o liberalismo radical de frei caneca · apenas o embasamento teórico, que foi o aspecto desvendado...

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1 JOÃO ALFREDO DE SOUSA MONTENEGRO O LIBERALISMO RADICAL DE FREI CANECA TEMPO BRASILEIRO Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1978

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JOÃO ALFREDO DE SOUSA MONTENEGRO

O LIBERALISMO RADICAL DE FREI CANECA

TEMPO BRASILEIRO Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – 1978

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À minha esposa

Aos meus filhos

Meus agradecimentos

- a Antônio Paim, orientador do trabalho, pelo apoio e

constante estímulo.

– a Professora Celina Junqueira, coordenadora do

Mestrado em Filosofia da PUC/RJ, pela preciosa

atenção dispensada.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO – Antonio Paim ......................... .5 INTRODUÇÃO .......................................................................... 26 1. FREI CANECA: VIDA, PERSONALIDADE E CIRCUNSTÂNCIA ........................................................... 26 Esboço biográfico ............................................................. 26 Formação doutrinária: influências ...................................... 48 A conjuntura pernambucana: antecedentes .......................... 66 2. A FUNDAÇÃO DO LIBERALISMO RADICAL NO BRASIL ..................................................................... 93 Perfil biográfico e personalidade de Cipriano Barata ............................................................................... 93 Componentes ideológicos de Cipriano Barata. Teses propostas ......................................................108 3. A OBRA DOUTRINÁRIA DE FREI CANECA ..................160 Formulação ideológica em níveis sobrepostos. O encontro da teoria com a praxis .........................................................160 Privilegiamento do elemento utópico-prospectivo-radical num contexto de mentalidade conservadora .........................214 A mobilização do discurso racionalista. Retórica e domínio autoritário da linguagem. O estilo polêmico na confluência do padrão racionalista e da circunstância.........................................................................261 BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 301

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APRESENTAÇÃO

Depois de Evolução do catolicismo o Brasil (Ed.

Vozes, 1972) e de Ideologia e conflito no Nordeste rural

(Tempo Brasileiro, 1976), João Alfredo Montenegro dá -

nos agora uma análise profunda e original do

pensamento de Frei Caneca (1774/1825). A propósito

do primeiro livro, denominando seu autor de “mais

recente historiador do catolicismo” , Alceu Amoroso

Lima afirma que “produziu obra notável em todos os

sentidos”.(1)

A questão da idéia liberal foi sendo gra-

dativamente abandonada pela ensaística brasileira ao

longo da República, talvez pela paulatina extinção da

espécie nos arraiais políticos, circunstância que se

fazia acompanhar da ascensão do republicanismo

autoritário e do autoritarismo doutrinário.(2)

Aban-

donada pela ensaística republicana e pelos políticos, foi

entretanto apropriada pela Universidade a partir dos

anos sessenta. No período desde então transcorrido, o

tema ganhou ‘status” acadêmico, graças sobretudo aos

trabalhos de Roque Spencer Maciel de Barros, Wan-

derley Guilherme dos Santos e Vicente Barreto.

Reconquistamos afinal, ao menos nos círculos uni-

versitários, o entendimento dos grandes teóricos do

século passado, como Silvestre Pinheiro Ferreira

(1796/1846), de que a representação é de interesses.

Semelhante compreensão coloca em primeiro plano, de

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um lado, a organização do corpo eleitoral e a

consideração dos elementos que concorrem em sua

manifestação, e, de outro, que o próprio eleitorado

aprenda a hierarquizar seus interesses, de sorte a

dispor de plataformas efetivamente polarizadoras. Num

contexto destes, o interesse nacional é fruto de uma

ampla negociação e não se trata de “descobri-lo”, e

muito menos através da ciência, como passaram a crer

os republicanos brasileiros, seguindo nesse passo os

ensinamentos do positivismo. Adquiriu-se igualmente,

nos mesmos círculos, uma consciência clara da com-

plexidade das relações entre as idéias liberal e de-

mocrática. Do breve enunciado do caminho percorrido,

vê-se como nos achamos hoje distanciados da acepção

de liberalismo que conquistou foros de universalidade

na imprensa e nos meios políticos.

Na nova circunstância, passou a revestir-se de

especial relevância a compreensão do liberalismo

radical que empolgou parcela significativa da geração

que fez a Independência. Trata-se de um liberalismo

“sui-generis”, com vários pontos de contato com o

autoritarismo porquanto não admite confrontação e

supõe-se um ponto de vista exclusivo.

Vicente Barreto, no ensaio que dedicou à

Ideologia liberal o processo da Independência(3)

de-

bruçou-se sobre o tema, considerando-o momento

destacado no processo de apropriação da idéia liberal,

processo esse que apresenta, nos movimentos que

antecederam a proclamação, a peculiaridade de

considerá-la unilateralmente, no caso, do ângulo da

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liberdade. Neste decênio, diversas pesquisas levadas a

cabo tanto na PUC do Rio de Janeiro (Anna Maria

Moog Rodrigues), como na Universidade Católica de

Salvador (Francisco Pinheiro Lima Junior e Dinorah

Berbet de Castro) e na Universidade Federal de Juiz de

Fora (José Carlos Rodrigues) sugerem uma vinculação

muito estreita entre o liberalismo radical e a filosofia

introduzida em Portugal com a reforma pombalina da

Universidade, denominada empirismo mitigado.

João Alfredo Montenegro quer conduzir mais

longe a compreensão do fenômeno e o fez com ex-

traordinário brilhantismo. Pretende considerar não

apenas o embasamento teórico, que foi o aspecto

desvendado no período recente. Privilegia a circuns-

tância ética do mesmo modo que a forma de expressão

desse pensamento. Valoriza o caráter retórico e

panfletário do discurso político do liberalismo radical.

Visa assim uma abordagem abrangente e multilateral.

O leitor verá que este livro corresponde a

significativo progresso no estudo da idéia liberal na

expressão radical que veio a assumir. Ao longo da

exposição de João Alf redo Montenegro sobressai o

desempenho compreensivo, a atitude de profundo

respeito pela obra estudada, sem abdicação do espírito

crítico, a ausência de qualquer manifestação de

arrogância. Enfim, todas as virtudes do autêntico

historiador.

Rio de Janeiro, janeiro de 1978.

Antônio Paim

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NOTAS DA APRESENTAÇÃO

(1) História da Cultura Brasileira, Vol. I. Os fundamentos.

Brasília, Conselho Federal de Cultura, 1973, pág. 166.

(2) O primeiro corresponde à prática política de que resulta o

virtual abandono do sistema representativo. O segundo, à

elaboração teórica iniciada por Castilhos e que assume feição

acabada no Estado Novo.

(3) Prêmio Poder Legislativo – 1972. Brasília, Ed. da Câmara

dos Deputados, 1973.

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INTRODUÇÃO

Frei Caneca é autor pouco estudado.

Apenas Lemos Brito dignou-se a fazer uma

análise sistemática da obra do glorioso mártir

pernambucano, abrangendo os vários ângulos de sua

elaboração cultural e de sua atividade política, ambas

inseparáveis. No que não faltou o exame minucioso da

personalidade do monge carmelita, completando o

quadro esboçado.

Tal análise, tem por título A Gloriosa Sotaina do

Primeiro Império, da coleção Brasiliana, Companhia

Editora Nacional, edição de 1937.

O mais que se publicou a respeito forma um

pequeno acervo de art igos ou trabalhos esparsos,

contendo aspectos parcelados ou sínteses aligeiradas,

não oferecendo interesse relevante.

A investigação de Lemos Brito, em que pese o

seu rico conteúdo informativo, focalizou de preferência

as linhas mestras de um pensamento po lítico marcado

pela influência de idéias centradas em Locke e em

Montesquieu, e com o estímulo das “tradições per -

nambucanas”, gerando uma concepção de federação

adaptada à realidade brasileira.

Ao redor desse núcleo central de influências

destaca ele o influxo de pensadores radicais, como

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Raynal, o dos clássicos greco-romanos, o de um dos

teóricos do direito natural, Puffendorf.

Não se lançou, porém, o intérprete em foco, a um

trabalho de aprofundamento da postura filosófica de

Frei Caneca, condição sine qua non da nítida com-

preensão do liberalismo radical que desenvolveu.

Isso se deve não só aos objetivos propostos pelo

autor, como também ao estado da reflexão o domínio da

Filosofia e das ciências humanas, carecendo, na época

de lançamento daquele título, do largo suporte epis-

temológico, do aprofundamento temático das questões, a

privilegiarem o período contemporâneo, ou melhor pre-

cisando, o momento atual.

Hoje em dia, a pesquisa, nesse campo, usufrui das

grandes vantagens do método interdisciplinar, que

possibilita a reunião numa densa e rica perspectiva dos

dados provenientes de segmentos vários da ciência, do

pensamento em geral.

Desse modo, a lingüística, a teoria crítica das

ideologias, a hermenêutica, a filosofia da linguagem, a

teoria da literatura, a antropologia, a história, a

sociologia, a Política, o direito etc., confluem para a

formação estrutural de um enfoque, com maiores

dilucidamentos dos problemas levantados, com mais

segura abrangência da temática.

Dúvida não subsiste que não haverá pontos

suficientemente tratados numa investigação, mesmo não

pretendidamente exaustiva, qualquer que seja o setor

humano a objetivar, se fogem à inserção numa visão

integrativa, qual a interdisciplinar.

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Não importa que ela se apóie com maior tônica

em certas disciplinas, desde que elas apresentem os

melhores suportes com vistas ao atingimento dos

objetivos programados.

Assim, algumas delas são normalmente privile -

giadas, por doarem subsídios pertinentes e alentados

com especialidade à interpretação de escritos, que

permaneceriam obscuros ou mal explicitados, não fora

esse expediente técnico.

Dito isso, já se percebe a intencionalidade que

cerca a presente tese, a de iniciar um trabalho de revisão

da obra de Frei Caneca.

Nada se empreendeu, e com a metodologia

focalizada, a respeito. No entanto, algo se devia fazer

nesse sentido.

É sabido o quanto de portentoso há na tarefa.

Rigorosamente, ela é tarefa de equipe. A sua

urgência é para o autor dessa tese a abraçá-la. E o faz

sem grandes pretensões.

Quer apenas estabelecer um novo enfoque, com

fundamento naquela metodologia, com o propósito de

começar o que desejaria fosse uma série de trabalhos

analíticos a cargo de eminentes pensadores, publicistas

ou historiadores das idéias, sob a ação coordenada de

equipe, ou por valiosa iniciativa particular.

Por isso, não vacila em recolher conclusões de

pesquisas em diversas áreas do conhecimento humano,

algumas até pouco aproveitadas pelos historiadores das

idéias, entre nós, como as atinentes à retórica, e que se

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constituem eficazes instrumentos de interpretação do

pensamento político.

E assim, se exime de encetar pesquisas originais

naquelas áreas. O que só seria possível num trabalho de

equipe, evidentemente.

Eis que o tema a ser desenvolvido, “O Li-

beralismo Radical de Fre i Caneca”, cingir-se-á de forma

nuclear ao seu embasamento filosófico, à estrutura

ideológica que, com ele, se harmoniza, numa inte-

ressante singularidade, uma inusitada particularidade, na

ebulição de uma circunstância, assumindo um momento

original e próprio do pensamento político brasileiro.

A tese proposta, e que se procurará demonstrar, é

a de que o liberalismo radical do carmelita pernam-

bucano resulta de uma composição ideológica cons-

truída com elementos recolhidos de diversas e con-

flitantes fontes, apresentando-se em níveis sobrepostos,

com um fundo de mentalidade conservadora, e em

sintonia com arcabouço matizado de linguagem que

veicula objetivos políticos e estratégicos de natureza

utópica, prospectiva.

Para tanto, far-se-á de início um pequeno esboço

biográfico do heróico personagem, seguindo-se a coleta

de influências doutrinárias que sobre ele pesaram, no

calor mesmo da refrega, da conjuntura política

convulsionada em que viveu e na qual teve saliente

participação, deixando ver os aspectos dominantes de

sua personalidade.

A isso se junta o momento da fundação do

liberalismo radical entre nós, estudando-se o perfil

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biográfico e as componentes ideológicas de Cipriano

Barata.

Porquanto, sem um ainda que rápido desen-

volvimento histórico, fixando os antecedentes relacio-

nados com a vida, com a formação cultural, com a

circunstância, com a atividade político-ideológica do

seu precursor, não se reunirão condições propícias para

a análise objetiva do pensamento caneciano. Muito

menos para a colocação e demonstração da tese em foco.

Ela encontra fortes justificativas nos dias atuais,

de profunda modificação na perspectiva e na

metodologia da história das idéias, a qual saiu de um

estágio empírico para outro de elevada cientificidade.

É quando se impõe inquestionavelmente um

tratamento mais sério e atualizado dos pensadores, dos

ideólogos, que atuaram nos períodos transatos da

história do Brasil, malgrado o esforço abnegado e

admirável que alguns exegetas, comprovado em mo -

nografias que, ainda hoje, constituem fontes necessárias

de consulta a quem se lançar em tão difícil e árdua

tarefa.

Com relação à obra de Frei Caneca, requer-se

prioritariamente, dado o seu caráter consolidador de

importante corrente do pensamento político nacional,

uma avaliação consubstanciada no interesse dominante

da conjuntura presente, com vistas à sua condução

racional e consciente.

Firmada numa pauta de historicidade fornecida

pelos valiosos critérios contemporâneos da filosofia e da

teoria da história, com a assistência dos sólidos recursos

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metodológicos de que dispõem, os escritos do monge

carmelita ganham um enfoque mais rico, abrindo a

compreensão urgida do processo político do país sob um

contexto global.

Nessas condições, não há como recusar a va-

lorização dos momentos político-ideológicos nucleares

da evolução histórica brasileira.

E cada vez que se alcança uma nova época torna-

se imperativo o empreender a revisão das leituras sobre

esses momentos.

Assim o exigem as necessidades que ela cria.

É voz corrente entre os estudiosos que a polít ica

forma atividade geradora de diretrizes gerais para os

setores da vida nacional. A economia, a cultura, o

direito, etc., sofrem os condicionamentos dessas

diretrizes. Pelo que assumem determinadas tendências,

reorientando às vezes até os valores naturais que

guardam. Politique d’abord.

Daí a importância da revisão da orientação po-

lít ica, encarnada num modelo.

Nessa tarefa toma corpo, sob o afã atualizador,

outra tarefa de revisão, a da exegese daqueles momentos

político-ideológicos.

Uma é correlativa da outra.

Ambas devem ser contemporâneas.

Nesse sentido, urge uma investigação analít ica

que conclua numa nova perspectiva do pensamento

caneciano.

E por que não assumi-la dentro da concepção

atual da história das idéias?

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Não se mostra oportuno o fazê-lo dentro das

coordenadas assumidas por essa especialidade, que,

aliás, perde o rigorismo do termo, tal, como se viu, o

acervo sofisticado de técnicas, de procedimentos, de

temáticas, de epistemologias, de subsídios, emprestado

por outras ciências, pela filosofia?

Mais se fortalece hoje em dia o entendimento de

que a formulação ideológica se clarifica no interior das

estruturas de linguagem, fornecedora dos grandes sig -

nificados políticos e antropológicos. Mormente quando

se tem o complemento indispensável da hermenêutica

que a faz translúcida nas suas múltiplas conotações,

numa circunstância, no reflexo de uma mentalidade, ou

no jogo complexo das mentalidades em confronto.

O discurso racionalista, na base da concepção

política do liberalismo, na raiz da ideologia caneciana,

reclama, dentro dos critérios nomeados, urgente revisão,

de modo a esclarecer o papel que desempenhou no

exercício político-ideológico, entre nós.

Mais: ele penetra fundo na continuidade histórica

que, fundamentalmente, é continuidade ideológica, em

determinados contextos nacionais.

Daí a prioridade do tema no estudo de vários

períodos mesmo desses contextos.

O discurso racionalista, nas suas matrizes eu-

ropéias e nas particularidades culturais dos países que

sofreram o pesado impacto dele, notadamente os da

América Latina, oferece uma configuração que vem

sendo dissecada através de avançada metodologia e de

critérios epistemológicos operacionais, revelando imen-

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sa gama de dados ideológicos, todas as grandes linhas

de uma civilização.

Com relação àqueles países que viveram na

inteira dependência dos grandes centros, o mesmo

discurso ganhou matizes interessantes, produzindo uma

fenomenologia específica, a merecer os melhores

cuidados da pesquisa.

Nele se enraízam o comportamento político, as

concepções do mundo, os modelos de sociedade, coisas

desse quilate, que se forjaram no encontro do discurso

pré-formado com a cultura nacional, com a vivência

histórica.

Assim, ao assentar o status quaestionis da tese a

ser desenvolvida, demonstra-se a exigência de se valer

da analítica do discurso racionalista como fundo de

mobilização ideológica.

Como, depois disso, negar o embasamento que ele

empresta ao pensamento caneciano?

Como, então, impedir que se situe, com a

conformação que tomou na circunstância brasileira, no

âmago de qualquer problemática ideológica do século

XIX, mais particularmente?

E essa singularidade que assume o discurso

racionalista entre nós torna mais exigente e premente tal

tarefa, sabendo-se ser mister descer fundo à realidade

nacional, a partir da perspectiva histórica, para se obter

o perfeito entendimento das estruturas de pensamento

importadas.

Com o trabalho que se segue, pretende-se

estabelecer um nível de tratamento epistemológico que

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se eleve acima da linguagem descr itiva comum, de

pouca força interpretativa. De modo a franquear a

superação do unilateralismo do enfoque, com o advento

de procedimentos lógicos e de contribuições que

transcendem, no caso da doutrina caneciana, o âmbito

restrito do político, iluminando-o.

E aqui cumpre ressaltar as vantagens que daí

resultam. Assim, o problema central do binômio teoria -

praxis, cuja análise mais fecunda e fundante transpõe os

umbrais da política, encontra na perspectiva proposta

melhor dilucidamento.

Trata-se, na verdade, de ponto sumamente

importante na apreensão do comportamento político

numa conjuntura.

E ele se relaciona com o contexto de mentalidade,

com a disposição das forças sociais em atuação, com as

estratégias políticas que se movem dentro dessa

conjuntura.

Tudo isso passa a ser colocado numa visão

estrutural, percebendo-se significativamente o entrosa-

mento das partes.

Num ideólogo da estirpe de Frei Caneca, adepto

do revolucionarismo, participante de rebeliões, guerri-

lheiro, radical, que quer levar as suas convicções

políticas à plena realização, até pela força se for o caso,

é relevante o tema da prática.

Ela, a seu modo e segundo a concepção que

abraçou, em conformidade com o espírito conturbado do

período, se correlaciona dinâmica e dialeticamente com

a teoria.

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De sorte que o relacionamento de ambas, na viva

trepidação da luta política, tem força de gestação

ideológica, a qual imprescindível de exame na formu -

lação e no desenvolvimento da temática caneciana.

Tal relacionamento repercute nos desníveis

ideológicos que percorrem essa temática. Os quais

despontam com a variedade de momentos a comporem

uma historicidade, ora menos tensos, ora mais tensos,

uns de relativa calmaria, outros de aguda mobilização

política.

Outra vantagem conseqüente à aplicação do

referido procedimento lógico-epistemológico reside na

rica percepção da natureza ideológica do panfleto,

veículo por excelência de fermentação política, parti-

dária, mergulhando na dinâmica dos acontecimentos.

Não se pode empreender de sã consciência a

análise da história das idéias políticas sem se ir até essa

fonte, sem incorporá-la com a sua contextura própria de

linguagem, com a sua imanência ideológica, ao perfil

dos grandes protagonistas, ao retrato das conjunturas.

Ainda se deve acentuar o benefício trazido com a

concepção metodológica aqui seguida, e patenteado na

elevação da consciência política, com o que crescerão as

possibilidades lógicas e as possibilidades reais, por -

quanto ambas andam de mãos dadas. É então que a

utopia adquire nova dimensão, como de fato adquiriu no

presente, e sendo melhor visualizada no passado.

Daí porque se espera que, concluído o presente

trabalho, se tenha obtido uma consciência mais nít ida,

mais realista, mais verticalizada do processo político

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brasileiro. Nessa hipótese, a história das idéias políticas,

ao expor a contextura político-ideológica de um dos

períodos mais conturbados da vida do país, e sob o

patrocínio da elaboração caneciana, estará prestando

valioso contributo às suas instituições.

Verdade que uma elaboração assim pretendida é

cercada de dificuldades.

Ela forçosamente ficará num grau de densidade,

cuja leitura exigirá conhecimentos diversificados e

experiência razoável da metodologia empregada.

No entanto, vale a tentativa.

O seu caráter de pioneirismo e as circunstâncias

que a presidem, atenuarão as falhas nela existentes.

Pelo menos o registro de um sentido original da

meditação aqui oferecida, abrindo novos horizontes para

a história das idéias no país, compensa os desacertos

possivelmente apontados pela crítica.

Esse sentido se evidencia na revelação de co -

nexões entre a personalidade, a circunstância e a obra de

Frei Caneca, manifestando uma performance ideológica,

de tipo muito peculiar, movendo-se dentro de blocos

valorativos com certa autonomia e em perfeit a sintonia

com os desníveis da historicidade.

E a performance ideológica em referência, ex-

pressando-se em formas de linguagem e denunciarem

interrupções, variações, de um processo lógico -se-

mântico, granjeando configuração que retira a possi-

bilidade de rígida uniformidade, propõe-se como es-

trutura compósita, com a absorção de ingredientes

conservadores e radicais. De tal modo que a conciliação

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está no fundo do liberalismo radical, após o final da

missão do monge carmelita.

Assim é que, depois das exposições acerca da

vida, personalidade e circunstância, com o coroamento

do estudo sobre a fundação do liberalismo radical no

Brasil, destacando-se a figura de Cipriano Barata, o que

se põe como necessidade lógica para o tratamento do

tema específico, vem o desenvolvimento propriamente

dito da obra caneciana em que é realçado um tipo de

interpretação em conformidade com o projeto epis te-

mológico delineado.

Para tanto, mister se fez uma investigação sobre o

Iluminismo, com o recolhimento de numerosos dados a

respeito das suas bases lógico-epistemológicas, do teor

ideológico nele imanente, do alcance da nova antro -

pologia que trouxe.

Sublinhou-se, então, o avanço da concepção de

praxis em função do progresso da teoria, com o que se

terá condições de fundar o autêntico entendimento da

ideologia liberal radical entre nós e a sua expressiva

inserção no afrontamento da conjuntura subseqüente à

Independência.

Daí se parte para a explicação de uma tipicidade

ideológica que se produz no meio de descontinuidades,

de sobreposições de segmentos valorativos, uns sobre os

outros.

Depois, com o assentamento de fundamentos mais

gerais sobre o perfil ideológico do frade pernambucano,

exporá aí a tônica do elemento utópico-prospectivo, a

dinâmica que alcançou, a modalidade que tomou, no

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meio de uma estratégia política a se desenrolar num

contexto de mentalidade conservadora.

Após isso é que se ensejará oportunidade para se

estabelecer as conexões existentes entre a ideologia e a

linguagem nos escritos canecianos, esclarecendo as-

pectos importantes, dilucidando pontos que, sem essa

metodologia, permaneceriam obscuros. O que se dará no

capítulo final.

Então o racionalismo aí será, como se pretende,

apresentado de maneira mais lúcida e objetiva.

Como se vê, está-se diante de uma elaboração

presa a um padrão de exegese elevado e denso, às vezes

determinando, como não poderia deixar de ser, certo fe -

chamento da linguagem. Tal a natureza da presente tese.

A qualidade epistemológica imprime-lhe a

necessidade de se apegar a nível de interpretação que

deixa de lado, na exposição do tema, aspectos menos

relevantes, particularidades históricas, hábitos meto -

dológicos, que vinham sendo utilizados por uma série de

estudos sobre o mártir pernambucano.

Acidentes relativos à sua vida e morte, até mesmo

vários episódios históricos que o envolvem, tão co -

mumente invocados, não são trazidos à colação em todo

o desenvolvimento da tese.

É que eles não são pertinentes aos objetivos

propostos, cingindo-se o trabalho a aspectos mais

vinculados ao campo das idéias, das ideologias, da

configuração epistemológica que assumem, especial-

mente a de Frei Caneca. Isso não obsta que, na primeira

parte da tese, se delineiem as circunstâncias históricas

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dentro das quais se move o comportamento ideológico-

político do heróico frade, as particularidades marcantes

de sua vida, as agitações de um período convulsionado,

o confronto de mentalidades nele instalado.

Nesse caso, demorar-se-á preferencialmente no

plano descritivo, com o propósito claro de assentar pres-

supostos do que será o plano dominantemente inter-

pretativo, na segunda parte, quando se alcançará o cerne

da questão.

Disso resulta que a originalidade caracterizará – e

essa a intenção afagada – os momentos de maior

densidade do tema, tornando desnecessária a pletora de

citações, afastando o apoio demasiado freqüente de

autores às colocações expendidas.

A tese em objeto circunscreverá o seu âmbito ao

ensaio de dilucidamento da estrutura ideológica que

pervade os escritos canecianos.

Mas de uma forma a fazer sobressair um processo

modelador e comunicados dessa estrutura, com as co -

notações várias que reúne, com o jogo valorativo que

procria, com as tendências que define, com os condi-

cionamentos modulados de linguagem que suscita.

Não se trata aqui de sublinhar as influências

doutrinárias que pesam sobre o frade carmelita e como

elas ganham corpo num delineamento próprio ao sabor

da circunstância, numa formulação descritiva longe da

explicitação daquela estrutura ideológica.

Pois ela tem uma natureza, uma composição ar-

ticulada, um embasamento lingüístico, uma posição sin-

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gular do universo racionalista, que não merecerá atenção

mais detida.

