o livro da pureza

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O LIVRO DA PUREZA TERESA COELHO teresa coelho

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Page 1: O livro da pureza

O LIVRO DA PUREZA TERESA COELHO

ter

esa c

oelho

Page 2: O livro da pureza

TERESA COELHO

1

TU

teres

a coe

lho

Page 3: O livro da pureza

TERESA COELHO

2

Que te possa falar

Entre o som e o silêncio

Que bastem o olhar e o calor de um aceno

Que possamos viver em pleno

No intervalo, curto, de todos os momentos

Em que eu sou ausência e tu certeza

Que possamos ser cúmplices mudos na pureza

teres

a coe

lho

Page 4: O livro da pureza

TERESA COELHO

3

Quando o momento chegar

Claro inequívoco evidente

E o próximo segundo à tua frente

Será tarde de mais?

Terás passado

Ao lado

Ausente da dor ou do prazer

Da explosão de estar e ser?

Sentirás o deslumbre e a magia

Da certeza de mais um dia?...

teres

a coe

lho

Page 5: O livro da pureza

TERESA COELHO

4

És tu

Sopro de vida

Quem me sustenta me incita

Preenche os meus vazios inconscientes

És tu

A ligadura dos meus sentidos doentes

Protecção blindada da minha alma frágil

Do meu corpo a nu

És tu

teres

a coe

lho

Page 6: O livro da pureza

TERESA COELHO

5

Que verdade se esconde

Em cada momento em cada instante

Que me deslumbra e me deixa, estonteante,

Presa à certeza de que há o amanhã

De que existo e são reais as minhas dores

Mas nada dói se te seguir,

vás onde fores ?...

teres

a coe

lho

Page 7: O livro da pureza

TERESA COELHO

6

Eu nasci para viver

Presa à evidência de serem raízes os meus pés

Plantados em cada movimento

Das marés

E ser de vento

De espuma de noites ao relento

E amar-te naquilo que és

Oceano calmo ou cume violento

Onde dormem tempestades

Ser tua e ser dona da maior das verdades

teres

a coe

lho

Page 8: O livro da pureza

TERESA COELHO

7

Espero-te

Nesta noite sem horas

Em que te demoras?

Quais os teus caminhos?

Quem és nesta distância?

Eu sou apenas ânsia

De todos os segundos

Em que eu sou eu e tu

Mas tu és outros mundos

teres

a coe

lho

Page 9: O livro da pureza

TERESA COELHO

8

Quero acordar cada dia

Com a certeza do teu rosto adormecido

teres

a coe

lho

Page 10: O livro da pureza

TERESA COELHO

9

Entregar-me aos teus caminhos

Viver os teus segundos

Saber a fórmula dos teus mundos

Ser o teu nome impresso

Em cada vibração do universo

teres

a coe

lho

Page 11: O livro da pureza

TERESA COELHO

10

Todos as perguntas

Todas os mistérios

Todos os segredos

Inscritos nos contornos dos teus dedos

teres

a coe

lho

Page 12: O livro da pureza

TERESA COELHO

11

O SER

teres

a coe

lho

Page 13: O livro da pureza

TERESA COELHO

12

Podia ser a verdade

Do vento no alto dos pinheiros

A certeza agreste da fúria das marés

A aspereza húmida da areia nos pés

O rumo de voos certeiros

Podia ser a verdade

Da forma firme do rochedo

E não sempre a dúvida e o medo

De não ser vento nem maré nem areia nem rochedo

Apenas esta inconstante ansiedade -

- breve traço incerto de humanidade

teres

a coe

lho

Page 14: O livro da pureza

TERESA COELHO

13

Quando sentir os trilhos de ferro sob os meus passos

Quando tocar as asas de falcão sobre os meus ombros

Do monstro de vapor voarei sobre os escombros

E do alto me lançarei noutros espaços

teres

a coe

lho

Page 15: O livro da pureza

TERESA COELHO

14

Fios de teias habilmente tecidas,

Fios compondo redes, ligando vidas,

Fios de água fios de trama,

Fios de doce toque fios em chama,

Fios de cabelo espesso enigma suspance,

Fios em suspensão onde alguém dance,

Fios de sangue escorrente doce quente,

Fios entrelaçados em forte coesão,

Até que desça sobre os fios, levemente,

A lâmina do tempo e da erosão.

