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O Processo de Paz Equador-Peru Marcel Fortuna Biato Resumo: O Acordo de Paz de Brasília de 1998 pôs fim a disputa territorial entre Equador e Peru que, devido ao tamanho e à localização da área contestada, permaneceu como fonte de instabilidade regional e de tensões continentais por décadas. Este artigo examina as circunstâncias que finalmente permitiram negociações, a partir de 1995, para superar conflito de quase dois séculos de existência, muito após quase todas as disputas territoriais na América do Sul terem sido superadas. Ele se concentrará, em particular, nos esforços diplomáticos dos países garantidores do Protocolo de 1942 no Rio de Janeiro, que envolveram conjunto único de negociações e a criação da primeira operação de paz multilateral efetiva na América do Sul. Também sugere que o acordo de paz se beneficiou da dinâmica da integração econômica em andamento desde os anos 80. Finalmente, considera as implicações para os arranjos regionais de segurança, bem como as credenciais de liderança do Brasil na América do Sul. Introdução Em 28 de outubro de 1998, em uma cerimônia histórica no Palácio Itamaraty em Brasília, uma longa disputa fronteiriça que havia fomentado rivalidade persistente, uma série de tentativas diplomáticas fracassadas e hostilidades esporádicas entre Equador e Peru foi finalmente encerrada. A assinatura do Acordo de Paz de Brasília foi o ato final em um conflito prolongado que, devido ao vasto tamanho e localização estratégica da área contestada, foi fonte permanente de instabilidade regional. Esse resultado seguiu-se a um intenso exercício de mediação que havia mobilizado energias diplomáticas em escala sem precedentes, incorporando a primeira missão multilateral efetiva de manutenção da paz na América do Sul. O acordo também fortaleceu uma onda de autoconfiança que varreu o continente e representou nova disposição para enfrentar os males antigos que minavam o crescimento e o avanço regionais. Não foi por acaso que, pouco depois, Brasília sediou a primeira reunião de chefes de Estado da região. Mais de um século e meio de impasses esporádicos, uma grande guerra e uma sucessão de manobras diplomáticas alimentaram uma atmosfera de suspeitas arraigadas e desconfiança latente entre Equador e Peru (Arroyo del Río 1995; Tobar Donoso 1982) que minou todos os esforços para solucionar a disputa fronteiriça ou isolá-la da relação bilateral mais ampla. O mal-estar chegou a tornar letra morta o Protocolo de 1942 que havia restabelecido a paz e solucionado a questão das fronteiras bilaterais na esteira da guerra de 1941 entre os dois países. Os países garantidores (Argentina, Brasil, Chile e EUA) que foram encarregados de assegurar a plena implementação do Protocolo foram rapidamente neutralizados em inação. Após o colapso de sucessivas tentativas de reviver as negociações sobre a implementação do Protocolo de 1942 (Vinícius de Souza 1983; Calderón 1997), os líderes dos dois países abandonaram a esperança de um acordo definitivo de fronteira, preferindo deixar a disputa em hibernação, enquanto perseguindo as oportunidades significativas de cooperação e comércio econômicos. Acreditava-se que as brigas armadas de

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Page 1: O Processo de Paz Equador-Peru - itamaraty.gov.br · Janela de oportunidade Ao procurar analisar as condições prévias para uma mediação bem-sucedida, muitos autores (principalmente

O Processo de Paz Equador-Peru Marcel Fortuna Biato

Resumo: O Acordo de Paz de Brasília de 1998 pôs fim a disputa territorial entre Equador e Peru que, devido ao tamanho e à localização da área contestada, permaneceu como fonte de instabilidade regional e de tensões continentais por décadas. Este artigo examina as circunstâncias que finalmente permitiram negociações, a partir de 1995, para superar conflito de quase dois séculos de existência, muito após quase todas as disputas territoriais na América do Sul terem sido superadas. Ele se concentrará, em particular, nos esforços diplomáticos dos países garantidores do Protocolo de 1942 no Rio de Janeiro, que envolveram conjunto único de negociações e a criação da primeira operação de paz multilateral efetiva na América do Sul. Também sugere que o acordo de paz se beneficiou da dinâmica da integração econômica em andamento desde os anos 80. Finalmente, considera as implicações para os arranjos regionais de segurança, bem como as credenciais de liderança do Brasil na América do Sul. Introdução Em 28 de outubro de 1998, em uma cerimônia histórica no Palácio Itamaraty em

Brasília, uma longa disputa fronteiriça que havia fomentado rivalidade persistente,

uma série de tentativas diplomáticas fracassadas e hostilidades esporádicas entre

Equador e Peru foi finalmente encerrada. A assinatura do Acordo de Paz de Brasília

foi o ato final em um conflito prolongado que, devido ao vasto tamanho e localização

estratégica da área contestada, foi fonte permanente de instabilidade regional. Esse

resultado seguiu-se a um intenso exercício de mediação que havia mobilizado

energias diplomáticas em escala sem precedentes, incorporando a primeira missão

multilateral efetiva de manutenção da paz na América do Sul. O acordo também

fortaleceu uma onda de autoconfiança que varreu o continente e representou nova

disposição para enfrentar os males antigos que minavam o crescimento e o avanço

regionais. Não foi por acaso que, pouco depois, Brasília sediou a primeira reunião de

chefes de Estado da região.

Mais de um século e meio de impasses esporádicos, uma grande guerra e uma

sucessão de manobras diplomáticas alimentaram uma atmosfera de suspeitas

arraigadas e desconfiança latente entre Equador e Peru (Arroyo del Río 1995; Tobar

Donoso 1982) que minou todos os esforços para solucionar a disputa fronteiriça ou

isolá-la da relação bilateral mais ampla. O mal-estar chegou a tornar letra morta o

Protocolo de 1942 que havia restabelecido a paz e solucionado a questão das

fronteiras bilaterais na esteira da guerra de 1941 entre os dois países. Os países

garantidores (Argentina, Brasil, Chile e EUA) que foram encarregados de assegurar a

plena implementação do Protocolo foram rapidamente neutralizados em inação. Após

o colapso de sucessivas tentativas de reviver as negociações sobre a implementação

do Protocolo de 1942 (Vinícius de Souza 1983; Calderón 1997), os líderes dos dois

países abandonaram a esperança de um acordo definitivo de fronteira, preferindo

deixar a disputa em hibernação, enquanto perseguindo as oportunidades significativas

de cooperação e comércio econômicos. Acreditava-se que as brigas armadas de

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pequena escala recorrentes poderiam ser tratadas convenientemente por meio de

medidas tradicionais de fortalecimento da confiança para fomentar a détente, pelo

menos no campo de batalha. Essa tática prevaleceu até 1991, quando um confronto

fronteiriço foi rapidamente seguido por um cessar-fogo patrocinado pelos países

garantidores, mas sem qualquer tentativa significativa de lidar com as questões

subjacentes (Klepak 1998; Palmer 1997).

Ironicamente, o processo de paz, que durou entre fevereiro de 1995 e outubro de

1998, foi desencadeado por uma guerra. A luta nos altiplanos andinos durante várias

semanas, em janeiro de 1995, foi o conflito militar mais intenso na América do Sul por

mais de meio século (Fernández de Córdoba 1998; Pedro 1997). Por que a Guerra do

Cenepa não foi apenas mais um surto na espiral aparentemente infindável de

confrontos armados e negociações fracassadas que definiram relações há muito

tempo entre esses vizinhos andinos? Após a guerra de 1941, o Protocolo de 1942

estabeleceu formalmente as fronteiras entre os dois países (McBride 1996), mas não

conseguiu exorcizar o sangue ruim de longa data. Por que o processo de paz de 1995-

8, meio século após sua assinatura, teve sucesso onde inumeráveis tentativas de

quase um século malograram?