Isso é o que se tentará colocar no estudo que

segue. Porque não há mais sentido para se continuar a

reproduzir, quase sem variações, o mesmo modelo de

enfoque e de metodologia no tratamento da obra de Frei

Caneca.

Expor os aspectos gerais e particulares dessa

obra, de natureza biográfico-histórica e doutrinária, sem

descer até aos fundamentos epistemológicos e axio -

lógicos que a unificam, que a explicam, constitui

trabalho superficial, não mais condizente com as

exigências do pensamento contemporâneo.

Eis que o intento que se fará nas páginas

seguintes vem determinado por essa preocupação de

trazer algo de novo, malgrado as limitações, talvez

grandes, que o cercam.

Nem poderia deixar de existirem elas num

trabalho de largas ambições, mas necessário nos dias

atuais.

E não só em relação à obra de Frei Caneca.

Numerosos ideólogos e pensadores brasileiros, de

todos os períodos, estão à espera de pesquisadores que

se demorem sobre os seus escritos, interpretando-os nos

moldes lógico-epistemológicos renovados, a ensejarem

ampla revisão do que já foi feito nesse campo.

Com tal convicção, a tese a ser desenvolvida

adotará uma metodologia de trabalho que privilegiará os

dados bibliográficos, documental e panfletário.

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Sobre eles operará a interpretação, porquanto o

que se busca é sobremodo uma leitura calcada naqueles

moldes.

Conforme já foi dito anteriormente, a tese

compreenderá duas partes bem distintas. Uma de caráter

notadamente descritivo; a outra, de feição acentua-

damente interpretativa, a principal, onde se localiza o

cerne da questão.

Para a primeira parte serão utilizados sobretudo

informações históricas.

Isso não veda que, no meio da identificação da

circunstância e da personalidade de Frei Caneca, se

promova a interação dialética entre ambas, até mesmo

para o devido posicionamento das premissas indis -

pensáveis.

Apenas se quer de logo salientar uma qualidade

de exegese, a que de modo algum se poderá eximir em

análises, não obstante prévias, mas já encaminhando

outras de nível mais denso e profundo.

Como se furtar, por exemplo, a essa prática no

esboço da psicologia, das atitudes indicativas de in-

tercorrência dinâmica entre a conjuntura e as exte-

riorizações enérgicas do caráter do carmelita?

E num caráter em que a constituição axiológica se

mostra tão complexa, os imperativos éticos tão singu -

lares, ao estudá-lo, haver-se-á de assumir um plano de

exegese razoável, ainda no meio de esboço descritivo.

Do mesmo modo no respeitante ao perfil de

personalidade e doutrinário de Cipriano Barata, o pre-

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cursor de Frei Caneca, também de fundas implicações

com a conjuntura do seu tempo, cabe tal prática.

Na efetivação da metodologia exposta, utilizar -

se-á uma bibliografia composta de títulos referentes a

diversos campos de estudo.

Ensaios de filosofia política, de história das

idéias filosóficas e políticas, de história política, de

teoria das ideologias, notadamente relacionados com o

período iluminista-liberal, com o momento político

brasileiro subseqüente à Independência, servirão de

respaldo informativo geral ao tema.

Fontes primárias, constantes de manuscritos,

reforçarão alguns pontos específicos, por recomendação

técnica, pela prioridade que têm sobre escritos de

segunda mão.

Por fim, o panfleto é trazido a lume, como o

melhor suporte de avaliação ideológica, especialmente

ao ser posto em conexão com os títulos que englobam

sobre a retórica, sobre o discurso racionalista.

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1. FREI CANECA:

VIDA, PERSONALIDADE E CIRCUNSTÂNCIA

Esboço biográfico

Frei Joaquim do Amor Divino, a que se

acrescentaria o agnome de Caneca, não se presta até

hoje a uma dessas biografias copiosas, repletas de

episódios e de incidentes, que compõem e iluminam a

formação evolutiva dos grandes homens.

Certo que ele é um deles. O desempenho

extraordinário que teve na Revolução de 1824 por si só

o atesta, culminando um período a partir de 1817, todo

ele devotado à causa da liberdade. E quando manifestou

qualidades elevadas de caráter, de firmeza moral, de

constância e de intrepidez na defesa do ideal a que se

dedicou. Como também o brilho e a vastidão da cultura,

que instrumentalizou com maestria nos sermões, na

imprensa, na dissertação política, na poesia.

Todavia, não se dispõem de elementos suficientes

para retratar o que foi a sua infância, a sua adolescência,

grande parte da mocidade, as circunstância mais

particulares de uma rara vocação, os motivos que o

levaram a ser religioso, os eventos mais significativos

da vida em convento, num painel que reconstituiria de

modo mais completo o homem, expondo com nitidez

uma psicologia, tendências, uma personalidade. E, desse

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modo, a visão que se tem da participação do grande

carmelita nos acontecimentos do seu tempo muito se

enriqueceria, caso se conseguissem tais elementos.

Nasceu Frei Caneca no Recife. Mais preci-

samente, no bairro de Fora de Portas, freguesia de São

Frei Pedro Gonçalves.

Nada se sabe a respeito da data do nascimento e

do batismo.

Quem o batizou? Quais os padrinhos? Em que

Igreja se deu a cerimônia?

Nenhum registro sobre isso subsiste.

Quem diz é o Comendador Antônio Joaquim de

Mello, o seu mais autorizado biógrafo, que inclusive

consultou parentes do heróico pernambucano, na falta

de documentação escrita.

Foram os seus pais Domingos da Silva Rabelo e

Francisca Maria Alexandrina de Siqueira.

O apelido de Caneca é de autoria do próprio

biografado. Tem origem na profissão de tanoeiro, do

pai, o que muito orgulhava o filho.

É o mesmo Comendador quem lembra haver em

trabalho de Frei Caneca alguns dados a respeito de sua

ascendência.(1)

Trata-sedo que se contém no panfleto intitulado O

caçador atirando segunda vez à Arara Pernambucana.

Aí ele confirma o que aquele disse acerca dos

nomes de seus pais, dos seus avós, do bair ro onde

nasceu.

Com certa vaidade, fala dos seus antepassados

portugueses, considerando-se ruivo.

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Entre esses, menciona Antonio Alves da Costa

Dantas, o qual, segundo informa, seu bisavô e tio do

Padre José Dantas, conhecido do seu tempo.

Também parente outro Dantas, Frei Antonio de

Natividade Dantas, como ele carmelita turonense e por

igual conhecido na sociedade pernambucana, português

de Elvas, no Alentejo.

Assim, parece existir uma tradição eclesiástica na

família.

Sua bisavó, esposa de Antônio Alves da Costa

Dantas, era Maria Pereira de Assunção, cujo pai, João

Batista Pereira, natura do Porto, inaugura a progênie

brasileira ao aqui chegar. Pois se casa com uma Maria,

sertaneja do Norte. Aí pelos idos de 1694.

Nesse ponto, sente-se honrado com a presença

indígena ou africana no seu sangue, algo que já

denuncia o pronunciado traço brasileiro ou nacionalista

das convicções de Caneca.

Dá conta dos revezes sofridos pela família em

Olinda com a guerra dos Mascates.

E prossegue:

“Não posso subir mais acima com esta exposição,

porquanto as perturbações, guerras e massacres d’aqueles

tempos infelizes, destruíram os momentos de outras

cousas de conseqüência, quanto mais as notícias de uma

família, que, não descendendo dos Machucas, dos

Queixadas, dos Caiporas, não tinha o seu pedaço de couro

de anta com os nomes escritos de seus maiores, Piratibás,

Pagés, Carnipecabás. Mas é ponto de fé pia, que essa

Maria das Estrellas (a sua primeira ascendente brasileira)

havia de ser alguma Tapuia, Potiguari, Tupinambá,

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senhora de muito mingão, tipoias, aipi e macacheira; e

também si foi alguma rainha Ginga, nenhum mal me faz;

já está à porta o tempo de muito nos honrarmos do sangue

africano”.(2)

Tomou hábito de Carmelita a 8 de outubro de

1796, no convento de Nossa Senhora do Carmo. Recife.

A profissão solene data do ano seguinte.

Desde cedo, no claustro, revelou especial pendor

para os estudos, portador que era de notável talento, não

tardando a demonstrar erudição.

Isso lhe valeria a aquisição da “patente de leitor

em retórica e geometria”, em 1803, por iniciativa do seu

convento.

Então já se encontrava ordenado há anos. O que

ocorreu ao contar 22 anos de idade, antes da idade

regulamentar. Daí ter sido necessária especial autori-

zação do núncio em Portugal, o Cardeal Pacca.(3)

A erudição de Frei Caneca despertava a atenção

de quantos com ele mantinham contato direto, ou liam

as suas produções literárias ou doutrinárias, ou ouviam

os seus magistrais sermões, todos eles calcados nos

melhores modelos de eloqüência.

Ele hauriu as fontes da cultura clássica, segundo

a perspectiva do Enciclopedismo e das demais correntes

racionalistas da Europa do século XVIII.

Mas o que há de mais interessante, nesse aspecto,

é o modo como exercitava essa cultura, adaptando-a a

diferentes empresas ou circunstâncias.

E nisso aflorava a riqueza do seu talento, o tom

pessoal dos seus escritos, a capacidade de ordenar os

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cânones clássicos às peculiaridades da vida brasileira,

quando não se vislumbrava às vezes, por força do estilo

pessoal ou da originalidade de enfoque, as matrizes da

cultura estrangeira que assimilara.

É que jamais deixou de se ater à co njuntura

nacional em que viveu.

Toda a sua obra, direta ou indiretamente, elabora-

a em função dos grandes imperativos históricos do país,

consubstanciados no projeto de fundação do Estado

brasileiro, na ereção de um sistema político vazado no

Liberalismo, e no mais puro Liberalismo, expungido de

conotações autoritárias ou absolutistas, voltado para o

desenvolvimento harmonioso da comunidade nacional,

sem privilegiamento de classe ou de elite. Tal como

convinha a um país egresso recentemente do status de

colônia e carente de efetuar o salto histórico reclamado

por uma autêntica independência, o qual repele o

continuismo asfixiante do passado.

Fiel a um projeto dessa ordem, sem tergiver-

sações, Frei Caneca cumpria tendências, pendores de um

caráter autêntico, inconformado, que não aceita con-

cessões pouco edificantes, que não aprova situações

conflitantes com os seus ideais.

Personalidade forte sustentava com a mão de

ferro convicções, defrontando-se desassombradamente

com os adversários, muitos dos quais poderosos e

influentes.

E ia até o ponto de agir sempre às claras, de peito

aberto, sem usar a malícia do político.

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Nisso se sublinha com vigor o traço de sua

autenticidade, a grandeza de suas atitudes.

Pois concebia o exercício da política como o da

realização de doutrinas no corpo social, promovendo -o

material e moralmente, conforme a concepção racio -

nalista então dominante, não comportando o jogo da

astúcia, dos interesses pessoais, da submissão servil, do

dolo.

Atividade moral por excelência, não via como a

política absorvesse mesmo um certo pragmatismo, que a

torna viável, capaz de alcançar os seus objetivos.

Dada uma autenticidade pouco dosada de espírit o

prático, e que ia até ao desdobramento incontido da

ação, chegava muitas vezes ao alheiamento da represália

violenta de que poderia ser vítima.

Tal na Revolução de 1817 e na Confederação do

Equador. Era, na realidade, uma vocação de mártir. E de

mártir-profeta, que tudo afronta, que não pesa con-

veniências, que não mede conseqüências, para denunciar

a prepotência e os desmandos dos poderosos, o

despotismo dos governantes, sob o influxo do projeto

liberal que esposa, ao qual não faltavam as tintas vivas

do humanismo cristão.

Toda a atividade teórica e prática que encetou

reveste-se, assim, de uma dimensão ética, de uma

responsabilidade social, à qual não faltaria jamais o

concurso de suas forças, do seu talento, da sua coragem.

É, antes de tudo, o ideólogo, cônscio do valor e

da eficácia da verdade que sustenta, para servir de corpo

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do projeto político nacional, para integrá-la como dever-

ser do momento histórico que atravessava o país.

Tal a veemência do seu discurso, tal o vigor

peremptório da sua palavra, que, de imediato, se

depreende o tonus dogmático com que veiculava e

punha em prática aquela verdade. Os valores al-

cançavam nele a espessura religiosa. Nisso de fazer

equivaler o espaço axiológico que abrange o homem, a

sociedade, a nação, as províncias, a uma teologia

política implícita, dispondo ordenadamente de pres-

crições de acentuadas conotações jurídicas em perfeita

conexão com o sistema religioso um tanto secularizado

do período de Pombal. Ou do liberalismo religioso

introduzido subrepticiamente na reforma promovida

pelo ministro português no ensino universitário do seu

país.

Então é que se melhor percebe a vinculação es -

treita entre a religião, e diria com mais propriedade a fé,

e a obra caneciana, a qual, na maior parte, inseparável

da práxis, conforme entendida na época.

Pois elaborando-a politicamente, ao sabor da

agitada conjuntura política de que participou ativa -

mente, entre 1817 e 1824,ao deixou de impregná-la com

uma concepção de fé que estimulava um papel

proeminente para o homem no mundo, na sociedade,

segundo a prática racionalista que invadira aquele

liberalismo religioso.

Como não vê aí uma clara interferência do abso -

luto, do plano transcendental no campo do imanente,

estimulando vigorosamente as personalidades fortes,

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adeptas de um humanismo cristão, como Frei Caneca, a

se municiarem ideologicamente para o dinâmico de-

sempenho político?

Permanecem na penumbra ou na obscuridade as

marcantes motivações do comportamento do mártir

pernambucano, se não se capta o enlace firme e

absorvente, nele, entre a fé e a política, entre o

transcendente e a práxis da época.

Aí se robustece e adquire notável dinamismo a

sua personalidade, já naturalmente forte.

Desse modo impossível separar o religioso do

político, ambos se entrelaçam, se completam nessa

mesma personalidade.

E o princípio da liberdade é a matriz axiológica

que a preside, abrindo os canais fluentes e impetuosos

de uma obra que se confunde com o próprio agir, com as

exigências da ação.

Outro não poderia ser o princípio mater na

orientação de um homem nascido para operar grandes

coisas, para forcejar por inovações benéficas e

prioritárias na vida nacional.

Hoje melhor se compreende a ação política de

Frei Caneca, como de outros sacerdotes liberais do

período.

Não estavam eles exercitando de uma maneira

mais autêntica a fé, levando-a a um engajamento

humano necessário e imprescindível, relacionando-a

com uma antropologia, sem o que ela permaneceria

estéril, vaga?

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Isso, que a teologia contemporânea ensina pela

voz dos seus mais categorizados representantes, passava

por comportamento desviante no seio da ortodoxia

católica.

Ainda em nossos dias um segmento dessa, o

tradicionalista, o confirma.

Antes do Concílio Vaticano II era o ponto de

vista comum.

Certo que há de se distinguir entre o engajamento

político admitido para o padre, nos dias atuais, não

devendo constituir-se em atividade partidária mas num

trabalho em prol de mudanças sociais em prol do

homem, do seu crescimento integral, e o daquele

período, quando, por falta de visão, de consciência da

necessidade daquele engajamento entre os dignatários

da Igreja, muitos sacerdotes, sequiosos de realização

humanística, que não era outra coisa senão uma

atualização da fé, se lançavam nas lutas partidárias,

revolucionárias, num comprometimento com o secular.

E, nesse caso, talvez inconscientemente tendessem para

esse comprometimento, na angústia do impasse da fé

somente apoiada ou explicitada na prática devocional.

Considerando a grande distância que havia ente a

Igreja e o Estado naquele momento histórico, nada de

admirar que os sacerdotes tivessem um comportamento

desviante das normas eclesiásticas, para efeito de um

encontro mais efetivo com o homem. Porque no rol dos

objetivos políticos circunscritos ao Estado, predomi-

nantemente com o aprimoramento de suas instituições,

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demoravam os anseios daquele encontro. A Igreja

cuidaria apenas do espiritual.

Eis que não prosperam as críticas segundo as

quais o frade carmelita se afastara dos deveres de re-

ligioso ao abraçar a política. Isso num entendimento

amplo, a sobrepairar o juízo ortodoxo.

Desde que contemplada numa unidade fecunda, fé

e política se completam, demonstrando a impossi-

bilidade da crença cristã prosperar sem se ativar no

amor, que é prática histórica.

Os excessos vão por conta dos numerosos desvios

e contramarchas impostos pela praxis, à qual imanente o

conflito.

E, nesse contexto, o espírito do tempo, o mesmo

que demanda superação, adere como um ranço às lutas

produzindo largas demasias.

Veja-se, por exemplo, o costume da época, de

permanente estado de convulsão social e política entre

nós, arrastando naturalmente até mesmo os grandes

espíritos como Frei Caneca para o combate armado, para

as guerrilhas.

Sabe-se que o monge pernambucano adotou o

revolucionarismo como componente básico de sua

filosofia política. Evidentemente um excesso para um

religioso. Mas o mesmo espírito do tempo, pelo menos,

se encarrega de atenuar o pecado. Pois é de se observar

que, dada a unidade formada pelas ideologias religiosa e

política, impositiva se manifestava a tese de que o

inimigo político encarnava o próprio demônio, num

exaltado maniqueísmo de acordo com o qual o bem, que

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representava um partido, deveria agir atrozmente contra

o mal, no outro partido.

Idade do século que assistia ao entrechoque brutal

dos dogmatismos, de natureza vária, proclama um tipo

de radicalização, o da revolução, como remédio para o

problema prioritário de então, o político.

Nesse ponto, o moralismo rousseauniano empres-

tara a Frei Caneca com mais saliência, todo um elenco

de implícitos postulados cristãos, denunciadores dos

demônios sociais e políticos.

E isso se agudizava numa conjuntura violenta,

como a brasileira, e mais notadamente a pernambucana,

que deixava refletir uma busca inquieta de acomodação

das estruturas sociais.

Nesse caso, a rigidez do dogmatismo doutrinário

deveria criar uma profunda cisão entre teoria e prática,

porquanto as exigências e os apelos desta não en-

contrando retificações correspondentes naquela, ficavam

muita vez à mercê de improvisações, de interesses

alheios à causa, de lideranças pessoais, até de fe-

nômenos circunscritos ao campo da patologia social,

como o banditismo, distanciando-as da inspiração

originária.

Daí vinha que a prática, numa conhecida operação

psicológica, acabava absorvendo o dogmatismo da

teoria, com a perda significativa do seu conteúdo.

Assim, o engajamento político radical, e mesmo

que não o fosse, arrastava fatalmente aos excessos, de

linguagem, de atitudes, de ação.

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E muito do que hoje se toma por excesso não e ra

tido como tal naquele tempo.

E como poderia sê-lo num contexto de acerbas

confrontações, de acesas radicalizações?

A alimentar o liberalismo radical de Caneca havia

as influências do Enciclopedismo, de Rousseau, mas

também de determinismos da conjuntura em que viveu,

tudo confluindo para as soluções violentas.

Dúvida não existia de que a violência, a justificá -

la ideologicamente o dogmatismo, assentava, entre os

mais ilustrados, num pressuposto ético incoercível. Era

um dado fundamental, operacional, imanente ao dever -

ser, condição de transparência do Ser, do Valor no plano

da sociedade.

Portanto, há de se considerar todo o contexto

ideológico e o peso da circunstância para se formular

um juízo criterioso sobre a personalidade e o desem-

penho do frade carmelita. Tanto mais quando se verifica

uma extraordinária linha de coerência, de lealdade, de

franqueza, de patriotismo, de desprendimento, até do

mais completo despojamento na obra que consumou com

o holocausto final.

E, num enfoque dialético, não estariam sub-

sumidos os seus erros ou excessos, na tarefa grandiosa

de encarnação da Liberdade?

Os sublimes objetivos antropológicos aí emer -

gentes não colocariam em plano secundário o com-

portamento “desviante” do inolvidável mártir? Daí vir

marcado de rígida ortodoxia o julgamento que alguns

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representantes do clero fizeram do papel político por ele

desempenhado.

Assim, Dom Duarte Leopoldo, malgrado o re-

conhecimento que faz do patriotismo e do nacionalismo

de Frei Caneca, acrescentando mais o fato de ter sido

ele em todos os momentos “o padre com todas as falhas

e defeitos que lhe inspirou a seita (a maçonaria), mas

sempre filho da Igreja a que pertencia por nascimento e

por convicção”, sustenta que o frade em questão deixou -

se fanatizar pela maçonaria. Foi por ela “iludido como

tantos outros. A maçonaria exaltou-lhe o patriotismo,

desvirtuando-lhe a missão sacerdotal”.(4)

Ora, não há provas de que Frei Caneca tenha sido

filiado à maçonaria.

O desmentido parte dele próprio.

Em “Sobre as Sociedades Secretas de Pernam-

buco” esclarece que não tem sobre essa entidade “outras

idéias, que as subministradas por alguns papéis, que

sempre devem ocultar muitas coisas pela per -

seguição...”.(5)

Não se confessa adepto de nenhum dos

agrupamentos maçônicos.

E sobre um deles, o Apostolado, expende um

juízo severo a ponto de afirmar que é “um club de

corrompidos ou estúpidos aristocratas”.

No entanto, com relação à organização em geral,

não a vê incompatível com o Cristianismo.

Escreve ele: “... a Maçonaria não é oposta ao

cristianismo”.(6)

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Essa mesma opinião a sustenta o Padre Theodoro

Huckelmann.(7)

Prosseguindo o comentário em torno da tese de

Dom Duarte Leopoldo, não há como negar que o ilustre

antiste, ainda partidário de uma concepção

sobrenaturalista, tendo vivido anteriormente ao

momento do Concílio Vaticano II, concebe uma taxativa

separação entre a missão sacerdotal e as atividades em

favor de mudanças políticas que venham trazer o

progresso nacional.

Evidente que tal tese se encontra superada, diante

do alargamento que aquele Concílio proporcionou à

missão da Igreja, agora mais atenta aos problemas

humanos, com a sua inserção mais profunda no mundo.

A visão antropológica não se dissocia mais da

visão teológica.

O que se mostra condenável é o partidarismo

estreito, a política pela política, o espírito de facção

perfilhado pelo sacerdote. O que se denuncia como

oposto à linha evangélica.

Diante do visto, não cabe, por desarrazoada, a

tese de um comprometimento partidário de Frei Caneca,

com desrespeito a essa linha, tão grande e elevada foi a

missão que cumpriu, tendo diante dos olhos a promoção

do seu país, melhores dias para a gente que nele habita.

Por que não dizer, pois, que soube conciliar, no

profetismo que o animava, antropologia e teologia?

Isso, aliás, o levou a anteceder de muito as teses

do Concíclio Vaticano II, bem como o mostrou o Prof.

Andrade Lima Filho.(8)

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Notável, com efeito, a primazia que o grande

mártir concede ao homem.

Ninguém mais do que ele defendeu em sua época

os direitos humanos. E o faz, invectivando contra o

despotismo, contra o arbítrio dos governantes.

No Typhis Pernambucano assume uma atitude

enérgica e varonil contra a prepotência do ato de

dissolução da Assembléia Nacional.

Dizia que era um ato de força que atentava contra

os direitos da nação, de todas as pessoas, das quais os

governantes eram meros delegados, jamais podendo

ultrapassar os limites outorgados na representação.

Analisando o decreto imperial de 13 de novembro

de 1823, comprova a sua contradição com os princípios

constitucionais-liberais.

Por ele se criava o Conselho de Estado incumbido

de elaborar o projeto de Constituição, após aquela

dissolução.

Mostra que aquilo “que se tem lembrado na

proclamação de 16 de julho, a saber, os sagrados

direitos da segurança individual, da prosperidade e da

imunidade da casa do cidadão; e na de 16 de novembro

independência do império, integridade do mesmo e

sistema constitucional, apesar de se prometer que serão

mantidas religiosamente, são proposições oucas de

sentido...”.(9)

E é intransigente na defesa do sistema cons-

titucional que preserva a liberdade, os direitos humanos,

não admitindo qualquer transigência a respeito, mesmo

da instituição da qual é membro – a Igreja.

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Assim, não vacila em denunciar o Cabido de

Olinda a propósito da Pastoral por ele emitida a 4 de

março de 1923.

É que esse órgão se mantinha mudo diante dos

“terríveis furacões políticos” que agravavam a con -

juntura nacional e, mais particularmente, a pernam-

bucana.

Censura-o não ter assumido uma atitude pro-

fética, por medo de desagradar os detentores do poder,

os políticos prestigiosos, invectivando a prática do

baixo nível político, responsável pelas inquietações,

pelos desassossegos da população.

Faltou, diz o grande carmelita, a apalavra de

orientação do Cabido nos grandes momentos de crise,

quando o povo estava perplexo diante dos graves con-

flitos, da guerra civil.

Não existe mais autoridade ao colegiado para vir

de público deitar recomendações e imprimir diretrizes.

Profliga Frei Caneca:

“Desgraçadas ovelhas, a quem estes guardas estranhos

mugem duas vezes por hora, e só sabem extrair a

substância ao gado, e o leite aos cordeiros!”.(10)

Acusa ainda o Cabido de tomar uma posição

contraditória em face do sistema político da nação. Pois

ora propõe acatamento ao sistema constitucional – o que

se dá na citada Pastoral – ora aconselha obediência

irrestrita e ilimitada aos governantes, tal como se vê em

documento sobre coleta.

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Nisso fica o dito órgão afagando modelos po-

lít icos opostos: o antigo, absolutista, e o novo, cons-

titucional.(11)

Era assim Frei Caneca um autêntico profeta.

A missão profética, exercida com extraordinária

largueza, a ponto de exercê-la também contra a insti-

tuição a que pertencia, dá bem amostra do traço talvez o

mais saliente de sua personalidade, a autenticidade.

