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O protagonismo intelectual de um cruz-serrano no palco da “Guerra Grande”: o discurso da identidade nacional (1866-1868) Leonam Lauro Nunes da Silva Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso Resumo O maior evento bélico já ocorrido na América do Sul ainda conserva uma série de interrogações sobre assuntos pouco debatidos. Um deles é o impacto que causou na América do Sul, em especial nos países que fazem fronteira com os beligerantes. A Bolívia, então, emerge no presente estudo, trazendo consigo alguns personagens ocultados pela Historiografia. Nascido em Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano, Tristán Roca Suarez teve decisivo papel na resistência empreendida pelos paraguaios ao longo do conflito. Porém, não o fez de forma convencional, através das armas. Longe de um perfil militar, o protagonista, intelectual, engajou-se em favor da causa paraguaia através de uma relevante produção jornalística, responsável por difundir ideias através de textos e imagens. Explicitadas nas páginas do periódico “sério-jocoso”, intitulado “El Centinela”, estas tiveram influência no desenrolar das ações durante a Guerra. Ademais, ao longo do itinerário histórico, constituíram-se em “matéria-prima” para a edificação de um discurso que, assimilado por boa parte da sociedade, alimentou a construção de uma identidade nacional paraguaia. Palavras-chaves: Fronteira, Guerra com o Paraguai, Identidade Nacional. Abstract The biggest military event ever occurred in South America still retains a number of questions on some issues discussed. One is the impact of that in South America, especially in countries bordering the belligerents. Bolivia then emerges in this study, bringing some characters hidden by Historiography. Born in Santa Cruz de la Sierra in eastern Bolivia, Tristán Roca Suarez played a decisive role in the resistance undertaken by the Paraguayans throughout the conflict. But did not the conventional way, through the weapons. Far from a military profile, the protagonist, intellectual, engaged in favor of Paraguayan cause through a relevant journalistic production, responsible for disseminating ideas through texts and images. Explained in the pages of the periodical "serious-humorous" entitled "El Centinela", these influenced the conduct of the actions during the war. Moreover, along the historic route, they constituted the "raw material" for the construction of a speech, assimilated by much of society, and fueled the construction of a Paraguayan national identity. Keywords: Border, War with Paraguay, National Identity.

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O protagonismo intelectual de um cruz-serrano no palco da “Guerra Grande”: o discurso da identidade nacional (1866-1868)

Leonam Lauro Nunes da Silva

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo

O maior evento bélico já ocorrido na América do Sul ainda conserva uma série de interrogações sobre assuntos pouco debatidos. Um deles é o impacto que causou na América do Sul, em especial nos países que fazem fronteira com os beligerantes. A Bolívia, então, emerge no presente estudo, trazendo consigo alguns personagens ocultados pela Historiografia. Nascido em Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano, Tristán Roca Suarez teve decisivo papel na resistência empreendida pelos paraguaios ao longo do conflito. Porém, não o fez de forma convencional, através das armas. Longe de um perfil militar, o protagonista, intelectual, engajou-se em favor da causa paraguaia através de uma relevante produção jornalística, responsável por difundir ideias através de textos e imagens. Explicitadas nas páginas do periódico “sério-jocoso”, intitulado “El Centinela”, estas tiveram influência no desenrolar das ações durante a Guerra. Ademais, ao longo do itinerário histórico, constituíram-se em “matéria-prima” para a edificação de um discurso que, assimilado por boa parte da sociedade, alimentou a construção de uma identidade nacional paraguaia. Palavras-chaves: Fronteira, Guerra com o Paraguai, Identidade Nacional. Abstract The biggest military event ever occurred in South America still retains a number of questions on some issues discussed. One is the impact of that in South America, especially in countries bordering the belligerents. Bolivia then emerges in this study, bringing some characters hidden by Historiography. Born in Santa Cruz de la Sierra in eastern Bolivia, Tristán Roca Suarez played a decisive role in the resistance undertaken by the Paraguayans throughout the conflict. But did not the conventional way, through the weapons. Far from a military profile, the protagonist, intellectual, engaged in favor of Paraguayan cause through a relevant journalistic production, responsible for disseminating ideas through texts and images. Explained in the pages of the periodical "serious-humorous" entitled "El Centinela", these influenced the conduct of the actions during the war. Moreover, along the historic route, they constituted the "raw material" for the construction of a speech, assimilated by much of society, and fueled the construction of a Paraguayan national identity. Keywords: Border, War with Paraguay, National Identity.

