ram como redentora ou no mínimo facilitadora da emancipação humana. Entretanto, a nosso ver essa possibilidade é uma ilusão do ponto de vista da natureza do capital. Autores como Tonet (2013), reivindicam a atividade educativa como possibilidade que permita a compreensão da realidade social nas origens e natureza do capitalis-mo, perscrutando a lógica do capital e as contradições da sociedade burguesa e assim percebendo a necessidade da superação desta for-ma de sociabilidade. No entanto, há que observar as condições reais de ensino e aprendizagem, uma vez que, a educação escolar contri-bui com uma parcela importante de interiorização, pelos indivídu-os, na legitimação do lugar que lhe foi destinado na “hierarquia so-cial”, além de sua própria postura assentada nessa base, como afirma Mészáros (2005).

Isso não significa dizer que não devamos ocupar esse espaço de apropriação do conhecimento, assim como todos os outros âmbitos da realidade social. Desse modo, esperar da atividade educativa uma ação efetiva de superação da realidade opressora é manter a quimera de que ela isoladamente pode cumprir com essa tarefa.

Como sabemos, desde o desenvolvimento da propriedade pri-

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vada a educação formal passou a atender aos interesses da classe do-minante, tendo no modo capitalista de produção a culminância de sua organização estrita e restrita voltada para a preparação da força de trabalho que produz para o capital. Não apenas na forma de mão-de--obra, como também na internalização que passa pela educação nas suas duas formas, pois possui parte dos instrumentos e mecanismos de indução para a aceitação ativa, pelo indivíduo, de “[...] sua posição na ordem social, e de acordo com as tarefas reprodutivas que lhes fo-ram atribuídas.”, pelos princípios reprodutivos do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2005, p. 44).

Porém, se considerarmos como o capital se imiscui e controla até as mais íntimas relações na sociedade, a educação é perfeitamente adequada a seus interesses. O que podemos e devemos considerar é a luta pela extinção das raízes da exploração do homem pelo homem e, então, apenas então, construirmos a educação desejada, ou seja, cons-truirmos uma outra sociedade para uma outra educação. A educação que permita a todos os indivíduos integralmente, o acesso aos bens materiais e culturais produzidos pela humanidade. Nas palavras de Marx (2012, p. 31-32)

Numafase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multiface-tado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo suas capacida-des, a cada um segundo suas necessidades’”

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Referências

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33O Trabalho Didático em Exame

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Mara Regina Martins Jacomeli12

Luciana Cristina Salvatti Coutinho13

Introdução

A educação é um fenômeno propriamente humano e, como tal, acompanha a história da humanidade, adquirindo características es-pecíficas de acordo com as condições sociais, políticas e econômicas em cada momento histórico, em cada formação social.

Para a Pedagogia histórico-crítica, a educação é considerada um processo de trabalho constituindo-se, numa acepção marxiana, em dois elementos distintos, mas indissociáveis, a elaboração mental do plano de ação, de um lado e, de outro, a ação propriamente dita, guiados, ambos, por determinada finalidade. Estes dois elementos do processo de trabalho se traduzem, na história da educação, na célebre dicotomia entre teoria e prática, ou seja, entre os fins educacionais a serem atingidos e a prática pedagógica resultante. Contraditoriamen-te, é na sociedade moderna, marcada pela separação, no processo de trabalho, dos momentos de planejamento e execução, que surgem os primeiros esforços, no âmbito educacional, no sentido de articular te-oria e prática identificando os meios necessários para se levar a cabo o processo de ensino, consubstanciando-se, no século XVII, com Co-mênio, na Didática, entendida como a “arte de ensinar tudo a todos”.

12. Doutora e Mestre em Educação pela UNICAMP.Coordenadora Geral do Programa de Pós-gra-duação em Educação da Unicamp e docente da Universidade Estadual de Campinas.Pesquisadora do Histedbr/FE/Unicamp. 13. Docente da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”- HISTEDBR - GT Unicamp. Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp (2013).

O Trabalho Didático na História da Educação Brasileira: Uma Abordagem

Histórico-pedagógica

36 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

O trabalho didático, assim, corresponde às formas por meio das quais se objetivou, ao longo da história da educação, a prática educa-tiva, considerando-se como chave teórica para compreensão do traba-lho pedagógico a relação entre teoria e prática.

No Brasil, pode-se considerar que a história da educação siste-matizada inicia-se com a vinda, em 1549, dos jesuítas com a tarefa de, por meio de um trabalho educativo, expresso na catequese, criar as condições para colonização das “novas terras”.

Coerentes, portanto, com os pressupostos da pedagogia histó-rica-crítica, será feita uma análise histórico-pedagógica da Didática no Brasil que, segundo Saviani (2010) a partir do século XIX passou, tendencialmente, a ser denominada de pedagogia, focando as caracte-rísticas gerais dos métodos de ensino adotados desde a vinda dos jesu-ítas até os dias atuais, considerando três concepções pedagógicas: Pe-dagogia Tradicional, Pedagogia Nova e Pedagogia Histórico-crítica.

A Didática na Pedagogia Tradicional

A inserção do Brasil no mundo ocidental se deu em função da expansão e consolidação do modo de produção capitalista a partir das grandes navegações (FAUSTO, 2009; SODRÉ, 2002; PRADO JR, 2008; SAVIANI, 2007) sendo o ano de 1500 o marco histórico desse acontecimento.

Os habitantes que aqui residiam, quando desembarcou a esqua-dra de Cabral, organizavam-se socialmente com características seme-lhantes às denominadas comunidades primitivas (MARX, 1996), nas quais a formação das novas gerações ocorria concomitantemente, de forma gradativa, ao processo de produção da vida material da comu-nidade. Aos mais velhos cabia a responsabilidade pela educação dos mais jovens por serem aqueles que, por meio das experiências acu-muladas ao longo da vida, dominavam os saberes teóricos e práticos necessários para a manutenção da vida da comunidade. Não haviam, portanto, instituições específicas para a educação das crianças, muito

37O Trabalho Didático em Exame

menos teorias pedagógicas que buscavam orientar a prática de ensino.É somente a partir de 1549, com a vinda dos jesuítas às terras

brasílicas, como uma das estratégias de Portugal a fim de garantir o domínio do território da nova colônia, que as condições de educação dos habitantes locais começaram a se modificar. Assim, afirma Saviani (2007, p. 29):

O processo de colonização abarca, de forma articulada mas não homogênea ou harmônica, antes dialeticamente (...): a posse e exploração da terra subjugando os seus habitantes (os íncolas); a educação enquanto aculturação, isto é, a inculcação nos colonizados das práticas, técnicas, símbolos e valores pró-prios dos colonizadores; e a catequese entendida como a difu-são e conversão dos colonizados à religião dos colonizadores.

Apesar de, como esclarece o autor acima referido, nos primeiros anos de atuação dos jesuítas liderados pelos padres Manoel da Nó-brega e José de Anchieta, buscou-se tomar como base as condições de vida das comunidades locais para a elaboração de um plano educativo. Entretanto, as ideias e métodos de ensino tiveram a primazia dos con-teúdos do RatioStudiorum, por meio do qual a Companhia de Jesus padronizou, em todas as colônias portuguesas, o processo educativo dos povos das “novas terras” até 1759.

O Ratio caracterizava-se por ser um plano de estudos porme-norizado que deveria ser seguido, fielmente, por todos os colégios jesuítas espalhados pelo mundo. No Brasil, instituiu-se o curso de Humanidades denominado, no plano, de estudos inferiores. O curso era estruturado em cinco séries, a saber: Retórica, Humanidade e três classes de gramática. O conteúdo era definido a partir das Ciências Humanas, hegemonicamente pelo latim e grego, aos quais se subordi-navam o ensino da história e da geografia. O método pedagógico dos jesuítas é minuciosamente descrito na obra do sacerdote da Compa-nhia de Jesus, Leonel Franca, intitulada “O método pedagógico dos jesuítas: o RatioStudiorum”.

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O plano de estudos normatizava desde a estrutura administrati-va dos colégios jesuítas, passando pelo currículo, chegando às orienta-ções acerca da metodologia de ensino identificando, inclusive, obras a serem utilizadas no processo de formação dos educandos.

Resumidamente, do ponto de vista didático-pedagógico, o pla-no para os estudos inferiores era assim definido: determina-se que as séries devem ser organizadas a partir de graus gradativos de estudos e não se deve misturar estudantes de graus diferentes. Do ponto de vista dos conteúdos, orientava que o ensino deveria partir do mais simples para o mais complexo respeitando, portanto, a ordem estabelecida nos livros. A lição deveria sempre se iniciar com a repetição da lição ante-rior a ser feita, de memória, por um só aluno ou vários. Diariamente, exercícios de declamação e de escrita seriam executados e, enquanto os professores corrigissem as atividades realizadas pelos estudantes, ou-tros exercícios seriam passados para serem feitos. Sempre que possível, de preferência diariamente, dever-se-ia apresentar um desafio aos es-tudantes, estimulando-os à emulação e aos estudos. Especial atenção era dada à disciplina, enfatizando que todos os envolvidos no processo de formação, sejam alunos, sejam professores, deveriam, obrigatoriamente, seguir as regras estabelecidas no RatioStudiorum, e, caso fossem infrin-gidas, ao invés de castigos físicos, prescrever-se-iam atividades literárias e de estudos a serem cumpridas para além das estabelecidas para a turma. Os exames, no plano, cumpririam o papel de verificar o grau de aprovei-tamento dos estudos determinados no plano garantindo, assim, a for-mação dos jovens no sentido de se atingir a essência humana.

Com base nas análises da prática pedagógica dos jesuítas, Savia-ni (2007, p. 58) afirma que:

As ideias pedagógicas expressas no Ratio correspondem ao que passou a ser conhecido na modernidade como pedago-gia tradicional. Essa concepção pedagógica caracteriza-se por uma visão essencialista de homem, isto é, o homem é concebi-do como constituído por uma essência universal e imutável. À educação cumpre moldar a existência particular e real de cada

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educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano. Para a vertente religiosa, tendo sido o homem fei-to por Deus à sua imagem e semelhança, a essência humana é considerada, pois, criação divina. Em consequência, o homem deve empenhar-se em atingir a perfeição humana na vida natu-ral para fazer por merecer a dádiva da vida sobrenatural.

Nessa perspectiva, portanto, a educação não deve se ligar às questões da materialidade da existência humana mas deve, antes, ne-gá-la. A prática de ensino deve ser fiel ao plano elaborado pelos discí-pulos de Deus, os sacerdotes. Não se admite, assim, a possibilidade de haver métodos de ensino mas sim um único método adequado para elevar o homem da sua condição de potencialidade em realidade es-sencial, divina. Eis porque a atividade do homem, como afirma Su-chodolski (2000, p. 18) ao analisar a pedagogia da essência expressa na obra “De Magistro” de Tomás de Aquino, “não é mais do que um meio pelo qual o ideal da verdade e o ideal do bem, autoritários e dog-máticos, devem formar a natureza corrompida do homem”. Conclui, assim, Saviani (2007, p. 78) que:

No caso da concepção tradicional, o nível preponderante é, sem dúvida, o da filosofia da educação, a tal ponto que pode-ríamos mesmo dizer que a teoria da educação, a pedagogia, é subsumida à filosofia da educação. Nesse contexto, o que cha-mamos de “pedagogia tradicional” é um conjunto de enuncia-dos filosóficos referidos à educação, que tomam por base uma visão essencialista do ser humano, cabendo à educação a tarefa de conformar cada indivíduo à essência ideal e universal que caracteriza o homem. Em consequência, a prática pedagógica tradicional será o modo como o professor irá proceder na rea-lização da referida tarefa em relação a seus alunos.

A pedagogia tradicional em sua vertente religiosa representada pelo método pedagógico dos jesuítas perdurou, no Brasil, até 1759

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quando a Companhia de Jesus foi expulsa de todas as colônias portu-guesas. Esse fato, contudo, não significa a mudança drástica da con-cepção pedagógica mas, antes, inicia-se um processo de objetivação da vertente leiga a partir da Reforma Pombalina culminando, ao final do século XIX, com o chamado Método de Ensino Intuitivo ou Lições de Coisas, passando pelo método monitorial/mútuo.

As mudanças políticas, econômicas e sociais desencadeadas a partir de 1759 encontrou inspiração nas condições históricas desen-cadeadas pela transferência da Corte Portuguesa para os solos brasi-leiros em decorrência do bloqueio da França à Portugal. Para Fausto (2009, p. 126-127):

A vinda da família real deslocou definitivamente o eixo da vida administrativa da Colônia para o Rio de Janeiro, mudan-do a fisionomia da cidade. Entre outros aspectos, esboçou--se aí uma vida cultural. O acesso aos livros e a uma relativa circulação de ideias foram marcas distintivas do período. Em setembro de 1808, veio a público o primeiro jornal editado na Colônia; abriram-se também teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas, para atender aos requisitos da Corte e de uma população urbana em rápida expansão.

Às mudanças acima descritas, acrescentam-se as transformações em curso no plano econômico e político desencadeando na proclama-ção da Independência brasileira em 1822.

No bojo desse processo, a educação passa a fazer parte da agen-da política e, como primeira ação legislativa do Estado Brasileiro em matéria de educação é promulgada a Lei das Escolas de Primeiras Le-tras, em 1827, estabelecendo, no artigo 1º, que fossem criadas escolas “em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos que forem neces-sários”. O conteúdo a ser ensinado compreenderia:

Art. 6º (...) a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais

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gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica, apostólica romana, proporcionando a compreensão dos meni-nos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História da Brasil.

O método de ensino oficializado é o Método de Ensino Moni-torial ou Mútuo, também conhecido como Lancasteriano e se basea-va, de acordo com Saviani (2007, p. 128),

(...) no aproveitamento dos alunos mais adiantados como au-xiliares do professor no ensino de classes numerosas. (...) O método supunha regras predeterminadas, rigorosa disciplina e a distribuição hierarquizada dos alunos sentados em bancos dispostos num salão único e bem amplo. De uma das extre-midades do salão, o mestre, sentado numa cadeira alta, super-visionava toda a escola, em especial os monitores. Avaliando continuamente o aproveitamento e o comportamento dos alunos, esse método erigia a competição em princípio ativo do funcionamento da escola.

O processo de ensino e aprendizagem do conteúdo é rigoro-samente hierarquizado e rígido, sendo que cada unidade de ensino é composta por um elemento ou conjunto de elementos a serem ensi-nados com base em procedimentos didáticos sequenciados, dos quais devem participar todos os alunos ao mesmo tempo a partir da ordem dada pelos monitores por meio de sinais previamente estabelecidos. Esclarece Manacorda (2006, p. 259) que “as lições são de um quarto de hora nas classes inferiores e de meia hora nas superiores; os exercí-cios são breves e fáceis”.

Mais do que questões didático-pedagógicas propriamente di-tas, esse método buscava equacionar o problema de se ofertar, em larga escala, educação sistematizada à população, o que se deu por meio do uso de monitores que, sob as ordens de um professor, orientariam os

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estudos, ao mesmo tempo, no mesmo local, de um grande número de educandos. As práticas de ensino e os procedimentos didáticos adotados eram adequados para as condições objetivas do processo de ensino e aprendizagem.

As mudanças históricas se intensificaram ao longo do século XIX. De acordo com Prado Júnior (2008), começa a se viabilizar a produção de bens manufaturados no próprio país como alternativa para acumular capital em decorrência da elevação das taxas sobre os produtos importados, da proibição do tráfico de escravos e do aumen-to de capital interno proporcionado pela exportação do café. Nesse contexto, segundo Ribeiro (2010), dissemina-se e se fortalece o ide-ário liberal e cientificista, notadamente o positivismo que orienta-rão, a partir da década de 1870, no Brasil, vários projetos no campo educacional na medida que seus autores passam a ocupar postos na estrutura político-administrativa do Estado. É o caso, por exemplo, de Liberato Barroso cujas intervenções e propostas foram reunidas no livro intitulado “A instrução pública no Brasil” no qual aponta, pioneiramente, a preocupação com a instrução em âmbito nacional defendendo a obrigatoriedade da educação escolar.

As ideias de Barroso encontraram continuidade na Reforma Leôn-cio de Carvalho promulgada em 1879 pelo Decreto número 7.247. Ape-sar de não se efetivar, essa reforma é emblemática pois reflete, na forma de uma legislação, ainda no período imperial, as ideias em curso acerca da necessidade de estruturação da educação sistematizada em âmbito nacio-nal com base em preceitos científicos orientadores da prática de ensino que começaram a se disseminar, na prática, somente após a Proclamação da República, sobretudo com a reforma levada a efeito em São Paulo na década de 1890 por Caetano de Campos que, por sua vez, se inspirou nos Pareceres de Rui Barbosa, fundamentando-se, este, no Método de Ensino Intuitivo, também conhecido como Lições de Coisas.

A Reforma Paulista da década de 1890, segundo Reis Filho (1995), administrativamente, busca organizar a educação sistematiza-da em forma de grupos escolares reunindo, num mesmo espaço físico, diferentes classes, cada uma regida por um professor. As classes de-veriam ser organizadas de forma seriada, tomando como referência a

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ordem lógica do desenvolvimento do conteúdo a ser ensinado/apren-dido. As lições versando sobre as matérias curriculares, deveriam ser “mais empíricas do que teóricas, e o professor se esforçará por trans-mitir a seus discípulos noções claras e exatas, provocando o desenvol-vimento gradual de suas faculdades” (Decreto n. 27 de 1890).

O método de ensino intuitivo que deveria orientar a prática pe-dagógica foi objeto de análise de Valdemarin (2004). Afirma a autora que a produção de um mundo no qual prevalecem as relações sociais, propriamente humanas, pressupõe que o homem, para continuidade da sociedade, conheça a natureza com o intuito de dominá-la. Este domínio só é possível por meio da ciência sendo os conteúdos cien-tíficos, portanto, objeto da educação das novas gerações. Contudo, o homem dispõe, somente, de dois instrumentos por meio dos quais lhe é possível conhecer a realidade: os sentidos, acionados pela obser-vação e o intelecto, o trabalho mental. Estes, no entanto, não limita-dores para o homem no conhecimento da natureza dada sua complexi-dade. Necessário se faz, assim, um método de conhecimento que permita a identificação das causas e regras dos fenômenos naturais por parte do homem. Os sentidos são, sem dúvida, a porta de entrada do processo de conhecimento que se dá, exclusivamente, no plano do pensamento, ala-vancado por intermédio da linguagem. Os sentidos e o intelecto, para essa concepção, são meios utilizados para a aquisição do conhecimento. Este sim, o conhecimento científico, se constitui no fim do processo educativo.

Segundo Reis Filho (1995, p. 69), as ideias de Caetano de Cam-pos se apoiam em Pestalozzi, para o qual:

(...) a vida mental começa pela experiência sensorial. Portan-to, o processo de educação exige a observação direta, fonte de todo conhecimento que será completada pela linguagem. Todo o processo educacional, então, apresenta duas fases: co-meça com as experiências das crianças, pela observação, para a aquisição de ideias claras, e, depois, por meio da instrução oral, pro-gressivamente caminha para o conhecimento sistemático e organi-zado (...) O esforço do mestre é decompor o conhecimento, não

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importando qual seja, nos seus elementos mais simples, e depois apresentar naturalmente à criança, de modo que pela observação, pela impressão sensorial, esses elementos simples sejam adquiridos por meio de uma série de exercícios graduados. A essência do méto-do é a “ligação das coisas”, mediante a qual a criança não só adquire conhecimento dos objetos que a rodeiam, no ambiente, como de-senvolve a intuição, isto é, o poder da observação que, por sua vez, conduz ao desenvolvimento mental do aluno.

Essas ideias pedagógicas e as práticas de ensino resultantes per-maneceram como hegemônicos até a década de 1920 quando novas formulações teóricas começaram a ser ensejadas em função das mu-danças históricas em curso no Brasil.

A Didática na Pedagogia da Escola Nova

O Brasil sentiu um crescimento industrial e urbano considerá-vel durante o Período da Primeira Guerra Mundial, além de vivenciar uma efervescência de movimentos sociais com várias manifestações grevistas e a pressão para o término da política do “café com leite”, por meio da qual alternavam-se no poder representantes das oligarquias mineira e paulista. No seio dessas transformações históricas, novas ideias se avolumaram sobre a educação entendendo-a como instru-mento, por excelência, de transformação social. Exigia-se, para a mo-dernização e democratização do país, estruturar um sistema nacional de educação que se pautaria em um novo método de ensino que for-maria o “novo” homem. Como afirma Azevedo (1963, p. 645):

Foi nesse ambiente de agitação de ideias, de transformações econômicas e de expansão dos centros urbanos, que se iniciou no planalto e no litoral, para se propagar pelas principais cida-des do país, o movimento renovador da cultura e da educação.

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A década de 1920 viveu um movimento de reformas educacio-nais pontuais realizadas em vários estados brasileiros: Ceará, Bahia, Pernambuco, Distrito Federal, Minas Gerais. De acordo com Tanuri (2000, p. 72), guardadas as diferenças, as reformas fundamentavam-se nos princípios da Escola Nova ancorada, por sua vez, na psicologia experimental: “Escola nova, ensino ativo, método analítico, testes e medições são palavras-chave da época”.

Essas reformas, ainda que pontuais, já revelam a tendência que se efetivará nos anos seguintes, sobretudo a partir da década de 1930, de atribuir à prática educativa um caráter técnico-científico que exigi-rá, consequentemente, a introdução, nos currículos dos cursos de for-mação de professores, novas disciplinas, tais como: pedagogia, socio-logia, história da educação, psicologia. Como a se configurar, assim, a concepção pedagógica humanista moderna para a qual,

(...) os homens devem ser considerados na sua existência real, como indivíduos vivos que se diferenciam entre si, notamos que a teoria da educação deverá dar conta das diferenças que caracterizam os indivíduos, os quais devem ser considerados nas suas situações de vida e na interação com os outros indi-víduos. A teoria da educação ganha, então, autonomia em relação à filosofia da educação, devendo buscar apoio nas ci-ências, já que é através do método científico que nos é possível ter acesso aos elementos empíricos que caracterizam a vida dos educandos. Eis porque a pedagogia nova será uma teoria que buscará revestir-se do atributo de cientificidade seja apoiando--se nas ciências já constituídas, com destaque para a biologia, a psicologia e a sociologia, seja procurando tornar científica a própria pedagogia por meio das escolas e classes experimen-tais. Orientada pelos princípios da pedagogia nova, a prática pedagógica, tal como se patenteia no escolanovismo, irá valo-rizar a atividade, as experiências, a vida, os interesses dos edu-candos (SAVIANI, 2008, p. 78)

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Essa orientação científica que se pretendia dar à educação tem sua base material no modo de produção capitalista organizado sobre a base da indústria na qual a ciência passa a ocupar um lugar de destaque como força produtiva, alavancadora do processo de produção e, con-sequentemente, de toda a sociedade. Eis o sentido dessa ideia, expressa por Fernando de Azevedo (1963, 649):

Não foi uma reforma “de superfície”, de caráter administrativo ou de pura renovação de técnicas, mas uma reforma radical, feita em profundidade, e montada para uma civilização indus-trial, e em que, tomando-se o sentido da vida moderna e das necessidades nacionais, se procurou resolver as questões técni-cas em função de uma nova concepção de vida e da cultura e, portanto, de novos princípios e diretrizes de educação.

E acrescenta, ainda, Azevedo, que, diante das condições histó-rico-sociais nas quais se encontrava o Brasil, uma reforma educacional de tamanha amplitude só seria viável por meio de duas situações:

A unidade orgânica dessa política escolar, ou deveria partir do alto e ser imposta por uma revolução, nos limites e segundo as direções de uma política geral, ou se teria de elaborar len-tamente, sob a pressão dos fatos, quando a fusão espiritual do povo tivesse atingido maior grau de intensidade, unindo mais intimamente essas sociedades esparsas, afiliadas pela língua e pela religião, misturadas pela mestiçagem e pelas migrações in-ternas, mas ainda não anastomosadas pelos comércios intra e internacionais e pelos empréstimos que pressupõem, de novas técnicas, novos hábitos de vida e novos ideais, corresponden-tes a um novo tipo de civilização (idem, p. 652).

Nessa afirmação, o autor, educador renomado e reconhecido como um dos intelectuais do movimento da Escola Nova no Brasil, destaca a originalidade do pensamento educacional em relação às con-

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dições históricas vivenciadas no Brasil calcadas, ainda, segundo ele, sobre as bases do velho regime.

Mas é, justamente, por essa condição histórica de conflito en-tre o mundo “antigo” que pretende permanecer e o “novo” que insiste em se impor, que a oportunidade de formação desse “novo” homem emerge como uma necessidade e exigência da própria sociedade em processo de transformação. É esse o entendimento dos escolanovistas, como se pode verificar pela citação abaixo de Anísio Teixeira, funda-mentado em Dewey:

A contingência mesma do mundo faz dele um mundo de oportunidades, um mundo em permanente reconstrução, um mundo em marcha, com suas repetições e suas novidades, cousas acabadas e cousas incompletas, uniformidades e va-riedades, em que o presente é uma junção entre um “teimoso passado” e um “insistente futuro”. Nesse imenso processo há, ao lado do determinado, regular e irrecorrível, o indetermi-nado, o irregular, o recorrível; ao lado do fatal, o eventual; e daí ser possível a ação e a direção. O homem constitui um dos agentes, entre os muitos outros agentes – cósmicos, físicos e biológicos – da transformação do universo. O instrumento dessa contínua transformação é a experiência concebida como uma ocorrência cósmica. O inorgânico, o orgânico e o huma-no agem e reagem, pela experiência, num amplo, múltiplo e indefinido processo de repetições e renovações, de ires e vires, de uniformidades e variedades, de fatalidades e imprevistos, graças a cujo processo se tornam possíveis, de um lado, a predi-ção e o controle e, de outro, a oportunidade e a aventura (TEI-XEIRA, 1955, p.3-27).

Como regra geral de todos os seres vivos, inclusive do homem, são as ações e reações resultantes da interação e experiências vivencia-das no meio em que se situam que se originam os conhecimentos e, mais, são o motor do desenvolvimento do mundo. A educação, assim,

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tem como finalidade não o domínio dos conhecimentos científicos mas a promoção de experiências individuais positivas por meio das quais é possível, ao homem, direcionar o curso da própria existência e, consequentemente, da sociedade. Mas, afinal, quais experiências se caracterizam como positivas para o desenvolvimento do homem e da sociedade? Aquelas por meio das quais foi possível, ao homem, pro-duzir conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo. Dessa forma, afirma Teixeira (1955, p. 3-27):

Ora, o conhecimento, diz Dewey, é o resultado de uma ativi-dade que se origina em uma situação de perplexidade e que se encerra com a resolução desta situação. A perplexidade é uma situação indeterminada e o conhecimento é o elemento de controle, de determinação da situação. Se tudo, na existência, transcorre em perfeito equilíbrio, não há, propriamente, que buscar saber ou conhecer, mas, quando muito, um reconhe-cer automático. Quebrou-se, porém, o equilíbrio. Ouço, diga-mos, um ruído estranho, ou significativo, ou inesperado. Algo sucedeu e o meu mundo se perturbou. Procuro ver o que é. Observo, indago, investigo, apuro e verifico. Sei, então, o que se deu. Restabelece-se o equilíbrio e prossigo em minha ativi-dade. Conhecer, saber é, assim, uma operação, uma ação que transforma o mundo e lhe restaura o equilíbrio. Estou agora seguro, sei, voltei à tranquilidade e posso dar livre curso à vida. A situação indeterminada  tornou-se  determinada, ficou sob controle, em virtude do conhecimento que adquiri. Saber, assim, não é aprender noções já sabidas, não é familiarizar-se com a bagagem anterior de informações e conhecimentos; mas, descobri-las de novo, operando como se fôssemos seus descobridores originais. “Tomar o conhecimento já formula-do ou apontar para este conhecimento não é, diz expressamen-te Dewey, um caso de conhecimento, tanto quanto tomar um formão de uma caixa de ferramenta não é fazer este formão” (grifos no original).

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A categoria principal da concepção pedagógica de Dewey é a de experiência que consiste na ação recíproca e contínua entre os sujeitos entre si e com os objetos, na sua própria vivência cotidiana, imediata, em situações objetivas, reais, concretas. É, portanto, nesse processo de reconstrução contínua das experiências individuais que o ser humano constrói conhecimento e direciona o curso da sociedade. Nessa con-cepção, portanto, o objetivo do processo pedagógico é promover e fa-cilitar as experiências do educando, pois, desse modo, ele produzirá os conhecimentos que lhe permitirão realizar novas experiências.

Esses pressupostos tem implicações para o processo de ensino e aprendizagem ocupando a Didática um papel central pois tem como objeto a questão do método de ensino que deve se pautar no método científico experimental, buscando possibilitar, ao educando, vivenciar as situações mais adequadas para a promoção das condições necessá-rias para o desencadeamento de experiências positivas e construtivas que impulsionem, efetivamente, o desenvolvimento das faculdades mentais que entram em ação no processo de produção do conheci-mento. Dessa forma, afirma Penteador Jr (1952, p. 21):

O que importa, portanto, não é a maior capacidade de recitar de memória o conteúdo das matérias. O que importa é adqui-rir capacidade de reflexão, de observação, de análise; adquirir espírito crítico e ser capaz de resolver por si a dificuldade seja ela qual for que se apresente. Os programas modernos não devem, na civilização atual em mudança, ser de matérias de ensino, mas de atividades. (...) o que mais importa é a atitude, é o método, e não a matéria. O verdadeiro saber é aquele que leva o indivíduo a perceber as relações que há entre um acon-tecer passado e o presente. A experiência só tem valor quando é significativa, isto é, quando tem valor de uso, quando aquilo que se aprendeu funciona em uma situação nova, ajudando a resolvê-la. O conhecimento, neste sentido, é funcional, pois só se sabe de fato uma coisa quando a usamos adequadamente.

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Essas ideias e as práticas que delas resultaram tornaram-se he-gemônicas até a década de 1960 quando, atrelado ao processo de re-configuração produtiva e política, buscando diminuir a interferência subjetiva no processo de formação das novas gerações, tem-se início a configuração da pedagogia tecnicista que, grosso modo, coloca o foco na regulação do trabalho pedagógico por meio da adoção de procedi-mentos pedagógicos padronizados nos quais a prática de ensino passa a ser rigorosa e detalhadamente descrita, cabendo aos professores e alunos o papel de reprodutores, na relação de ensino e aprendizagem, das instruções contidas nos receituários didático-pedagógicos.

Na tendência acima identificada, como é possível depreender, tanto os educandos quanto os professores devem se submeter ao pro-cesso de trabalho pedagógico planejado por especialistas da educação. Essa forma de organização e gestão da educação tem como referência o processo produtivo de bens materiais no qual o trabalhador é meio de produção sendo subordinado, assim, aos interesses de acumulação de capital. Assim, afirma Saviani (2010, p. 26):

Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor e se na pedagogia nova a iniciativa se desloca para o aluno, na pedagogia tecnicista o elemento principal passa a ser a orga-nização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno posição secundária. A organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiên-cias do professor e maximizando os efeitos de sua intervenção.

Segundo o autor, as condições objetivas de organização das es-colas pautavam-se muito, ainda, na pedagogia tradicional em contra-posição as condições subjetivas dos professores que, no processo de formação, beberam das ideias da Escola Nova. Nesse cenário, a peda-gogia tecnicista, inserindo instrumentos de burocratização do traba-lho pedagógico, só colaborou no sentido de transformar a escola num verdadeiro caos, com práticas marcadas pela descontinuidade, hetero-

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geneidade e fragmentação do processo educativo. É nesse e desse contexto que surgem movimentos dos educa-

dores buscando influir no processo de formação das novas gerações como parte de uma luta para a transformação da sociedade. Para isso, buscam fundamentos teóricos para a formulação de teorias pedagó-gicas que possam orientar a prática pedagógica. Dentre as ideias que surgem, encontra-se a concepção pedagógica histórico-crítica, cujo precursor e maior representante é o Prof. Dermeval Saviani mas, que, desde sua iniciativa, vem sendo formulada por um coletivo de edu-cadores do Brasil todo, ancorados nos pressupostos do materialismo histórico-dialético.

A Didática na Pedagogia Histórico-crítica

A questão de fundo que desembocou no Golpe civil-militar de 1964, e marca os anos seguintes, no Brasil, era a própria manutenção e reprodução do modo de produção capitalista cujo objetivo é a acumu-lação de capital que, como já tão bem explicitado por Marx (1996), só é possível por meio da mais-valia extraída do resultado do trabalho do conjunto dos trabalhadores que são obrigados, para sobreviver, a vender sua força de trabalho. Eis porque os princípios de produtivida-de, racionalidade e eficiência foram sendo disseminados em todas as esferas da vida social, incluindo a educação escolar.

No processo produtivo de base capitalista, os seres humanos são convertidos em meios de produção. Importam na medida que garan-tem a reprodução da estrutura social vigente. E, numa estrutura pro-dutiva marcada pela relação autoritária, de exploração, de fragmenta-ção do processo de trabalho, a formação desses seres humanos adquire a mesma “marca” que caracteriza o trabalho assalariado.

Vários movimentos de contraposição ao regime autoritário ins-taurado em 1964, marcado por ações de planificação e controle em dife-rentes esferas da vida, tomaram força no final da década de 1970 e início de 1980, atrelados à abertura democrática “lenta e gradual” em curso.

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Dentre esses movimentos encontra-se o de educadores que, opondo-se às orientações sistemáticas de regulação sobre a educação promovidas pelo governo, começam a se mobilizar, de forma orgânica e sistemática, na luta por uma educação, efetivamente, pública, laica e de qualidade para todos.

É no bojo desse processo de luta por transformações sociais e políticas que se insere a pedagogia histórico-crítica comprometida, portanto, com a crítica ao modo de produção capitalista que submete os seres humanos a um processo de alienação e, consequentemente, de limitação ao pleno desenvolvimento dos sujeitos. E vai além, ao buscar caminhos para, nas condições objetivas da sociedade e da educação na atualidade, identificar os meios que possibilitem a superação dessa sociedade de classes. Trata-se, portanto, de uma concepção pedagógi-ca contra hegemônica que se ancora nos pressupostos da concepção marxiana de mundo e de homem.

Para a pedagogia histórico-crítica, a natureza humana é histó-rica e socialmente determinada. O homem, para existir, precisa, con-tinuamente, produzir as condições de sua existência, relacionando-se ativamente com a natureza, por meio de sua atividade vital, o trabalho. Para isso, ele se organiza coletivamente e, por meio do trabalho trans-forma a natureza e a si mesmo. Em princípio, o homem precisa garantir as condições materiais de sua existência que, sendo supridas, alavancam a formulação de novas necessidades. E, para produzir os bens materiais em escala cada vez maior e mais complexa, o homem necessita planejar o processo de trabalho, traçando objetivos e ações. Para a representação mental do plano de ação, de acordo com Saviani (2005), o homem ne-cessita conhecer o mundo, por meio da ciência, seus valores, consubs-tanciado na ética e sua simbologia, abarcando as diferentes expressões artísticas, num processo de produção de conhecimento, ideias e valores. É esse o sentido da passagem de Marx na qual ele faz uma distinção entre o trabalho dos animais, de modo geral, e dos homens:

Uma ranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia.

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Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resulta-do que já existia antes idealmente na imaginação do trabalha-dor (MARX, 1996, livro I, vol I, p. 202)

É nesse processo de produção da própria existência que o ho-mem vai elaborando os conhecimentos teóricos e práticos que funda-mentam a organização das sociedades ao longo da histórica.

Esses pressupostos nos encaminha para o entendimento de que a realidade existe independente da consciência dos homens sobre ela mas, para que sobreviva, produzindo as condições necessárias para sua existência, aos seres humanos é imperativo conhecer, o mais fielmente possível, a realidade na qual vivem e sobre a qual tem de atuar.

O homem, portanto, quando nasce, já é inserido em um mun-do estruturado, organizado, fundado sobre a base dos conhecimentos produzidos pelas gerações que o precederam. É necessário, portanto, para que ele se torne homem do seu tempo, que ele seja “humanizado”, ou seja, que lhe sejam oportunizadas as condições necessárias para que ele se aproprie das objetivações humanas, sejam elas materiais, sejam elas expressas em forma de conhecimento, possibilitando, dessa for-ma, efetivamente, o pleno desenvolvimento tendo como referência o que já foi alcançado pela humanidade.

Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de ob-jetos e de fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria--se das riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as apti-dões especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a linguagem articu-lada só se forma, em cada geração, pela aprendizagem da língua que se desenvolveu num processo histórico, em função das características objetivas desta língua (LEONTIEV, 265-266)

Na sociedade moderna, a aplicabilidade cada vez maior dos co-nhecimentos científicos no processo produtivo resultou numa intensa

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e crescente industrialização que, por sua vez, aglutinou um número cada vez maior de pessoas em torno dos locais de trabalho ocasio-nando, consequentemente, a urbanização, originando cidades cada vez maiores. Esse processo tornou a organização social cada vez mais formal e sistematizada exigindo, assim, que a formação das novas ge-rações também fosse organizada de forma formal e sistemática. Nesse contexto surge a necessidade de uma instituição específica que cumpra a tarefa de propiciar, para cada indivíduo singular, a apropriação dos conhecimentos historicamente elaborados pela humanidade. Cria-se, então, a escola, como afirma Saviani (2005, p. 15):

A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumen-tos que possibilitem o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber. As ativida-des da escola básica devem organizar-se a partir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, poderemos então afirmar que é a partir do saber sistematizado que se estrutura o currículo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura eru-dita, é uma cultura letrada. Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever. Além disso, é preciso conhecer também a linguagem dos números, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade.

Da afirmação da centralidade do saber sistematizado como ob-jeto específico do processo educativo que ocorre no interior da escola, decorre o princípio de que se deve tomar como referência para seleção dos conteúdos os clássicos histórica e coletivamente produzidos pela humanidade. Clássico é aquilo que resiste aos embates do tempo, re-presenta o que de mais elaborado foi produzido pelos seres humanos num dado momento histórico tendo, assim, uma validade universal e não somente circunstancial. Isso porque,

(...) no decurso da atividade dos homens, as suas aptidões, os seus conhecimentos e o seu saber-fazer cristalizam-se de certa

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maneira nos seus produtos (materiais, intelectuais, ideais). Ra-zão por que todo o progresso no aperfeiçoamento, por exem-plo, dos instrumentos de trabalho pode considerar-se, deste ponto de vista, como marcando um novo grau do desenvolvi-mento histórico nas aptidões motoras do homem; também a complexificação da fonética das línguas encarna os progressos realizados na articulação dos sons e do ouvido verbal, os pro-gressos das obras de arte, um desenvolvimento estético, etc. (LEONTIEV, 1978, p. 265).

E, no conjunto dos conhecimentos teóricos e práticos produ-zidos ao longo da história, o pensamento por conceitos representa o mais alto nível de desenvolvimento cognitivo do homem no processo de representação, no plano do pensamento, da realidade objetiva. Por isso, afirma Vigotski (apud MARTINS, 2013, p. 136):

Sendo um meio muito importante de conhecimento e com-preensão, o conceito modifica substancialmente o conteúdo do pensamento do adolescente. Em primeiro lugar, o pensa-mento em conceitos revela os profundos nexos subjacentes à realidade, dá a conhecer as leis que a regem, a ordenar o mun-do que se percebe com ajuda de uma rede de relações lógicas.

Aqui cabe um esclarecimento. Vigotski classifica os conceitos em duas categorias: espontâneos e sistemáticos (ou científicos). Os conceitos espontâneos são desenvolvidos nas situações particulares vivenciadas pelos sujeitos na cotidianidade da vida, de forma espon-tânea, no curso do desenvolvimento de ações com finalidades outras que não a de sistematizar conhecimentos sobre a realidade. Já os con-ceitos científicos são elaborados por meio de um rigoroso e radical processo de sistematização cujo objeto é, de fato, elaborar, no plano do pensamento, os conhecimentos que sirvam de instrumentos teóri-cos para compreensão da realidade objetiva. Os conceitos científicos se estruturam em forma de um sistema conceitual que possibilita ao

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homem ultrapassar a percepção imediata e fenomênica dos objetos da realidade concreta, agindo como mediador na relação do homem com o mundo.

Nesse momento da análise a pergunta que o leitor deve estar fa-zendo é: Como se dá a apropriação, pelos sujeitos, desses conhecimen-tos produzidos histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens? Para Leontiev (1978, p. 268),

Este processo é sempre ativo do ponto de vista do homem. Para se apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produ-to do desenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto.

Assim como a relação dos homens entre si e com a natureza é dialética, também o conhecimento produzido e sistematizado pelo homem se dá de forma dialética partindo, como afirma Saviani (2005) de um todo caótico, difuso em direção à síntese por mediação da análi-se, num movimento dinâmico e contínuo. Como afirma Marx (2008) o processo de conhecimento parte do concreto, buscando captar os elementos constitutivos da realidade objetiva num processo de análi-se. Análise significa a decomposição do todo em suas partes constitu-tivas buscando identificar suas características essenciais. Concluindo o processo de conhecimento, deve-se, a partir da análise, reconstruir, no plano do pensamento, o concreto, estabelecendo os nexos entre os elementos constitutivos do todo. Constitui-se, assim, o concreto pen-sado nas palavras de Marx, ou, em outras palavras, agora de Vigotski, figura-se, no psiquismo humano, a “imagem subjetiva da realidade ob-jetiva”.

Tendo como referência, portanto, o método materialista dia-lético, Saviani buscou identificar os elementos constitutivos de uma prática pedagógica que se pretenda revolucionária. Os elementos que compõe o trabalho pedagógico são: prática social (ponto de partida e de chegada), problematização, instrumentação, catarse.

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Os elementos acima identificados são se constituem como “pas-sos” ou “momentos” do processo educativo. São, antes, os elementos essenciais que constituem a prática pedagógica, como já dito. Isso significa que, partindo da prática pedagógica, passando pela análise, temos que buscar compreender como esses elementos se articulam na educação, considerada uma prática social específica no seio da prática social global.

Considerar a prática social como ponto de partida significa tomar a realidade concreta de necessidade e condições de formação das novas gerações, resultado de múltiplas determinações, como fun-damento para organização do processo de ensino e aprendizagem. Podemos “traduzir” essa afirmação nas seguintes perguntas: Por que, para que e sob quais condições se dá o processo de desenvolvimento e aprendizagem dos seres humanos?

