o papel da mulher no islamismo

5
O papel da mulher no islamismo Elas ainda sofrem, mas a culpa n�o � apenas da religi�o POR TR�S DOS V�US: garota olha entre mulheres afeg�s com burcas A lista de horrores já soa, a esta altura, familiar. Meninas proibidas de ir à escola e condenadas ao analfabetismo. Mulheres impedidas de trabalhar e de andar pelas ruas sozinhas. Milhares de viúvas que, sem poder ganhar seu sustento, dependem de esmolas ou simplesmente passam fome. Mulheres com os dedos decepados por pintar as unhas. Casadas, solteiras, velhas ou moças que sejam suspeitas de transgressões - e tudo o que compõe a vida normal é visto como transgressão - são espancadas ou executadas. E por toda parte aquelas imagens que já se tornaram um símbolo: grupos de figuras idênticas, sem forma e sem rosto, cobertas da cabeça aos pés nas suas túnicas - as burqas. Quando o Afeganistão entrou no noticiário por aninhar os terroristas que bombardearam o World Trade Center e o Pentágono, essas cenas de mulheres tratadas como animais voltaram a espantar o Ocidente. Elas viviam em regime de submissão absoluta havia muito tempo, mas a situação ficou ainda pior desde que a milícia Talibã tomou o poder no país, em 1996. O cenário de Idade Média não era uma prerrogativa afegã. Trata-se de uma avenida permanentemente

Upload: renata-narciso-tavares

Post on 18-Nov-2015

223 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Aula de Filosofia sobre cultura ocidental X oriental. Ensino Médio

TRANSCRIPT

O papel da mulher no islamismoElas ainda sofrem, mas a culpa no apenas da religio