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Em janeiro de 1865, forças paraguaias comandadas pelo Coronel Vicente

Barrios (? -1868), compostas por um efetivo de sete mil e quinhentos homens,

pelas vias terrestre e fluvial, ocuparam o sul da Província de Mato-Grosso,

tomando o porto de Corumbá - população situada à margem direita do Rio

Paraguai -, estabelecendo ali um comando militar. Modificava-se, assim, o cenário

fronteiriço com a inclusão de novos atores, protagonistas de um excepcional

relacionamento, fruto da “Guerra Grande” (1864-1870).

Posteriormente à anexação de parte da Província de Mato-Grosso - espaço

que ganhou status de “Província do Alto Paraguai” -, Barrios despachou uma

comissão de doze pessoas sob a condução do francês Domingo Pomiés, para

explorar um caminho que conduziria até a povoação de “Santo Corazón” - última

das missões jesuíticas espanholas, fundada em 1760, localizada na Província de

Chiquitos e Moxos, Departamento de Santa Cruz de la Sierra, no oriente boliviano.

Bem-sucedida, a expedição se estendeu até a cidade de Santa Cruz, retornando à

Corumbá.

Os paraguaios, em janeiro de 1866, explicitaram o desejo de abrir uma via

de comunicação com fins comerciais com a Bolívia. Os impressos de Assunção, à

época, divulgaram as tratativas entre os oficiais que dominavam o ponto militar de

Corumbá e os comerciantes bolivianos.

Depois de algumas incursões com o intuito de reconhecer o terreno e

examinar possibilidades, tiveram início as obras que visavam dar ao caminho

condições para receber o tráfego comercial entre Corumbá e Santo Corazón. Após

alguns meses de exaustivos trabalhos na zona de transição entre o Chaco

(Pantanal) e a selva tropical, em julho de 1866, o comando paraguaio foi

informado sobre o término do empreendimento, que contou com mão-de-obra

indígena1.

Santo Corazón constituiu-se num provedor de mercadorias para as tropas

paraguaias estabelecidas em Corumbá. Alimentos, artigos têxteis, tinta e papel

1 Informação extraída da correspondência enviada por Domingo Pomiés a sub-prefeitura de Chiquitos. Santa Cruz, 12 de janeiro de 1867. ANA-SH, Vol. 445, 1 folha.

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eram alguns dos produtos que circulavam pelo caminho, que, segundo fontes

documentais, possuía aproximadamente 66 léguas de extensão. Aliás, os militares

paraguaios adentraram o território boliviano reiteradas vezes; operações

traduzidas em “exercícios militares”. Interessante perceber na documentação,

menções a respeito da procura por “folhas de coca”, usadas em larga escala nos

“hospitais de sangue” paraguaios, provavelmente como analgésico, para aliviar as

dores dos feridos nas batalhas (SILVA, 2009).

Na empobrecida povoação de Santo Corazón os recursos eram escassos, o

que despertava nos paraguaios a vontade de abrir uma nova rota ligando

Corumbá a Santiago de Chiquitos – localidade mais populosa e dotada de melhor

estrutura. O projeto, que acabou sendo, de fato, executado, foi saudado de forma

entusiástica pelos bolivianos, que acreditavam obter grandes lucros e melhoras

incalculáveis na sua economia2. O interesse da Bolívia, especialmente do

empresariado cruceño – de Santa Cruz de la Sierra -, recaía sobre o rio Paraguai,

via que escoaria a produção local, abrindo perspectivas para o comércio com a

região platina.

Apesar das dificuldades, os caminhos abertos durante a guerra seguiam

dando impulso à integração fronteiriça, ensejando um incipiente, porém importante

movimento mercantil, em momentos que o Paraguai sofria um severo bloqueio e

muitas necessidades. Lembremos que, desde junho de 1865, quando a esquadra

brasileira sobrepujou a paraguaia na afamada batalha naval do Riachuelo e

passou a controlar os rios da bacia platina até a fronteira com o Paraguai, o

exército de Francisco Solano López (1826-1870) se encontrava em sérias

dificuldades, “quase” isolado. Pela rota chegavam também emigrados políticos

bolivianos, opositores do Presidente General Manuel Mariano Melgarejo Valencia3

2 Informação extraída de correspondência enviada pelo explorador francês Domingo Pomiés ao Comandante do Distrito Militar do Alto Paraguai, Coronel Hermógenes Cabral. Santiago de Chiquitos, 8 de fevereiro de 1867. ANA-SH, Vol. 446, 2 folhas. 3 Manuel Mariano Melgarejo Valencia foi um militar e político boliviano e presidente de seu país entre 28 de dezembro de 1864 e 15 de janeiro de 1871. Ascendeu ao poder por intermédio de um golpe de estado, que expulsou José María Achá Valiente da presidência.