As diversificadas atividades que executou, a de

político, a de sacerdote, a de revolucionário, a de

periodista, a de professor, desembocam num estuário

comum – um humanismo mediatizado pelas grandes

prioridades políticas do tempo, e encarnadas no

Iluminismo e no Constitucionalismo.

Esteiado nessa convicção, dela não se afastou por

coisa alguma. E da forma mais desinteressada possível,

porquanto não obteve, nem jamais pleiteou, posições

vantajosas, pingues proventos.

E, recorde-se, o heróico frade, passou por

terríveis provações, por inauditos sofrimentos, sem que

os seus ideais sofressem o menor abalo.

Quando da Revolução de 1817, na qual também

participou ativamente como guerrilheiro, embora com

menor liderança do que na de 1824, padeceu horrores na

prisão, abortado o movimento.

Disso nos oferece comovente relato Francisco

Muniz Tavares.

Levado à cadeia da Bahia, aí suportou ele,

juntamente com revolucionários ilustres como Antônio

Carlos, desembargador, Francisco José Martins, o

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Morgado do Cabo e outros, as mais pesadas humi-

lhações, fome e vexames sem conta.

Não recebiam os presos segurança e assistência

devida da autoridade militar da Bahia, ficando eles à

mercê de um carcereiro cruel e corrupto.

Depois de muitos requerimentos feitos, por fim se

resolveu abrandar a sorte daqueles infelizes.(12)

Então, ainda se achava fortalecido o absolutismo.

E o governador da Bahia, o Conde dos Arcos, moveu

mão de ferro na repressão.

Mesmo assim, Frei Caneca não vacilou. Manteve-

se fiel quando muitos, e até companheiros de prisão,

arrefeceram, renegaram as convicções revolucionárias,

ou fizeram concessões ideológicas diante do

autoritarismo de Pedro I, mais tarde.

Extraordinária a sua linha de coerência ao longo

da época em que atuou.

Mais admirável ainda ao se examinar o caráter de

turbulência dessa época no meio da revolução

conjuntural, tentando os espíritos à acomodação diante

dos falsos pregões de ordem, de estabilidade.

Com a Independência do país, em 1822, rejubila -

se o grande mártir. E solta aos borbotões o verbo

inflamado e auspicioso por ocasião das celebrações

solenes em torno do evento, promovidas pelo Senado da

Câmara do Recife. É um sermão que se constitui modelo

de eloqüência, da qual mestre consumado, a exaltar o

gesto de libertação do Brasil por um príncipe da alta

estirpe de Pedro I. Gesto esse que compara ao de Maria,

quebrando outro despotismo, o das almas, ao esmagar a

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serpente. A estrada da felicidade está aberta para o povo

brasileiro. Assim como se operou a liberação dos bens

eternos para a humanidade, por intermédio da mãe de

Deus.(13)

Mas é na Confederação do Equador, a Revolução

de 1824, que se dá o maior envolvimento do heróico

pernambucano. De logo se impõe como o ideólogo do

movimento.

O cerne da doutrina política caneciana se tece ao

sabor da evolução conjuntural que começa com a

dissolução da Assembléia Nacional pelo decreto de 12

de novembro de 1823.

O acontecimento causou forte impacto em

Pernambuco, seguindo-se logo um manifesto em que

deputados da Província lançavam violento protesto

contra o ato de força.

Como conseqüência, a Junta da Província se via

sem condições de continuar a governá-la.

Demissionária, reúne-se um grande conselho e

elege Manoel de Carvalho Paes de Andrade, Presidente

da Província, juntamente com o conselho que deveria

ajudá-lo a governar.

Não obstante a justificação feita pelo novo

governo junto ao Imperador, na qual se apontava para as

condições excepcionais daquela unidade, às voltas com

acerbas convulsões, não aceitou Pedro I as razões

invocadas na representação.

Inaugurou-se então um sério ponto de atrito entre

os dois governos que iria culminar na inconformação

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desesperada de Pernambuco, na deflagração do movi-

mento confederativo.

Por ora, basta acentuar que o frade carmelita

acharia, nas novas circunstâncias, ocasião de unir a

teoria à praxis, consolidando entre nós a doutrina do

liberalismo radical.

E o fez, com efeito, articulando os aconteci-

mentos da conjuntura candente, nos quais tinha papel

saliente, com uma interpretação doutrinária à luz desses

acontecimentos, a qual a quer ia como corpo de dire-

trizes da ordem política nacional.

Melhor instrumento dessa empresa não poderia

ter utilizado que a Imprensa, como de fato utilizou.

O periódico “Typhis Pernambucano” se prestou

admiravelmente para isso, seguindo a tradição de

oposição radical iniciada por Cipriano Barata no

“Sentinela da Liberdade”.

Durante a sua fase de existência, mais

precisamente, de 25 de dezembro de 1823 a 5 de agosto

de 1824, o intimorato órgão constitui-se o termômetro

de grave crise política que sacudiu o país, especialmente

o Rio de Janeiro e o Nordeste. E nele Frei Caneca extrai

do conflito a grande motivação para o combate ao

autoritarismo, ao despotismo, como herança do período

colonial. Jamais se edificaria uma nação independente,

ciosa de sua liberdade, com um sistema político a

abrigar formas caducas de absolutismo.

Não foi apenas no “Typhis Pernambucano” que o

carmelita desenvolveu a sua atividade panfletária.

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Fê-lo mais em três escritos assim intitulados:

“Resposta às calúnias e falsidades da Arara Pernam-

bucana”, “O Caçador atirando à Arara Pernambucana” e

“O Caçador atirando segunda vez à Arara Per -

nambucana”.

Neles se envolve em questões pessoais e na

defesa de correligionários, como Manoel de Carvalho,

voltando-se violentamente contra José Fernandes da

Gama que os atingira no “Arara”.

Aí a seriedade da erudição, da argumentação bem

tecido, se acasala com a diatribe quase impublicável, tal

o nível a que desce o sacerdote, naturalmente conduzido

pelas acesas paixões próprias de um estado social

convulsionado.

Registre-se também entre as obras de Caneca

“Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do

Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”, na

qual, influenciado notoriamente pelo humanismo clás -

sico e pelo Iluminismo, expõe uma concepção de pátria

em consonância com a história do país, particularmente

a de Pernambuco.

Mais: as “Cartas de Pitia a Damião”, onde ainda

propaga a sua doutrina política.

Nesse rápido esboço biográfico de Frei Caneca,

faltam alguns registros.

Assim, praticou ele com proficiência o

magistério.

Com orgulho subscrevia alguns dos seus escritos

acrescentando “Lente de geometria”.

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E encarava essa disciplina através de um en-

tendimento que transcendia o seu âmbito formal,

inserindo-a numa lógica que facilitava o acesso a Deus,

à sã moral, à justificação do bem, das coisas retas.

A retórica, que por igual ministrou, e tanto

valorizou, dá uma tônica especial à sua formação

clássica, ao estilo habitual, até à sua dimensão

ideológica.

Por fim, cumpre realçar o heroísmo de sua morte,

extensão do heroísmo de uma vida consagrada ao

serviço da pátria, do humanismo, de sólida fundação

política para o Brasil, pressuposto indispensável de

transformações econômico-sociais e culturais que o

situariam não muito distante entre os grandes países.

Frei Caneca, feito prisioneiro em território

cearense, nas últimas escaramuças da Confederação do

Equador, recomeça o sofrimento terrível das prisões

desumanas.

O processo foi aberto a 20 de dezembro de 1824,

com o depoimento de oito testemunhas e a defesa escrita

do frade. Tudo com relação ao liberalismo que expôs no

“Ryphis”.

Já a 23 do mesmo mês prolatou-se a sentença de

morte, a qual recebe com admirável serenidade.

A 12 de janeiro de 1825, processionalmente, o

Cabido de Olinda e as Irmandades do Recife vão até ao

Palácio do Presidente da Província, então em caráter

eventual o Brigadeiro Lima e Silva, rogar pela

suspensão da execução, na expectativa de despacho pelo

Imperador de súplica a ser encaminhada. Tudo em vão.

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A 13 é conduzido ao suplício, sem antes deixar de

passar por mais uma penosa humilhação – o da

degradação religiosa – em que a Igreja sanciona a

condenação do frade.(14)

No momento final, mostrou-se digno, conformado

com a sorte mas intrépido na conservação dos seus

ideais.

Formação doutrinária: influências

Multiforme se apresenta o acervo doutrinário de

extração estrangeira que pesa na formação de Frei

Caneca.

A filosofia do Iluminismo está na base do seu

pensamento, radicado que se encontra num processo de

libertação do homem de todos os condicionamentos

ideológicos, políticos e sócio-econômicos que o inibem

nos seus anseios de progresso, de crescimento.

Evidente que o Iluminismo constitui a matriz

doutrinária de um vasto corpo de idéias invocado como

diretriz das grandes mudanças a serem operadas no

mundo ocidental a partir da Revolução Francesa.

Vê-se assim que ele se propunha objetivos

pragmáticos, despidos do alto teor de abstração inerente

aos sistemas filosóficos do século XVII.

Tais sistemas se prendiam metodologicamente à

dedução.

Assentadas certas premissas, tidas como fun-

damentais, prontamente se tiravam daí pela demons-

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tração silogística conclusões certas a respeito dos seres

e dos saberes.

Agora, o novo pensamento busca reformular o

próprio conceito de filosofia, tornando-o mais flexível,

mais operacional. Para tanto, teria que se desvincular do

modelo oferecido por uma tradição do pensar sediça e

alienada, e se apoiar nas ciências naturais do tempo,

cujo modelo era emprestado por Newton.

Ernst Cassirer, com maestria coloca o problema:

“Porque el camino de Newton no es la pura dedución, sino

el análisis. No comienza colocando determinados

principios, determinados conceptos generales para abrirse

camino gradualmente, partiendo de ellos, por medio de

deducciones abstractas, hasta el conocimiento de lo

particular de lo ‘fáctico’; su pensamiento se mueve en la

dirección opuesta. Los fenómenos son lo dado y los

principios lo inquirido”.(15)

A observação e a experiência passam, dessa for -

ma, a serem privilegiadas, sem levarem ao empirismo.

Porque não se fica no mero domínio dos fatos

singulares, isolados, mas se procura uma ordem e

legalidade que os articulam, que os presidem.

Tem-se aí uma forma explicitada matemati-

camente, conforme número e medida. Porém se afasta a

possibilidade de qualquer antecipação dos conceitos aos

fatos. É preciso encontrar nos fenômenos o necessário

encadeamento lógico.(16)

Considerando a realidade algo em constante

movimento, uma dinâmica de fenômenos, logo se aceita

que a razão constitui um fazer-se, um construir-se.

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Nessa concepção, ganha relevo a história.

Impregnada do espírito das ciências naturais, ela

assume uma metodologia que leva ao privilegiamento do

imanente, descartando os apelos arbitrários ao sobre-

natural. E de um modo a pesquisar, preferencialmente, o

universo que se oculta debaixo dos eventos, numa

postura tipicamente filosófica.

Malgrado as limitações que cercavam o Ilu -

minismo na realização dessa tarefa, força é reconhecer o

progresso que trouxe à História com uma preocupação

mais concreta, mais elucidativa, passando a enfrentar

mais objetivamente os problemas da época, notadamente

os políticos. Tal o interesse da burguesia que assumia

naquele momento encargos intelectuais.(17)

E a História começa então a tomar uma im-

portância que jamais teve, fazendo da crítica um

poderoso instrumento de análise e de interpretação dos

fatos.

Assim, não poderia deixar de ser uma arma

político-ideológica a serviço da burguesia em ascensão,

e constantemente voltada contra um passado de

despotismos, de trevas, de ignorância.

Essas colocações se fazem necessárias para se

caracterizar a postura filosófica e a metodologia que o

grande carmelita assume em toda a sua obra.

Tal o “clima” iluminista em que vive.

Nele se detecta de imediato, nos escritos ma is

representativos, um espírito crítico, prioritariamente

político, e firmado em conceitos-chaves, que ganham o

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aval de universais ao contato da análise conjuntural. Ou

após o confronto com uma evolução histórica.

E aí fica patenteado, em que pese o cuidado com

o real, com o histórico, com a conjuntura, o predomínio

do ideal sobre o factual, por longe se encontrar ainda a

constituição epistemológica das ciências humanas.

É o Iluminismo racionalista.

E sob o paradigma de uma “razão” que se pre-

tende analítica, mas que, pré-estabelecida, malgrado não

se dizer conceito puro das matemáticas, acaba por ele

afetada substancialmente.

Nessas condições, há muito de arbitrário nessa

“razão”, impedindo o alcance mais concreto do mundo

histórico, da realidade social, do quadro político.

O “espírito geométrico” invocado por Frei Ca-

neca, e que ele tomou de Fontenelle, indica bem o ter

perfilhado ele aquela razão.

Essa expressão significa o espírito de análise

pura, sem especificação de domínio, numa abrangência

que acusa o tratamento pouco científico das realidades,

especialmente aquelas que começavam a se descobrir

aos olhos atentos do analista.

Veja-se como discorre o mártir pernambucano:

“Pela geometria conhecemos evidentemente a existência

do Supremo arquiteto do universo; pela geometria

admiramos a sua infinita sabedoria no sistema de criação,

a sua providência no andamento regular da natureza; pela

geometria domamos a fúria do oceano, dirigimos a força

dos euros, penetramos os abismos, e subimos aos astros;

ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames

da reta razão; proporcionamos os trabalhos às nossas

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forças, os remédios às moléstias, as penas aos delitos, os

prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os

movimentos das grandes massas das nações, regularizamos

o valor dos povos e seu entusiasmo”.(18)

Então, se percebe a busca da causalidade que

governa os fenômenos, com arrimo num “modelo” que,

se incita à pesquisa, simplifica a variedade e a riqueza

do concreto.

Com isso, Caneca adota, ao longo de sua obra, um

racionalismo que, pelo espírito crítico que engendra,

paradoxalmente, como se verá, muito o ajudará a

assumir posições realistas, às vezes até proféticas, e a

desenvolver análises precisas do momento histórico, da

conjuntura em que viveu e destacadamente atuou.

Como Iluminista, acolheu com entusiasmo o

humanismo clássico. Com regularidade, na introdução, e

às vezes no próprio corpo dos seus escritos, recorre a

autores greco-latinos, neles também firmando arra-

zoados ou confirmando teses.

Cícero, entre outros, cita-o freqüentemente, ape-

lando para o argumento da autoridade.

Em “Dissertação sobre o que se deve entender por

Pátria do Cidadão”, o filósofo e orador romano é citado

como precioso reforço da conceituação de pátria.

Jurista também, Cícero oferece uma notável ela-

boração do direito natural, que iria apoiar as teses

políticas do Iluminismo, do Liberalismo.

Em Rousseau, que tanto influenciou Caneca, mui-

to evidente o constante apelo à Antigüidade clássica. A

ponto de fazer dos seus grandes homens, da civilização

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que construíram, dogmas inabaláveis, modelos de per -

feição humana, de organização política, entre tantas

coisas.

Na introdução de trabalho sobre o tema, Denise

Leduc-Fayette discorre:

“Ainsi voudrions-nous indiquer en quoi l’appel de

l’Antiquité chez Rousseau témoigne, sous une forme

certes traditionnelle, d’une certain idéal à la fois

politique, moral, pédagogique et esthétique, et qui est

l’essence même de sa vision philosophique du monde”.(19)

E observe-se que no exemplo trazido a lume, o

respeitante à pátria, Rousseau se demora com especial

agrado, externando acendrada admiração por Catão, e

tomando-o como um dos seus modelos preferidos.(20)

Catão, como Cícero, são estóicos. E se sabe quão

preponderante a influência do Estoicismo na formulação

do Jusnaturalismo moderno, do racionalismo político do

século XVII, continuando no século seguinte.

Então, a teoria do direito natural deixa o domínio

puro da ética e se incorpora à prática política.(21)

Nessa fonte jusnaturalista também se abebera

Caneca, ao manifestar as suas idéias políticas.

Aliás, aí se encontra o cerne da fundamentação

política do mártir pernambucano. Pois é a lei natural que

vai assegurar aos cidadãos o direito à liberdade, à

propriedade, à igualdade, enfim aos direitos civis e

políticos e naturais.

Direitos e deveres têm o respaldo primeiro nessa

lei natural.

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O pacto social arrima-se nela.

As constituições políticas devem, pois, resguardar

o que por ela são autorizadas, conformarem-se ao que

diz.

Sendo elas o instrumento daquele pacto, quando

malferem os direitos humanos, a segurança individual

ou coletiva, determinam a sua dissolução e franqueiam

as rebeliões. Ou no caso em que os governantes os torna

inoperantes, vazios.

A doutrina do direito natural de Pufendorf é a

preferida por Caneca.

Trata-se de m autor do século XVII cuja filosofia

do Direito teria muita repercussão, legando uma

concepção muito original do direito natural.

Ele infunde no direito uma qualificação

essencialmente ética.

A ação jurídica é uma ação moral.

Ela se distingue da ação natural, por vir carregada

da responsabilidade do autor.

Contudo, a ação natural já traz em si as

exigências irrenunciáveis da natureza humana.

Se, na sua obra política e ética, Pufendorf situa

em lugares diferentes a natureza humana e o direito,

contudo parte dessa natureza humana para chegar a esse,

ao âmbito das leis, do ordenamento jurídico.(22)

O carmelita pernambucano assume a mesma

postura.

Assim, ao denunciar a ilegalidade, a anti-

juridicidade da medida de dissolução da Assembléia

Nacional por Pedro I, ele de imediato estabelece a

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conexão entre os ditames da natureza humana e a

inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato imperial. E

daí vindo em cadeia todas as conseqüências da opressão

assim estabelecida: dissolução dos laços que prendiam

as Províncias entre si, da integridade do Império, direito

à insurreição.(23)

Não observou o Imperador a ordem estabelecida

pela sociedade civil, empenhada no cumprimento do

bem geral, ao romper os vínculos político-jurídicos que

disciplinam a convivência, as atividades que visam à

realização dos homens.

Ocorreu uma série de causas determinantes da

atitude

“que determinou aos primeiros pais de famílias a

renunciarem a independência do estado natural, e irem

formar as sociedades civis; estabelecidas estas, não se

dirigem a outro fim, que o bem da espécie humana, sua

existência cômoda e feliz, o aumento e perfeição de suas

faculdades físicas e morais”.(24)

Caneca transpõe para o Brasil, com as

circunstâncias que lhe são peculiares, essa colocação

central da doutrina do Contrato Social.

O povo brasileiro, ao se tornar independente,

resolveu organizar-se em Império sob um contrato que

deveria manter-se incólume nas suas cláusulas.

Aí se configuravam as boas relações entre go-

vernantes e governados, todos empenhados na pre-

servação do sistema constitucional, que encerrava as

normas básicas do dito contrato.

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Mais: a integridade do Império, a independência

do país, a segurança individual, a imunidade da casa do

cidadão, integravam as cláusulas em objeto, às quais os

governantes não deveriam violentar.(25)

Isso explica a gravidade do ato dissolutório per -

petrado por Pedro I.

Ele atinge o próprio núcleo do pacto social.

Anote-se, na doutrina do contrato social, a

primazia atribuída à sociedade global sobre o Estado. E

de uma forma tal que ela se arroga direitos absolutos

face à organização política.

O princípio de que a soberania reside na nação

estendia-se no revolucionarismo adotado pelos enci-

clopedistas, com o beneplácito de Caneca, ao direito de

insurreição, no caso de seu descumprimento.

A arbitrariedade, o despotismo da autoridade, in-

vertendo a proposição. criava automaticamente esse

direito.

O carmelita, discípulo ardente do federalismo,

fazia residir a soberania no povo distribuído em

Províncias.

Quer dizer: ele inseria o sistema dentro da rea-

lidade brasileira, onde a vida local, dada a circunstância

do período, exercia domínio incontrastável.

Ele fazia suas as palavras do Deputado Antônio

Carlos de Andrade, as quais transcreve na íntegra,

proclamando que o Federalismo se coadunava à ma-

ravilha ao condicionamento sócio-econômico e cultural

do país:

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“...E que o Brasil podia esperar, e tal, vez só devia adotar

um governo federal, pouco mais ou menos como o dos

Estados Unidos da América; por ser uma nação assaz

nova; por não ter propriamente classes; porque a sua

nobreza não passa de uma pueril vaidade de indivíduos

que não formam corpo; porque o seu clero é de nenhuma

monta, pela falta de riquezas e luzes; e muito

principalmente atendendo-se a que o Brasil não faz

propriamente uma nação, mas quase tantas quantas as

províncias, distintas em caráter peculiar, e sempre

inimigas e rivais”.(26)

Era justamente essa tese que vai dar grande

reforço ao revolucionarismo do frade, concitando as

Províncias, como entidades políticas independentes,

após o ato dissolutório, a estabelecerem um novo pacto

social, sob uma confederação.

E o movimento confederativo de 1824 é o

resultado direto dessa posição doutrinária.

Influência decisiva sobre a teoria constituciona l

de Caneca proporcionou-a Montesquieu.

Esse publicista francês, provavelmente, possi-

bilita um toque de moderação ao carmelita que, an-

teriormente ao ato dissolutório, e a partir do momento

da Independência, se cingira mais claramente aos cri-

térios const itucionais, ao modelo político, concebidos

pelo filósofo da Restauração.

Assim, defendia um sistema constitucional que

operasse sob o mecanismo da separação dos poderes,

impondo limitações e contra-pesos à ação de cada um

deles, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

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Tal a exigência do pleno exercício das garantias e

dos direitos humanos, indispensáveis ao livre desem-

penho dos indivíduos como proprietários, nas suas

atividades sociais em geral, como seres capazes de

elegerem o que lhes convém.

A aqui, mais uma vez, se mostra a capacidade que

tinha Caneca de adaptar a doutrina à nossa realidade.

E também nisso vai a faculdade de conciliação,

que não lhe faltava. Conciliação essa que já estava

presente na obra de Montesquieu, ao harmonizar os

interesses do antigo com os do novo regime, produto

típico da Restauração.

Assim, preconiza ele um Império constitucional

para o Brasil.

Escreve:

“Império constitucional?

Colocado entre a monarquia e o governo democrático,

reúne em si as vantagens de uma e de outra forma, e

repulsa para longe os males de ambas. Agrilhoa o

despotismo, e estanca os furores do povo indiscreto e

volúvel”.(27)

Essa linha de moderação se faz constante,

malgrado as teses avançadas do Iluminismo e do Fe-

deralismo americano, nas atitudes e no comportamento

de Caneca, enquanto Pedro I se vinha mantendo fiel ao

modelo constitucional implantado com a Independência.

Até então, ele aceita sem discussão, peremp-

toriamente, a monarquia constitucional.

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Ainda de acordo com a doutrina de Montesquieu,

que sugere a adaptação das formas de governo às

condições próprias dos países, vê na monarquia cons -

titucional a que mais nos convém.

Ela não oferece os perigos do arbítrio go-

vernamental, do despotismo, porque o poder soberano,

como um doto indivisível, se encontra na nação, e é

exercitado por delegação pela Assembléia Nacional.

O Imperador é apenas o chefe do Poder Exe-

cutivo.(28)

Ele tem as suas atribuições específicas, segundo o

esquema da divisão de poderes, não devendo exorbitá-

las. A tanto lhe veda a Constituição.

A democracia, nesse momento, não merece o

favoritismo do frade, sistema político tido como radical

pela elite dominante.

E o seu elitismo, comprovado por palavras às

vezes cáusticas com que tratava “a parte mais íntima do

povo”, denuncia uma concepção do mundo burguesa.

Tanto quanto, na Revolução Francesa, Robespierre se

referia à “canaille”. Se bem que noutros textos expenda

julgamentos favoráveis à gente humilde, ao povo. A

verdade é que mantém a clássica distinção “clero,

nobreza e povo”, naturalmente sem a mesma semântica,

mas com o resquício de uma hierarquia social, mais

tarde extinta.(29)

E a monarquia constitucional, entre nós, como em

outros países, como todo regime representativo, ca -

racterizou-se também pelo elitismo do corpo eleitora l,

dando como efeito natural o elitismo da representação.

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Após o ato dissolutório da Assembléia Nacional,

Caneca evolui de posição, até assumir o radicalismo que

vai perfazer o seu liberalismo.

Diz ele então:

“Esperávamos ser mais moderados, com o Império

Constitucional, porém o Imperador iludiu-nos. Não

aceitamos ferros”.(30)

Como mais tarde se explicitará, o carmelita man-

tém convicções em perfeita sintonia com as circuns-

tâncias, sem desmenti-la jamais. O que constitui uma

grandeza de sua personalidade.

A persistir o absolutismo do Imperador, “a

tendência do Brasil é para o governo democrático; a

qual seria sopitada, se em câmbio se lhe desse o regime

constitucional representativo”.(31)

E descreve as vantagens da democracia, ainda que

sob o enfoque do elitismo.

Ela está sob a égide da virtude e da justiça

distributiva. Conserva as distinções naturais de classe,

“distinções nascidas da indústria e propriedade”. Todos

são iguais perante a lei.(32)

Aí se destaca a influência de Locke, cujo modelo

político a serviço de uma burguesia que assumia o

poder. Esse, aliás, um filósofo que pesa na formação

doutrinária de Caneca.

Além do que fala a respeito da propriedade,

outros pontos da obra do pensador inglês podem ser

aflorados, demonstrando aquela influência.

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Tais as noções de contrato social, da supremacia

do Poder Legislativo, da tirania, da visualização do

Estado como órgão assegurador dos direitos individuais.

Locke, aliás, deixaria um modelo de organização

política, que seria mais tarde desenvolvido por

Montesquieu, principalmente na parte da divisão dos

poderes.