teres

a coe

lho

Page 16: O livro da pureza

TERESA COELHO

15

Em vez dos dias

Iguais em sanidade

Em vez da brevidade

Do gesto e da palavra

A luz cristalina

e pulsante

Reflexo inquietante

De ausência divina

teres

a coe

lho

Page 17: O livro da pureza

TERESA COELHO

16

Dorme em mim um tempo

Que eu não conheço

Ou de tanto conhecer

Até o esqueço

teres

a coe

lho

Page 18: O livro da pureza

TERESA COELHO

17

Tudo o que quero é a verdade

A essência a serenidade

Tudo o que quero é a promessa

De construir sem demora e sem pressa

Cada minuto cada momento

Não me faltar nem tijolos nem cimento

teres

a coe

lho

Page 19: O livro da pureza

TERESA COELHO

18

Há um sentido escondido

No vulto primeiro elementar

Há um veio verdadeiro

Límpida saliva como mar

Há uma imagem que se espelha inteira

Na forma da essência verdadeira

teres

a coe

lho

Page 20: O livro da pureza

TERESA COELHO

19

Viver

Como uma necessidade

Fazer

Toda a verdade

Construir

Cada amanhecer

Existir

Entre a certeza e o acreditar

Inventar

A primeira razão

Ser o criador e a invenção

teres

a coe

lho

Page 21: O livro da pureza

TERESA COELHO

20

A essência das coisas

É ainda a essência das coisas

O tempo cobre a incerteza

Não há pontes não há passagens

Apenas a pureza

Das mesmas margens

teres

a coe

lho

Page 22: O livro da pureza

TERESA COELHO

21

Eu digo o que sei.

Digo as suspeitas e a certeza,

Digo cada sílaba da luz da manhã

E cada letra do seu esplendor e beleza.

Digo a suspeita, útil e vã,

De não haver espaços nem distâncias

Que possam servir de abrigo

Ao medo das minhas ânsias.

Eu digo o que sei, digo o perigo

Das linhas e formas de humanidade

Que invadem a tela em passo lento.

Em cada gesto mergulho na claridade,

E os sons da manhã adormecem ao relento.

teres

a coe

lho

Page 23: O livro da pureza

TERESA COELHO

22

Àqueles que recordo muitos dias

Cada morte encerra uma manhã

Que vem nas ondas ou no vento

E nesse instante nasce outro momento

teres

a coe

lho

Page 24: O livro da pureza

TERESA COELHO

23

Ao Pedro Afonso, que há-de ser

2 de Fevereiro de 2000

Hás-de sentir o pulsar do mundo.

Que ele esteja em ti cada segundo.

Hás-de saber a cor do mar e o som do vento

E com eles desfrutar cada momento.

Hás-de olhar-te nos outros, conhecer a tua essência

E nela construir a coerência.

Que consigas ler o mistério e a harmonia

No deslumbre secreto de cada dia.

teres

a coe

lho

Page 25: O livro da pureza

TERESA COELHO

24

À Nina, minha gata

Que horizontes moram no teu olhar,

Que espaços habitam as tuas horas à janela,

O que vês nela,

Que aí te prende, te faz ficar

Assim, longe de mim,

Até a minha carícia te acordar?...

teres

a coe

lho

Page 26: O livro da pureza

TERESA COELHO

25

Eu acredito

Na força do grito

No gesto e na acção

Na certeza de um não

Eu acredito que o Homem é possível,

Que se desenha, num gesto, o futuro

Eu acredito na comunhão, no visível

E no que não se vê para lá do muro

Eu acredito na ingenuidade

Dos que vivem a verdade

E só duvido, num receio secreto e profundo,

Do meu lugar no mundo.

teres

a coe

lho

Page 27: O livro da pureza

TERESA COELHO

26

A CIDADE

teres

a coe

lho

Page 28: O livro da pureza

TERESA COELHO

27

Não é pelo passado ou a beleza que ficou

Mas pela tua presença desenhada

Em tudo o que sou

Moldura de cada encruzilhada

Porque te vejo intacta a cada passo

Cidade da água em que bebo e renasço

teres

a coe

lho

Page 29: O livro da pureza

TERESA COELHO

28

Os rostos

As ruas

As casas

A ria

Os rostos

teres

a coe

lho

Page 30: O livro da pureza

TERESA COELHO

29

Acordar na luz do teu encantamento

Sentir o rumor quente e sonolento

Da tua voz rouca e bravia

Viver as tuas ruas mais um dia

teres

a coe

lho

Page 31: O livro da pureza

TERESA COELHO

30

Há um enigma

no retrato antigo

difuso gesto

sopro do olhar sinuoso

há séculos em repouso

teres

a coe

lho

Page 32: O livro da pureza

TERESA COELHO

31

Sentei-me nessa poltrona velha

Conheci-lhe o toque de nêspera

Foi nela a véspera

De eu ser

(nela e nos passos inquietos no corredor).