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(1820-1871) e naturais do departamento de Santa Cruz de la Sierra, muitos dos

quais empresários e jornalistas, que de Corumbá rumavam para Assunção.

As transações comerciais, em princípio tímidas, se robusteciam. Em

fevereiro de 1867, o governo paraguaio emitiu um decreto facilitando as

negociações mercantis com a Bolívia a fim de obter um retorno desse comércio.

Pelo mesmo ato, permitia-se a circulação de moeda através de Corumbá

exonerada do pagamento de tributos para exportação de mercadorias paraguaias

com destino à Bolívia.

Insatisfeito com os acordos alinhavados pelos consortes do Tratado da

Tríplice Aliança (1865), na qual os beligerantes aliados dispunham sobre área

territorial reivindicada também pela Bolívia, o Presidente General boliviano

Mariano Melgarejo respondeu de forma contundente e ameaçadora, chegando a

especular com o governo paraguaio a possibilidade de uma coligação

(CENTURION, 1987:289-290).

Incomodado com a repercussão da fala de Melgarejo e de posse de ofícios

expedidos pela presidência da Província de Mato Grosso, que informavam sobre o

comércio realizado entre paraguaios e bolivianos a partir de Corumbá ocupada, o

Império brasileiro, através do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, incumbiu

o plenipotenciário Felipe Lopes Netto da missão de ir até La Paz “frear” o ímpeto

combativo do governo da Bolívia e, ao mesmo tempo, lançar nuvens de

desconfiança no relacionamento paraguaio-boliviano (SCAVONE YEGROS,

2004).

Assinado no dia 27 de março de 1867, o Tratado de Amizade, Limites,

Comércio, Navegação e Extradição, conhecido como Tratado de Ayacucho, numa

alusão à cidade de La Paz de Ayacucho – local onde foi celebrado - consumiu da

diplomacia brasileira esforços nada desprezíveis.

Os paraguaios receberam com surpresa as notícias que revelavam os

acordos fechados entre bolivianos e brasileiros. Principalmente, quando relatos

davam conta sobre a forma pouco usual como foi recebida a delegação brasileira,

com muita pompa e luxo. Notícias diziam sobre um “derrame” de dinheiro imperial

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na Bolívia com a finalidade de adormecer a opinião pública daquele país –

amplamente favorável à causa paraguaia. Reclamavam os paraguaios que o

governo de Melgarejo utilizava-se de um discurso retórico, e que, na prática, não

movia um passo em favor dos interesses do Paraguai.

Diante dessa situação, o Presidente paraguaio refutou qualquer tipo de

ajuda “piedosa” dos países do Pacífico, dizendo que não necessitava mendigar

consideração, e que seriam vitoriosos por si mesmos (SCAVONE YEGROS, 2004:

79).

Alguns dos emigrados bolivianos recebidos pela sociedade paraguaia

passaram a encampar a luta contra o “imperialismo” e “despotismo” brasileiros.

Um deles, o político cruceño Tristán Roca Suárez (1826-1868), que havia sido

Prefeito de Santa Cruz durante o governo de José María Achá, aderiu de forma

fervorosa à campanha paraguaia, “contra el enemigo nato de las Repúblicas

hermanas, o Império del Brazil, y sus aliados apóstatas de la democracia”.

Ademais, foi criador do pavilhão de Santa Cruz de la Sierra, num momento de

mobilização regional contra o golpe de Estado promovido por Mariano Melgarejo.

Em abril de 1867, Roca tomou a direção de um periódico “sério-jocoso”,

intitulado El Centinela, publicado pela Imprensa Nacional do Paraguai e que

circulou até junho de 1868, período em que foi preso e torturado. No dia 22 de

agosto do mesmo ano, o intelectual cruz-serrano foi executado junto a outros

militares e civis, acusados de conspirarem contra o governo de Francisco Solano

López (FERNANDÉZ, 1984: 87).

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Fonte: Foto de minha autoria, realizada no dia 05/11/20154.