Os elementos considerados “intermediários” do método peda-gógico da pedagogia histórico-crítica consistem no processo de aná-lise e se articulam, na prática educativa, dialeticamente. Por exemplo, no próprio movimento de problematização e para que ele ocorra, in-clusive, já vão sendo dispostos os instrumentos conceituais necessários para reflexão pois, afinal, pensamos por meio de conceitos consubs-tanciados nas palavras.

Aqui também cabe uma explicação sobre o conceito de pro-blema objeto da ação de problematizar, de refletir sobre. Em sentido filosófico, problema se constitui em algum desafio posto pela prática social para o conjunto da humanidade, para a coletividade, portanto. Está longe do significado dos “problemas” traduzidos em “interesses” postos pelos alunos em sala de aula. Para melhor elucidar essa dis-tinção, Saviani (2004) lança mão dos conceitos de aluno empírico e aluno concreto. O primeiro refere-se àquele educando com o qual nos deparamos em sala de aula, com interesses imediatistas, decorrentes dos estímulos aos quais são expostos no cotidiano da vida. O segundo sintetiza aquele ser humano como resultado de múltiplas determina-ções postas pela estrutura societária na qual ele nasceu e vive, decor-rente das características e princípios que fundamentam o modo de

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produção e a formação social que determinam as condições concre-tas de existência de uma coletividade. O aluno, em sala de aula, tem consciência limitada à imediaticidade da vida e não consegue captar, ainda, todos os elementos e os nexos entre eles que o determinam, e à classe social da qual faz parte. O professor, por sua vez, já possui (ou deveria) uma síntese da condição da existência humana na atualidade e da necessidade de, por meio do trabalho pedagógico, alavancar o pleno desenvolvimento de cada ser humano individualmente para que possa, de fato, apropriando-se da cultura humana, participar ativa e conscientemente da vida social.

Voltando aos elementos do método de ensino, a catarse repre-senta a efetivação do processo de apropriação dos conhecimentos objetos de ensino e aprendizagem, quando aqueles saberes foram in-corporados ao nosso ser, formando uma espécie de segunda natureza. Saviani (2005, p. 20), ao exemplificar com a alfabetização esse mo-mento, afirma:

O processo acima descrito (de alfabetização) indica que só se aprende, de fato, quando se adquire um habitus, isto é, uma disposição permanente, ou dito, de outra forma, quando o objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes. A expressão segunda natureza parece-me sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e escrever, tendemos a conside-rar esses atos como naturais. Nós os praticamos em tamanha naturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovi-dos dessas características. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do período em que éramos analfabetos. As coisas acontecem como se se tratasse de uma habilidade natural e es-pontânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise-, não de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por um processo deliberado e sistemático.

Percebam que o processo de problematização, instrumentação

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e catarse vão se dando de forma articulada, como uma unidade dialéti-ca, não sendo possível, por isso, traduzi-los separadamente na prática pedagógica como, eventualmente, vem sendo entendidos e utilizados por pesquisadores e professores.

Ao final do processo formativo, aqueles sujeitos, alunos e pro-fessores, são e não são mais os mesmos. São os mesmos pois se trata dos mesmos indivíduos que iniciaram a prática educativa mas, qua-litativamente diferentes, encontrando-se mais próximos do nível de desenvolvimento possível de ser alcançado pelos seres humanos na atualidade.

Os que esposam da pedagogia histórico-crítica não tem a ilu-são de que o processo de transformação da sociedade se dá por meio da educação. Acreditam, antes, que, possibilitando o máximo de de-senvolvimento dos seres humanos, por meio do processo de educação sistematizada, criam-se as condições subjetivas para que cada homem possa, organizando-se coletivamente, compreender a realidade atual e, assim, buscar elaborar as estratégias necessárias que fundamentem a luta por um mundo efetivamente justo e igualitário para todos os seres humanos, indistintamente.

Considerações Finais

Considerando a trajetória da Educação no Brasil tomando como eixo a relação teoria e prática, evidenciaram-se, do século XVI até o terceiro quartel do século XX, duas grandes correntes teóricas que se desdobraram em algumas variantes.

A primeira corrente, enfatizando o aspecto teórico do trabalho educativo, abarca os métodos de ensino formulados de 1549 ao final do século XIX, consubstanciados na Pedagogia Tradicional nas ver-tentes religiosa e leiga.

A segunda corrente, em contraposição a corrente anterior, fo-cando o aspecto prático do processo educativo, começa a ser formu-lada, no Brasil, em meados de 1920, ganhando projeção na década de

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1930, com o movimento da Escola Nova. Os anos posteriores a 1970, sobretudo nos anos de 1980, ob-

serva-se uma mobilização dos educadores em torno da política edu-cacional tendo como um dos eixos de luta a busca pela superação do dilema entre teoria e prática, ou seja, da relação dicotômica entre as finalidades e conteúdos a serem ensinados, de um lado, e os meios e a quem ensinar, de outro. Como um dos resultados desse movimento, apoiando-se nos pressupostos do materialismo-dialético da história, tem início a formulação da Pedagogia histórico-crítica para a qual a prática social é o ponto de partida e de chegada da educação, sendo esta entendida, portanto, como atividade mediadora no bojo da práti-ca social global e, para objetivação do trabalho pedagógico, propõe-se um outro método de ensino no qual os elementos do processo educa-tivo sejam considerados como uma unidade dialética. Esta concepção pedagógica busca, portanto, no método materialista dialético, a supe-ração das abordagens que se fundamentam no método formal.

Tomando-se como referência a educação básica na formação social brasileira a partir das concepções pedagógicas e, no seu interior, as formas como compreendem e buscam estabelecer as relações entre teoria e prática no processo de trabalho pedagógico, é que se situa uma das questões da Didática ao longo da História da Educação, como se procurou demonstrar ao longo do presente texto.

O método materialista dialético, esposado pela pedagogia his-tórico-crítica é, segundo nosso entendimento, o mais adequado para não só compreender a sociedade e a educação como, também, para levar a cabo o processo de formação das novas gerações alavancando, efetivamente, o máximo de desenvolvimento alcançado pela humani-dade que, por sua vez, só é possível por meio da apropriação da cultura histórica e coletivamente produzida pelos homens nas suas práxis.

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Silvia Helena Andrade de Brito14

Janaina Silva de Oliveira15

Introdução

Fernando de Azevedo (1894-1974), um dos mais destacados intelectuais e defensores da renovação educacional no Brasil entre os anos 1920 e 1970, foi responsável também pela produção de textos es-colares que se tornaram marcos na trajetória da “escola nova” no país. Nessa perspectiva, o objeto deste artigo são as propostas de Fernando de Azevedo para o ensino de Sociologia, considerando os compên-dios produzidos pelo referido educador/sociólogo, a saber, Princípios de Sociologia, de 1935, e Sociologia Educacional, cuja primeira edição foi publicada pela Companhia Editora Nacional, em 1940.

O objetivo geral do artigo é evidenciar as funções e conteúdos des-tes compêndios didáticos. Já os objetivos específicos são descrever as obras, evidenciando sua função no trabalho didático; e demonstrar como se arti-culam os conteúdos ali arrolados. Como procedimentos metodológicos, realizou-se o fichamento da bibliografia relativa a Fernando de Azevedo; e aos textos escolares, em particular aqueles voltados ao ensino de Socio-logia. Em seguida, houve a leitura das obras Princípios de Sociologia e So-ciologia Educacional, para evidenciar o tratamento teórico-metodológico utilizado pelo autor e as sugestões apresentadas para a utilização do texto. O passo seguinte foi asistematização das fontes primárias e secundárias, evidenciando o uso/conteúdo dos compêndios didáticos em estudo. 14. Doutora em Filosofia e História da Educação, professora da UFMS, Centro de Ciências Humanas e So-ciais, Programa de Pós-Graduação em Educação e Curso de Ciências Sociais. E-mail: [email protected]. Licenciada em Pedagogia. E-mail: [email protected].

Fernando de Azevedo e a Produção deCompêndios para o Ensino de Sociologia

(1935-1940)

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Para a compreensão de Fernando de Azevedo e os dos compên-dios por ele produzidos, visando o ensino de Sociologia, o artigo está dividido em três partes. Na primeira delas, serão apresentadas algu-mas reflexões acerca das principais categorias que norteiam as análises aqui apresentadas, a saber: organização do trabalho didático; textos escolares; e compêndios didáticos. A segunda parte do artigo é dedi-cada à apresentação e problematização dos compêndios de Fernando de Azevedo. Fechando o texto, são sintetizados alguns dos principais resultados que estas reflexões permitem entrever.

Os textos escolares e compêndios como elementos da organização do trabalho didático

Antes de iniciar as reflexões fundamentais deste artigo, em tor-no da obra de Fernando de Azevedo, faz-se necessário estabelecer al-guns marcos teóricos, por onde caminha a presente exposição. Para tal, voltar-se-á aos trabalhos do pesquisador Gilberto Luiz Alves16 (2001; 2005; 2012), na perspectiva de deslindar três categorias essen-ciais para as reflexões a serem desenvolvidas acerca dos escritos de Fer-nando de Azevedo. São elas: organização do trabalho didático; textos escolares e compêndios didáticos.

As três categorias em questão são fruto de um esforço empre-endido pelo autor com o intuito de compreender as propostas cons-truídas, no âmbito da sociedade capitalista, visando a constituição da escola moderna. Nessa direção, retoma o projeto de João Amós Co-ménio, educador morávio que, no século XVII, portanto, durante o momento de transição do feudalismo para o capitalismo, sintetizou as principais diretrizes que viriam a distinguir a escola capitalista: uma escola graduada, dividida em séries progressivas, formadas por cole-tivos de alunos, que seriam atendidos por um único professor. Ora, como a divisão em classes homogêneas permitia pensar num atendi-

16. Doutor em Filosofia e História da Educação, atualmente professor e pesquisador do Programa de Pós--Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Universidade Anhanguera-UNIDERP.

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mento especializado para cada um dos coletivos assim organizado, também permitia vislumbrar um especialista para atendê-los – e desta forma estava posta a necessidade de um professor especialista, capaz de ensinar, de forma a mais rápida e eficiente possível, tais classes de alunos (COMÉNIO, 2006). Lembra Alves (2001; 2005) que, ao vi-sualizar com estas características a escola moderna, Coménio inten-tava materializá-la a partir do que havia de mais avançado naquele contexto de transformações, que revolucionava o agonizante mundo feudal no século XVII: a organização manufatureira.

E um dos elementos centrais na organização do trabalho manu-fatureiro foi a divisão do trabalho, que permitiu separar as diferentes etapas de produção da mercadoria, favorecendo a especialização do trabalhador, bem como de seus instrumentos de trabalho. Assim, a especialização do trabalhador, somado à transformação de seus ins-trumentos de trabalho, que lhe permitiam centrar-se numa única ta-refa, garantiram o menor tempo de produção e o maior volume de mercadorias produzidas. Com esses parâmetros, Coménio pensou o papel do professor especialista, num momento histórico em que se fazia necessário ensinar tudo a todos (COMÉNIO, 2006), isto é, com o menor custo e no menor tempo possíveis, completar a tarefa de es-colarização comum a todos os homens.

Ora, qual seria o instrumento de trabalho que, na nova orga-nização do trabalho didático proposta por Coménio, garantiria as condições necessárias para que a relação educativa proposta, entre o professor especialista e um dado coletivo de alunos, chegasse a bom termo? O próprio Coménio (2006, p. 469) responde essa questão:

Uma só coisa é de extraordinária importância, pois, se ela falta, pode tornar inútil toda a máquina, ou se está presente, pode pô-la em movimento: uma provisão suficiente de livros pan--metódicos.

Lembra Alves (2001, p. 86. Grifos ao autor) que, nesse contex-to, “Surgia um novo instrumento de trabalho do professor: o manual

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didático”, uma modalidade de texto escolar que permaneceu presen-te na escola moderna, em toda a sua trajetória, tornando-se cada vez mais importante no trabalho didático.

É sabido, contudo, que a proposta elaborada por Coménio não se efetivou senão no século XIX, quando já estavam postas as con-dições materiais necessárias à expansão da escola na sociedade capi-talista. Nesse sentido, e acompanhando o desenvolvimento da escola moderna, outras modalidades de textos escolares foram produzidas antes que se efetivasse, como lembra Alves, o “[...] império do manual didático no espaço escolar” (2005, p. 70). Assim, os livros clássicos17 e as antologias (reunindo excertos de obras clássicas), bem como os compêndios, foram alguns dos exemplos de textos escolares que esti-veram presentes na escola moderna, antes que o processo de universa-lização impusesse a necessidade do manual didático.

Este último, visando a simplificação e objetivação dos conteú-dos, forjado para permitir que qualquer homem assumisse o papel de professor, quando se tornou hegemônico – o que no Brasil, em se tra-tando do ensino pós-primário, só vai acontecer a partir dos anos 1950 – excluiu da sala de aula outras modalidades de texto escolar.

No caso de Fernando de Azevedo, seus textos escolares, pro-duzidos entre a terceira e a quarta décadas do século XX – portanto, antes do processo de expansão do ensino pós-primário – ainda são identificados como compêndios ou, como o próprio autor vai carac-terizá-los, eram textos escolares que destinavam-se “[...] não somen-te à iniciação nos estudos de sociologia, como a dar, com o espírito e os métodos científicos, os elementos e as informações necessárias aos que quiserem dedicar-se especialmente a esta ciência” (AZEVEDO, 1935, p. 21). Ou seja, sendo ainda marcados pela erudição, pela farta e constante remissão a textos clássicos, e centrado nos princípios cien-tíficos da teoria sociológica, as obras de Azevedo são exemplos desta modalidade de texto escolar que Alves e Centeno (2012) denominam

17. É importante frisar que “Clássicas são aquelas obras de literatura, de filosofia, de política, etc., que permaneceram no tempo e continuam sendo buscadas como fonte de conhecimento. E continuarão de-sempenhando essa função pelo fato de terem registrado, com riqueza de minúcias e muita inspiração, as contradições históricas de seu tempo.” (ALVES, 1993, p. 21).

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compêndio, e que estiveram largamente presentes na história da esco-la moderna no Brasil, entre os séculos XIX e XX. Por isso, encontra-se nos textos escolares de Azevedo características semelhantes àquelas encontradas pelos autores ao se referirem aos textos escolares produzi-dos no Colégio Pedro II, para a disciplina História do Brasil (ALVES; CENTENO, 2009, p. 474):

Se consideradas as prescrições de Comenius, as características imanentes aos quatro textos referidos são pouco compatíveis com as do manual didático da escola moderna. São textos ex-tensos, envolvendo lições com nível informativo detalhado e denso, o que termina por conferir um alentado volume aos livros. [...] Outra característica que os distancia dos moder-nos manuais didáticos comenianos é a despreocupação com as ilustrações. Todos os livros relacionados não as exploram ao longo das lições ou dos capítulos que os integram.

Como lembram os autores, num momento histórico no qual ainda não se fizera presente a escola para todos, tal como Coménio a concebera, o compêndio ainda se fazia presente, de forma hegemôni-ca, na escola pós-primária. Tendo isso em vista, na próxima seção serão examinados os compêndios de Sociologia, produzidos por Fernando de Azevedo.

Fernando de Azevedoe a produção de compêndios didáticos para o ensino de sociologia

Com a proclamação da República, e seguindo os princípios postos pela nova Constituição, foi proposta a Reforma Benjamin Constant, em 1891, pregando a liberdade, laicidade e gratuidade da escola primária. Com um teor positivista e prevendo a maior partici-pação das camadas médias urbanas no processo de escolarização, tinha como um dos seus objetivos fundamentais substituir o ensino literário

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pelo científico, importante para aquelas parcelas da sociedade no Bra-sil que desejavam ascensão política e que, para tanto, haviam apoiado o movimento republicano. Foi nesta primeira reforma que apareceu a proposta de introdução da disciplina Sociologia no ensino secundário.

Como a Reforma Benjamin Constant acabou não se efetivan-do, a introdução da Sociologia na escola secundária foi adiada, tendo sido efetivamente inserida na Reforma João Luiz Alves/Rocha Vaz, por meio de Decreto n. 16.782A, de 13 de janeiro de 1925, “[...] que em seu artigo 47° citava a disciplina Sociologia como disciplina do sexto e último ano do ensino secundário” (BRITO, 2012). Na sequ-ência, tal como afirma Antonio Candido,

no decênio de 1930, deu-se o fato mais importante para a for-mação da Sociologia [...]. Ressalta aí a atuação dos educado-res, que vinham sentindo a sua necessidade para a formação profissional do professor primário e para a elaboração de uma teoria educacional adequada [...]. As reformas de Fernando de Azevedo no então Distrito Federal e em São Paulo (1927; 1933) incluem-na no currículo das Escolas Normais e cursos de aperfeiçoamento; a reforma federal de Francisco Campos (1931), nos cursos complementares [do ensino secundário]. (CANDIDO, 2006, p. 284).

Nesse contexto, Fernando de Azevedo não apenas voltou parte de sua produção acadêmica para o campo da Sociologia, como contri-buiu para a sua institucionalização no país, seja no momento da cria-ção da Universidade de São Paulo, em 1934, onde atuou na cátedra de Sociologia; seja em 1935, quando foi fundada a Sociedade Brasileira de Sociologia, e Fernando de Azevedo tornou-se seu presidente; e, fi-nalmente, quando dirigiu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, entre 1941 e 1942, unidade da USP que abrigava o Curso de Ciên-cias Sociais (PILETTI, 2002). Nesta última, Fernando de Azevedo foi responsável pela implantação do Departamento de Sociologia e Antropologia, em 1947.

71O Trabalho Didático em Exame

Dessa forma, nesse momento histórico entre os anos 1930 e 1950, quando se deu o estreitamento das relações entre a Sociolo-gia, e a escola secundária e normal, além da consolidação dos cursos universitários de Ciências Sociais, foi também quando ocorreu uma significativa produção de livros voltados para o ensino da disciplina (MACHADO, 1987; MEUCCI, 2000).

É dentro desse conjunto produzido entre 1930 e 1950 que se encontram as duas obras de Fernando de Azevedo voltadas para o en-sino de Sociologia: Princípios de Sociologia, de 1935, e Sociologia Educacional, de 1940. Nos dois livros, eram objetivos do autor, como afirmado anteriormente, “[...] iniciar e orientar os estudantes nessa nova ciência e fornecer aos professores uma fonte segura de informa-ções”. Frisa ainda que se os dois compêndios representam o fruto de um trabalho de síntese, e assim “[...] representam, na vida profissio-nal, o coroamento de longos trabalhos de pesquisa, análise, crítica e reconstrução, pacientemente vividos, ordenados e sistematizados” (AZEVEDO, 1935, p. 1).

Tendo em vista estas considerações, parte-se, primeiramente, para o estudo da obra Princípios de Sociologia.

Princípios de Sociologiafoi publicado em 1935 pela Compa-nhia Editora Nacional, como parte da Coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira (BPB, sendo incluído como o volume IX da Série Iniciação Científica18. Passou por diferentes edições até chegar a 11ª edição, no ano de 1973, sendo voltado, segundo Azevedo (1935), para todos aqueles que se iniciariam nos estudos sociológicos, incluindo-se aí os professores e alunos dos cursos secundário e normal, além dos cursos superiores que incluíssem a Sociologia no seu currículo.

Trata-se de uma obra de síntese, com investigação em teorias de so-ciólogos e filósofos americanos, alemães, franceses, como Tarde, Le Play, Marx, Comte, Spencer, entre outros, todos analisados a partir dos pressu-postos do funcionalismo de Émile Durkheim, no qual Azevedo se baseia para construir seus argumentos. A obra está dividida cinco partes e um

18. A BPB foi coordenada por Fernando de Azevedo, entre 1931 e 1956 (LEAL, 2003).

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apêndice (A Sociologia na América Latina e, particularmente, no Brasil). A primeira parte, intitulada Os fatos sociais: os grupos, as formas,

as atividades e a evolução social é composta por seis capítulos, nos quais o autor apresenta sua concepção do que seja a sociedade, partindo da apresentação do que sejam fatos sociais. Azevedo trata da evolução dos estudos científicos sobre a sociedade, desde a filosofia grega até a moderna aplicação dos métodos científicos aos estudos sociológicos, particularmente com o funcionalismo, nas partes dois e três do livro (A penetração do espírito científico no estudo dos fatos sociais; A ciên-cia social). O autor dedica a quarta parte para expor, no seu percurso histórico, os métodos voltados ao estudo dos fatos sociais (As escolas sociológicas do ponto de vista do método), deixando para o final a exposi-ção sobre as teorias científicas modernas sobre a sociedade (parte V, As escolas do ponto de vista da explicação dos fatos sociais). Cada capítulo tem a mesma organização: apresenta no início um índice do assunto a ser estudado; o próprio conteúdo; as sugestões de atividades a serem desenvolvidas pelo aluno – como problemas e discussões - além das re-ferências bibliográficas no término de cada capítulo e no final do livro.

O método para o ensino da disciplina já é apresentado na intro-dução do livro. Nela, Azevedo esclarece que o estudo de sua obra deve levar o aluno e o professor a compreenderem a história de constituição de um estudo científico que tem por objeto os fatos sociais, ou seja, a história da Sociologia (AZEVEDO, 1935). Em outras palavras, a tra-jetória histórica da Sociologia como ciência tem seu ponto de maior rigor científico quando se chega ao conhecimento do que são os fatos sociais, ponto de partida dos estudos sociológicos e, por isso, ponto de partida também do ensino de Sociologia. O funcionalismo, portanto, aparece como o estágio mais desenvolvido dos estudos sociológicos.

Continuando suas recomendações, Azevedo (1973) orienta que o ensino de Sociologia é complexo e que requer muita disciplina e estu-do. Permitir aos alunos entender os fatos sociais exigiria que o professor despertasse o senso de observação do aluno, que pesquisaria e discutiria assuntos da sua realidade, com o auxílio da teoria sociológica.

Para eliminar as ideias preconcebidas e dogmáticas que impe-

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dem o estudo aprofundado dos fatos sociais, professor e alunos assu-miriam uma postura de imparcialidade e objetividade, buscando os grandes autores modernos e os fundadores da Sociologia, suas teorias e bases científicas, garantindo assim a neutralidade no trabalho rea-lizado. Acrescenta que isso requer imaginação, por um lado, e muito estudo, por outro, para aprender a observar, verificar e comparar os fatos, não só os da realidade atual mas também os do passado, visando desenvolver o senso crítico de pesquisador.

Tendo em vista o conhecimento da realidade, sugere frequen-tes excursões em fábricas e outros locais de trabalho, escolas etc, para ajudar o envolvimento do aluno com a realidade. Além disso, ampa-rado no museu social ou documentação social, que ofereçam mapas, gráficos, gravuras, dados estatísticos e documentos para serem usados em aula, o aluno aprenderia como utilizá-los para realizar suas pesqui-sas. Outras atividades sugeridas envolveriam participar de clubes de Sociologia ou grupos de discussão, para compartilhar ideias e discutir problemas. Desta maneira, sempre chamando a atenção do aluno para a realidade social, Azevedo sugere que há necessidade de mais leituras, além daquelas postas no compêndio didático. Em outras palavras, se-ria necessário investigar a produção científica em outros livros, inclu-sive na obra dos autores citados, e em revistas.

Desta forma seriam formados alunos que discutiriam, criticariam e analisariam profundamente a vida social, levantando dúvidas e questio-nando métodos, que contribuiriam para o reconhecimento da Sociologia como ciência, enquanto “[...] sociologia moderna, ciência social, autôno-ma e positiva, com objetivo específico, e [...] lhe aplicar, no estudo e no ensino, os métodos próprios das ciências naturais” (AZEVEDO, 1973, p. 8). Para que o professor desenvolva tudo isso, é necessário que ele seja e transforme seus alunos em cientistas, primeiramente. Em função disso, Azevedo pensa o seu compêndio como um manual científico.

O segundo compêndio aqui examinado é Sociologia Educacio-nal (AZEVEDO, 1964),19° volume da série Iniciação Científica da coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, cuja primeira edição, como

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já dito, apareceu em 194019. Como discípulo de Émile Durkheim, e divulgador do funciona-

lismo no Brasil (PILETTI, 1994; 2002), Fernando de Azevedo tinha como objeto neste compêndio o estudo do fenômeno educacional, suas relações com os fatos econômicos, políticos e morais, bem como seus problemas e possíveis soluções, examinados à luz da teoria funcionalista.

Ele começa lembrando que selecionou obras clássicas como A divisão do trabalho social e As regras do método sociológico, de Émile Durkheim20; Comunidade e Sociedade, de Ferdinand Tönnies21 e Folkways, de Graham Sumner22, para oferecer o respaldo teórico ne-cessário na elaboração deste compêndio.

Afirma também que os estudos científicos aos quais se filiava se iniciam com Durkheim, que abordou fatos educacionais relacionados às mudanças estruturais da sociedade; mas não houve discípulos na França que continuassem esses estudos, então Azevedo declara ter procurado dar continuidade, no Brasil, a este estudo, trazendo para o país a pro-dução do sociólogo francês. Nesse sentido, o professor Roger Bastide23 reforça esse relato, escrevendo uma carta para Azevedo, na qual declara que os discípulos de Durkheim preocuparam-se mais em pesquisar a Sociologia em sua aplicação à Educação e não a Sociologia da Educação (ou seja, a visão sociológica dos fatos educacionais, que pudesse fazer da Sociologia uma contribuição para o campo das ciências da educação). Ele, dessa forma, iria indicar a leitura deste compêndio aos seus amigos franceses, considerando que essa análise sobre a educação seria um dos 19. Fernando de Azevedo, depois de 10 anos, reviu sua obra Sociologia Educacional e elaborou um prefácio, impresso nesta 2ª edição de 1950, e que foi incorporado até a 6ª edição do texto, em 1964. Neste prefácio explica que iria atualizar sua obra e colocar esse livro em dia com as novas conquistas da Sociologia, considerando que nesse momento sua evolução ainda era lenta, tendo em vista as ciências físicas, químicas e fisiológicas. Além disso, também pretendia atualizar sua obra, de acordo com as novas mudanças no quadro social. 20. Émile Durkheim (1858-1917), sociólogo francês, criador do funcionalismo, é considerado, junto com Max Weber e Karl Marx, um dos fundadores da Sociologia, sobretudo a francesa (DURKHEIM, 1978).21. Ferdinand Tönnies (1855-1936), sociólogo alemão, cuja contribuição mais conhecida é sua clássica distinção entre comunidade e sociedade (BRANCALEONE, 2008).22. William Graham Sunmer (1840-1910), sociólogo norte-americano, fez estudos sobre o folclore e sua difusão, bem como sobre o etnocentrismo, palavra criada por ele em seus estudos. Foi o responsável pela criação do primeiro curso universitário de Sociologia, na Universidade de Yale (MATOSINHOS, 2012).23. Roger Bastide (1898-1974) foi um sociólogo francês, que permaneceu no Brasil entre 1937 e 1954, integrando a missão francesa que contribuiu para a criação da Universidade de São Paulo, onde ocupou a cátedra de Sociologia. Entre os temas de seus estudos estão as religiões afro-brasileiras (QUEIROZ, 1994).

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objetivos de Durkheim, caso pudesse dar continuidade à sua obra.Permanecendo ainda na mesma discussão, segundo Azevedo (1964),

os estudos na França que relacionavam a Sociologia à educação se confun-diam, muitas vezes, com uma história comparada das doutrinas pedagógi-cas. Já nos Estados Unidos ela era mais uma Sociologia aplicada à educação, não tendo, dessa forma, oferecido grande evolução para o estudo da Socio-logia Educacional. O único que se aproximou do que poderia ser uma con-tribuição para o estudo deste fenômeno foi Marcel Mauss24, que analisou os processos de transmissão cultural nas sociedades primitivas; quanto ao restante, se resumiu a monografias e trabalhos fragmentados, que aborda-ram aspectos isolados da educação em sociedades civilizadas e primitivas.

Já no Brasil houve alguns estudos como o de Emílio Willems25, que estudou a aculturação dos alemães no Brasil; EgonSchaden26, que tratou de temáticas relacionadas com a assimilação e educação; Flores-tan Fernandes27 (um dos professores assistentes de Azevedo, naquele contexto histórico), que analisou a função do grupo na formação do imaturo; e Antônio Candido28, que sendo oresponsável pela discipli-na Sociologia na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, vinha pesquisando a Sociologia Educacional.

Azevedo considera, no entanto, que mesmo com tantas trans-formações ocorrendo na sociedade até a segunda metade do século XX, era estranho que a pesquisa na área da educação não evoluísse sa-tisfatoriamente. Ao contrário, “[...] A impaciência com que se lançam à aventura das reformas e das inovações, não lhes dá disposição nem lhes assegura o tempo necessário para o trabalho, naturalmente lento, 24. Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês, era sobrinho de Durkheim. É conside-rado um dos responsáveis pela difusão do funcionalismo na Antropologia, e dos estudos etnológicos na França (SOCIOLOGIA..., 2012).25. Emilio Willems (1905-1997), cientista social alemão, foi professor da Escola de Sociologia e Política e da Universidade de São Paulo, entre 1936 e 1949. Nessa situação contribuiu para os estudos sobre aculturas e sobre comunidade (PEREIRA, 1994).26. EgonShaden (1913-1991), antropólogo brasileiro, foi professor da Universidade de São Paulo, a par-tir de 1941 como professor assistente e, depois de 1949, como professor catedrático. Seus trabalhos mais conhecidos versam sobre a questão indígena, sobretudo os grupos Tupi-Guarani (PEREIRA, 1994). 27. Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo brasileiro, professor da Universidade de São Paulo entre 1945 e 1964, tendo sido professor visitantes nas Universidades de Columbia, Toronto e Yale, é um dos mais importantes sociólogos brasileiros (ROSCHEL, 2012).28. Antonio Candido de Mello e Souza (1918), sociólogo e literato brasileiro, professor na Universidade de São Paulo entre 1942 e 1992, autor de vasta obra tratando de temas da cultura e literatura brasileiras (ANTONIO Candido, 2012).

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das análises em profundidade e em campos cada vez mais largos de investigação. [...]” (AZEVEDO, 1964, p. 6). Com essa preocupação, efetuou alterações na obra no pós-guerra, modificando a estrutura e acrescentando assuntos a essa pesquisa.

Também para suprir a deficiência apontada, Azevedo constrói a introdução como se fora um capítulo, com o título, O que é sociolo-gia e o que é sociologia educacional, contendo tópicos de conteúdo e referências, estando ausente apenas o item voltado para a análise de problemas sociais e outras discussões. Neste momento o autor oferece uma breve explanação sobre o que é a Sociologia29, afirmando o cará-ter científico dessa nova ciência do social, que anteriormente estivera firmada na Psicologia ou em outras ciências. Lembra então o papel de Auguste Comte30, um dos pioneiros dessa corrente, que entendia a Sociologia como sendo um estudo objetivo, a ser realizado da mesma forma que nas ciências da natureza. Assim, a vida social também seria constituída de leis naturais e seria passível de ser observada em suas causas e efeitos, em seu campo específico, o social.

Lembra o autor, no entanto, que essa perspectiva ainda não era bem aceita e compreendida até aquele momento, apesar da contribui-ção decisiva dos estudos de Durkheim, mostrando que os fatos sociais estudados na Sociologia têm explicação em si mesmos, têm positivi-dade. Mesmo com a interferência do sujeito, o fato social determina as consciências individuais, estando por isso sujeito a leis próprias. Dessa forma, as pesquisas devem se desenvolver para a compreensão dessa normatividade, formando assim a ciência do social:

A constituição da sociologia, como ciência positiva, indutiva, tem à sua base esse sentimento de que a realidade social, - reali-dade objetiva, específica, sui generis, que, embora penetrando as consciências individuais, lhes fica de algum modo exterior [...]. (AZEVEDO, 1964, p. 16).

29. Este assunto é abordado com mais densidade no livro “Princípios de Sociologia” (AZEVEDO, 1935) que, em especial nas escolas normais, era uma disciplina à parte, denominada Sociologia Geral.30. Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798 - 1857), filósofo francês, conheci-do como o criador da Sociologia e do Positivismo (COMTE, 1989).

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No caso da educação, caberia à Sociologia, portanto, o estudo cien-tífico dos fatos educacionais observados, seja a educação transmitida (hábi-tos, técnicas, sentimentos coletivos, ideias, tradições); sejam as instituições escolares existentes sob uma dada estrutura social; sejam os instrumentos utilizados para o processo educacional (livro, material de ensino, etc).

Além disso, segundo Azevedo (1964), os estudos de Durkheim fazem com que se distinga a Sociologia Educacional (ciência da edu-cação) da Pedagogia. A Pedagogia, segundo ele, corresponde à prática da educação, é uma teoria que é dirigida ao educador. Para desenvolver um estudo fecundo de uma doutrina pedagógica, portanto, deve-se relacionar a história das teorias pedagógicas, da educação ou institui-ção escolar, com as instituições sociais e com a evolução social.

[...] A sociologia educacional, pelo estudo das condições con-cretas da atividade educacional e suas relações com as outras ma-nifestações, econômicas, políticas, religiosas, etc., da vida social, pretende conhecer a natureza dos fatos de educação, estabelecer as relações constantes entre os fenômenos pedagógicos e outras categorias de fatos sociais, entre o sistema social pedagógico e o sistema social geral, e chegar, por esta forma, à teoria geral dos mecanismos educacionais [...]. (AZEVEDO, 1964, p. 32).

Complementa essa ideia mostrando o porquê o educador não pode deixar de conhecer e estudar a Sociologia:

[...] Mas para que se tenha uma idéia ainda mais precisa de quanto interessa e é necessário ao educador o conhecimento da sociologia, como base científica de sua profissão, basta atentar-se para esses três fatos fundamentais: a) a natureza sociológica do fenômeno da educação; b) as relações dos fatos sociais pedagógicos e os outros fe-nômenos coletivos; c) e as variações, em conseqüência, segundo os povos e sob a pressão das condições sociais, não só das instituições escolares, como também dos tipos de mentalidade ou dos ideais que se transmitem pela educação. (AZEVEDO, 1964, p. 32-33).

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O estudo do fenômeno educacional por meio da Sociologia, portanto, se faz necessário tendo em vista que em todos os grupos sociais, no decorrer da história, o intuito de educar era de constituir um homem civilizado, segundo a concepção de civilização em cada sociedade. Além disso, todas as instituições educacionais foram in-fluenciadas pelas formas de pensar e agir, de natureza social, a serem transmitidas para as gerações mais novas.

O estudo da Sociologia Educacional é ainda de inteira impor-tância aos profissionais ligados à educação porque além de influenciar na atividade pedagógica, permitiria fazer desse profissional um cien-tista, capaz de utilizar um método para ver os fatos sociais na educa-ção. Ela formaria o educador que aprenderia a observar, comparar e a pensar, antes de concluir e agir. Faria com que o professor ampliasse sua cultura, enriquecesse sua personalidade e transmitisse para seus estudantes uma visão clara da realidade social.

Isso pressupõe, segundo Fernando de Azevedo, um professor que

[...] além de formado nos mais rigorosos métodos de pesquisa, tenha um sentido apurado das realidades sociais, o gosto da histó-ria das instituições, e, tanto quanto o enriquecimento dessa feliz faculdade de generalização, um sentimento delicado e sutil das nuanças e a viva percepção das diferenças que separam umas das outras as diversas esferas sociais [...]. (AZEVEDO, 1964, p. 36).

Concluindo, a utilização dos conhecimentos sociológicos, ao empreender o estudo das origens e funções sociais da educação, pode colaborar para a sociedade elaborar um novo fundamento educacio-nal, deduzindo daí novas e mais equilibradas regras de conduta para o seu processo educacional.

Uma vez expostas o que seriam a Sociologia e a Sociologia Educacional,sua importância para a sociedade em geral, e para os envolvidos no trabalho escolar, em particular, Azevedo segue apre-sentando a educação, enquanto fenômeno social (parte primeira do compêndio, com sete capítulos); tratando das origens e da evolução

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da escola (segunda parte, com cinco capítulos); discorrendo sobre os sistemas escolares (parte três do livro, com quatro capítulos) e finali-za com a discussão sobre os problemas pedagógicos (quarta e última parte, com seis capítulos). Como em Princípios de Sociologia, também aqui foram incluídas sugestões de problemas e discussões para o de-bate a ser desenvolvido ao final de cada capítulo, além das referências que permitiriam a professores e alunos a complementação das infor-mações em cada parte do texto.

Para os efeitos desta análise, importa lembrar que Fernando de Azevedo também sofreu a pressão de editores que gostariam que sua obra fosse mais enxuta (AZEVEDO, 1964). O autor resistiu, elabo-rando um texto extenso, com clareza e densidade, para que se tornasse fonte de informação de uma teoria à qual pretendia dar continuidade, o trabalho de Durkheim. Segundo Azevedo, só desta forma o texto seria um guia seguro e completo para estudantes e professores:

[...] A prevalecer, porém, esse critério, teríamos de cair nos manuais de tipo elementar, apropriados a um regime de sub-nutrição, em que os assuntos fossem tratados pela rama e em sínteses ou superficiais ou tão apertadas que, à força da brevi-dade, se tornariam obscuras. [...] Penamos, com ele, não so-mente em aplainar o caminho histórico e da complexidade dos fenômenos e abrir-lhes novas perspectivas, quer examinando as questões por todas as suas faces, quer levantando proble-mas e organizando, em cada capítulo, matéria para discussões e as mais completas informações bibliográficas, poderão “es-colher” largamente, no acervo do material que se lhes oferece, para expor, investigar e discutir, partindo do mais simples ao mais complexo e insistindo nos pontos que a orientação de cada um indicar, para a aplicação constante do espírito e dos métodos sociológicos ao estudo dos problemas de educação. (AZEVEDO, 1964, p. 8-9. Os grifos são nossos.).

Queria dessa maneira tornar o estudante um cientista que pes-

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quisa a realidade educacional com o método de estudo de Durkheim, e mesmo que os professores achassem difícil este intento sem um estudo prévio de Filosofia e Sociologia, Azevedo garantia que suas sugestões no item “Problemas e discussões”, presente ao final de cada capítulo; e as sugestões de leitura complementar nas referências ao término de cada capítulo, poderiam suprir essa deficiência nos currículos escolares.

Além disso, Fernando de Azevedo chama a atenção para o fato de que a especialização não pode levar ao esvaziamento da compreen-são do conjunto, ou de um fenômeno em relação com os outros que o influenciam. Para tanto,

[...] se os especialistas se tornam excessivamente “limitados”, confinados nas suas concepções sintéticas, êste é um outro problema, cuja solução estará em substituir uma preparação científica demais fragmentária e estreita que não deixa de ter repercussões sobre o nível da cultura filosófica-científica por uma preparação mais racional, em que se evitem ou se re-duzam os perigos de uma especialização prematura e a todo transe. Uma preparação filosófica e uma sólida cultura geral permitiriam aos especialistas coordenar as suas idéias e os seus conhecimentos fragmentários, numa síntese que se está sem-pre reconstituindo, e enquadrá-los numa concepção compre-ensiva do mundo. (AZEVEDO, 1964, p. 19).

Se o pesquisador deve preocupar-se em delimitar a escolha de determinado fenômeno ou grupo de fenômenos, por um lado, nunca pode perder a visão do todo, por outro. Para isso se exigirá dele uma sólida formação científica, que lhe permita interpretar os fenômenos simples e expandir a pesquisa para a descoberta de fenômenos mais complexos. Mais uma vez reafirma-se, dessa forma, a formação am-pla e o conhecimento rigoroso, ponto de partida – pois será exigência para o trabalho do professor/pesquisador social; e que será também ponto de chegada, pois é o elemento primordial para a formação do aluno/investigador dos fatos educacionais.

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Considerações finais

Este artigo visava analisar os compêndios Princípios de Socio-logia e Sociologia Educacional, produzidos pelo educador e sociólogo Fernando de Azevedo em 1935 e 1940, respectivamente, em dois sen-tidos: em relação ao seu conteúdo e em relação a forma como o autor sugere seja realizada a utilização dos mesmos.

Com relação ao conteúdo, o autor, que parte fundamentalmen-te da teoria funcionalista de Émile Durkheim para analisar a socieda-de e a educação, entende esta última como o fenômeno social respon-sável pela transmissão de tradições e cultura de geração a geração e por isso, no decorrer da evolução da sociedade, existiu da comunidade primitiva até a sociedade civilizada, a sociedade capitalista. Fator de-terminante para as mudanças que levaram a educação a se tornar cada vez mais complexa foi a divisão do trabalho e a transformação dos ins-trumentos utilizados pelo ser humano para tal processo.

E para atender a essas diferenças sociais a escola se reformulou, com profissionais mais especializados. Essa especialização, contudo, fez com que os professores perdessem a visão do todo (relação entre os sistemas educacionais e a sociedade). Para solucionar esse problema, Azevedo enfatiza a necessidade de reformulação dos fins da educação, desde o ensino primário, tanto para o meio urbano como para o rural, valorizando a ideia de pertencimento social. Desta forma, se teria um ensino único para todos.

Essa sugestão seria proposta também para os ensinos especiais (técnicos), no qual também se aprenderia sobre a cidadania, para além dos conteúdos técnicos, para não se produzirem tarefas sem criativi-dade e um ensino pobre de conhecimento sobre o papel dos indivídu-os na sociedade.

Mas o ensino para todos, ao mesmo tempo que permitiria che-gar a uma visão de conjunto sobre a sociedade, tinha a responsabilida-de de cuidar do equilíbrio social. A escola instruiria, com um modelo experimental, no qual o aluno (considerado ativo) por intermédio da pesquisa e orientação do professor, poderia relacionar o conteúdo in-

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telectual com os acontecimentos sociais. Desta forma o aluno teria oportunidade de, por meio da educação, alçar níveis mais elevados na escala social – passando de uma classe social a outra, como consequên-cia de seu esforço e mérito. Assim estariam abertas as oportunidades para a realização do ideal democrático, por meio da educação.

Para que essa tarefa atribuída à escola se cumprisse, se exigia um professor bem formado, com uma sólida visão científica sobre a socie-dade. Com esta preocupação em mente, os textos escolares Princípios de Sociologia e Sociologia Educacional, produzidos por Azevedo, são livros densos e eruditos, resultado de pesquisa e estudo sobre o assun-to, com parágrafos extensos, muitas citações e notas de rodapé e sem figuras. Tendo essas características também exigiria, para sua comple-ta utilização, a presença de um profissional que se envolvesse com a proposta de Durkheim, de ser cientista primeiro, para então formar alunos cientistas, ativos cidadãos.