Relevante também a sua influência sobre Rous-

seau, com notoriedade na teoria do contrato social;

E a ponto de Giorgio Del Vecchio afirmar ser ele

“el mayor precursor de Rousseau”.(33)

Desse pensador francês, Caneca receberia o in-

fluxo do igualitarismo, porém despido do radicalismo

que se opunha à propriedade, e ficando vinculado ao

contexto jurídico.

Uma das características da doutrina caneciana é

mesmo o legalismo, em decorrência do culto à lei, às

fórmulas legais, em que se amarrava o liberalismo.

Entretanto, importante sublinhar que a atitude

ética, a todo momento irrompendo no frade pernam-

bucano, no típico embasamento de uma radicalidade,

colheria muito de Rousseau, cuja sede de justiça

atravessa dominantemente toda a sua obra.

Nele, o ordenamento jurídico se subordina aos di-

reitos naturais centrados na liberdade individual, inalie -

nável, dando-lhes melhor viabilidade. E na igualdade.

Não mais se justifica esse ordenamento quando,

em determinada circunstância nacional, viola a vontade

geral, o fundamento de sua existência, impondo-se a sua

substituição.

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A lei é o instrumento da realização humana.

Confirma o aparelho coordenador das atividades ten-

dentes a preencher gradativamente o fosso existente en-

tre o ser e o dever ser.(34)

A grande prioridade da época consiste na

construção desse aparelho. Para tanto, mister se fazia a

luta sistemática contra o despotismo, contra o

absolutismo, o obstáculo maior no aparecimento do

novo modelo político.

A dimensão ética do pensamento caneciano

alcançaria, porém, outros domínios, que não o mera-

mente político.

Na verdade, a racionalização da fé, uma con-

sideração mais humana dos problemas religiosos, a

inserção dessa fé no plano secular, se fizeram aí

possível graças à emergente antropologia que reorientou

a ética.

Conforme explica Maria do Carmo Tavares de

Miranda, a moral com Adam Smith se desvincula da

Revelação. Torna-se moral natural.

A grande importância desse passo merece registro

especial:

“É do realce dado à importância da natureza humana,

compreendida empiricamente, que com Adam Smith a

moral se torna independente da revelação e é moral

natural. A natureza humana constatada como um “dado”, e

não como valor, permitirá que a filosofia deposite toda

sua fé na Razão Humana, capaz de iluminar a noite de

ignorância e da superstição, imposta, segundo se

acreditava, pela tradição e pela autoridade”.(35)

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Essa formulação refluiria sobre o pensamento

teológico, fundando correntes do mais lídimo li-

beralismo.

No que diz respeito mais diretamente a nós,

observe-se que o Seminário de Olinda, estruturado com

base na reforma pombalina, e no qual se formou o frade

carmelita, compõe o estuário de idéias libertárias que

começaram a germinar com a Reforma Protestante.

No eixo dessas idéias está a libertação do projeto

de plena autonomia do Estado, frente ao confessiona-

lismo que pervadia as suas prerrogativas.

Daí a necessidade de se elaborar uma ideologia

religiosa a justificar os objetivos e interesses do Estado

moderno.

O jansenismo a consulstancia.

Como em outros países, Portugal, pela mão de

Pombal, o acolhe, inspirando, além de outras coisas,

dentro da reforma da universidade lusa, a reformulação

dos estudos teológicos. Aí reside o que há de mais

avançado na dita reforma.

Pois ela supera mesmo o experimentalismo que se

acha no seu cerne e absorve o aspecto humano e

libertário.

É que, “através do canal teológico, passou para a

Península Ibérica, o dado fundamental da consciência

pessoal engrandecida, valorizada, em cont raposição à

autoridade incontestada”.(36)

Assim, não se pode compreender no seu todo o

pensamento caneciano sem se ir até a concepção religio-

sa que forma uma das grandes colunas que o sustenta.

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Naturalmente, tal concepção levaria à mais rápida

assimilação dos ideais éticas, de uma antropologia, que

o tornaria propenso não apenas à aceitação desses

ideais, mas a um profundo engajamento em tarefas em

prol da justiça, da liberdade, da igualdade.

Quem sabe se o carmelita não redescobria as

verdades cristãs num Rousseau, no humanismo

iluminista!

Os escritos teológicos, integrados nos seus

sermões e dissertações mais relacionados com a vida

eclesiástica em Pernambuco, não podem ser separados

dos escritos políticos, na explicitação do liberalismo

radical que propagou.

Tomado pelo zelo iluminista de unir a teoria à

praxis, prega uma fé engajada, uma vida espiritual que

eleve e penetre o estado de cada pessoa.

Assim, não aceita o devocionismo, a prática

meramente ritual, e dominante entre os católicos, que,

no fundo, funciona como tranqüilizante da má

consciência.

Escreve: “Orará em tempo oportuno, e alcançará de Deus os

favores, que intenta, o ministro que nas horas em que deve

despachar e fazer justiça às partes, as deixa ficar nas

escadas dos tribunais, para se ir entregar à uma fervorosa

oração?

Orará em tempo oportuno, e será bem atendido o general,

que devendo defender a pátria, repulsar o injusto inimigo,

recolhido nos templos, elevado em êxtases, deixa ao

relento a vida de seus compatriotas, a sua propriedade, a

liberdade da nação?”(37)

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Do mesmo modo, como se viu nesse capítulo,

desfere pesada acusação ao Cabido de Olinda por se

manter indiferente nos graves momentos de convulsão

social de Pernambuco, fugindo ao compromisso.

Pelo trecho ora transcrito, nota-se perfeitamente

que o Liberalismo imanente ao sistema constitucional

adotado com a fundação do Império, revestia -se de

valores éticos e superiores, que o fazia indissociável do

Cristianismo.

Nos dois momentos de suas reflexões, o da

conciliação e o da radicalidade, permanece intacta tal

associação, que, provavelmente, busca compensar um

divisionismo cartesiano.

Apenas, ao passar de um para outro momento,

torna mais acerba e aprofundada a crítica.

Anote-se que Caneca, colocando a soberania no

povo e não na autoridade, esta um mero delegado

daquele, reforçava o “vox populi vox Dei”.

O povo era então o ungido de Deus. A ele

cumpria realizar a Providência no âmbito nacional,

modelando e executando o destino do Brasil.

Essa concepção estava, alias, na raiz da doutrina

da soberania do Iluminismo, do Liberalismo.

Daí para a justificação da revolução contra o

despotismo da autoridade vai um passo.

Duas atitudes do frade carmelita esclarecem tal

colocação. Elas são caracteristicamente revolucionárias,

indicando o dever de resistência ao despotismo, e até as

últimas conseqüências.

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Numa, ele se levanta contra o arbítrio ministerial,

negando-lhe autoridade moral para arrecadar tributos da

Províncias, desfalcando-as gravemente de suas riquezas.

Apoiando-se em Mauri e Raynal, diz que o

imposto é produto do despotismo e limita a propriedade

e a liberdade.(38)

Está-se então no auge do radicalismo confede-

rativo em Pernambuco e a circunstancialidade notória do

pensamento caneciano clarifica a mudança de matiz

doutrinário.

Lemos Brito a propósito opina:

“Não se pode analisar uma teoria sem indagar do momento

histórico em que ela se objetiva. A situação de

Pernambuco entre 1817 explica de sobejo o radicalismo

federalista de Frei Caneca...”(39)

A outra atitude se configura na alusão que faz aos

hebreus “na livraria do cativeiro dos Madianitas”, ao

descrever uma das escaramuças finais da Confederação

do Equador.

Embora o faça de passagem, somente querendo

realçar “o valor e a disciplina” como fatores de vitória

de um exército, deixa aí subtendido o papel do conflito

em conjunturas graves como instrumento de afirmação

soberana de um povo, e como mandatário de Deus.(40)

A Conjuntura Pernambucana: Antecedentes

Importante ressaltar os eventos que modelam a

conjuntura pernambucana, e antecedendo imediatamente

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ao movimento confederativo, para um melhor enten-

dimento do estado de coisas na heróica Província.

Pois aí se arma o ambiente propício à mani-

festação do Liberalismo radical.

Em Pernambuco, como no restante do país, vivia -

se sob a tutela de um governo despótico.

Tinha ascendência o absolutismo, não obstante a

abertura trazida pela presença de D. João VI no Brasil.

Eis o depoimento do historiador da Revolução de

1817:

“A monarquia portuguesa havia degenerado de sua

primitiva forma: o poder de fazer as leis, e de as executar,

residia ali na mesma pessoa, e por conseqüência nenhuma

segurança restava ao corpo social; a lei era a vontade do

Soberano; doutrina, que ensinava-se nas escolas, e que os

fatos comprovarão. Os Capitães Generais, Governadores

das Capitanias do Brasil, representantes do Supremo

Imperante, não reconhecido limites na sua

autoridade...”.(41)

Em que pese a moderação dos dirigentes

pernambucanos, Caetano Pinto de Miranda Montenegro,

governador, à frente, sentia-se que o próprio sistema

absolutista, com fundas tradições, por si só criava uma

aura de férreo autoritarismo na Província para o que

tudo concorria.

Tome-se primeiramente a atividade econômica.

Grassava acentuada insatisfação no seio das clas -

ses mais representativas com o regime fiscal, que era

deveras opressivo.

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A agricultura, longe de incentivada, sofria atroz-

mente os rigores dos tributos. Pode-se dizer essa a

atividade econômica mais sobrecarregada.

Ao dízimo, cobrado pelo governo português,

onerosíssimo, se reuniam outros gravamos, que incidiam

sobre a produção, sem ponderar o elevado custo da mão -

de-obra.

A décima constituía-se algo também odioso, sem

atenção à proporcionalidade que lhe deve ser inerente,

recaindo indistintamente sobre os proprietários rico s e

os de poucas posses na área urbana.

E tais impostos, nem sequer uma pare destinada a

melhoramentos públicos, canalizados para a Corte.

Pesavam também os graves defeitos da orga-

nização militar, onde perduravam conflitos entre por -

tugueses e brasileiros.

Some-se toda uma série de vícios inerentes à

desfuncionalidade social, que impedia a diversificação

racional de atividades públicas e privadas.

A indisciplina era, portanto, uma constante,

gerando focos de rebeldia e de insubordinação.

A Igreja ressentia-se da pouca ou quase nenhuma

qualificação intelectual e moral de muitos dos párocos,

que cometiam toda sorte de desatinos, e prevalecendo -se

da situação de elite privilegiada que desfrutava.

Com isso, tinham prejuízos o ensino religioso e o

culto.(42)

Vem ainda o que, por sua vez, alimentava e

produzia um crescendo de descontentamento entre as

classes – o despotismo das autoridades.

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A rivalidade com os portugueses crescia de ano

para ano. E eles não cediam um só milímetro na intran-

sigência de senhores absolutos, inclusive olhando os

brasileiros como seres inferiores.

O ministério português, segundo Muniz Tavares,

nutria e mantinha a discórdia, julgando ser de boa

política, como fortalecendo o domínio sobre a Colônia.

Não só em Pernambuco a situação assim se

configurava.

Também em Minas, São Paulo e outras

Províncias, o descontentamento avultava, as queixas se

multiplicavam.

Naquelas duas já tinham sido violentamente

reprimidos levantes.

Nesse contexto, entra a sublevação de 1710, em

Pernambuco, quando Olinda, núcleo de forte con-

centração da população nativa, se insurge contra a

discriminação que sofria do governador, em tudo o por

tudo favorecendo Recife, onde se reuniam os interesses

mercantis dos portugueses.

Os moradores de Olinda radicalizam o seu

inconformismo e vão à luta armada, tomando posição

contrária à ereção de Recife como vila.

A partir daí recrudesce o ódio dos brasileiros aos

portugueses, que monopolizavam os melhores postos, as

melhores posições, e detinham o controle do comércio.

Essa situação desperta o sentido de inde-

pendência, a imagem de uma organização política onde

os brasileiros não sofressem tais vexames e en-

contrassem condições de prosperidade, de proteção e de

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amparo à propriedade, com o encaminhamento natural

dos seus negócios, sem a opressão de um governo

infenso aos interesses nacionais.

Daí a simpatia com que se cerca o modelo de

regime republicano dos Estados Unidos.

Não havia ainda, entre nós, a consciência de uma

organização política em conformidade com as ca -

racterísticas do país.

Perfilhavam-se modelos estrangeiros, como se

fosse possível aplicá-los sem dificuldades.

De qualquer modo, isso denunciava a consciência

da necessidade de mudança, embora se desconhecendo

os métodos políticos mais eficazes de realizar o grande

projeto. Sobressai aqui o trabalho de doutrinação real-

mente importante da Maçonaria.

Muniz Tavares dá conta da existência, em 1816,

de quatro lojas, “sob a direção de uma Grande Loja

Provincial”, as quais, num trabalho conspiratório de

profundidade, decisivamente influiria no abalo da velha

ordem absolutista, inclusive levando a insurreição a

corporações militares, onde se acentuava fundamente o

confronto entre o elemento português e o per-

nambucano.(43)

Aliás, cada vez mais, aumentava o fosso entre

pessoas das duas nacionalidades, trazendo constantes

inquietações à Coroa, ao governo provincial, depois de

um período de tolerância.

O ambiente era de franca preparação à Revolução

de 1817.

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Oliveira Lima oferece um relato mais abrangente

e circunstanciado da conjuntura pernambucana, numa

rica perspectiva histórica.

Interessante acompanhá-lo a partir da criação do

Seminário de Olinda.

Enfatiza o trabalho desse Instituto, a despeito do

seu nível secundário.

Fiel à reforma de Pombal, ele se imbui das novas

doutrinas, notadamente as cartesianas, propagadas pelos

Oratorianos em Portugal.

Sublinha o fato de a abertura não passar de

certos limites, não absorvendo as idéias revolucionárias

francesas e outras em voga.

Tinha um dominante desempenho a instituição da

Mesa Censória, “doseando a divulgação científica, e

correspondente à execução da sua política de

absolutismo...”.(44)

O econômico era o aspecto privilegiado da

administração pombalina, pautando o que se poderia

denominar uma linha de empirismo pragmático.

Nisso absorvia a preocupação maior do século.

E ela se relacionava com o social, ou com uma

teoria social, que estava na base do pensamento de

filósofos, na doutrina dos economistas.

Notabilizava-se por se voltar, entre outras coisas,

para a situação das camadas mais pobres da sociedade,

num esforço para melhorar a sua condição.

Propostas nesse sentido foram formuladas. Tais

como a divisão da propriedade, diminuindo os efeitos

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nocivos do latifúndio, principalmente o do tempo, mais

improdutivo do que o de hoje.

Na dimensão da política pragmática e despótica

de Pombal, aquelas propostas não iam ao ponto de

suscitar o nivelamento das classes. Pois, mais que

ninguém, era o grande estadista um nobre, um elit ista,

não suportando as idéias rousseaunianas, libertárias, e

as de um socialismo que daí decorriam em França.

A verdade é que o empirismo pragmático não se

excedia no tocante a essas manifestações igualitárias.

Por falta mesmo de uma filosofia que o fundasse.

Diz Oliveira Lima:

“Pombal compreendeu a economia num sentid o muito

menos revolucionário do que aquele por que a entendiam

os Enciclopedistas: antes como um meio mais de servir a

monarquia absoluta”.(45)

No entanto, a sua política procurou melhorar a

sorte do comércio e da indústria, no afã de liberar

Portugal da tutela inglesa.

O sistema de monopólios que introduziu no país,

seguindo as diretrizes do Mercantilismo e prestigiando

ao máximo o controle do Estado sobre as atividades

mercantis, deu nova orientação às atividades

econômicas.

As companhias de Comércio que instituiu tiveram

um papel saliente na prática monopolista.

Inaugurava o protecionismo estatal no tocante à

indústria e ao comércio. O que, de certo, tendo em

mente a pouca dinâmica dos negócios, da economia

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portuguesa, não deixava de representar um considerável

estímulo a certas atividades que permaneciam esta-

cionárias, especialmente a agricultura. Esta, até então,

comungava com uma mentalidade atrasada, rotineira,

pouco ou nada afeita à economia industrial em plena

expansão na Europa transpirenaica. Faltava mão-de-obra

qualificada.

Os produtos manufaturados não apresentavam a

necessária perfeição. Registrem-se, dentro daquela

mentalidade, os preconceitos notadamente correntes no

seio da aristocracia rural contra o trabalho manual,

contra a atividade comercial, como bem dissecou

Oliveira Viana em Introdução à História Social da

Economia Pré-Capitalista no Brasil.

Na efetivação do objetivo de recuperação

econômica de Portugal, e das Colônias, encontra-se a

fundação da “Companhia de Comércio de Pernambuco e

Paraíba”.

Ela nasce de uma associação de comerciantes de

Lisboa, do Porto e do Recife. Os seus estatutos são

aprovados em 1759. Mantinha todo o monopólio do

comércio interior praticado entre vilas. Ela tem um

desenvolvimento e um desfecho diferentes dos da

Companhia do Grão Pará e Maranhão. Esta, fundada

quatro anos antes, iria proporcionar extraordinário

incentivo ao desenvolvimento do Norte. Possibilitou o

progresso da agricultura, com a diversificação dos

produtos de exportação. Já a Companhia de Pernambuco

e Paraíba, por funcionar em outro meio muito mais

populoso, adiantado, alcançou resultado negativo.

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Primou pela opressão e pelo excesso de regula -

mentações. Por outro lado, dava primazia abusiva aos

comerciantes de maior prestígio. Com o andar do tempo,

“os gastos absorveram as rendas, e os gêneros arrecadados

pelas grandes companhias do comércio, encarecidos pelo

monopólio da venda e pelos direitos fiscais que pesavam

sobre a exportação, viram diminuir o seu consumo e

estagnar-se portanto a sua produção”.(46)

A crise, na verdade, atingia a todos.

Os pequenos comerciantes se viam tolhidos pela

concorrência desigual da privilegiada Companh ia de

Comércio. Assim como a agricultura, na inteira de-

pendência dessa associação, que lhe ditava os preços

dos seus produtos.

Nessas condições, não havia como durar muito a

poderosa Companhia, dissolvendo-se, afinal, em 1813.(47)

Enquanto isso prosperavam na Colônia as idéias

libertárias, as doutrinas mais recentes de cunho liberal-

revolucionário, rompendo todos os embaraços opostos

pela tradição asfixiante e pelas rígidas proibições de

importação e de leitura dos enciclopedistas.

O exemplo da conjuração mineira de 1789 é

bastante elucidativo desse estado de fermentação

ideológica, presente até no interior das Províncias.

Nesse momento, duas vertentes revolucionárias

são atuantes: a da Revolução Francesa e a da Revolução

Americana.

República, Federação, Democracia são fórmulas

políticas divulgadas, sob a égide da liberdade, da

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autonomia de cada povo no tocante à sua organização

política.

De sorte que, declarada a Independência polít ica

do Brasil, já se tinha uma certa tradição liberal nas

Províncias, notadamente naquelas que constituem focos

de irradiação econômica e política, como Pernambuco e

Rio de Janeiro.

Mas longe estava o país de apresentar uma

razoável educação política. Tão forte o obscurantismo e

os bloqueios opostos pelo período colonial, de longa

duração.

Não era de imediato, com a Independência que

iria obtê-la.

Ele próprio, com frágil estrutura social,

submetido a práticas políticas de países adiantados, vê-

se sacudido por revoltas, quando se torna incomparável

com o progresso econômico o regime absolutista.

A separação de Portugal nos traria grandes

tarefas, como a da organização de um Estado liberal.

Tarefas, na verdade, demasiado pesadas para um país

que estava longe de acompanhar a experiência liberal

dos europeus e dos americanos.

Subsiste forte tradição autoritária herdada dos

governos despóticos da Colônia. E não eram só os

governos que exerciam o despotismo.

Também os proprietários nos seus vastos do-

mínios, os clérigos, especialmente vigários colados, os

bispos, os agentes fiscais, os comandantes militares.

Era uma elite que se habituara ao mando

exclusivo e autoritário, dado o atraso das populações.

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Freqüentes as lutas de famílias, na crista de

desavenças entre grandes proprietários rurais que

cumpriam o regime patrimonialista, patriarcalista nos

sertões. Eles prolongavam a dependência externa no

interior, de modo mais acentuado. Pois constituíam os

domínios rurais o centro da vida econômico-social e

política do país, até a República.

A desfuncionalidade social conduzia à plena

indiferenciação de papéis, com a concentração

monopolística das iniciativas, das decisões na camada

dos proprietários, e ao unidimensionamento axiológico.

Daí derivava à estagnação quase completa da atividade

renovadora, com a falta de confronto de posições, de

classes definidas por interesses e objetivos conscientes.

Tudo permanecia em torno de uma tradição vazia,

pobre, não projetando valores de mudança.

Apenas nas cidades litorâneas, como Recife,

Salvador e Rio de Janeiro, desenvolvia-se uma vida

mais ativa, mais diferenciada, com fecundo comércio e

contato com o exterior, dele recebendo aquelas idéias

libertárias. Ou as lições de uma economia mais

progressista. E, assim mesmo, sem condições de se

imporem decisivamente diante do meio rural. A pequena

população e a grande concentração de vida nos sertões

explicam-no.

Todo progresso político, sem dúvida o objetivo

prioritário do período, se via tolhido pelo privatismo,

pelo poderio quase incontrastável da organização

privada diante do poder central.

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Ela reunia poderosos feudos nos longínquos

lugares, quase de todo isolados dos centros urbanos.

Distante estava a integração social, nacional.

As Províncias pareciam isoladas, separadas, como

corpos independentes.

A vida local ou provincial tinha, por isso, de ser

privilegiada e de constituir o centro das atividades

políticas e econômicas da nação. Esse isolacionismo

provincial, especialmente após a Independência, geraria

problemas agudos, quer de ordem econômica, quer de

ordem política. Porque, e disso é exemplo taxativo o

ciclo revolucionário pernambucano, ele tendia fatal-

mente a contrapor anseios autonomistas ao propósito de

centralização política com o Império.

Veja-se, ademais, como esse problema era acres-

cido de outro que o intensificava, ou seja aquele

modelado pelas conseqüências do domínio português no

Pará e no Maranhão até julho de 1823, quando os

antigos colonizadores se vêem constrangidos a se

retirarem para a pátria.

Lembre-se ainda o fato de a Bahia constituir

também um problema, em face da resistência do General

Madeira com as tropas portuguesas, sofrendo bloqueio

prolongado e padecendo a população os rigores da fome.

Nesse quadro, a unidade nacional é tênue. Nele

não há a concorrência funcional de forças políticas e

sociais.

Não há tradição de programação política na-

cional, por falta de doutrinas próprias ou harmonizadas

com as estruturas do país.

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Assim, a tendência, como de fato se consumou,

era o aparecimento de projetos políticos radicais, es -

teiados no que havia de mais revolucionário em material

de extração estrangeira, para se contrapor a tudo que

dissesse respeito à centralização, a regime unitário,

confundido com despotismo, com autoritarismo.

O clima exaltado do país, as comoções internas

que o assaltavam, a busca de acomodação de suas

estruturas, o que se fazia de modo doloroso e cruento,

engendravam soluções extremadas.

Somente pequena elite partilhava idéias bem

sentadas a respeito do que convinha ao país.

Fala Oliveira Lima do Brasil, logo após a

declaração da Independência, “privado, ao contrário dos

Estados Unidos da América, de uma longa educação

política durante o período colonial, a braços com

divisões intestinas, e atravessando uma época qualifi-

cada pelo amor às soluções extremas”.(48)

A ausência de um movimento coeso e gene-

ralizadamente consciente em torno das implicações

políticas da Independência, tendentes naturalmente à

organização política da nação, fazia com que as

Províncias, principalmente as mais influentes, não

oferecessem sintonia de posições referentemente ao

projeto político a se elaborar.

De logo, a desritmia se manifesta entre o Rio de

Janeiro, sede da Monarquia, e Pernambuco.

Naquela, dominam sentimentos calorosos a favor

do Imperador, visto como o libertador, coberto de uma

aura paternalista.

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Na última e em outras, grassava viva insatisfação.

Mesmo oposição ao monarca, do qual se dizia estar a

serviço da causa portuguesa, não aliment ando, no fundo,

intenções emancipadoras. Isso significava que a

Independência fazia parte de um jogo político em

proveito da dinastia portuguesa, que, desse modo,

acabaria mantendo o poder nos dois países. Em Per -

nambuco, acentuava-se essa opinião, favorecida pela

expansão das idéias democráticas.

Aliás, tudo aí confluía para o agudo estado de

oposição.

Afora os motivos ou condicionamentos já

aduzidos, e relacionados com o isolamento das Pro-

víncias, com o sobrepujante espírito local, com os

interesses de proprietários e de negociantes firmados no

meio onde desenvolviam os seus misteres, meio esse que

compunha um universo fora do qual não tinham sentido

outros interesses, outras aspirações, algo mais vinha

agravar a situação. E diz respeito à conjuntura política

esboçada com a decisão do Imperador de, fortalecendo a

unidade nacional, dar mais sentido à estruturação do

nascente Império.

A própria consolidação da Independência exigia

essa unificação revigorada. Contudo, a sua efe tivação

iria servir de acicate para o incremento das desordens,

dos conflitos, dos motins, da sublevação geral de

Pernambuco, refletindo-se no restante do Nordeste.

Evidente que, a persistir tendências centrífugas

em algumas Províncias, focaria irremediavelmente

comprometido o esforço pela Independência. O qual

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somente produtivo com a união de todas elas ao redor

do poder unificador da Monarquia.

Acontece que, em Pernambuco, não era o

momento histórico propício ao projeto de integração

nacional sob a monarquia unitária. O Federalis mo

contava lá com mais adeptos, em virtude de sua

condição de instrumento de valorização das realidades

locais.