Uma mente brilhante a serviço dos ideais defendidos pelo Presidente da

República do Paraguai, desde seu desembarque em terras guarani, Tristán Roca

Suarez despertou atenção da elite dirigente local. Entregou para a apreciação

destes alguns exemplares do periódico fundado por ele em Santa Cruz de la

Sierra, intitulado “La Estrella del Oriente”. Entusiasmados com o que leram, deram

a Tristán a oportunidade de atuar como colaborador no único impresso que, em

1866, circulava pelas ruas de Assunção, “El Semanário”. O jornal era publicado

pela Imprensa oficial do Paraguai e tinha como missão informar a população sobre

os acontecimentos políticos e sociais. A guerra, como não poderia deixar de ser,

ocupava lugar de destaque na pauta da publicação. Após a vitória das tropas

paraguaias na Batalha de Curupaiti, as ruas de Assunção foram tomadas por ares

festivos; todos confiavam num desfecho favorável no embate com a Tríplice

Aliança. Tomado por esse espírito, Tristán Roca, inspirado, escreveu uma coluna

sobre o brilhante feito em armas, conquistando de vez a simpatia daqueles que

dirigiam o país, em especial de Francisco Solano López.

Em 1867, recebeu a incumbência de dar forma e conteúdo a uma nova

publicação, que deveria tocar fundo no coração dos paraguaios, especialmente da

soldadesca, alimentando a chama da resistência contra a invasão dos aliados.

Assim, em abril de 1867, chegavam às ruas de Assunção os exemplares da

4 Matriz original do periódico “El Centinela”, exposto na Biblioteca Nacional de Assunção (BNA), no Paraguai.

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primeira edição de “El Centinela”. O periódico, em seu editorial dedicado ao

Presidente paraguaio, definia-se como “uno desses soldados jóvenes que habeis

hecho celebres en los campos de batalla”5.

Forjado à semelhança de La Estrella de Oriente, no tocante a sua

diagramação, “El Centinela” inovava na medida em que articulava textos (ensaios,

poemas, crônicas) com uma rica produção imagética, calcada nas Xilogravuras.

Estas eram concebidas de duas formas. A primeira, de caráter mais acadêmica,

erudita, com influência europeia, pode ser percebida nas produções destinadas ao

periódico “El Centinela”, editado em Assunção, pela Imprensa Oficial; o trabalho

de execução feito pelos gravadores Manuel L. Colunga e Juan José Benítez era

acompanhado de perto pelo conceituado arquiteto italiano Alejandro Ravizza, que

idealizava as charges6. A segunda, mais popular, presente em “Cabichuí”, foi

forjada em meio aos campos de batalha, feita por soldados habilidosos na arte de

entalhar madeira. A historiadora Josefina Plá ressalta o caráter inédito e popular

das charges em xilogravuras – sem precedentes na América do Sul -, fruto do

engenho e da conjuntura belicosa nas quais foram concebidas (PLÁ, 1984: 8-12).

Enquanto diretor e redator-chefe do periódico “El Centinela”, Tristán Roca tinha a

missão de engendrar a melhor forma dos receptores apreenderem as mensagens

difundidas.

Não é possível separar texto de imagem ao fazer o presente estudo, uma

vez que o trabalho jornalístico era realizado em equipe, com alto grau de coesão.

Não havia em “El Centinela” um setor específico destinado às charges. Estas

estavam integradas ao conteúdo textual, pois, assim, o “arquiteto” da publicação,

Tristán Roca, almejava atingir diferentes extratos da sociedade paraguaia. Para

tal, esforçava-se, inclusive, em adequar a linguagem e estabelecer estratégias

para alcançar uma comunicação mais eficiente com o público em geral, leitores e

5 Jornal El Centinela, edição nº 01, de 25 de Abril de 1867. 6 A criação das imagens estava a cargo do italiano Alejandro Ravizza, arquiteto e desenhista, contratado pelo governo paraguaio para trabalhar no país. A expressão acadêmica de sua obra também pode ser vista em edifícios antigos da cidade de Assunção, incluindo o próprio Palácio do Governo.

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não leitores. A imagem, portanto, tomada por um espírito “sério-jocoso”, tinha a

força necessária para atingir em cheio a alma daqueles que empreendiam uma

“guerra total” e que viam, dia-a-dia, seus recursos exaurirem. Sabia com quem

dialogava. Falava aos soldados do front, mas também para a alta sociedade

paraguaia, ansiosa com os rumos da guerra.