Coreografia da paz

Teorias tradicionais sobre a eficácia da resolução de conflitos tendem a se concentrar

na identificação de um ponto intermediário que faz a ponte entre posições conflitantes,

provocando uma fórmula de soma positiva que dá o suficiente para cada lado para

que um acordo seja alcançado. Quando aplicados a casos específicos, as

possibilidades preditivas desses métodos teóricos geralmente são consideradas

insatisfatórias. A busca por um equilíbrio ideal de interesses facilmente se transforma

em uma perseguição tautológica. Quão útil pode ser essa ferramenta no caso

Equador-Peru quando se considera que o acordo de 1998 não fez alterações

substantivas na fronteira nem nas relações bilaterais? A análise que se segue da

dinâmica das negociações sugere que abordagens mais recentes, enfocando a

predisposição subjetiva das partes de acabar com um dado conflito, oferecem uma

ferramenta heurística mais útil.

Janela de oportunidade

Ao procurar analisar as condições prévias para uma mediação bem-sucedida, muitos

autores (principalmente Zartman 2000; Touval 1982) concentraram-se no conceito

geral de "maturação". Aplicada ao confronto Equador-Peru, pode-se argumentar que

as condições eram, de fato, abundantemente “maduras” para alguma forma de

acomodação: a globalização e a détente pós-Guerra Fria ambas favoreceram as

esperanças de integração regional, tornando o nacionalismo paroquial e a retórica

xenofóbica não apenas anacrônicas, mas também completamente

contraproducentes. Além disso, o cansaço generalizado da guerra em face do custo

e do resultado incerto do conflito de janeiro de 1995 enfraqueceu o fervor jingoísta,

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cada vez mais visto como uma distração para esconder os fracassos das elites locais

em proporcionar crescimento econômico sustentável e bem-estar social. Mais

importante ainda, instituições democráticas revigoradas e uma opinião pública mais

madura e engajada permitiram a Jamil Mahuad concorrer à presidência equatoriana

em 1997 com uma plataforma eleitoral de paz e ao líder incumbente do Peru, Alberto

Fujimori, a responder da mesma maneira. A utilidade da noção de "maturação" como

síntese abrangente tem seus limites, no entanto, quando se considera que nem todos

os momentos maduros são aproveitados. De que outra forma explicar que a

escaramuça fronteiriça anterior, apenas alguns anos antes (em 1991), não levou a um

compromisso decisivo garantidor? Além disso, alguns tipos de negociações podem

ocorrer na ausência de "maturidade". O Protocolo de 1942, vale a pena recordar, foi

assinado no rescaldo da sangrenta guerra de 1941 - e, portanto, dificilmente serviria

como um exemplo de previsão visionária. Pelo contrário, as condições sob as quais

ele foi assinado (ver nota 13) deveriam alimentar o fogo da desconfiança e da

controvérsia. Outros refinam a noção da percepção da maturidade, oferecendo

análises detalhadas das percepções e motivações associadas aos atores locais.

Enquanto isso pode enriquecer o valor descritivo do conceito, adiciona pouco valor

preditivo.

Virada

A teoria da maturidade evoluiu para além dessa apreciação genérica. Ele postula a

existência de pontos de inflexão além dos quais os custos acumulados decorrentes

de um impasse prolongado e "prejudicial", frequentemente ligados a cenários

catastróficos, desencadeiam a pressão necessária para um desfecho desejável. O

impasse no rescaldo da Guerra de Cenepa parece confirmar essa hipótese. As perdas

significativas ressaltaram o fato de que nem o Equador nem o Peru jamais teriam

conseguido uma vitória militar direta e, mesmo assim, com custo político e econômico

extremamente alto. Uma nova escalada de hostilidades poderia facilmente sair do

controle em termos de sofrimento humano e perda material, com consequências

políticas imprevisíveis em países notoriamente instáveis. O Presidente Fujimori

recusou-se a atender aos apelos do alto-comando de fazer pleno uso da superioridade

militar do Peru para montar uma contraofensiva massiva em resposta à acumulação

ilegal de tropas do Equador na zona desmilitarizada. Quanto ao Equador, juntamente

com o risco real de sofrer devastador ataque retaliatório, havia um incentivo adicional

para mostrar contenção. Forças equatorianas, por sua vez, se mantiveram diante de

tropas muito superiores e repeliram os contra-ataques peruanos. No que se tornaria

conhecido como a "mini vitória no Cenepa", os militares equatorianos sentiram-se

profissionalmente reivindicados, politicamente empoderados e, portanto, mais abertos

a acomodar os peruanos (Moncayo 1994).

Impasse e além

No entanto, a noção de um impasse que serve de gatilho para uma solução negociada

também é problemática. Seu questionável valor explicativo é ressaltado pelo fato de

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que a "injúria" pode de fato endurecer, em vez de ajudar a dissolver a resistência. Em

meados de 1998, por exemplo, como um acordo final parecia tentadoramente

próximo, surgiram dificuldades inesperadas. Pequenas acomodações sobre

navegação, alfândega e instalações comerciais destinadas a ajudar a desvendar a

questão crucial da demarcação de fronteiras (ver mais adiante) começaram a sofrer

uma enxurrada de dificuldades técnicas e estereotipadas. Isso foi associado a

movimentos de tropas inexplicáveis após muitos meses de calma, à medida que

surgiam sinais de infiltração não autorizada na zona desmilitarizada. Fujimori foi

forçado a cancelar sua viagem a Quito para a posse em agosto do presidente-eleito

Mahuad, que, na campanha eleitoral, adotou tom mais moderado e pragmático em

relação à questão da fronteira. À medida que as negociações avançavam, os grupos

descontentes de ambos os lados estavam claramente tentando sabotar qualquer

resultado que significasse algo menos do que a vitória direta de seus interesses e

preconceitos. O processo de paz de repente se tornou uma vítima de seu próprio

sucesso, e os fiadores foram forçados a pesar fortemente para colocar as negociações

de volta aos trilhos (Biato 1999; Mariz 1998).

Essa "maturidade" fornece uma oportunidade para que o conhecimento substantivo e

as técnicas de negociação entrem em cena é pouco mais que um reconhecimento

tautológico do óbvio: "Quando existe maturidade, os profissionais precisam de todas

as suas habilidades para transformá-la em um processo de pacificação bem-sucedido"

(Stern e Druckman 2000).

A teoria da maturidade tenta superar esses obstáculos percebidos, adicionando, como

um componente necessário, a "percepção de uma saída", o sentido de ambos os lados

de que um resultado negociado está ao alcance e que a outra parte compartilha o

desejo de avançar para um resultado mutuamente agradável. Em outras palavras, a

falha iminente deve ser acompanhada por uma sensação de como romper o impasse.

O que mudou o jogo em 1995 foi a disposição dos líderes políticos de desempenhar

o que poderia ser descrito como uma "coreografia da paz" (Biato 1999). Através de

uma demonstração orquestrada de medidas de confiança mútua recíprocas e gestos

de boa fé, a distância entre os dois lados foi gradualmente reduzida à questão que

está no centro da disputa: a fronteira que atravessa o Vale do Cenepa. Mas como

superar essas diferenças sem gerar o tipo de fogo amigo que sabota as negociações,

como descrito acima? Como manter as demandas maximalistas em cheque até que

as negociações progridam a um ponto em que um resultado final duradouro, por mais

distante que seja das expectativas originais, possa ser previsto?

