o orientador educacional no brasil 2

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  • 7/29/2019 O Orientador Educacional No Brasil 2

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    Antonio Nvoa

    Realizada em: 13/9/2001

    Atuao: Professor titular da Universidade de Lisboa.

    Obras: Vida de professores. 2. ed. Portugal: Porto, 2000; Profisso professor. 3. ed.Portugal: Porto, 2003; Os professores e sua formao. Lisboa: Dom Quixote, 1992; Asorganizaes escolares em anlise. Lisboa: D. Quixote, 1992.

    Matrizes Curriculares

    Salto Professor, o que ser professor hoje? Ser professor atualmente mais

    complexo do que foi no passado?

    Antonio Nvoa difcil dizer se ser professor, na atualidade, mais complexo do quefoi no passado, porque a profisso docente sempre foi de grande complexidade. Hoje, os

    professores tm que lidar no s com alguns saberes, como era no passado, mas tambmcom a tecnologia e com a complexidade social, o que no existia no passado. Isto ,quando todos os alunos vo para a escola, de todos os grupos sociais, dos mais pobresaos mais ricos, de todas as raas e todas as etnias, quando toda essa gente est dentro daescola e quando se consegue cumprir, de algum modo, esse desgnio histrico da escola

    para todos, ao mesmo tempo, tambm, a escola atinge uma enorme complexidade queno existia no passado. Hoje em dia , certamente, mais complexo e mais difcil ser

    professor do que era h 50 anos, do que era h 60 anos ou h 70 anos. Estacomplexidade acentua-se, ainda, pelo fato de a prpria sociedade ter, por vezes,dificuldade em saber para que ela quer a escola. A escola foi um fator de produo deuma cidadania nacional, foi um fator de promoo social durante muito tempo e agoradeixou de ser. E a prpria sociedade tem, por vezes, dificuldade em ter uma clareza,uma coerncia sobre quais devem ser os objetivos da escola. E essa incerteza, muitasvezes, transforma o professor num profissional que vive numa situao amargurada, quevive numa situao difcil e complicada pela complexidade do seu trabalho, que maiordo que no passado. Mas isso acontece, tambm, por essa incerteza de fins e de objetivosque existe hoje em dia na sociedade.

    Salto Como o senhor entende a formao continuada de professores? Qual o

    papel da escola nessa formao?Antonio NvoaDurante muito tempo, quando ns falvamos em formao de

    professores, falvamos essencialmente da formao inicial do professor. Essa era areferncia principal: preparavam-se os professores que, depois, iam durante 30, 40 anosexercer essa profisso. Hoje em dia, impensvel imaginar esta situao. Isto , aformao de professores algo, como eu costumo dizer, que se estabelece numcontinuum. Que comea nas escolas de formao inicial, que continua nos primeirosanos de exerccio profissional. Os primeiros anos do professorque, a meu ver, soabsolutamente decisivos para o futuro de cada um dos professores e para a suaintegrao harmoniosa na profisso continuam ao longo de toda a vida profissional,atravs de prticas de formao continuada. Estas prticas de formao continuadadevem ter como plo de referncia as escolas. So as escolas e os professoresorganizados nas suas escolas que podem decidir quais so os melhores meios, os

    melhores mtodos e as melhores formas de assegurar esta formao continuada. Comisto, eu no quero dizer que no seja muito importante o trabalho de especialistas, o

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    trabalho de universitrios nessa colaborao. Mas a lgica da formao continuada deveser centrada nas escolas e deve estar centrada numa organizao dos prprios

    professores.

    Salto Que competncias so necessrias para a prtica do professor?

    Antonio NvoaProvavelmente na literatura, nos textos, nas reflexes que tm sidofeitas ao longo dos ltimos anos, essa tem sido a pergunta mais freqentemente posta eh uma imensa lista competncias. Estou a me lembrar que ainda h 3 ou 4 dias estive aver com um colega meu estrangeiro, justamente, uma lista de 10 competncias para uma

    profisso. Podamos listar aqui um conjunto enorme de competncias do ponto de vistada ao profissional dos professores.Resumindo, eu tenderia a valorizar duas competncias: a primeira uma competnciade organizao. Isto , o professor no , hoje em dia, um mero transmissor deconhecimento, mas tambm no apenas uma pessoa que trabalha no interior de umasala de aula. O professor um organizador de aprendizagens, de aprendizagens via osnovos meios informticos, por via dessas novas realidades virtuais. Organizador do