Para melhor explorar as nuances que as imagens têm a oferecer e extrair

delas o significado que irá dar força ao argumento defendido no texto, emprega-se

metodologia consagrada no campo imagético, que contemplam os ensinamentos

de Erwin Panofsky (PANOFSKY, 1980). Relevante pensar também a técnica

utilizada na produção das charges, com vistas a empreender a análise almejada.

Após uma observação cuidadosa, percebe-se que os desenhos que

preencheram com graça as publicações paraguaias não guardam semelhanças

com as charges produzidas na atualidade, as quais se constituem num produto

singular, resultado de um progressivo amadurecimento de forma e conteúdo, cujo

traço está ligado de forma crítica aos problemas da sociedade na qual se insere.

De início, ao contrário, as charges se caracterizavam pela reprodução fidedigna de

personagens, pelo realismo das situações que abordavam e pelo uso massivo de

textos que menosprezavam a imagem como portadora de estrutura narrativa

particular.

Percorrendo os caminhos da tradição caricaturista, constata-se que as

imagens trabalhadas neste artigo não possuem as características veias

humorísticas, provocadoras do riso, que andariam juntas com os assuntos

políticos. Não podem ser consideradas caricaturas, visto que não se trata, de

acordo com Joaquim Fonseca, de “um desenho que, pelo traço, pela seleção

criteriosa de detalhes, acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa

ou fato” (FONSECA, 1999: 17).

Dessa forma, opta-se por tratar as imagens como ‘charges de guerra’, que

funcionam como jogos visuais, estabelecendo situações que nos permitem

repensar as construções de sentido criadas com o desenvolvimento dos meios de

comunicação e as fronteiras entre os domínios da vida pública e privada.

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Procuram dar conta do discurso do ponto de vista da sua capacidade de ‘agir’ e

‘fazer agir’, captando as interações efetuadas entre “sujeitos individuais ou

coletivos que nele se inscrevem e que de certo modo nele se reconhecem”

(LANDOWSKI, 1992: 23). Assim, o chargista expressa uma ideia simples ou um

sentimento na forma de uma alegoria. A associação de ideias reforça uma

ideologia ou visão de mundo, que não, necessariamente, precisa estar atrelada ao

humor.

O arsenal intelectual de “el desterrado”7, elipsado personagem do conflito,

era vasto e diverso. Dentre as estratégias usadas, salta aos olhos sua opção por

trabalhar com uma das constelações8 que orbitam pelo universo da identidade

nacional da República do Paraguai, “a Mulher” (RÜSEN, 2014).

A primeira imagem analisada tem como protagonistas as mulheres da elite

paraguaia. Nesse contexto, recebeu atenção de sua pluma o episódio conhecido

como “La ofrenda del bello sexo”9, no qual as mulheres dos segmentos mais

abastados do país ofereceram suas joias, dinheiro e propriedades em favor da

causa paraguaia, como se pode verificar a seguir.

.

7 “El Desterrado” é o título de um poema concebido por Tristán Roca Suarez durante sua estada em terras paraguaias, no qual falava das agruras vividas por um exilado em país estrangeiro. Na realidade, falava de sua própria experiência, sendo uma poesia inspirada em aspectos autobiográficos. 8 A ideia de trabalhar com as “constelações” adveio da leitura da obra do teórico alemão, Jörn Rüsen, que entende a cultura história desempenhar papel de extrema relevância, atuando de forma articulada com a memória na formação “identidades”. 9 Jornal El Centinela. Edição nº 21, de 18 de Setembro de 1867. p. 01.

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Fonte: Jornal El Centinela. Edição nº 21, de 18 de Setembro de 1867. p.3.

Dotada de um tom dramático, a narrativa do episódio visa reforçar perante o

público comportamentos tidos como ideais perante o quadro aterrador que viviam;

a abnegação e o sacrifício são louvados reiteradamente. Na imagem, percebe-se

a presença de 37 pessoas, sendo 30 mulheres e 7 homens. As senhoras estão

dispostas à direita e à esquerda da imagem, divididas em dois grupos de 15. Ao

centro, no corredor, ladeado pelas mulheres, vemos dois homens carregando uma

bandeja contendo um objeto. À frente, em posição solene, observando a cena,

mais 5 homens. A disposição dos elementos na imagem clarifica o escrito

anteriormente acerca do academicismo presente nas xilogravuras de “El

Centinela”. Percebe-se uma preocupação com o preenchimento dos espaços de

forma matemática, geométrica, algo difícil de encontrar na imagens presentes em

“Cabichuí”.