Quando eu já não for,

Será seu ainda o recorte verde

Nesta parede.

teres

a coe

lho

Page 33: O livro da pureza

TERESA COELHO

32

Em cada uma das tuas ruas

Em cada canal cada traço de luz

Em cada som em cada rosto

Em todos os momentos de cada dia

O tempo constrói a tua magia

teres

a coe

lho

Page 34: O livro da pureza

TERESA COELHO

33

A minha cidade tem caminhos de terra e ruas de água

E os habitantes da minha cidade

São pescadores a quem a saudade

Deixou nos olhos a luz das salinas

E a promessa de eternos moliceiros.

Na minha cidade ouvem-se os derradeiros

Choros das gaivotas e das peixeiras,

E a moça do ramo e o marnoto

São ecos apenas de um tempo remoto.

teres

a coe

lho

Page 35: O livro da pureza

TERESA COELHO

34

É velha como o tempo.

Já não sabe onde acaba ela e começa a casa.

Os seus cabelos são a textura das paredes

E as sombras das janelas

Habitam o fundo dos seus olhos.

Sai às ruas nas primeiras horas.

Só reconhece a cidade quando ela dorme,

Só fala com as pedras do chão desde o Cais do Paraíso até ao Rossio -

- as outras falam línguas que ela nunca ouviu.

Costura as tardes à janela, dá pão às gaivotas em dias de tempestade.

Fecha os olhos e abre as asas em voo sobre a cidade.

teres

a coe

lho

Page 36: O livro da pureza

TERESA COELHO

35

Céu solitário límpido de receios

Pálpebra dos dias cheios

Sombra fumo névoa manto

Vem cobrir-me de silêncio e de encanto

teres

a coe

lho

Page 37: O livro da pureza

TERESA COELHO

36

Já me esquece a voz do mar

Já me esquecem os rostos da lua

E os ventos que comandam as marés.

Já não mando nos meus pés,

Raízes adormecidas no sol do cais.

Já me esquecem os sinais

Da acalmia ou da tempestade.

Que segredam as gaivotas sentadas na ria,

Ou o ranger da madeira na humidade?

Já me esquece a voz do mar

É a terra que me vem despertar.

Já me esquecem os ventos

Nobres rivais de tantos momentos.

Já me esquecem as caras da lua:

Só me lembra a Tua, só a Tua.

teres

a coe

lho

Page 38: O livro da pureza

TERESA COELHO

37

Pelas variantes da cor

Sombras nos muros e nas pedras das ruas

Pelas vozes perdidas no rumor

Da ria e das salinas mudas

Pelos aromas da maré e do tempo nos passeios

Nudez do espaço que foi já de saleiros e de moliceiros

Reconheci a luz da minha cidade

E abriguei-me nesse reino da verdade

teres

a coe

lho

Page 39: O livro da pureza

TERESA COELHO

38

Imaginar compor as tuas ruas

E deixar-te depois seguir por elas

Como se fossem tuas

teres

a coe

lho

Page 40: O livro da pureza

TERESA COELHO

39

Quero adormecer no reflexo das tuas madrugadas

Quero ser as esquinas das tuas ruas antigas

Quero sentir as tuas memórias nas pedras pisadas

Sentar-me às janelas de paisagens perdidas

Viver em ti mil vidas

Fazer-me das tuas mágoas da tua magia

Para acordar limpa num novo dia

teres

a coe

lho

Page 41: O livro da pureza

TERESA COELHO

40

A PALAVRA

teres

a coe

lho

Page 42: O livro da pureza

TERESA COELHO

41

Não tens de vestir estas palavras

teres

a coe

lho

Page 43: O livro da pureza

TERESA COELHO

42

Quero saber todos os sons todas as sílabas

Das palavras que ainda direi.