    ponto de vista da organizao da escola, do ponto de vista de uma organizao maisampla, que a organizao da turma ou da sala de aula. H aqui, portanto, umadimenso da organizao das aprendizagens, do que eu designo, a organizao dotrabalho escolar e esta organizao do trabalho escolar mais do que o simples trabalho

    pedaggico, mais do que o simples trabalho do ensino, qualquer coisa que vai almdestas dimenses, e estas competncias de organizao so absolutamente essenciais

    para um professor.H um segundo nvel de competncias que, a meu ver, so muito importantes tambm,que so as competncias relacionadas com a compreenso do conhecimento. H umavelha brincadeira, que uma brincadeira que j tem quase um sculo, que parece queter sido dita, inicialmente, por Bernard Shaw, mas h controvrsias sobre isso, quedizia que: "quem sabe faz, quem no sabe ensina".Hoje em dia esta brincadeira podia ser substituda por uma outra: "quem compreende oconhecimento". No basta deter o conhecimento para o saber transmitir a algum,

    preciso compreender o conhecimento, ser capaz de o reorganizar, ser capaz de oreelaborar e de transp-lo em situao didtica em sala de aula. Esta compreenso doconhecimento , absolutamente, essencial nas competncias prticas dos professores. Eutenderia, portanto, a acentuar esses dois planos: o plano do professor como umorganizador do trabalho escolar, nas suas diversas dimenses e o professor comoalgum que compreende, que detm e compreende um determinado conhecimento e capaz de o reelaborar no sentido da sua transposio didtica, como agora se diz, no

    sentido da sua capacidade de ensinar a um grupo de alunos.Salto O que ser professor pesquisador e reflexivo? E, essas capacidades so

    inerentes profisso do docente?Antonio NvoaO paradigma do professor reflexivo, isto , do professor que refletesobre a sua prtica, que pensa, que elabora em cima dessa prtica o paradigma hoje emdia dominante na rea de formao de professores. Por vezes um paradigma um

    bocadinho retrico e eu, um pouco tambm, em jeito de brincadeira, mais de uma vez jdisse que o que me importa mais saber como que os professores refletiam antes queos universitrios tivessem decidido que eles deveriam ser professores reflexivos.Identificar essas prticas de reflexo que sempre existiram na profisso docente,

    impossvel algum imaginar uma profisso docente em que essas prticas reflexivas noexistissemtentar identific-las e construir as condies para que elas possam se

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    desenvolver.Eu diria que elas no so inerentes profisso docente, no sentido de serem naturais,mas que elas so inerentes, no sentido em que elas so essenciais para a profisso. E,

    portanto, tem que se criar um conjunto de condies, um conjunto de regras, umconjunto de lgicas de trabalho e, em particular, e eu insisto neste ponto, criar lgicas de

    trabalho coletivos dentro das escolas, a partir das quaisatravs da reflexo, atravs datroca de experincias, atravs da partilha seja possvel dar origem a uma atitudereflexiva da parte dos professores. Eu disse e julgo que vale a pena insistir nesse ponto.A experincia muito importante, mas a experincia de cada um s se transforma emconhecimento atravs desta anlise sistemtica das prticas. Uma anlise que anliseindividual, mas que tambm coletiva, ou seja, feita com os colegas, nas escolas e emsituaes de formao.

    Salto E o professor pesquisador?

    Antonio NvoaO professor pesquisador e o professor reflexivo, no fundo,correspondem a correntes diferentes para dizer a mesma coisa. So nomes distintos,

    maneiras diferentes dos tericos da literatura pedaggica abordarem uma mesmarealidade. A realidade que o professor pesquisador aquele que pesquisa ou quereflete sobre a sua prtica. Portanto, aqui estamos dentro do paradigma do professorreflexivo. evidente que podemos encontrar dezenas de textos para explicar a diferenaentre esses conceitos, mas creio que, no fundo, no fundo, eles fazem parte de um mesmomovimento de preocupao com um professor que um professor indagador, que um

    professor que assume a sua prpria realidade escolar como um objeto de pesquisa, comoobjeto de reflexo, com objeto de anlise. Mas, insisto neste ponto, a experincia por sis no formadora. John Dewey, pedagogo americano e socilogo do princpio dosculo, dizia: "quando se afirma que o professor tem 10 anos de experincia, d paradizer que ele tem 10 anos de experincia ou que ele tem um ano de experincia repetido10 vezes". E, na verdade, h muitas vezes esta idia. Experincia, por si s, pode seruma mera repetio, uma mera rotina, no ela que formadora. Formadora areflexo sobre essa experincia, ou a pesquisa sobre essa experincia.