Não por acaso, Azevedo relata a pressão dos editores para que ele escrevesse algo enxuto e superficial, “manuais de tipo elementar”. O autor, contudo, se posiciona desfavoravelmente quanto a essa mu-dança em sua produção, negando-se a atender aos apelos para a sim-plificação de seu trabalho: sua intenção era a produção de manuais científicos.

Com esta afirmação, complementada pela defesa da importân-cia atribuída ao trabalho do professor na condição de mediador entre os conhecimentos e os alunos, verifica-se que Azevedo não se encaixa-va na proposta de Comenius (2006), um dos principais educadores a defender a necessidade do manual didático para o trabalho didático. Este último, já no século XVII, enfatizara a necessidade de se criar um instrumento de trabalho que permitisse a qualquer pessoa colocar-se na condição de professor. O manual didático deveria ser um livro com figuras, o mais próximo da realidade, produzido em uma linguagem simples, partindo do conteúdo simples para o complexo.

Azevedo, ao contrário de Comenius, achava que a simplificação deixaria a atividade de ensino vazia e sem criatividade. Ele afirmava que o conteúdo social é vasto e complexo: por isso, mesmo havendo a

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necessidade de fragmentação e especialização quanto ao assunto estu-dado, o pesquisador não poderia perder a visão do todo (sociedade). Então a sugestão era que se produzissem textos que abarcassem o de-senvolvimento do pensamento sociológico como um todo, incluindo conteúdos que fossem mais próximos da realidade brasileira, desta maneira produzindo-se livros legitimamente “nacionais”.

Na visão proposta por Azevedo, desta forma, para se elaborar um bom texto escolar não se deveria seguir a estrutura comeniana. Ao contrário, para tornar-se um pesquisador orientado pelo método de Durkheim, deveria haver tempo e amadurecimento para se desenvol-ver a pesquisa necessária à escrita do texto, considerando que o com-pêndio representaria a síntese desse trabalho de produção.

Para finalizar, reafirma-se aqui a importância dos textos esco-lares Princípios de Sociologia e Sociologia Educacional, produzidos por Fernando de Azevedo, em duas direções. Com o seu conteúdo, por um lado, contribuiu para divulgar o funcionalismo no Brasil, em particular no âmbito da Sociologia Educacional; com sua discussão sobre o papel do compêndio na organização do trabalho didático, é importante para se conhecer melhor as características do texto escolar utilizado nos ensinos secundário e normal, nesse momento histórico.

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Enilda Fernandes31

Introdução

Busca-se nesse texto um diálogo com a alfabetização a partir de algumas produções científicas que compõe o corpo do trabalho da tese defendida em 201432, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. O Grupo de Estudos e Pesquisa História, Sociedade e Educação no Brasil – HISTEDBR – regional de Mato Grosso do Sul, desde 2007, tem-se debruçado em investigações sobre os instru-mentos de trabalho didático, e, entre eles, o manual didático, desde a sua instituição na escola Moderna.

Vinculada a essas investigações, a referida tese tomou para exa-me os métodos e conteúdos de alfabetização em manuais didáticos, utilizados nos séculos XIX e XX para a formação de professores e para o ensino na escola primária, elegendo para análise três livros: Primei-ras Lições de Coisas, de autoria do norte-americano Norman Alisson Calkins, traduzida por Rui Barbosa de Oliveira em 1881, com a pu-blicação no Brasil em 1886; a Cartilha do Povo (1829) e os Testes ABC (1933), ambos de autoria de Manuel Bergström Lourenço Filho.

Assentada na teoria de Marx e Engels, para a análise, tomou-se por base o princípio de que todas as produções humanas são históri-cas, entendendo-se, assim, que os inventos são criados para cumprir necessidades específicas e, depois, quando novas necessidades surgem, essas produções humana se transformam. Por essa matriz, defende-se 31. Mestre m em Engenharia de Produção: “Ênfase a Mídia e Conhecimento”, pelo Programa de Pós--Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Doutoraem História da Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). 32. Métodos e conteúdos de alfabetização em manuais didáticos nos séculos XIX e XX: de Calkins a Lourenço Filho. Campo Grande 2014. Orientação da Professora Dra. Silvia Helena Andrade de Brito.

Diálogos sobre Alfabetização

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que o manual didático na condição de instrumentos de trabalho do professor emergiu de uma necessidade histórica no interior da socie-dade capitalista, imprescindível à universalização da instrução públi-ca, cumprindo uma função social.

Entretanto, como afirma Gilberto Luiz Alves (2001), a organi-zação do trabalho didático que possibilitou oferecer o ensino para to-dos teve sua formulação teórica num empreendimento de João Amós Coménio, educador morávio que, no século XVII, inspirado na ma-nufatura, imprimiu ao manual didático a função de base no trabalho do professor. No mais das vezes, essa organização mantém-se na con-temporaneidade, preservando o manual didático no trabalho escolar em todos os níveis e áreas, inclusive na alfabetização.

O pressuposto aqui é o de que o ensino da leitura e da escrita corrobora um tipo de necessidade histórica. Assim, entende-se que o alfabetizar exigido à sociedade contemporânea não se realiza, pois a alfabetização encontra-se, ainda, vinculada àquele instrumento afeito às exigências da especialização no mundo moderno, fundado na base técnica do trabalho imanente à sociedade capitalista burguesa. Isso significa que o ensino da alfabetização ainda abalizado pelos manuais didáticos, instrumento estabelecido na forma manufatureira do traba-lho, reproduz os limites que se configura na base teórica e instrumen-tal daquele modo de produção.

Explicita-se que, no caso da alfabetização, os manuais didáti-cos são expressos nas cartilhas. Coménio, formulador da pedagogia moderna, propagou “a arte de ensinar tudo a todos”, em perfeita har-monia com as necessidades históricas da sociedade moderna, ao insti-tuir o manual didático na escola primária – ludusliteraritus - ou escola pública da língua vernácula. Recomendou que ao ensino da língua escrita só adotassem as cartilhas ilustradas, manuais que, ao longo do processo escolar, caracterizaram-se como instrumento “facilitador” dessa fase de ensino e aprendizagem.

A esse respeito, por ora, importa dizer que para Coménio nada deve ser introduzido do exterior no processo educacional, pois sua proposta, muito bem articulada às transformações que ocorriam na

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base material da nova sociedade, apresentava os instrumentos que, consoante àquele momento histórico, caracterizado por mudanças materiais, conferiam unidade às necessidades reclamadas à época.

Para efeito deste trabalho, apresentam-se algumas produções científicas que abordaram a alfabetização em uma perspectiva histó-rica e os que elegeram para exame os manuais didáticos na condição de instrumento de ensino e aprendizagem. Não se pretendeu a aná-lise desses trabalhos, mas fizeram-se alguns comentários, salientando as formas de abordagem e os propósitos, pontuando também de que maneira são interpretadas as questões sobre a alfabetização e seus mé-todos, bem como, procurou-se evidenciar o quão imprescindíveis são estudos que analisem o ensino da leitura e da escrita nessa condição.

Assim, esse texto será exposto em duas partes, a saber: 1) Uma síntese geral acerca das contribuições acadêmicas e os limites, isto é, quais questões ainda podem ser discutidas a respeito desse assunto e 2) Algumas considerações sobre o processo de alfabetização no âmbito histórico.

Síntese das contribuições acadêmicas no diálogo com a alfabetização

“Os Sentidos da Alfabetização: São Paulo (1876-1994)” é uma obra resultante de uma pesquisa em tese de livre-docência, de Maria do Rosário Longo Mortatti, que aborda a constituição da alfabetização em um movimento compreendido em quatro períodos históricos, explo-rando os sentidos que lhes foram sendo atribuídos, caracterizando-os em três categorias: tematizações, normatizações e concretizações.

É importante esclarecer que o termo categoria, aqui empregado, não está articulado a uma teoria, mas a autora se utiliza deles para expressar as discussões políticas em um dado momento histórico. Assim, tematizações referem-se às discussões em torno das teorizações dos métodos. Normatizações ligadas às tematizações referem-se à oficialização dos métodos e das cartilhas no âmbito das políticas

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públicas. E a concretização refere-se a materialização das propostas de reformas, evidenciando ou não a sua realização.

O termo que nomeia o livro, “Sentidos da Alfabetização”, cor-responde na interpretação da autora às significações da alfabetização no bojo das reformas por ocasião das novas administrações políticas. Mortatti (2002), em momentos históricos distintos, dialoga com os reformadores administradores e educadores que discutem os métodos de ensino da leitura e da escrita. Assim, o primeiro deles, compreen-dido entre os anos de 1876 a 1890, foi designado pela autora como: “A metodização do ensino da leitura”. Indica a pesquisadora que nesse período ocorreram reformas em vários setores da sociedade e, no in-terior delas, apresenta os debates em que vários educadores e políticos tematizam sobre os métodos de leitura e escrita33, com destaque à figu-ra de Antônio da Silva Jardim.

Crítico dos antigos métodos sintéticos, Silva Jardim defende o uso da Cartilha Maternal (1876), de João de Deus Ramos, como “arte de ensinar” pela nova e definitiva ênfase no estudo das letras com base científica, a palavração. Segundo Mortatti (2002), orientando-se para a concretização do “sentido moderno da educação”, Silva Jardim pos-tula uma “teoria da educação positiva” e aplica aos estudos dos méto-dos de ensino o princípio de “consertar melhorando”. Esse princípio concorre à reforma que visa à substituição do antigo pelo novo34.

No segundo, compreendendo os anos de 1890 a 1910, o mé-todo analítico passou a constituir a “nova bússola da educação”. Dis-cutem-se, então, a institucionalização desse método, que marcou as reformas da instrução pública paulista iniciadas em 1890 por Antônio Caetano de Campos e, também, a formação dos mestres, com ampla divulgação do método analítico. A nova bússola exigia um novo pro-fessor sintonizado com os progressos da “pedagogia moderna” deli-neada pela psicologia da infância e suas bases biológicas. Integrada à

33. Entre os que produziram Cartilhas e livros de leitura destacam-se: Hilário Ribeiro com a Cartilha Nacional (novo primeiro livro 1880), defendendo o ensino simultâneo da leitura e escrita, tratado pelo método fônico. Thomas Paulo do Bom Sucesso Galhardo, com a Cartilha da Infância (1880) e Felisberto de Carvalho, com o Primeiro Livro de Leitura (1892). 34. Entende-se que aqui o novo refere-se ao método da palavração, que será instituído pela Cartilha Maternal, em oposição ao método sintético ou soletração.

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exigência da nova bússola para a formação dos mestres, além da ques-tão teórica, fazia-se necessário, sobretudo, uma preparação prática. Mortatti (2000) caracteriza esse momento como uma disputa entre os métodos mais modernos e os modernos, polemizados em torno dos métodos analíticos da hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações, relacionadas, por sua vez, à nova proposta onde se fun-da uma nova tradição.

O terceiro momento refere-se à década de 1920, indicado pela autora como crucial na constituição da alfabetização e estabelecido como “alfabetização sob medida”, com destaque à atuação de Ma-nuel Bergström Lourenço Filho na criação dos Testes ABC. Mortatti (2000) coloca a discussão em dois níveis: de uma parte, há uma atitu-de mais conservadora, que incorpora as tematizações e normatizações, permitindo algumas materializações a partir das novas bases; de outra, a escola no seu cotidiano, se encarrega em manter a tradição, dando unidade à grande parte das concretizações mediadas pelos manuais de ensino e pelos livros didáticos, tal como já foram institucionalizados.

Por fim, o quarto momento, refere-se ao final da década de 1970 e início de 1980, ao qual a pesquisadora dá o nome de “Alfabe-tização: construtivismo e desmetodização”. Esse período se configura quando a sociedade civil tenta reorganizarse rapidamente, buscando responder às urgências sociais e políticas decorrentes das pressões pela “abertura política” e pela reorganização democrática das instituições e relações sociais.

Mortatti (2000) formulou a expressão configuração-textual, tratando-se de um conjunto de elementos inter-relacionados de deter-minado texto que abrange um conteúdo, um sujeito, um lugar e um tempo, e estão em correspondência, compreendendo: “o que, como, quem, onde, quando, por que, para que e para quem”. Por essa catego-ria, a autora toma como pano de fundo o debate educacional brasilei-ro, explicitando que os sentidos da alfabetização nas diferentes fases se estabelecem em consonância com as aspirações dos legisladores, administradores, intelectuais que agem em função das novas urgên-cias político-sociais implicadas em cada momento histórico. Por essa

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ótica, os métodos de alfabetização, a partir das cartilhas e de seus au-tores, se estabelecem em um movimento de disputa, enfeixados pelo pensamento de uma época, articulados às aspirações hegemônicas que se sustentam em cada período. Para a superação dessas contradições, cada presente histórico precisa desprender-se do seu passado e proce-der ao ajuste e regulação de teorias e práticas pedagógicas.

É de suma importância a seleção de documentos que Mortatti levantou no rastreamento de fontes para alicerçar seu estudo, bem como a recuperação das informações que foram forjando e construindo as polêmicas acerca dos métodos ao longo dos tempos. Ao abordar sua obra, a autora caracteriza a constituição da alfabetização, organizando a disputa dos métodos pela hegemonia de tematizações, normatizações e concretizações.

Em síntese, primeiramente, num momento de tensão entre o “novo” e o “tradicional”, João de Deus, na Cartilha Maternal, com o mé-todo da palavração, que caracteriza o “novo”, concorre com o tradicio-nal método sintético. Em seguida, quando da concretização do método analítico, imbuídos pela ideia da “nova bússola”, engendra-se a polêmica em torno da processuação dos métodos analíticos, que a autora nomeia como a disputa entre os “modernos” e os “mais modernos”. E, em um terceiro momento, “novas” bases biopsicológicas traçam a medida para a alfabetização. Finalmente, o quarto momento que se constitui pela base psicológica cognitiva anunciando a revolução conceitual, com a psicogênese da língua escrita, em vista das descobertas de Emília Fer-reiro, num clima de entusiasmo com a teoria construtivista piagetiana, que anunciava o abandono das cartilhas. Com base nessa última, alguns autores incorporam também Luria e Vygotsky. Daí o seu ecletismo.

Há, todavia, uma consideração a ser feita. Para Mortatti, a crise é constante e, nela, cada fase funda o seu “novo”, conservando aspectos do passado, e estabelecendo nova tradição. Ela pontua a existência de uma complexidade própria da dinâmica que se estabelece entre pas-sado e presente. Coloca a discussão em um plano de disputa que de-nuncia as contradições em meio às aspirações e realidade, porém, não viceja a discussão dos métodos atrelados às relações que se instituem

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na base material, na estrutura da sociedade capitalista. De tal forma, os métodos de alfabetização constituem o locusprivilegiado sobre os quais se manifestam o que ela denomina de recorrência discursiva da mudança, cujo movimento se sustenta pelas disputas que se travam entre aqueles que se autodenominam “modernos” e aqueles acusados de “antigos”. A produção se faz por parte de diferentes sujeitos em cada momento histórico, cuja proposta é de natureza diversa da que se encerra na disputa entre os seus idealizadores.

Assumindo o método analítico-descritivo, tomando por refe-rência a categoria configuração textual formulada por Mortatti, a pes-quisadora Estela Natalina Mantovani Bertoletti (2006), com o objeti-vo de compreender e explicar um passado recente de alfabetização no Brasil, analisa o projeto de alfabetização de Lourenço Filho, concre-tizado na “Cartilha do Povo (1929)” e na “Cartilha Upa, Cavalinho! (1957)”.

Este trabalho de Bertoletti (2006), decorrente de um estudo desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil, resulta na publicação do livro: “Lou-renço Filho e a alfabetização: um estudo da Cartilha do Povo e da Cartilha Upa, Cavalinho!”.

Duas questões chamam a atenção da pesquisadora: o crescente índice de evasão e repetência e a permanência das cartilhas no papel de “mediador” e “concretizador35” de teorias e métodos de alfabetização nas salas de aulas das escolas brasileiras, apesar de que Emília Ferreiro, com a psicogênese da língua escrita – construtivismo - indicava o “de-sapego” das cartilhas. As cartilhas permaneceram, no entanto, mesmo estando em dissonância com as teorias de alfabetização que, naquele momento, combatiam e pretendiam superar esse instrumento.

Ao longo de seu texto, a autora faz a descrição das duas cartilhas e, ao mesmo tempo, sua análise, destacando cinco lições da Cartilha do Povo, evidenciando o caráter ideológico dos textos e, também, re-velandoos constitutivos de fundo moralizante e de apelo ao espírito nacionalista e patriótico.

35. As aspas são da autora.

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Quanto ao método, a autora mostrou que, desde o fim do sé-culo XIX, as discussões sobre a questão dos métodos de alfabetização e das normatizações apresentavam-se como tradicionais, e a Cartilha do Povo procurava distinguir-se, embora guardasse semelhança em de-terminados aspectos. Por seu método de análise, a autora percebeu que a Cartilha do Povo encarnava um conteúdo que expressava o pen-samento de um educador marcado pelos ideais de seu tempo, o que evidencia Lourenço Filho como um homem público que orienta sua consciência para a nação. Em face disso, faz oposição à situação da educação do momento, por considerá-la inadequada em seus objeti-vos e princípios. Assim, a Cartilha do Povo era o instrumento para alfabetizar o que, por certo, iria “inovar”, devido ao fato de seus funda-mentos teóricos balizarem-se pelo “novo” e “científico”.

Tal como na primeira parte, a autora faz a análise dos textos das Cartilhas, e conclui que, tanto em Upa, Cavalinho!quanto em Car-tilha do Povo, o conceito de “texto” se encerra em um caráter utili-tário e instrumental, servindo, assim, de pretexto para a divulgação de valores sociais vigentes e para fixação de conteúdos escolares. Em assim sendo, a configuração dos textos não comporta uma unidade de sentido e significado internos, de modo que atende a fins externos ao universo textual. Ainda quanto ao método, confirmam-se nessa car-tilha os fundamentos teóricoexperimentais já presentes e expandidos em Upa, Cavalinho!,nas instruções para usos da cartilha. No que diz respeito à função do professor, Bertoletti entende que nessa cartilha é conferido ao professor um papel de maior relevância do que em Car-tilha do Povo. Essa “relevância” é expressa na medida em que Lourenço Filho evidencia que o professor deve estar bem preparado para desper-tar na criança o desejo de aprender.

Nesse despertar, a figura do professor é imprescindível, pois a ele compete metade da direção da aprendizagem, cabendo a outra metade do ensino à cartilha. Nesses termos, a autora conclui que a relevância do professor tem seus limites, uma vez que para Lourenço Filho a concepção de ensino se convertia em dirigir a aprendizagem, restringindo a atuação do professor a motivar essa aprendizagem. Para

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que o professor cumprisse a sua função, deveria seguir as instruções que se encontram na explanação do plano de Upa, Cavalinho!,mais detalhada do que em Cartilha do Povo36.

Consoante a sua referência, Bertoletti procede a sua análise, considerando o pensamento do autor, o seu tempo, suas necessidades e interesses no empreendimento de seu projeto de alfabetização. Desse modo, percebe o projeto de Lourenço Filho dentro de um movimen-to de reconstrução da sociedade aquecida pelos ideais republicanos, sintetizado na ideia de democratizar e socializar, que se concretiza nas páginas das Cartilhas, pois, nela, o autor expressa a mentalidade edu-cacional da época. Todavia, não discute as contradições no interior desse movimento, de modo que as cartilhas são apenas um “livro” que compreende um pensamento hegemônico atuante, tal como fica evi-dente nas palavras da autora:

Cartilha do Povo, portanto, não se caracteriza por ser um ins-trumento neutro com fins simplistas de transmissão das técni-cas do ler e do escrever, trata-se do instrumento de divulgação e aplicação de uma mentalidade nacionalista, moralizante, que ressalta a ideia e o sentido da nação e seus símbolos, bem como conclama a todos a assumirem suas responsabilidades como trabalhadores, estudantes, enfim, como brasileiros que tem uma função a desempenhar para o progresso e o desenvolvi-mento nacional, para ingresso do país na era da industrializa-ção e na modernidade (BERTOLETTI, 2006, p. 56).

Nesses termos, considera-se que suas análises são internas às cartilhas e ao seu idealizador. Bertoletti guarda questões importan-tes entre “aspas”. Embora faça observações de fundo, não evidencia as contradições e as convergências daquele “movimento inovador”, ar-ticulado pela base material da sociedade. Sendo assim, suas conclu-

36. Conforme Bertoletti (2006), comparado em escala, Upa, Cavalinho!,não corresponde ao volume de exemplares vendidos da Cartilha do Povo. Porém, também foi de grande sucesso, uma vez que já havia bastante concorrência de cartilhas no mercado editorial e, ainda assim, ela teve mais de dez edições até o ano de 1970, de forma que em todo o país seu acolhimento foi tão grande quanto o de sua precedente.

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sões, mediante procedimento analítico-descritivo, se propõem a não atribuir valor às cartilhas, qualificando-as como mais modernas e, por isso, melhores;tradicionais, por isso, ruins. Mas, do ponto de vista his-tórico, o certo é considerá-las em relação a seu tempo. Há que se con-cordar com a autora a esse respeito. Todavia, considerá-las dentro de seu tempo histórico não implica atribuir-lhes juízo de valor, mas, sim, termos históricos, isto é, como expressão de luta de classes e de con-tradição, além de explicitar a sua função na condição de instrumento para alfabetizar, no bojo da constituição da sociedade capitalista bur-guesa.

Bertoletti se atém, em sua análise, a duas considerações: de uma parte, a de estabelecer um comparativo entre as duas cartilhas e, de outra parte, a de observar o seu caráter de permanência que, segundo ela, provavelmente, se explica:

por nessas cartilhas se apresentarem as sínteses das teorias científi-cas sistematizadas e propostas por Lourenço Filho, em relação ao ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, teorias estas rigoro-samente fundamentadas e ratificadas ao longo do tempo; talvez, ainda, por sua característica “facilitadora” em relação ao trabalho do professor, resultante da exploração adequada, por parte de Lourenço Filho, do papel mediador e concretizador desse instru-mento, mediante a utilização de um método misto (eclético) de alfabetização, ou resultante das minuciosas explicações do autor quanto aos procedimentos do professor, no Guia do Mestre; tal-vez pela ligação das cartilhas aos diferentes momentos históricos, suas necessidades e anseios, e à promessa de algo novo e que resol-veria os problemas da alfabetização brasileira; talvez ainda, devi-do ao prestígio e respeito conseguidos pelo autor em uma carreira intensa e extensa (BERTOLETTI, 2006, p. 121).

A pesquisadora não avança em suas reflexões acerca da produ-ção das cartilhas no interior da organização do trabalho didático, fio condutor para a apreensão de sua construção, enquanto instrumento

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orientador do trabalho do professor. A autora capta questões impor-tantes, mas não as explora em suas análises. Alves (2005) destaca que, para o entendimento de um objeto particular, é preciso tocar o mo-vimento que relacione esse objeto singular ao universal, de maneira que as análises das questões tratadas pela autora exigiriam considerar a produção da escola moderna no interior da sociedade capitalista.

Nessa perspectiva, Alves (2005, p. 3) destaca uma postulação de Marx (1985, p. 119), segundo a qual não “se produzem as abstrações mais gerais senão onde existe o desenvolvimento concreto mais rico, onde um aparece como comum a muitos, comum a todos. Então já não pode ser pensado somente sob uma forma particular”. Portanto, para entender as cartilhas como expressão dos métodos de alfabetização, concretização de um pensamento hegemônico atuante, ou os aspectos da relação educativa contido nesse instrumento, é preciso apreendê-las como elemento constituinte do trabalho didático, no interior da escola moderna. É importante dialogar também com mais uma das conclusões da autora no que respeita às reformulações de Lourenço Filho:

a) A preocupação inicial com a educação popular e com a “al-fabetização das massas” perde a sua relevância, tornando-se a alfabetização de crianças o ponto principal das preocupações do autor [...] Um interesse muito maior pelas questões do en-sino vem ganhar espaço, num lugar ocupado, antes, por ques-tões de aprendizagem; O papel do professor é redefinido, pas-sando de mero “motivador do aprendizado” para “regulador e diretor da aprendizagem”, responsável pelo estabelecimento das relações entre aluno, material de ensino e ambiente escolar, e as instruções para uso da cartilha crescem em importância e quantidade [...] (BERTOLETTI, 2006, p. 120).

Essas “conclusões” foram mais bem discutidas na tese, pois, dado espaço restrito deste trabalho, por ora, considera-se que o proje-to de alfabetização de Lourenço Filho se deu no bojo de um processo de mudança social, em virtude dos efeitos dos conflitos e desequilí-

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brios provocados pela primeira guerra mundial, cuja diretriz se mo-via pela ideia de “democracia”. À época, postularam a educação como parte necessária às exigências das transformações sociais. O progresso da sociedade moderna se definiu pelo conhecimento da ciência, daí a ideia da nova mentalidade e, como consequência, a definição de novos fins para a escola: numa sociedade em transformação, o indivíduo ti-nha que ser preparado desde os anos iniciais de sua escolarização, para adquirir “autonomia e independência”.

Lourenço Filho entendia que à alfabetização deveriam ser ga-rantidos os meios adequados e os instrumentos que atendessem a todos de forma eficiente e econômica. Apoiando-se nos avanços da psicologia, estabeleceu a crítica à educação tradicional e conformou os meios para acomodar a educação das massas. Daí os “Testes ABC” para assegurar a reorganização das turmas, classificando as crianças em níveis de adiantamento. As cartilhas acompanhadas dos “Guias do Mestre” eram os instrumentos para assegurar a objetividade no desen-volvimento das atividades e a sua homogeneização. A criança deveria ser incentivada a aprender, mas mediada pela cartilha.

Destacamos também o livro de Vera Tereza Valdemarin, “Es-tudando as Lições de Coisas: análise dos fundamentos filosóficos do Método Intuitivo” publicado em 2004, elegendo os seguintes manu-ais: Primeiras lições de coisas, de Calkins, os manuais elaborados por Jules Paroz, Saffray e os manuais criados pelo casal Fanny e Michel Delon37, adotados nas escolas brasileiras. Em seus estudos, busca pon-tuar os princípios educacionais vinculados a uma teoria do conheci-mento humano, bem como examinar a influência das teorias filosófi-cas na formulação de procedimentos didáticos. Trata-se de apreender o modo pelos quais as teorias sobre o conhecimento são convertidas em prescrições metodológicas, para ensinar indivíduos específicos.

Valdemarin (2004) debateu o papel que a escola tem desempe-nhado na construção da cultura escolar, com ênfase nos aspectos filo-sóficos, norteadores das prescrições sobre “o que e como ensinar”, que 37. Lições de Coisas (Safray 1908), Planos de estudos e lições de coisas (Paroz 1875), Exercisesettravaux-pourles enfants selonlaméthode et les procedes de Pestalozzi et de Froebel (Fany e Delon 1892/1913) e Primeiras Lições de Coisas (Calkins 1886).

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se consubstanciam no processo de transposição didática38. Segundo a autora, como princípio geral, o método intuitivo nas décadas finais do século XIX apresentou-se com o intuito de modernização ou inova-ção, mas a prática decorrente desses princípios assumiu interpretações diferentes. Enquanto alguns consideram o método intuitivo o méto-do geral de ensino, outros o consideram adequado a alguns conteúdos, cujos objetos de ensino fossem concretos, permitindo as percepções diretas dos sentidos. Para ela, o método intuitivo, embora com inter-pretações diferentes, é fundamentado nos mesmos princípios sobre o conhecimento, constituindo, portanto, fontes por meio das quais é possível compreender alguns elementos componentes da cultura es-colar, uma vez que expressam valores ilustrativos da seleção de conte-údos operada pela escola.

Em suas análises, a autora conclui que os manuais de Safrey e Paroz constroem um discurso modernizante, mas a prática é memori-zadora, enciclopédica e moralista. O modelo de ensino elaborado por esses autores descaracteriza o método intuitivo, ao retirar-lhe o seu ele-mento essencial – o objeto, as coisas. Já os manuais de Calkins e Fany e Delon, em suas prescrições metodológicas, são exemplos de coerência com os princípios filosóficos a presidir os atos do conhecimento e do ensino. As proposições práticas materializam o pressuposto epistemo-lógico que afirma que o conhecimento provém das coisas exteriores. A obra de Valdemarin (2004) contribui com as reflexões no que se refere às abordagens de caráter epistemológico que integram o estudo. O seu trabalho foi intenso em direção à construção do seu objeto de estudo para a apreensão das bases do método intuitivo. Ao tomar os manuais didáticos fundados no método intuitivo e propostos para uso de pro-fessores no final do século XIX, Valdemarin (2004) enfoca a cultura escolar e apreende os aspectos ligados a valores culturais e econômi-cos, operando na instrução escolar. E também, pontua a imagem da cultura que eles veiculam, por exemplo, os conteúdos, mas não assenta

38. A expressão transposição didática foi introduzida por Michel Varret e rediscutida por Yves Cheve-lard, em 1985, no livro La TranspositionDidactique. A transposição didática refere-se à transformação que um saber sofre na passagem do campo científico para o campo escolar. Trata-se de fazer um objeto produzido pelo sábio ser objeto do saber escolar.

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a sua preocupação no impacto desse método no processo de ensino e aprendizagem.

Assinale-se que, das produções arroladas na tese, foram descri-tas aqui apenas três, haja vista o escopo deste trabalho: evidenciar que os manuais didáticos, característicos de um momento histórico espe-cífico, imprimem os métodos de ensino e revelando o rumo dado ao processo de alfabetização. Após estabelecer as principais ideias conti-das nessas produções, tecem-se no próximo tópico algumas conside-rações sobre a alfabetização no âmbito histórico.

Algumas considerações sobre a alfabetização: um diálogo no âmbito histórico

O ponto de partida é o de que o processo de ensino liga-se a necessidades históricas; assim, a alfabetização deve ser apreendida na base material da sociedade, de modo que se permita captar o que, de fato, orienta o ato de alfabetizar em um dado momento histórico.

Não obstante, Bertoletti (2006) aborda a permanência do ma-nual didático. Concorda-se a respeito da relevância dessa questão, po-rém, isso não é suficiente, pois há que se considerar o impacto dessa continuidade no trabalho educativo do ponto de vista histórico. O manual didático, desde o estabelecimento da escola moderna burgue-sa, compõem os métodos e conteúdos que dominam no interior das salas de aulas. É certo que, em termos físicos, sofrem alterações em sua forma, são aperfeiçoados tecnologicamente, mas, desde sua ori-gem, tem uma configuração que lhe é intrínseca, não pode ser “salvo” porque expressam a divisão e a especialização que se conformou na sociedade moderna, desde o trabalho manufatureiro.

Seguindo-se o que escreve Hobsbawm (1998), se se tratar de questões que envolvem a continuidade e descontinuidade isoladamen-te na história, perde-se a característica daquilo que lhes dá relevância na discussão. Assim, ao estudar os elementos que envolvem o trabalho didático, procura-se entendê-los no seu processo de produção, o que

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inclui sua origem, permanência e transformação, refletindo acerca de sua condição histórica e percebendo a sua historicidade.

Nesses termos, indica-se que essa historicidade se evidencia no instrumento, no método, portanto, no próprio ato de alfabetizar. Assim, há que se apreender o manual didático como instrumento de trabalho, que em suas origens alinhou-se ao caráter técnico-prático da sociedade moderna e envidou a simplificação e objetivação do traba-lho didático. Igualmente, o método também abaliza o processo edu-cativo alinhado com o utilitarismo que se evidenciou na ciência mo-derna, a exemplo, o método intuitivo nas Primeiras Lições de Coisas.

Não por acaso, dois intelectuais brasileiros, Rui Barbosa e Lou-renço Filho, embora se distingam pelo lapso de tempo de quase três décadas, para resolver a problemática educacional no Brasil, tomaram como questão de fundo o método e os instrumentos didáticos para orientar o trabalho do professor. Tanto um quanto o outro dissemi-naram a ideia de um aprendizado fácil, rápido, simples e de densidade compacta do saber. As propostas das reformas de ensino desses intelec-tuais, no entretempo, assinalados nos séculos XIX e XX, respondem às necessidades históricas afinadas com a perspectiva da sociedade burguesa, que, anunciando os princípios da Escola Nova, indicam a tendência da escola moderna atribuir autonomia aos instrumentos. Assinala-se, assim, que os métodos, no movimento mais amplo, são também instrumentos que, em última instância, respondem a neces-sidades históricas.

Enfim, cabe explicitar que os dois brasileiros, ainda que, em mo-mentos históricos distintos e marcados por características próprias, fizeram parte de um mesmo movimento de reforma, já que em suas bases vislumbraram as aspirações da sociedade capitalista e, pela base material, apreenderam objetivamente as reformas de ensino com foco especial para a alfabetização. As orientações pedagógicas de ambos, impressas em seus manuais didáticos e métodos de ensino, conduzi-dos pelo pragmatismo, concretizaram os fins e princípios comeniano. Em sua Didática Magna, Coménio sugere que o método se autonomi-ze, que o domínio da língua se circunscreva à comunicação e, também,

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que a leitura se restrinja aos manuais didáticos. A título de ilustração transcrevem-se algumas passagens da obra:

A proa e a popa de nossa Didactica será investigar e descobrir o método, segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais; nas escolas haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atractivo e mais sólido progresso [...] (COMÉNIO, 1957, p. 44).

Aqui, expressa o caráter prático ligado ao desenvolvimento da nova ordem social. Sua abordagem centra-se em torno dos obje-tos concretos e úteis, haja vista o dizer de Coménio (1957, p. 320) “aprenda-se a fazer fazendo”, ressalte-se, ainda, a didática que recai na observação sistemática. Para ele a inteligência só pode ser alcançada pela ação. Se nas oficinas das artes mecânicas os aprendizes não se per-dem com especulações teóricas, também, assim deve ser o ensino das línguas nas escolas. A vista das coisas, a criança assimila a sua utilida-de material. Então, que os manuais sejam cuidadosamente ilustrados. As imagens das coisas, as crianças devem expressá-las e reproduzi-las, tanto interiormente, por meio da memória, como exteriormente, por meio das mãos e da língua.

Eis a acepção de sua proposta para ensinar a ler e escrever,

As línguas aprendem-se, não como uma parte da instrução ou da sabedoria, mas como um instrumento para adquirir a instrução para comunicar aos outros. [...] Ora, são necessárias: a língua ma-terna, para tratar dos negócios domésticos; a dos países vizinhos, para entrar em relações com eles [...]. Basta aprender o suficiente para ler e entender os livros (COMÉNIO, 1957, p. 331).

Note-se que ao instituir os dois gêneros de manual didático, um para uso dos professores, livros-roteiros, e o outro, os livros de textos, para atividade do aluno, Coménio sistematiza seu o plano de estudo,

103O Trabalho Didático em Exame

“recomendando” que:

A cada classe sejam destinados livros de textos próprios, que contenham todo o programa prescrito para essa classe [...] para que, conduzidos pelo caminho destes estudos, não te-nham a necessidade de nenhum outro livro, e com a ajuda desses livros possam ser conduzidos infalivelmente às metas fixadas (COMÉNIO, 1957, p. 430).

Vê-se que o pragmatismo engendra as bases de sua proposta e do seu método no ensino das línguas, de modo que o conteúdo não é a linguagem como meio para refletir, mas como um instrumento téc-nico. As orientações refletem o pensamento que considera o apren-dizado, no caso aqui o da língua, uma utilidade prática. Fortemente ligado ao desenvolvimento da nova sociedade, a abrangência de todo o ensino e também o das línguas, que o orientam, devota-se à conve-niência a que se dirigem. Assim, aos homens comuns, além da língua vernácula, caberia ensinar a língua dos países vizinhos, pois são úteis para o trato dos negócios domésticos. A língua latina, considerada a língua de trato aos mais instruídos.

Coménio reprovava totalmente o uso de outros livros para acompanhar o ensino da escrita e leitura, “Efetivamente, quanto me-nos os outros livros ocuparem os olhos, tanto mais os livros de texto ocuparão a mente.” (COMÉNIO, 1957, p. 288). Como bem observa Souza (2010), articulado às forças sociais burguesas comprometidas com a economia política, voltava-se para o trabalho e para o merca-do, de modo que a necessidade era básica: ler, escrever e contar; não comportando, portanto, espaço para a reflexão filosófica contida na literatura.

A historicidade do ato de alfabetizar marca-se por um quadro de sucessivas alterações que promoveram o desenvolvimento da leitu-ra e da escrita, processo no qual se define o que se denomina, alfabeti-zação. O homem, na sua materialidade, ao longo da história, modifica e sofre modificações, no processo de intercâmbios sociais. É assim,

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produzindo suas ideias e representações que “[...] a linguagem nasce, como a consciência da carência, da necessidade de intercâmbio com os outros homens” (MARX E ENGELS, 1991, p. 43), e como ema-nação de suas ações na base material criam instrumentos para mediar suas relações, objetivar e simplificar suas atividades.

Confirma-se assim a premissa de que a linguagem escrita e oral, como objetos de expressão e de interlocução, comportaram formas diferentes em tempos diferentes, fato que funda a sua natureza histó-rica. Dessa lógica, sob o influxo das necessidades que assomaram nas sociedades, a linguagem escrita e a leitura, bem como os instrumentos para seu registro, métodos de ensino e conteúdos produzidos ao lon-go da história, modificaram-se, conforme as transformações na forma concreta de produção da vida. Nesse processo a alfabetização tem os seus limites e extensão dentro do movimento de uma sociedade que se configura por contradições. Portanto, ela está inserida num processo histórico que se distingue por novas necessidades e que demanda su-perações.

O ensino da linguagem escrita e da leitura apresenta-se articu-lado às condições materiais de cada época, e sua apropriação, como instrumento cultural, técnico ou social, vincula-se às transformações materiais instituídas nas sociedades; impregnando, portanto, em sua história, um conjunto de elementos que permitem detectar a sua di-mensão histórica.

A perspectiva de expor um diálogo histórico com a alfabetiza-ção impõe apreendê-la no movimento universal, que, como conheci-mento, traduz necessidades específicas no âmbito de ensino. Vale lem-brar, em fins do século XIX, as propostas de Rui Barbosa, divulgador da obra de Calkins, no Brasil e, no início do século XX, Lourenço Fi-lho, na “renovação escolar”, imprimem à Cartilha do Povo um caráter autônomo e autossuficiente que daria lições ao aluno e ao professor, a eles ela ensina “o que há de melhor a fazer”(LOURENÇO FILHO, 1951, p. 2). O projeto de reforma educacional desses dois educadores, na análise dos métodos e conteúdos – trabalho feito na tese – revela em seus fundamentos as perspectivas liberais do pensamento burguês.

105O Trabalho Didático em Exame

As relações entre educação e sociedade estabelecida por esses dois reformadores, pautadas por uma concepção idealista, balizadas por métodos e conteúdos pragmáticos, obstaram qualquer possibi-lidade de formação voltada a outro conhecimento. As pedagogias instituídas na base daquelas reformas caracterizaram impacto sobre o conteúdo escolar, acarretando a fragmentação, levando no limite o processo de alfabetização, a colaborar para o encaminhamento da lei-tura e da escrita como atividades estritamente escolares, o que forta-leceu ao desaparecimento do espírito de leitor/escritor entre crianças e jovens.

Para finalizar o texto, cabe explicitar que se propõe uma refle-xão sobre alfabetização na contemporaneidade, pois que, a despeito das alterações que a cartilha tenha sofrido em sua forma e conteúdo, indica-se a ausência da literatura como atividade essencial na alfabeti-zação, omitindo nesse processo qualquer possibilidade de formar lei-tores. Compartilhando com Souza (2010), encerra-se este texto com algumas considerações.

Paradoxalmente ao que seria o papel da alfabetização, desenvol-veu-se, historicamente, na infância e na adolescência, um sentimen-to de desinteresse pela leitura na vida adulta. Sugere-se uma reflexão sobre a ausência da literatura na escola e sobre a ineficácia histórica do manual didático para a formação do aluno leitor. Esse instrumen-to, que ainda hoje vigora com espaço significativo na escola, segundo Souza (2010), obsta à criança aquilo que é parte de sua infância, “a fantasia”; obsta os elementos para uma formação mais dinâmica com “um pouco da magia da vida, da história do mundo e da cultura em diferentes civilizações” (SOUZA, 2010, p. 4).

Eis que a literatura infantil, especialmente a clássica, deve aden-trar o espaço escolar. Conclui-se com um convite aos profissionais da educação, que façam um diálogo histórico com o ato de alfabetizar, “[...] que o faça com coragem [...] em solo estranho à própria marca, de inaugurar um novo reino. Para que na escola tão dilacerada, outro valor, mais alto, se alevante, como diria Camões” (SOUZA, 2010, p. 100).

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Referências

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COMÉNIO, J. A. Didáctica Magna. Trad. e Notas Joaquim Ferreira Gomes. 3ª edição. Fundação CalousteGulbenkian, 1957.

FERNANDES, E. Métodos e conteúdos de alfabetização em manuais didáticos nos séculos XIX e XX: de Calkins a Lourenço Filho. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2014.

HOBSBAWN, E. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LANCILLOTTI, S. S. P. A constituição histórica do processo de trabalho docente. Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação – Departamento de Filosofia e História da Educação. 2008.

107O Trabalho Didático em Exame

LOURENÇO FILHO, M. Cartilha do Povo: para ensinar a ler rapidamente. 726ª edição. Edições Melhoramentos, 1951.

_____________. Testes ABC: para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita. 7ª ed. Edições Melhoramentos, 1962.

MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8ª edição. Editora Hucitec, 1991.

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VALDEMARIN, V. T. Estudando as lições de coisas: análise dos fundamentos filosóficos do método do ensino intuitivo. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.