Os fiadores como corretores honestos

Mais importante do que tentar estabelecer se existe espaço - "amadurecimento" –

para lançar uma tentativa de mediação é, de fato, engajar-se em uma, para então

determinar pragmaticamente como melhor seguir em frente. "A ausência de"

maturação "não nos manda desistir [...] Ajuda a identificar obstáculos e sugere

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maneiras de lidar com eles e gerenciar o problema até que a resolução esteja ao

alcance" (Crocker 1992: 471). Em vez de focar em formulações teóricas, Crocker

ressalta o papel crucial do mediador ao fornecer conselhos práticos sobre a

organização de exercícios de mediação. Da mesma forma, Goodby usa indicações

visíveis da disposição de atores externos para ajudar a quebrar o impasse como um

teste decisivo. Mesmo que se acredite que a "maturidade" resulta de indicadores

objetivamente mensuráveis, essa sensibilidade muitas vezes permanecerá estéril se

não for possibilitada por atores externos interessados que exerçam pressão

persuasiva.

Como o rescaldo da escaramuça de 1991 mostrou, apesar da "maturidade" das

condições, os fracassos e frustrações acumulados tornaram as partes incapazes de

escrever esse "roteiro de paz" por conta própria; um coreógrafo era necessário. Não

foi por acaso que os primeiros dois anos do processo de paz de quatro anos e meio

foram dedicados a definir as regras de procedimento que deveriam orientar as

negociações subsequentes sob orientação do fiador. Só então esses dois adversários

de longa data foram capazes de compreender a questão e resolver suas

corresponsabilidades na construção de um futuro comum.

Ao superar a arrogância que é parte de qualquer exercício de barganha em que falta

confiança, o mediador deve equilibrar duas ferramentas vitais para persuadir o

progresso: apoiar ativamente as negociações, mas ameaçar remover esse apoio caso

as partes não se envolvam consistentemente. Só então os lados opostos assumirão

a propriedade do processo de paz e aceitarão a responsabilidade de fazer um acordo

final.

Sem dúvida, por causa de sua própria leitura da "maturidade" das condições, os

fiadores estavam dispostos a colocar esses princípios em prática logo após a guerra

de janeiro de 1995, e ir além da prática anterior de apenas supervisionar um cessar-

fogo. Sua resposta foi rápida e decisiva, guiada pelas seguintes premissas:

Paz como meta

Os fiadores estavam dispostos a ajudar a estabelecer uma cessação duradoura das

hostilidades e a enviar uma operação de manutenção da paz para restringir a zona de

guerra, mas somente se ambos os lados se comprometessem a resolver a subjacente

questão da fronteira. Esse entendimento básico foi consagrado na Declaração de Paz

do Itamaraty de 17 de fevereiro de 1995, oficializando o cessar-fogo existente, bem

como o compromisso dos garantidores de aplicá-lo. A barganha exigia concessões

cruciais para ajudar a sustentar o que equivalia a um ato de malabarismo diplomático:

o Equador se absteria provisoriamente de questionar a validade do Protocolo de 1942,

que havia sido difamado por décadas. Em troca, o Peru admitiria que certas questões

preliminares levantadas pelo Equador deveriam ser abordadas antes que as

negociações sobre a demarcação das fronteiras, previstas no Protocolo de 1942,

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pudessem ser formalmente retomadas e concluídas (Bustamante 1997; Moreyra

1995).

Manutenção da paz

Uma demonstração efetiva de disposição para avançar teria primeiro que entrar no

campo de batalha. Isso significou permitir que a missão de observadores militares no

Equador e no Peru (MOMEP) estabilizasse o perímetro do conflito, reforçando um

cessar-fogo duradouro, A próxima etapa consistia em incentivar os antagonistas a

assumirem a responsabilidade crescente de assegurar a paz e a segurança. Os

fiadores introduziram a estratégia inovadora mas arriscada de revezar um maior

número de oficiais equatorianos e peruanos no alto comando da MOMEP. Ao fazê-los

assumir maiores deveres no campo, a MOMEP ajudou a preparar as bases para as

negociações diplomáticas que se seguiriam sobre a substância da disputa (Biato

1999; Klepak 1998)

Escopo da disputa

Assumir responsabilidade vai além de adotar medidas imediatas para assegurar a

cessação das hostilidades; também requer disposição para abordar as implicações de

longo prazo de um acordo. As partes devem, por assim dizer, assumir a "propriedade"

do processo, não importa quão distante seja a fórmula final de suas ambições iniciais.

Para este fim, os fiadores exigiram que ambos os lados explicassem suas respectivas

reivindicações, evitando, assim, a irresponsabilidade arrogante e a falta da

compromisso. Uma vez sob controle a situação militar, a partir de março de 1996,

listas foram trocadas contendo as "discordâncias pendentes" - em outras palavras, os

respectivos pontos de vista sobre a melhor forma de implementar o Protocolo de 1942.

Por meio de exposições técnicas cuidadosamente orquestradas, cada lado

apresentou suas demandas em detalhes e precisão sem precedentes, e reagiu

àquelas da outra parte. Pela primeira vez, cada lado conheceu todos os facetes e

ambições das propostas do outro. Eles agora podiam discernir mais claramente o que

de fato estava em jogo, permitindo que ambos os lados avaliassem melhor até que

ponto eles poderiam estar dispostos a se afastar de suas exigências iniciais em troca

de colocar a disputa de longa data em repouso (González 1997). Nesta fase, os

garantidores exerceram a mediação em sua forma comumente compreendida,

oscilando entre a facilitação do diálogo e intervenções de terceiros mais intrusivas

(Alvarez et al 2013).

Realinhando negociações

Com o avanço das negociações, no entanto, surgiram diferenças aparentemente

insuperáveis na questão da demarcação das fronteiras, que ameaçava desfazer toda

a boa vontade anteriormente construída. Claramente, a resolução de conflitos

geralmente requer mais do que um árbitro; exige um corretor honesto capaz de

aproveitar um momento particularmente vantajoso para intervir e ajudar a catalisar um

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avanço. Superar a inércia e o ceticismo esmagadores requer o desenvolvimento de

uma estratégia que proporcione um ambiente de negociação suficientemente livre de

pressões externas para permitir a diluição gradual de rivalidades e preconceitos

arraigados e a percolação de perspectivas inovadoras. Os desafios em forjar este ciclo

virtuoso de reconciliação são especialmente grandes quando lidamos com conflitos

interestatais que frequentemente envolvem questões de soberania nacional, e noções

imponderáveis de identidade e dignidade coletiva. A questão do papel do mediador

quando o impasse prevalece abre o caminho para a discussão da “diplomacia criativa”

- em outras palavras, a noção, sugerida anteriormente, de que o maior desafio para

uma solução tem menos a ver com a substância da disputa do que com percepções

variáveis e volúveis de perda ou lesão. Os garantidores enfrentaram o desafio de

encorajar os lados a se engajarem no que Saunders (1991) descreve como "resolução

interativa de conflitos" por meio de "transformação de conflito". Pressupõe que os

conflitos de interesses são em grande parte socialmente determinados e, portanto,

reversíveis, dadas as condições adequadas ao longo do tempo. A partir disso,

acredita-se que os componentes perceptivos e emocionais das disputas - sejam os

interesses soberanos de um país ou a política local de identidade - podem ser

transformados ao se engajar em um diálogo que abre caminho para um realinhamento

de percepções e expectativas.