Sobre esse quadro conjuntural oferece minucioso

relato Alfredo de Carvalho. Nele enfatiza os motins que,

ao final de fevereiro de 1823, sacudiram Recife.

Escreve o eminente historiador pernambucano:

“Os motins, que alvorotaram esta Capital nos últimos dias

de fevereiro de 1823, oferecem um dos exemplos mais

contristadores da completa desorganização política e da

eminente dissolução social a que t ínhamos chegado”.(49)

Já em 1821 eram intensos a agitação, a

inquietação dos espíritos, a indisciplina militar, o

exaltado faccionismo, compondo o quadro descrito há

pouco.

E anote-se que aí o republicanismo ganhara no-

tável ascendência, numa escalada que começa nos

primórdios da Revolução de 1817.

Os agentes das facções se encarregavam de

manter acesa a paixão política, utilizando a arma do

boato, dos conciliábulos.

É então que entra em cena a política solerte e

secreta dos Andradas, procurando firmar e r eforçar

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posições na Província em favor da causa nacional sob a

liderança do Príncipe Regente.

Em 1822, mais precisamente em junho, esse

trabalho culminaria na intimação às Cortes Portuguesas

do “reconhecimento formal do príncipe D. Pedro como

regente e chefe do poder executivo no Brasil, e inteira

sujeição às suas ordens”.(50)

Acontece que governava Pernambuco Gervásio

Pires Ferreira, ex-participante da Revolução de 1817, a

quem os sofrimentos atrozes da prisão e o pessimismo

gerado pelo malogro do movimento levaram à timidez e

à indecisão diante dos momentos decisivos.

A isso se junta o não dispor do requisito polít ico

indispensável: a flexibilidade, para se obter a motivação

completa do fracasso do seu governo.

Ele permanecia, realmente, indeciso num instante

que requeria pronta e clara atitude, seguida de provi-

dências imediatas, diante da situação que se esboçava

com a vitória do partido das Cortes Portuguesas.

Afeito a acreditar no seu pessimismo, na im-

possibilidade de êxito duradouro de qualquer movi-

mento liberal, não via como perdurar a conquista das

Cortes, em como ser viável “o advento da completa

autonomia provincial sob um regime de pura democracia

ou o êxito dos manejos do Príncipe Regente”.(51)

Quer dizer: ele tendia a ficar numa posição de

efetiva neutralidade. O que, na verdade, impossível

numa época em que o comprometimento com uma das

causas em confronto era um imperativo. Não se podia

eximir de envolvimento partidário, quando se forçado a

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assumir ma posição no recesso de uma conjuntura a

reclamar decisões cruciais dos que ocupavam postos da

política ou da administração.

Queria Gervásio manter uma impossível

neutralidade para evitar perturbações sérias em

Pernambuco. Mas o seu intento gerou o contrário, ou

melhor, contribuiu para intensificar a agitação dos

ânimos. Adota a prática da contemporização, eficaz

noutras circunstâncias. O que, com pouco mais, abala a

neutralidade que assumira.

Com a evolução da conjuntura política nacional, e

reconhecido o príncipe D. Pedro como regente do

Brasil, vê-se Gervásio, diante de pressões, obrigado a

fazer cessões, mas sempre mantendo a dubiedade.

Continua pressionado, mormente depois que demons-

trara “certas ressalvas de deferência para com as Cortes

e a união transatlântica, e de precaução contra o

despotismo do ministério do rio, propenso à ditadura

enquanto a Pátria se não desvencilhasse da crise da

independência”.(52)

Resolve então opinar pela realização de um

plebiscito que desse a Pernambuco o direito de eximir -

se de subordinação às Cortes, ficando sob a regência do

príncipe D. Pedro. Desse modo, facilitar-se-iam as

eleições de procuradores ao Conselho de Estado e de

deputados à Assembléia Constituinte, convocada pelo

regente. Essa posição de Gervásio ainda não agrada ao

partido vencedor, que nela vê algo subreptício,

provavelmente a futura união das duas coroas, segundo

presumido acordo entre J. João e o filho. E atribui à

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proposta o caráter de manobra tendente a contornar a

obediência jurada.

Os ânimos tornam-se cada vez mais agitados.

Tanto entre os partidários da velha ordem, como entre

os nacionalistas, os radicais defensores da causa da

Independência.

Agrava-se o quadro com a interferência do

visconde de Goiana, Bernardo José da Gama, homem

ambicioso e maquiavélico.

Ele acaba por tumultuar as possibilidades de volta

à tranqüilidade na Província e trama a derrubada da

Junta. No que era favorecido pela impopularidade da

mesma. Quer favorecer o capitão Pedro da Silva

Pedroso, ativista exaltado e maçon, que queria levar a

doutrina da liberdade às últimas conseqüências.

E no meio do terror, quando promove o assas-

sinato de inúmeras pessoas importantes, num ímpeto

radical sem precedentes. É preso. Consegue por um

golpe de sorte escapar ao cadafalso. Recolhido ao

cárcere da Bahia, não é incluído entre os anistiados de

1821. Remetido para Portugal “à disposição das Cortes”,

seria mais tarde liberto, voltando para sua terra.(53)

Contando com impressionante popularidade, pela

sua fama de coragem e de benemérito dos homens de

cor, Pedroso iria logo aumentar o seu prestígio. Dá novo

alento à oposição.

Gama e outros o integram no grêmio dos “liberais

puros”, utilizando o imenso prestígio que gozava. São

esses “liberais puros” que tramam e levam a cabo arrua -

ças no Recife, atemorizando a população e preparando

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terreno para o golpe final. Este é assestado com a

partida do tenente-coronel José de Barros Falcão de

Lacerda, comandante da tropa, à Bahia, onde daria

combate ao exército de Madeira.

A resistência da Junta esmaece. Gervásio conduz

a bom termo os seus planos.

“Neste propósito, a 16 de setembro de 1822, oficiou em

companhia dos seus colegas os eleitores, congregados em

Olinda para escolha dos deputados à Assembléia

Constituinte, pedindo as suas demissões, que aliás já

haviam antes solicitado de D. João VI e do Príncipe

Regente. Recusou-se o colégio eleitoral a satisfazer-lhes o

pedido, receando ultrapassar os limites das atribuições de

que estava investido. Divulgadas estas ocorrências a

sedição rebentou na manhã do dia seguinte, 17 de

setembro, após um último conciliábulo dos chefes do

Quartel de Artilharia”.(54)

Restava-se em plena sedição. Militares e vo-

luntários, companhias formadas por mestiços e negros,

cuja organização já vinha do governo de Gervásio,

reúnem-se no campo do Erário onde Pedroso fala

exortando-os da necessidade de terem outro co-

mandante, assim como outro presidente da Junta.

Em seguida, marcha para o palácio do governo

onde faz, como novo chefe militar, a deposição do

governo da Província.

Realizada a eleição da nova Junta, ela teve

jurisdição até a nomeação do governo legal pelos

eleitores. O que se faria a 23 de setembro. Os membros

da Junta legalmente eleita passam pelo dissabor de

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serem demitidos ou afastados de suas funções. Entre

eles Bernardo José da Gama e seu tio, José Fernandes

Gama.

Não havia entendimento unânime entre os

membros da Junta. É o Morgado do Cabo a nova

personalidade que emerge afirmativamente na vida

pernambucana.

Grande proprietário, o maior, muito rico, exer-

cendo larga influência sobre a população rural, alcançou

um prestígio político acentuado em razão de sua fortuna,

de suas ligações com D. Pedro, de quem compartilha o

autoritarismo. É decisiva a sua participação na vitória

do partido imperial.(55)

Já Paula Gomes, outro membro influente da

Junta, tinha outras disposições e teses. Os dois eram os

de maior poder decisório e ascendência no órgão.

Ele atuara na Revolução de 17, chegando a

presidir a Junta rebelde de 1821. Culto, inteligente,

persistente, ardiloso, porém a ambição fê-lo colocar a

causa que defendia em posição secundária, face aos

interesses subalternos e pessoais.

Contava com um grande trunfo: a ascendência

sobre Pedroso, a quem muito se ligara. E o governador

d’armas representava uma força considerável no equi-

líbrio político, nas decisões da Junta.

Paula Gomes, nessas condições, passou a exercer

um papel ativíssimo de conspirador, de agitador.

Os dois, o Morgado do Cabo e ele detinham o

controle da Junta, embora houvesse tendência dos

demais membros de seguirem o Morgado. Contudo,

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perdurava unânime acordo em torno da “causa

fluminense”.

A esta altura, os republicanos estavam num

segundo plano, não tendo oportunidade de se imporem

como tal.

Constituía uma pecha terrível lançada contra uma

pessoa o chamá-la de republicana.

Ao adversário se dirigia o epíteto com facilidade,

para desgastá-lo vantajosamente.

Não obstante, os ideais republicanos de 17 con-

tinuavam a inflamar muitas pessoas, que os dissi-

mulavam. E, até certo ponto, a doutrina democrática

interferia nos eventos da época. Apenas não havia

condições de livre manifestação, como mais tarde, em

1824. A verdade é que a causa democrática se

manifestou de parceria com a autoridade constituída,

respaldando-a nas crises, nos momentos de perigo.(56)

Confirmando a imaturidade da organização social,

vem agora a crise da autoridade se tornar mais

pronunciada, quando aquelas vozes dominantes na Junta

começavam a discordar. A coisa chega a um ponto de

não querer o Comandante d’armas subordinar -se ao

governo civil. Esse conflito, aliás, surgira primei-

ramente na gestão de Gervásio, quando prevalecera a

supremacia do segundo, mui sensatamente.

Acontece que as instituições ainda eram muito

frágeis para se imporem. Bastava que surgisse no

círculo da administração uma personalidade forte,

dessas que no tempo pesavam mais que partidos, para

que ocorresse um grande retrocesso. E foi o que real-

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mente aconteceu ao assumir Pedroso a governadoria

d’armas de Pernambuco. Não aceitou, depois de pouco

tempo de empossado, a tutela da Junta, entrando a

exercer os seus encargos do modo mais arbitrário

possível. A ponto de se situar em franca desobediência,

e indo até ao desacato, às ordens emanadas daquele

órgão. No que muito favoreceu a instigação de Paula

Gomes.

Observe-se a que grau de deterioração chegara a

autoridade. Porquanto pessoas que encarnavam mesmo

essa autoridade tratavam de desprestigiá-la, de fazê-la

inócua, subordinando-a a interesses de potentados ou de

grupos pouco dignos.

Nesse diapasão, o comportamento de Pedroso

assume proporções de desafio, de confronto criminoso

com a ordem constituída, da qual fazia parte,

sublinhando a grande contradição a marcar a admi-

nistração pública, com graves prejuízos para ela.

Desta vez, Alfredo de Carvalho, é enfático:

“Consentindo na licença e na insubordinação dos seus

comandados, começou a praticar toda a sorte de atentados

contra a ordem pública, insultando, prendendo e

ameaçando de fuzilamento a quantos incorriam no seu

desagrado e revelando nestas determinações uma

volubilidade inexplicável; as arruaças e os conflitos

sucediam-se quotidianamente a ninguém se julgava a

coberto das iras do frenético Governador das Armas”.(57)

A prepotência de Pedroso realmente não

encontrava limites. O que se explica também pela

quadra anormal que atravessava a Província. A falt a de

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segurança era absoluta. A autoridade sem força para

reprimir os abusos. Tudo possível nessa situação.

Assim a configuração sócio-política do Recife,

com o aspecto de cidade das mais importantes do

período, entregue a terríveis agitações.

Nela nasce e toma corpo uma ideologia pan-

fletária que iria constituir importante corrente dentro da

doutrina liberal.

Nela se desenvolvem os temas do liberalismo

radical. É uma ideologia que reflete a conjuntura

delicada por que passava a sociedade brasileira, com

grandes desafios a enfrentar.

Funda-a entre nós Cipriano Barata. Então se sofre

em Pernambuco a ditadura de Pedroso, cujos desatinos

motivam a sua deposição e prisão.

Ainda em 1823 dá-se o retorno da Junta

Provisória que, mais uma vez não consegue segurar o

poder, renunciando a 13 de dezembro.

Eleito, sobe ao poder Manuel de Carvalho Pais de

Andrade, republicano de 17, responsável pelo resta-

belecimento da ordem no Recife. Próxima estava a

Confederação do Equador.

NOTAS

(1) “Notícia sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca”. In:

Obras Politicas e Litterarias de Frei Joaquim do Amor Divino

Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de

Mello. Recife, Typographia Mercantil, 1875, p. 9.

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(2) “O Caçador atirando à Arara Pernambucana em que se

transformou o Rei dos Ratos José Fernandes Gama”. In: Obras

Politicas e Letterarias, p. 283.

(3) Comendador Antônio Joaquim de Mello, “Notícia

Biográphica”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 9.

(4) O Clero e a Independência. Rio de Janeiro, Centro Dom

Vital, 1923, p. 192.

(5) Obras Politicas e Litterarias, p. 289.

(6) “Sobre a Sociedade Maçonica em Pernambuco”. In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 409.

(7) “O Sacerdote”. In: Ensaios Universitários sobre Frei

Joaquim do Amor Divino. Recife, Universidade Federal de

Pernambuco, Editora Universitária, 1975, p. 53 e ss.

8) “O Polemista”. In: Ensaios Universitários de Frei Joaquim

do Amor Divino (Caneca), p. 136.

(9) “Typhs Pernambucano”, 29 de janeiro de 1824. In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 452.

(10) “Sobre a Pastoral do Cabido de Olinda de 4 de março de

1823”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 303.

(11) Ibidem, p. 305.

(12) TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de

Pernambuco em 1817. Recife, Imprensa Industrial, 1917, p. 317 -

321.

(13) “Na solenidade da Acclamação de D. Pedro D’Alcantara em

Primeiro Imperador do Brasil”. In: Obras Politicas e Litterarias,

p. 235 e ss.

(14) MELO, Mário. “Frei Caneca”, Revista do Instituto

Archeológico Pernambucano, Vol. XXXI, p. 7 e ss.

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(15) Filosofia de la Ilustracion. Máxico, Fondo de Cultura

Econômica, 1975, p. 22.

(16) Ibidem, p. 23.

(17) FUETER, Ed. História de la Historiografia Moderna II.

Buenos Aires, Editorial Nova, 1953, p. 12.

(18) “Offerecendo a Continuação da Resposta ao Ex -Redactor do

Regulador Brazileiro”. In: In: Obras Politicas e Litterarias, p.

339-340.

(19) J.J. ROUSSEAU et le Mythe de l’Antiguité. Paris, Vrin,

1974, p. 16.

(20) Ob. cit., p. 60 e ss.

(21) CASSIRER Ernst. O Mito do Estado. Rio, Zahar Editores,

1976, p. 185.

(22) FRIEDRICH C. J. La Filosofia del Derecho. México,

Breviarios del Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 171.

(23) “Typhis Pernambucano”, 10 de junho de 1824.

(24) “Na Solemnidade de Acclamação de D. Pedro D’Alcantara

em Primeiro Imperador do Brazil”. In: Obras Politicas e

Litterarias. p. 243.

(25) “Typhis Pernambucano”, 8 de abril de 1824. In: In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 519.

(26) “Sobre o Espírito Anti-Constitucional, Revolucionario e

Anarchico do Regulador Brazileiro”. In: In: Obras Politicas e

Litterarias, p. 335.

(27) “Na Solemnidade de Acclamação de D. Pedro D’Alcantara

em Primeiro Imperador do Brazil”. In: Obras Politicas e

Litterarias. p. 247.

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(28) “Sobre os Projectos Despoticos do Ministério do Rio de

Janeiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 324.

(29) “Typhis Pernambucano”, 15 de anril de 1824. In: In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 527.

(30) “Typhis Pernambucano”, 8 de julho de 1824, ibidem, p. 593.

(31) “Typhis Pernambucano”, 27 de maio de 1824, ibidem, p.

549.

(32) “Sobre a Doutrina Anti-Constitucional e Perigosa do

Conciliador Nacional nº 34”. In: In: Obras Politicas e Litterarias,

p. 368-369.

(33) Filosofia Del Derecho. Bosch, Barcelona, 1947, p. 111.

(34) Ibidem, p. 124.

(35) “O Pensador”. In: Ensaios Universiarios sobre Frei

Caneca”, op. cit., p. 122.

(36) MONTENEGRO, João Alfredo de S. “O Contexto da

Reforma Pombalina da Universidade Portuguesa”. Separata da

Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XXVI, p. 333.

(37) “Sobre a Oração”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 231.

(38) BRITO, Lemos. A Gloriosa Sotaina do Primeiro Império.

São Paulo, Cia. Editora Nacional, Brasiliana, 1937, p. 137.

(39) “Sobre os Projectos Despoticos do Ministério do Rio de

Janeiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 319.

(40) “Typhis Pernambucano”, 5 de agosto de 1824. In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 618.

(41) TAVARES, Francisco Muniz, ob. cit., p. LXXVIII.

(42) TAVARES, Francisco Muniz, ob. cit., p. LXXX-LXXXI.

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(43) Ibidem, p. LXXXV.

(44) BROCKHAUS, F.A. Pernambuco e o seu desenvolvimento

histórico. Leipzig, 1895. p. 216.

(45) Ibidem, p. 217.

(46) Ibidem, p. 218.

(47) Ibidem, p. 219.

(48) Ibidem, p. 283.

(49) “Os Motins de Fevereiro de 1823”. In: Revista do Instituto

Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Vol. X, p. 2.

(50) Ibidem, p. 4.

(51) Ibidem, p. 4.

(52) Ibidem, p. 4.

(53) Ibidem, p. 5.

(54) Ibidem, p. 7.

(55) Ibidem, p. 10.

(56) Ibidem, p. 11.

(57) Ibidem, p. 12.

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2. A FUNDAÇÃO DO LIBERALISMO

RADICAL NO BRASIL

Perfil biográfico e personalidade de Cipriano Barata

Político e ideólogo de estilo panfletário, repre-

senta Cipriano Barata o momento de fundação do

Liberalismo Radical no Brasil.

É, portanto, o precursor de Frei Caneca.

Não se pode, de sã consciência, entender todo o

quadro das motivações ideológicas e até o desempenho

político do frade carmelita, sem se estudar a vida e as

atividades político-panfletárias do irrequieto jornalista

baiano.

Ademais, há que se destacar o papel cumprido por

Cipriano Barata, com a ideologia que veicula, na quadra

agitada da Independência, para se apreender a natureza,

os condicionamentos e o desenvolvimento do Libe ra-

lismo Radical no país.

É um nome deveras importante na dilucidação da

conjuntura e na formulação das teses defendidas pela

Confederação do Equador.

Aproximadamente dois meses após a demissão de

Pedroso da governadoria de armas, Recife passaria a ter

um novo centro de agitação, desta vez com outra feição.

Trata-se de uma agitação com base ideológica

mais apurada, num corpo doutrinário coerente e distin to,

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contrapondo-se claramente às outras posturas ideo-

lógicas, também presentes naquele momento histórico.

Nessa nova formulação está a iniciativa criadora

do político em exame, sobre cuja interpretação pesam os

juízos distorcidos dos historiadores da velha escola.

Veja-se em primeiro lugar o que consta na análise

do citado historiador pernambucano, Alfredo de

Carvalho.

Ele, como outros, são profundamente condi-

cionados ideologicamente pelo culto da autoridade, pelo

conservadorismo. A ponto de considerarem um ver-

dadeiro contrasenso a doutrina que realça a liberdade, os

ideais puros do Enciclopedismo, a revolução. Sem com-

preenderem que o próprio período gerava tal doutrina,

quando não a recondicionava entre nós.

Eis que Cipriano Barata é visto por Alfredo de

Carvalho, Câmara Cascudo, seu biógrafo, e outros,

como um “visionário”, um político que alimentava

ideais sem consistência na realidade, um agitador com

intuito simplesmente de agitar, sem mais objetivos.

Ora, uma crítica serena, tanto quanto possível,

imparcial, revela que essa postura não procede.

É que a perspectiva ideológica hoje é outra,

ensejando exegese mais profunda e abrangente do jogo

ideológico em harmonia com os processos sociais

vigentes no período, especialmente em Pernambuco.

Mais: não é o mero êxito político de uma

ideologia, no sentido de sua oficialização, que lhe vai

dar o critério funcional do realismo ou do irrealismo.

No caso de ideologia liberal radical, isso é típico.

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Porque ela, a partir do momento em que se

propaga, firma-se como uma das matrizes do pen-

samento brasileiro, embora não logre os favores oficiais.

Mas, aqui e acolá, inspira instrumentos e critérios

políticos. A própria Constituição de 1824, contra cujo

projeto levantou-se o liberalismo radical, já começa a

sofrer a sua influência em alguns dispositivos.

O que se dispõe de mais minucioso a respeito dos

fatos que qualifica a vida de Cipriano Barata, é uma

biografia escrita por Luís da Câmara Cascudo, e sob o

enfoque de ideologia conservadora que impede uma

interpretação lúcida e atualizada.

Todavia, informações úteis e esclarecedoras

encontram-se aí.

O autor centraliza a restrição a Cipriano no

considerar o Enciclopedismo e a sua obra – a Revolução

Francesa – produções desumanas ilógicas, demagógicas.

Diz que ele manipula sem sistema, sem direção,

esse acervo. O qual, sob o influxo do nervosismo, da

neurastenia, da irreverência, é apresentado de forma

insolente e descabida.

Por isso, tem Cipriano na conta de um medíocre.

Expõe:

“Ele é um produto típico da ideologia anti -humana e anti-

lógica que em 1789 espalhou pelo mundo. É um adorador

de palavras-guias, escritas com uma maiúscula obstinada.

Liberdade, Povo, Democracia, Tirania, Despotismo são

pontos de referência que ele alinha nos discursos para não

perder o próprio pensamento. É um apaixonado dos

Direitos do Homem, um legítimo Homem-Cívico, cioso

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das prerrogativas de um liberalismo fremente de utopia e

de nebulosidade”.(58)

Câmara Cascudo, tocado de reacionarismo, dis -

tancia-se do entendimento mais explícito e atual do

mecanismo ideológico e utópico. Porque o importante é

a racionalização das tendências imanentes a um

pensamento, a uma ideologia (que sempre é um sistema)

que organiza os pontos de referência básicos da praxis.

E não o preconcebido julgamento valorativo.

Nasceu Cipriano Barata em 1762 na Bahia e

morreu em 1838 na capital do Rio Grande do Norte,

Natal. Bacharelou-se em Filosofia por Coimbra.

Também logrou aprovação em exames para se

tornar cirurgião.

O legado cultural que acumulou era praticamente

o de um enciclopedista: a cultura clássica, onde o latim

ocupava parte saliente, a história, a retórica e a lógica.

Cascudo afirma que ele tinha mais inteligência do

que memória.

Classifica-o de “democrata sonhador de povos

irmãos, de homens-iguais”.(59)

O que é uma confirmação

da utopia tão presente no que escreve.

Também um nacionalista, aliás uma das

características do liberalismo radical entre nós.

Explica-o em parte os sofrimentos e os vexames

suportados em Lisboa entre dezembro de 1821 e outubro

de 1822, quando deputado às Cortes.

Temperamento trepidante, agitado, do que é

reflexo o seu radicalismo.

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Afeito às agitações de rua, à verrina panfletária

que as apóia. Homem de luta.

O seu aparecimento em público, começa em 1817,

ao ser molestado pelo Conde d’Arcos, na violenta

repressão ao movimento pernambucano. Contava 59

anos quando eleito para as Cortes Portuguesas.

Para o seu biógrafo, “os acontecimentos escor -

regavam-lhe no espírito como água numa vidraça. Via-

os através dos vidros fabricados anos antes, através do

dorso de livros onde nomes franceses rebrilhavam em

letras de ouro”.(60)

Há aqui evidente exagero, mas algo de ver -

dadeiro. Nisso que enfrentou a conjuntura do seu tempo

com a ideologia do Iluminismo francês, como matriz

dominante do pensamento que alimentou. Mas não

deixou Cipriano de refletir a partir da circunstância

nacional, dos eventos regionais, colhendo inclusive a

problemática social, embora de leve.

E com a interpretação realista dos acontecimentos

políticos, emprestando à sua ideologia maior densidade

e autonomia. Não se restringe a sobre-impor meca-

nicamente à conjuntura, ou tangenciando-a, a doutrina

pré-moldada.

Aliás, ele se orgulha de ser um dos maiores co -

nhecedores de sua época, denotando o cuidado de estar

em dia com o que ocorre de relevante; daí extraindo um

sentido, um significado.

Com efeito, um realista. Estava atento à história,

à prática dos homens. Comentando-a, mesmo sob o

enfoque iluminista, não lhe deixava escapar a dinâmica,

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o processo, as tendências, os grandes imperat ivos éticos

daí emergentes.

Credite-se a seu favor a honestidade à toda prova,

a elevação moral, o humanismo, que o concitavam a

lances admiráveis de coragem, ao defender a causa dos

oprimidos.

É eleito para as Cortes pela Bahia.

E lá se revela um defensor constante das coisas

do Brasil, das suas riquezas.

Desfrutava de rara independência de atitudes, não

se acomodando a partido algum, cioso de si mesmo, das

prerrogativas morais e intelectuais que possuía.

Orgulhoso, de intrepidez ferina, tipo solitário,

temido, acaba paradoxalmente na tranqüilidade de Na-

tal, esquecido, sem reboliço. Morre aos 75 anos.(61)

Seu nome completo: Cipriano José Barata de

Almeida.

Pais: Tenente Raimundo Nunes Barata e D. Luiza

Josefa Xavier.

Lugar e data do nascimento: Salvador, 26 de

setembro de 1762.

De família pobre, freqüentou as “aulas-maiores” e

o pai consegue enviá-lo para Portugal onde se diploma.