Tem-se, então, montado o cenário de um dos eventos mais emblemáticos

da resistência empreendida pelos paraguaios: uma seção solene, realizada no

Palácio dos López, onde as mulheres da alta sociedade dispuseram de seus bens

em favor da continuidade da guerra. O objeto sobre a bandeja é o livro de ouro,

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contendo as doações ao governo paraguaio, com as respectivas assinaturas das

senhoras contribuintes. A representação do feito evoca o desprendimento do “belo

sexo” em benefício da jornada belicosa, que, a essa altura, estava em seu terceiro

ano.

As mulheres representadas vinham de diferentes distritos do Paraguai.

Eram esposas de estancieiros e de dirigentes do alto escalão político. Algumas

delas tomaram a palavra em meio a solenidade, discursando de forma enérgica

aos presentes, conclamando a todos a resistirem ao máximo, sempre a exaltar a

figura do Presidente, designado de “Comandante Supremo”, Francisco Solano

López.

As narrativas textuais em conjunto com as imagens formavam um conjunto

ímpar e poderoso, capaz de comunicar e, por conseguinte, produzir cultura.

Práticas Culturais oriundas da engenhosidade de quem operacionalizava as

ferramentas estatais de comunicação, dando forma a um conjunto de

representações de como a sociedade paraguaia deveria se portar diante das

vicissitudes da Guerra (CHARTIER, 1990). Cultura estabelecida, que lida e

apreendida por gerações, consolidou-se como discurso que amalgama com

maestria a memória coletiva, contribuindo para forjar a ideia de identidade

nacional paraguaia (MARTINS, 2012).

Impossível avançar na análise sem que se remeta aos povos originários da

América, em especial, no caso paraguaio, à etnia guarani. No Paraguai, após a

independência ocorrida em 1811, sob a gestão de Jose Rodriguez Gaspar de

Francia, mentor da política isolacionista levada a cabo entre 1814 e 1840,

processou-se a transição na qual o guarani deixara de conviver com o universo da

“redução” para incorporar-se ao “Estado-Nação”. O alvorecer do nacionalismo

paraguaio se deu nos limites de sua fronteira espacial, porem quando esta se

tornou impenetrável e intransponível por quase três décadas, seu elemento mais

peculiar, a “língua guarani”, determinou e consolidou sua identidade. A cultura

guarani transcendeu as mudanças impostas pelos padrões ocidentais. Mesmo

fragmentada e mutilada, conseguiu conservar seu principal balaústre: o Avane’e,

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que, em guarani, significa “o falar do índio”. Este falar une o que se fragmentou,

alivia os efeitos da mutilação e como uma centrifuga, isola o núcleo de sua alma

da contaminação ocidental, manifestando assim sua substancia plena.

Tamanha e a sua relevância que, mesmo vítima de políticas inadequadas, o

Guarani, hoje, se mantem firme, motivando discursos que conduziram esse legado

cultural à condição de língua oficial do MERCOSUL, bloco econômico composto

por países com os quais possui indiscutível vínculo histórico.

Incorporação justa e que, acima de tudo, está em perfeita sintonia com a

ideia de se promover integração através do elemento cultural. Valorização que

deve ser bandeira também do governo brasileiro, afinal de contas, é

incomensurável a herança indígena para a língua portuguesa, especialmente no

que tange ao tronco linguístico tupi-guarani. Não são necessárias muitas entradas

pelo universo sertanejo brasileiro, para percebermos a forte influência guaranítica,

presente não só na inflexão de voz gutural, mas também na persistência de

inúmeros termos em seu vocabulário.

Responsáveis pela transmissão da tradição cultural e da língua para os

seus filhos, as mulheres guarani, as destemidas Kygua Vera, foram percebidas e

analisadas por Tristán Roca Suarez em meio ao processo de concepção das

estratégias de comunicação bélica (SILVA, 1998: 112-124). Eclipsados pela

historiografia tradicional, o intelectual deu visibilidade às mulheres através de seus

textos. Algo que, somente mais tarde, no século XX, ensejaria estudos mais

apurados por parte dos pesquisadores.

Elas, as mulheres do povo, conhecidas como “Las Residentas”, marcaram

presença nos campos de batalha da “Guerra Grande”, acompanhando seus

maridos, soldados, dando-lhes o suporte necessário para que pudessem defender

o solo pátrio. Muitas, inclusive, pegaram em armas, não se fazendo de rogadas

quando a situação pedia o emprego de suas forças. A representação do ato pode

ser vista na imagem abaixo, sob a legenda de “Las Hijas de la Patria, pidiendo

armas para esgrimirlas contra el ímpio e cobarde invasor”.