A partir do final de 1997, os fiadores começaram a repensar o processo de

negociação. Eles apresentaram um novo modelo para discussões focadas não mais

na redução da distância entre as partes, mas na construção de consenso em áreas

onde os benefícios de um acordo para ambos os lados eram mais tangíveis. Muitos

dos objetivos estratégicos buscados pelo Equador poderiam ser alcançados sem

redesenhar a fronteira com o Peru. Um acordo bilateral poderia prever concessões

específicas sobre liberdade de navegação e integração fronteiriça que atingiriam o

objetivo declarado do Equador de superar o isolamento e o atraso de longa data de

sua região amazônica. A partir de então, as conversas concentraram-se em

concretizar as seguintes modalidades de cooperação bilateral:

i. Encorajando a navegação e o comércio: permitiu que navios equatorianos

navegassem livremente ao longo do trecho peruano de afluentes que levam ao mar

aberto. Além disso, o Equador teria permissão para estabelecer centros de

processamento de exportação (incluindo alfândegas e instalações portuárias) ao

longo desses rios, onde o Peru melhoraria as condições de navegação. Essas

concessões ajudariam a desenvolver os remansos equatorianos e aumentariam sua

competitividade e integração com o restante do continente.

ii. Cooperação fronteiriça: envolveu a promoção da integração transfronteiriça e o

financiamento de infraestruturas locais, a fim de permitir, por meio de uma

administração coordenada, a utilização racional e sustentável dos recursos naturais

partilhados.

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iii. Fortalecimento da Confiança: envolveu a introdução de medidas de segurança para

melhorar o controle sobre os estoques de armas e a transparência em sua aquisição

e manutenção. Isso ajudaria a esfriar a corrida armamentista que surgiu depois que o

Equador insistiu em adquirir capacidade de dissuasão desproporcionalmente grande,

dada a esmagadora superioridade ofensiva do Peru.

iv. Assistência ao fiador: Envolveu a oferta, no âmbito do Protocolo de 1942, de

intercessão fiadora com nações amigas e agências internacionais financeiras e

técnicas, de modo a promover a implementação dessas propostas.

Mediação "mão na massa"

O novo quadro conseguiu negociar esses eixos, mas conscientemente deixou fora a

questão crucial da demarcação em suspensão. Ao oferecer uma compensação que

alcançava, em termos práticos, os objetivos centrais do Equador, esperava-se que

Quito concordasse em abandonar as reivindicações territoriais pelas quais havia

lutado tanto na mesa de negociações quanto no campo de batalha. Infelizmente, todas

as possibilidades de desenvolvimento cooperativo que um acordo abriria eram

insuficientes quando se tratava de cortar o nó górdio da demarcação de fronteiras.

O desafio agora diante dos fiadores era de construir uma "ponte de expectativas" para

um resultado comum. Por meio de ações que demonstram legitimidade e

proporcionalidade, o mediador pode desbloquear uma série de movimentos que

ajudam a destilar as mudanças nos relacionamentos e percepções. Zartman (2000) e

Touval (1982) chegam ao ponto de sugerir que o engajamento ativo do mediador pode

exigir que se vá além de um papel na comunicação e formulação para o de

manipulação ativa. Contudo, o recurso a pressões pesadas só será eficaz se aplicado

de uma forma que seja, em última análise, aceitável para os dois lados; caso contrário,

arrisca-se promover sensação de excesso de coerção e/ou chantagem que pode levar

o lado afetado a questionar ou denunciar o acordo.

Como os fiadores se enquadraram nesse círculo de negociações? Como troca pelas

concessões mútuas acordadas por ambos os lados para garantir que as negociações

avançassem, os fiadores concordaram em desempenhar papel catalisador: tornaram-

se árbitros de último instância na eventualidade - considerada quase inevitável - de

que os lados seriam incapazes, por si próprios, de conseguir o encerramento dos

"desacordos pendentes". Caso essas diferenças se mostrassem intransponíveis, os

fiadores seriam obrigados a apresentar proposta alternativa para ajudar a diminuir a

distância. Eles também poderiam, caso solicitado, apresentar - desta vez apenas em

caráter consultivo - proposta que oferecesse pacote de soluções para a disputa caso

outras opções falhassem.

Desta forma, os fiadores tentaram evitar que as negociações se esvanecessem, mas

sem deslizarem por ladeira perigosa e escorregadia: uma vez forçadas a assumir a

liderança, sendo obrigadas a assumir total responsabilidade pelo resultado. Por estes

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meios, foi criado um sistema de controles e equilíbrios recíprocos através do qual os

fiadores, embora não lhes era permitido impor uma solução, poderiam condicionar o

seu envolvimento contínuo no processo de paz para demonstrações significativas de

compromisso por parte de ambas as partes. Os garantidores criaram o que pode ser

descrito como um “movimento de pinça” político-diplomático que empurrou as partes

para frente. Este foi apenas o mais recente de uma série de movimentos

cuidadosamente calibrados que visavam aumentar gradualmente a pressão de ambos

os lados para avançar em troca do apoio do fiador. Essa política mostrara-se robusta

o suficiente para enfrentar repetidas crises de instabilidade política nos dois países.

O último e decisivo desafio para os fiadores foi o de destravar as discussões sobre a

questão crucial da demarcação de fronteiras. No que se refere ao Peru, o primeiro

passo foi implementar integralmente o Protocolo de 1942, e, somente com base nisso,

tentar aplacar as sensibilidades equatorianas. Segundo o Equador, o procedimento

deveria ser o inverso: só depois de ter acomodado as expectativas mínimas do

Equador sobre a questão territorial seria possível a normalização das relações

bilaterais e a demarcação de fronteiras.

Uma estrutura de negociação foi convocada para permitir que ambos os lados

retivessem formalmente suas posições declaradas, ao mesmo tempo em que

encorajava uma revisão realista e uma reconsideração da viabilidade de alcançá-los.

Para permitir este equilíbrio, os fiadores fizeram uso da noção de um único

empreendimento pela qual as concessões acordadas em pontos específicos só

seriam validadas e tornadas públicas no caso de um acordo geral sobre todas as

questões pendentes. Esta fórmula engenhosa desencorajou a provocação e permitiu

a decantação de reivindicações maximalistas. Os lados concordaram tacitamente em

suspender as negociações sobre a questão fronteiriça, especialmente sensível,

permitindo assim que se fizesse progressos em relação às possibilidades menos

controversas, mas potencialmente revolucionárias, de cooperação bilateral. No que

ficou conhecido como um exercício de "ambiguidade construtiva", o Equador

temporariamente arquivou sua principal demanda: acesso soberano ao rio Marañón e

uma revisão de 90% do trabalho de demarcação já realizado. Em troca, por enquanto,

o Peru cessou as chamadas públicas para que o Equador abandonasse essas

reivindicações e aceitasse incondicionalmente a validade do Protocolo de 1942.

Após longas conversas, uma série de comissões bilaterais sobre esses temas foi

estabelecida em janeiro de 1998, bem como um cronograma que se estendia até abril

para preparar recomendações sobre as "questões pendentes". Como era de se

esperar, os relatórios geralmente confirmavam as posições peruanas e, conforme

acordado, foram mantidos em sigilo. Esse resultado deixou implícito o entendimento

de que o Equador abandonaria suas reivindicações territoriais se uma compensação

satisfatória em outras áreas estivesse próxima.