    Salto A sociedade espera muito dos professores. Espera que eles gerenciem o seu

    percurso profissional, tematizem a prpria prtica, alm de exercer sua prtica

    pedaggica em sala de aula. Qual a contrapartida que o sistema deve oferecer aos

    professores para que isso acontea?Antonio NvoaCertamente, nas entrelinhas da sua pergunta, h essa dimenso. Hhoje um excesso de misses dos professores, pede-se demais aos professores, pede-se

    demais as escolas.As escolas, talvez, resumindo numa frase (...), as escolas valem o que vale a sociedade.No podemos imaginar escolas extraordinrias, espantosas, onde tudo funciona bemnuma sociedade onde nada funciona. Acontece que, por uma espcie de um paradoxo,as coisas que no podemos assegurar que existam na sociedade, ns temos tendncia a

    projet-las para dentro da escola e a sobrecarregar os professores com um excesso demisses. Os pais no so autoritrios, ou no conseguem assegurar a autoridade, pois se

    pede ainda mais autoridade para a escola. Os pais no conseguem assegurar a disciplina,pede-se ainda mais disciplina a escola. Os pais no conseguem que os filhos leiam emcasa, pede-se a escola que os filhos aprendam a ler. legtimo eles pedirem sobre aescola, a escola est l para cumprir uma determinada misso, mas no legtimo que

    sejam uma espcie de vasos comunicantes ao contrrio. Que cada vez que a sociedadetem menos capacidade para fazer certas coisas, mais sobem as exigncias sobre a

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    escola.E isto um paradoxo absolutamente intolervel e tem criado para os professores umasituao insustentvel do ponto de vista profissional, submetendo-os a uma crtica

    pblica, submetendo-os a uma violncia simblica nos jornais, na sociedade, etc. o que absolutamente intolervel. Eu creio que os professores podem e devem exigir duas

    coisas absolutamente essenciais que so:

    Uma, calma e tranqilidade para o exerccio do seu trabalho, eles precisamestar num ambiente, eles precisam estar rodeados de um ambiente social,

    precisam estar rodeados de um ambiente comunitrio que lhes permita essacalma e essa tranqilidade para o seu trabalho. Quer dizer, no possveltrabalhar pedagogicamente no meio do rudo, no meio do barulho, no meio dacrtica, no meio da insinuao. absolutamente impossvel esse tipo de trabalho.As pessoas tm que assegurar essa calma e essa tranqilidade.

    E, por outro lado, essencial ter condies de dignidade profissional. E estadignidade profissional passa certamente por questes materiais, por questes do

    salrio, passa tambm por boas questes de formao, e passa por questes deboas carreiras profissionais. Quer dizer, no possvel imaginar que osprofessores tenham condies para responder a este aumento absolutamenteimensurvel de misses, de exigncias no meio de uma crtica feroz, no meio desituaes intolerveis, de acusao aos professores e s escolas.

    Eu creio que h, para alm dos aspectos sociais de que eu falei a poucoe que soaspectos extremamente importantes, porque no passado os professores no tiveram, porexemplo, os professores nunca tiveram situaes materiais e econmicas muito boas,mas tinham prestgio e uma dignidade social que, em grande parte completavamalgumas dessas deficincias para alm desses aspectos sociais de que eu falei a poucoe que so essenciais para o professor no novo milnio, neste milnio que estamos, eucreio que pensando internamente a profisso, h dois aspectos que me parecemessenciais. O primeiro que os professores se organizem coletivamentee estaorganizao coletiva no passa apenas, eu insisto bem, apenas pelas tradicionais prticasassociativas e sindicais passa tambm por novos modelos de organizao, comocomunidade profissional, como coletivo docente, dentro das escolas, por gruposdisciplinares e conseguirem deste modo exercer um papel com profisso, que maisampla do que o papel que tem exercido at agora. As questes dos professoradoenquanto coletivo parecem-me essenciais. Sem desvalorizar as questes sindicaistradicionais, ou associativas, creio que preciso ir mais longe nesta organizao