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Fonte: Jornal “Cabichuí”. Edição nº 63, Ano I, de Segunda-Feira, 09 de dezembro de 1867.

Segundo a publicação, mulheres se apresentavam às autoridades dos

locais em que residiam, oferecendo sua vida em sacrifício à soberania da

república paraguaia. Tal ação vai ao encontro das célebres palavras proferidas por

Francisco Solano López ao longo da guerra, “Vencer ó morrir”. O ato abnegado e

corajoso devia encontrar ressonância nas fileiras do exército paraguaio, afinal as

esposas e filhas dos soldados estariam dispostas a acompanha-los até as últimas

consequências.

Dentre os vários escritos que elevaram a mulher ao posto de heroína da

nação, destaca-se o poema “Las Areguanas”, concebido por Tristán Roca Suarez

e publicado no jornal “Cabichuí”, mais um dos “soldados” da imprensa paraguaia.

Em que pese fossem publicações diferentes, cada qual com sua equipe de

redação, havia uma interação fraterna entre seus consortes. Pontualmente, Tristán

Roca, diretor e redator-chefe de “El Centinela”, era convidado a escrever para o

“Cabichuí”. Cabe explicar que Areguá é uma pequena cidade serrana, localizada

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às margens do lago Ypacaraí, distante, aproximadamente, 60 quilômetros de

Assunção. Foi o lugar escolhido por Tristán Roca Suarez e sua esposa, Mercedes

de Roca Riveiro, para residirem. Foi na aprazível localidade que o periodista

produziu grande parte de seus textos. Foram as mulheres de Areguá as musas

inspiradoras do poema que o leitor pode apreciar a seguir10:

Marchemos, marchemos Volando a la lid Y toda Areguana Empuñe un fusil. Dejemos las ruecas Y toda Areguana Empuñe un fusil. Broten lindas flores En nuestro Pensil Que toda Areguana Empuñe un fusil. Que ajite sus olas Ipacaray Que toda Areguana Empuñe un fusil. El campo se cubra De rosa y jazmín Que toda Areguana Empuñe un fusil. Tiemblen las legiones De cobardes mil Que toda Areguana Empuñe un fusil. Que vengan los negros De inmundo redil Que ya la Areguana Empuña un fusil. Y jurando todas Vencer o morir Diga la Areguana Al hombro un fusil

A imagem da mulher paraguaia, bela e valente na guerra, está de tal forma

consolidada na memória dos paraguaios que pautou o discurso do Papa Francisco

em visita recente ao país.

10 Jornal “Cabichuí”, edição nº 72, publicado em 9 de janeiro de 1868. Paso Cucu. p. 04.

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Desde os seus primeiros passos como nação independente até dias ainda recentes, a história do Paraguai conheceu o sofrimento terrível da guerra, do confronto fratricida, da falta de liberdade e da violação dos direitos humanos. Tanta dor e tanta morte! Mas é admirável a tenacidade e o espírito de superação do povo paraguaio para se refazer perante tanta adversidade e prosseguir nos seus esforços por construir uma nação próspera e em paz. Aqui, no jardim deste palácio – que foi testemunha da história do Paraguai, desde quando era apenas margem do rio e era usado pelos Guaranis até aos últimos acontecimentos contemporâneos – quero prestar homenagem aos milhares de paraguaios simples, cujos nomes não aparecerão escritos nos livros de história mas que foram e continuam a ser verdadeiros protagonistas da vida do seu povo. E quero reconhecer, com emoção e admiração, o papel desempenhado pela mulher paraguaia nestes momentos dramáticos da história. Sobre os seus ombros de mães, esposas e viúvas carregaram o peso maior, souberam levar por diante as suas famílias e o seu país, infundindo nas novas gerações a esperança num amanhã melhor11.

Em meio a uma historiografia revisionista, que mostra as dores e angústias

de “Las Destinadas y Traidoras”, mulheres paraguaias que, ao verem mutilados os

seus sonhos e perecerem seus companheiros e filhos durante a guerra, não

aceitaram se submeter às ordens do “comandante supremo”, Francisco Solano

López, permanece inabalável a representação de “Las Residentas”, erigidas ainda

no calor da guerra pelo hábil artesão das palavras, Tristán Roca Suarez. A

monumentalidade da imagem se faz presente em uma das principais vias de

Assunção, como num convite à celebração.