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Diplomacia presidencial

As Partes

Assim, criaram-se condições para um acordo iminente: o Equador sairia com um

pequeno consolo sobre a questão fronteiriça e uma série de compensações

comerciais e econômicas, em troca de aceitar, como exigia o Peru, a validade do

Protocolo de 1942 e reconhecimento final da fronteira. Esta fórmula ameaçou

desfazer-se em face de problemas de última hora, particularmente frente à ameaça

de um confronto militar ao longo da fronteira (ver anteriormente). Devido a esses

contratempos, os fiadores encorajaram os presidentes Mahuad e Fujimori a assumir

pessoalmente as negociações. Para seu crédito, eles imediatamente passaram para

o tema central em reuniões individuais sem a presença de conselheiros

excessivamente zelosos ou cautelosos. Mahuad assumira a liderança afirmando em

particular que estava disposto a levar o Equador pela estrada da paz ao abrir mão

suas demandas territoriais de longa data; para isso, ele precisaria de concessões para

salvar face. A resposta foi Tiwintza, um território menor perto do Vale do Cenepa, sem

valor estratégico ou econômico tangível. Foi, no entanto, o palco da tenaz resistência

equatoriana durante a curta mas desagradável guerra de 1995 que se tornou

conhecida como a "mini vitória" (ver anteriormente). Tornou-se um grito de guerra para

uma sensação renovada de bravura militar e orgulho nacional em um país que sempre

se sentiu à mercê de seus vizinhos mais poderosos; um presságio de uma nação

emergindo das cinzas da humilhação passada.

A solução mais óbvia para essa questão era uma troca de território, com o Equador

cedendo terras, ao longo da fronteira, equivalente em tamanho a Tiwintza. No entanto,

o sentimento nacional no Peru de desistir até mesmo do menor pedaço de terra

mostrou-se intransigente, na medida em que isso poderia ser interpretado como

revisão do Protocolo de 1942. Como muitos outros países, o Peru considera os

decisões sobre questões fronteiriças como sacrossantas, já que o anverso correria o

risco de abrir quase todas as fronteiras internacionais para disputar (Ferrero Costa,

1998). Uma proposta alternativa envolvia a criação de um parque ou santuário natural

ao redor de Tiwintza, que se estendia por ambos os lados da fronteira. Como sinal do

espírito de reconciliação e integração, a área seria desmilitarizada e todos os

marcadores de limite seriam removidos. O Peru já havia rejeitado uma proposta

equatoriana de um único parque transfronteiriço, a ser administrado pelos dois países.

A razão permaneceu a mesma: o temor de que esse tipo de fórmula obscurecesse a

fronteira, servindo como um prelúdio para propostas de "internacionalização" de parte

de seu território e, portanto, para a mutilação da soberania nacional.

Os fiadores

As diferenças em relação ao formato do parque mostraram-se intransponíveis,

levando a temores de uma nova crise militar, se as expectativas em relação a esse

exercício diplomático, altamente visível, fossem frustradas. Seguiu-se, no início de

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outubro, um último empurrão pela paz que envolveu uma sequência de movimentos

cuidadosamente sincronizados entre as partes e os fiadores. Os presidentes Mahuad

e Fujimori escreveram uma carta aberta aos fiadores, pedindo-lhes que

apresentassem uma proposta para superar este último obstáculo. Os fiadores

concordaram, mas com uma advertência extraordinária: o projeto resultante para a

paz deveria ser endossado antecipadamente pelo Parlamento em ambos os países,

em outras palavras, mesmo antes de tomar conhecimento de seu conteúdo. Os

fiadores haviam feito sua última “manobra de pinça”, aumentando as apostas em troca

de fornecer suporte contínuo. O seu endosso já não estava condicionado apenas a

uma demonstração de boa fé por parte das partes; eles agora precisavam de total

concordância com qualquer solução que os fiadores conseguissem. O preço da paz

era um cumprimento inquestionável.

Ficou claro para todos que apenas a autoridade dos fiadores - e a ameaça de um

colapso total do processo de paz caso recuassem - levaria as negociações à

conclusão bem-sucedida. Especialmente no Equador, a liderança claramente não

tinha os meios políticos para dar o último salto decisivo sozinho. O fato de que os

fiadores puderam exigir um cheque em branco só foi possível, dado o respeito e

admiração conquistados por seus bons ofícios ao longo de vários anos. Os fiadores

estavam descontando a nota promissória que as partes haviam assinado no início das

negociações, em fevereiro de 1995, quando o Equador e o Peru concordaram em

buscar a paz duradoura como o preço da ajuda dos fiadores para estabelecer um

cessar-fogo firme. Após debates acalorados, mas breves, os parlamentos dos dois

países aprovaram esse procedimento por uma margem confortável.

Uma vez cruzado este Rubicão, os eventos transcorreram rapidamente. Em 23 de

outubro, a solução idealizada pelos fiadores foi divulgada. Em essência, validou as

conclusões das comissões bilaterais que haviam se reunido no início do ano, mas

cujos resultados unilaterais (vantajosos para o Peru) haviam sido retidos. No que diz

respeito a Tiwintza, os fiadores criaram um regime em que o Peru iria transferir o

controle - mas não a soberania - sobre o quilômetro quadrado de terra em torno deste

histórico campo de batalha para o Equador. Após uma reação geralmente favorável

em ambos os países, o acordo foi assinado em uma cerimônia no Palácio do Itamaraty

no final de outubro. O Ato Presidencial de Brasília consagrou uma série de acordos

bilaterais resultantes de quatro anos de negociações. O acordo de fronteira, alcançado

apenas alguns dias antes, foi o coroamento de uma série de entendimentos que

incluíam direitos de navegação, centros de processamento equatorianos, integração

fronteiriça e medidas de fortalecimento da confiança militar.

Reinventando o mecanismo de garantia

Levando a metáfora do "amadurecimento" à sua conclusão final, pode-se argumentar

que os fiadores não estavam satisfeitos em simplesmente esperar que a fruta madura

caísse em seu colo. Em vez disso, eles decidiram optar pelo fruto mais alto (a paz

mais duradoura) do que pelo mais baixo (mais um cessar-fogo potencialmente de

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curta duração). O mecanismo de garantia finalmente abandonara seu papel tradicional

de mero reforço dos tratados. Antes do acordo pós-Segunda Guerra Mundial,

esperava-se que as grandes e/ou regionais potências garantissem os termos dos

tratados, especialmente aqueles que lidam com acordos de paz e segurança, e que

fossem imediata e totalmente colocados em prática. O princípio de pacta sum

servanda - a santidade do cumprimento como a pedra angular do estado de direito -

significava que a preservação da paz e segurança internacionais estritamente

interpretadas, em vez de considerações de justiça e equidade, eram as principais

preocupações em qualquer acordo. Em 1995, o Protocolo de 1942 foi efetivamente

reescrito: de agora em diante, não serviria simplesmente como uma ferramenta para

legitimar o veredicto da guerra de 1941 - em outras palavras, a imposição do decreto

militar do Peru - como um prelúdio à paz.

Ao assumir o papel de "coreógrafo", começando com a decisão de ligar o apoio à

observância do cessar-fogo de fevereiro de 1995, o mecanismo de garantia foi

progressivamente transformado em um instrumento de diálogo e conciliação que

induz a paz. Este processo envolveu:

i. Versatilidade institucional: a garantia forneceu uma estrutura flexível para promover

um encontro progressivo de mentes, que in extremis incluía o que poderia ser

chamado de manipulação "construtiva". Com prudência e pragmatismo, os fiadores

exploraram, numa base ad hoc, as múltiplas combinações de bons ofícios e

instrumentos de mediação na caixa de ferramentas diplomática da América Latina.