De regresso à Bahia, pratica a pequena agri-

cultura ao mesmo tempo que clinicava.

Há quem diga que reuniu alunos de Francês e

Latim.

Em Coimbra entra em contato com a doutrina

enciclopedista, da qual, ao retornar, se faz leitor

assíduo.

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E já tem participação na Revolução baiana de

1798, porém sem realce.

Num documento se dá parte dessa participação.

Trata-se da denúncia contra ele formulada pelo

Padre José da Fonseca Neves e encaminhada à D. Maria

I. E na qual diz que propagava com outros sistemas

diferentes do vigente e, assim, ofendendo a dignidade da

rainha e a de “Jesus Cristo e a sua esposa e nossa mãe a

Santa Igreja”. Como? Publicando “as suas depravadas

paixões entre os rústicos povos, já com palavras, já com

escritos, feitos uns novos legisladores”.

Daí a instauração de inquérito contra ele. E a sua

prisão.

“Por nímia debilidade de prova” é absolvido.

Entre 1800 e 1817, data da sentença, sustenta

Cascudo, não há nada que comprove atividade pública

de Barata.

Naquele último ano reaparece.

Maçon e revolucionário participou dos conci-

liábulos, que prepararam a revolução de 1817.

No entanto, só é visto auxiliando os partidários

pernambucanos, paraibanos e riograndenses do Norte,

após a frustração do movimento.

Continua a sua vida de clínico e de pequeno

agricultor, granjeando muita popularidade.

Revela-se um tribuno popular.

E isso numa época em que a oratória, mercê do

prestígio da palavra, gozava de muito acatamento.

Ele a utiliza com mais serventia por ocasião da

revolução constitucional portuguesa em 1820.

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Adere à carta política de Portugal, prestes a sair,

em 1821.

A nova Junta, em conseqüência daquela

revolução, é apoiada por Barata e pelo povo. Cresce o

prestígio dele.

“Era duma eloqüência fácil, banal, fervilhante de

modismos locais mas tempestuosa, veemente, agressiva,

arrebatadora. Refletia, harmoniosamente, todas as

nuanças do espírito coletivo, fotografando, com

fidelidade, o arremeço doido e recuo imprevisto”.(62)

Isso por si só diz da afinidade entre o tribuno e o

povo.

Diga-se o que se disser dele, não se poderá negar

a sua extraordinária sensibilidade aos problemas, aos

sentimentos, às aspirações, aos hábitos do povo.

Eis que ele baliza o seu projeto político no ideal

democrático. Só entendia liberalismo com democracia,

com a participação ampla do povo nos negócios

públicos.

Daí o radicalismo de sua doutrina.

Quem mantinha tanta afinidade com o povo como

ele, só podia ser radical naquele momento histórico.

Estava distanciado, por isso, da elite que vai

engrossar o liberalismo centrista, da estrutura de

autoridade que marginalizava o povo.

Assim, não tem cabimento a afirmativa de que via

esse como uma entidade abstrata, longe da realidade

cotidiana. Tal como Robespierre.

Não encontra base nos fatos a tese de Cascudo,

segundo a qual “Cipriano como Robespierre, guardava o

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Povo, à distância, contentando-se em amá-lo teori-

camente, em massa em bloco, em abstrato”.(63)

Na verdade, não alimenta esse amor abstrato

quem anatematiza a prepotência e os privilégios da

nobreza territorial hereditária, com vínculos morgados!

É eleito a 3 de setembro de 1821 deputado às

Cortes de Lisboa. Qual o seu comportamento nessa

assembléia? De logo, se diga que lá o ambiente é muito

diferente.

Não tem a aura popular a cercá-lo e a protegê-lo.

Mas ele não se intimida. Enfrenta a ironia dos

deputados portugueses e o ódio do “populacho lisboeta”.

Não recua ao enfrentar os maiores nomes como

Borges Carneiro e Fernandes Tomás.

Em tudo se acentua o contraste entre Barata e os

seus pares, inclusive os brasileiros mais moderados:

Feijó, Lino Coutinho, entre outros.

O discurso, então, é a grande linha de separação.

Aí está o receptáculo, o depósito de um universo

próprio, com significados particulares.

Ele tem uma sintaxe quase rústica, direta, tenaz.

A outra faz tônica sobre o estilo clássico,

escorreito, refletindo posições de elite.

Por isso, pode ser mais sarcástico, mais ferino,

sem omitir o traço clássico do humanismo iluminista.

O seu partidarismo era intimorato e afirmativo.

Ali se mostra também um agitador, trazendo dias

tumultuosos àquela casa.

Observem-se algumas das suas arremetidas

corajosas e insólitas.

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Numa das sessões propõe a suspensão do pro jeto

da Constituição, até que se efetivasse a presença

completa dos deputados brasileiros. Isso logo no dia da

posse, 17 de dezembro de 1821.

A proposta se fundava na necessidade de uma

discussão ampla dos artigos da Carta. E declarava que,

caso assim não se procedesse, não estavam aqueles

deputados obrigados a sancionar matéria que não

examinaram. Nem o Brasil obrigado a acatar uma

Constituição feita com essa grave lacuna.

No dia 10 de janeiro de 1822 requer a abolição de

tributos antigos, que relembravam o despotismo,

inteiramente arbitrários. E já no dia seguinte manifesta-

se favorável à volta de uma prática democrática: a dos

juízes eleitos pelo povo.

“É um revolucionário típico, idealista, cioso de fórmulas

revolucionário-democráticas, fazendo questão da abolição

de classes, atroando o casarão legislativo com o estridor

de suas opiniões que recordavam a revolução francesa na

fase inicial de sinceridade espiritualistica”.(64)

Nesse ponto, se destaca a sua preocupação pela

problemática social, que a art iculava com o elitismo de

uma “aristocracia” cheia de privilégios irritantes,

opressora.

Do “Diário das Cortes” podem-se extrair algumas

passagens significativas.

Assim, da sessão de 9 de fevereiro de 1822 consta

um pequeno libelo contra os desembargadores do Brasil.

Acusa-os taxativamente de criminosos.

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A 12 de fevereiro, sugere que a Igreja dê mais

atenção aos expostos, àquelas crianças deixadas aos seus

cuidados, através da poupança do dinheiro empregado

na compra desnecessária de inúmeras velas para o culto

divino. Pois há necessidade de se atender melhor

àqueles infelizes.

De outra feita, a 16 de fevereiro de 1822, propõe

que se vede o uso de expressões configurativas de

classes, clero, nobreza e povo, cabendo a todos indis-

tintamente o nome de cidadão. Assim raciocina ale-

gando que não compete à Constituição expressar ou

criar tais divisões.

A 7 de fevereiro quer a humanização das prisões,

tornando-as mais asseadas e confortáveis, lançando -se

ao mar instrumentos tais como correntes, tenazes,

grilhões, que aumentam o infortúnio dos presos.

De fato, era justíssima a pretensão de Barata

considerando que as prisões da época tinham sido

construídas no período colonial, e condicionadas pela

concepção e pelos métodos absolutistas de pena. Assim,

com muita just iça, pleiteia, ao final, a extinção das

masmorras úmidas, algumas até com água, porquanto

subterrâneas, abaixo do nível do mar. E a proximidade

deste as inundava facilmente, como na Bahia de todos

os Santos.

A 1º de julho ele clama pela aplicação justa e

igual da Constituição. Tal, diz, a condição imposta pelos

que a juraram na Bahia. Ela estabelece a igualdade de

direitos. E essa igualdade deve ser preservada, garan-

tida. E assim falando, protestava contra a obstrução da

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matéria de interesse do Brasil pela grande maioria dos

deputados portugueses, constituindo uma elite imper -

tinente. Defende corajosamente os direitos da minoria,

formada pela representação brasileira. Denuncia, no

meio dos protestos dos deputados lusos, as manobras

tendentes a manter o Brasil no regime de escravidão.

Declara que a metrópole não tem condições de enfrentar

os brasileiros, em maior número naturalmente que os

portugueses lá residentes, pouco influentes na decisão

dos eventos.

É totalmente infrutífera a persistência dela em

restaurar o regime despótico em terras da América. Daí

surgem “desvarios” que indicam o desconhecimento da

história e do meio brasileiros. Era a sua reação à

tentativa de se cassarem os direitos de Reino,

restabelecendo-se a situação de colônia no país.(65)

E eis agora Barata em nova etapa de sua cons-

tante luta contra o despotismo. Desta vez, em

Pernambuco.

O seu regresso dá-se nessa Província, onde tem

papel influente nos motins de 1823, mormente através

do periódico que funda, “Sentinela da Liberdade”.

Integra o partido de Manuel de Carvalho, in-

dispondo-se sucessivamente com Pedroso e com Fran-

cisco Pais Barreto.

Por este tempo, Pernambuco estava no auge do

conflito entre brasileiros e portugueses. O que perdu-

rará, embora de forma atenuada, poucos anos depois.

Ora, o temperamento irrequieto de Barata, as

maneiras desabusadas de dizer as coisas, a impe-

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tuosidade dos seus ataques, tendiam a aguçar um vivo

nacionalismo. O que constitui ma das faces do

liberalismo radical. Especialmente na quadra tumultuada

em que começava a sua militância panfletária na

Província.

Os brasileiros são duramente relegados a plano

secundário, preteridos nos cargos públicos, na vida

social, no comércio, favorecidos que eram os

portugueses, os “europeus”. E com maior intensidade

num momento em que a autoridade usava de intolerável

arbítrio, de despotismo, acesa a luta entre as Cortes,

estas pugnando pela união do Brasil e de Portugal, e os

patriotas brasileiros que desejavam a nossa

Independência.

Um exemplo é típico. Pedroso, de quem se vinha

falando anteriormente, movido pelos seus habituais

arrebatamentos, resolve mais uma vez auxiliar o partido

das Cortes. E o faz justamente numa ocasião em que

Barata desenvolvia diatribe violenta, exacerbando a

rivalidade entre portugueses e brasileiros. No dia 24 de

dezembro de 1822 apareceu no campo do Erário com

tropa mobilizada. Lá discursa e, em seguida, prorrompe

em vivas aos “europeus”. Destes, os que se encontravam

presentes, declara-os naturalizados, sem quaisquer

formalidades, colocando-os sob a sua proteção. O que,

aliás, dura muito pouco.

Porquanto, uma semana depois, por instigação de

“patriotas”, aprisionaria 180 lusos, contra os quais não

havia culpa formada alguma. Nem sequer denúncia na

justiça. Muito menos submetidos a qualquer inquérito

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policial. Isso com o intuito de se tornar agradável ao

povo, cada vez mais excitado por Barata.(66)

Como se vê, o inquieto político exibe um nacio -

nalismo acirrado, desbordando na agitação de rua. Tal a

radicalidade de sua postura ideológica.

Quer o desaparecimento completo da opressão,

que continuava após a Independência, custe o que

custar.

Sabe que a obra da liberdade não se concluiu com

o grito do Ipiranga.

É preciso lutar ainda, e muito, para eliminar o

sobrevivente despotismo português.

A época é de grande instabilidade política.

Persiste a guerra da Independência. Sem forças o

governo para manter a ordem. No centro da anarquia em

curso atua Barata. Por certo, já conhecia as manobras de

José Bonifácio contra ele, tentando anular a sua ação em

Pernambuco.

O “Sentinela da Liberdade na Guarita de

Pernambuco” é o seu grande instrumento.

Com ele firmou o seu poderio junto ao povo, a

quem inflamava cada vez mais.

O governo central julgava-o incômodo, um

estorvo perigoso.

Assim aquele ministro

“em ofício (nº 139) de 24 de maio manda a Felipe Neri

Ferreira que faça terminar a Sociedade ‘Patriótica

dissolvendo-a por todos os meios possíveis que lhe ditar a

sua mais apurada reflexão’. E manda fazer ‘igualmente

suas diligências para fazer sair daquela Província o ex-

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Deputado Cipriano José Barata, por ser ali não menos

danosa a sua residência”.(67)

Contudo, a popularidade do intimorato polít ico

era imensa. Não seria a mudança de residência que iria

anulá-lo.

Tanto é assim que a Bahia o elege deputado à

Constituinte.

Não assume o mandato por razões especiais.

No seu lugar vai o suplente e inimigo encar-

niçado, a encarnar a vertente ideológica oposta, José da

Silva Lisboa.

Prefere ficar no Recife, à frente do “sentinela”.

Com a mudança, porém, da administração em

Pernambuco, deposto o presidente da Junta, Coronel

Afonso de Albuquerque Maranhão, a situação de Barata

tornou-se periclitante.

É preso e remetido para o Rio de Janeiro.

Prossegue a devassa contra ele.

Apelos correm em favor de sua soltura, sendo de

destacar a do governo revolucionário do Ceará, e

contido em oficio de 31 de março de 1824.

A partir desse fato, dá-se o rompimento de Barata

com o governo imperial.

Deixa a prisão em 1829.

Personalidade rebelde, inconformada, a se

projetar na dimensão ideológica.

Mas não nutriu o inconformismo gratuito, cego.

Pelo contrário. Põe-se a serviço da causa nobre da

liberdade.

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Ela tem primazia sobre outra qualquer, concen-

trando toda a sua atenção. Concentra-se nela de corpo e

alma. E o faz notadamente no estilo panfletário do

tempo, que aos olhos de hoje parece tão-somente obra

de demolição. Essa a acusação generalizada entre

adversários e inimigos.

Acontece que a circunstância em que agiu,

altamente convulsionada, esmaece a crítica acerba con-

tra um homem que defendia um objetivo nobre.

E não foi vã a sua missão.

Pois, não muito tempo depois, pelo menos se

dava a reorientação do autoritarismo, velho legado do

absolutismo, sob a Constituição de 1824.

Componentes ideológicos de Cipriano Barata.

Teses propostas

Há do denodado panfletário um expressivo

documento, bastante dilucidativo da sua formação

ideológica, das teses que sustenta em matéria política e

que se constituem o núcleo do liberalismo radical no

Brasil.

Por ele, já se alcança o nível de at ividade

criadora do intrépido periodista e político na formulação

de matrizes político-ideológicas que se prolongariam

numa corrente de pensamento subterrâneo em largos

momentos da nossa história. E emergentes dominan-

temente em escassos momentos outros, mas compondo

um patrimônio definit ivo de idéias.

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Essa posição precursora de Cipriano Barata re-

clama estudo mais acurado dos especialistas em pen-

samento brasileiro.

O documento de que se fala é o manuscrito que

tem por título:

“Motivos de minha perseguição e desgraça em Per-

nambuco e Rio de Janeiro ou breve e curiosa memória e

relação dos acontecimentos interessantes ao bem do

Brasil, para no caso de que eu faleça servir in perpetuam

rei memoriam e, enquanto vivo para minha defesa”.(68)

De acordo com anotação de Melo Morais à

margem do mesmo manuscrito, trata-se da “memória do

Dr. Barata, que estava em Montevidéu”.

Nesse caso, teria sido escrito no exílio, quando o

bravo lutador se achava perseguido pelo governo de

Pedro I.

Nele se observa em primeiro plano a filiação de

Barata ao Iluminismo francês, denunciando uma clara

aceitação dos princípios da Revolução de 1789.

Colhe aí a radicalidade que funda o seu

liberalismo.

E com o significado bem traduzido por José

Honório Rodrigues, “princípios liberais, radicais – não

porque fossem (as revoluções de 17 e de 24) às raízes

dos problemas, mas porque não hesitavam em recorrer

às soluções extremas...”.(69)

Quer dizer: a luta armada era preconizada pelos

liberais radicais como recurso extremo para a derrota do

despotismo.

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Contudo, como se verá, o significado visto se

dilataria, terminando por abranger o enfrentamento mais

largo dos problemas políticos e sociais.

Nisso se diferenciam dos liberais contristas. Mas

conciliadores, até no procurarem compatibilizar valores

e interesses da velha ordem com as novas idéias. Nessas

condições, descartam de logo o revolucionarismo.

É que são produtos do segundo momento. Isto é,

da Restauração, absorvendo desta as grandes linhas

ideológicas, com a delimitação das liberdades e reforço

do princípio da autoridade.

Molestados pelos abalos sofridos pela Ordem,

influenciados pelos temores das cassandras do roman-

tismo político no tocante à segurança, à preservação das

instituições, esboçam um sistema de freios ao ímpeto

revolucionário.

Pretendem, então, a composição entre a monar-

quia e o constitucionalismo.

Barata, num dado instante, o que antecede ime-

diatamente a Independência, parece excepcionalmente,

transigir num dos pontos fundamentais do seu ideário

iluminista – o republicanismo, e apoiar a fundação do

Império brasileiro, a ascensão do príncipe ao trono.(70)

Mas, geralmente, desde a revolução baiana de

1798, pública a sua profissão de fé republicana.

Investe acremente contra “os chamados testas

coroadas d’Europa vendo seus tronos abalados pelas

idéias de Liberdade e luzes espalhadas pela Rainha das

Nações, a França”.(71)

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Era republicano numa conformação absoluta à

doutrina das sociedades secretas maçônicas. Pois

pertencia à velha seita.

Demonstra ele conhecimentos da história da

Maçonaria e, assim, amor à causa dessa sociedade.

Diz que, antes da queda de Bonaparte, os reis

auxiliaram várias das organizações maçônicas com o

fito de derrubarem o Imperador francês.

Nesse trabalho, concorreram para a formação de

algumas dessas entidades, inclusive delas que ao tinham

caráter secreto.

Passado, porém, o perigo do Bonapartismo, na

verdade pondo em risco a segurança dos tronos, volta-

ram-se os monarcas contra elas.

Sentiam-se ameaçados, ao mesmo tempo com uma

possível reforma do sistema monárquico.

Num primeiro momento, temiam que o avanço

revolucionário, presente em todos os setores da

organização social pelos efeitos da palavra veiculada

pela Imprensa, trouxessem a modificação dos costumes

e da mentalidade, entre outras coisas, e aniquilasse de

uma vez por todas com o princípio monárquico, com a

organização política dele derivada.

Nesse ponto se observa a convicção iluminista

esposada por Barata, segundo a qual a vontade ou a

prática é uma das faces da Razão, aquela seguindo a esta

automaticamente, mecanicamente.

A palavra é palavra-ação sem o cuidado da

explicitação das objetividades.

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Pois bem. Temerosos da sociedade maçônica, os

reis resolvem fundar também uma sociedade secreta com

o desígnio de defenderem o trono.

Não, porém, o trono autor de concessões ao povo,

às liberdades públicas. Tal como encontradiço nas mo -

narquias constitucionais.

Querem o revigoramento do princípio absolutista,

numa franca atitude de repúdio às conquistas das

liberdade públicas.

Cipriano, com isso, intenta dar uma visão sumária

do que foi a Restauração, na realidade representando o

recuo dos conceitos trazidos pela Revolução Francesa.

Com efeito, nesse período, ocorreram movi-

mentos aglutinando vários monarcas da Europa com o

fim da conservação do absolutismo monárquico.

A Santa Aliança é um exemplo.

Afirma que a Santa Aliança emitia instruções

para as sociedades secretas que incentivava. Ela mesma

revestia esse caráter secreto.

A sua tarefa conspiratória se passava de prefe -

rência no topo da vida política e da elite, envolvendo

ministros, conselheiros, nobres, militares, eclesiásticos.

O cunho elitista é aí denunciado por Cipriano,

que enfatiza a oposição dessas pessoas ao “bem geral da

espécie humana”. Isso explica o combate tenaz das

autoridades em vários países “a inocente e virtuosa

Sociedade dosa Franc Massons, como escola, e fábrica

de homens de bem, e de virtudes e luzes”.(72)

O objetivo da perseguição é a restauração do

período de trevas, de despotismo. Essa campanha se

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estende à Imprensa, como órgão que ilumina o povo ,

levando-o a se libertar das cadeias que o prendem à

ignorância, à submissão servil. Denuncia que corre a

notícia, de extração inglesa, consoante a qual a

concepção e os métodos da Santa Aliança foram

transpostos para o Brasil.

E, entre os seus agentes, quais os mais des-

tacados? Nada mais, nada menos, que os Andradas e os

seus partidários.

Eles propagaram o sistema pelas Províncias e sob

a denominação de “Sociedade Secreta dos Cavalheiros

da Santa Cruz, ou Apostolado”.

Alega que, futuramente, dará provas dessa

afirmação e, inclusive dos métodos e fins denigrativos

que adotam.

Essa filiação da Santa Aliança “é cruzada

diabólica contra as luzes do Século, e direitos do

homem”.(73)

Isso é próprio dos governos monárquicos in-

clinados ao absolutismo, contrapondo-se aos “direitos

do gênero humano”.

Para tanto, não se escusam de gastar vultosas

somas de dinheiro.

Trata-se de manobra diabólica, desumana, repe-

lida pelos governos liberais.

Interessante a tese de Cipriano conforme a qual

os intuitos da Santa Aliança, inspiradores das entidades

secretas absolutistas, convergem para os “países servis,

onde tem seu império o despotismo, a escravidão, e a

tirania”.(74)

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Pois nesses países o ambiente despótico, uma

longa tradição absolutista, o elitismo dominante, facili-

tam a trama daquelas entidades.

No Brasil, essa a situação.

Eis que prospera a trama do despotismo sob a

chefia, sob a orientação dos Andradas, visando a fins

abomináveis, em tudo contrários aos verdadeiros

interesses do povo.

Seus ataques se concentram no Apostolado, que

utiliza os mais execrando meios para colimar aqueles

fins: traição, homicídios, e outras coisas não menos

tétricas.

Tal sociedade vem empregando o disfarce, mas

realiza perseguição implacável aos “Franc Massons”.

Só os incautos, os desavisados, acreditam que ela

foi composta com a finalidade de “Independência e

Liberdade do Brasil”, e diz que mais tarde sofreu

desvirtuamento dos seus elevados objetivos pela ação de

pessoas egoístas e vis, sob a tutela dos Andradas, “e

outros aristocratas, e privilegiados, e seus partidários

pregoeiros do tempo antigo”.(75)

Desde que se compare o trabalho dessa orga-

nização com a sua congênere, a “Sociedade Apostólica

da Galiça”, constatar-se-ão os mesmos métodos e pro-

pósitos uma e noutra, não havendo como diferençá-las.

As manobras da Santa Aliança lá são as mesmas

do Apostolado, cá, identificando-se a sincronia de

movimentos e a utilização da mesma estratégia. Anote-

se, por exemplo, a referência do órgão à religião, para

se concluir que ambos fazem parte de um mesmo corpo.

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A sua prisão, a perseguição que sofre, são obras

da malsinada associação.

Ele se alçou na Imprensa, no Parlamento, na

praça pública, como estrênuo defensor das liberdades,

combatendo toda forma de despotismo. Está sendo

vítima de um plano de vingança, por ter denunciado os

planos absolutistas dos poderosos alojados no Apos-

tolado. A ação dessa sociedade se faz solerte e maldosa

junto a D. Pedro, contando com o esteio forte dos

Andradas que dirigem o Ministério. São eles que

influenciam o Imperador, fazendo-o admitir idéias que

nunca esposara.

No caso da dissolução da Assembléia Cons-

tituinte, isso ficou bem patenteado. Trata-se, aliás, de

um evento que acusará publicamente a trama anti-liberal

dos Andradas. Os quais, por ambição de mando dis -

cricionário, “arriscarão o bem do Império, e a prospe -

ridade dos Brasileiros’.(76)

Com muita argúcia, o intimorato político via aí

um acontecimento saliente na conjuntura e no seu

desdobramento, afetando o futuro.

Pois ele suscitará uma cadeia de males cujas

conseqüências já começavam a se sentir pesadamente no

seu tempo.

E isso resulta principalmente da ocorrência, tão

bem conscientizada por Cipriano, e de suma gravidade,

qual seja a ruptura das bases do Império nascente.

Assim, postergados os princípios da organização

liberal-constitucional, inscritos nos “contratos sociais

para a fundação da Monarquia Imperial Mista que se

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fazia Constituição liberal por meio da Assembléia

Constituinte Legislativa”.(77)

Com isso, a revolta entre os brasileiros tem sido

uma constante, trazendo o caos, o derramamento de

sangue.

E os Andradas prosseguem no afã de reduzir o

Brasil ao sistema absoluto, abafando a liberdade de

Imprensa, armando toda uma rede de delação nas

Províncias, promovendo devassas por toda parte,

distribuindo “cartas brancas com letras de sangue”.

Desse modo, a tranqüilidade e a liberdade têm

sofrido grandes revezes, dificilmente se mantendo.

Em todas as Províncias criaram-se agências do

despotismo, de onde parte um movimento sincronizado

de apoio ao que se trama no Rio de Janeiro.

O anti-liberalismo é difundido, de que se in-

cumbem periódicos como “O Espelho”, movendo os es-

píritos, transformando as idéias, corrompendo.

Os militares os grandes atingidos.

Assim, as bases do direito liberal, presentes na

Constituição portuguesa de 1822, transtornadas.

Pelas manobras sórdidas e corruptas, o Imperador

altera a sua concepção liberal, aberta às novas “luzes do

século”, e assume posições despóticas, depois de lhe

insinuarem vagas notícias da anarquia. E ele, tão

inclinado que era ao “governo popular misto”, muda de

orientação. Os “direitos inalienáveis e imprescritíveis”

dos cidadãos não mais acatados. Caminha-se regres-

sivamente para a “velha Monarquia arbitrária”. A farsa

“liberal” prepondera. A fundação da Assemb léia

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nacional e a elaboração da Carta Magna fizeram parte de

manobra insidiosa e enganadora. Alvo que daria a

imagem de um sistema liberal, quando, na verdade,

dominava o contrário, consolidando um poderio a ser -

viço da ambição e da vaidade.

O plano solerte segue em tudo o modelo das

“sociedades secretas dos Reis da Europa”.