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Paulo Edyr Bueno de Camargo39

Introdução

O meu primeiro contato com a teoria escolanovista ocorreu com a leitura do livro Escola e Democracia de Dermeval Saviani. Esse livro que, com justiça, transformou-se em leitura obrigatória para os educadores estava, em 2003, na sua 36ª edição com mais de 175.000 exemplares vendidos. Saviani, em Escola e Democracia, cuja primei-ra edição é de 1983, mas composto por artigos publicados em anos anteriores, tece severas críticas ao movimento escolanovista. Segundo o autor, em prefácios recentes do seu livro, a severidade das críticas é fundamentada numa abordagem polêmica e não historiográfica. Como justificativa, Saviani utiliza a metáfora da teoria da curvatura da vara enunciada por Lênin ao ser criticado por assumir posições ex-tremistas e radicais. O revolucionário russo dizia: “Quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não bas-ta colocá-la na posição correta. É preciso, antes, curvá-la para o lado oposto”. Para Saviani, as teorias educacionais estavam curvadas para o lado do pensamento escolanovista e a sua expectativa era que, com a inflexão da vara no sentido oposto, ela finalmente atingisse o seu ponto correto.

Infelizmente, não foi o que aconteceu. Criou-se entre os edu-cadores brasileiros, e para muitos ainda permanece viva, uma visão distorcida e reducionista do movimento escolanovista. Pode-se di-zer, como forma de expressão, que Saviani foi tão convincente na sua 39. Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Mestre em Educação pela Uni-versidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

João Toledo (1879-1941): A Concretizaçãodo Ideário Escolanovista no Ensino Público

Paulista nas Décadas de 1920-1930

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inflexão da vara que, ao invés de retomar a desejada posição correta, acabou por quebrá-la em detrimento dos métodos ativos de ensino. Essa apropriação negativa do pensamento escolanovista, a partir da leitura de Escola e Democracia, foi realizada à revelia do próprio autor. No prefácio escrito em 1988, referente a 20ª edição, Saviani chama a atenção para que o seu livro não seja interpretado como contrário à escola nova como tal.

Por outro lado, a leitura do livro do educador baiano Anísio Teixeira Educação não é privilégio – o título do livro é significativo – bem como em toda a sua obra observa-se uma intransigente defesa da escola pública, gratuita, universal e de qualidade. Para Anísio Teixeira, ao contrário do que afirma Saviani, a reivindicação da qualidade de ensino não deveria ocorrer em detrimento da quantidade. Ele criti-cava, com veemência, a expansão escolar que, realizada sem critérios, transformava-se em dissolução. Conclui-se que havia mais elementos na escola nova além daquilo que foi apontado por Dermeval Saviani.

Tal não foi a surpresa quando, no prefácio da 33ª edição, reali-zada em 2000, ano de centenário de nascimento de Anísio Teixeira, Saviani rende suas homenagens ao grande educador baiano, citando o próprio Marx que, apesar de crítico de Hegel proclamou-o grande pensador.

O movimento escolanovista é herdeiro da concepção liberal que acredita ser possível a equalização social por meio da escola. A velha e reiterada concepção de que o esforço individual, por si só, é fator suficiente no aprimoramento das condições de vida. A escola re-publicana, segundo os escolanovistas, supostamente oferece a todos oportunidades equivalentes, o que sem dúvida é, no mínimo, uma grande ilusão. Permanece, contudo, a necessidade de compreender o que foi o movimento escolanovista porque, segundo Hobsbawm, “A primeira lição que o historiador profissional aprende é ficar à espreita de anacronismos ou de diferenças naquilo que à primeira vista parece ser a mesma coisa [...]” (HOBSBAWM, 1998, p. 41).

Para o entendimento do que foi e qual o significado do pen-samento escolanovista no Brasil, optamos pelo estudo de um autor

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pouco conhecido João Augusto de Toledo (1879-1941). Ele não está no rol dos grandes escolanovistas nacionais, sobretudo, os três teóri-cos mais conhecidos, a saber, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, mas o que singulariza e dá relevância ao estudo do professor primário João Toledo é justamente o fato de ele ser um prá-tico, isto é, alguém que tentava concretizar em suas aulas os princípios da Escola Nova.

Conhecemos o educador paulista João Toledo com a leitura da Dissertação de Mestrado intitulada O ensino de Didática, na década de trinta, no sul de Mato Grosso: ordem e controle? De Carla B. Zanda-valli Maluf de Araújo, defendida em 1997 no programa de mestrado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Segundo Araújo (1997), as semelhanças entre os conteúdos presentes no Livro de discriminação das matérias lecionadas da Escola Normal Joaquim Murtinho - 1935/1940 e o livro Didáctica, de autoria de João Toledo, cuja primeira edição surgiu em 1930, permite se afirmar com convic-ção que o livro Didáctica foi o texto base das aulas de Didática mi-nistradas na Escola Normal Joaquim Murtinho, na década de 1930. Descobriu-se, assim, o trabalho do educador paulista João Toledo. Aliás, a influência paulista em outros estados, nas primeiras décadas republicanas, foi flagrante.

Gostaríamos de salientar o papel modelar que a organização do ensino primário e normal do Estado de São Paulo desem-penhou junto às demais unidades da Federação, durante quase todo esse período que estamos estudando e, mais especifica-mente, até 1920. Na ausência de modelos e normas fixados pelo Poder Central, o referido Estado, que no alvorecer do novo regime começa a destacar-se no cenário nacional nos se-tores político e econômico, adquire projeção também no setor educacional, graças às reformas que aí se realizaram nos pri-meiros anos da República, passando a servir, até certo ponto, de padrão para os demais (TANURI, 1979, p. 71 e 72).

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Desde o início do século XX, pode-se verificar que a influência paulista se fez sentir, de forma mais efetiva, nos destinos da região sul de Mato Grosso. Essa influência, em princípio, vinculada à economia, por sua vez, inevitavelmente também influenciará outros aspectos da organização da sociedade do sul de Mato Grosso, como a educação, por exemplo. A influência paulista deve-se a mudança do eixo econô-mico, dada pela substituição do comércio de exportação, via porto de Corumbá, para a pecuária, via Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A implantação da Noroeste do Brasil, inaugurada em 1914, seguida da construção de inúmeras estradas de rodagem que alimentavam seus trilhos, substituiu com vantagens os rios, da época do apogeu das Ca-sas Comerciais dos Portos de Corumbá, pois barateava os fretes para São Paulo, onde estavam localizados os grandes frigoríficos.

No trilho da influência econômica, seguia a influência na área educacional. Haja vista, por exemplo, que a Reforma Educacional de-senvolvida pelo então presidente do Estado Pedro Celestino Corrêa da Costa, iniciada em 1911, buscou guarida nas experiências educa-cionais paulistas consideradas a vanguarda da formação intelectual, moral e cívica dos educadores, importando, inclusive, até professores de São Paulo.

A primeira reforma republicana de ensino foi realizada, na ca-pital paulista, em 1890, principalmente através da reformulação da Escola Normal da Praça da República, denominada posteriormen-te de Reforma Caetano de Campos. Vinte anos depois, em 1910, é criada a Escola Normal de Cuiabá, designada, em 1932, Escola Nor-mal Pedro Celestino. O ponto central das reformas tanto em São Paulo como em Mato Grosso, materializadas na reestruturação do Curso Normal, era aprimorar a formação técnica dos professores, até aquele momento quase inexistente, já que a grande maioria dos docentes primários era leiga.

Em 1930, no sul de Mato Grosso, foram criadas as primeiras escolas normais, por exemplo, a Escola Normal Joaquim Murtinho. A influência paulista, dessa feita, aconteceu de forma menos direta, pois não há registros de “importação” de professores. A influência de

113O Trabalho Didático em Exame

São Paulo ocorreu por meio do repasse das ex-normalistas cuiabanas que se tornaram professores da Escola Normal em Campo Grande. Além disso, o sul de Mato Grosso recebia toda a normatização escolar de Cuiabá. E, ainda, ocorreu uma disseminação de manuais escola-res produzidos por professores paulistas por todo o país. Destaca-se o manual adotado pela Escola Normal Joaquim Murtinho: Didáctica, de João Toledo.

Trajetória profissional de João Toledo (1879-1941)

João Augusto de Toledo nasceu no dia 12 de maio de 1879, na cidade de Tietê, Estado de São Paulo. Foi um dos nove filhos do casal Augusto Corrêa de Toledo e Maria de Almeida Lima. Em 1904, na cidade de Serra Negra, casou-se com Carmélia Lombardi, professora do grupo escolar daquela localidade, sendo que dessa união nasceram cinco filhos: Aimée, Ruy, Lais, Wanda e Renato. Aliás, Aimée Toledo, também professora normalista, foi a responsável pelas ilustrações do livro Planos de Lição, de autoria de seu pai, cuja primeira edição é de 1934. Os filhos Ruy Toledo e Renato Toledo formaram-se em Medi-cina. O primeiro residiu por muitos anos na cidade de Araraquara, interior de São Paulo. O segundo radicou-se em São Paulo.

Nota-se, em linhas gerais, que a trajetória profissional de João To-ledo no serviço público, a exemplo do esperado à época das pessoas do sexo masculino, seguiu uma linha ascendente: professor, adjunto e depois diretor de grupo escolar, inspetor de ensino e, no ápice de sua carreira pro-fissional, chegou a ocupar o cargo de diretor-geral da instrução pública.

João Toledo formou-se professor em 1900, na antiga Escola Complementar de Itapetininga, criada em 1897, e que constituía um anexo da escola-modelo, por sua vez, utilizada para os exercícios de ensino dois alunos complementaristas. Vale ressaltar, como observa Rodriguês (1930), que com a criação dessa escola complementar fi-cou adiada a instalação da escola normal que funcionaria na cidade de Itapetininga.

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De acordo com Calado (1986), os pais de João Toledo eram pessoas cultas, porém “de modestas condições econômicas”. Essa in-formação é verossímil, pois, como sabemos, os filhos das famílias abas-tadas, via de regra fazendeiros de café, enviavam os seus filhos para os colégios de padres, geralmente em regime de internato, onde se prepa-ravam para o ingresso nos cursos superiores, no Brasil ou na Europa, sendo os de Direito, Medicina e Engenharia os mais procurados.

O fato de João Toledo ter realizado seus estudos em escola com-plementar também sugere, segundo Antunha (1967), que diante da escassez de ginásios públicos no interior do estado, as escolas com-plementares representavam a única forma de continuidade de esco-larização para os rapazes de condição econômica menos privilegiada. Corrobora, ainda, a afirmação da viabilidade da carreira do magistério a pessoa do sexo masculino o seguinte fragmento de Ribeiro (1990):

Os cursos secundários só teriam uma expansão significativa no final dos anos cinqüenta, e os cursos superiores estavam na capital sendo que, para cursá-los, era necessário que o interes-sado tivesse seu sustento garantido pela família. [...] O normal, para os filhos dos segmentos médios da população, especial-mente do interior do estado, era a alternativa mais fácil, barata e rápida de formação profissional. Se para o homem o normal era convidativo, para as mulheres que quisessem estudar além do primário, era a única opção (RIBEIRO, 1990, p. 98 e 99).

Ademais, no período inicial do regime republicano, o número de alunos formados pela Escola Normal da Capital, a única escola nor-mal do período, era insuficiente para atender a necessidade de forma-ção de professores primários. Como o índice de analfabetismo era alto, avaliado em torno de 80%, o projeto de democracia representativa formulada pelos republicanos, no qual somente a pessoa alfabetizada tinha direito ao voto, poderia ser colocado em xeque. A escola, nesse contexto, teria a função de formar o cidadão republicano no lugar do antigo súdito do velho regime monárquico. Era esse o seu ideal. Con-

115O Trabalho Didático em Exame

tudo, a falta de habilitação dos professores primários era um obstáculo que precisava ser superado. A solução encontrada foi atribuir um ca-ráter profissional aos formandos das escolas complementares. Iniciou--se, assim, o processo denominado por Tanuri (1979) de dualidade de escolas normais. De um lado, os professores formados de acordo com os altos padrões exigidos pela Escola Normal da Capital, mas que diplomava poucos indivíduos. De outro, em princípio sem nenhum tipo de articulação com o curso normal, o curso complementar com exigências reduzidas, mas que, em compensação, fornecia grande nú-mero de professores ao ensino primário. Somente com a Reforma de 1920 da Instrução Pública no Estado de São Paulo, conhecida como Reforma Sampaio Dória, a dualidade de formação do magistério pri-mário terminou através da unificação dos dois sistemas.

Em 1901, no ano seguinte a sua diplomação como professor primário pela Escola Complementar de Itapetininga, João Toledo é nomeado adjunto e, meses depois, diretor do Grupo Escolar de Serra Negra. Em 1908, João Toledo foi removido para a diretoria do Grupo Escolar de Rio Claro. Em 1913, ocupou o cargo de lente de Psico-logia Experimental, Pedagogia e Educação Moral e Cívica na Escola Normal Secundária de São Carlos cuja instalação ocorreu em 1911.A Escola Normal de São Carlos desfrutou, em seu período inicial de funcionamento, de grande prestigio. A notoriedade da escola estava relacionada a sua clientela constituída, principalmente, pelas filhas da elite cafeeira. Logicamente, como já havia ocorrido no período inicial com a Escola Normal da Capital, era subestimada à formação profis-sionalizante, priorizando a cultura geral através da erudição clássica tradicional, do ornamento e da distinção das elites.

João Toledo compôs o corpo docente da primeira turma forma-da pela Escola Normal Secundária de São Carlos. Os professores da escola, ou melhor, os lentes como eram denominados tinham as suas nomeações respaldadas pelo nível dos conhecimentos adquiridos. “Todas as referências escritas e as lembranças sobre as primeiras no-meações do pessoal docente convergem para o destaque das qualida-des intelectuais dos professores” (NOSELLA e BUFFA, 2002, p. 49).

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Não se pode, todavia, deixar de ressalvar que ministrava as disciplinas de Pedagogia e Psicologia Experimental, direcionadas à profissionali-zação das normalistas. Esse fato provavelmente colocava-o numa po-sição de inferioridade dentro do corpo docente da escola, porque as disciplinas mais “nobres” eram as destinadas à cultura geral, como o francês, por exemplo. João Toledo lecionou durante 9 anos na Escola Normal Secundária de São Carlos.

No ano de 1925, foi nomeado Inspetor-Geral do Ensino em São Paulo. As atribuições do inspetor escolar transitavam entre dois polos. Num deles, o papel do inspetor limitava-se exclusivamente a função de mero fiscalizador, isto é, um burocrata a serviço do estado e preocupado apenas em cuidar dos direitos e, sobretudo, dos deveres dos professores das escolas primárias. Em outro pólo, e não necessa-riamente em oposição ao primeiro, mas, com caráter complementar, o inspetor escolar deveria ser um orientador do professorado e, durante a década de 1920, um divulgador dos métodos ativos de ensino.

A oscilação das atribuições do inspetor escolar pendeu para o lado da valorização das funções de orientação pedagógica com a im-plantação da Reforma Sampaio Dória, em 1920, no Estado de São Paulo. João Toledo, portanto, em sintonia com a nova orientação, publicou, em 1930, o livro Didáctica cujo subtítulo é “Nas Escolas Primárias”, em que aparece como Inspetor-Geral do Ensino do Estado de São Paulo, demonstrando a sua preocupação com as questões peda-gógicas referentes ao ensino primário. Em outro livro, publicado em 1932, intitulado Escola Brasileira, aparece a preocupação da ativida-de profissional do inspetor escolar com a divulgação e efetivação dos princípios da Escola Nova, conforme se observa nos dois fragmentos abaixo:

É exacto que, em nosso meio, a escola elementar do povo não comporta um regime de experimentação systemática: a bre-vidade do curso é o seu maior empecilho, e a deficiencia de preparação do mestre, que algumas vezes se verifica, deve tam-bém ser considerada. Quanto a esta parte, o mal, originado

117O Trabalho Didático em Exame

pelo velho ensino, rotineiro e livresco, das escolas primárias e normaes, está sendo removido pela renovação lenta dos mé-todos e pelo curso das complementares, mais especializado e eminentemente prático; e, se a exigência e a aptidão técnica dos inspectoresaugmentarem um pouco, elle diminuirá, por certo, com rapidez e segurança. (TOLEDO, 1932, p. 221).

Agindo por esta fórma, faremos, suavemente, a transição entre o velho systema de exames, muito mais apurador de qualida-des mnemônicas que de actividades conscientes, para um sys-tema de medida approximada e quasi isento de contingências subjectivas do julgador. Não se deixem os mestres conduzir, neste empenho, tão sòmente por suas próprias inspirações; leiam obras boas de didácticaapplicada, consultem os inspec-tores de ensino, e enveredem pelos caminhos traçados, certos de que é sempre possível errar; de que, errando, é sempre dig-no corrigir; de que é sempre possível melhorar pelo aperfeiço-amento; de que, nos trabalhos educativos, a ninguém é lícito contentar-se com o que está fazendo – o dever é esforçar ainda mais, para fazer melhor (Id., ibid. , p. 289).

João Toledo, no mesmo livro acima citado, ao se referir mais uma vez ao trabalho do inspetor escolar, mostra novamente a sua pre-ocupação com a difícil tarefa de concretização do ideário escolanovis-ta diante das dificuldades materiais.

Nem todos os professores enxertam essa mixórdia insossa no pesado currículo; mas os srs.inspectores dirão quantas vezes se abysmam em classe diante do ar angélico da mestra, convicta de estar em bom caminho, e que entanto, se compraz com pen-durar quinquilharias didácticas na retentiva dos alumnos. E o peior é que essas informações illustrativas têm as honras de aulas especiaes, em horários complicados, com múltiplas subdivisões que fragmentam e esmiuçam o tempo (Id., ibid. , p. 67).

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De 1930 a 1932, João Toledo exerceu o cargo de Assistente Técnico do Ensino Normal de São Paulo. E, finalmente, no dia 26 de novembro de 1932 a sua carreira de educador atinge o auge com a sua nomeação para Diretor-Geral do Ensino em São Paulo. Infortunada-mente, ocupou esse cargo por um período não superior a sete meses. O Estado de São Paulo, nessa fase, estava envolto com as questões da “Revolução Constitucionlista”. Os problemas educacionais, por con-seguinte, ficaram relegados a segundo plano e distantes das preocupa-ções do governo estadual e do povo paulista. De 1932 a 1935, ocupou as funções de assistente da 9ª cadeira da Escola Normal da Praça da República. Aposentou-se em 1935, encerrando, assim, a sua atuação profissional no serviço público.

A concretização do ideário escolanovista

As dificuldades de implantação dos métodos ativos de ensino não eram exclusivas das escolas brasileiras. Elas também estavam presentes nos países europeus, o berço da proposta escolanovista. Paul Foulquié diz, em seu livro a respeito da escola nova europeia, que a utilização dos princípios da pedagogia nova no ensino primário e público era utopia.

Os estabelecimentos designados pelo nome de escolas novas são internatos particulares de educação secundária. O diretor é o senhor absoluto do recrutamento e os alunos lhes vêm de meios nos quais o senso da ordem e da autoridade é inculca-do desde a infância. Dispõe de corpo docente escolhido. Pode contar com os alunos mais velhos, que já transpuzeram (sic) o estado crítico da adolescência, mas que seus camaradas mais jovens acolhem sem custo porque ainda estão também do lado de cá. Na escola primária, nada disso. É, pois, quimérico que-rer introduzir nela métodos que até hoje não medraram senão nas excepcionais condições que as escolas novas podem reali-zar (FOULQUIÉ, 1952, p. 71).

119O Trabalho Didático em Exame

Em seu livro de memórias, Tempos Interessantes: uma vida no século XX, Eric Hobsbawm manifestou a sua opinião, ou melhor, a sua vivência em relação às dificuldades de implantação do ideário es-colanovista.

Os próprios professores compreendiam que na nova era a es-cola deveria ser diferente, mas não sabiam bem como. (Meu livro escolar de canções dizia na época, 1925: “os novos méto-dos de ensino não estando ainda completamente claros”.) Eu iria descobrir a história do tipo “1066 e tudo o mais” no Gym-nasium secundário, que ainda não se emancipará da pedagogia tradicional (HOBSBAWM, 2002, p. 36).

Alguns autores brasileiros também se pronunciaram a respei-to das dificuldades de concretização do escolanovismo em território nacional. Merece destaque, entre eles, o depoimento do ex-norma-lista João Lourenço Rodrigues, testemunha dos principais aconteci-mentos escolares nas primeiras décadas do século XX em São Pau-lo, que declarou, em suas memórias a respeito da Escola Normal da Capital, editado em 1930, ano do cinquentenário da modelar escola normal, o seguinte: “Consideradas em fase da realidade, as theorias professadas na Escola Normal sobre organisação escolar e metho-dosdidacticos não passavam de locubraçõesbysantinas” (RODRI-GUES, 1930, p. 141).

Também merece destaque o depoimento de Anísio Teixeira, autor escolanovista, em carta endereçada a Fernando de Azevedo, datada de 18 de maio de 1951, na qual realiza um balanço da si-tuação educacional brasileira, assim se expressa: “Acho, assim, que nunca estivemos tão mal. O movimento agora devia ser algo menos doutrinário que em 1932 e mais concreto, mais na ordem de levan-tamento da situação e planejamento educacional do país” (VIDAL, 2000, p. 68). O mesmo Anísio Teixeira em livro publicado, pela pri-meira vez, em 1934, formulou uma proposta de implantação paula-tina do escolanovismo.

120 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

Não poderemos mudar da noite para o dia. A própria organi-zação da escola e o exercício do seu ministério pelo professor só teriam a perder com uma modificação súbita.Podemos, talvez, iniciar o movimento.- Primeiro, fundando escolas experimentais, cujo número iria aumentando com os professores convenientemente preparados;-Segundo, retirando do dia escolar uma hora ou uma meia hora, em que se tente o novo método, mesmo nas escolas tra-dicionais. A criança, devidamente guiada, escolherá a sua ati-vidade e, nessa hora, aprenderá sob o princípio do trabalho com um fim em vista (TEIXEIRA, 2000, p. 91 e 92).

A historiografia educacional apresenta outros autores que, apesar de não serem contemporâneos do período áureo do movimento escola-novista ocorrido na década de 1920 e início da década de 1930, também manifestaram inquietação em relação as dificuldades de concretização dos princípios da escola nova. Florestan Fernandes publicou uma rese-nha do livro de Anísio Teixeira, Educação não é privilégio, no suplemen-to literário do Jornal “O Estado de São Paulo”, em 13/07/1957, deno-minada de “Anísio e a democratização do ensino”, na qual realizou um balanço crítico e apontou o descompasso entre o ideário escolanovista e as condições materiais necessárias à sua efetivação.

Os recursos postos à disposição do educador moderno pela ciência, pela tecnologia científica e pela nova pedagogia, rede-finida em sua natureza e em suas funções na civilização cien-tífica, oferecem-lhes bases seguras e realistas para a escolha ou a recomendação dos meios. Embora não se possa dizer, de Anísio Teixeira, que ele ignore tais possibilidades – pois ele tem sido, tanto teórica quanto praticamente, o principal pro-pugnador de uma colaboração mais intensa e frutífera entre os educadores e cientistas sociais – o fato é que várias medidas que propõe: ou são inconsistentes, em face do meio sociocul-

121O Trabalho Didático em Exame

tural brasileiro; ou seriam fàcilmente deturpadas, desvirtuadas ou solapadas no plano da ação (FERNANDES, 1966, p. 563-4).

Diante das dificuldades de implantação do escolanovismo, João Toledo adota uma postura conciliatória entre a escola tradicional, que enfatiza o esforço, e a escola nova, centralizada no interesse do aluno.

Não é ainda relativamente velha a tendencia pedagógica para deslocar a educação primária, apoiada outróra sobre o esforço da criança, e calcá-la no seu interesse espontâneo ou em outro adquirido, que a habilidade do mestre suscita e alimenta. Ga-nha terreno a doutrina, mais nas justificativas theóricas que na prática escolar; e, porque empolgue o enthusiasmo de muitos, convém prevenir possiveis excessos, lembrando que, se o interes-se é porta aberta á entrada, livre e rápida, de noções indispensa-veis, o esforço tempéra a resistência mental do educando e cria, para elle, o poder de controle sobre si mesmo. Provocar e desen-volver o primeiro, mas não desprezar o segundo – é regra pru-dente que se offerece ao educador (TOLEDO, 1932, p. 58-9).

Essa conciliação entre escola tradicional e escola nova levou Fernando de Azevedo atribuir à João Toledo a pecha de autor que ter-mina, “[...] com a arte sutil e delicada que ensina a ensinar” (AZEVE-DO, 1962, p. 116). Ora, a implantação imediata do escolanovismo era, como se mostrou na citação de Anísio Teixeira acima referida, to-talmente inviável. João Toledo, na realidade, estava pressionado pela idéia do escolanovismo e as condições materiais das escolas públicas, ainda organizadas de acordo com os princípios da escola tradicional.

Encontra ainda a remodelação da escola tradicional um sério empecilho nas nossas installaçõesprediaes. Temos casas boni-tas, algumas de proporções majestosas, fartamente illuminadas e arejadas. Mas a matrícula numerosa encheu-lhes todas as sa-las de crianças, e, ás vezes, até parte dos corredores. Não ficou

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espaço amplo disponivel para o treino manual que a escola nova reclama, nem área apropriada a jogos desportivos, nem campo para estudo da natureza. Os pequeninos, assentados em suas carteiras, com os movimentos mais ou menos tolhi-dos, ali mesmo, na mesma sala, recebem todas as lições, com excepção das de gymnástica. Só a bôa-vontade do mestre consegue remediar alguns inconvenientes; e só á medida que novos prédios sejam feitos e os actuaes sejam ampliados com galpões e com áreas para jogos e campo de experiencia, irá sendo possivel pôr em prática os princípios da nova educação (TOLEDO, 1930, p. 15 e 16).

O descompasso entre os princípios teóricos e as condições ma-teriais concretas constrangeu João Toledo a sugerir soluções paliati-vas. No limite entre a crítica ao ensino tradicional, centralizado na exposição oral do professor, e a importância da observação direta dos fenômenos estudados, princípio escolanovista, propunha ao professor o aperfeiçoamento no desenho.

Bem pesadas todas as condições actuaes de nossa installação esco-lar, de nossas aptidões methodológicas, e das concepções de nossa gente, relativas á finalidade educativa elementar, as illustrações, feitas pelo mestre no quadro-negro, são o recurso mais pronto, mais conveniente, mais aconselhável, como meio de transição en-tre o ensino verbal, puro, e o ensino prático e utilitário, em con-tato direto com as cousas a conhecer (TOLEDO, 1932, p. 216).

Outra alternativa, formulada por João Toledo, apareceu nos Annuarios do Ensino (1920 – 1921) sob a forma de memória apre-sentada ao Conselho de Educação intitulado “Bibliotheca do Profes-sor Primário”.40 João Toledo recomenda aos professores a utilização de alguns livros, “tomará o professor de classe dois ou três livrinhos”, como forma de superar as dificuldades que a utilização dos preceitos 40. Anuário do Ensino do Estado de São Paulo (1920 – 1921). Publicação organizada pela Diretoria Geral da Instrução Pública por ordem do Governo do Estado. São Paulo, Tip. Siqueira, Nagel& Cia, p. 361 – 365.

123O Trabalho Didático em Exame

escolanovista requerem. O centro do trabalho didático, portanto, não estaria no professor, como acontecia na escola tradicional,e nem na criança, a exemplo do que recomendava a escola nova, mas sim, no manual didático.41

Ter-se-á o cuidado de expor somente a matéria que a capaci-dade de nossa classe possa comportar, na extensão e altura que suas forças mentaes alcancem e assimilem. Livro do mestre embora, é indispensável não esquecer que as lições são pre-paradas para as crianças e que o auctor economiza tempo e trabalho ao professor da classe. A linguagem simples, porém correcta e incisiva, será sóbria nos termos techicos: os quadros synopticos bem claros, os exemplos illustrativos, adequados á idade dos alumnos devem ser escolhidos entre coisas e fatos bem conhecidos de todos. E um nacionalismo largo e sadio resumará da obra toda, dando-lhe a feição dominante. Deste modo, tomará o professor da classe dois ou três livrinhos e, em alguns minutos, terá preparado, e bem preparado, todo o seu trabalho do dia próximo (TOLEDO, João. Bibliotheca do Professor Primário. Anuário do Ensino (1920 – 1921, p. 361 – 365).

Paul Foulquié, na primeira parte do seu livro a respeito da escola nova, comenta o pensamento dos principais iniciadores da pedagogia nova. São eles, pela ordem cronológica, Rousseau, Henrique Pestalo-zzi e Frederico Froebel. Em relação a Pestalozzi, Foulquié (1952) diz que a grande “missão” da sua vida, e também dos seus colaboradores, era colocar em práticas os princípios pedagógicos de Rousseau. Neste propósito, teria papel fundamental o livro escolar, ou manual didáti-co, como um instrumento capaz de difundir a educação pelo povo. A excelência do instrumento possibilitaria, inclusive, a substituição do professor pela menos instruída das mães.41. A respeito do manual didático como elemento central no trabalho do professor, consultar: ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Campi-nas, SP: Autores Associados, 2001.

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Creio que se não deve pensar em obter, em geral, um só pro-gresso na instrução do povo, enquanto não se tiverem encon-trado formas de ensino que façam do professor o mero ins-trumento mecânico dum método que deva seus resultados à natureza de seus processos e não à habilidade de quem o pra-tica. Admito que um livro escolar não tem valor senão quan-do possa ser empregado tão bem por um mestre sem instrução quando por um instruído. Seu principal mérito deve consistir em ser composto de tal sorte, que o professor, ou mesmo a mãe, tenha nele um guia e um apoio suficientes para ter a dianteira da criança na evolução progressiva que é o fim da educação (PES-TALOZZI, s/d apud FOULQUIÉ, 1952, p. 12 e 13).

A questão da conciliação proposta por Toledo não é estranha à historiografia educacional. Observa-se, em Ponce (2001), a formula-ção de duas correntes dentro do movimento escolanovista: a metodo-lógica e a doutrinária.

É, dentro da nova educação, a corrente que poderíamos chamar “metodológica”. Sem se preocupar muito com problemas dou-trinários e filosóficos, ela encara a questão de um ponto de vista técnico: mediante que inovações didáticas obteríamos para o ensino primário um rendimento máximo? [...]Sem desconhecer a urgência de uma reforma didática, isto é, da técnica de ensino, essa corrente afirma que o núcleo do proble-ma não está nisso e sim no aspecto cultural. Educar não seria para ela reformar este método ou corrigir aquele horário, mas , sim, “mergulhar uma alma no seio da cultura”. É a corrente que poderíamos chamar “doutrinária”, por oposição à que denomi-namos metodológica. Tendo uma orientação muito mais filosó-fica do que prática, essa corrente é, naturalmente, a mais inflada, presunçosa e solene, das duas mencionadas. Olha a outra com desdém, gosta de usar uma linguagem ríspida, empregando um tom cada vez mais doutoral (PONCE, 2001, p. 158).

125O Trabalho Didático em Exame

Concepção semelhante também aparece em Luzuriaga (1934). O autor espanhol fala em “escola ativa” e “escola única”.

Os dois conceitos fundamentais da educação do tempo pre-sente são: “escola ativa” e “escola única”. Aquela se refere ao conteúdo, à vida interna das instituições educativas. Esta diz respeito à forma, à organização exterior dessas instituições. A “escola ativa” é sobretudo uma concepção psico-pedagógica, a “escola única” é fundamentalmente uma aspiração pedagógi-co-social (LUZURIAGA, 1934, p. 8).

A separação realizada, no seio do movimento escolanovista, en-tre os procedimentos (métodos) e as finalidades (fins) não primaram em absoluto pela coerência. Em alguns casos, segundo Aguayo (1939), os mesmos métodos eram utilizados com finalidades totalmente diver-sas. A reforma educacional italiana realizada em 1923, pelos filósofo Giovanni Gentile e o educador Giuseppe Lombrado-Radice, durante o governo fascista, tinha como fundamento a utilização dos métodos ativos de ensino. Da mesma forma, após a revolução bolchevique na Rússia, em 1918 a Comissária de Educação Popular, composta por Lunacharsky (poeta), Krupskaia (viúva de Lênin), Blonski (filósofo), Pistrak (educador) e outros, aprovaram um programa de ensino que, além de declarar livre, gratuito e universal a educação do povo, tinha como ponto nodal os centros de interesse.

Considerações finais

João Toledo pode ser considerado, do ponto de vista da sua concepção educacional (os fins da educação), um representante da escola tradicional.42 Ele mantém a visão dualista da escola burguesa - 42. Carlos Monarcha escreveu um texto comentando aspectos da coleção pedagógica “Biblioteca de Educação” da Companhia Melhoramentos de São Paulo. No anexo II, mostra uma relação de obras que foram anunciadas nos livros da coleção e no catálogo, mas presumivelmente não foram publicadas. João Toledo aparece nessa relação e o nome do seu livro não poderia ser mais esclarecedor : A formação das elites. Consultar : MONARCHA, Carlos (org.). Lourenço Filho: outros aspectos, mesma obra. Campi-

126 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

a escola tradicional - oriunda das reformas pombalinas da instrução pública.

Repitamos o que foi dito, páginas atraz: a escola popular não é escola propedêutica, isto é, não se destina ao preparo de es-tudantes para a continuação de um curso, e sim encaminha as crianças em uma vida simples que, á gente humilde e pobre, é dado gozar (TOLEDO, 1932, p. 68).

No caso de algum aluno, originário das classes populares, pos-suir dotes intelectuais invulgares, João Toledo propõe uma espécie de “bolsa de estudos” remunerada pelo estado.

Encontradas as intelligencias mais bellas, que o curso primá-rio revelou, as autoridades escolares procurariam os paes dos alumnos favorecidos para indagar de suas intenções relativas a elles. – Vão para o lyceu ou para o gymnasio: - muito bem, nada ha que fazer; mas se desejam melhorar a educação rece-bida pelos pequeninos, e não dispõem de meios, então asso-ciações filanthrópicas, officialmente amparadas, abrem-lhes as portas de institutos de ensino secundário e custeiam-lhesahi as despesas. Neste cyclo escolar, se a mesma vocação e o mesmo empenho continuam, o amparo prestado leva-os mais longe, ás academias e aos cursos de aperfeiçoamento. Formam-se-iam assim elites intellectuais (Id. , ibid. , p. 162).

A instalação do regime republicano, não obstante o laicismo e o movimento renovador de São Paulo, limitado ao ensino primário e normal, herdou do período imperial o dualismo escolar. De um lado, o ensino primário, normal e técnico-profissional, direcionada às clas-ses menos favorecidas, e, de outro, o ensino secundário e superior vol-tado para a formação das elites condutoras da nação. A emancipação política do Brasil, em 1822, manteve intacta a estrutura social, calcada

nas – SP: Mercado de Letras, 1997.

127O Trabalho Didático em Exame

na economia agrícola de base escravocrata. Permanecia, assim, a men-talidade da “casa-grande” e da “senzala” a qual as atividades mecânicas e o trabalho manual eram desprezados como “coisas de escravo”.

Foi justamente contra esse dualismo, tanto de mentalidade quan-to escolar, que o escolanovismo se insurgiu. Anísio Teixeira reivindicava uma educação para todos e não somente para a elite, afinal de contas, “educação não é privilégio”. Não era admissível, ainda com mais razão num regime republicano, que se separem os indivíduos conforme a ori-gem em duas classes e a educação fosse diferenciada, ou dualista, para cada uma dessas classes. João Toledo, como se viu, continuava sugerindo uma escola dualista e, nesse sentido, é um adepto da escola tradicional.

Accentue-se, de modo mais preciso e mais vigoroso, que todos não podem governar. Essa funcção cabe agora a um grupo de ho-mens que, pela cultura, pelas virtudes e sobretudo pelas relações de parentesco e de amizade se põem em destaque no meio em que vivem. Os interesses superiores da nação aconselham que ella seja exercida pelos melhores, sob todos os pontos de vista. E os melhores, eleitos pela nação para seus directores, devem trazer no sangue a têmpera rija das virtudes, e, nos costumes, as tradições de honra. Nos laboratórios e gabinetes aprendem as sciencias; nos museus, nas officinas e nos livros, a arte, a história e a literatura; nas viagens e no convívio dos homens, a geografia, a diversidade do trabalho, as esperanças, os soffrimentos e as necessidades dos povos. Caracterizam-se, principalmente, por um conhecimento intuitivo das conveniências geraes e por um immenso poder de previsão. Estes são os melhores, são os guias preferiveis, os con-ductores de homens (TOLEDO, 1932 , p. 76 e 77).

João Toledo, no entanto, do ponto de vista dos métodos de en-sino, ou dos meios, pode ser considerado um autor escolanovista. Ele critica um dos pontos centrais da escola tradicional: a memorização. “Ora, salta aos olhos que – máximas, regras ou leis, aprendidas de cór, mas não entendidas, entulhando a memória e sem effeitos práticos,

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são meras roupagens vistosas, mas inuteis, que a primeira difficuldade rompe ou levanta, pondo a nu o atrazo e a incapacidade de quem as veste” (Id. , ibid. , p. 264). Sugere, ao mesmo tempo, um importante princípio escolanovista: a aproximação da vida com a escola. “Dahi o valor do último passo: - viver na escola a vida de fora della, fazer da vida escolar uma cópia, em miniatura, da vida social. Vae-se assim alar-gando, pouco a pouco, a esfera de applicação das noções que forem sendo assimiladas” (Id. , ibid. , p. 263). E, por fim, propõe a utilização de uma idéia tão cara ao escolanovismo: a globalização.

E assim se condemna o isolamento das disciplinas na execução dos programmas primários, e se recommenda, nas séries respectivas, a familiarização com uma coisa, com um facto, um problema, um fe-nómeno, no conjunto que o unifica, globalizando, em torno de cada um, as noções que o esclarecem, venham ellas embora de quaesquer domínios scientíficos. Não se estudam fragmentos de sciencias, mas aspectos da vida real (TOLEDO, 1932 , p. 243).

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133

Maria Angélica Cardoso43

SandinoHoff44

Introdução

A organização do trabalho didático foi a categoria utilizada para analisar a prática educativa em duas Escolas Família Agrícola – EFA – no estado de Mato Grosso do Sul: a Escola Família Agrí-cola Rosalvo da Rocha Rodrigues – EFAR, localizada no município de Nova Alvorada do Sul e a Escola Família Agrícola de Itaquiraí – EFAITAQ.

Tanto a EFAR quanto EFAITAQ funcionam em regime de in-ternato, proporcionado pela estrutura da Pedagogia da Alternância, organizada em períodos de formação nas escolas e nos assentamentos ou pequenas propriedades. Neste modelo pedagógico, o estudante participa intercaladamente de atividades na escola, em regime de in-ternato, e volta para sua propriedade, junto à comunidade onde, por quinze dias, realiza atividades agrárias de forma que os dois ambientes favoreçam a construção do conhecimento.

Conforme Cordeiro, Reis e Hage (2011, p. 116), a Pedagogia da Alternância assume o trabalho como princípio educativo, permitindo

[...] aos jovens do campo a possibilidade de continuar os estu-dos e de ter acesso aos conhecimentos científicos e tecnológi-cos não como algo dado por outrem, mas como conhecimen-

43. Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Doutora em Educaçãopela UNI-CAMP.44. Doente da Universidade Anhanguera – UNIDERP. Doutor em filosofia pela PUC – São Paulo.

A Organização do Trabalho Didático em Duas Escolas Família Agrícola

Sul-Mato-Grossenses

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tos conquistados e construídos a partir da problematização de sua realidade, que passa pela pesquisa, pelo olhar distanciado do pesquisador sobre o seu cotidiano (CORDEIRO; REIS; HAGE. 2011, p. 116).

Ainda segundo esses autores, a Pedagogia da Alternância vem sendo usada na formação de jovens e adultos do campo, apresentando uma “proposta pedagógica e metodológica capaz de atender as neces-sidades da articulação entre escolarização e trabalho e propiciando a esses indivíduos o acesso à escola sem que tenham que deixar de tra-balhar”.

Segundo Rubenich (2004, p. 55), no Brasil, o sistema edu-cativo baseado na Pedagogia da Alternância, iniciou em 1968, no estado do Espírito Santo, por meio de um trabalho comunitário. Atualmente

[...] são 248 unidades escolares, segundo dados fornecidos pela UNEFAB (União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil) e pelas ARCAFAR (Associação Regional das Casas Familiares Rurais). Estas unidades escolares [...] desenvolvem seus trabalhos centrados na formação integral do ser humano, na qualificação profissional dos jovens e na organização co-munitária, valorizando os laços familiares, a herança cultural e o resgate da cidadania. Buscam contribuir para o desenvol-vimento rural mediante a produção familiar economicamente viável, de baixo impacto ambiental, socialmente justa e solidá-ria (SOUZA, 2010, p. 65).

Em Mato Grosso do Sul são três unidades, sendo duas de Ensi-no Médio, uma em Nova Alvorada do Sul e a outra em Itaquiraí e uma de Ensino Fundamental, em Sidrolândia. A pesquisa, a partir da qual foi gerado este texto, teve como objeto o Ensino Médio integrado ao Curso Técnico em Agropecuária, portanto, a EFAR e a EFAITAQ se constituíram como lócus.

135O Trabalho Didático em Exame

As duas Escolas Família Agrícola sul-mato-grossenses

Nas Escolas Famílias Agrícolas – EFA – os educandos, além de estudar os conteúdos regulares, aprendem a trabalhar com a terra, com as plantas, os animais e a conviver e interagir com a realidade agrícola. Em suas casas, utilizam os conhecimentos adquiridos, ensi-nando aos pais a utilizarem as novas tecnologias e a maneira mais ade-quada de lidar com a realidade do campo. O fundamento das Escolas Famílias Agrícolas é a interação escola-família, articulando esses dois ambientes como espaços de aprendizagem. É nesse contexto que se encontram a EFAR e a EFAITAQ.

A EFAR tem como mantenedora o COAAMS – Centro de Organização e Apoio aos Assentados de Mato Grosso do Sul – que foi criado em 1989, com o objetivo de discutir e buscar solução à falta de infraestrutura nos assentamentos sul-mato-grossenses.

Diante da precariedade dos assentamentos, buscavam-se pro-postas que viabilizassem tanto a formação técnica dos agricultores quanto a agricultura familiar. A partir daí pensou-se

[...] numa escola que permitisse ao homem e a mulher do campo viver e conviver com a terra de forma mais conscien-te e ciente do seu papel enquanto sujeito, respeitando o Meio Ambiente, seus costumes e tradições e que envolvesse toda a família, entendendo que os jovens podem absorver e se adap-tar melhor às inovações, e seriam ao mesmo tempo os próprios técnicos e extensionistas da comunidade (EFAR. Livro de Processo nº 29/029915/2009, v. 1, p. 3).