Isso ajudou a colocar em andamento uma "coreografia da paz" voltada para uma troca

aberta de ideias e construção de confiança.

ii. Estratégia de saída: os fiadores não se permitiam ser chantageados por brigas

inconstantes. No nível militar, eles empregaram a ameaça de retirar a MOMEP - o que

poderia reacender as hostilidades - como um poderoso incentivo para as partes

assumirem total responsabilidade por levar adiante o processo de paz. Finalmente,

durante as etapas decisivas das negociações, os fiadores condicionaram a

apresentação de uma fórmula para uma solução final à sua prévia aceitação pelas

partes.

iii. Compromissos formalizados: as obrigações processuais assumidas por ambas as

partes e pelos fiadores durante todo o processo de negociação foram oficialmente

adotadas como documentos públicos pelos quais todos os envolvidos poderiam ser

responsabilizados; Este requisito era ainda mais desafiador já que o sucesso da

fórmula do empreendimento único exigia o máximo de confidencialidade sobre a

substância das negociações em andamento.

iv. Tomada de decisão colegiada: isso significava que os fiadores eram menos

suscetíveis a pressões externas e acusações de parcialidade. Embora

ocasionalmente incômoda, essa linha de ação altamente colaborativa conferia uma

sensação de imparcialidade e credibilidade monolíticas, reduzindo sua vulnerabilidade

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a distrações externas e dissensões internas. Isso foi especialmente importante, dadas

as grandes discrepâncias na projeção de poder, bem como nos interesses nacionais

e visões estratégicas de seus membros.

O processo pós-paz

Dividendos de paz bilaterais

Em meados de 1999, havia sido concluída a demarcação dos demais trechos da

fronteira Equador-Peru, cumprindo assim as disposições do Protocolo de 1942. Após

a completa normalização das relações, o comércio bilateral subiu de US $ 100 milhões

em 1996 para aproximadamente US $ 3 bilhões em 2014. As empresas peruanas são

hoje responsáveis por 5% de todos os investimentos estrangeiros no Equador,

enquanto as despesas militares caíram cerca de 20%. Outros dividendos de paz

esperados foram mais lentos na vinda. O Plano de Desenvolvimento Binacional da

Região da Fronteira Equador-Peru, proposto nos acordos de paz, só foi estabelecido

em 2000. O plano canalizou mais de US $ 2 bilhões para projetos de desenvolvimento

em áreas fronteiriças tradicionalmente deprimidas. Mais de 1,5 milhão de pessoas

locais agora se beneficiam dos serviços de saneamento básico, enquanto 800.000

pessoas ganharam acesso à eletricidade, bem como a centenas de novas escolas,

dezenas de clínicas de saúde e melhores conexões viárias que ajudam a conectar a

região com a economia em geral.

Dividendos regionais de paz - novos arranjos regionais de segurança

O processo de paz deve ser entendido no contexto de mudanças fundamentais nas

perspectivas de segurança da América Latina nas últimas décadas. Em primeiro lugar,

o fracasso dos acordos do pós-guerra em superar disputas fronteiriças duradouras

desacreditou em grande parte fórmulas inflexíveis que buscam impor regimes legais

rígidos que fazem pouco para encorajar iniciativas de boa fé e construção de

confiança. O Pacto de Bogotá, com seus mecanismos de arbitragem obrigatórios para

assegurar a solução pacífica de disputas regionais, havia caído em desuso, assim

como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), mecanismo de

segurança hemisférico do pós-guerra. Em segundo lugar, décadas de governo militar

deram início a um nacionalismo belicoso que destacou essa situação ao trazer a

guerra à América Central (década de 1980) e uma ameaça subsequente ao Cone Sul

(1978). Em terceiro lugar, a intervenção agressiva dos EUA em conflitos locais era

cada vez mais vista como contraproducente e anacrônica, numa época em que a

détente na Europa assinalava o declínio da Guerra Fria.

Na esteira do retorno em toda a região à governança democrática nos anos 80, o

Grupo Contadora foi o primeiro esforço significativo para assumir o desafio de

desenvolver respostas caseiras às preocupações com a segurança local. Foi um

primeiro passo, conceitualmente, argumentar que as respostas à instabilidade crônica

da região devem ser buscadas na reforma social e política, e não na repressão, mais

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frequentemente do que com o envolvimento indireto dos EUA. O resultado inevitável

foi definir as preocupações da América Central e, por extensão, de toda a América

Latina, de autodeterminação da segurança e da economia, em oposição à hegemonia

política e militar dos EUA. O Grupo do Rio foi criado em 1986 para levar adiante a

agenda da Contadora em um formato mais institucionalizado. Anunciada como uma

alternativa ao que foi amplamente considerado uma Organização dos Estados

Americanos (OEA), dominada pelos EUA, tornou-se o primeiro fórum político

exclusivamente latino-americano e caribenho. No entanto, o grupo não conseguiu ir

além do papel de uma mesa redonda pouco coordenada e acabou perdendo

relevância.

Um papel para a superpotência

Em contraste, o resultado bem-sucedido do processo de paz Equador-Peru, dez anos

depois, foi um alerta para os líderes sul-americanos. Ele apontou para o fato de que,

pelo menos sob certas circunstâncias e restrições, os EUA poderiam ser um aliado na

solução de alguns dos mais espinhosos desafios de segurança da região. Seu papel

como um dos garantidores originais veio naturalmente para um país ativo desde o final

do século XIX na mediação deste e de outros conflitos disruptivos na América Latina.

Embora com muita má vontade, o interesse dos EUA em promover um status quo

estável e vantajoso para seus interesses econômicos e comerciais na região foi

reconhecido em toda a região. As principais hostilidades entre Equador e Peru em

1941 (durante a Segunda Guerra Mundial) e em 1994 (na véspera da Primeira Cúpula

das Américas) foram consideradas distrações inconvenientes dos principais objetivos

regionais, tornando mais ativo o envolvimento dos Estados Unidos na restauração da

paz.

O papel dos EUA no processo de paz foi vital de pelo menos de três formas. Por um

lado, forneceu apoio logístico que foi decisivo para o sucesso da MOMEP, devido aos

altos custos e desafios técnicos de estabelecer e manter as operações de campo em

grande escala necessárias para assegurar, estabilizar e supervisionar um vasto

território de grande altitude e relativamente inacessível. Por outro lado, o status de

superpotência dos EUA deu-lhe influência significativa, tanto política quanto

econômica, quando foi hora de induzir o Equador e o Peru a chegarem a um acordo.

Finalmente, a liderança dos EUA foi crucial para dar voz às propostas e trazer à vida

muitos dos prometidos dividendos da paz. Um exemplo disso foi o apoio dos EUA em

assegurar que o financiamento internacional - por meio de instituições bancárias

multilaterais, bem como credores estrangeiros - estaria disponível para os projetos de

desenvolvimento na Amazônia e nas regiões fronteiriças. Sua parte construtiva, até

mesmo decisiva, no processo de paz, ressaltou que ainda havia espaço para um papel

ativo de segurança dos EUA na região.

Corolário ainda mais importante do processo de paz, no entanto, foi que uma presença

construtiva dos EUA só foi possível devido às grandes mudanças pelas quais a região

passava, centradas fundamentalmente nos critérios de maturidade identificados

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anteriormente: maturidade política e institucional, imperativos da globalização, entre

outros. O processo de paz e o mecanismo de garantia foram importantes não tanto

porque criaram procedimentos inovadores para superar conflitos complexos, mas

porque deram expressão a transformações fundamentais que ajudaram a sociedade

sul-americana, dadas as condições adequadas, a fazer antiga promessa de

cooperação e integração regional. Isso ficou claro na capacidade dos três fiadores sul-

americanos de trabalhar juntos. Embora o papel deles fosse relativamente

suplementar, a presença da Argentina e do Chile foi vital para ajudar a consolidar um

sentimento de endosso em todo o continente do processo de paz. Mais

importantemente, ressaltou que a longa sombra das rivalidades sul-americanas não

precisa mais atrapalhar a ação coordenada em direção aos objetivos coletivos. A

Argentina e o Chile não só se envolveram em um grande confronto - que quase levou

à guerra em 1978 - mas também foram profundamente aprisionados na complexa teia

de jogos de poder regionais que datam do século XIX e se tornaram o cadinho no qual

o conflito Equador-Peru foi forjado.