POR TRS DOS VUS:garota olha entre mulheres afegs com burcas

A lista de horrores j soa, a esta altura, familiar. Meninas proibidas de ir escola e condenadas ao analfabetismo. Mulheres impedidas de trabalhar e de andar pelas ruas sozinhas. Milhares de vivas que, sem poder ganhar seu sustento, dependem de esmolas ou simplesmente passam fome. Mulheres com os dedos decepados por pintar as unhas. Casadas, solteiras, velhas ou moas que sejam suspeitas de transgresses - e tudo o que compe a vida normal visto como transgresso - so espancadas ou executadas. E por toda parte aquelas imagens que j se tornaram um smbolo: grupos de figuras idnticas, sem forma e sem rosto, cobertas da cabea aos ps nas suas tnicas - as burqas. Quando o Afeganisto entrou no noticirio por aninhar os terroristas que bombardearam o World Trade Center e o Pentgono, essas cenas de mulheres tratadas como animais voltaram a espantar o Ocidente. Elas viviam em regime de submisso absoluta havia muito tempo, mas a situao ficou ainda pior desde que a milcia Talib tomou o poder no pas, em 1996.O cenrio de Idade Mdia no era uma prerrogativa afeg. Trata-se de uma avenida permanentemente aberta aos regimes islmicos que desejem interpretar os ensinamentos do Coro a ferro e fogo. A isso se d o nome de fundamentalismo. H pases de islamismo mais flexvel, como o Egito, e outros de um rigor extremo, como a Arbia Saudita. Para o pensamento ortodoxo muulmano, a mulher vale menos do que o homem, explica Leila Ahmed, especialista em estudos da mulher e do Oriente Prximo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. "Um 'infiel' pode se converter e se livrar da inferioridade que o separa dos 'fiis'. J a inferioridade da mulher imutvel", escreveu Leila num ensaio sobre o tema, em 1992.Por trs dessa situao h uma ironia trgica. A excluso feminina no est presente nas fundaes do islamismo, mas apenas no edifcio que se erigiu sobre elas. O Coro, livro sagrado dos muulmanos, contm versculos dedicados a deixar claro que, aos olhos de Al, homens e mulheres so iguais. O mais importante deles o que est reproduzido nesta pgina. Ele mostra que Deus espera a mesma fidelidade de ambos os sexos, e que a premiar de forma idntica. O Coro o mandamento divino, e no uma interpretao qualquer da vontade de Deus. Como se explica, ento, que idias to avanadas tenham se perdido, para dar lugar a Estados religiosos em que as mulheres tm de viver trancafiadas e cobertas por vus, em pleno sculo XXI? As respostas tm de ser buscadas muito longe, no prprio nascimento do Isl.Casamento aos 9- Quando tinha 25 anos, Maom se casou com Khadidja, uma viva rica que o empregara para supervisionar sua caravana de comrcio entre a cidade de Meca, na atual Arbia Saudita, e a Sria. A prpria Khadidja, de 40 anos, props as npcias, num arranjo que no era assim to incomum. Naquela poca, a Arbia era uma das poucas regies do Oriente Mdio em que o casamento comandado pelo marido ainda convivia com outros tipos de unio. Acredita-se que havia at mulheres que tinham vrios maridos - e muitas viviam com considervel autonomia pessoal e financeira. Era o caso de Khadidja, uma negociante experiente. Alguns anos depois de seu casamento, Maom comeou a receber o que seriam revelaes de Deus. Julgando-se louco, procurou o conselho da esposa. Ela dispersou suas dvidas e, para provar sua confiana no marido, converteu-se nova religio. O primeiro muulmano foi, assim, uma mulher. Quando Khadidja morreu, Maom entrou em vrios casamentos simultneos. A mais clebre de suas esposas Aisha, que tinha 9 anos na ocasio das bodas. Segundo alguns relatos, ela brincava no quintal quando foi chamada para dentro de casa. L, encontrou o noivo e foi posta sobre seus joelhos. Os pais da menina se retiraram, e o casamento teria se consumado ali, na casa paterna.Aisha uma figura central nesses primeiros anos do Isl (cujo calendrio comea a ser contado no ano 622 da era crist). Inteligente, articulada e dona de uma memria prodigiosa, ela foi a mais querida e respeitada das mulheres do profeta - embora todas partilhassem de seus ensinamentos e apoiassem ativamente sua causa. Eram, alis, to assediadas por pessoas em busca de favores e influncia que talvez por isso tenham sido as primeiras muulmanas (e, por algum tempo, as nicas) a usar vu e ficar recolhidas em casa - e, ainda assim, s nos ltimos anos da vida de Maom. Aisha tinha 18 anos quando Maom morreu. Nas quase cinco dcadas seguintes de sua vida, ela foi inmeras vezes consultada em pontos importantes da religio, da poltica e tambm da conduta do profeta. Isso porque Maom legou aos muulmanos o Coro, que quase um tratado tico, mas no teve tempo de regulamentar todos os