Os Andradas forcejam por alcançar definiti-

vamente os seus fins, chegando a ultrapassarem em

crueldade e em arbítrio a Pombal e a Richelieu, assim

como outros tiranos da história.

Eis que intentam o arremate da transformação da

forma de governo misto, “por sua natureza doce e

humano, em Governo de sangue, de traição e de

morte”.(78)

Nesse empenho, José Bonifácio conclui em 1822

o trabalho de formação de uma sociedade secreta,

produto da adaptação das normas de entidade congênere

da Itália. Está constituído o Apostolado.

Daí parte a ação nefasta contra a Assembléia

Constituinte e Legislativa.

Acabou-se então a tranqüilidade garantida pelas

bases políticas do Império nascente.

O absolutismo recobrou alento com a franca

cobertura da Santa Aliança,

Escarmentadas as autênticas sociedades, as que

pugnam pela liberdade, pelos direitos inalienáveis, pelos

mais puros princípios liberais.

Reinstala-se a perseguição política e religiosa.

A tirania está solta.

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Observa-se nas Províncias a presença de emis-

sários, tramando em prol da entidade absolutista, contra

os “sagrados direitos da espécie humana”.

Então, Cipriano empresta a esta exacerbação

absolutista a iniciativa de sua perseguição, de sua pri-

são. Bem como lutas e disenções sangrentas nas Pro -

víncias. Tudo em favor da restauração da Legitimidade,

com o que ao compactuam os novos tempos.

Importante o detectar neste e em outros docu-

mentos do político baiano, em meio à linguagem

panfletária, as linhas mestras da ideologia liberal

radical. Percebem-se, com efeito, os traços afirmativos

de um pensamento no seio das objurgatórias contra os

adversários, no interior mesmo de exacerbado par -

tidarismo, que é bem o tom do confronto ideológico do

período.

Por isso, a preocupação dominante do intérprete,

do analista, não é tanto escoimar a virulência do

acometimento frontal, senão captar o interesse, que

embasa a causa do político, as tendências ideológicas a

serem extraídas do contexto do discurso.

Em outras palavras, não se deve descartar esse

discurso pelo que ele apresenta de faccioso, mas pelo

que ele revela de uma mensagem.

Mesmo porque se trata da natureza da ideologia o

fazer-se presente em níveis diversos e sobreimpostos de

linguagem em que a forma do discurso pouco importa,

senão os móveis que o levam a manifestar-se.

Não se cuida de verificar a veracidade dos acon-

tecimentos, do desempenho de personagens históricos,

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como José Bonifácio, procurando saber se o autor

cometeu ou não distorções.

É evidente que distorções ocorreram. Esta quase

sempre a regra do discurso ideológico do panfleto.

Mas essas próprias distorções ajudam a fazer

transparecer o tônus ideológico, dando maior nitidez à

doutrina esposada.

A verificação da veracidade do relato não cabe

num texto panfletário.

Ele não contém um discurso de historiador.

A estratégia que adota, comumente, é a de se

firmar em torno de acontecimentos relevantes, como a

dissolução da Assembléia Constituinte, para daí inferir

axiomas, ou melhor conformá-los, alimentando teses ou

juízos favoráveis à causa.

Esta entende com uma filosofia política, com uma

concepção do homem e da sociedade.

Apenas tais fundamentos valorativos transpare-

cem num tipo de discurso menos foral, sem o aparato

lógico do pensamento filosófico. E ainda que não deixe

de absorvê-lo. Mesmo porque é difícil separar os dois

níveis de conhecimento: o filosófico e o ideológico.

O primeiro representa geralmente uma elaboração

epistemológica mais refinada e sutil, embora não se

escuse a reter interesses, como mostra muito bem

Habermas.

Veja-se o exemplo da Filosofia Liberal, mais

propriamente uma ideologia exposta num plano mais

abstrato, como que escondendo a circunstancialidade

que a ensejou.

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Num plano mais baixo, a ideologia panfletária é

investida totalmente na circunstância, no evento, a partir

deles racionalizando interesses e objetivos políticos. E

no meio de apelos reiterados à densidade da Filosofia.

Ela sempre se enraíza em algo mais elevado que a mera

racionalização de fundo estritamente circunstancial.

Viu-se como Cipriano Barata invoca “direitos

essenciais da pessoa humana”, “liberdade”, temas do

cerne da filosofia iluminista.

Há, então, uma articulação de dois níveis: o da

filosofia com todos os seus ingredientes, e o da

circunstância, que, mesmo absorvendo o primeiro,

oferece um contexto autônomo, propenso à modificação

dessa circunstância.

Oportuna agora a colocação dos temas centrais da

ideologia liberal radical fundada entre nós pelo valente

panfletário.

Em primeiro lugar, registre-se sob o “des-

potismo” dos Andradas a tentativa pioneira, aliás

exitosa, de reorientar o liberalismo no país, conferindo -

lhe um suporte autoritário, privilegiador da organização

monárquico-constitucional sob o controle do poder

encarnado no Imperador.

Nisso se descortina o ponto essencial da contenda

no Parlamento, na Imprensa, nas agitações de rua, nos

levantes, e do confronto entre dois princípios: o da

liberdade e o da autoridade.

Barata entendeu muito bem que aquela reorien-

tação do liberalismo o expungiria ou o deslocaria do

campo da democracia para outro em que interesses de

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facções poderosas, naturalmente esteiadas no poder

econômico, sobrepujariam os do povo.

Este se veria reprimido no exercício político,

arbitrariamente tolhido na participação nos negó cios da

nação, e se colocaria como agente passivo do processo

político.

Dessa forma, não reuniria condições viáveis de

fazer valer os seus direitos, de levantar reivindicações,

que tenderiam também a abrir o processo sócio -

econômico.

Cipriano se situa num plano utópico, saindo do

lugar ditado pelo proprietário que concentrava as

riquezas.

Vários anos depois, por 1831, ele é liberal

agitador “que toca nos ressentimentos de classe e de

raça e acena com promessas de uma nova ordem social”,

escreve Paulo Pereira Castro.(79)

Era preciso romper um círculo vicioso e

hermético de privilégios, de opressões, para ter êxito o

liberalismo radical.

Ele se apega, por isso, ao voluntarismo, projetado

nas sedições, para se afirmar.

Mas se afirma também através da linguagem so-

berana, demasiado impositiva, refletindo uma semântica

sugestiva, aliciante, auto-suficiente.

É a linguagem do racionalismo iluminista, a se

fechar no contato funcional com as objetividades. Ou, se

se preferir, com as empiricidades do contexto sócio -

econômico, sócio-cultural, comprazendo-se no jogo

retórico, impressionista.

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Contudo, por outro lado, se abre à trama dos

acontecimentos políticos, à conjuntura dentro da qual se

processam e ganham sentido, embora vistos na opa-

cidade circunstancial, pobremente translúcida ao uni-

verso das significações.

Desta sorte, corrente nesse tipo de linguagem o

senso comum, a visualização factual pelos pontos de

referência empíricos da sociedade da época.

Daí a inviabilidade dos projetos de mudança

social no contexto em objeto.

A utopia formava, compensatoriamente, o quadro

das aspirações, inconscientemente mobilizado no inte-

rior dos levantes. E com uma amplitude transbordante

dos parâmetros pragmáticos de então.

Utopia por igual presente no panfleto radical, as

campanhas em prol das liberdades no parlamento, nos

conciliábulos.

Espécie de compensação do senso comum e, com

ele, dialeticamente relacionado. Numa operacionalidade

tendente a reiterar um modelo ideológico de protesto, de

luta até, porém retesado nos limites impostos pela

situação dominante.

Figura como recurso estratégico para o qual

apelam movimentos contestatórios mais impotentes, ao

longo da história política brasileira.

Aquele senso comum constituiria um nível de

percepção superficial, tido como natural e p rodutivo no

fastígio do racionalismo, no vazio da não constituição

das ciências humanas, no domínio da utopia como arma

de reconstrução político-social.

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Agora, o retorno às teses de Cipriano Barata, o

precursor de Frei Caneca.

De início, cumpre dizer que o senso comum

parece confundir-se no fundador do liberalismo radical

no Brasil, com “reta razão”.

Depois de denunciar a ação despótica do mi-

nistério, a qual se fazia sentir violenta em Pernambuco,

através de agentes seus, portadores de “cartas brancas”,

com vistas à prisão de inúmeras pessoas – o que é

complementado com atos de corrupção – afirma que,

passado o primeiro instante de surpresa, entrou “a

discorrer com madureza e sangue frio, segundo os

ditames de uma reta razão”.(80)

Como se bastasse voltar ao senso comum para ver

melhor, saindo do estado emocional que o obnublava.

Ainda aí se observa que o exaltado panfletário

estimula a oposição entre o Rio de Janeiro, onde se

desenrola a trama do ministério, e Pernambuco, a

aparecer como vítima do despotismo desse ministério.

Nisso vai acendendo os ânimos e preparando o

terreno para a tese da autonomia provincial, mais tarde

desenvolvida pela Confederação do Equador.

É realmente importante ver como temas que

constituem a bandeira desse movimento começam a ser

elaborados por Cipriano.

Em outro número do “Sentinela da Liberdade”, o

de 3 de maio, explicita o estado de terror generalizado a

partir de determinações e atos de força do governo

central, com a institucionalização do medo, da

insegurança das arbitrariedades policiais.

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Aí está igualmente uma tese posteriormente

retomada por Caneca, e que representa um contributo do

liberalismo radical na análise de uma situação de

autoritarismo, na denúncia de uma ordem política

despótica.

Tal se manifestava como um dos elementos

fundamentais na elaboração de ideologia contraposta

àquela dominante e que, portanto, abria vias de

diversificação valorativa no cenário político brasileiro,

numa época em que a herança colonial pesava

demasiado, e que tinha como natural o absolut ismo, o

autoritarismo dos régulos e dos potentados.

É, de fato, uma abertura para, se não o rom-

pimento imediato da opressão, pelo menos a criação de

frentes conscientes de resistência. Nisso teve êxito o

liberalismo radical.

A obra de Cipriano Barata não caiu no vazio. Ela

terá repercussões na história imperial e republicana.

Então, na denúncia ao “terror público”, exproba

os “assassínios clandestinos” e outros excessos cla -

morosos, por tudo isso responsabilizando o ministério,

que ao encontra limites ao seu arbítrio.

Violados os direitos do povo, promulgadas leis

contrárias ao bem comum, criados tributos sem base

legal. Diante desse quadro de arbítrio, o poder público

se vê constrangido a consolidar a força, caindo num

círculo vicioso para abafar a resistência incontida.

O “terror público” vem no desdobramento

dialético do arbítrio, da força sem regra empregada pelo

governo.

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Procurando anular a oposição, quebrar -lhe as

forças, também estigmatiza as suas idéias, não sabendo

como parar.

E então ocorrem a desolação, o modo de falar, de

agir, o exílio. A coisa chega a um ponto tal que uma

suspeita ínfima motiva uma perseguição.

Interessante o ter Cipriano consciência de que

isso constitui um estado de crise.

Sim, crise porque reflete uma situação de anor-

malidade, infecundo para o trabalho, para a

manifestação da vontade, para o progresso.

As pessoas sentem-se tolhidas, temerosas das

denúncias falsas, dos delatores. Diz: “A Sociedade

geme, despotismo impera; e a tirania devasta tudo”.(81)

Aqui se nota claramente o dissídio entre a

sociedade civil e a sociedade política, com a evidente

exacerbação do papel cometido ao elitismo burguês

instalado no poder. Elitismo esse preconizado mesmo

pelos filósofos liberais, como Locke, a privilegiarem a

classe dos proprietários.

Seria preciso que Cipriano Barata corrigisse o

desnível causado pela separação entre sociedade política

e sociedade civil na doutrina liberal, incentivando o

gigantismo da elite governamental, e com as idéias

democráticas do Enciclopedismo, notoriamente as de

Rousseau, para se contrapor, fundando uma corrente o

liberalismo brasileiro, ao natural exarcebamento do

liberalismo centrista, autoritário.

Tal uma posição inovadora na temática e na

vivência ideológicas do período, e tendente a incorporar

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toda a sociedade civil no centro das decisões políticas

com o decurso do tempo.

Estar-se-ia diante de um princípio de ruptura com

a velha ordem. Porque o liberalismo centrista, com

aquelas conotações ideológicas, animadas pelo atraso do

povo carente de consciência política, facilmente

resvalaria em despotismo, em autoritarismo.

Contra esse estado de coisas se levanta Cipriano,

propugnando a acolhida dos “direitos da espécie hu -

mana”, não fazendo distinções de classe, não privi-

legiando a elite dominante.

Explica-se pois que ao queira uma constituição

outorgada, fruto exclusivo da deliberação de poucos, os

do grupo governamental.

Pleiteia que a nação, pela sua representação,

elabore o documento político.

Não sendo assim, a tendência é o advento de uma

Constituição despótica.

Não descansa Cipriano no denunciar tudo que

indica despotismo, arbitrariedade do poder.

É o ideólogo panfletário por excelência. Aquele

que faz a racionalização ideológica no seio mesmo dos

acontecimentos.

Não faz arrazoados ou preleções desligadas da

conjuntura política na qual vive e atua.

A todo evento ou cadeia de eventos corresponde a

colocação particular de uma uniformidade ideológica, a

de um corpo doutrinário com clara identidade, com

dimensão própria.

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O acontecimento, a conjuntura se articu lam de

modo operacional, segundo o modelo do período, com a

ideologia em referência, clarificando a “situação”,

particularizando-a, identificando no quadro valorativo

de uma radicalidade os móveis do comportamento

político da esfera governamental.

Malgrado a limitada operacionalidade dessa es-

tratégia, ela procria segmentos utópicos de uma so -

ciedade ainda por vir, estimulando o voluntarismo, a

resistência à opressão.

A própria limitação do modelo operacional dessa

postura ideológica, ignorando a complexidade dos pro-

cessos sócio-econômicos influentes numa conjuntura,

induz ao élan combativo, à revolta, fundados em

ingênua concepção do agir, da praxis.

Então, em Cipriano não há qualquer tentativa de

elaboração ideológica mais sofisticada, não passando do

nível panfletário.

No entanto, não se menospreza a eficácia do

voluntarismo, aí emergente, porquanto, no fundo, en-

tende com a disposição ontológica para a superação dos

obstáculos à realização humana.

Ora, o despotismo se encontra entre esses obs-

táculos, e ele atrai a resistência, o repúdio, mais cedo ou

mais tarde.

Aquela disposição ontológica se acasala com os

interesses de uma facção política, que se vê contrariada

por outra instalada no poder.

Na dialética do confronto, o corajoso político de-

senvolve uma notável aproximação com os aconte-

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cimentos, fazendo-o um crítico implacável dos seus

grandes protagonistas, os que estão na cúpula do poder.

Denuncia, entre outras coisas, o que chama de manobras

do ministério tendentes a escamotear as leis vigentes, o

figurino constitucional.

Verbera, por exemplo, e com base em notícias

vagas, quando se refere ao fato de que “correm novas”

mas eficaz dentro de sua estratégia política, porque

incrementa a oposição – o objetivo do “futuro Go-

vernador das Armas” de Pernambuco de vir autorizado a

se manter numa linha de total independência do governo

da Província, com suspeitas de, num golpe de força,

substituir-se a ele, inclusive perturbando as “novas

eleições”.(82)

Com isso, se coloca Cipriano num plano de

acatamento à lei, de repúdio ao solerte intento despótico

de malferi-la. O que é elevado por ele ao máximo do

acatamento, considerando que todas as ideologias do

período têm em comum o legalismo, a ele juntando o

moralismo.

O grande pecado do despotismo é justamente a

quebra de uma ordem político-jurídica consagrada pelos

povos livres.

Constituição, leis, com plenas garantias aos

direitos individuais, são tudo.

Há, na produção panfletária de Barata, trechos

doutrinários que demonstram a sua filiação iluminista,

mais precisamente a Rousseau.

Um deles é característico. Diz que Deus criou o

homem de uma forma privilegiada com relação aos

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animais, infundindo-lhe inteligência, espírito, órgãos

anatômicos-sensoriais mais apurados. A isso acrescenta

“uma tendência natural, para e le viver em Sociedade

com seus semelhantes, a fim de aperfeiçoar todos esses

dons já recebidos da sua Bondade e fazer feliz nessa

Sociedade, para que foi criado”.

Porém, possibilitando a “comunicação recíproca”,

a sociabilidade, o bem geral. E nesse ponto se acentua

propriamente a superioridade do homem sobre todos os

animais.

Em função de uma primazia da linguagem, que

tem a propriedade de “dilatar a esfera do seu ser”.(83)

Isso diz bem da soberania da palavra, do discurso

iluminista.

Ele representa o quadro perfeito dos significados

integrados e concluídos definitivamente pela combi-

nação dos signos, das definições, verdadeiros axiomas.

O discurso contém a ordem universal das coisas,

a verdade inscrita no Ser, não havendo necessidade de

uma extroversão sua no campo das objetividades, para

precisar as significações. Estas se encerram e esgotam

no interior do discurso.

A representação do mundo constitui-se repre-

sentação das idéias, rede compacta de signos.

A semântica é o resultado da aproximação desses

signos. Nessas condições, não há como se admirar do

julgamento de Cipriano segundo o qual a palavra é a

dilatação do ser do homem.

Na concepção clássica e iluminista do período, o

ser se acha inscrito na palavra.

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Percebe-se então a correlação que se pode est a-

belecer entre essa concepção da linguagem e a de uma

concepção da relação teoria-praxis.

Passa-se naturalmente de uma para outra.

É que a prática também já está inscrita na

linguagem que fabrica com os seus elementos, sem sair

do universo a que se cinge. Assim a linguagem da

filosofia, da literatura, não havendo como se articular

com as empiricidades, de um modo que apareça apenas

como instância mediadora.

Ela, por isso, impõe os seus significados próprios,

o sentido das coisas, do mundo.

Não cabe a articulação da teoria com a prática.

Porque a teoria já é prática.

Resta apenas explicitar a vontade como dimensão

da razão para se atingirem os objetivos.

A ideologia panfletária se socorre dessa

concepção, usando a palavra, e só a palavra, no discurso

compacto da contestação, pretendendo que, absorvida

essa palavra-exortação, essa palavra-protesto, se esteja

de posse de todos os recursos para agir.

Ignora, assim, as mediações sócio -culturais, só-

cio-econômicas, políticas, e vai diretamente à ação.

O acontecimento é ingrediente de manifestação

do contexto do discurso. Em função dele e sob a palavra

que o veicula, promovendo-se a prática.

Se alguma estratégia se mostra mais objetiva não

é a do discurso, e sim a que nasce e se estrutura nos

conciliábulos, no desenrolar da ação. É então que se

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moldam os rumos dessa ação, que se mediatiza

propriamente pelos recursos da sociedade do tempo.

A soberania inerente ao discurso, o estilo retórico

dominante, auto-suficiente, até arrogante, facilita a

linguagem violenta, desabrida.

Porquanto essa linguagem soberana, reputando-se

“dona da verdade”, inclina-se à oposição violenta a

quem dela se afasta.

A anti-verdade, a mentida, o opróbrio, estão com

os usuários de outro discurso, ou com os agentes de

eventos que contrariam o discurso da verdade.

É um dogmatismo inerente à linguagem, que a faz

fanática, desabrida.

A sacralização da linguagem não se separa da

sociedade sacral daquela época.

Daí o ataque do Iluminismo às bases religiosas da

sociedade, ao providencialismo, à soberania da insti-

tuição religiosa face à instituição secular.

Tal faz parte das competições extremadas dentro

do contexto social, dos grandes confrontos aí praticados.

E num país de insignificante diferenciação social,

intensificando a virulência do confronto entre as

oligarquias, entre os proprietários poderosos, isso se

fazia deveras marcante. Nesse contexto, evidente o

desabrido enfrentamento das posições políticas.

Os insultos, os doestos, a ironia, assacados contra

os adversários, são uma constante.

Cada posição assume a sua linguagem, e nela

encontra todos os parâmetros do Ser, da verdade. Ela é a

projeção de um universo que não transpõe os ligamentos

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do discurso, dele extraindo moral e valores sobrepostos

à realidade social. Embora com ela entrando numa

específica relação dialética, que até tornam distanciadas

as exigências dessa realidade. No entanto, sobre ela

influindo, e num tipo de ação desordenada, porque ba-

seado só no voluntarismo.

E justamente no estilo da ideologia panfletária.

Sendo esta a mais adequada forma para a sociedade da

época, com a procriação de um pensamento político em

confronto com o oficial. E se coadunava perfeitamente

com a natureza da racionalidade experimentada na

linguagem que mais comunicava “verdade”, e da

ideologia.

Não havia possibilidade de se constituir um pen-

samento político em nível filosófico.

O país, recém-saído do estado colonial, não in-

gressara e longe disso estava, num estágio de razoável

progresso cultural capaz de permitir uma reflexão mais

profunda.

O que se tinha de melhor nessa matéria era

importado. E o caminho natural seria a sua transfusão no

bojo da conjuntura, dela e com ela se compondo, com a

absorção dos conflitos políticos submetidos à raciona-

lização no confronto ideológico.

Pois inexistiam guias- valorativos autônomos nu-

ma sociedade de papéis ou de objetivos pouco ou

toscamente elaborados.

A vivência política era primária e não recolhia

funcionalmente no contexto social os anseios profundos

que jaziam no plano do inconsciente.

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A grande opção do período é a de afirmação da

liberdade, com a vitória sobre qualquer forma de

despotismo, no melhor modelo da Independência

política.

A pureza desse modelo é violado pelo despotismo

sobrevivente. E os que disso dão conta, como Cipriano,

iniciam o movimento de retificação do grande desvio

político. Tão só possível no confronto vivo das duas

posições.

O problema parece se resumir no detectar as

grandes tendências de afirmação nacional, contidas no

projeto do liberalismo radical fundado por Cipriano.

Justamente nesse ponto transparece a dimensão

utópica da ideologia radical, e que se revela em tópicos

portadores de uma estratégia racionalista mas

denunciante de um imperativo real de mudança.

Mudança apoiada no horizonte valorativo do

momento, não claramente ou exaustivamente formulada.

Porquanto fica no aspecto político. E, ainda assim, no

plano meramente institucional, não captando nas suas

motivações amplas o comportamento político.

Contudo, tópicos como “opressão”, “liberdade”,

já comportam uma abertura continuada, e sempre

terminando por expressões como “felicidade dos povos”.

E o conceito de felicidade, como diz André

Vachet, expressa, no ideário liberal a fruição hedo -

nística e pragmática dos bens, das riquezas.(84)

Ora, para o acesso a esses bens, a essas r iquezas,

mister se faz a promoção sócio-econômica e não apenas

política do povo.

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Neste estão representadas todas as camadas

sociais, todas as etnias, todos os grupos humanos,

segundo a linha rousseauniana.

Eis que o pensamento de Cipriano apresenta uma

face utópica.

E não estaria a aspiração de promoção social na

dependência da opção política, da implantação de um

sistema liberal-democrático no país?

Pelo menos em termos operacionais, se impunha

num primeiro momento a ênfase sobre a liberdade, sobre

a reformulação política com esse fim, como condição de

outras conquistas.

E o dado utópico se insere no projeto da liberdade

sob a forma de tópicos a reunirem objetivos mais

amplos e profundos. Os quais somente mais tarde

ganhariam operacionalidade.

Depois, esse dado utópico se adensa na proporção

dos obstáculos postos ao modelo político em questão.

É que a forte tradição conservadora, tão

favorecida a reforçada pela concentração do poder

econômico nas mais da elite proprietária, obstava a

eliminação da opressão social, a base da política

dominante.

Os movimentos liber4tários sempre esbarraram

diante de tais obstáculos. Pois, ainda que tempo-

rariamente vitoriosos, como a Confederação do

Equador, não modificam o estado de opressão. Muitos

dos seus próprios líderes e mentores são proprietários

abastados.

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As reformulações políticas que empreendem

deixam intactos os seus direitos ilimitados de

propriedade. Assim como as suas posições elevadas na

hierarquia social.

De sorte que, diante desses obstáculos, mais se

adensava o conteúdo utópico do liberalismo radical.

Conteúdo que a linguagem racionalista facilitava, pro -

pagava com intensidade.

Proclama Cipriano:

“Da palavra nascem a comunicação, a perfeição. a

Civilização, as artes, as ciências, e tudo que diz respeito

ao adiantamento melhoramento, cômodos, segurança do

homem...”.(85)

Daí a ansiedade de se divulgarem doutrinas e

idéias no período, no meio do conflito, com a certeza de

que elas, assimiladas, levariam o homem e a sociedade

ao progresso. É o culto da palavra, que a racionalidade

clássica instalou nos espíritos.

Ela é associada à moral, às virtudes, trans-

formando-os, dada a face voluntarista da razão. E do seu

exercício dependendo a consumação dos objetivos de

felicidade humana.

Eis aí o ponto central de inserção da utopia na

temática racionalista.

É a Imprensa, por isso, o órgão da felicidade

geral, por excelência.

“É a imprensa, que aumenta a faculdade de falar, e de

pensar, nos encaminha para defendermos, e segurarmos

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nossa Liberdade Civil, nossa igualdade social, nossa

segurança natural, nossas normas de justiça nossa

felicidade neste mundo”.(86)

É que a Imprensa é o meio de comunicação dessa

idade do século, o veículo da palavra-orientação, da

palavra-ação, o portador de um dinamismo que só o

voluntarismo poderia ensejar.

Numa revolução, então, ela assume uma co-

notação toda especial, considerando que, nesse mo -

mento, a vontade se desprende de todas as amaras, de

tudo que a cerceia, e se manifesta no clímax da

liberdade. A Imprensa, assim, exerce, como de t ato

exerceu, um papel singular num período de sedições.