Liderança brasileira

Nenhum país estava mais consciente do que o Brasil das possibilidades oferecidas

pelo processo de paz. Entendia que a situação estava madura para a paz e que surgira

uma oportunidade para enfrentar o desafio, primeiramente enfrentado por Contadora,

de estabelecer acordo regional eficaz de paz e segurança. Também reconheceu que

as condições estavam apropriadas para a liderança brasileira, transformando seu

papel de coordenação puramente formal como garantidor principal em uma plataforma

para superar sua tradicional relutância em exercer liderança pública explícita, bem

como para ajudar a amenizar as dúvidas de potenciais rivais, particularmente

Argentina e Colômbia.

Neste, o Brasil foi auxiliado por duas circunstâncias favoráveis. O primeiro foi um sinal

de crescente desejo dos EUA de reduzir seu passivo político e exposição estratégica

na região, encetados após a Guerra Fria, e mais notáveis após a crise financeira de

2008. Enquanto os EUA forneciam apoio logístico e estratégico inestimável, sua

disposição de aceitar o papel de liderança do Brasil no mecanismo de garantia parecia

sugerir como a futura colaboração poderia evoluir. Em segundo lugar, o Brasil foi

encorajado a empreender essas iniciativas ambiciosas na esteira de um renovado

senso de autoconfiança nacional, após a ascensão econômica do país a partir de

meados da década de 1990. Brasília foi assim encorajada pelo surgimento do Brasil

como modelo regional, até mesmo global, em várias agendas de alto perfil social

(programa anti-pobreza) e econômica (pobreza intelectual; tecnologia agrícola).

Não surpreende que o resultado do bem-sucedido processo de paz não tenha sido a

submissão aos interesses estratégicos dos EUA, mas a realização da primeira Cúpula

de Chefes de Estado da América do Sul em 2000. Essa primeira reunião de líderes

regionais - sem participação ou interferência externa - eloquentemente evocou as

possibilidades de ação conjunta na superação de rivalidades de longa data e abriu

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caminho para uma ação comum no rumo às metas de desenvolvimento econômico e

social há muito postergadas (Stuenkel 2014). Esses avanços reforçaram a confiança

do Brasil em sua capacidade de orientar iniciativas de política regional, mas também

de ajudar a transpor o fosso entre as preocupações dos EUA e a autonomia regional.

Uma indicação preliminar nesse sentido veio pela primeira vez em 2002, quando, sob

a liderança brasileira, o "Grupo de Amigos" ajudou a dirimir crise resultante da

tentativa de golpe contra o presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Encorajados por

esses desenvolvimentos, em 2005, o Brasil planejou discussões sobre um novo

mecanismo de coordenação regional, incluindo arranjos para lidar com desafios

emergentes antigos e mais amplos.

As esperanças levantadas pelo lançamento da UNASUL em 2008 não foram

alcançadas. Como uma "tempestade perfeita" de crises econômicas e políticas

envolveu o Brasil nos últimos anos, sua primeira vítima foi a autoconfiança que

impulsionou os primeiros anos da UNASUL. O declínio do boom das commodities tem

sido acompanhado do renovado espectro de focos de agitação social e até

instabilidade política em todo o continente. O senso de propósito comum foi ainda

mais solapado pelo renascimento de antigas disputas ideológicas sob o ônus do

sofrimento econômico. A recente retirada do Brasil da liderança regional ativa deu ao

presidente Chávez espaço para impor sua própria marca de capitalismo de estado

anti-EUA e autoritário. Isso paralisou, em grande parte a UNASUL, que atualmente

está envolvida em um debate altamente politizado e divisivo sobre as condições sob

as quais a "cláusula democrática" pode ser invocada contra governos que se acredita

estarem violando os princípios fundamentais do pluralismo e do estado de direito.

Outra evidência desse recuo generalizado é o enfraquecimento da rede de

mecanismos consultivos birregionais, como os fóruns América do Sul-África (ASA) e

América do Sul-Países Árabes (ASPA).

Talvez o maior desafio enfrentado pela UNASUL seja o de fazer uma proposta de

trabalho de seu Conselho de Defesa, adaptada para coordenar questões de

segurança e disputas fronteiriças pendentes, que continuam sendo um grande

obstáculo para qualquer integração econômica e comercial efetiva. Estes incluem a

questão da transparência na compra de armas e propostas de reduções conjuntas de

armas; o recurso a atores externos (como a Corte Internacional de Justiça) para

grandes disputas pendentes (Colômbia-Venezuela, Bolívia-Chile; Uruguai-Argentina);

e a melhor forma de lidar com os EUA. Mesmo os esforços de pacificação da UNASUL

na Bolívia, considerados sua maior conquista até o momento, não superaram

profundas tensões políticas naquele país. Não surpreende que, em meados de 2016,

a UNASUL ainda tivesse pouco a mostrar por seus esforços de mediação entre a

desmoronada administração venezuelana de Nicolás Maduro e a empoderada

oposição local. Em ambos os casos, indicações crescentes de ambiente institucional

em deterioração foram acompanhadas por sinais de instabilidade política potencial e

reivindicações de violações de direitos humanos.

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Lições

Quão útil é essa discussão conceitual para lidar com o processo de paz entre Equador

e Peru? Primeiro, mostra que não há fórmulas cientificamente precisas e, portanto,

infalíveis para exercícios de mediação bem-sucedidos. Os mecanismos de garantia e

de processo de paz apresentam especificidades que não oferece um "modelo"

fechado e hermético para lidar com tais disputas. Afinal de contas, flexibilidade e

adaptabilidade eram seus maiores pontos fortes. Embora insistindo que a resolução

interativa de conflitos seja uma "abordagem sistemática bem definida", Saunders

concorda que "sua prática é uma arte, não uma ciência" (citada em Stern e Druckman

2000: 257).

Em segundo lugar, destaca a importância do "amadurecimento" não como um

momento específico em que tudo se encaixa, mas sim como um objetivo a ser

alcançado; a construção de um resultado por meio de iniciativas cuidadosamente

planejadas que aproveitam ao máximo as circunstâncias favoráveis. O resultado final,

após quatro anos de intensas negociações, basicamente sustentou o status quo

anterior a 1995 que o Equador havia rejeitado anteriormente. Este resultado sugere

que a interação de diferentes variáveis em um período de tempo limitado pode melhor

explicar o resultado final. Isso acontece em dois níveis distintos, embora intimamente

entrelaçados.

Em um nível, o tempo refere-se ao peso de fatores circunstanciais que podem romper

o um "impasse histórico”. No processo de paz, estes incluem a consolidação das

instituições democráticas em toda a América do Sul, tornando os líderes mais atentos

às demandas populares por maiores oportunidades de emprego e educação, bem

como melhores condições de vida em geral, e esperanças de integração regional; e

uma consciência popular mais profunda dos custos e da futilidade da guerra.

Igualmente crucial foi a parceria estabelecida entre o recém-confiante Brasil e os EUA,

dispostos a se engajarem mais construtivamente, de acordo com o novo clima político

da região.