princpios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando vivo, podia ser consultado a qualquer momento. Depois de sua morte, tornou-se tarefa de seus seguidores prximos transferir da memria para a escrita as palavras e aes do profeta. A inteno era que o conjunto servisse de guia aos fiis. Esses "ditados" so os Hadith. Juntos, eles compem a tradio maior, a Sunna. Com as complicaes surgidas por causa da sucesso de Maom, os Hadith tornaram-se uma ferramenta crucial. No era difcil que algum sacasse um deles para resolver um impasse. E, claro, no demorou para que muitos fossem forjados. Cerca de 200 anos depois da morte do profeta, um respeitado historiador do islamismo, al-Bukhari, contou 7 275 Hadith genunos, contra quase 600.000 inventados. Mesmo os tidos como verdadeiros merecem algum escrutnio, argumentam estudiosos como a marroquina Fatima Mernissi.Fatima investigou a origem dos Hadith que so as pedras angulares para justificar a inferioridade feminina no Isl. Um deles o que compara as mulheres aos ces e jumentos na sua capacidade de perturbar a orao. Fatima concluiu que o narrador desse Hadith, Abu Hurayra, era um homem com srios problemas de identidade sexual e um feroz opositor de Aisha, que amide o repreendia em pblico por sua mania de inventar Hadith. Nessa ocasio, ela corrigiu Hurayra, dizendo que o profeta costumava rezar perto de suas mulheres sem nenhum medo de que elas o atrapalhassem. Mas sua verso no passou histria. Outro Hadith que todo muulmano sabe de cor o que diz que "aqueles que confiam seus negcios a uma mulher nunca conhecero a prosperidade". Segundo Fatima Mernissi, o surgimento desse Hadith ainda mais misterioso. Abu Bakra, seu narrador, lembrou dessa frase do profeta (e pela primeira vez) mais de vinte anos depois de supostamente ela ter sido dita. Curiosamente, veio-lhe memria (assim ele afirmou) no momento em que Aisha sofreu sua grande derrocada. A viva do profeta virou o centro de uma crise quando, ao suspeitar de um golpe, pegou em armas para intervir numa das etapas da sucesso de Maom. Na batalha que se seguiu, perdeu 13.000 de seus soldados e saiu derrotada, em vrios sentidos. Foi, primeiro, criticada por ter se exposto de uma maneira inconveniente a uma mulher. E, com a perda de prestgio, teve muitos de seus comentrios e correes sobre importantes Hadith suprimidos ou ignorados - como no caso daquele que fala dos ces e jumentos. Esses so s alguns exemplos de como a voz feminina, to valorizada nos primrdios do Isl, comeou a se silenciar.Ideais de pureza- A pesquisadora Leila Ahmed tem mais explicaes para a opresso das mulheres no Isl. Os muulmanos, diz ela, costumavam manter os hbitos das regies onde se firmavam, desde que esses estivessem em sintonia com seu pensamento. O restante era descartado. Na Arbia, por exemplo, eliminaram as outras formas de casamento para que prevalecesse apenas o patriarcal. Quando conquistaram a regio que hoje abarca o Ir e o Iraque, assimilaram a prtica de formar harns, o uso disseminado do vu para as mulheres e, principalmente, os mecanismos de represso feminina que eram uma caracterstica marcante dos povos locais. Foi nesse ambiente altamente misgino que, nos sculos seguintes, o direito islmico foi elaborado. Separado em escolas que diferem em vrios pontos, mas se apresentam como sendo timbres diversos de uma s voz, esse direito dado como absoluto e imutvel. Seus princpios no podem ser questionados nem relativizados luz de traos culturais. Por isso so, at hoje, um instrumento til para calar as mulheres em pases nos quais vigora o regime teocrtico. Um dado complicador que as muulmanas tm at hoje um conhecimento muito vago da lei divina. Aderem ao fundamentalismo atradas pelos ideais de pureza da religio e, quando ele instaurado, so surpreendidas por seus rigores - a exemplo do que ocorreu no Ir dos aiatols.No pequena a importncia de estudos histricos como os de Leila Ahmed e Fatima Mernissi. Eles ajudam a demonstrar que a liberdade feminina no equivale ocidentalizao e aculturao - ou, em outras palavras, traio do Isl. Pelo contrrio: possvel ser, ao mesmo tempo, uma muulmana livre e uma muulmana fiel. Se a democracia chegou para as mulheres que vivem sob a gide da civilizao judaico-crist, que tambm no l muito clebre por sua viso feminista do mundo, no h por que ela no possa ser almejada pelas muulmanas que se orgulham de sua religio. Em tempo: um dia, um seguidor de Maom lhe indagou qual a pessoa que ele mais amava no mundo. "Aisha, minha mulher", respondeu o profeta. Irritado com uma resposta assim, no feminino, o curioso insistiu: "E qual o homem que o senhor mais ama?". Maom no hesitou. "Abu Bakr. Porque ele o pai de Aisha."