Antes de fundar a escola, em 1994, representantes do COAA-MS visitaram a Escola Família Agrícola de Olivânia (ES), primeira ex-periência brasileira, para conhecer a proposta pedagógica e ter maio-res esclarecimentos sobre a metodologia ali utilizada. No ano seguinte nascia, em Campo Grande, a Escola Família Agrícola de Mato Grosso

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do Sul que, em 1996, começara a funcionar, efetivamente. Após dez anos em funcionamento, o nome da escola foi alterado para Escola Família Agrícola Rosalvo da Rocha Rodrigues.

Em 2009, quando completou 13 anos, ocorreu sua transferên-cia para de Nova Alvorada do Sul, MS. A nova sede – numa área de 50 hectares, cedida pela Prefeitura Municipal – abriga os prédios da escola, áreas de cultivo, área de preservação e instalações para criação de animais de médio e grande porte.

A Escola Família Agrícola de Itaquiraí – EFAITAQ – funda-da em 2003, tem como mantenedora a Associação da Escola Família Agrícola de Itaquiraí – AEFAI. A instituição conta também com par-cerias com institutos e associações como a Associação de Produtores Orgânicos de MS (APOMS), a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (AGRAER) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria (INCRA).

O credenciamento se deu através da Deliberação CEE/MS n° 9.057, de 26 de março de 2009, aprovando o Projeto e autorizando o funcionamento do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao Ensino Médio:

Art. 1º Fica credenciada a Escola Família Agrícola de Itaquiraí – EFAITAQ, sediada em Itaquiraí/MS, para oferecer Educa-ção Profissional Técnica de nível médio, no Eixo Tecnológico: Recursos Naturais.Art. 2º Fica aprovado o Projeto e autorizado o funcionamen-to do Curso Técnico em Agropecuária integrado ao Ensino Médio – Eixo Tecnológico: Recursos Naturais – Educação Profissional Técnica de nível médio, na referida escola, pelo prazo de quatro anos. (CEE/MS. Campo Grande, MS, 07 de abril de 2009).

Nas atas de fundação da EFAITAQ consta que a criação da ins-tituição foi uma iniciativa do jovem José Antônio Fernandes, ex-aluno da COAAMS. Segundo Padovan et al (2008, p. 1-2), alguns fatores

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que levaram à criação da EFAITAQ:A maioria dos agricultores familiares tradicionais e os assenta-dos em projetos de reforma agrária na região sul do estado es-tão tentando desenvolver suas atividades de forma similar aos fazendeiros, plantando monoculturas, usando adubos quími-cos, agrotóxicos e algumas outras tecnologias que os grandes proprietários utilizam.Como principal resultado desse processo, a maioria dos agri-cultores familiares está se descapitalizando e se endividando. [...] Muitas famílias venderam suas propriedades e desistiram de viver no campo.Outra situação preocupante, que chamou a atenção dos ide-alizadores da EFA- ITAQ, é que a maioria dos técnicos que acompanham os agricultores, não têm formação em agroeco-logia. Além disso, a maioria dos jovens, filhos dos agricultores familiares, não querem mais ficar no campo, pois não visuali-zavam perspectivas de melhoria de vida.

Para fazer frente a esse contexto é que se pensou a Escola Família Agrícola de Itaquiraí com o objetivo de mudar essa realidade através da educação, de forma diferenciada. Por isso a escolha pela Agroecologia.

Para Caliari, Alencar e Amâncio (2002, p. 4) a escola voltada para a realidade do educando, torna-se cúmplice do seu pleno desen-volvimento, levando-os a serem sujeitos autônomos, críticos, criativos e comprometidos com a democracia e com a justiça social. Para esses autores, pela Pedagogia da Alternância, a escola busca transformar os alunos em agentes críticos, utilizando para isso o diálogo e tornando o conhecimento significativo, crítico e emancipatório. Esta é a tônica de uma educação comprometida com a transformação do mundo rural. É essa ação transformadora que buscamos nas duas escolas analisadas.

Sobre a organização das Escolas Família Agrícola, Padovan et al (2011) mostra a organização interna que é realizada por meio de setores – agricultura, pecuária, saúde, cultura, esporte, lazer, sócio--administrativo, pedagógico e formação sócio-política. Em cada setor

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os estudantes planejam e executam diversas atividades.A organização do trabalho didático nas duas escolas

Objetivando analisar como estas instituições se organizam di-daticamente, foram realizadas, além da revisão bibliográfica, pesquisa documental e aplicação de questionários aos professores, administra-dores e alunos das duas escolas. Neste artigo, apresentamos os resul-tados do ponto de vista dos alunos. Para eles, o questionário continha doze questões sendo onze abertas e uma fechada. A aplicação ocorreu nas duas escolas e abarcou 97 alunos, cerca de 50%, que utilizaram duas horas/aula para responder.

O eixo teórico-metodológico referencia-se no método históri-co-crítico, estabelecendo como categoria de análise a organização do trabalho didático, fundamentada em Alves (2005, p. 10-11):

No plano mais genérico e abstrato, qualquer forma histórica de organização do trabalho didático envolve, sistematicamen-te, três aspectos:a) ela é, sempre, uma relação educativa que coloca, frente a frente, uma forma histórica de educador, de um lado, e uma forma histórica de educando(s), de outro; b) realiza-se com a mediação de recursos didáticos, envolvendo os pro-cedimentos técnico-pedagógicos do educador, as tecnolo-gias educacionais pertinentes e os conteúdos programados para servir ao processo de transmissão do conhecimento, c) e implica um espaço físico com características peculiares, onde ocorre.

Aos três aspectos da categoria de análise eleita para esta inves-tigação ajuntou-se o quarto aspecto, elaborado por Saviani (2007, p. 25): o público-alvo. Para Saviani, é importante buscar informações sobre o alunado, pois “além de ajudar na definição do perfil institu-cional, trará, também, indicações importantes sobre sua relevância social”.

139O Trabalho Didático em Exame

A relação educativa

Voltando a Caliari, Alencar e Amâncio (2002, p. 5) tem-se que “na Pedagogia da Alternância, o saber prático obtido junto à família, na execução das tarefas e a teoria, obtida na escola durante a troca de experiências e absorção dos conteúdos ensinados, se fun-dem”.

Essa fusão entre a prática e a teoria, entre a família e a escola abre espetacularmente o leque da relação educativa, uma vez que a Pedago-gia da Alternância institui outra forma de relacionamento envolvendo o jovem, a família, a comunidade e a escola. A alternância promove um ir e vir sucessivo envolvendo estudantes, professores, monitores, equipe técnico-administrativa, família e comunidade tornando-os “cúmplices e participantes ativos desta prática educativa” (CALIARI, ALENCAR, AMÂNCIO. 2002, p. 6).

Na EFAR e na EFAITAQ não é diferente. O leque aberto revela os vários aspectos da relação educativa. Uma, das onze questões aber-tas, questionou sobre a relação educativa, em todas as suas dimensões abertas pela Pedagogia da Alternância, ou seja, envolvendo alunos, professores, equipe administrativa, monitores, família e comunidades ou assentamentos.

Entre alunos e professores, por exemplo, a maioria dos alunos da EFAITAQ afirmam que “os professores escutam e ensinam bem” e classificam a relação como muito boa, de amizade, familiar, saudável, aberta, convivência boa e legal; um número pequeno classifica como normal; e quatro deles classificam como regular. Outra dimensão, a relação aluno/equipe administrativa, também está classificada, em sua maioria, como boa, normal, ótima. A relação com os monitores é tranquila, de amizade, merecem respeito como todos os professores. Mas há aqueles que acham que é razoável. Referente à família, a rela-ção é de respeito, tranquilidade e ajuda, embora “haja algumas brigas, o que é normal”. A relação educativa também se expressa no interesse da família pela aprendizagem, no ensinar em casa o que aprendeu na

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escola: • Ajudo no que sei;• Aplico na agricultura o que tenho domínio;• Aplico alguns aprendizados na minha área experimental em minha propriedade para ver resultados significativos;• Ensinei capar porco;• Tenho uma hora experimental em casa;• Aproveito os estudos para aplicar em casa;• Podar corretamente os pés de maracujá em casa.Entre os alunos a relação é considerada boa, são bons amigos; às

vezes não é boa, mas procuram se ajudar mutuamente.Para os alunos da EFAR, a relação educativa com os professores

é normal, excelente, boa, tranquila, familiar, de amizade. “Os profes-sores são bons, ensinam bem.” Contudo, alguns alunos têm medo de tirar as dúvidas e outros acham que a relação é “mais ou menos”, que poderia ser melhor. Também a maioria dos alunos classificam a re-lação com a equipe administrativa como ótima e boa; uma minoria como regular e razoável. No grupo maior, o bom convívio, o respei-to e o diálogo foram destacados como pontos positivos da relação. A equipe administrativa é reconhecida pelos alunos por “segurar as pontas nas crises”. Com os colegas, embora haja algumas desavenças, a convivência é manifestada como tranquila, normal, boa, ótima. São amigos. Referente aos monitores, as opiniões se dividem. Para um gru-po, é boa, ótima, respeitosa, tranquila. “Os monitores ajudam muito porque eles moram na escola”. Para o outro grupo, a relação às vezes é complicada, meio difícil, mas pode melhorar. Essa divergência é com-preensível uma vez que são os minitorres que passam a maior parte do tempo com os alunos. Eles estão presentes no momento das au-las, junto com os professores, no almoço, nos momentos de descanso, nos dormitórios, enfim, os monitores acompanham os alunos durante todo o dia. Com a família, a relação foi classificada de excelente, per-feita, muito boa, tranquila. As respostas sobre a relação educativa com a família foram muitas e ficaram assim sistematizadas:

• Utilizamos em casa agroecologia em vez de agrotóxicos;

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• Coloco em prática para ver se aprendi mesmo;• Investimos em tecnologia;• Continuo ajudando meu pai a fazer de modo certo;• Buscamos superar os obstáculos do assentamento;• Ajudamos os pais no sítio;• Trabalhar com a família na agricultura.Alguns alunos não são oriundos de comunidades ou assenta-

mentos, mas de pequenas propriedades nas quais desenvolvem a agri-cultura familiar. Aqueles que vivem em comunidades ou assentamen-tos revelaram que procuram ser participativos, que houve melhoras no seu relacionamento com as pessoas da comunidade, que as pessoas têm curiosidade e perguntam muito e eles ensinam o que aprenderam na escola. “No assentamento eu e meu pai conseguimos levar o conhe-cimento de silagem para o gado leiteiro durante o inverno.”

Evidentemente críticas também surgiram nesta exposição, o que é normal, afinal a escola busca formar alunos críticos e participa-tivos e as críticas fazem parte de uma formação emancipatória. O que se destaca é a clareza e a conscientização dos alunos ao expressarem sua opinião, revelando uma formação realmente crítica.

O leque aberto revela a relação educativa que se processa em dois momentos que se fundem: a Sessão Escolar e a Sessão Familiar.

Conforme o Regimento Interno, a Sessão Escolar é o momento em que os estudantes constroem os embasamentos teóricos e práti-cos na área de conhecimentos agropecuários e formação geral. Aulas expositivas, trabalhos em grupo, seminários, pesquisas de campo e bibliográfica, aulas de campo e tarefas personalizadas são as técnicas pedagógicas utilizadas nas aulas. Apostilas, livros, palestras, organi-zação de reuniões, questionários, exercícios de fixação, entrevistas e relatórios medeiam a prática educativa.

Quanto à Sessão Familiar é o período em que os estudantes pas-sam em seu meio sócio profissional familiar (a propriedade). Nesse período, eles contam com o auxílio da família e da comunidade no levantamento e na coleta de dados inerentes ao seu meio sócio-profis-sional. As atividades encaminhadas para a Sessão Familiar ficam sob

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a responsabilidade dos professores de cada área e são controladas por meio de um documento próprio denominado Caderno de Alternân-cia. Durante a Sessão Familiar, o estudante é estimulado a participar de eventos relativos à profissionalização do agricultor familiar, tais como o dia do campo, seminários, cursos e palestras, pois, entende-se que tais momentos servem de atualização tecnológica e aprofunda-mento sobre a política e a economia regional agrícola.

A fusão dessas duas sessões leva, consequentemente, à mudan-ças na prática pedagógica que ocorre sob certa mediação.

A mediação dos recursos didáticos

Na EFAR, o Curso Técnico em Agropecuária Integrado ao En-sino Médio está estruturado em três anos, totalizando uma carga ho-rária de 3.895 horas.

A Sessão Escolar ocorre por duas semanas, em regime de inter-nato, com aulas de segunda-feira a sábado, na primeira semana, e de segunda a quinta-feira, na segunda semana. Além das aulas expositivas são realizados trabalhos em grupo, seminários, pesquisas de campo e bibliográfica, aulas de campo e tarefas personalizadas. O Estagio tam-bém se constitui enquanto recurso didático.

O Estágio Profissional Supervisionado objetiva preparar o estu-dante para desenvolver a atividade profissional com vistas a atender as necessidades da agricultura sul-mato-grossense, sendo empreendedor sob os pontos de vista técnico, econômico e organizativo (EFAR, Regi-mento Interno. In Livro de Processos, p. 6). É desenvolvido em parcerias com propriedades da agricultura familiar ou empresas afins, que tenham como princípio a prática agroecológica. O estágio é acompanhado por dois professores nomeados coordenadores de estágio. Ao final, o estu-dante elaborará um relatório com registros das atividades desenvolvidas.

Conforme o artigo 2º do Regulamento Interno, a EFAR ado-ta uma pedagogia voltada ao meio rural, inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana. Sua principal finalidade é o pleno

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desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cida-dania, e sua qualificação para o trabalho. Para atingir tal objetivo a grade curricular está dividida em quatro grandes áreas: Ciências da Linguagem; Ciências da Natureza e Matemática; Ciências Humanas; e Ciências Agrárias.

A avaliação dos alunos da EFAR quanto aos conteúdos vão de ótimo a satisfatórios. Um aluno, oriundo do Ensino Médio dito “re-gular”, afirma que “são muito melhores e mais adiantados do que a escola regular”. Há alunos que afirmam que poderiam ser melhores, mais aprofundados, explicando que “este prejuízo” ocorre devido às “trocas de professores, a gente se perde um pouco”. Essa troca de pro-fessores se deve à forma como o governo estadual lida com o repasse de verbas para as escolas família agrícola, ocasionando atrasos no pa-gamento que acaba gerando a rotatividade de professores. Os alunos não só se dão conta de que tal situação os prejudica como identificam criticamente as causas.

Para estes alunos, “a teoria não é tudo” e junto com ela as ati-vidades práticas são muito importantes pois os leva a “ligar o que a gente aprende nos conteúdos com a prática na propriedade”. Para eles as atividades práticas os ajudam a aprender melhor pois sintetiza os conhecimentos teóricos. “Na prática a gente consegue ver se apren-deu mesmo” e “o aprendizado é difícil de esquecer”, além de “deixar a matéria mais divertida”. A relevância das atividades práticas são des-tacadas pelos alunos que a vêm também como o momento em que “a aprendizagem sai do papel” e “o aluno pode demonstrar o que apren-deu.” Contudo reconhecem também que “há algumas aulas [práticas] que só servem para trabalhar e não têm muito conhecimento.”

Na Sessão Familiar, também com duração de 15 dias, ocorrem quatro horas/aula diárias, de segunda-feira a sábado, organizadas pelos estudantes junto à sua família. Sobre estas sessões, os alunos afirmam: “conseguimos interagir muito bem com nossas famílias e vizinhos”; “conseguimos implantar o que aprendemos na propriedade.” Dentre as atividades desenvolvidas nas propriedades foram destacadas: horta, tratos culturais, culturas regionais e controle alternativo de pragas e

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doenças com base da agroecologia.Os recursos metodológicos ajudam na aprendizagem; geram

conhecimentos e ajudam na formação tirando dúvidas, especialmen-te nos momentos de “pesquisas na biblioteca”. Continuando a análise das respostas discentes tem-se que “dá para entender o professor mes-mo explicando com uso de quadro-negro e oralmente” as “explicações são muito boas e ensinam muitas práticas”, as “aulas são diferentes” e os recursos são “boas formas de transmitir os conhecimentos”. Con-forme os alunos, além disso os recursos utilizados nas aulas teóricas e práticas “ajudam nos estágios institucionais que são feitas na insti-tuição e no estágio supervisionado.” Elogios à parte, críticas também ocorreram: “as aulas são mais teóricas e pouco práticas”; alguns recur-sos “são muito complexos para entendermos os conteúdos da agricul-tura”; os recursos “não são muito bons. Deviam ter coisas novas”; “fal-tam materiais, o que dificulta as aulas práticas”. Voltando aso pontos positivos, os alunos afirmaram que os recursos utilizados “facilitam o entendimento dos conteúdos” levando-os a “obter boa qualidade, com boa metodologia”.

Apostilas, livros, palestras, organização de reuniões, questio-nários, exercícios de fixação, entrevistas e relatórios são alguns dos recursos didáticos que medeiam a prática educativa, organizada nos planejamentos das duas instituições. Mas outros recursos também são utilizados, como o livro de auto avaliação, o caderno da alternância, o caderno da realidade.

Para a auto avaliação, os alunos reúnem-se e, no primeiro mo-mento, conduzido pelo professor, fazem uma espécie de preparação. No momento seguinte, denominado partilha, eles se auto-avaliam e ouvem os comentários de três colegas e um monitor. O Caderno da Alternância é o registro das atividades realizadas pelo estudante du-rante as sessões escolares e, principalmente, durante as sessões fami-liares, promovendo um elo, uma ponte de informações entre a família e a escola. Na sessão vivência escolar o estudante faz o registro acom-panhado pelo monitor e na sessão familiar o registro é acompanhado pela família. No Caderno da Realidade (portfólio) o próprio estudan-

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te registra sua vida estudantil.Para os alunos, os recursos facilitam o entendimento dos conteú-

dos levando-os a ter um ensino de qualidade com boa metodologia e des-tacam o caderno da realidade e o da alternância são muito importantes.

Para os idealizadores das Escolas Família Agrícola o ambiente escolar é o local de sistematização científica e o ponto de partida para organizar pesquisas, integrando a teoria com a prática e a ação com a reflexão, enquanto o meio sócio-comunitário é um fator privilegiado no processo ensino-aprendizagem. É a organização desse espaço físico que buscaremos no item a seguir.

O espaço físico

A EFAR funciona numa propriedade da Prefeitura Municipal de Nova Alvorada do Sul, em área cedida por 10 anos ao COAAMS. A EFAITAQ está localizada no assentamento Lua Branca, a seis qui-lômetros da sede do município de Itaquiraí.

Além da estrutura básica - salas de aula, banheiros, sala de pro-fessores, sala de reuniões e secretaria – as duas escolas contam com refeitório, cozinha e despensa, alojamentos feminino e masculino, sala de Informática, biblioteca e laboratório, aviário, pocilga, curral e man-gueiro.

Considerando que a Pedagogia da Alternância consiste na or-ganização da formação em tempos e espaços diferenciados há que se considerar, além do espaço escolar, o meio denominado “sócio-profis-sional-familiar” onde reside o discente. A forma como o espaço do-miciliar é integrado ao espaço escolar é revelada pelos alunos quan-do relatam que aplicam o que aprendeu em casa, junto com os pais e os vizinhos, que respondem às muitas perguntas que os membros da comunidade os fazem, que têm horas experimentais, que colocam em prática para ver se aprenderam mesmo. Aqui pode ser observado a interação entre a teoria e a prática, buscando, nas de um dos alunos “superar os obstáculos do assentamento”.

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Enquanto pedagogicamente a interação dos dois espaços ocor-re de forma dinâmica e produtiva, fisicamente as escolas enfrentam alguns problemas gerados, principalmente pela falta de apoio dos ór-gãos governamentais.

Na EFAR, os alunos apontam a necessidade de reformas, reco-nhecendo que “falta de apoio” a escola “não tem ajuda dos governan-tes, faz-se o que pode aqui”. Outro aluno disse: “Nossa estrutura não é das melhores, mas com o pouco que temos, conseguimos viver e, aos poucos, vamos buscando melhorias para nosso local”. Na EFAITAQ, além da necessidade de reformas nos prédios, os alunos citaram a ne-cessidade de se adquirir mais ferramentas e mais animais como condi-ções básicas para tornar o “ensino ainda melhor”.

Impressiona a consciência, a criticidade e a responsabilidade doa alunos tanto em relação aos estudos quanto aos cuidados que de-vem ter para com a escola: “Sou um sócio da escola e tenho que aju-dar” (Aluno do 1º ano da EFAITAQ).

O público-alvo

As Escolas Famílias Agrícolas atendem os jovens oriundos de pequenas propriedades (agricultura familiar), de assentamentos e de comunidades quilombolas e indígenas.

Esses jovens chegam a EFAR e a EFAITAQ por caminhos va-riados: são indicações de parentes, amigos, vizinhos, egressos, inter-net. Também através do MST, de professores, de palestras proferidas pelos alunos das EFA nas comunidades.

Quanto à opção pela escola também foram apresentados vários motivos, os quais ficaram assim sintetizados: Interesse pela agroeco-logia e pela agricultura orgânica; Pressão familiar; Incentivo dos pais; Curso Técnico, integrado e para a área do campo; Ensino diferencia-do, voltado para filhos de agricultores, favorecendo o meio rural; Por ser uma escola família; Pela Proposta do Curso e sua metodologia; Ensino de mais qualidade; Por ser do movimento social; A Escola dá

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oportunidade para o jovem permanecer no campo; Melhorar meu as-sentamento, aprimorando a agricultura e/ou pecuária; A cidade onde moro o Ensino Médio é fraco.

Para esses jovens a EFAR e a EFAITAQ representam a luta pela terra, a responsabilidade, a esperança, um futuro melhor, formação para a cidadania, um lugar de boa convivência, uma visão de mun-do. Representa a possibilidade de melhorias na propriedade dos pais e maiores oportunidades na vida. Eles se sentem orgulhosos por estarem ali, acreditam no ensino, na metodologia! “Além da Escola, é uma família.” “É uma conquista e um desafio.” “Uma es-cola que deveria existir em todo o Brasil.” “Meu alicerce: Eu vou aprender muito conhecimento para mim e para os outros que não sabem”.

Os jovens, das duas escolas, relatam com orgulho que depois da EFA tornaram-se mais responsáveis, mais conscientes, mais com-prometidos, mais participativos, mais organizados, mais maduros. Ampliaram seus conhecimentos tanto da “área para o vestibular” quanto na área técnica. Mudaram seu modo de pensar e agir, têm novas perspectivas. Melhorou o convívio e o respeito familiar, o re-lacionamento com as outras pessoas, a postura profissional. Aumen-tou o interesse pelas coisas, pela comunidade, pelo meio ambiente, pela agricultura familiar. Aprenderam a estabelecer rotinas, a admi-nistrar tanto o tempo quanto a propriedade, aprenderam a compar-tilhar os conhecimentos adquiridos. Hoje têm um olhar diferente para a comunidade, para a propriedade, para a realidade. Hoje “te-nho mais vontade de viver e de gostar da terra.” “Aprendi muito e mudei completamente meu jeito de agir, pensar e melhorei muito.” “Posso ajudar as pessoas na propriedade porque sei um pouco mais que eu sabia antes.”

Para o futuro querem ser bons profissionais que buscam ensinar e ajudar os outros, ter uma boa visão de mundo, planejar melhor as coisas, dar assistência no assentamento. Para um dos alunos, “a Peda-gogia da Alternância fez a diferença para meu futuro.”

A 12ª pergunta do questionário foi a única questão fechada,

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com cinco opções e permissão para marcar mais de uma resposta. A maioria dos alunos da EFAR e da EFAITAQ pretende continuar com a família, no ramo agropecuário, contudo sem abandonar os estudos (Tabela 1)45.

Tabela 1: O que você pretende fazer ao concluir o curso aqui na EFA?

Tendo o jovem trabalhador do campo como público-alvo, as atividades desenvolvidas pela EFAR e pela EFAITAQ estão funda-mentadas nos princípios da agroecologia, objetivando formar profis-sionais para trabalhar como autônomos seja em unidades de produção familiar ou para atuarem como agentes de desenvolvimento rural em comunidades de agricultores familiares, em diferentes entidades ou organizações.

Considerações finais

Sabemos que a Pedagogia da Alternância organiza a formação em espaços e tempos diferenciados. Assim, no meio sócio profissional--familiar o estudante observa a realidade, busca saberes e experiências; no ambiente escolar realiza as reflexões, problematizações e aprofun-damento, ou seja, sistematiza os conhecimentos e volta à sua prática, em seu meio sócio-profissional, para realizar novas experiências e pes-quisas, confrontando os saberes teóricos com os saberes práticos.45. A porcentagem foi calculada em referência ao número de alunos e não à quantidade de respostas dadas, uma vez que os alunos podiam marcar mais de uma opção.

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Quanto à relação educativa, tem-se uma ampliação uma vez que a relação não se dá apenas entre alunos, professores e o quadro téc-nico-administrativo. A adoção da Pedagogia da Alternância faz com que os alunos passem quinze dias na escola, em regime de internato, e quinze em casa, onde põem em prática o que aprendem na escola. Esse revezamento traz para a relação educativa o envolvimento da família e da comunidade onde residem os discentes, enriquecendo a relação que não se restringi ao ambiente escolar.

Devemos lembrar que o termo recursos didáticos compreende não só os materiais didáticos, mas também o planejamento curricular, a metodologia empregada, os conteúdos trabalhados, os estatutos, enfim todos os recursos que medeiam a prática educativa. Sendo assim, acres-centamos que a mediação dos recursos didáticos ainda não foi exausti-vamente levantada nessa pesquisa. Nesse aspecto, a principal conclusão refere-se à ênfase dada, na maioria das disciplinas, a uma formação re-almente crítica, voltada para conteúdos tais como modos de produção, sistema capitalista, socialismo, classes sociais, trabalho, dentre outros. Busca-se, nas duas Escolas Família Agrícola, despertar a consciência so-cial, crítica sobre a sociedade em geral, valorizando o trabalho no cam-po, no assentamento, na pequena propriedade familiar.

A Pedagogia da Alternância amplia, também, o espaço físico, alternando momentos na escola e no meio sócio-profissional-familiar fazendo com que o aprendizado ocorra em dois espaços diferenciados. Ao integrar a vida sócio-familiar com a escola o projeto educativo da EFA “passa a ser comungado por vários agentes comprometidos com o desenvolvimento social, técnico, político e econômico do seu meio”.

O que está em questão, conforme o Regimento das Escolas, é um projeto de educação comprometido com a promoção do ser hu-mano e com o desenvolvimento local sustentável. Temos claro que a finalidade de uma instituição escolar é a promoção dos indivíduos e da sociedade a que pertencem. Conforme Saviani (1980, p. 52) promover o ser humano significa “torná-lo cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação a fim de poder intervir nela transformando--a no sentido da ampliação da liberdade, comunicação e colaboração

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entre os homens”. Para este autor, a luta pela difusão de oportunidades e pela extensão da escolaridade é válida e deve ser defendida do ponto de vista qualitativo. Para tanto, as escolas deveriam “assumir a função que lhes cabe de dotar a população dos instrumentos básicos de parti-cipação na sociedade” (SAVIANI, 1980, p. 172). É essa ação transfor-madora que buscamos ao investigar as Escolas Família Agrícola.

Nossa pesquisa está estruturada em três momentos: o primeiro, que abrange a história e a organização do trabalho didático na EFAR e na EFAITAQ está em sua fase final e os primeiros dados foram aqui apresentados, embora não exaustivamente. O segundo momento tem o propósito de buscar dados e informações envolvendo as temáticas Meio Ambiente e Desenvolvimento Local, temas que estão presentes na orga-nização do trabalho didático da Escola. E o terceiro, voltar-se-á para os aspectos da cultura regional cultivados pelos alunos do Ensino Médio das instituições escolares em questão. Muito ainda há por fazer.

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153

Edione Maria Lazzari- SED/MS46

Carla Villamaina Centeno – PROFEDUC /UEMS 47

Introdução

A organização do trabalho didático, na perspectiva da ciência da história, é analisada em seu movimento, compreendida como pro-duto das necessidades sociais em determinado contexto histórico.

Os estudos de Alves (2005a), autor que adota a categoria orga-nização do trabalho didático nessa perspectiva, buscou nos clássicos fundamentos para compreender a organização do trabalho didático na escola moderna. Alves (2005a, p. 8) discute as formas históricas assumidas pela organização do trabalho didático desde a sociedade feudal e, sobretudo, na passagem desse momento histórico para a so-ciedade capitalista período em que acontece a transformação do ensi-no individual para o ensino coletivo.

Para o autor, a organização do trabalho didático envolve três aspectos em qualquer sociedade e em qualquer tempo histórico:

a. ela é, sempre uma relação educativa que coloca, frente a fren-te, uma forma histórica de educador e uma forma histórica de educando (s), de outro;b. realiza-se com a mediação de recursos didáticos, envolvendo os procedimentos técnico-pedagógicos do educador, as tecno-

46. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS e Professora das Redes Estadual -MS e Municipal de Ensino de Campo Grande. 47. Doutora em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP e Docente do Mestrado Profissional da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS

O Ensino de História do Curso de Pedagogiado Centro de Educação a Distância da

Anhanguera-UNIDERP

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logias educacionais pertinentes e os conteúdos programados para servir ao processo de transmissão do conhecimento, c. e implica um espaço físico com características peculiares, onde ocorre. (ALVES, 2005a, p. 10-11).

Esses aspectos que compõem a categoria organização do traba-lho didático são apreendidos no processo de trabalho concreto da re-lação educativa e mudam de acordo com as necessidades sociais. Cada época com suas peculiaridades e necessidades gera um modo histórico de educador, de educando, de recursos didáticos e de espaço físico, indispensáveis à realização da relação educativa. Portanto, cada época produz uma relação educativa.

No entanto, este trabalho não pretende abordar os três aspec-tos da organização do trabalho didático formulado por Alves, e sim um deles, aquele que se refere aos recursos didáticos que servem como mediação ao processo de transmissão do conhecimento no ensino de EaD.

Sendo assim, o objetivo do estudo foi analisar um dos recursos didáticos utilizados no curso de Pedagogia do Centro de Educação da Distância – CEAD, da Anhanguera – UNIDERP, o livro texto Ensino de História, buscando compreender se o mesmo contribui para a formação do futuro educador da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Ou seja, pretende-se verificar como o conhecimento culturalmente significativo e o ensino de história são veiculados pelo material didático impresso disponibilizado no curso.

Alves (2005b) esclarece o que compreende por conhecimento culturalmente significativo ao apresentar os aspectos relacionados à orga-nização do trabalho didático e identificar que, hoje, este tipo de conheci-mento não é veiculado na escola. De fato, demonstra que o conhecimento está depositado no manual didático e várias pesquisas nesta perspectiva apontam a vulgarização do conhecimento contida neste instrumento (ALVES & CENTENO, 2009) (CENTENO, 2010), (SOUZA, 2010), (BRITO, 2012),(LANCILOTTI, 2008), (PETEK, 2013).

Alves (2005b) ainda sinaliza a educação geral como um recurso

155O Trabalho Didático em Exame

para formação do indivíduo como cidadão e como trabalhador e afir-ma que precisa haver outros instrumentos para abordar a cultura na escola, sobretudo o livro clássico que foi afastado da sala de aula. Mas, para Alves (2005b), não bastaria somente o acesso à produção humana ao longo da história e por meio dos clássicos. É necessário que o homem tome consciência de como funciona a sociedade permitindo-lhe perceber e lutar pelas transformações que visam à qualidade de vida numa base democrática.

[...] o homem carece de entendimento acerca de como fun-ciona a sociedade. Como o ser da sociedade é o ser do próprio homem, a compreensão do social pelo acesso do pensamento à totalidade é a condição necessária para que o ser pensante compreenda a si mesmo. A educação geral pode ser um ins-trumento dessa transformação na consciência do homem (AL-VES, 2005b, p. 237).

Também na perspectiva da história, Souza (2012) entende que o conhecimento em sua totalidade é aquele produzido no percurso da história da humanidade e que funciona como “arma de luta [...] por uma sociedade mais humanizadora.” (SOUZA, 2012, p. 14). A autora é enfática quando diz que para se chegar a algum lugar pretendido é preciso compreender a universalidade das coisas. É na leitura dos clás-sicos que adquirimos esta compreensão.

Desde o cotidiano da existência mais ínfima, em todos os tem-pos, até a denúncia e a crítica, como expressões de resistência, foram registrados por meio das formas mais avançadas da te-oria, da arte, da literatura, da música. Os vestígios escriturais dessa grande aventura humana feita de glórias e sangue, de luta e paixão encontram-se depositados em livros, museus, partitu-ras, como um grande patrimônio que pertence à humanidade, ao conjunto dos homens de todos os tempos. Esse conjunto de documentos que permaneceu no tempo, atestando a grande aventura civilizatória do homem, é o que chamamos de clássi-

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co. (SOUZA, 2012 p.6)Assim, o conhecimento em sua totalidade só ocorre quando o

homem reconhecer o caráter histórico do que produz e conhecer a cultura criada pela humanidade.

Se estivermos apostando no velho modo de viver, podemos nos descomprometer com a leitura dos clássicos do pensamen-to e da literatura, mas se quisermos uma nova forma de viver socialmente, fundada em novos princípios, um passo impor-tante é nos apropriarmos dos conhecimentos produzidos pela sociedade vigente, como arma de combate para a superação dos seus cânones. (SOUZA, 2012 p.15).

Desta forma, o conhecimento que se quer considerar neste tra-balho é o conhecimento compreendido como histórico e, portanto, sujeito a modificações, acréscimos e críticas.

O material impresso, no caso o livro texto, na organização do trabalho didático do CEAD da Anhanguera-UNIDERP é presença constante. Os pesquisadores do Material Didático Impresso (MDI) na Ead afirmam que um dos motivos que levam este recurso a ter grande aceitação entre os alunos é, na maioria das vezes, a facilidade em manuseá-lo e em utilizá-lo em seus estudos. No entanto, é preciso discutir que outros recursos didáticos são oferecidos aos alunos, como textos on-line, bibliotecas virtuaise quais os impedimentos e os incen-tivos que eles encontram em utilizá-los.

Embora a curiosidade e o interesse pelas novas tecnologias se-jam evidentes na sociedade atual, frequentemente não são percebidas como fonte pedagógica. As tecnologias da informação e da comuni-cação atuais, como fonte ou recurso de aprendizagem, parecem perder o significado quando se trata de usá-las para fins de apropriação do conhecimento.

É importante também ressaltar que o aluno da EaD se utiliza-rá dos meios e recursos que lhes são imprescindíveis à realização das atividades avaliativas. Se os conteúdos disponíveis nos materiais didá-

157O Trabalho Didático em Exame

ticos eletrônicos não são discutidos nos momentos presenciais ou nos ambientes virtuais de aprendizagem e nem mesmo contemplados nas atividades avaliativas, certamente o aluno não encontrará motivos que o levem a se interessar em apropriar-se dos conhecimentos ali disponí-veis, dando prioridade ao que está simplificado, o livro texto. Isso nos leva ao menos a uma indagação: o livro texto aqui analisado, é um re-curso de ensino que traz o conhecimento culturalmente significativo?

O livro texto ensino de história

Não foram analisados todos os livros textos adotados e sim aquele referente ao Ensino de História, indicado como bibliografia básica do Módulo Ensino da História e da Geografia no Curso de Pe-dagogia do Centro de Educação a Distância Anhanguera-UNIDERP e se apresenta como Ensino de Geografia e História, ainda que os con-teúdos de ambos sejam ministrados em unidades distintas. Assim, será analisado apenas o livro de Ensino de História.

O Programa Livro Texto - PLT é recurso exigido para a apren-dizagem dos acadêmicos dos cursos do CEAD da Anhanguera-UNI-DERP. Para cada Unidade Didática é indicada uma obra do Programa Livro Texto para o aluno acompanhar os conteúdos das aulas interati-vas e realizar autoestudo, pesquisas e avaliações. O PLT é um produto criado e comercializado pela AESAPAR - Anhanguera Educacional S. A. Participações.

O livro faz parte do Programa do Livro-Texto (PLT) da Insti-tuição Anhanguera Educacional. Segundo o fundador e presidente do Conselho de Administração da Anhanguera Educacional, Professor Antônio Carbonari Neto, as obras que compõem o programa, ofere-cidas aos alunos, são de “alta qualidade que necessitam para sua for-mação profissional, por preços mais baixos que os do mercado livreiro convencional48”.

48. Esta declaração encontra-se em todas as contracapas de todos os livros que compõem o Programa Livro Texto da Instituição Anhanguera Educacional.

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Não se pretende aprofundar esta questão neste trabalho, mas é importante ressaltar que o barateamento da mercadoria se dá pela alta quantidade de exemplares adquiridos na editora. É a própria AESA-PAR quem explica este barateamento.

Para o livro chegar a uma livraria, o autor negocia um valor (seus direitos autorais que não ultrapassam os 10% das ven-das) com uma editora que, por sua vez, faz a revisão, diagra-mação, arte, fotolito e gráfica. São, porém, os próximos passos que encarecem o livro; primeiro, as pequenas tiragens (no Bra-sil nossa tiragem é de 3 mil exemplares, em média, enquanto que, nos EUA e Europa, chega a 20 mil) e, em segundo lugar, a distribuição (as distribuidoras chegam a cobrar das editoras 60% do valor da venda). Então, está aí o segredo: por meio do Programa do Livro-Texto, o coordenador Adauto fecha um grande pedido de exemplares com as editoras (muitas vezes acima da tiragem convencional) e vende para os alunos o livro com o desconto adquirido e a editora paga aos autores os direi-tos autorais. (AESAPAR, 2010, apud FERRO, 2012, p.146)

Ainda em relação à citação anterior do Professor Antônio Car-bonari, sobre a qualidade dos livros que compõem o Programa Livro Texto, nos leva a questionar se o conteúdo que o livro em análise traz é suficiente à formação do futuro Pedagogo.

Para ter essa compreensão é preciso conhecer quais são os prin-cípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organi-zação curricular dos estabelecimentos de ensino que oferecem o curso de Pedagogia. Para tanto, recorre-se ao documento que institui Dire-trizes Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em Pedago-gia, licenciatura no Brasil, a Resolução CNE/CP nº1, de 15 de maio de 2006, como está declarado no seu Art. 1º:

A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacio-nais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura,

159O Trabalho Didático em Exame

definindo princípios, condições de ensino e de aprendizagem, procedimentos a serem observados em seu planejamento e avaliação, pelos órgãos dos sistemas de ensino e pelas institui-ções de educação superior do país, nos termos explicitados nos Pareceres CNE/CP Nº 5/2005125 e nº. 3/2006. (BRASIL, 2006, p. 01).

O § 1º do Art. 2º desta resolução concebe a “docência como ação educativa” “construída em relações sociais, étnico-raciais e pro-dutivas”, articulada “entre conhecimentos científicos e culturais, va-lores éticos e estéticos” (BRASIL, 2006, p. 01). Assim, o documento determina que a formação no curso de Graduação em Pedagogia Li-cenciatura deverá integrar a docência, a gestão, a pesquisa, a avaliação, a elaboração, a execução e o acompanhamento de programas e ativi-dades educativas.

Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à for-mação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educa-ção Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos.Parágrafo único. As atividades docentes também compreen-dem participação na organização e gestão de sistemas e insti-tuições de ensino, englobando:I - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas próprias do setor da Educação;II - planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de projetos e experiências educativas não-escolares;III - produção e difusão do conhecimento científico-tecno-lógico do campo educacional, em contextos escolares e não--escolares (BRASIL, 2006, p. 02).

As habilidades e as competências dos profissionais formados no

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curso de Pedagogia também foram definidas neste documento:Art. 3º O estudante de Pedagogia trabalhará com um repertó-rio de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentosteóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em princípios de interdisciplinaridade, contextualização, de-mocratização, pertinência e relevância social, ética e sensibili-dade afetiva e estética (BRASIL, 2006, p.2, grifo nosso).

No que diz respeito à forma a ser trabalhada em sala de aula pelos Pedagogos temos:

Art. 5º O egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a:VI - aplicar modos de ensinar diferentes linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às dife-rentes fases do desenvolvimento humano; (BRASIL, 2006, p.2)

Isso significa que, o Pedagogo deverá sair do curso com formação

que lhe proporcione habilidades e competências para utilizar metodo-logias de ensino em todas as áreas do conhecimento pertinentes à Edu-cação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Além da forma, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogiatambém-definem que o egresso do curso deverá ter habilidades e competências para trabalhar os conteúdos das áreas do conhecimento pertencentes à Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.

Art. 6º A estrutura do curso de Pedagogia, respeitadas a di-versidade nacional e a autonomia pedagógica das instituições, constituir-se-á de:I - um núcleo de estudos básicos que, sem perder de vista a diversidade e a multiculturalidade da sociedade brasileira, por meio do estudo acurado da literatura pertinente e de realida-des educacionais, assim como por meio de reflexão e ações crí-

161O Trabalho Didático em Exame

ticas, articulará:i) decodificação e utilização de códigos de diferentes lingua-gens utilizadas por crianças, além do trabalho didático com conteúdos, pertinentes aos primeiros anos de escolarização, relativos à Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia, Artes, Educação Física; (BRASIL, 2006, p.3).

A Resolução CNE/CP nº1, de 15 de maio de 2006, trata de

forma geral a formação do professor, ou seja, propõe uma formação para diversas atividades, que vão além da docência.

Organização e aspectos específicos do livro texto

ensino de história

Editado como volume único pela Editora Cengage Learning em 2013, o livro texto Ensino de História é utilizado no curso de Pe-dagogia do Centro de Educação a Distância – CEAD, da Anhangue-ra-UNIDERP.

A obra está estruturada em introdução e dez capítulos que apresentam dez “campos” e “fontes” de pesquisa histórica: documen-tos escritos; jornais; literatura; letras de música; estudo do meio; mapas; cultura material; museus; fotografia; cinema. O conteúdo de cada capítulo se estrutura em seis tópicos:

1) Questões para reflexão: pequena introdução com o intuito de levar o leitor a pensar sobre o tema em pauta e indicação dos objetivos.2) Teoria e aspectos metodológicos: fundamentação teórica e metodológica relacionada ao assunto em pauta.3) Sugestões de atividades: possibilidades de trabalhos com alu-nos utilizando a fonte ou o campo indicado no capítulo.4) Sinopse: visão geral, relato breve do conteúdo explícito.5) Para ler mais sobre o tema: indicação de obras, artigos e tex-

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tos relacionados ao tema.6) Referências Bibliográficas: obras que referenciaram o capítulo.