    coletiva do professorado.O segundo ponto e que tem muito a ver tambm com formao de professores passapelo que eu designo como conhecimento profissional. Isto , h certamente umconhecimento disciplinar que pertence aos cientistas, que pertence s pessoas dahistria, das cincias, etc., e que os professores devem de ter. H certamente umconhecimento pedaggico que pertence, s vezes, aos pedagogos, s pessoas da rea daeducao que os professores devem de ter tambm. Mas, alm disso h umconhecimento profissional que no nem um conhecimento cientfico, nem umconhecimento pedaggico, que um conhecimento feito na prtica, que umconhecimento feito na experincia, como dizia h pouco, e na reflexo sobre essaexperincia.

    A valorizao desse conhecimento profissional, a meu ver, essencial para osprofessores neste novo milnio. Creio, portanto, que minha resposta passaria por estas

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    duas questes: a organizao como comunidade profissional e a organizao esistematizao de um conhecimento profissional especfico dos professores.

    Salto O senhor diz em um texto que a sua inteno olhar para o presente dos

    professores, identificando os sentidos atuais do trabalho educativo. Em relao ao

    Brasil o que o senhor v: o que j avanou na formao dos professores brasileirose o que ainda precisa avanar?

    Antonio Nvoa muito difcil para mim e nem seria muito correto estar a tecergrandes consideraes sobre a realidade brasileira. Primeiro porque uma realidadeque, apesar de eu c ter vindo algumas vezes, que eu conheo ainda mal, infelizmente,espero vir a conhecer melhor e, por outro lado, porque no seria (...) da minha partetecer grandes consideraes sobre isso.

    No entanto, eu julgo poder dizer duas coisas. A primeira que os debates que h noBrasil sobre formao de professores e sobre a escola so os mesmos debates que se temum pouco por todo mundo. Quem circula, como eu circulo, dentro dos diversos paseseuropeus, na Amrica do Norte e outros lugares, percebe que estas questes, as questes

    que nos colocam no final das palestras, as perguntas que nos fazem so, regra geral, asmesmas de alguns pases para os outros. No h, portanto, uma grande especificidadedos fatos travados no Brasil em relao a outros pases do mundo e, em particular, emrelao a Portugal. Creio que houve, obviamente, avanos enormes na formao dos

    professores nos ltimos anos, mas houve tambm grandes contradies. E a contradioprincipal que eu sinto que se avanou muito do ponto de vista da anlise terica, seavanou muito do ponto de vista da reflexo, mas se avanou relativamente pouco das

    prticas da formao de professores, da criao e da consolidao de dispositivos novose consistentes de formao de professores. E essa decalagem entre o discurso terico e a

    prtica concreta da formao de professores preciso ultrapass-la e ultrapass-larapidamente. Devo dizer, no entanto, tambm, que se os problemas so os mesmos, seas questes so as mesmas, se o nvel de reflexo o mesmo, eu creio que acomunidade cientfica brasileira est ao nvel das comunidades cientficas ou

    pedaggicas dos outros pases do mundo. Se essas realidades so as mesmas evidenteque h um nvel, que eu diria, um nvel material, um nvel de dificuldades materiais, dedificuldades materiais nas escolas, de dificuldades materiais relacionadas com ossalrios dos professores, de dificuldades materiais relacionadas com as condies dasinstituies de formao de professores que so, provavelmente, mais graves no Brasildo que em outros pases que eu conheo.Tero aqui, evidentemente, problemas que tm a ver com as dificuldades histricas dedesenvolvimento da escola no Brasil e das escolas de formao de professores e que,

    portanto, importante enfrent-los e enfrent-los com coragem e enfrent-los de formano ingnua, mas tambm de forma no derrotista. Creio, por isso, que devemosperceber que no Brasil, como nos outros pases, as perguntas so as mesmas, as nossasempolgaes so as mesmas, mas verdade que h aqui por vezes dificuldades que euchamaria de ordem material, maiores do que as existem em outros pases e que absolutamente essencial que com a vossa capacidade de produzir cincia, com a vossacapacidade de fazer escola e com a vossa capacidade de acreditar como educadores

    possam ultrapassar essas dificuldades nos prximos anos. E esses so, sinceramente, osmeus desejos e na medida que meu contributo, pequeno que ele seja, possa ser dado,

    podem, evidentemente, contar comigo para essa tarefa.