teres

a coe

lho

Page 44: O livro da pureza

TERESA COELHO

43

Meu canto adormecido

Animal acossado escondido

Perseguido ignorado

Quer ter voz, quer ter o brado

Do que é selvagem indomável

E não pode ser travado,

Força tremenda e instável,

Sob a apatia ou o temor

De um domador

teres

a coe

lho

Page 45: O livro da pureza

TERESA COELHO

44

Em cada palavra

Dormem mil palavras

Em cada poema

Traços esboços

Ecos secretos

Contornos e linhas

Sabores indiscretos

E adivinhas

teres

a coe

lho

Page 46: O livro da pureza

TERESA COELHO

45

Abri as portas à poesia

Minha escrava liberta

E fiquei só eu na praia deserta

teres

a coe

lho

Page 47: O livro da pureza

TERESA COELHO

46

Como o intervalo entre as primeiras gotas de Outono

Como os silêncios que dividem o som

Como o despertar entre a consciência e o sono

Como a pausa entre a nota e o tom

Deitei o rosto no travesseiro frio

E lancei todas as palavras ao rio

teres

a coe

lho

Page 48: O livro da pureza

TERESA COELHO

47

É de palavras é de palavras este jogo

Joga-se com peões de água e de fogo

É de pedras e sem regras numa forma circular

Até se perder até se ganhar

teres

a coe

lho

Page 49: O livro da pureza

TERESA COELHO

48

Resgatar as palavras

Onde elas se escondem

Conhecer a fórmula

Saber os sinais

Ou dormir no vento e não acordar mais

teres

a coe

lho

Page 50: O livro da pureza

TERESA COELHO

49

Que versos poderão ser conquistados

Se, palavra a palavra, morre o poema?...

teres

a coe

lho

Page 51: O livro da pureza

TERESA COELHO

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Todo o poema

É excesso

Vestígio de sons adormecidos

Regresso

A ecos escondidos

Da verdade dizível

Entre a dívida e a dádiva

Entre a beleza perfeita e a possível

teres

a coe

lho

Page 52: O livro da pureza

TERESA COELHO

51

Sentir cada palavra como a última

Gravar o papel em gestos violentos

Ser o crime ser a vítima

Inventar todos os julgamentos

Construir e destruir em cada segundo

As palavras com que faço o mundo

teres

a coe

lho

Page 53: O livro da pureza

TERESA COELHO

52

Momento suspenso

Entre o pacto que não se diz mas faz-se,

Entre uma e outra sílaba que nasce,

Consciente ou ausente.

Quando a certeza,

A evidência natural e feliz,

De cada palavra ser aquilo que se diz?

teres

a coe

lho

Page 54: O livro da pureza

TERESA COELHO

53

Mergulho em palavras alheias

E o meu mundo ganha forma

Vejo nas dos outros as minhas ideias

Ergo pontes

Traço caminhos

Que os meus são apenas recados

Emprestados

Nenhum poema é ilha isolada

Apenas memória reencontrada

teres

a coe

lho

Page 55: O livro da pureza

TERESA COELHO

54

O silêncio nasce

Entre a inquietação e a inconsciência

No fundo vazio da ausência

Quando olharei as águas cristalinas

E, finalmente desperta,

Verei a marca divina do Poeta?

teres

a coe

lho

Page 56: O livro da pureza

TERESA COELHO

55

A angústia do poema ou outra morte

Que não seja a das palavras

Não o fim

Destas águas que me levam até mim

teres

a coe

lho

Page 57: O livro da pureza

TERESA COELHO

56

Antes que as palavras se dissolvam

E desapareçam dançando na água

Antes que todas as penas todos os crimes se absolvam

Antes que morra o desejo e fique a mágoa

Vou aprisionar este momento

Fechá-lo nas curvas invioláveis do vento

teres

a coe

lho

Page 58: O livro da pureza

TERESA COELHO

57

Haverá um tempo em que o mundo pulsará

Haverá um tempo em que surgirá, verdadeiro, o dia

Haverá um tempo em que o mar respirará

E em cada sopro das ondas

Nascerá o tempo da poesia

teres

a coe

lho

Page 59: O livro da pureza

TERESA COELHO

58

Quem te criou primeiro

da alvura atrevida e singela

Da donzela

Quem te inventou

Nas cordas sofridas do trovador

Passarola bicho adamastor

Quem me condenou

A ser somente um eco repetido

Uma torrente copiada

Pudesse eu ter a voz primordial

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada...

teres

a coe

lho

Page 60: O livro da pureza

TERESA COELHO

59

Onde se abre a passagem

Onde os sons os ecos a luz?

A espera – dizem-me - é precisa.

É na demora que se constrói a vida

teres

a coe

lho

Page 61: O livro da pureza

TERESA COELHO

60

Quero dizer esta pureza

teres

a coe

lho