Na introdução da obra denota-se uma crítica da forma de apre-ensão do conhecimento histórico em aulas expositivas em que predo-minam a “decoreba” pelos alunos, dos fatos e acontecimentos histó-ricos selecionados e repassados pelos professores. Por isso, os autores propõem trabalhos que proporcionem o “desenvolvimento do pensa-mento histórico”. (ABUD et al., 2013, p. XII).

De acordo com os autores, os conteúdos ali disponibilizados es-tão destinados a dar apoio ao professor de História quanto à forma de organizar as aulas para que o aluno construa seu pensamento histórico pela exploração de diferentes fontes.

A pretensão desta obra é auxiliar o professor de História na organização de suas aulas, de modo que ele possa acompanhar o trajeto do pensar histórico por meio da exploração dos docu-mentos diferenciados sobre os quais se apoiam o conhecimen-to histórico e a construção do pensamento histórico do aluno. (ABUD et al. 2013, p. VII).

Ainda que a proposta dos autores tenha como objetivo a inser-ção de fontes nas aulas de História, fontes da produção humana, é preciso revelar se, de fato, a proposta para o Ensino de História pre-sente no livro texto em estudo garante uma formação adequada ao aluno desta área para exercer sua profissão atendendo aos Parâmetros Curriculares Nacionais de História para os anos ao qual ele se habilita e se o conhecimento encontra-se presente.

O Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil: conhecimento de mundo estabelece conteúdos a serem trabalhados na Educação Infantil (crianças de 4 a 6 anos) relacionados à Socieda-de e à Natureza: Organização dos grupos e seu modo de ser, viver e trabalhar:

• participação em atividades que envolvam histórias, brincadei-

163O Trabalho Didático em Exame

ras, jogos e canções que digam respeito às tradições culturais de sua comunidade e de outras;

• conhecimento de modos de ser, viver e trabalhar de alguns grupos sociais do presente e do passado;

• identificação de alguns papéis sociais existentes em seus gru-pos de convívio, dentro e fora da instituição;

• valorização do patrimônio cultural do seu grupo social e inte-resse por conhecer diferentes formas de expressão cultural. (BRASIL, 1998, p. 181-182)

Para organizar os conteúdos de História dos anos iniciais do Ensino Fundamental, os PCNs trabalham os seguintes eixos temáti-cos: História Local e do Cotidiano e História das Organizações Po-pulacionais. O eixo temático História Local e do Cotidiano propõe “preferencialmente, diferentes histórias pertencentes ao local em que o aluno convive, dimensionadas em diferentes tempos”. (BRASIL, 1997, p. 40). A proposta revela que o ponto de partida para o ensino de História é o entorno da criança. Ampliando a capacidade do aluno de olhar este entorno haverá compreensão das relações mais amplas que virão na sequência. O eixo temático História das Organizações Populacionais “enfocam as diferentes histórias que compõem as re-lações estabelecidas entre a coletividade local e outras coletividades de outros tempos e espaços, contemplando diálogos entre presente e passado e os espaços locais, nacionais e mundiais.” (BRASIL, 1997, p. 40). Sendo assim, propõe trabalhar diferentes histórias permitindo as relações entre pessoas do mesmo grupo e entre pessoas de grupos di-ferentes, no tempo e no espaço, sugerindo estudos comparativos para a percepção das diferenças e semelhanças, do que permanece e do que se transforma com as experiências do homem no tempo.

No entanto, percebe-se certa incompatibilidade entre conteú-dos e metodologias da proposta do Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil: conhecimento de mundo e dos PCNs com os conteúdos e metodologias propostos nos capítulos referentes ao Ensino de História oferecido no curso de Pedagogia, ora aqui em es-

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tudo. O capítulo 9 da obra – primeiro capítulo do Ensino de História

intitulado “Documentos escritos e o ensino de História”, por exemplo, traz como objetivo “propor caminhos para a utilização prática de do-cumentos escritos no processo de ensino de História.” (ABUD et al., 2013, p. 164). Entende-se a importância do acesso aos documentos escritos para que sejam utilizados no ensino de História e a manipula-ção dos documentos pelos alunos, desde os anos iniciais. Entretanto, o exemplo apresentado para esta prática é um exercício baseado em “narrativas contraditórias de um mesmo assunto: os discursos de Luiz Carlos Prestes e de Juarez Távora acerca de propostas para a efetivação de um processo de transformação político-econômico-social no Bra-sil.” (ABUD et al., 2013, p. 174). Este assunto está ligado à “Revolu-ção de 1930”, e de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, deve ser trabalhado com alunos dos anos finais do Ensino Fundamen-tal e no Ensino Médio. Importa esclarecer que esses fatos podem ser trabalhados com os anos iniciais, mas é necessário fazer mediações que não estão expostas no livro.

Para a execução da análise de documentos escritos, o professor precisa definir os procedimentos, apresentar aos alunos e discuti-los. Para isso, precisa conhecer e ter domínio do assunto ao qual se propõe analisar.

No entanto, percebe-se a falta de conteúdo específico na obra em análise. Ao que se refere à análise de documentos escritos, é sugeri-do, pelos autores, alguns procedimentos para a execução do trabalho como: contextualização histórica, objetivo, descrição do documento e aspectos materiais, descrição do documento e interpretação, auxilian-do o futuro professor ao “como fazer”. Entretanto, sobre o conteúdo, no caso, “A Revolução de 1930”, os autores apresentam apenas parte de um parágrafo onde situa o tempo histórico:

O ano é 1930. O clima é de absoluta contestação ao estado, que desde o início da República, é governado por uma oligar-quia cafeeira, fator que culminou na denominada Revolução de 1930, a qual levou Getúlio Vargas ao Poder. (ABUD et al.

165O Trabalho Didático em Exame

2013, p. 175).Este fragmento de conteúdo sobre a “Revolução de 1930” é

ampliado com indicações de outras bibliografias. O tópico “Para ler mais sobre o tema”, contido em cada capítulo da obra indica obras que apresentam documentos escritos que podem ser utilizados na sala de aula como exemplo: “50 textos de História do Brasil”, autoria de De-aFenelon e “900 textos e documentos de História” autoria de Gusta-vo Freitas. (ABUD et al., 2013, p. 187). Contudo, não há momentos durante o curso destinados a discussões sobre estes textos. As leituras dos mesmos, por si só, não bastam para a formação teórica do docente.

As indicações mostram que as formas que os autores sugerem para trabalhar o conhecimento histórico em sala de aula são, predomi-nantemente, indicadas para alunos dos anos finais do Ensino Funda-mental (6º ao 9º Anos) e Ensino Médio, anos estes que não estão con-templadas na formação do curso de Pedagogia, ou seja, a obra é escrita para a formação de docentes com formação em História-Licenciatura.

As “sugestões de atividades”, presente em todos os capítulos, é o tópico que mais revela que a obra não foi elaborada para a formação de professores para Educação Infantil e anos iniciais da Educação Básica.

No capítulo 10, que trata do uso de jornais nas aulas de história, encontra-se claramente a indicação de atividades a serem realizadas para anos distintos àquelas pelos quais o curso propõe formar: “Suge-rimos duas atividades a serem realizadas com alunos de Ensino Funda-mental II e Ensino Médio.” (ABUD et al., 2013, p. 194).

O tema sugerido para uma das atividades é de se trabalhar com o tema “Escravos e Assalariados do Brasil”, pode ser desenvolvida com alunos menores, usando formas diferenciadas. Entretanto o conteúdo que trata do conhecimento do período da escravidão na História do Brasil, não é aprofundado ou discutido com o acadêmico do curso.

Mais uma vez constata-se que o aluno do curso de Pedagogia não tem acesso ao conteúdo de História, necessários para atuar em sala de aula dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

No capítulo 11, que sugere aprender história por meio da lite-ratura, traz como exemplo de trabalho prático para a aula de história

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“o conto de Edgard Allan Poe, O Homem das multidões”, conto este, que “retrata o processo de desenvolvimento ocorrido com as metró-poles europeias na primeira metade do século XIX, e o quanto essa dinâmica influenciou o cotidiano das pessoas.” (ABUD et al., 2013, p. 212). Embora neste capítulo a sugestão de atividade não define, é fácil reconhecer para quais anos do Ensino Fundamental se destina. O período e o contexto histórico referem-se à Revolução Industrial. De acordo com os PCNs de História, este assunto faz parte da proposta elaborada para o quarto ciclo (7º e 8º anos, atual 8º e 9º anos), ou seja, para os anos finais do Ensino Fundamental: “Para o quarto ciclo está sendo proposto o eixo temático ‘História das representações e das relações de poder’, que se desdobra nos dois subtemas ‘Nações, povos, lutas, guerras e revoluções’ e ‘Cidadania e cultura no mundo contem-porâneo’.” (BRASIL, 1998, p. 67).

O capítulo 12, que trata da aprendizagem da história por meio de músicas, apresenta um repertório de seis letras de música que têm como tema central “o processo de urbanização da cidade de São Paulo durante o século XX”, (ABUD et al., 2013, p. 227) e traz como suges-tão de atividade a análise comparativa das músicas:

Canção 1: Expansão cafeeira e processo de urbanização (final do século XIX e início do século XX).Canção 2: República democrática populista com o janismo e o adhemarismo paulista nos anos 1950.Canção 3: Fechamento político do regime militar em 1968 (AI-5) e implantação de um modelo econômico atrelado ao capital estrangeiro.Canção 4 e 5: Fim do milagre econômico (1979-1973) oca-sionado pela crise do petróleo (1973) e início da abertura po-lítica. Canção 6: Governo Neoliberal de Fernando Henrique Car-doso (1995-2000) e ausência de políticas sociais efetivas. (ABUD et al., 2013, p. 236).

167O Trabalho Didático em Exame

Neste caso, também fica claro os anos para os quais a atividade é direcionada. De acordo com os PCNs os assuntos propostos na ativi-dade fazem parte do currículo do terceiro ciclo (5º e 6º anos, atual 6º e 7º anos), ou seja, dos anos finais do Ensino Fundamental(BRASIL, 1998, p. 46)

Estes conteúdos fazem parte do eixo temático “História das relações sociais, da cultura e do trabalho”, que se desdobra nos dois subtemas “As relações sociais e a natureza e As relações de trabalho.” (BRASIL, 1998, p. 55). Estes itens são abrangentes e podem ser iden-tificados também nos objetivos que os PCNs de História propõem para os anos iniciais: “reconhecer algumas relações sociais, econômi-cas, políticas e culturais que a sua coletividade estabelece ou estabe-leceu com outras localidades, no presente e no passado”. (BRASIL, 1997, p. 33). Contudo, as formas de trabalhar o assunto sugerido no livro texto é que revelam que a obra é indicada para a formação de docentes de anos distintos às dos anos iniciais.

No capítulo de número 13, que trata do estudo do meio e a aprendizagem de história, o assunto sugerido é “as relações de traba-lho centradas no escravo”. A realização das atividades, entretanto, é in-dicada para alunos de várias idades: “Partindo das premissas teóricas e metodológicas apresentadas, sugerimos um exemplo de estudo do meio para ser realizado com alunos do Ensino Fundamental ou Mé-dio.” (ABUD et al., 2013, p. 244) Embora entenda-se que, o Ensino fundamental refere-se a todos os anos (do 1º ao 9º), e, ainda que o assunta possa ser trabalhado com alunos menores, de forma adequada à cada série, os conteúdos para adquirir conhecimento sobre o assunto fica apenas na indicação de bibliografias, por exemplo, “O trabalho na fazenda de café” de autoria de Ana Luiza Martins. (ABUD et al., 2013, p. 253), sem, entretanto, ser discutido ou aprofundado durante o curso.

O capítulo 14, que aborda o estudo por meio de mapas e o ca-pítulo 15, que aborda o ensino de história e cultura material, também apresentam sugestões de atividades que podem ser trabalhadas até o Ensino Médio, como se pode observar nas citações: “A seguir, suge-

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rimos uma atividade que utiliza mapas e que pode ser desenvolvida com alunos do Ensino Fundamental ou Médio [...]”. (ABUD et al., 2013, p. 258) e “Essa consciência é fortalecida tanto nos anos finais do Ensino Fundamental como no ensino Médio.” (ABUD et al. 2013, p. 282).

Os capítulos 16 e 17, que tratam do ensino de História por meio de museu e por meio de fotografias, respectivamente, são os úni-cos que apresentam atividades direcionadas especificamente para os primeiros anos do Ensino Fundamental: “A seguir propomos ativida-des [...]: colagem com recortes de revistas e papel colorido, além de desenho e pintura para criar uma imagem a respeito da visita da turma à exposição.” (ABUD et al., 2013, p. 305). “Partindo das premissas teóricas e metodológicas apresentadas, sugerimos duas atividades a serem realizadas com alunos do Ensino Fundamental”. (ABUD et al., 2013, p. 314). “Nível dos alunos a partir da 3ª série (atual 4º ano).” (ABUD et al., 2013, p. 315).

O último capítulo, que aborda o cinema no ensino de história, traz sugestão de atividade específica para o Ensino Médio: “O traba-lho deve ser realizado com alunos do Ensino Médio [...]. (ABUD et al., 2013, p. 333).

Outro aspecto que leva a concluir que, o livro texto não é ade-quado ao curso para o qual foi adotado, é que no tópico “Para ler mais sobre o tema”, presente em cada capítulo, as bibliografias de conteú-dos de História são apenas indicadas pelos autores, mas não existem no texto aprofundamentos nem discussões sobre esses conteúdos de História.

O fato é que a obra é destinada a alunos de licenciatura de His-tória que têm acesso aos conteúdos de História em outras disciplinas. Reforçamos queconteúdos universais devem ser trabalhados com os alunos dos anos iniciais, pois a criança precisa ter acesso ao conteúdo geral, mas mediações precisam ser realizadas.

Portanto, a indagação que se faz na análise do livro texto é so-bre a falta de conteúdos relacionados aos conhecimentos de História. Por exemplo, o tópico “Teoria e aspectos metodológicos”, em cada ca-

169O Trabalho Didático em Exame

pítulo apresenta um breve texto com fundamentações teóricas para justificar a utilização do recurso em pauta (documentos, jornais, letras de musica...). No capítulo 12 intitulado “Letras de Música e aprendi-zagem de História” os autores sugerem letras de música para se tra-balhar em sala de aula, instigando o aluno a reconhecer, no texto, os momentos históricos revelados por elas. Segundo os autores do livro texto, um “aspecto fundamental na relação entre História, música e processo de aprendizagem é a articulação entre texto e contexto para que a análise histórica não seja reduzida, limitando, assim, a própria importância do objeto analisado.” (ABUD et al., 2013, p. 224).

Entretanto, para que a articulação aconteça é preciso conhe-cimento do contexto. Os autores esclarecem que “Cabe ao professor entender esse processo e articular de modo hábil o contexto histórico mais amplo do período estudado com as músicas apresentadas aos alu-nos.” (ABUD et al., 2013, p. 225). É neste sentido que, novamente, questiona-se qual seria o momento da formação que o egresso do cur-so em questão apropria-se do conhecimento de História para exercer esta função de “articulador do contexto histórico”, impedindo que a análise dos seus alunos seja reduzida, limitada? A resposta começa a esclarecer se: Não é no livro texto utilizado na Unidade Didática En-sino de História, nem nas sugestões de leitura que o livro texto apre-senta. Também não é em outra Unidade Didática que compõem a Matriz Curricular do curso. Falta conteúdo de História, no livro texto em análise e no currículo do Curso.

A obra analisada apresenta propostas avançadas de como ensi-nar o aluno buscar nas fontes o conhecimento da História, pois apre-senta metodologias de trabalho que ultrapassam as paredes da escola e que instigam o professor a ser pesquisador. Mas ele não foi escrito para trazer conteúdos.

Outra questão que precisa ser apontada a respeito das meto-dologias discutidas no livro é que para dominar as formas é preciso dominar a teoria. O livro em análise, ainda que discuta a importância de cada fonte e as singularidades das mesmas não traz teoria sobre essa discussão. Sabemos quanto é complexo o uso das mesmas. Toda fonte

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do conhecimento humano possui as suas especificidades de produção, sobretudo quando se referem a fontes artísticas, estas que envolvem além do conhecimento histórico também a estética na análise. É pos-sível por meio de um livro dividido em capítulos abordar problemáti-ca tão ampla e rica?

Os alunos, em todos os níveis da Educação Básica, veem rece-bendo conteúdos superficiais e fragmentados por meio dos manuais didáticos que centralizam o trabalho na escola e não desenvolvem há-bitos de leitura. Essa tendência também ocorre na educação superior, guardadas as proporções dessa simplificação.

Souza (2010, p.125), referindo-se ao manual didático é cate-górica: “Esse instrumento é marcado pela decadência, manifesta na metodologia que fragmenta o texto e interpreta o fragmento descon-siderando a totalidade da obra, quando não resume ou suprime total-mente o texto clássico”.

Se ao chegar à universidade o aluno também recebe conteúdo superficial e fragmentado, tendo acesso apenas ao como fazer de que forma estará apto a exercer sua profissão de ensinar? Certamente uti-lizará os manuais didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação para as escolas da rede pública de ensino para nortear seu trabalho. E assim, utilizando-se desta ferramenta que também não lhe proporcio-na acesso ao conteúdo, nem fundamentação e nem discussão o profes-sor segue a roda da “vulgarização e da superficialidade das informa-ções” (SOUZA, 2008, p.16)

A análise que se faz dos conteúdos referentes ao Ensino da His-tória presentes no livro Ensino de História do curso de Pedagogia do Centro de Educação a Distância da Universidade Anhanguera--UNIDERP é que não está adequado nem é suficiente para formar o docente para atuar no ensino de História para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental; é dotado de informações sobre a “forma” e apenas indicações de bibliografias para o conhecimento dos conteúdos.

Neste sentido o egresso do curso de pedagogia não recebe for-mação sobre “o que” ensinar. Mesmo direcionado aos alunos do curso

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de Licenciatura em História e apresentando uma proposta para traba-lhar diretamente com as fontes, a obra também acaba simplificando assuntos bem complexos como o uso da arte (literatura, cinema) no ensino de história e teorias que poderiam ser discutidas na fonte.

Algumas considerações

Ao verificar o livro texto Ensino de História chegou-se às seguin-tes conclusões: ele não está adequado nem é suficiente para formar o docente para atuar no ensino de História para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.

Demonstrou-se que o conteúdo referente ao Ensino de His-tória contemplado no livro é inadequado por ser um livro destinado a alunos de licenciatura de História, não de Licenciatura em Peda-gogia, ainda que não fosse de responsabilidade dos autores que o produziram trazer conteúdos para esta etapa pois, como foi verifi-cado, é a instituição que compra os direitos das obras diretamente das editoras.

Como aponta a teoria que deu base a este trabalho, precisa-mos de uma nova organização do trabalho didático (ALVES, 2005a; 2005b), sobretudo que resgate o conhecimento culturalmente signi-ficativo.

Diante disso, alguns caminhos podem ser apontados para que mudanças aconteçam na organização do trabalho didático dos cursos de Pedagogia, em geral. A começar pelo caminho de ordem técnica e pedagógica como: o uso das novas tecnologias. Não da forma como estão postos, mas com uma acepção mais ampla, que direcione para um fim envolvendo procedimentos e teorias que permitam a compreensão das coisas pela totalidade e pela natureza histórica.

Neste sentido, o conteúdo dos clássicos é instrumento indispen-sável para formação de professores porque a história humana revela-se por meio de sua leitura. Aos clássicos referem-se todas as obras que de

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uma forma revelam o mundo, o tempo histórico. Clássicas são aquelas obras de literatura, de filosofia, de política, etc., que permaneceram no tempo e continuam sendo buscadas como fontes do conhecimento. E continuarão desempenhan-do essas funções pelo fato de terem registrado com riqueza de minúcias e muita inspiração, as contradições históricas de seu tempo. Elas são produções ideológicas, pois estreitamente liga-das às classes sociais e aos interesses que delas emanam, mas são também meios privilegiados e indispensáveis para que o homem reconstitua a trajetória humana e descubra o caráter histórico de todas as coisas que produz. (ALVES, 1993, p. 21).

Além da superação do manual didático é preciso pensar uma forma-ção que tire o docente do posto de repassador dos conteúdos desses manuais e leve-o ao posto de pesquisador. Desta forma, podem-se proporcionar as condições necessárias para forçar uma mudança na organização do trabalho didático nos níveis superiores. Forçar uma mudança de luta. Uma das mu-danças é a leitura dos clássicos. Ela deve estar apoiada no método da ciência da história, que transforma e leva o homem à consciência da totalidade his-tórica. Assim a leitura dos clássicos servirá como instrumento de luta.

Referências

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173O Trabalho Didático em Exame

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Ronaldo Rodrigues Moisés49

Samira Saad PulchérioLancillotti50

Introdução

Fruto de uma necessidade histórica que emergiu nos albores da sociedade moderna, a educação escolar ganhou prevalência, na con-temporaneidade, com a promessa de assegurar amplo acesso ao co-nhecimento socialmente acumulado, o que foi sintetizado na máxima de Comenius: “ensinar tudo a todos”. Por meio de sua obra Didática Magna, o autor em questão indicou a forma adequada para a univer-salização da educação escolar.

A materialização desse processo, todavia, só começou a se con-cretizar, nos países de capitalismo avançado, a partir do final do século XIX, sendo efetivada, no Brasil, no transcurso do século XX. A ex-pansão da educação escolar implicou enorme complexidade, e, a des-peito da ampla expansão quantitativa, ainda estamos muito distantes de assegurar à maioria o efetivo acesso ao conhecimento. Progressiva-mente, a instituição escolar passou a incorporar novas funções, novos sujeitos, novos conteúdos, sem que houvesse significativa alteração na forma de organização do trabalho didático. Essa condição tem desa-fiado inúmeros pesquisadores que apuram perspectivas para a amplia-ção qualitativa da educação das massas.49. Mestre em Educação pela UEMS (PROFEDUC). Coordenador de Políticas para a Educação Es-pecial, SED/MS.50. Doutora em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Docente do Programa de Pós--Graduação em Educação, Mestrado Profissional em Educação - PROFEDUC/UEMS - e do Curso de Pedagogia/UEMS.

Organização do Trabalho Didático na Educação Física - Implicações para uma

Educação pela Cultura Corporal

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Nesse sentido, para estendermos nossa compreensão acerca desta problemática, tão significativa para a educação escolar, torna-se necessá-rio estabelecer uma analise radical, ou seja, que vá até os fundamentos ou às raízes da questão, conforme propõe Saviani (2009), para adensa-mento de sua compreensão e para o vislumbramento de novos rumos.

Tendo como referencial a ciência da história, matriz teórico-me-todológica formulada por Marx e Engels, e compreendendo o ensino como trabalho, Alves (2005) desenvolveu a categoria Organização do Trabalho Didático (OTD)como recurso para explicar a dinâmica exis-tente nessa forma especializada de trabalho, identificando assim três elementos constitutivos evidenciados no trecho a seguir:

a) ela é, sempre, uma relação educativa que coloca, frente a frente, uma forma histórica de educador, de um lado, e uma forma histórica de educando(s) do outro; b) realiza-se com a mediação de recursos didáticos, envolvendo os procedimentos técnicos-pedagógicos do educador, as tecnologias educacio-nais e os conteúdos programados para servir ao processo de transmissão do conhecimento, c) e implica um espaço físico com características peculiares, onde ocorre. (ALVES, 2005, p.10. Grifos do autor).

A compreensão da Organização do Trabalho Didático pode oferecer condições para repensar as práticas educativas e contribuir para a transformação social que desejamos, apontando possibilidades para uma proposta democrática na qual seja possível, efetivamente, “ensinar tudo a todos”. Tal compreensão adquire singularidades nas diferentes disciplinas que compõem o currículo escolar, dentre as quais merece destaque a Educação Física, por apresentar um elemento diferencial, que é o seu objeto de trabalho, ou seja, a cultura corporal.

A cultura corporal, de acordo com Castellani Filho et al (2009), é composta por temas ou formas de atividades que se enquadram nas terminologias jogo, luta, esporte, ginástica e dança, tendo suas mani-festações como formas de linguagem corporal.

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Fruto de um processo histórico de ruptura com o racionalismo médico-científico e reflexo da crise identitária sofrida pela Educação Física nos anos de 1980 e 1990, o termo “cultura corporal” surge nas perspectivas denominadas críticas, que objetivam um contraponto à lógica da sociedade capitalista, teorizando sobre elementos que po-dem contribuir para mudanças estruturais51.

Nesse sentido, ao abordar a cultura corporal, observa-se que a Educação Física apresenta-se como rica disciplina escolar com relação às possibilidades formativas. Todavia aquilo que constitui uma opção singular de produção humana também pode se manifestar de manei-ra excludente quando adquire apenas contornos biologicistas e/ou de rendimentos, conforme denunciam Malina et al (2009).

Um entendimento restritivo e deturpado acerca da função social da Educação Física potencializa o risco da exclusão de um número sig-nificativo de participantes, como os homossexuais, os obesos, sujeitos com baixa habilidade esportiva e pessoas com deficiência, reforçando a marginalização de pessoas frequentemente alijadas dos processos so-ciais. Nesse sentido, a análise criteriosa da Organização do Trabalho Didático na disciplina escolar Educação Física pode oferecer elementos para ampliar o seu alcance formativo, lutando contra segregações e dis-criminações, convertendo-a em potente ferramenta inclusiva. O objeti-vo deste estudo é justamente o de contribuir com este esforço.

Organização do trabalho didático na escola con-temporânea

A análise histórica do trabalho didático evidencia que, a des-peito das transformações estruturais que marcaram a sociedade até o presente, ele sofreu poucas mudanças no transcurso da modernidade. Indícios claros dessa afirmação são evidenciados diariamente em di-51. O termo Cultura Corporal - utilizado inicialmente pelo grupo Coletivo de Autores em 1992 - foi o adotado, na tessitura do presente trabalho, por apresentar maior sinergia com as perspectivas defendidas no âmbito deste estudo, uma vez que oferece à terminologia “corpo” um apontamento não dicotomizado entre o racional e o sensível, além de concebê-lo como uma produção das condições materiais impostas pelo sistema social dominante.

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versas escolas do país, nas quais se observam, como recursos materiais e metodológicos, elementos que, em grande parte, se assemelham com a proposta comeniana desenvolvida ainda no século XVII – destaque para o manual didático, que sofreu poucas mudanças e, em sua maio-ria, deletérias.

Tal cenário expõe claramente a cristalização da Organização do Trabalho Didático, embora, conforme frisa Alves (2005), já existam condições concretas para a superação da forma vigente. Para o autor:

Por essa ótica, foram reconhecidas na organização do Trabalho Didático, ainda vigente em nosso tempo, características manu-fatureiras. Ou seja, a organização conferida ao trabalho didáti-co por Comenius; as tecnologias produzidas por ele, à época, a exemplo do manual didático; o professor que a nova organi-zação ensejou, substituto do preceptor medieval, cristalizam-se, em seguida. Conquistas tecnológicas importantes da humani-dade, propiciadas pela Revolução Industrial, pelos meios de co-municação de massa, pela automatização e pela informática, não têm penetrado o escudo erguido pela organização manufaturei-ra do trabalho didático contra as inovações. Como agravante desse quadro, afirme-se que a escola manufatureira, ao tornar-se terreno dominado pelo manual didático, abdicou da possibili-dade de transmitir o conhecimento culturalmente significativo, depositado nas obras clássicas, em favor de uma versão vulgari-zada. (ALVES, 2006, p. 3 – 4, grifo nosso).

É necessário ressaltar que a Organização do Trabalho Didático proposta por Comenius se apresentava como um avanço para a época, ao favorecer a superação do ensino individual por meio da proposição do ensino coletivo, forma adequada à universalização do ensino, visando atender uma ampla demanda social que se instalava naquele momento histórico. Tal mudança configurou-se como uma necessidade para a consolidação do modo de produção capitalista,

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que demandava homens letrados. Importa também salientar que, conforme Alves (2005, p.11),

uma forma histórica de OTD é o próprio pressuposto “consciente” da relação educativa correspondente ao seu tempo, entretanto o que se questiona é o tempo necessário à incorporação das condições mate-riais existentes e a sua superação. A proposta de Comenius, exemplo maior, tardou pouco mais de dois séculos para se viabilizar, pois, como já indicado, só em fins do século XIX é que a educação comeniana co-meçou a se instituir, efetivamente, nos países de capitalismo avançado, justamente quando se impôs a expansão da educação escolar.

Passados mais de três séculos, o que se verifica é que as condi-ções materiais se mostram favoráveis à superação da OTD comenia-na: o acesso ao ensino fundamental tornou-se de fato universalizado, as oportunidades para ingresso no ensino superior se mostram am-pliadas e há novos recursos disponíveis, como as Tecnologias Digitais, que oportunizam infinitas informações em segundos. Entretanto, este ferramental ainda não foi incorporado ao trabalho didático, no qual ainda reina, soberano, o manual didático. Ademais, o operário do sa-ber, outrora denominado mestre, tem seu conhecimento progressiva-mente mais fragmentado e apequenado, o que o distancia cada vez mais daquele “Artífice Primoroso” – denominação conferida por Eras-mo (apud ALVES, 2005, p.67) aos mestres de outrora.

Lamentavelmente, tal processo de simplificação, induzido pelo parcelamento do processo de trabalho e pelo instrumento didático prevalecente (manual), por vezes, passa despercebido por muitos edu-cadores, constatação apresentada por Alves (2010), que frisa:

[...] o educador pode até adotar um discurso em que não se re-conhece anulado pelo instrumento de trabalho, mas, mesmo assim, o fetiche da mercadoria manifesta-se ao tolher sua visão e impedi-lo de enxergar, em toda a sua inteireza, a relação educati-va que pratica todos os dias. (ALVES, 2010, p. 57, grifo nosso).

O que se verifica hoje é que o corpo docente é, cada vez mais,

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encarado com descrédito até mesmo pelos próprios professores, que veem na profissão apenas uma ocupação temporária, antes que encon-trem trabalho mais compensador. Com isso, se sedimenta uma didática anacrônica e com capacidade pífia em relação às demandas sociais da maioria, ou seja, da classe trabalhadora. As práticas conservadoras não subsidiam uma formação integral e crítica, com vistas à transformação social. A precária formação dos professores, aliada à falta de interesse em compreender os determinantes históricos do trabalho didático, só aprofunda as dificuldades. Acerca dessa questão, Alves pondera:

O trabalho didático ainda se mantém, em grande parte, objeto exclusivo dos especialistas em didática e metodologia do ensino. Como eles vêm revelando precária capacidade teórica, são notó-rias as suas dificuldades para desvelar a historicidade do trabalho do professor e de tudo o que o envolve. Talvez também por isso, nos terrenos da didática e da metodologia de ensino, imperam e se sucedem modismos momentâneos. (ALVES, 2010, p.47).

A incompreensão maior incide sobre a visão parcial dos edu-cadores acerca de uma questão que se faz muito maior, ou seja, a or-dem social capitalista - que se mantém como condicionante das ações humanas no contexto contemporâneo – ou, nas palavras de Marx e Engels (1984), o ponto de partida e de chegada da investigação críti-ca. Tal incompreensão sobre as condicionantes impostas pelo sistema social, ao limitar a visão crítica do indivíduo, limita também seu po-tencial de ação e, como afirma Alves, os modismos se reproduzem em progressão geométrica, desconsiderando a realidade local e histórica.

As inadequações e percepções descontextualizadas apresentam o efeito nocivo de conduzir os professores a (re) produções que se mostram como verdadeiros pastiches, recortes ecléticos e informações desconexas, que desconsideram os fundamentos sobre os quais os co-nhecimentos historicamente produzidos foram formulados. Dessa perspectiva, a educação não oferece aos alunos uma visão organizada, sistemática e crítica dos diversos campos da ciência e das artes, no mo-

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vimento da história. Evidentemente, não se tem a ingenuidade de reforçar a visão da

educação como panaceia, contudo é preciso considerar que a educa-ção pode alimentar a potência transformadora da classe trabalhadora, que somente pode buscar a emancipação quando alcançar uma cons-ciência de classe para si.

A esse respeito, Marx considera:

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os inte-resses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política. (1985, p. 159).

Dessa forma, para o alcance desse nível de consciência defen-dida, a educação tem importante papel a cumprir, na medida em que pode favorecer o acesso ao conhecimento e à formação crítica.

Com respeito aos elementos constitutivos da organização do trabalho didático (relação educativa, elementos de mediação e espaço físico), no contexto da escola contemporânea, podemos observar os seguintes aspectos: a relação educativa predominante é aquela que se estabelece entre o professor e um coletivo de alunos, isto é, desen-volve-se na coletividade, tomando por referência um suposto aluno médio. Apesar de todas as críticas estabelecidas a esta forma homo-gênea de ensino, ela permanece sendo a mais adequada à expansão da educação escolar, uma vez que a massificação dificulta enormemente o atendimento de caráter mais individualizado, que permitiria a atenção e respeito às particularidades, interesses e ritmos particulares dos edu-candos, como pretendiam os educadores escolanovistas.

Quando falamos em elementos de mediação, devem ser con-siderados aqueles que estabelecem um elo concreto entre o professor

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e o aluno e, conforme Lombardi (2010 p.73), são “[...] as estratégias metodológicas adotadas no processo de transmissão de conteúdos determinados entre os sujeitos educacionais”. Alves (2005) avança na análise acerca dos mediadores, explicitando-os como procedimentos técnico-pedagógicos do educador, tecnologias educacionais e demais recursos materiais, além dos conteúdos.

Considerando a noção de mediação proposta por Alves (2005, p. 10), na categoria de análise OTD, reforçamos que os recursos mediado-res traduzem as condições materiais e necessidades sociais de cada tem-po, sobretudo as da classe dominante, em um contexto histórico dado. Dentre os elementos de mediação, destacam-se os conteúdos escolares, que se modificam ao sabor dos avanços e dos embates sociais. Grosso modo, se reconhece que, sob a ordem burguesa, ganhou relevo o conhe-cimento científico, que deu lugar a disciplinas escolares, corresponden-tes aos diversos campos de conhecimento. As referidas disciplinas são distribuídas em níveis escolares distintos, sob responsabilidade de pro-fessores especializados. A progressão e fragmentação do saber dá lugar a novas especialidades, que reclamam espaço nas instâncias formativas, principalmente naquelas que se ocupam da preparação para o mercado de trabalho. Esse aspecto confere mobilidade aos conteúdos escolares, em reposta a mudanças conjunturais.

A respeito dos instrumentos didáticos, a condição é bem di-versa: nessa esfera é preciso conferir destaque ao manual didático, instrumento de trabalho idealizado por Comenius, que ainda reina soberano no interior do trabalho didático, apesar dos grandes avanços experimentados no desenvolvimento de novas tecnologias de comu-nicação e informação que invadem o cotidiano. Seu domínio é tão significativo que Alves o coloca no centro da atividade educativa52. Tal recurso, há muito utilizado, vem sofrendo alterações superficiais mediante as condições materiais de seu tempo e ainda mantém sua es-sência como instrumento simplificador e limitador das possibilidades

52. Desvela assim uma percepção equivocada de parte de alguns estudiosos da área da educação que veem, na corrente pedagógica tradicional, uma pretensa centralidade no professor, quando, em verdade, é no manual didático que se observa tal foco. Da mesma forma, confere-se à educação escolanovista uma centralidade no aluno, na qual também o material didático assume primazia.

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e capacidades pedagógicas do professor, aspecto que se aprofunda se se considera a crescente superficialidade e fragmentação dos conheci-mentos veiculados pelo manual didático e seu uso como substituto, quase que absoluto, dos textos clássicos ou de outras fontes signifi-cativas de conhecimento, fato que se associa à formação precária dos educadores.

Quanto ao espaço físico, observa-se que o movimento de con-solidação da escola moderna obrigou a que também sofresse adapta-ções e se refuncionalizasse, adquirindo progressivamente caracterís-ticas que o configuraram como um local singular, com o surgimento de classes, refeitórios, bibliotecas, laboratórios e quadras esportivas53.

A transformação desse espaço se configura como um dos princi-pais indicativos da proposta da educação moderna, uma vez que opor-tuniza o atendimento simultâneo de um grande número de alunos, assegurando as condições estruturais para o ensino coletivo.

Local de vivências e experiências sociais diversificadas, a escola ocupa, hoje, espaço destacado na realidade social, assumindo funções que extrapolam as práticas de ensino, configurando-se como local pri-vilegiado para ações sanitárias, práticas eleitorais, ações filantrópicas, dentre outras.

Observa-se, no entanto, a ocorrência de um platô secular com relação às transformações estruturais do ambiente de ensino. As poucas modificações da escola em relação à sua orientação original são recentes e advêm de políticas públicas de inclusão por meio de acesso e permanência de pessoas com deficiência, o que propiciou o incremento de adequações estruturais, como a instalação de pisos especiais (táteis), rampas e, em alguns casos, elevadores e ambientes com iluminação e acústica diferenciada sem, no entanto, promoverem modificações radicais em sua estruturação. Modificação maior, hipo-teticamente, pode ser esperada por meio da universalização da escola em tempo integral, uma vez que estenderá o domínio para quase 50% das horas do dia do estudante, mas tal proposta ainda não se efetivou 53. Evidentemente, estamos falando de uma estrutura escolar padrão, composta por biblioteca, labora-tório de informática e de ciências, quadra esportiva e dependências básicas ao atendimento. Tal estrutura, lamentavelmente, existe em apenas 0,6% das escolas brasileiras, conforme atestam Soares Neto et al (2013).

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na educação brasileira54. Se observarmos a disposição do espaço físico, desde a institui-

ção da escola moderna, é possível verificar que a disposição dos alunos em carteiras, a figura do professor em pé, diante de um coletivo de alunos, o quadro (lousa), o ambiente fechado, ratificam nossas cons-tatações de pequena variação na conformação do espaço físico escolar.

Nesse espaço que é a escola moderna, adquire singularidade aquele destinado à Educação Física, foco de interesse deste estudo, ou seja, a quadra poliesportiva. Por ser um espaço destinado às práticas da cultura corporal, diferencia-se dos demais espaços educativos, nos quais são desenvolvidas as diversas disciplinas escolares. As práticas de Educação Física eram, originalmente, desenvolvidas ao ar livre e, progressivamente, o espaço passou a se configurar como palestra55, até alcançar a forma do ginásio56, espaço privilegiado para as práticas da cultura corporal na educação contemporânea.

Por ser uma espécie de salão ou classe sem paredes, a quadra expõe a prática educativa e a ação dos envolvidos ao contexto geral da escola, fato que não ocorre com as salas de aula. Tal condição é responsável por inibições, experiências de êxito, prazer, tristeza, supe-ração, alegria e euforia que, por vezes, não são suficientemente com-preendidas pelos professores das outras disciplinas, causando certo constrangimento ou reclamação referente à “bagunça”, que adquire a conotação de coisa séria, quando propõe a ir para além do lúdico, do esportivismo e do recreacionismo, conforme Freire (1997).

A observação do espaço destinado às atividades de Educação Fí-sica também revela claramente a dualidade da escola contemporânea, sendo as escolas burguesas muito bem aparelhadas e dotadas de infra-estrutura muito avançada, enquanto nas escolas da maioria o espaço se configura de forma muito elementar, não indo muito além de uma su-

54. Dados do Ministério da Educação atestam a existência de 49 mil escolas em tempo integral, ou seja, aproximadamente ¼ do total de escolas públicas do país. Apesar do aumento observado nos últimos anos, a escola em tempo integral ainda carece de uma proposta metodológica finalizada.55. Termo usado para denominar espaços destinados a lutas corporais na Grécia e Roma antigas.56. Palavra de origem grega que remete a gymnásion - o equivalente a homem nu, em analogia aos an-tigos atletas gregos - e adquiriu as características atuais a partir do século XIX, influenciada, sobretudo, pela difusão do esporte moderno. (GOELLNER, 2004).

185O Trabalho Didático em Exame

perfície plana e demarcada, que se presta às atividades da cultura cor-poral. Háque se registrar que as distinções assumem proporções ainda maiores quando comparamos as regiões mais e menos desenvolvidas.

A compreensão dos elementos constituintes da organização do trabalho didático na disciplina de Educação Física é tarefa importante para que sejam apreendidos os seus limites e as possibilidades de ex-pansão e efetivo acesso à cultura corporal, elemento enriquecedor da formação de todos os educandos. Na intenção de avançar nesse senti-do, procuraremos, na sequencia, caracterizar a organização do traba-lho didático nesse campo disciplinar.

Organização do trabalho didático no contexto da Educação Física

O cenário descrito anteriormente demonstra o quadro histó-rico no qual foi concebida e instituída a disciplina escolar Educação Física. Embora existam patentes semelhanças com o quadro de outras disciplinas, sobretudo quando a consideramos na categoria de análise OTD, claras são algumas singularidades que discorreremos a seguir.

A começar pelo estabelecimento da relação educativa entre o professor e o aluno, é possível observar, por vezes, uma perspectiva individualizada, uma vez que em uma mesma prática, a exemplo do Futsal, os participantes assumem funções distintas, ou seja, cada alu-no receberá uma informação em momento específico: aquele que está na função de goleiro, ala, fixa etc.; as intervenções individualizadas se pautam em um objetivo que se faz coletivo durante a sua concreti-zação, nesse caso, vencer uma partida. Maior individualização ocorre não só com o aluno que apresenta alguma condição que se configure como uma necessidade educacional especial, como uma deficiência, mas também com aquele que não consegue desenvolver a proposta dentro dos padrões de excelência exigidos57.57. A excelência aqui embora tenha origem no esporte de alto rendimento, em verdade, objetiva o nível médio uma vez que assim como a escola, as práticas desenvolvidas nas disciplinas, neste caso na EF se pautam pela normalização, acerca da referência mediana Comenius considerou: “[...] o nosso método

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Embora todos os alunos possam e devam vivenciar as distintas situações e posicionamentos, a intervenção do professor se mostra in-dividualizada e diferente se considerarmos a prática de um professor regente, na qual todos copiam simultaneamente a mesma lição. Mes-mo em outros exemplos da cultura corporal vivenciados nas aulas de Educação Física, como as brincadeiras populares ou jogos cooperati-vos, as intervenções adotam uma atmosfera de atenção individualiza-da, embora se sobressaiam nas práticas esportivas por apresentarem características agonísticas, ou seja, de competição.