11 Discurso extraído da rádio oficial do Vaticano. Site: http://www.news.va/pt/news/paraguai-integra-do-discurso-do-papa-francisco-as, acesso em 01 de dezembro de 2015.

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Fonte: Foto de minha autoria, realizada no dia 06/11/201512.

O trabalho escultórico em homenagem às mulheres paraguaias foi

concebida e executada por Francisco Báez Rolón, reconhecido artista plástico

paraguaio. Foi encomendada pelo, então, Presidente paraguaio, Alfredo

Stroessner, que governou o país de forma ditatorial por 35 anos (1954-1989). A

escultura está inscrita num rol de outras obras criadas com o objetivo de

entronizar na memória dos paraguaios episódios emblemáticos da Guerra Grande

ou Guerra de 70, como alguns preferem denominar. Foi parte da política

institucional do governo militar capitaneado por Stroessner.

Ao sair do Aeroporto Internacional Silvio Petirrossi rumo a Assunção, o

viajante se depara com a figura de uma mulher com os longos cabelos trançados,

trajando um vestido roto devido a encarniçada luta em que se envolveu,

empunhando a bandeira paraguaia, igualmente rota. Traz junto de si uma criança,

seu filho. Atrás, jaz um soldado morto em combate, provavelmente seu marido.

12 Monumento em Homenagem à Mulher Paraguaia, intitulado “Las Residentas”, incrustrado na praça de mesmo nome, localizado na região metropolitana de Assunção, município de Luque, entre a autopista Confederación e a rota General Elizardo Aquino, nas cercanias do Aeroporto Internacional Silvio Petirrossi.

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Símbolo da reconstrução paraguaia, muitas delas atravessaram a fronteira

rumo a Mato Grosso. Algumas se casaram com oficiais brasileiros. Cuiabá

recebeu considerável contingente de paraguaias, que se fixaram, principalmente,

na Freguesia de São Gonçalo, as margens do rio Cuiabá (PERARO, 2001).

Trouxeram essas mulheres a esperança de refazerem as suas vidas, ao

mesmo tempo em que se tornaram participes ativas do processo transculturador,

agregando outras cores a tela cultural mato-grossense, com reflexos sentidos nas

danças, artes, vestuário e alimentação. É mais um exemplo paradoxal capaz de

ampliar a rede de significados costurada pela Guerra, que nos leva a crer

realmente em “vida após a morte”, e sem quaisquer conotações metafísicas.

Conclui-se, portanto, que a resistência paraguaia, em boa medida, foi

gestada no ventre dessas “Madres”, cujas ações durante o conflito ganharam

contornos épicos através da pluma do eloquente periodista do oriente boliviano e

de seus companheiros de redação; em especial dos habilidosos xilógrafos que o

acompanharam.

Sendo assim, é difícil conceber que o Estado paraguaio tenha conseguido

arregimentar a população em torno de si, ao fazer, exclusivamente, uso do

monopólio da violência, impondo o medo aos seus cidadãos. Francisco Solano

López e seu séquito exauriram as reservas humanas do país, cometendo uma

serie de arbitrariedades, como, por exemplo, o recrutamento de crianças e idosos

para a fase final da Guerra. Comandava também uma polícia atuante, que

fiscalizava o comportamento de seus cidadãos, punindo-os exemplarmente diante

do mais leve sinal de insubordinação. Porém, a nosso ver, isso é parte, incapaz de

explicar de forma mais complexificada padrões comportamentais da população em

meio a um conflito armado de grandes proporções.

“Maldita Guerra”, de Francisco Doratioto, obra que legou indiscutíveis

contribuições à historiografia sobre o conflito, parece não ter tido preocupação em

responder sobre a intensa adesão popular paraguaia na defesa de seu território

(DORATIOTO, 2002). A pesquisa não valorizou outros referenciais de análise,

como, por exemplo, a atuação da imprensa e, porque não, o fator étnico (ZARUR,

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1996). Acreditamos que o fervor nacionalista paraguaio, responsável por impor

significativas derrotas a Tríplice Aliança, foi também fruto do processo de

formação e afirmação identitária guarani.

Mentor intelectual daquela que se revelou uma eficiente estratégia de

comunicação, Tristán Roca Suarez foi nada menos que um “operador mítico”, pois

arquitetou e organizou com consciência as fundações que, hoje, sustentam a ideia

de uma identidade nacional, enraizada na memória da sociedade paraguaia.

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