Em outro nível, o timing tem a ver com a dinâmica associada ao cronograma do

processo de negociação. Os fiadores desenvolveram um manual que foi

cuidadosamente executado ao longo de mais de quatro anos. Por meio de uma série

de gestos públicos e consultas privadas, criou-se impulso que cumulativamente

eliminou a desconfiança (entre as partes), o ceticismo (sobre o comprometimento dos

garantes) e o medo (de fazer concessões). Na fase decisiva, a ameaça de iminente

colapso das negociações ajudou os fiadores a pressionarem as partes para uma

arrancada final pela paz, em vez de servir de pretexto para se conter. Isso destaca

como o conceito de impasse pode ser elusivo. As tentativas de última hora de sabotar

o processo de paz tiveram pouco a ver com o impasse, como isso é geralmente

entendido. Em vez disso, eles foram o resultado final quase previsível do sucesso

alcançado naquele estágio e, portanto, devem ser vistos como uma demonstração

"positiva" de que as negociações estavam no caminho certo. O Protocolo de 1942

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forneceu o palco no qual os fiadores poderiam atuar como "coreógrafos", um

giroscópio diplomático que guia a delicada interação entre essas duas dimensões.

Em terceiro lugar, as referências à "diplomacia criativa" destacam a importância da

abordagem prática adotada pelos fiadores. Em crises anteriores, os obstáculos à

conciliação pareceram intransponíveis ao ponto de uma solução ser imposta ao lado

mais fraco (os termos do Protocolo de 1942) ou uma resolução ser adiada

indefinidamente, permitindo que o conflito infeccionasse (a falta de acompanhamento

através de cessar-fogos sucessivos).

Nos acordos de Lima (janeiro de 1996) e de Santiago (outubro de 1996), os fiadores

assumiram a responsabilidade de incentivar os dois lados por meio de combinação de

propostas substantivas e a ameaça de remoção do apoio (Biato, 1999). Em nenhum

momento os fiadores procuraram dissertar sobre posições conflitantes; pelo contrário,

as posições conflitantes foram exprimidas da forma mais explícita possível, para

melhor identificá-las e eventualmente superá-las.

Em quarto lugar, as referências à "resolução interativa de conflitos" ressaltam o

desafio de alcançar a "transformação de conflito" em um conflito entre Estados

envolvendo questões altamente sensíveis e polarizadas de soberania nacional e

dignidade coletiva. Essa abordagem inclui a facilitação de reuniões nas quais os

membros dos grupos em conflito buscam entender as posições uns dos outros para

criar atmosfera propícia à acomodação. Quando ficou claro que os esforços para

encorajar os dois lados a discutir suas diferenças não estavam funcionando piorando

as tensões ao invés de aliviá-las, os fiadores deram às negociações nova direção,

focada nos resultados mutuamente benéficos esperados de um acordo de paz.

Em quinto lugar, o processo de paz aponta à importância de incutir sentimento de

"propriedade". Não é realista imaginar que as partes em um conflito aceitem os custos

de decisões politicamente impalatáveis se acreditarem que não haveria custos e

responsabilidades caso as negociações falhassem. Em relação às negociações

diplomáticas, isso foi alcançado em dois níveis distintos. Em termos substantivos, os

fiadores envolveram ambos os lados na preparação dos relatórios técnico-jurídicos

nos quais o acordo de fronteira foi baseado. Politicamente, ambos os lados

concordaram com a condição estabelecida pelos fiadores, ou seja, que o resultado

final tivesse de ser formalmente aceito antecipadamente pelos parlamentos dos dois

países. Isso poderia ser considerado manipulação - mas devidamente aceita pelos

dois lados. Esses componentes se reforçavam mutuamente, especialmente quando a

dimensão militar foi acrescentada, por meio da qual oficiais equatorianos e peruanos

foram revezados no alto comando da MOMEP e progressivamente obrigados a

assumir tarefas diárias e procedimentos relacionados à manutenção da paz.

Conclusão

Os acordos de Brasília de 1998 mostraram que a América do Sul poderia superar

rivalidades arraigadas e heranças perversas no caminho para alcançar suas

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aspirações coletivas. Ajudou a inspirar esforços para desenvolver arranjos regionais

capazes de transformar paz e segurança em passaporte para o desenvolvimento

regional.

Em 1995, os fiadores romperam um dos princípios mais perversos do sistema de não-

agressão pré-guerra, que havia fracassado dramaticamente no final da década de

1930. O pretenso princípio de não-interferência nos assuntos internos dos Estados

soberanos era comumente ignorado por grandes potências preocupadas em

promover seu próprio interesse nacional dentro de suas respectivas esferas de

influência. Isso contribuiu para a conflitos por procuração e instabilidade entre os

estados menores, levando a mais intervenções externas.

O aquecimento global e as crises financeiras globais tornaram as implicações da

interdependência mútua e da interconexão cada vez mais óbvias. Mas, tão desafiador

à paz e ã segurança mundial é a dificuldade enfrentada pelos acordos de segurança

regionais e multilaterais tradicionais a respeito de disputas internacionais ou intra-

nacionais altamente desestabilizadoras que se multiplicaram desde o fim da Guerra

Fria. As ONGs com componentes humanitários e de resolução de conflitos têm estado

na vanguarda dos esforços para galvanizar a opinião mundial em favor de superar a

lógica tradicional de soma-zero do conflito internacional como confronto dos

interesses irreprimíveis das entidades soberanas.

Uma alternativa é o aumento do recurso à arbitragem internacional, nomeadamente

por meio da Corte Internacional de Justiça na Haia. As limitações inerentes a essa

opção ficaram bem claras quando, em 2013, a Colômbia anunciou que, dado o

resultado do que apelidou de “resultado politicamente tendencioso” de sua disputa

com a Nicarágua, deixou de reconhecer a jurisdição da Corte. Em contraste, o

Processo de Paz Equador-Peru teve o mérito de criar as condições para que as partes

pudessem absorver as conseqüências políticas associadas a resultado negociado

envolvendo concessões dolorosas.

A MOMEP desempenhou papel central neste processo, agindo como câmara de

descompressão para as tensões na zona de guerra, servindo, assim, como uma

antessala para as negociações políticas diplomáticas que se seguiram. Seu

desempenho aponta para o desafio enfrentado pelas forças armadas na América

Latina de se reinventar em uma região que vem buscando respostas democráticas

efetivas para as "novas ameaças" emergentes do terrorismo internacional e do crime

transnacional.

Como sugere a atual estado da UNASUL, ainda não se sabe se esse processo irá

evoluir para um arranjo completo capaz não apenas de lidar com crises futuras, mas

idealmente de antecipá-las. Isso dependerá de vários fatores. O primeiro é se a

promessa de integração regional será realizada. Isso significa esforços contínuos para

derrubar barreiras, físicas e psicológicas, ao livre fluxo de produtos, mercados,

recursos e idéias. No entanto, a integração competitiva da América do Sul na

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economia globalizada exigirá um compromisso contínuo com a governança

democrática e a manutenção da estabilidade política. Como o processo de paz deixou

claro, a solução negociada de controvérsias - mais do que o nacionalismo belicista -

é a melhor vacina contra a ameaça de subversão doméstica e interferência no exterior.

Além disso, seguindo seu papel ativo dentro do mecanismo de garantia, o Brasil

precisará exercitar consistentemente as crescentes responsabilidades de liderança

que a comunidade internacional espera (Stuenkel 2014), e a opinião pública interna

está apenas agora começando a se valorizar. Por fim, o futuro papel do Brasil

dependerá de forma significativa de suas credenciais de liderança para ajudar a

refazer o relacionamento da América do Sul com a superpotência hemisférica.

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