A caracterização agonística, conforme citada anteriormente, manifesta-se principalmente nos esportes, principal elemento media-dor e de procedimento dos professores de Educação Física para apre-sentação do aluno à cultura corporal. Assim como a escola, que, com seus componentes formais dispostos em sua OTD, compromete-se a socializar o conhecimento historicamente acumulado, a Educação Física, sendo parte desse ambiente, se propõe também a disseminar a perspectiva de conhecimento humano objetivada na cultura corporal.

Dessa forma, a Educação Física também se sujeita, assim como as demais disciplinas, às condições históricas nas quais foi concebida, uma vez que:

As sucessivas formas de organização social foram marcadas por diferentes modos de produção e de organização produ-tiva, com uma divisão particular do trabalho e a instituição de meios de produção adequados a finalidades específicas, a educação não pode ser entendida à margem dessas condições materiais da vida. (LANCILLOTTI, 2006, p.35).

Nesse sentido, coube à Educação Física a disseminação da cul-tura corporal enfatizando aí, sobretudo, o esporte moderno, entendi-

encontra-se adaptado às inteligências médias (das quais há sempre muitíssimas), de tal maneira que nem faltem os freios para moderar as inteligências mais subtis (para que não enfraqueçam prematuramente), nem o acicate e o estímulo para incitar os mais lentos. [...] no exército escolar, convém proceder de modo que os mais lentos se misturem com os mais velozes, os mais estúpidos com os mais sagazes, os mais duros com os mais dóceis, e sejam guiados com as mesmas regras e com os mesmos exemplos, durante todo o tempo em que tem necessidade de ser guiados. (COMÉNIO, 1996, p.177-178).

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do esse como uma prática sistematizada dotada de uma caracterização inicialmente agonística, na qual dois adversários medem forças. Sua origem remete ao forte advento do capitalismo materializado durante a revolução industrial na Inglaterra, que se sagrou:

Primeira a aceitar o princípio da competição na vida econômi-ca, primeira a introduzi-lo no recrutamento de sua burocracia, a Inglaterra também fora a primeira a idealizá-lo no esporte, enobrecendo-o com as noções de espírito esportivo e fair play, transformando-o numa convenção social. Outras nações mo-dernas tinham que seguir o exemplo ou enfrentar graves riscos. (WEBER, apud MELO, 2010, p.107-108).

Dessa forma, o esporte, como fruto de seu meio, reproduz características que o conceituam dentro de uma esfera competiti-va semelhante ao sistema capitalista que lhe dá vida e objetivação. Adotando essa postura, o esporte se desenvolveu em diferentes am-bientes, dentre eles a escola. Na escola, tornou-se um dos principais elementos mediadores e de procedimentos dos professores para a concretização do ensino. Fonte de entusiasmo, participação e rique-za cultural, o esporte lamentavelmente tem se pautado no ambiente escolar dentro de uma perspectiva de rendimento competitivo, em acordo com o princípio da ordem dominante em que fora idealiza-do, fato confirmado pelos estudos de Castellani Filho et al (2009), que denunciam:

Essa influência do esporte no sistema escolar é de tal magnitu-de que temos, então, não o esporte da escola mas sim o esporte na escola. Isso indica a subordinação da educação física aos códigos/sentido da instituição esportiva, caracterizando-se o esporte na escola como um prolongamento da instituição es-portiva: esporte olímpico, sistema desportivo nacional e inter-nacional. Esses códigos podem ser resumidos em: princípios de rendimento atlético/desportivo, competição, comparação

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de rendimento e recordes, regulamentação rígida, sucesso no esporte como sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas etc. (CASTELLANI FILHO et al, 2009, p.53).

Diante do exposto, depreende-se que o esporte praticado como principal elemento de ensino das aulas de Educação Física tende a assumir uma conotação competitiva, enfatiza a lógica dominante, na qual não há espaço para todos, desta perspectiva o outro é visto como um adversário que deve ser subjugado a qualquer custo. As séries ini-ciais parecem gozar de certa segurança temporária, uma vez que os esportes passam a ser inseridos no contexto escolar a partir do 6º ano. No entanto, observa-se que, até mesmo em brincadeiras elementares como o “pega-pega” e o “patinho feio”, encontramos elementos que propõem uma disputa na qual existe a necessidade de um perdedor, para que outro possa vencer58.

Evidentemente, existem, nas propostas metodológicas dos pro-fessores, as exposições coletivas e intervenções - assim como os profes-sores de outras disciplinas podem adotar uma perspectiva mais indivi-dualizada de ensino. Todavia, o que reforçamos aqui é a característica predominante no ensino da Educação Física, principalmente quando abordamos o esporte: a individualização.

A individualização pode ser vista sob dois prismas: o de uma determinação atomizadora, imposta pelo sistema social vigente, que prega o individualismo e a competição, ou como uma necessidade metodológica que, se corretamente utilizada, pode ser proveitosa, por oportunizar um rico leque de experiências e aprendizagens a todos os alunos, em um contexto cooperativo, como o dos jogos coletivos, por exemplo.

Tal individualização no ensino da Educação Física, assim como a pequena atenção voltada aos manuais didáticos (o que a diferencia de outras disciplinas e da proposta comeniana de uma forma geral), faz com que o seu foco de atenção seja mais dinâmico indo do pro-58. A competitividade assume óticas ainda mais perversas se pensarmos no aluno com deficiência, que não apresenta as mesmas condições para o desenvolvimento das atividades, sendo necessárias sensibilida-de e visão crítica por parte do professor para que sua participação não se torne desagradável e excludente.

189O Trabalho Didático em Exame

fessor para o aluno e, sobretudo, para o esporte, que, na disciplina em questão, é um conteúdo central.

A mudança de foco na Educação Física pode ser encarada como uma característica natural da disciplina, que promove a disseminação de um elemento cultural que é bastante singular, ou como uma fragi-lidade de uma prática social que procura uma identidade que a con-cretize como ciência, fato que lhe conferiria maior credibilidade no âmbito escolar59.

O problema maior é que, em diversas situações, o ensino indi-vidualizado é confundido com individualista, adquirindo uma ótica excludente na qual os “melhores” estão dentro e os “piores” fora. Nesse contexto, o que dizer, então, da relação individualizada com o aluno com deficiência?

Utilizada como recurso sadio, a relação educativa individuali-zada pode oportunizar confiança ao aluno em sua inclusão nas aulas de Educação Física. Vivenciando, dentro de suas potencialidades, as práticas da cultura corporal, o aluno se vê desafiado a tentar e assim ele vai se apropriando dos ricos elementos pertencentes às práticas do universo da Educação Física.

Os elementos de mediação interpostos na relação educativa que se estabelece na Educação Física também apresentam singularida-des, a começar pelos instrumentos esportivos, tais como bolas, maças, cordas e arcos, que atraem a curiosidade do aluno, dada a sua dinâmi-ca e proposta corporal. Industrializados ou confeccionados artesanal-mente60 com a turma, como proposta de ensino, os instrumentos, so-59. Por experiência própria, presenciei inúmeras vezes professores de outras disciplinas afirmando que desejavam ser professores de Educação Física. Quando indagados dos motivos, eram taxativos ao afirmar que nós (professores de Educação Física) apenas jogávamos bola e que era mais fácil. Tal visão, ainda que simplista e fundada no senso comum, comprova uma valorização secundária atribuída à Educação Física, uma vez que sua competência fica restrita ao “jogar bola”, ignorando a formação diversificada e de exigências semelhantes às demais licenciaturas. Evidentemente a questão é bem mais ampla – devemos conhecer a história dos professores de outras disciplinas frente à Educação Física quando eram crianças. Entretanto ratifico que afirmações como a anterior, além da liberação de conselhos ou da delegação para “segurar turmas” quando professores de outras disciplinas faltam ou quando ocorrem reuniões de profes-sores, é prática usual no ensino comum, sendo ponto de discussão em diversos encontros de profissionais.60. A confecção de instrumentos para a prática de Educação Física nas escolas públicas do país se mostra comum. Embora seja uma importante prática pedagógica, deve ser utilizada de forma crítica e por esco-lha. Entretanto o que se observa é que muitas vezes essa proposta surge como única alternativa diante do não fornecimento de material didático para os professores, fato também ocorrido entre os colegas de outras disciplinas.

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bretudo a bola, apontam para uma proposta de liberdade diferenciada no ambiente de ensino, no qual a lousa, a carteira e o giz possuem soberania, conforme atesta Freire (1989).

Pelas condições materiais da escola pública brasileira, a bola é o elemento de mediação de maior uso nas aulas de Educação Física. Seja industrializada ou confeccionada pelos alunos, são inúmeras as possi-bilidades e temáticas desenvolvidas com o principal objeto da cultura corporal. Não por acaso nosso país é denominado país da bola61.

A informática, nas aulas de Educação Física da Educação Básica, assim como em outras disciplinas, ainda não adquiriu o uso esperado de suas potencialidades, sendo utilizada mais como meio de pesquisa elementar, práticas de jogos e, em alguns casos, como recurso para a melhoria da coordenação motora, existindo poucas pesquisas sobre o assunto e acerca de seu real significado no contexto educacional (SO-BRINHO et al 2004). Por vezes, o que se observa é um treinamento instrumental incapaz de desenvolver no aluno uma aprendizagem real que possa contribuir para sua autonomia diante do computador, fi-cando a crítica, uma vez que tais recursos poderiam enriquecer ainda mais a prática dos professores e facilitar grandemente o processo de inclusão por meio de suas tecnologias. Todavia, de acordo com Zanat-ta (2002, p.60):

De nada adianta pensar em preparar para o futuro como sendo uma preparação para o mercado de trabalho, tendo em vista que essa preparação está centrada no ensinamento e no apren-dizado de técnicas para o simples uso das tecnologias, ligado à lógica utilitarista-instrumental. Aprender a usar um compu-tador, por exemplo, não é garantia de que o seu uso se dará plenamente.

61. No pitoresco livro “O país da Bola” de Betty Milan, 1998, temos o seguinte trecho: “Sentindo-se que-rido ou cobiçado, o brasileiro garante que o outro lhe ‘deu bola’. Tendo enganado o opositor, vangloria-se com o verbo ‘driblar’. Tendo se enganado, confessa que ‘pisou na bola’. Se excluído de atividade ou grupo, está ‘fora da jogada’. Se em dificuldade, mas com intenção de vencer, vai ‘derrubar a barreira’ e então clama ‘bola pra frente’. Caso, no entanto, abra mão da luta, anuncia que ‘tira o time de campo’. Ameaça aposentar-se ‘pendurando as chuteiras’ [...]

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O instrumento didático que predomina na educação comenia-na, o manual didático, não prevalece no ambiente da Educação Física. Na realidade brasileira, são poucos os estados da federação que utili-zam os manuais didáticos, merecendo destaque o Paraná62, o Amazo-nas e o Mato Grosso do Sul, com as cidades de Terenos e Deodápolis. O que se observa, entre os professores de Educação Física, é o uso, na forma de manual, de algumas obras que se fizeram notáveis no campo da disciplina63 em questão e que se tornam verdadeiros manuais, pois, de acordo com Neves (2011, p. 158):

[...] é a centralidade e a exclusividade que ocupa na relação educativa que confere a tal instrumento o caráter de manual, o que o difere do livro didático. Dessa perspectiva, qualquer que seja o livro utilizado pelo professor pode assumir carac-terísticas de manual, desde que seja utilizado como única ou principal fonte de conhecimento – mesmo porque devemos considerar que seu caráter, em princípio, é este – e que seu conteúdo seja simplificado ao ponto de sonegar elementos da realidade que impeçam a autoconstrução do indivíduo rumo à emancipação humana.

Neves é muito coerente em suas afirmações, todavia considera-mos que incide em equívoco ao conceber um fenômeno de autocons-trução do indivíduo, declaração que permitiria uma interpretação de independência do indivíduo frente às bases históricas e materiais em sua formação, caso que, efetivamente, não ocorre, pois o homem, sendo fruto do meio social, o influencia e, em muito, é influenciado por esse.

É pequena a quantidade de pesquisas que abordam o uso de manuais didáticos e apostilas no ensino de Educação Física e é 62. O manual didático do Paraná apresenta o mérito de reunir produções dos professores da própria rede de ensino, o que valoriza a produção da cultura corporal local; todavia apresenta, como os demais manuais atuais, a característica da brevidade e limitações em sua densidade crítica.63. Exemplos dessas obras são: Metodologia do Ensino da Educação Física (Coletivo de Autores), O que é Educação Física (Vitor Marinho) – livro mais vendido na história da Educação Física Brasileira; Educação Física no Brasil: a história que não se conta (Lino Castellani Filho); Educação de corpo inteiro ( João Batista Freire),Transformação didático pedagógica do esporte (ElenorKunz); Educação Física Es-colar – fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista (GoTani et al).

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restrito o uso desse instrumental no interior dos sistemas públicos de ensino, todavia, seu estudo se faz necessário por se tratar de um nicho de mercado que, embora timidamente, começa a ser explorado por indústrias do ramo didático, como a Editora Positivo e o Sistema de Ensino, Família e Escola - SEFE, por exemplo.

O uso limitado por parte da comunidade da Educação Física com relação a manuais didáticos poderia conferir aos docentes uma maior liberdade na elaboração de seus recursos mediadores, possibi-litando uma maior riqueza de elementos, mas se observa que isso, de fato, não tem ocorrido, e essa “liberdade” das amarras dos manuais foi encarada com desleixo e deu lugar a práticas tecnicistas, nas quais se observa, tão somente, a eficiência do gesto esportivo para a consecução do êxito ou até mesmo espontaneístas, em uma conotação que explo-ra apenas o aspecto recreativo da cultura corporal e apequena, dessa forma, as inúmeras possibilidades de uma Educação Física “grande” 64.

Outra problemática que também se mostra oculta é o uso, por parte dos educadores, de um material ainda inferior aos manuais: “li-vretos” intitulados “1000 atividades”, “1000 brincadeiras” etc., que se apresentam tão somente como uma “receita de bolo” para uma ativi-dade recreacionista, empobrecendo e deixando a Educação Física tão aquém de suas reais possibilidades.

O atraso da Educação Física, conforme já citado, no âmbito educacional, se mostra presente também entre alguns pesquisadores que, de acordo com Neves (2011), realizam a defesa do manual didá-tico como elemento que facilita e enriquece a prática didática, quan-do, em verdade, o que se observa é a simplificação e pauperização do conhecimento historicamente construído. O que se defende é a supe-ração do manual didático, sua substituição por outras fontes de co-nhecimento, como os novos recursos tecnológicos, os textos clássicos, dentre outras fontes, que, de maneira contextualizada, possam servir à ampliação do acesso à cultura corporal para professores e alunos e o

64. Acreditamos que nenhuma ciência ou prática social é capaz de comportar toda a universalidade e complexidade da sociedade moderna. Nesse sentido, utilizamos o adjetivo grande na intenção de carac-terizar a Educação Física como uma prática capaz de feitos significativos e de impactos que extrapolem a prática corporal.

193O Trabalho Didático em Exame

domínio de um conhecimento que ofereça base crítica para a compre-ensão e transformação da realidade social.

Outro indicador da singularidade da OTD da Educação Física, conforme já salientado, diz respeito ao espaço físico dominante da disciplina em questão, ou seja, a quadra de esportes. Embora o profes-sor de Educação Física faça uso de atividades desenvolvidas em sala de aula, tais como jogos de tabuleiros, textos e filmes, a quadra se confi-gura como lócus privilegiado de sua prática didática e esperado pela maioria dos alunos, nas aulas de Educação Física.

A quadra se mostra como um dos maiores componentes mo-tivacionais para a participação dos alunos, além da própria Educação Física que, para Winterstein (2004), já se apresenta como uma “atra-ção natural”, ao oportunizar a liberdade do correr, saltar, pular, enfim, conforme apresenta Freire (1989), ser criança, tendo uma educação de corpo inteiro.

Espaço muitas vezes incompreendido, por se diferenciar das demais estruturas que compõem a escola, as quadras também devem ser vistas como “sítios de criatividade crítica”, em um espaço que pode se prestar à luta contra-hegemônica, isto é, a escola. Para tanto, a va-lorização da disciplina como prática social deve partir da ação crítica dos professores, no sentido de oportunizar aos alunos a compreensão e vivência do valor da Educação Física como uma disciplina impor-tante para sua formação integral, por meio do amplo acesso à cultura corporal.

Nas aulas de Educação Física, é possível observar, por vezes, aquela disciplina linear que caracteriza o trabalho nas classes: ela se faz presente nas filas, competições e atividades que exigem uma maior concentração por parte dos praticantes, mas é perceptível uma maior descontração entre os que participam da Educação Física. Descontra-ção que não pode ser confundida com licenciosidade, uma vez que tal espaço deve ser compreendido como local para disseminação do conhecimento socialmente produzido e que diz respeito à cultura cor-poral.

Conhecimento esse que deve explorar a prática dos esportes

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“da” escola, dos jogos, das brincadeiras, das lutas, da capoeira65, dos exercícios, sempre de forma contextualizada, em uma composição maior que a quadra e a escola, que é a sociedade, ou seja, é necessário que, conforme frisou Saviani (2003), ofereçamos ao aluno, ao ser hu-mano, aquilo de mais relevante que a humanidade produziu. Dessa forma, a proposta vivenciada na cultura corporal irá adquirir um sig-nificado concreto por parte dos participantes e, provavelmente, maior consideração no ambiente escolar.

Considerações Finais

A análise estabelecida acerca da organização do trabalho didáti-co na Educação Física permitiu apreender que esse campo disciplinar tem características singulares com respeito às demais disciplinas, que lhe conferem um caráter mais dinâmico, na medida em que assegu-ram ao professor relativa autonomia para o desenvolvimento da tarefa educativa. Essa condição, se bem compreendida e explorada, pode dar lugar a práticas educativas muito enriquecedoras para o amplo e he-terogêneo leque de alunos que tem acorrido à escola contemporânea.

Com propostas coerentes, que respeitem o ser histórico do alu-no e do professor, é possível desenvolver situações de ensino que aten-dam, de maneira positiva, a todos os alunos, independentemente de suas condições biopsicossociais.

Entretanto, para corresponder a essa possibilidade, é importan-te que os professores assumam sua função política, de compromisso com a formação das novas gerações, que sua ação educativa seja guia-da pela intenção de favorecer o acesso ao conhecimento socialmente acumulado, no caso específico da Educação Física, aos conteúdos da 65. A Capoeira combina elementos da dança, da luta, do jogo e da música, sendo um elemento da cultura corporal que merece destaque. De origem africana, encontrou, no Brasil, elementos que a transformaram,dando uma nova configuração e estilo. Reflexo de um ideário de libertação e superação e resistência da escravidão, sua história é contada em suas diversas ladainhas, como a seguinte, de autor desconhecido: [...] Foi no tempo escravidão... Que o negro apanhava sem razão [...] Mas meu Deus bem saber que o negro é gente [...], pois tem carne, tem osso e coração. , 2012. Disponível em: http://www.magalicapoeira.com/musicas-de-capoeira/ladeira-do-pelourinho-tempo-da-escravidao-autor-desco-nhecido. Acesso em Junho de 2014.

195O Trabalho Didático em Exame

cultura corporal, o que implica as diversas manifestações da lingua-gem corporal, abarcando os jogos, esportes, lutas, danças e demais ma-nifestações que se façam representar pela corporeidade.

Para atender a esse objetivo é necessário que os professores tenham, em sua formação (de base e continuada), suporte teórico para compreenderem plenamente o contexto histórico em que estão mergulhados, que possam reconhecer os limites e possibilidades de sua ação, base para assumir um papel ativo, no sentido de favorecer a transformação do real por meio da tarefa educativa.

Nesse caminho, a percepção acerca de como se processa a Organi-zação do Trabalho Didático, em especial na Educação Física, será um dos elementos fundantes para o salto qualitativo em prol de uma educação que contribua para a transformação social e que marque o pressuposto funda-mental a todo professor de Educação Física – educar pela cultura corporal.

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199

Maria Helena Batista de Almeida66

Samira Saad PulchérioLancillotti67

Introdução

Em fins do século XIX, a educação escolar ganhou corpo nos países de capitalismo avançado, como forma de responder à deman-da social por homens letrados, necessários à expansão da sociedade burguesa em crescente urbanização e industrialização. O domínio de leitura, escrita e cálculo passou a ser essencial à formação dos traba-lhadores produtivos e também serviu de incremento à criação de um mercado mundial, objetivo primário da burguesia desde as origens do capitalismo.

Souza (2010) sinaliza que, nesse processo, o instrumento de trabalho posto a serviço da formação de leitores nas escolas foi, desde o início, o manual didático, que respondia plenamente à necessidade de uma formação de caráter instrumental e técnico, mas, progressiva-mente, a partir da segunda metade do século XIX, surgiu uma pro-dução literária, com foco no público infantil, que poderia servir, com larga vantagem, à formação das novas gerações:

A necessidade de ampliar o mercado incluiu a ideia de se pensar numa literatura destinada à infância, na qual a histó-ria, com o recurso da ilustração, seduziria pequenos leitores.

66. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Mestrado Profissional em Educação, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - PROFEDUC/UEMS. Gestora de Atividades Educacio-nais da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul - SED/MS.67. Doutora em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP, Docente do Programa de Pós--Graduação em Educação, Mestrado Profissional em Educação - PROFEDUC/UEMS - e do Curso de Pedagogia/UEMS.

Clarice Lispector e as Sutis Mensagens do Conto Infantil “A Vida Íntima de Laura”

200 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

Livros almejados são livros vendidos. É o mercado produzin-do conceitos como o de infância e de literatura infantil, para viabilizar a circulação da mercadoria livro infantil, destinada especificamente a crianças. (SOUZA, 2010, p. 23).

Nesse mercado, apesar de haver muitos livros elaborados de for-ma aligeirada, movidos exclusivamente pela lógica do lucro, há uma literatura primorosa que pouco tem penetrado o espaço escolar, ou que é abordada de forma secundária; são obras produzidas no Brasil e fora dele, capazes de encantar a qualquer leitor, independentemente da idade.

Na intenção de diferenciar a “literatura-arte” da “pseudolite-ratura”, Souza sinaliza a importância de se apreciar o valor estético, histórico e pedagógico das obras:

É com elementos estéticos que se constrói a essencialidade in-trínseca e imanente da literatura, o que lhe confere estatuto de arte, e é da escolha e da organização desses elementos que bro-tam o mágico e o encantatório, que lhe são próprios. Quanto a atribuir uma dimensão pedagógica para a obra infantil, não sig-nifica assumir um tipo de literatura diretiva, em que a intenção pedagógica elimina ou reduz o espaço estético. Ao contrário, implica que toda e qualquer narrativa que apresente alta den-sidade estética traz aprendizagens, seja no campo da ética, da afetividade ou do conhecimento [...] E, por fim, um elemento de extrema importância e do qual as discussões sobre literatura geralmente passam ao largo é a dimensão histórica contida no conto, na fábula, em qualquer gênero literário. Essa é a natureza que humaniza a literatura, que a faz ser reconhecida como pro-duto humano localizado em determinado tempo e circunstân-cia, sofrendo-lhes as injunções. (SOUZA, 2010, p. 18).

É nessa perspectiva que se coloca o presente trabalho, no qual se objetiva realizar uma breve análise do conto “A vida íntima de Laura”,

201O Trabalho Didático em Exame

de Clarice Lispector. A análise será guiada pelas três dimensões literárias – histórica, estética e pedagógica - propostas por Souza, no livro intitu-lado “Literatura infantil na escola” (2010), no qual a autora ressalta que, para avaliarmos uma obra literária é necessário considerar as referidas dimensões. A dimensão histórica, relacionada com o tempo histórico em que a obra foi concebida, reveladora das circunstâncias e valores da época; a dimensão estética, que engloba todos os aspectos da obra, não apenas a estética das palavras, mas incluindo a ilustração, a disposição do texto no papel e, por fim, a dimensão pedagógica inerente à obra literária, relacionada ao fato de ensinar algo ao leitor.

A autora e a obra

Clarice Lispector é considerada uma das maiores escritoras bra-sileiras do século XX. Nasceu em 10 de dezembro de 1920, na cidade de Tchetchelnik, na Ucrânia, filha de Pinkhas e Maria Lispector, sen-do batizada com o nome de Haia Lispector. Sua família, de origem judaico-russa, chegou ao Brasil em 1922, no contexto da Guerra Civil Russa (1918-1921), marcada pelo antissemitismo. Com a mudança, a família imigrante adotou novos nomes e Haia passou a chamar-se Clarice. Residiram em Maceió, Recife, Rio de Janeiro e, mais breve-mente, em Belém. Clarice formou-se em Direito, em 1948, no Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista e iniciou sua carreira lite-rária.Viveu muitos anos no exterior, morou em Nápoles (Itália), Ber-na (Suíça), Washington (EUA) e Torquay (Inglaterra) em função do casamento com o Diplomata do Ministério das Relações Exteriores, Maury Gurgel Valente, que fora seu colega no curso de direito, com quem teve dois filhos.Estreou oficialmente na literatura aos 23 anos, com a publicação do romance “Perto do coração selvagem”, em 1943. Mas, sua produção literária havia começado há mais tempo, com de-zesseis contos publicados em jornais e revistas, além de outros escritos não publicados.

O segundo romance, “O Lustre”, é de 1946. Em 1952 publicou

202 Ana A. Arguelho de Souza, Carla V. Centeno, Samira S. Pulchério Lancillotti (orgs.)

“Alguns Contos” e já trabalhava no romance “A Maçã no Escuro”, que foi editado em 1961. Seu novo livro de contos, incorporando o pri-meiro, “Laços de Família”, foi lançado em 1959 e em 1964 um novo livro de contos “A Legião Estrangeira”. Em 1968 saía outro romance “A Paixão Segundo G.H”.

Em 1969, publicou “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Praze-res”. Em 1975 reuniu uma nova coletânea de contos, denominada “Fe-licidade Clandestina”. Entre 1976 e 1977 concluiu seus dois últimos romances, “A Hora da Estrela” e “Um Sopro de Vida”.

Clarice traduziu e adaptou autores clássicos para coleções in-fanto-juvenis, como Oscar Wilde (o retrato de Dorian Gray), Edgar Allan Poe (Contos) e Júlio Verne (A ilha misteriosa); assinou, tam-bém, a tradução de alguns best-sellers, como livros de Agatha Christie e Anne Rice.

Em teatro, traduziu os clássicos “A casa de Bernarda Alba”, de Federico Garcia Lorca; “Little Fox”, de Lilian Hellman, e “HeddaGa-bler”, de Henrik Ibsen.

Clarice escreveu cinco obras para crianças: “Mistério do Coe-lho Pensante” (1967); “A mulher que Matou os Peixes” (1968); “Qua-se de verdade” (1978); “Como nasceram as estrelas” (1987) e “A vida íntima de Laura”, (1974), cuja análise apresentamos na sequência.

A vida íntima de Laura: dimensões literárias no conto de Clarice Lispector

O conto “A vida íntima de Laura” provoca no leitor, à primeira vista, certa curiosidade a partir do próprio título, por abordar a vida íntima de alguém. Quem seria Laura?

O livro trata da vida de uma galinha, personagem que foi recor-rente na escrita de Clarice Lispector68.

Além da curiosidade inicial, advinda do titulo, a impressão que 68. Os conhecedores de sua literatura reconhecem que a galinha foi um animal que despertou interesse em Clarice, pois a escritora possui outros contos que giram em torno dessa personagem, como é o caso do “O ovo e a galinha”, “Uma Galinha”, “Uma história de tanto amor” e “Legião Estrangeira”.

203O Trabalho Didático em Exame

se tem no primeiro contato com o livro é de que Laura seria uma me-nina e não uma galinha. Mesmo com as galinhas desenhadas na capa, a personagem central causa surpresa, ou seja, é um livro instigante. É interessante verificar o significado e a relação que essa personagem possui na produção da autora, pois, ao ler seus contos, percebemos que existe uma relação simbólica da galinha com a condição feminina em nossa sociedade.

O exemplar analisado é o da editora Rocco que apresenta uma capa colorida em que sobressaem as cores: amarela, marrom e vermelha. A ilustração, apesar de conter um colorido atrativo aos olhos infantis não confere às personagens, ou à personagem principal, características humanas, sendo, contudo, uma ilustração artística bem elaborada. A ga-linha que ocupa o centro da capa possui o pescoço sem penas.

Percebemos, então, que o que poderá fisgar o leitor não será, necessariamente, o trabalho de ilustração, mas sim a ideia e a escrita do texto.

Na primeira página, a escritora avisa que vai logo explicar o que significa “vida íntima” e, após a explicação, de forma ligeira e delicada, faz uma aproximação do leitor com o texto por meio de uma brinca-deira ao sugerir: “[...] adivinhe quem é Laura” Seguindo o próprio ti-tulo a autora consegue logo de inicio estabelecer uma intimidade com o leitor. Vejam:

Vou logo explicando o que quer dizer ‘Vida íntima’. É assim vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo o que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa. Pois vou contar a vida íntima de Laura. Ago-ra adivinhe quem é Laura. Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar. E duvido que você acerte! Dê três palpites. (LIS-PECTOR, 1999, não paginado).

Esse trecho inicial desperta não apenas uma sensação de apro-ximação como também um sentimento de ternura ao dizer “Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar” expressão de afetividade que con-

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diz com intimidade. É a partir desse tom de aproximação, intimidade e afetividade que a autora dá inicio ao seu enredo, descrevendo a vida da personagem, Laura.

E a personagem longe de ser uma princesa encantada comum nos textos infantis não passa de uma “galinha muito da simples”. É uma história bem diferente e que brinca com os contos de fadas tradi-cionais; assim, por exemplo, utiliza-se do termo “Era uma bela noite feliz” e em seguida vem com “Bela coisa nenhuma! Porque foi terrível! Um ladrão de galinhas tentou roubar Laura”. (LISPECTOR, 1999, não paginado).

Temos aqui uma desconstrução do personagem idealizado e, a partir de então todas as características de imperfeição, que poderiam ser ocultadas, são reveladas na forma de verdades que precisam estar presentes no texto, pois consistem na essência do que será contado.

A dimensão histórica desse conto, escrito no ano de 1974, mos-tra não apenas a desconstrução do personagem comum de contos de fadas, mas é uma característica das obras de Clarice tratar de perso-nagens simples, do cotidiano, com enfoque no aprofundamento de emoções e sensações. Podemos considerar esta característica como ex-pressão da modernidade literária:

A literatura traduz subversão aos tradicionais valores burgue-ses e, paulatinamente, são redimensionadas todas as categorias estéticas presentes na obra literária. Uma nova concepção de tempo pauta as narrativas, agora operadas por fluxos de cons-ciência e não mais por cronologias, como nas literaturas ante-riores (SOUZA, 2010, p.56).

Aos conhecedores de outras obras de Clarice a leitura de “A vida [...]” faz lembrar um pouco da personagem Macabéia de “A hora da Estrela”, um anti-herói, pois, logo de início uma das revelações das características da personagem é de que Laura possui o pescoço mais feio já visto no mundo, é bastante “burra”, mas tem seus “pensamento-

205O Trabalho Didático em Exame

zinhos”, “sentimentozinhos” e tem cheiro de “morrinha” debaixo das asas.

Na sequência da história há mais verdades a respeito da vida de Laura, como o fato de ela ser simpática, viver no quintal de Dona Lu-ísa com outras aves, ser casada com um galo chamado Luís que gosta muito dela, mas às vezes briga com ela, “briguinha à toa”.

Tais características nos fazem assemelhar Laura a uma dona de casa, comum, feia, mas com beleza interior (ressaltada como o mais importante). Ao mesmo tempo em que aproxima as características da galinha às de um ser humano, a autora estabelece uma diferenciação da galinha com as pessoas, para também evidenciar verdades existen-tes nas pessoas, “Pena que Laura não goste de pessoa alguma. Ela qua-se nunca tem sentimentos, como eu disse. Na maioria das vezes tem o mesmo sentimento que deve ter uma caixa de sapatos” (LISPEC-TOR, 1999, não paginado).

Mais adiante, ao ser questionada por Xext (extraterrestre que surge na história) sobre como são as pessoas por dentro, Laura res-ponde que os humanos são muito complicados por dentro, eles até se sentem obrigados a mentir.

O que se torna relevante na personagem principal representada na figura de uma galinha é a condição feminina em uma sociedade que estabelece um papel para a mulher, estereotipado, que deve ser com-preendido como natural e intrínseco ao gênero feminino.

Podemos perceber palavras e expressões, que se aplicam à figura de Laura e que servem para caracterizar o sexo feminino, o que é de-monstrado de maneira irônica, tais como o fato de ser muito bem ca-sada, ser vaidosa, ser mãe dedicada e orgulhosa, ter amigas, “sentimen-tozinhos” e “pensamentozinhos”, ou seja, traduz a visão que se tinha da maioria das mulheres, à época em que o livro foi escrito, década de 1970. Certamente, o contexto em que o futuro das meninas se baseava no casamento e seus pensamentos não passavam de “pensamentozi-nhos”, todos os aspectos relativos à vida da mulher eram secundariza-dos, ela ocupava um papel menor, era vista como mero coadjuvante na sociedade.

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Essa visão da condição feminina é ainda presente na sociedade contemporânea, mas podemos afirmar que na década de 1970 e em períodos anteriores, esse estereótipo era mais marcado. A esse respei-to, trazemos à consideração uma ideia desenvolvida por Marx e Engels na obra “Ideologia Alemã” (1984), que aborda essa questão relacio-nando-a à divisão do trabalho e à propriedade privada.

Com a divisão do trabalho, na qual todas estas contradições es-tão dadas e que repousa, por sua vez, na divisão natural do traba-lho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas umas às outras, dá-se ao mesmo tempo a distribuição, e, com efeito, a distribuição desigual, tanto quantitativa como qualitativamente, do trabalho e de seus produtos: ou seja, a propriedade, que já tem seu núcleo, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do marido. A escravidão na família, embora ainda tosca e latente, é a primeira propriedade, que aqui, aliás, já corresponde perfeitamente à de-finição dos economistas modernos, segundo a qual a proprieda-de é o poder de dispor da força de trabalho de outros. Além dis-so, divisão do trabalho e propriedade são expressões idênticas: a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em relação ao produto da atividade. (MARX E EN-GELS, 1984, p.46. Grifo nosso)

Em outra obra escrita por Engels, intitulada “A origem a fa-mília, da propriedade privada e do Estado” (2012), é explicado que a primeira oposição de classes que aparece na história está na relação antagônica entre homem e mulher, o autor afirma:

Hoje posso acrescentar que a primeira oposição de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher, na monogamia e que a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um

207O Trabalho Didático em Exame

grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo, inaugura, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período que dura até nossos dias, no qual cada progresso é si-multaneamente um relativo retrocesso e no qual o bem-estar e o desenvolvimento de uns se realizam às custas da dor e da repressão de outros. Ela é a forma celular da sociedade civiliza-da, na qual já podemos estudar a natureza das oposições e das contradições que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade. (ENGELS, 2012, p.67. Grifo nosso)

O marco da submissão feminina realiza-se com a monogamia. Por meio da obra de Engels podemos observar que a monogamia surge da concentração de riquezas de um individuo masculino e sua necessidade de transmitir herança somente aos seus próprios filhos, excluindo os filhos que sua mulher possa ter tido com outros homens. Devido a isso é que é estabelecida a monogamia exclusiva da mulher, “[...] mas não a do homem, tanto assim que a monogamia daquela não constitui o menor empecilho à poligamia, oculta ou descarada, desse”. (ENGELS, 2012, p. 75).

Outro aspecto importante que devemos levar em consideração a respeito da situação da mulher na sociedade, é que nem sempre ela foi sobrepujada pelo homem, cuja condição é historicamente dada:

Umas das ideias mais absurdas transmitidas pela filosofia do século XVIII é a de que, no inicio da sociedade, a mulher teria sido escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até em parte na superior da barbárie, a mulher não só é livre, mas tam-bém muito considerada. (ENGELS, 2012, p.53).

E Engels prossegue dizendo:

A família individual moderna está baseada na escravidão do-méstica transparente ou dissimulada, da mulher e a sociedade

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moderna é uma massa cujas moléculas são compostas exclu-sivamente por famílias individuais. Hoje em dia é o homem que, na maioria dos casos, tem de ser o suporte, o sustento da família, pelo menos nas classes possuidoras, e isso lhe dá uma posição de dominador que não precisa de nenhum privilégio legal especifico. Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. (ENGELS, 2012, p.74).

As personagens de Clarice que são personificadas na galinha, tanto nesse como em outros contos, têm o sentido de informar a res-peito da vida imposta às mulheres; a galinha é a caracterização da mulher enquanto individuo passivo e doméstico que deve servir às necessidades dos homens, dando-lhes prazer e perpetuando a espé-cie humana. No meio da história, podemos fisgar a condensação das três dimensões da literatura infantil, propostas no livro de SOUZA (2010). As dimensões histórica, estética e pedagógica. A dimensão histórica está relacionada às circunstâncias e aos valores do tempo em que a obra foi criada; a dimensão estética diz respeito a todo arcabou-ço constitutivo da obra que enriquece a sensibilidade do leitor com va-lores formativos, enquanto a dimensão pedagógica consiste na ligação da literatura com a educação, no sentido de tornar o leitor consciente do mundo em que vive.

Quanto à dimensão histórica, a metáfora da autora é ressaltada para abordar as diferenças de gênero (masculino X feminino) em nos-sa sociedade. Luís, o galo, marido de Laura, passeia o dia inteiro com o “[...] peito inchado de vaidade entre as galinhas, pois pensa que ao cantar de madrugada manda na Lua e no Sol” (LISPECTOR, 1999, não paginado), ou seja, o homem tem todo um orgulho de existir por pensar que manda nas forças da natureza, enquanto que a mulher não passa de um ser assustado, “destrambelhado” e sem confiança, “Laura quase não deixa gente nenhuma fazer carinho nela. Porque tem um medo danado de pessoas. Se alguém chega perto dela, sem ser para dar milho, ela foge com grande barulheira, cacarejando feito uma doi-da. Ela cacareja assim: não me matem! Não me matem!”. (id. Ibid.)

209O Trabalho Didático em Exame

O desespero de Laura é clara expressão de insegurança diante de um mundo que pode ser perigoso para as mulheres.

Nesse trecho fica demonstrada a fragilidade feminina, e a nar-radora segue no próximo parágrafo dizendo: “Mas ninguém tem in-tenção de matá-la porque ela é a galinha que bota mais ovos em todo galinheiro e mesmo nos da vizinhança”, ou seja, se o individuo for útil, ele será protegido, pois existe um interesse social para mantê-lo pro-duzindo. Em seguida, em tom bastante irônico, a narrativa indica que Laura vive “apressadinha” e acrescenta “Por que tanta pressa, oh Lau-ra? Pois ela não tem nada o que fazer. Essa pressa é uma das bobagens de Laura” (id. Ibid.), percebe-se a correlação com a vida adulta, em que as pessoas vivem correndo, apressadas, mesmo quando não têm o que fazer o que seria uma bobagem. Trata-se de uma marca característica do mundo moderno, a partir da dimensão histórica, em que se perce-be uma crítica à sociedade contemporânea.

“Mas ela é modesta: basta-lhe cacarejar um bate-papo sem fim com as outras galinhas”. Desde a dimensão histórica, observa-se mais esta característica da vida moderna, em que as pessoas vivem apressa-das, dizendo que estão na correria, mas, ao se depararem com amigos ou colegas, ficam em um bate-papo infinito.

Ao descrever o galinheiro onde vive a personagem, a narradora indica que “As outras são muito parecidas com Laura”, apenas uma ca-rijó é diferente das demais, mas elas não desprezam a diferente – nesse trecho, observa-se uma dimensão pedagógica do conto, que ensina a não ter preconceitos, que não deve haver discriminação com respeito às diferenças.

Podemos perceber a dimensão histórica por meio da diferença de valor enunciada entre o galo e a galinha, as características da utili-dade do individuo que tem uma função em uma sociedade produtiva e o comportamento moderno de pressa. Já a dimensão pedagógica se evidencia no relato da importância da amizade, de um bom bate-papo e da aceitação das diferenças. O conto enfatiza o respeito para com as raças diferentes, uma raça não deve ser considerada melhor ou pior que outras, ponto em que as dimensões histórica e pedagógica apare-

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cem entrelaçadas na dimensão estética de uma narração criativa.Mais à frente aparece também o componente estético do mara-

vilhoso, universo encantado que faz parte da literatura infantil, pois surgirá um ser extraterrestre denominado Xext que promete proteger Laura de ser comida.

São componentes estéticos estruturantes dos contos em geral as personagens, o lugar, o tempo, a linguagem, a organização e o foco narrativo e tudo o mais que envolva sua trama. Todavia, aquelas narrativas voltadas à infância, desde tempos imemoriais, incluem um elemento fundamental que as distingue e as assinala como literaturas apropriadas à leitura infantil. É o maravilhoso, categoria indicativa do universo encantado que povoa a litera-tura, tornando-a mágica e encantatória. (SOUZA, 2010.p.60).

O tema morte também será desenvolvido no enredo através do medo de Laura de se converter em refeição. Ao pedir proteção ao extra-terrestre, o tema morte é explorado de maneira leve e bem humorada.

Uma das partes engraçadas do conto é quando, no diálogo com Xext, Laura diz que gostaria de ser comida por Pelé. No ano em que o conto foi escrito (1974) Pelé estava no auge do sucesso e, ironicamen-te, Laura gostaria de servir de refeição para uma pessoa importante, reconhecida, popular. Aliás, podemos verificar na obra a ironia refi-nada, característica primordial da escrita clariceana. Souza considera que é prerrogativa dos grandes escritores “[...] uma literatura-arte, que expressa por meio da ironia, do humor, da leveza, ou qualquer outro componente, as agruras de seu tempo, sem deixar-se contaminar pela barbárie”. (2010, p.58).

Clarice conversa com as crianças a respeito da estranheza que causa o fato de o ser humano criar os bichos e matá-los. Esse assunto é recorrente na vida das crianças, o estranhamento de saber da morte de um animal que vai parar no prato das refeições. O assunto morte é trabalhado juntamente com o nascimento, pois a personagem princi-pal tem um grande medo da morte, mas também dá a luz a um lindo

211O Trabalho Didático em Exame

pintinho chamado Hermany.A galinha representa o destino de todos os seres vivos, que é a

morte e, contraditoriamente, representa a vida. Se, por um lado, tem consciência do permanente risco da morte, por outro, sabe-se porta-dora da capacidade de gerar o ovo, que representa o início ou origem da vida.

No texto fica claro que Laura não vai ser morta, pois é a galinha que mais bota ovos do galinheiro, tanto é assim que foi emprestada para o quintal vizinho e lá sentiu saudades da vidinha boa que levava junto a seus amigos e familiares, mas no momento em que fez amizade com outras galinhas, a vida ficou mais prazerosa e o tempo em que permaneceu naquele quintal estranho passou mais rápido.

A questão da amizade é levantada mais uma vez como uma sal-vação, uma relação que dá prazer à vida, em oposição à solidão, pois, em determinado momento a narradora avisa ao leitor que se este se de-parar com uma galinha, meio ruiva, meio marrom e de pescoço muito feio é como se estivesse vendo Laura e que sempre existirá uma galinha como ela e uma criança como a que está lendo ou ouvindo a histori-nha, o que é ótimo, pois dessa forma nunca nos sentimos sozinhos no mundo.

Quanto à “burrice” da personagem principal, a narrativa indica que ela é relativa, pois ao mesmo tempo em que Laura é apresentada como um ser “burro”, com seus “pensamentozinhos”, tem seus mo-mentos de lucidez, pois, apesar da mania de bicar e comer todo tipo de “porcaria”, Laura tem a astúcia de não comer vidro. Outro indica-tivo de sua esperteza surge no momento em que a personagem escuta o diálogo da cozinheira com dona Luísa (a dona do quintal) dizendo que Laura deve ser morta antes que envelheça ou pare de botar ovos. Nesse momento, a galinha que é considerada um tanto “burrinha” suja-se toda de barro (era vaidosa e conhecida por ser a mais limpa do galinheiro), para passar despercebida. Em seu lugar quem morre é Zeferina, prima em quarto grau de Laura e muito parecida com ela.

Essas atitudes de Laura fazem com que ela seja considerada uma galinha especial e bem “vivinha” duplo sentido de viva e esperta.

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No transcurso do conto, a autora desnuda a personagem, sua in-timidade contraditória é revelada, o que a aproxima da vida real. Fica evidente que Laura não tem nada de tola, pois, além de ter se esqui-vado da morte, seus pensamentos revelam ser uma criatura esperta, com sentimentos reais e verdadeiros com os quais o leitor pode se identificar.

Considerações finais

A partir da análise, é possível perceber que “A Vida Íntima de Laura” é uma obra infantil moderna que traz como principal elemen-to o questionamento dos acontecimentos cotidianos de seu tempo, com a participação do leitor. Dessa forma, aguça o imaginário, aborda vários temas humanos como: nascimento, morte, diferença, papel da mulher, solidão e amizade, dentre outros.

A obra provoca a integração do leitor com a história, por meio de uma narrativa dialógica, na qual o leitor é permanentemente ques-tionado e convidado à reflexão. O conto respeita a inteligência infan-til, sai do senso comum e apresenta uma história inusitada repleta de contribuições relevantes.

O que dizer então do caráter provocador por meio da demons-tração irônica da condição feminina? O conto denuncia os estereóti-pos que a sociedade estabelece acerca da mulher, o pensamento hege-mônico que atribui à mulher uma posição secundária e, como vimos através do texto de Marx e Engels, “A Ideologia Alemã”, essa situação de subalternidade de gênero se inicia no âmbito familiar como protó-tipo da diferenciação de classe que marca a sociedade burguesa. Por aí podemos aclamar a literatura como um meio de estabelecer influ-ências estratégicas, com potência para promover uma critica social de caráter transformador, instrumentalizando o leitor para compreender a sociedade em que vive e assumir sua posição em favor da superação das desigualdades sociais.

A professora Ana Arguelho de Souza esclarece de forma deta-

213O Trabalho Didático em Exame

lhada esse poder da obra literária (SOUZA, 2010, p.68) ela retoma o que nos foi ensinado por Marx e Engels na obra “A Ideologia Alemã”, quanto ao aspecto de o homem ser uma espécie biológica diferenciada dos demais animais pela formação da consciência que surge pela neces-sidade da comunicação, ou seja, da necessidade de os seres humanos comunicarem-se entre si. Dessa forma a linguagem e a consciência cor-respondem a uma totalidade única. Então, literatura é linguagem e, a partir do momento em que o ser humano tem acesso à grande literatura, encontra elementos para ampliar sua consciência e sua humanidade.

Dessa forma o papel da literatura na formação humana se revela:

Se esta proporcionar o encontro do leitor com grandes perso-nagens, dotadas das virtudes próprias de outras épocas, natural-mente o leitor vai absorvendo essas virtudes para, mais tarde, fil-trá-las pelo olhar de sua época. Se a obra colocar o leitor diante de situações éticas, repetidas vezes, por meio de muitas leituras, ele acabará por desenvolver comportamentos éticos. E, ainda, se a linguagem da obra for carregada de elementos estéticos de grande densidade, o leitor, ao longo de muitas obras, refinará sua sensibilidade e sua linguagem. E, finalmente, se a obra, ainda que ficcional, estiver marcada pelas pegadas humanas dos ante-passados, se por meio dela o leitor vislumbrar outros homens mergulhados em outras civilizações, paulatinamente ele se reco-nhecerá humano e compreenderá que faz parte dessa prodigiosa aventura que é a de escrever a história e construir civilizações. Isso contribuirá para fazer do leitor um ser atuante na sociedade, com força de intervenção social. (SOUZA, 2010.p.68).

Após a leitura desse conto infantil percebemos que há muitos significados que ainda podem ser descobertos e interpretados. A li-teratura de Clarice é rica e expressa inteligência e ironia. O próprio título da obra, já é instigante por abordar a “vida intima” e, ao longo do conto, percebemos que a narrativa realmente preenche a expecta-tiva do curioso título.

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Referências

ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012.

LISPECTOR,Clarice. A vida íntima de Laura. Rio de janeiro: Rocco, 1999._____. Instituto Moreira Salles. Disponível em: http://claricelispectorims.com.br/books/bookPerBook/27. Acesso em: 30 jun. 2014.

______. A vida íntima de Laura. Rio de janeiro: Rocco, 1999._________. Disponível em: http://portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/ClariceLispector%281%29.pdf. Acesso em: 06 jul. 2014.

______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

______. O Lustre. Rio de Janeiro: Ediouro, [1987?]. (Coleção Prestígio).

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 5ed. São Paulo: Hucitec, 1984.

SOUZA, Ana A. Arguelho. Literatura infantil na escola: a leitura em sala de aula. Campinas, SP: Autores Associados, 2010.

______. O Humanismo em Clarice Lispector: um estudo do ser social em “A hora da estrela”. São Paulo: Musa Editora, 2006.

215O Trabalho Didático em Exame

Vivaldo Bispo dos Santos69

Ana Aparecida Arguelho de Souza70

Na realidade, é completamente inconcebível sustentar a validade atemporal e a permanência de

qualquer coisa criada historicamente. (grifo do autor)

(Mészáros, 2005, p. 63)

Introdução

A entrada da filosofia enquanto disciplina no universo da escola tem tido um caminho tortuoso e, ainda mais problemático, é o modo como seus conteúdos se organizam no interior de manuais didáticos. Trata este texto de aventar algumas aproximações acerca da situação do ensino de filosofia na escola, a partir do debate instaurado na lite-ratura brasileira produzida pelos pesquisadores da área e de uma hipó-tese de trabalho que vem sendo investigada e discutida dentro da linha de pesquisa: Organização do Trabalho Didático.

Segundo informações de professores da rede, os alunos sequer levam o pesado manual de filosofia para a escola. A hipótese é a de que o ensino da filosofia, na escola média, veiculada pelos manuais didáti-cos em uso no Brasil, contemporaneamente, trabalha com conceitos 69. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação – PROFEDUC, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Professor de filosofia da rede pública estadual de ensino de MS.70. Doutora em Letras pela UNESP /Assis. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Mestrado Profissional em Educação – PROFEDUC; do Programa de Mestrado Acadêmico de Letras e do Bacharelado em Letras – Unidade de Campo Grande / UEMS.

A Filosofia no Manual Didático: Conceito e Materialidade em Conforonto

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ecléticos, quando não extemporâneos e, portanto, obsoletos, resul-tando em total desinteresse por parte dos alunos. A formulação dessa hipótese deu-se com base no exame de manuais didáticos adotados na escola media brasileira, com a orientação do Ministério da Educação e Cultura – MEC, e se desdobra nas seguintes premissas: a) ao estudar o ser humano, os conceitos presentes nos manuais não expressam a na-tureza histórica das questões humanas, pautando-se inclusive em uma concepção atemporal de homem; b) os mesmos conceitos apresentam vestígios vulgarizados, das concepções filosófica e teológica, próprias da Idade Antiga e Média, quando não, da modernidade, problemá-ticas porque ultrapassadas e, pior que isso, dentro da ótica da espe-cialização que marca o conhecimento nesta sociedade. O conceito de homem, por exemplo, ora encontra guarida na antropologia, ora na biologia, e até mesmo na arqueologia; c) as concepções constituem--se em fragmentos soltos, que expressam a anti-razão própria deste tempo, não apresentando nenhuma base teórica que permita ao aluno compreender o sentido da sua existência e de sua função social. Daí o desinteresse pela disciplina.

O objetivo da investigação é verificar, se confirmadas as hipóte-ses, a validade ou não do manual didático de filosofia na escola, uma vez que o entendimento aqui é o de que o homem é um ser histórico e a apreensão de sua natureza demanda um método de trabalho que considere a materialidade da vida como ponto de partida para a refle-xão em sala de aula, como forma de conduzir o aluno a compreender a razão histórica da sua existência. O manual didático de filosofia, nem de longe, abrange tais considerações e entendimentos acerca da natu-reza histórica do homem.

A base de sustentação dessa concepção de homem vem de Marx e de pensadores com a mesma orientação teórica. Na obra Ideologia Alemã, escrita por volta de 1845/1846, pontificaram Marx e Engels (1987, p. 24): “Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história”. A preocupação em definir a ciência nos limites mais amplos da história, enquanto diferenciador das ciências especializadas que se anunciavam já na Europa, no século XIX, decorrente da divisão

217O Trabalho Didático em Exame

industrial do trabalho, deve-se ao entendimento de que só a história permite a apreensão da natureza histórica do homem e de qualquer objeto investigado, em sua gênese, desenvolvimento e obsolescência. Permite compreender, assim, a sua universalidade.

De Gramsci, pensador marxista do século XX, vem o conceito histórico de homem.

A afirmação de que a “natureza humana é o “conjunto das rela-ções sociais” é a resposta mais satisfatória porque inclui a ideia do “devenir”: o homem “devém”, transforma-se continuamen-te com as transformações das relações sociais; e, também por-que nega o homem em “geral” [...] O homem é aristocrático enquanto servo da gleba, etc Também é possível dizer que a natureza humana é histórica [...] Por isso, a “natureza humana” não pode ser encontrada em nenhum homem particular, mas em toda história do gênero humano... (1989, p.43)

Corroborando essa concepção, o historiador Pedro Alcântara Fi-gueira ao discutir a natureza histórica do homem opõe-se ao evolucio-nismo que se desenvolveu dentro do próprio marxismo e que, por essa razão, permitiria extrair para o mundo de hoje lições da filosofia. O autor contrapõe o pensamento da Ciência da História, preconizada por Marx, à filosofia aristotélica. Confirma isso a sua obra Ensaios de História:

No meu entender, as ideias de Marx não têm qualquer relação com as de Aristóteles. As deste nasceram do embate do velho mundo comunitário em decadência com o desabrochar de uma nova civilização baseada na escravidão. O que estrutura o pensamento de Aristóteles é a consideração de que a forma natural de existência da sociedade deixou de ser a comunidade e passou a ser a escravidão. (FIGUEIRA, 1997, p. 16)

Ao expor o embate entre o marxismo e a filosofia, prossegue o mesmo autor, afirmando:

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É por essa razão que, por mais correta que tenha sido a concep-ção aristotélica, e ela o foi de fato, chegou um momento em que as mudanças no mundo dos homens não permitiam mais ver as coisas aristotelicamente. Este é o sentido que eu vejo no profundo rompimento com o mundo antigo que significaram as ideias de Bacon e Descartes. (FIGUEIRA, 1997, p. 17/18)

A Filosofia, na Grécia Antiga significou, antes de tudo, a su-peração do conhecimento mitológico pelo uso da razão. Quando se fala em Filosofia fala-se de toda carga histórica que a partir do século V a.C. o mundo antigo carregou, até que se deu a sua derrocada. E quando a materialidade de um tempo histórico se extingue, vai-se com ela todo o seu sistema de pensamento, o que significa que a realidade grega e de qualquer outra sociedade de tempos idos, não teve relação e muito menos tem algo em comum com a realidade de hoje, pois, cada época carrega sua materialidade histórica e com ela sua visão de homem e sociedade.

Este aceno à teoria serve para informar ao leitor os caminhos metodológicos da discussão aqui travada.

O debate da academia

Mesmo compreendendo que a utilização de manuais didáticos no Ensino Médio é uma prática recente e que, portanto, são incipien-tes os estudos acerca dessa prática e desses manuais, a investigação sobre o ensino da filosofia, de modo mais amplo, entre pesquisado-res contemporâneos vem de longa data. Isso conduziu à necessidade de fazer um levantamento de fontes que permitiram o diálogo com as pesquisas já desenvolvidas, no sentido de compreender melhor o tema, ampliando o olhar sobre a questão. O levantamento das fontes permitiu detectar diferentes tipos de produção – artigos, dissertações, teses, capítulos e obras. Desse material foram selecionados para o di-álogo com este texto os que contribuíram com as reflexões aqui con-

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tidas. No conjunto desse material, os estudos versaram basicamente em torno de dois temas – o manual didático de Filosofia e a disciplina Filosofia. Adotou-se, portanto, como critério, agrupar a produção em tornos desses temas: fontes sobre o manual didático de Filosofia; e fontes sobre a disciplina Filosofia. A adoção desse critério levou em conta o caráter revelador de ambos os tipos de fontes sobre os conteú-dos de filosofia veiculados na escola média.

No debate, os manuais de filosofia

Marcos de Camargo Von Zuben é um autor que traz informa-ções interessantes para se pensar a filosofia na escola. Na Revista Sul--Americana de Filosofia (2013), publicou um artigo no qual afirma que muitos trabalhos foram produzidos a respeito da Filosofia como disciplina, mas que mereceriam destaque as pesquisas que discutem os manuais didáticos contemporâneos de Filosofia, que são recursos recentes disponibilizados para o Ensino Médio brasileiro e que, ainda, se encontram em processo de discussão. O autor traça um panorama sobre o processo de implementação de livros didáticos onde mostra que somente em 2008, por força de lei, os estados foram obrigados a oferecer a disciplina Filosofia nos currículos de Ensino Médio e que somente em 2012, o governo brasileiro, através do Ministério da Edu-cação e Cultura (MEC) providencia a distribuição de manuais didáti-cos de filosofia para o Ensino Médio na rede pública de ensino, fran-queando três manuais de filosofia considerados adequados para esta modalidade de ensino e que contemplaram os critérios de avaliação governamental.

Ainda nesse artigo, o pesquisador afirma que o estudo sobre manuais didáticos estão no início, que “no Brasil não existem pesqui-sas específicas de avaliação de livros didáticos de Filosofia” e mostra que sua pesquisa é “pioneira nesta área”. Nela busca avaliar livros de filosofia voltados para o Ensino Médio presentes no mercado editorial e não somente os três manuais aprovados pelo governo.

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O autor postula uma avaliação adequada dos manuais didáticos, argumentando que a grande produção de manuais de filosofia sem a devida avaliação pode contribuir negativamente com a qualidade des-te instrumento, uma vez que a disciplina de filosofia está definitiva-mente assegurada no Ensino Médio. De modo que para Von Zuben a qualidade do instrumento está centrada na avaliação adequada. Nesse sentido, esclarece que sua pesquisa tem como objetivo:

[...] avaliar os principais livros didáticos de filosofia do ensino médio existentes no mercado editorial brasileiro. Para realizar a avaliação definiram-se os componentes dos livros a serem avaliados, os critérios de avaliação e seus respectivos indica-dores. O que se pretende com a investigação é apontar as li-mitações presentes nos livros didáticos de filosofia do ensino médio. (VON ZUBEN, 2013, p.159)

A partir dessas constatações e propósitos, Von Zuben ana-lisa que os conteúdos de filosofia num livro didático, usualmente, apresentam três abordagens: filosófica, (aquela que pauta seus ensi-namentos nos conceitos filosóficos pensados em si mesmos, dentro de um arcabouço próprio do saber filosófico); problemática (aquela que pauta seus conteúdos evidenciando questões que são comuns no cotidiano, como a morte, o aborto, a violência, etc) e histórica (que pauta o ensino de filosofia na linearidade de sua história assegu-rando os conceitos filosóficos de diferentes tempos e seus principais pensadores de destaque).

O autor sugere que, em relação aos conteúdos de Filosofia, há necessidade destas três abordagens, mas que, se no ensino dos con-teúdos, a história da filosofia for preponderante, estes podem se tor-nar enciclopédicos, repetitivos, apresentados da mesma forma que foi pensado e sem a crítica e a reflexão necessárias. Entende, por isso, que a história da filosofia deve dar suporte às demais abordagens, levando em conta o pensamento filosófico e sua contextualização para, dessa forma, sair do senso comum. Justifica que, assim, esta abordagem con-

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templaria as prerrogativas defendidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Orientações Curriculares Nacionais (OCN):

Um livro didático de filosofia que apresenta uma abordagem temática, problemática ou das áreas filosóficas, sem fazer men-ção à história da filosofia, conduz a um discurso vazio e impro-dutivo e não à filosofia. Não se constrói um pensamento filo-sófico sem o alicerce que é a sua história, a tradição filosófica. Só se constrói filosofia a partir da filosofia. É impossível pensar um ensino de filosofia em que a sua história não ocupe lugar de destaque. [...] O seu conteúdo é discussão realizada ao longo de toda a tradição filosófica. (VON ZUBEN, 2013, p.161)

Essa é a posição do autor, todavia, afirma ainda Von Zuben que quando o ensino de filosofia é centrado unicamente na sua história desprezando os outros enfoques, não se trata de filosofia. Constata o autor que, quando o ensino da Filosofia percorre um único caminho centrado na história da Filosofia, este ensino torna-se apenas repetição daquilo que foi pensado em uma determinada época. O autor ainda destaca que, desde a introdução da disciplina Filosofia na grade curri-cular do Ensino Médio, a difusão dos seus conteúdos fora feita indis-criminadamente, por meio de diversos instrumentos, sem a chancela do Estado e, portanto, sem nenhum crivo técnico e pedagógico. Infere Von Zuben que a primeira vez que este tipo de material, voltado para o Ensino Médio, é produzido para a disciplina de Filosofia, criva-se sua importância neste pioneirismo e na possibilidade de novos pes-quisadores contribuírem para pensar os manuais didáticos de filosofia voltados para o Ensino Médio ainda carente aprofundamento.

Em síntese, é uma discussão que contribui e acrescenta para se firmarem os rumos dessa investigação no Brasil, no que respeita ao pioneirismo da pesquisa e ao apontamento de uma história da dis-ciplina filosófica. Aqui, o interesse é pelas abordagens mencionadas, cujos conceitos deverão ser cruzados e analisados no decorrer da pes-quisa. Por enquanto, o que fica é a discordância de que a avaliação

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do manual didático sob a chancela do Estado seja o caminho para a resolução das hipóteses.

Na Revista Filosofia e Educação (2012) o pesquisador Américo Grisotto enfoca a produção editorial de manuais didáticos de filosofia e explicita o modo como esta disciplina é trabalhada nas escolas de ensino médio. Grisoto (2012, p. 114) apresenta uma pesquisa sobre os manuais historicamente presentes na escola como “[...] instrumentos da didática escolar que enunciam, numa linguagem que se pretende acessível e clara, conteúdos descritivos e explicativos relativos a uma determinada disciplina ou área do conhecimento”.

Grisotto destaca o avanço considerável na produção do tema, para o ensino de filosofia em sala e preconiza que o ensino de filosofia no Brasil está se tornando um campo de estudo e pesquisa bastante promis-sor. Contudo, destacamos que não é objetivo da pesquisa de Grisotto uma análise mais profunda no que diz respeito aos manuais de filosofia voltados para Ensino Médio, “mas trazê-los, na sua diversidade, à super-fície” (2012, p. 117) e dessa forma foram agrupados e oferecidos “como material de consulta aos interessados”. O estudo de Grisotto (2012) in-cidiu sobre manuais produzidos pelas editoras, Moderna, Ática e Sa-raiva com seus respectivos autores. Quanto à análise do autor, esta foi técnica e pautada apenas na organização da obra como quantidade de capítulo, de unidades, temas, leituras complementares e outros tópicos como filmografia, projetos, etc. Foi uma análise externa, na qual Grisot-to se absteve de uma discussão teórica e metodológica, mas sua pesquisa contribuiu cominformações de caráter geral.

Alessandra da Silva Carrijo em tese de doutorado destaca que historicamente a disciplina de filosofia foi marcada por rupturas e continuidades. Sua justificativa incide sobre a LDB 9394/96 que dava um aspecto de transversalidade na condução do conhecimento filosó-fico, mas não expunha as condições para a presença sistemática desta disciplina no nível médio de ensino. A autora diz que as determina-ções políticas para a efetivação da disciplina de filosofia não deram com precisão o lugar do ensino de filosofia e sociologia nesta modali-dade de ensino e isto foi verificado também nas Diretrizes Curricula-

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res Nacionais para o Ensino Médio, instituídas quase dois anos depois pela Resolução do Conselho Nacional de Educação de nº 3, de 26 de junho de 1998. Destaca a autora que apenas nos idos de 2006 é que a disciplina de filosofia começa ganhar, na legislação, possibilidade de frequência obrigatória no Ensino Médio e reafirma sua presença, pelo menos no âmbito legal, a partir da alteração da Resolução nº3/98, que resulta na homologação da CNE/CEB nº 38, de 7 de julho de 2006. Esta vai incluir, obrigatoriamente, as disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio brasileiro. Contudo, os ditames legais só foram efetivados definitivamente depois de percorrer alguns proto-colos políticos, com a morosidade pública habitual. Ganhou atenção política somente em 2008, quando da instituição da Lei nº 11.684 de junho de 2008, responsável por instituir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio no território brasileiro. Assim, declara a pesquisadora:

[...] apenas em 2008 houve, enfim, uma mudança mais significa-tiva no que se refere à inserção destas disciplinas, filosofia e so-ciologia, nos espaços escolares. Foi, pois, neste referido ano que foi discutido e aprovado no Plenário do Senado o Projeto de Lei da Câmara de nº 4, de 2008, [...], que propunha a alteração dos dispositivos do art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacio-nal, ratificando a obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo das três séries do Ensino Médio de to-das as escolas públicas e privadas do país. A sanção do mesmo, pelo Presidente da República, foi feita no dia 2 de junho, no Palácio do Planalto. Nasce assim a Lei nº 11.684 de junho de 2008, responsável por instituir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio no território brasileiro. (CARRIJO, 2013, p.103)

Contudo, Carrijo (2013) destaca que o entrave maior en-frentado pela disciplina Filosofia para efetivamente fazer parte

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do currículo do Ensino Médio foi a indefinição sobre conteúdos e junto com eles uma gama de perspectivas, métodos e abordagens existentes na forma de conduzir o ensino desta disciplina. A referi-da autora afirma que, em relação aos manuais didáticos fornecidos pelo governo federal, os autores obedeceram a critérios pré-esta-belecidos:

O que se observa é que os próprios critérios de seleção dos li-vros didáticos definidos no Edital/2012 foram responsáveis por delinear a estrutura, organização e mesmo a orientação metodológica dos autores, já que estes, em função das orien-tações estabelecidas, buscam adequar suas propostas ao que é estabelecido no Edital sob o risco de não terem suas obras aprovadas, o que acarretaria em perda econômica significativa. (CARRIJO, 2013, p.117)

Do exposto poderia se deduzir que a indefinição dos con-teúdos e o ecletismo metodológico visto nos manuais decorrem dos ajustes das editoras às exigências do Ministério da Educação, o que é verdadeiro apenas em parte, porque existem questões mais amplas, que no seio das próprias relações da sociedade do capital, determinam a indefinição e o ecletismo que permeiam todo o uni-verso recente da filosofia desde sua legalidade até a implantação na escola.

Ainda, de acordo com a autora, essa disciplina tem como pré-re-quisito a capacidade de subsidiar os educandos, tanto teórica quanto metodologicamente, para intervirem de forma efetiva, ativa e reflexiva na realidade em que vivem. E esse é o principal postulado que aqui colocamos em questão. Em que medida, no mundo contemporâneo, a filosofia é o instrumento responsável para fazer o homem pensar, re-fletir sobre seus atos e a realidade circundante, dada sua transformação em corpo especializado de conhecimento?

225O Trabalho Didático em Exame

No debate, a disciplina filosofia

Geraldo B. Horn (2000) evidencia que o ensino de filosofia no Brasil desde sua implantação no período colonial esteve atrelada à defesa das concepções ideológicas predominantes na sociedade: “[...] pode-se afirmar que o ensino institucional e formal da filosofia sem-pre serviu ao estabelecimento e manutenção de forças hegemônicas que buscavam neutralizar ou mesmo anular qualquer possibilidade de formação humana crítica e autônoma”(HORN, 2000, p.17). Aclara o autor, que procurar entender os determinantes históricos do ensino de filosofia é possibilitar a compreensão maior da escola contempo-rânea. Esse pesquisador conclui que a filosofia do ensino médio “[...] tem se limitado a repassar e reproduzir conhecimentos estáticos e aca-bados, bem como concepções e verdades absolutas que inviabilizam o processo de ação e reflexão do homem sobre o mundo e sobre sua própria existência”. Atenta Horn para a possibilidade de se trabalhar o currículo da disciplina Filosofia de maneira articulada em um “[...] processo dialógico e dinâmico com os demais campos do conheci-mento humano, possibilitando dinamizar seu próprio movimento e o movimento paulatino dos diversos saberes”(HORN, 2000, p. 30). Assim, preconiza Horn, um dos principais objetivos da disciplina, que é contribuir com a formação da consciência crítica no aluno, seria va-lorizado, ainda que esta atitude crítica não caiba somente à filosofia. Desta forma, Horn identifica que o papel da filosofia quando inserida no currículo do ensino médio seria o de:

[...] debater, confrontar ideias, instaurar a suspeita, de provo-car a negação e a ruptura, enfim de incitar à participação no processo de criação de novos homens. Assim, ensinar filoso-fia instiga ao desmonte das certezas, ao questionamento do instituído; permite transitar, através de reflexões e leituras de textos diversificados, nos bas-fonds das ideias e nas ordens das razões, instrumentalizando a crítica e a ampliação da visão de mundo. (HORN, 2000, p.32)

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A questão que se coloca é, com qual base teórica tal disciplina debateria, confrontaria ideias, instauraria a suspeita e desmontaria as certezas, na medida em que a própria disciplina, por seu caráter de co-nhecimento especializado, já se constitui como ideia digna de suspeita e de desmonte?

Considera-se que a filosofia nasceu da necessidade de o homem antigo buscar respostas que superassem a argumentação mítica acerca dele mesmo e do mundo que o cercava para, dessa forma, se formular uma compreensão de mundo sustentada em ponto de vista racional. Nesse sentido, a filosofia no mundo antigo compôs este aspecto de desmontar algumas certezas e se indagou sobre as certezas consti-tuídas daquele tempo e daquela sociedade estabelecida. Contudo, a produção intelectual acompanha a produção material e, atualmente, o universo do trabalho fragmentado delega funções e parcializa tudo, fraturando não só a materialidade da vida, mas os pensamentos que dela emanam. Sendo assim, nenhuma disciplina, em si, tem a capaci-dade de desmontar certezas ou questionamentos estabelecidos, dado o seu caráter especializado.

Em razão disso Horn, que levanta acertadamente a questão da obsolescência dos conteúdos filosóficos para este tempo, propõe como saída a interdisciplinaridade, supondo que a articulação da filosofia com outras disciplinas possibilitaria ao aluno a crítica e a ampliação de sua visão de mundo. Examinados os manuais didáticos em uso na escola, vê-seque a interdisciplinaridade está posta, o que ocasionou mais confusão, uma vez que a “mistura” de informações torna ainda mais problemática a proposta. Na perspectiva aqui de-fendida, a premissa é que essa compreensão advém do movimento dialético entre a base material e o pensamento nascido das relações humanas que formam essa base, ou seja, de sua natureza histórica. No sentido do “desmonte de certezas” o autor não materializa es-sas certezas, ficando no campo das especulações nascidas do “movi-mento paulatino dos diversos saberes”, que são próprias da filosofia, visto que sua base grega esvaiu-se no tempo e a modernidade busca a compreensão do mundo por via da ciência. Aqui, haveria outro

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problema, o da especialização das ciências modernas, se Marx e En-gels (1987, p. 24) não nos socorressem ao postular que a história é a única e verdadeira ciência humana. Este postulado não nasce de mais uma concepção especializada da historiografia, mas do movi-mento concreto da caminhada dos homens no construir as civiliza-ções. Não nasce, portanto, “do movimento paulatino dos diversos saberes”, inclusa a filosofia, mas da concretude das relações materiais de onde emanam os diversos saberes. Não nasce de especulações filosóficas, mas coloca a própria filosofia no movimento da histó-ria. Esta tem nos mostrado que a educação sempre se pautou mais pelo compromisso de confirmar como está estabelecida a sociedade, como ela deve funcionar do que de acabar com algumas certezas e o que se atribui à filosofia tem sido objeto de preocupação de outras disciplinas, com a mesma falta de resultados pelo mesmo fato de to-das pretenderem pensar as questões humanas pelo já pensado e não pela concretude histórica.

Humberto Aparecido de Oliveira Guido (2000) defende a pre-sença da filosofia na grade curricular do ensino médio e destaca a im-portância dessa disciplina estar nas mãos de quem de fato, segundo ele, está preparado para lecioná-la: o professor licenciado em filosofia. Segundo o autor, devido a questões intrínsecas à formação do profes-sor de filosofia, alguns conteúdos teriam mais condições de aprofun-damento, sustentando que professores de outras licenciaturas, princi-palmente, os professores de história, teriam uma visão mais superficial destes assuntos ou até mesmo, estes omitiriam conteúdos de capital importância para a disciplina de filosofia.

O fato de a maior parte dos professores ter a sua formação em outras áreas do conhecimento acarreta o uso inadequado do ma-terial didático – independente da sua qualidade -, interpretando--o conforme a sua formação de origem; o historiador, o pedagogo, o geógrafo, o psicólogo... cada um faz a sua leitura particular do conteúdo disponível [...] (GUIDO, 2000, P.90-91)

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Divergente da de Horn é a posição de Guido, em cujo discurso se entrevê uma posição especializada e vertical e a busca de conceitos universais, pois só o professor de filosofia poderia evitar o “uso inade-quado” do material didático. Assim, este não está em questão e sim a formação do professor que tem que ter o domínio da sua especializa-ção. A defesa de a filosofia ser ministrada por professores de filosofia implica que o conhecimento especializado é a tônica da proposta de Horn, o que não surpreende, visto ser a tônica do mundo contempo-râneo.

A explicação que o marxista Robert Kurz nos fornece para esta questão é que na atualidade:

[...] o debate teórico cedeu lugar a uma espécie degradada de literatura especializada [...] em vez de crítica, auto-ajuda. No melhor dos casos, entra em cena em lugar de uma reflexão acer-ca da totalidade social [...] o recitar monótono de um sequioso pensamento [...]. A máquina de conceitos do pensamento oci-dental perdeu sua força material e parece se despedaçar antes do sucateamento. (KURZ, 1997, p.18-19)

Renê J. T. Silveira (2000) promove uma discussão em torno dos conteúdos e do trabalho didático na qual defende a presença do professor de filosofia para o ensino desta disciplina, levando em con-sideração, sobretudo seu referencial, centrado na história da filosofia, bem como a contextualização histórica das teorias e os conceitos filo-sóficos. Silveira diferencia os aspectos que devem nortear o ensino de filosofia, primeiro ele busca uma definição que contemple a ideia geral de filosofia. Segundo ele, filosofia é “uma atitude de busca do saber, do conhecimento”, uma superação do senso comum que pretende chegar ao conhecimento verdadeiro, assim a filosofia é a “a busca da verda-de”. Defende o autor ideia de Gramsci segundo a qual a filosofia teria função de superação do senso comum, devendo estar sempre com as massas populares para ser tornar histórica e ter elementos concretos para que de reflexão humana se torne ferramenta de transformação,

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de ação. Silveira desenvolve a ideia de que a reflexão filosófica se de-senvolve dentro das práticas humanas num contexto social, cultural, político e econômico.

Dentro da teoria e do método aqui defendidos, acerta Silvei-ra quando propõe a superação do senso comum, e a adesão às massas populares, considerando as posições do marxista Gramsci, todavia, entendemos que é preciso certo cuidado com as aproximações que alguns pesquisadores fazem do referencial marxista, pois a Filosofia da Práxis, para Gramsci não é propriamente uma filosofia, já que as ideias nascem na materialidade do mundo concreto e é, portanto, esta concretude que coloca Gramsci dentro dos mesmos fundamentos e princípios da teoria marxista. Este é um ponto que precisa ser estuda-do e compreendido, para não se atribuir a Gramsci o que ele não falou.

Em outro artigo de sua autoria (2011), o mesmo autorafirma que o ensino de Filosofia, mediado pelo professor, deve ter como pre-ocupação a reflexão de problemas da realidade, contudo, o contato com as obras dos filósofos e com a história da Filosofia é primordial para que efetivamente a filosofia cumpra seu papel como disciplina disponibilizada na educação. Ou seja, volta-se à especialização vertica-lizada. A pergunta é: como refletir sobre os problemas da realidade se não se conhece essa realidade ou se a conhece apenas empiricamente, sem o método que lhe confere concretude histórica? E mais, só para reforçar, a filosofia reflete a realidade do Mundo Antigo e sua história remete à Grécia e fica no âmbito da própria filosofia, ainda que, den-tro de uma historiografia.

A realidade do momento atual é o capitalismo na sua forma mais problemática, a era dos monopólios. Como compreender a dinâ-mica do pensamento humano sem compreender a materialidade dos monopólios, do mercado mundial, a causa mais profunda, a raiz eco-nômica do desemprego, o sistema de acumulação flexível que produz a exacerbação da mais valia relativa, a expulsão de trabalhadores da produção, a fome e a miséria decorrentes?

Estes são os problemas que precisam ser estudados como ponto de partida de qualquer reflexão que se pretenda a serviço da humani-

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dade, sob pena de ficar-se divagando entre elucubrações e terminolo-gias filosóficas sem a menor significação face aos problemas que asso-lam a sociedade.

Renata Pereira Lima Aspis (2004)chama atenção para esta mo-dalidade de ensino (filosofia) que só terá justificativa na educação bra-sileira se ele cumprir seu objetivo maior que é a criação de conceitos e ao mesmo tempo dar conta de seus problemas. Enquanto professor formado em filosofia, este é que teria competência para tanto. Aspis comunga da ideia de que o professor de filosofia necessariamente deve ser um filósofo, pois, para ela, filosofia e filosofar estão intrinsecamen-te ligados e “a filosofia é matéria e ato interdependentes entre si, que estão em movimento espiral de impulso mútuo e contínuo; se filosofar é produção de filosofia e filosofia é filosofar, então o que deve ser o en-sino de filosofia? O ensino de filosofia deve ser produção de filosofia, deve ser filosofia” (ASPIS, 2004).Esse jogo retórico de palavras não sustenta nem justifica que o professor de filosofia deva ser formado em filosofia. Na verdade, é o movimento do desemprego que no capi-talismo presente tem justificado a formação de professores para uma reserva de mercado em todos os campos de especializações, inclusive, a filosofia. É só nos lembrarmos de que homens que pensaram esta sociedade como Adam Smith, Descartes, Locke, Bacon, Voltaire estão assinalados na historiografia como “pensadores” porque “pensaram” a sociedade em sua totalidade, em um momento histórico que, anterior à divisão industrial do trabalho, ainda permitia uma visão de totali-dade social àqueles homens. Na atualidade, marcada pela divisão do trabalho industrial estamos diante de um conhecimento especializado ou fragmentado que não dá conta de explicar o modus operandi do sis-tema capitalista, por isso é mais confortável atribuir aos formados em filosofia tal tarefa, oportunizando, assim, ocupação para essa mão de obra disponível e, hipoteticamente dispensados os demais professores, de conduzir seus alunos a reflexões mais abrangentes.

Celso João Carminati(2013) descreve as conjecturas históricas que contribuíram diretamente para justificar a ausência e a presença dessa disciplina no currículo de ensino médio no Brasil, mas reforça

231O Trabalho Didático em Exame

que sua presença no currículo decorreu “[...] da luta por seu retorno às escolas, da organização e oferta da matéria aos estudantes secunda-ristas, o movimento por sua reintrodução passou por várias etapas, até alcançar, no presente momento, seu lugar nos currículos das escolas” (CARMINATI, 2013, p. 370). Essa luta com certeza não pode ser desprezada, mas as motivações podem ser o mercado e o autor parece ter consciência disso quando, a respeito da prática pedagógica ques-tiona se, na disciplina de Filosofia, o problema não seria do professor, reduzido que foi a agente pacificador das consciência dos alunos:

Será que a prática pedagógica, tanto para aquele que ensina na universidade quanto para o que ensina no Ensino Médio, não está submetida às delimitações formais definidas pelo Estado ou das lógicas definidas pelo mercado? Será que, em vez de cons-truir conhecimentos, esse professor não é reduzido à condição de transmissor ou veículo de reprodução da ideologia dominan-te? Esperamos que não, embora se saiba que diversos desses pro-fissionais têm agido muito mais como agentes pacificadores da consciência dos alunos do que como críticos dos saberes e das formas alienantes de educação. (CARMINATI, 2013, p.372)

Carminati diz que “O professor precisa proceder como filóso-fo. Sua atividade deverá ser o exercício público da Filosofia” (CAR-MINATI, 2013, p.376). Conclui o autor, que é tarefa dos professores do ensino médio tornar a disciplina de Filosofia em um ensino que conduza à reflexão de forma que esta se torne uma experiência signi-ficativa na vida dos alunos. Entende-se que o professor formado sob a égide da especialização do saber padece da ausência de uma visão de totalidade histórica que dê consistência à sua reflexão.

Cláudio Luís de Alvarenga Barbosa (2005) constata que o pro-fessor de Filosofia não consegue despertar interesse em seus alunos pela disciplina, ainda que seja legalmente assegurada no rol das disci-plinas obrigatórias. Por isso, questiona sua existência como disciplina escolar.

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[...] o fato de a filosofia ser destacada pelo discurso oficial por si só não é garantia de que os professores que ministram a dis-ciplina no ensino médio consigam justificar a existência dessa área de conhecimento na forma de uma disciplina do currículo escolar. Até porque, apesar de a LDB/96, de certa forma, re-conhecer a importância da atividade filosófica na formação do educando, não sustenta que a competência para desenvolver essa atividade seja exclusividade de uma disciplina chamada filosofia; (BARBOSA, 2005, p.8).

Barbosa (2005) compreende, no que diz respeito à prática pe-dagógica, que a Filosofia em suas abordagens tanto histórica como te-mática, dificilmente vai conseguir atingir este aluno entranhado numa educação que valoriza acima de tudo o conhecimento científico. Po-siciona-se perante a obrigatoriedade dessa disciplina com uma carga horária mínima de uma hora aula por semana, assim profere:

Além disso, quem leciona filosofia a iniciantes deveria obser-var que é inexequível e ineficaz discutir os vinte e seis séculos de produção filosófica ocidental em apenas um encontro se-manal durante um ano letivo. (BARBOSA, 2005, p.14)

A questão que fica é: a filosofia é ineficaz porque não consegue despertar o interesse dos alunos ou por que a carga horária não permi-te uma discussão mais aprofundada?

Algumas consideraçõesA indagação anterior é uma das muitas suscitadas pela literatura

examinada, o que nos leva a concluir que o debate está instaurado, mas as soluções muito longe de chegarem a um bom termo. Dentro do que se propôs este estudo, que foi o de dialogar com a mais expressiva produção acerca da filosofia na escola,julgamos ter uma primeira apro-ximação com o universo das pesquisas que deram origem a este texto.

233O Trabalho Didático em Exame

As análises dos autores apontam para a ausência de avaliações efetivas, para a qualidade dos manuais didáticos sob o ponto de vista de sua relação com o Estado, para as possíveis abordagens problemáti-cas do conteúdo, porque induzidas por discursos vazios de conteúdo; enfim, são análisesque abordam aspectos relevantes desse tema, porém não tocam o ponto central almejado por esta pesquisa que é o de in-vestigar a validade ou não de conceitos filosóficos em manuais didá-ticos, como conhecimentos que, tomando em conta a materialidade da vida como ponto de partida para a reflexão em sala de aula, sejam eficazes para conduzir o aluno a compreender a razão da sua existência no mundo.

Visto que se propala nas instâncias acadêmicas e faz parte já do senso comum a crença de que a filosofia tem como tarefa instrumen-talizar o homem para se pensar e ao mundo, o prosseguimento da pes-quisa investigará manuais de filosofia que circulam entre os alunos, sob a chancela do MEC, dos quais se extrairão as premissas confir-madoras ou não dessa hipótese, já que é por via desses manuais que o “conhecimento filosófico” circula na escola contemporânea.

Referências

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BARBOSA, Cláudio Luís de Alvarenga. A Filosofia no Ensino Médio e suas representações sociais. 2005, Tese (doutorado)Universidade Federal Fluminense.

CARMINATI, Celso João. Formação e didática do ensino da Filosofia. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 13, n. 38, p. 369-384, jan./abr. 2013.

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CARRIJO, Alessandra da Silva. Concepções de cidadania nos livros didáticos de filosofia indicados pelo PNLDEM/2012. 2013. 177 f. Tese (doutorado) PUC-GOIÁS.

FIGUEIRA, Pedro Alcântara. Ensaios de história: o marxismo à luz da história. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 1997.

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Esta obra foi composta em Garamond Premier Pro, criada por Claude Garamond em 1530 impressa em papel Offset em julho de 2015.