Porque explora ao máximo os confrontos radicais

entre régulos, entre famílias poderosas, entre líderes

políticos, a política patriarcalista, absorvendo os con-

flitos inter-raciais, os desajustamentos provenientes da

larga marginalidade estrutural.

A própria inconsciência das causas e dos fatores

dessa crise, desses conflitos, deveria provavelmente

geral a transferência para supostos fatores, como a

ignorância, da origem de todos os males.

Eis que proclama o periodista que a informação

ilumina, o conhecimento redime, a palavra salva.

De posse da palavra, resta lutar, numa atitude que

omite a estratégia eficaz, funcional.

Porque o voluntarismo exclui a análise fria e

objetiva de uma “situação”, de uma con juntura, ponde-

rando os seus fatores e desenvolvimento.

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A objetividade se elide em favor da subjetividade,

projetada na vontade.

Nesses termos, constitui-se um grave pecado o

garroteamento da Imprensa. Na verdade, um atentado

inominável à “felicidade dos povos”.

Isso significa que o governo quer esconder os

seus crimes, os seus erros, o despotismo.

É então que se nota a clara contraposição entre

ele e a sociedade, a sociedade civil.

Tal um dos traços do liberalismo radical, a

estreita afinidade entre ambos. O governo deve ser o

coroamento da vida social.

Não se compreende como possa obstruir o meio

mais eficaz e poderoso do progresso dessa sociedade:

“Prender a imprensa é querer fazer o homem hovamente

selvagem, e bruto... É o mesmo que privar o homem de

seu ser social”.(87)

A liberdade, nessa concepção, é a liberdade da

palavra, de pensamento, como meio de educação e,

conseqüentemente, de progresso dos povos. Mantê-los

ignorantes o maior crime.

Não se trata de uma educação sistemática,

processada nas escolas, nos institutos. É uma mais

imediatista, desintegrada de qualquer processo de

aprendizagem, de um condicionamento psico-sócio-

cultural. É a da informação, doutrinária ou não, que

colhe indistintamente a todos, a todos iluminando.

No fundo, há um elitismo nessa concepção.

Porque não se deve deixar de reconhecer na época a

impossibilidade de a grande maioria da população ter

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acesso à Imprensa, por analfabeta ou pela pouca

instrução. Daí a doutrina panfletária dirigir -se natural-

mente ara a camada dominante, letrada.

Contudo, reveste-se tal concepção de ambi-

güidade. Nisso que a sua dimensão utópica levava -a

forçosamente à uma generalização desse tipo, ficando os

“direitos da espécie humana” como algo apenas passível

de realização num futuro mais distante. Mas cuja

enunciação favorecia a abertura para o progresso.

Cipriano Barata anuncia uma tese, que depois

será retomada por Frei Caneca e outros paladinos do

liberalismo radical, segundo a qual não se deve fazer

opção rígida pela monarquia ou pela república.

Provavelmente por razões táticas.

Não se preocupava com rei no poder, ele que é

maçon, por convicção republicano.

Ele faz uma concessão que atesta o cuidado de

afinar com a circunstância nacional.

Afirma: “Quanto aos Reis e Imperadores; que

tenho eu, que se agastem? Que não sejam malvados; e

logo direi bem deles”.(88)

O importante é haver liberdade, ter acabado a

opressão, com rei ou sem rei.

Nessa citação se observa o tom moralista, de

inspiração racionalista.

Do caráter do governante, algo que entende com a

vontade, depende o bem-estar da coletividade, livre de

despotismos. Mais uma vez, relevante a ausência de

condicionamentos, de mediações sociais, políticas e

econômicas.

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É o individualismo liberal que assim o enseja.

Ele se volta contra privilégios, isenções, que se

articulam com o arbítrio, constrangendo a todos im-

placavelmente.

Fala, por exemplo, no poder despótico dos ouvi-

dores que, motu proprio, mandavam carregar de ferros

até eclesiásticos.(89)

A síntese de sua doutrina acha-se em o “Credo

Político”. Então, toma por modelo o credo da Igreja

Católica.

Primeiro diz: “Creio na Santa Independência Po -

lít ica do Império do Brasil”.

Uma independência completa, sem união com

Portugal.

Guardava, desse modo, um sentido muito acen-

drado de autonomia nacional.

Em seguida, “Creio na comunicação e reunião das

Províncias”.

Compreende a necessidade de manter o país,

unido, ou mais claramente, com as suas províncias

unidas, formando um só corpo político. Assim,

demonstra invulgar intuição do prejuízo para a causa d a

Independência com o possível desligamento de alguma

ou de algumas delas.

Considerava o estado de coisas no Pará e no

Maranhão, a forte concentração de portugueses na

Bahia. A ocorrer tal separação, o partido português

encontraria reforços numa contra-revolução.

Vem agora:

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“Creio na Remissão, ou alívio das nossas desgraças por

meio de uma Constituição liberal, como foi ajustado, na

qual parece de razão que não haja veto absoluto, nem a

iniciativa das Leis fora das Cortes ou Congresso

Soberano; nem duas Câmaras, nem o Comando das Armas

no nosso Imperador; e na qual deve haver Jurados no Civil

e Crime, e liberdade da imprensa, e a responsabilidade dos

ministros e de todos os Empregados públicos, além de

tudo mais segundo as Bases, que já foram juradas, e d e

que parece não nos devemos apartar”.(90)

Aí ele se bate por um Estado liberal sem a

interferência ou o privilegiamento de prerrogativas abu -

sivas e atribuídas ao Imperador, com a divisão ampla

dos poderes, com delimitações constitucionais e legais,

e sem órgão legislativo outro que a Assembléia.

Provavelmente, ele previa a vitaliciedade dos

membros do Senado, distorção grave de tudo que

pregava.

A segurança dos cidadãos estaria garantida pela

instituição do Júri, com julgamento democrático.

A oposição ao veto absoluto representava a

limitação suprema ao poder do Imperador. Era uma

precaução contra o autoritarismo, tão presente entre nós,

o qual confirmado pelo Poder Moderador, incluído na

Carta outorgada de 1824.

Prossegue o enunciado do “credo” assim:

“Creio na Ressurreição da liberdade da imprensa; na

destruição do Despotismo, seja ele qual for; na destruição

das devassas, terrores e espias pela vigilância do nosso

Congresso Soberano; e na destruição de tudo mais que nos

é danoso”.(91)

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Fica vem claro aqui o privilegiamento da liber-

dade, como exercício soberano do povo.

A autoridade não deveria adotar práticas não

previstas em lei, das quais não pudesse prestar contas ao

Legislativo com o fito de conter os seus abusos.

Nessa doutrina, não se admite a supremacia, de

fato ou de direito, do poder Executivo.

Tal supremacia era o grande terror de Barata e de

todos os liberais puros. Pois sabiam que, através dela,

surgiria inevitavelmente outra forma de despotismo, e

exercido em pleno regime liberal-constitucional.

Era um esforço inaudito para debelar as arbi-

trariedades sem conta de presidentes de províncias, de

governadores de armas, de ouvidores e até de vigários,

cuja vítima a população, e numa escala hierárquica que

começava pelo Imperador, malgrado a organização

constitucional.

Pretendia Barata que se debelasse o acentuado

autoritarismo, fortemente apoiado na herança colonial,

mediante uma distribuição de poderes prevista por um

modelo constitucional-liberal que privilegiasse o Le-

gislativo, como representante da nação. Não aceitava a

teoria constitucional de Montesquieu, que atenuava dito

privilegiamento. A leitura do panfletário baiano dá a

impressão de que todo o mal reside no despotismo.

Desde que ele fosse erradicado, viável a “feli-

cidade dos povos”.

Por fim, o “credo” termina assim:

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“Creio na vida eterna da Constituição e do patriotismo

Brasileiro, vigilância e bom governo do Imperador;

constância e valor das Províncias”.(92)

Aqui ele reitera o valor central da Constituição,

como órgão normativo máximo da nação, delimitador de

funções e de atribuições da autoridade, e salvaguarda

das liberdades. Também há o apelo a todos os bra -

sileiros, autoridades e povo, no sentido de defenderem e

de preservarem a Independência, ameaçada pela so -

brevivente resistência portuguesa.

Mas é patente a tese da autonomia das Províncias,

embora unidas. Cada uma delas, com os seus próprios

recursos e iniciativa, deveria por igual preservar o

legado da liberdade, combater o despotismo, seja qual

for a sua forma.

Nisso ele refletia a intensa concentração de inte-

resses na Província.

Pelo visto, Barata é um panfletário que denuncia

os abusos contra as liberdades, partidos do alto, os

privilégios remanescentes da velha ordem.

Ergue-se contra as manobras daqueles que

querem imping ir uma Constituição “menos liberal”, com

poderes exorbitantes ao Imperador,

“que tire a Iniciativa das Leis das Cortes Soberanas, que

conceda duas câmaras, sendo uma de Mandões ou

Fidalgos, uma Constituição finalmente armada de modo

que se dividam os Cidadãos em Classes, umas para

trabalhares e outras para desfrutarem, em fim uma

Constituição toda feita com desprezo das Bases que

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juramos (exceto poucas) só afim de ficar toda recheada da

vil Carcundagem Aristocrática e despótica”.(93)

Nessa passagem, bastante elucidativa, colhe-se a

dimensão social da ideologia de Cipriano, sendo nítida a

influência de Rousseau, dos princípios democráticos,

que alcançavam o problema das desigualdades sociais.

Um ataque frontal ao elitismo burguês, preco-

nizado no modelo lockeano de Constituição. De acordo

com o qual caberiam só aos proprietários, aos que

detivessem rendas, os direitos eleitorais, a representação

da nação, a composição do seu corpo político.

Admirável a intuição de Cipriano. Parece que via

o futuro.

Tocou num ponto essencial: o do poder eco-

nômico-social que, a ser privilegiado pela organização

político-jurídica do país, acabaria sufocando os direitos

da esmagadora maioria do povo.

Tal começava com a criação de uma câmara de

nobres, cujos membros nomeados pelo Imperador, dis-

tanciada do povo, e constituindo fator ponderável de

despotismo.

Não suporta Cipriano a continuidade de uma

aristocracia que desfrute o trabalho das outras camadas

sociais. Configura-se aqui a opressão social, que se

articula com a opressão política.

Por aí se vê como estava ele tocado pelo ideário

social de Rousseau, pelo igualitarismo pregado pela

Revolução Francesa. Nesse aspecto, acentua-se a face

utópica da ideologia radical, lançando as bases de um

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projeto de mudança social, segundo o modelo retórico e

impressionista da época, sem atentar para os obstáculos

concretos a superar.

No entanto, vale o núcleo do projeto, a cons-

ciência da opressão num sentido mais profundo que o

meramente político. Projeto esse que tende a se

esvaziar, dada a prioridade evidente do fator político,

então. Demais, não tendia a mobilização política, em-

preendida sob os auspícios do liberalismo radical numa

quadra revolucionária, a deixá-lo de lado, pelo simples

motivo de inúmeras personalidades da “aristocracia”

aderirem a essa mobilização?

Aí está contida a doutrina burguesa da Revolução

Francesa, centrada no combate e na destruição dos

privilégios da classe feudal, aristocrática.

A diferença estava em que essa classe aris -

tocrática Cipriano a via encarnada nos proprietários,

portugueses ou não, que porfiavam pela manutenção dos

privilégios que consolidaram na Colônia. Inclinados,

por isso, para a causa portuguesa. Ou para uma orga-

nização política que os resguardasse intactos.

E haveria de triunfar essa organização política,

com a conservação de uma estrutura de autoridade que

favorecia os interesses dos dominadores.

Trata-se de uma estrutura de autoridade assim

interpretada por Michel Debrun:

“Vejo aí dos aspectos. Em primeiro lugar um hiato muito

grande entre dominantes e dominados e, segundo, o fato

de que, devido ao caráter de extremo rebaixamento de

certos dominados (os escravos e suas seqüelas, como

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agregados e moradores), sempre houve a possibilidade,

por parte dos dominantes, de utilizar e/ou de neutrali zar

todos os dominados”.(94)

Daí se acentuar mais uma vez, de forma

eloqüente, a visão utópica do panfletário baiano.

Na linguagem racionalista da ideologia radical do

período, lança, em termos retóricos, o desafio ao

fundamento da vida política, então muito forte, aquela

estrutura de autoridade, dado o grande estado de

marginalização da maior parte da população brasileira.

Cipriano queria a mudança dessa estrutura ou a

sua erradicação pela abertura democrática.

E não aparece o elemento utópico, sobretudo, no

distanciamento em que ficava tal erradicação, em

virtude da prévia opção política a fazer, a promover?

Ela se esboçaria como algo possível num futuro

não próximo.

Assim, a inviabilidade imediata do projeto é que

lhe confere a relevância utópica. Mas que deixava a

possibilidade de se ir estruturando de forma consciente e

funcional ao longo da história, com a transposição

progressiva dos obstáculos.

E sublinha o denodado político os males

relacionados com o predomínio do espírito e da prática

elitistas.

Mostra que “as nossas Cortes Soberanas” são

compostas quase unanimemente por pessoas da “aris -

tocracia”: desembargadores, corregedores, juízes de

fora, eclesiásticos, que provêm do antigo regime

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colonial. Habituadas a concentrarem privilégios abu-

sivos e a exercerem opressão sobre a população.

A Independência não afetou substancialmente a

situação dessas pessoas. Continuam elas desempenhando

os antigos papéis, com a mesma mentalidade, com os

mesmos interesses de antes, granjeando riquezas e

poderio. E são elas que pretendem participar do

Gabinete, do Ministério. Com o poderio, com a

influência de que dispõem, fazem maquinações, intrigas,

toda sorte de insinuações, para atingirem os seus

objetivos. Entre eles, uma Constituição, “com desprezo

dos inalienáveis d ireitos do povo; Constituição fundada

sobre os princípios e dogmas do bárbaro Direito

Romano, e tenebrosas anti-sociais máximas de

Teologia”.(95)

Impressionante a maneira como Cipriano insere o

realismo no interior mesmo da utopia, num prenúncio

admirável da tese de Ernst Bloch, que, ao fundá-la na

consciência antecipante, a associa ao processo real, à

possibilidade concreta.(96)

Ele enceta a distensão do presente, visto como

inconcluso.

O realismo é imanente à colocação utópica de um

objetivo que se impõe como necessário.

Sabia que o problema crucial do seu tempo era

vencer o elitismo todo privilegiado e despótico.

Não se podia promover satisfatoriamente a

reformulação política de grande porte, consistente na

implantação do regime liberal-constitucional, sem a

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quebra de uma estrutura de autoridade correlativa

daquele elitismo. Ou sem se prevenir contra ela.

Essa a grande verdade.

Assim, a conotação social emprestada por

Rousseau, vai servir de instrumento de conscientização

daquele problema, ainda que sob o discurso retórico, a

mit igar o alcance da observação.

E Cipriano vai até aos fundamentos teóricos da

postura absolutista-elitista, longe de ser vencida com a

Independência.

Aponta o princípio rígido e despótico da auto -

ridade no Direito Romano, o qual sancionado pela

Teologia medieval, atribuindo o carisma divino ao rei,

privilegiando os “direitos majestáticos” numa sociedade

tipicamente feudal.

Ao se pretender objetivar uma nova ordem polí-

tica, atenta à uma sociedade mais aberta e diferenciada,

impunha-se a superação daquele princípio.

O denodado panfletário queria uma ordem liberal

completa, com a participação de todas as camadas

sociais.

O racionalismo impediu que ligasse os condi-

cionamentos do país ao projeto político que afagava.

Foi exímio do pinçar as bases ideológicas do

surto autoritário do seu tempo, sendo importante a que

se relaciona com a religião, na verdade a base primeira,

inclusive de outras racionalizações. Ela, com efeito, a

grande justificadora da estrutura autoritária, dos in te-

resses da camada dominante.

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Realisticamente percebia a articulação entre o

universo ideológico da elite autoritária e a elaboração de

uma carta política que fortalecesse abusivamente o

poder Executivo:

“Constituição em que capciosamente se restabeleça a mais

devastadora Aristocracia, ou Governo em que os Grandes

predominam e o Poder Executivo pode abusar de tudo,

ficando debaixo dos pés os nossos direitos sociais...”.(97)

Destarte, prolongava-se praticamente o estado

colonial, continuando o povo a suportar o jugo da

aristocracia incólume no país.

Clero e nobreza conservariam todos os privi-

légios. A tirania persistiria, não obstante a Constituição.

Aí está o motivo de insatisfação, de agitação nas

Províncias. No que acertou em cheio, pois se sabe que

os motins de 1823, a deflagração do movimento con-

federativo, tiveram na conspiração “aristocrática” com

vistas à uma Constituição que assegurasse a “estrutura

de autoridade”, notório incitamento.

As províncias resolveram então unirem-se,

segundo Cipriano, aumentando a solidariedade entre

elas, dando-lhes mais força, em torno de uma

Constituição “feita metódica e legalmente”.

Não admite que as províncias sejam manipuladas

pelo poder central através das manobras de José

Bonifácio que “com uma resma de papel embrulha toda s

as dezenove Províncias”.(98)

A tese de Rousseau sobressai aí, de acordo com a

qual o pacto político sucede ao pacto social. Ou melhor,

ao decidirem os homens constituir a sociedade política,

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o fazem no pressuposto da pré-existência deles com

relação ao Estado.

As províncias, na doutrina de Cipriano, parecem

formar comunidades que abrigam os povos, os homens

de uma nação. Elas preexistem à qualquer tipo de

unificação que lhes imprime o estatuto político.

Há, assim, uma adaptação da doutrina de

Rousseau à circunstância brasileira. É que naquele

momento histórico a vida política, social e econômica

tinha como fulcro as províncias, frouxamente unidas por

um centro político, o Império nascente.

Daí a idéia de uma república federativa fundada

no modelo norte-americano, e que, melhormente for-

malizada por Caneca, ficaria como uma das teses

centrais do liberalismo radical.

Merece realce o argumento de Cipriano segundo o

qual a Constituição pode tornar-se um instrumento de

força, de opressão, desde que não siga o figurino

esboçado no “credo”.

Basta que ela deixe de incluir apenas um artigo

que discipline as liberdades ou a segurança dos

cidadãos. Estaria então moldada pelos déspotas, pela

“aristocracia”, segundo os seus interesses, ditada pelo

egoísmo de classe, esquecendo os interesses da nação,

esvaziada dos seus superiores objetivos. Nesse caso,

justificada a revolução. O revolucionarismo emerge

como meio de demolição dos privilégios de uma casta,

que tripudia sobre a vida da nação.

O racionalismo se apresenta aí, na transposição

simplista do quadro francês para o quadro brasileiro.

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Ou, antes, um lance estratégico na demolição

panfletária que Cipriano empreende?

A Constituição, porque servindo de elo entre as

províncias, por estas representativamente elaborada, não

pode ultrapassar os limites da expressa vontade do povo.

Pois convencionou isto as províncias. Ela não deve ficar

à mercê da vontade do Imperador e do ministério,

deslocando-se do centro da vontade popular. A quebra

das promessas e dos juramentos pelo monarca autoriza o

povo a fazer o mesmo, não sendo mais obrigado a

obedecer-lhe, a não seguir as normas constitucionais

atinentes especialmente à matéria grave da Liberdade,

da Igualdade, da Segurança, da Independência.

Por conseguinte, fica sem valor o pacto social,

aquele que constitui o Império. As províncias, nesse

caso, retomam a plena autonomia e cada uma passa a se

reger por si própria. O povo não tem mais obrigações

para com o governo central, e reassume o direito de

formar novo pacto social. O que significa constituir o

governo que julgar conveniente.

Ora, isso induz ao direito de revolução, em se

sublevar o povo contra o Imperador perjuro, em resistir

às suas ordens. Com Cipriano, tem-se formalizada a tese

da revolução, entre outras que compõem o Liber alismo

Radical entre nós. Tudo deriva justamente da primazia

da liberdade, encarnada na vontade coletiva, sobre a

autoridade. E as sublevações que pululam na quadra

imediatamente posterior à Independência, encontram,

em grande parte, aí motivação. Motivação que integra

um complexo ideológico, resultado do advento de

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fatores circunstanciais que determinam o inconformismo

político.

Mais uma vez alude à federação como a melhor

organização política, a preferida pelas províncias, o que

lhes convém. Se bem que não afaste a possibilidade de

um governo “Imperial liberal como se acha constituído;

ou de outro modo, se os tempos e as circunstâncias o

permitirem”.(99)

O importante é que se respeite a primazia dos

“povos”. Sofrendo a carta magna um processo de ela -

boração que deve começar na Assembléia Nacional.

Mas, antes de entrar em vigência, deve ser submetida ao

voto do povo nas câmaras, segundo o processo usado

pelos “Americanos do Norte e os Franceses em 1799”.

Tal se justifica pelo princípio de que a soberania res ide

no povo, “o único e legítimo Soberano Legislador”.

Evidencia-se, nesse passo, a influência da doutrina

democrática, a de que o povo deve ter uma participação

dominante e decisiva na feitura, na formalização das

leis. E em dois momentos: o primeiro, através de seus

delegados; o segundo, quando examina e julga o tra-

balho desses.

Assim, por tal conceito de representação. Os

delegados são submetidos a um julgamento constante e

não periódico através de eleições.

Nessa concepção, não se admitia que o Imperador

fizesse prevalecer a sua vontade em detrimento da do

povo. Ele seria um cidadão como outro qualquer, apenas

investido de uma função, que o tornaria um “cidadão

agraciado”, a desempenhá-la de acordo com a vontade

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soberana da nação, expressa na Constitu ição e nas leis.

Como se tolerar, então, que ele atemorize a Assembléia

Nacional Constituinte e Legislativa, a representação

mais elevada do povo?

Como se concebe que um poder menor se levante

contra outro maior? É que o Imperador está subordinado

à Assembléia. É um governante como outro qualquer,

que deve acatar e seguir a expressa vontade da nação,

ali formalizada.

Um inominável atentado à vontade popular o

forçar aquela Assembléia com aparato militar, pro -

curando dobrá-la ao arbítrio do Imperador.(100)

É de se destacar por igual na obra panfletária de

Cipriano Barata a tônica que dá, em determinado mo -

mento, ao liberalismo econômico, o qual não separa do

liberalismo político.

Pleiteava a “liberdade das Indústrias de Corpo e

Espírito, para se gerarem Ciência e Riqueza, com toda

segurança individual”.

Na linha das reivindicações burguesas, batia -se

por uma diversificação econômica capaz de gerar o

progresso material.

Também o tema da edificação de “Indústrias do

Espírito” é praticamente novidade no ideário radical,

assinalando ele os benefícios trazidos pela livre criação

intelectual, cultural, com a abertura de novos hori-

zontes, de nova mentalidade. Porquanto se conhece o

quanto de bloqueio pesava sobre o ensino, sobre a

criatividade em todos os domínios da cultura, desde a

Colônia, asfixiando os vôos altaneiros do pensamento.

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Ainda dominante a tradição religiosa de franco apoio à

tradição, aos poderes estabelecidos, com sérios pre-

juízos para a formação de uma consciência crítica no

país. Isso facilitava a ascendência das elites, da

“aristocracia”, em detrimento do povo.

Dilucidativo o posicionamento de Barata no to -

cante à nobreza surgida com a propriedade territorial,

ensejando uma forma de domínio cercado por pri-

vilégios consagrados pela legislação, notoriamente a

civil, e eternizando práticas evidentemente anti-sociais,

contrárias ao interesse coletivo.

Sem desenvolver o assunto, tecnicamente ligado

ao direito, antes fazendo uma alusão, revela, contudo,

fundado em Rousseau, sensibilidade para um problema

social que somente muito posteriormente viria a ser

objeto de discussão, de reformulações. Teve, pelo

menos, a intuição de um obstáculo sério à completa

erradicação da opressão.

Realmente, ele a via não apenas na dimensão

política, mas numa dimensão global. Eis aí a presença

de uma linha radicalizante do Enciclopedismo. Nela se

colhe a impossibilidade de uma vivencia plena da

liberdade sem a superação de entraves de natureza

social.

Exemplo disso é a proposição divulgada por

Diderot, Rousseau e outros, de conformidade com a qual

“a escravidão social conduz de imediato à escravidão

política”.(101)

Seguindo um procedimento peculiar ao Ilumi-

nismo, o fundador do liberalismo radical entre nós busca

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também justificação para as suas teses na história greco -

romana.

No caso da Federação isso é bem pronunciado.

Ao defendê-la, além do exemplo dos países

ocidentais, invoca “a razão e a experiência da Grécia

antiga”.

Mas não fica no modelo estrangeiro. Descobre

por igual razões na peculiaridade da vida brasileira.

Ressalta a distância entre Pernambuco e o Rio de Ja-

neiro. A dificuldade nascida da organização adminis -

trativa pouco funcional e expedita. Ele é taxativo:

“O Brasil todo sabe, e eu já o tenho dito muitas vezes, que

o governo das nossas Províncias deve ser frouxo com a

Capital do Rio, atentas as circunstâncias das distâncias, e

de mil dificuldades, que se opõem a qualquer outra forma

de governo; cada Província precisa de fazer suas Leis

particulares, seus arranjos em separado, o que só deve ser

organizado dentro delas pelos seus naturais e seus

governos privativos; havendo em separado Leis gerais que

façam a união Imperial, e ex equi a Federação”.(102)

Apontava obstáculos para a implantação do

projeto unitário os quais de fato existiam. Vêem de

longe. Desde o regime das Capitanias Hereditárias, que

desenvolveram formas de vida econômica, social e

política, caracteristicamente locais, num autarquismo

bastante realçado pelos historiadores. E isso ficou,

impregnando as províncias, estruturadas nos domínios

das Capitanias, do localismo, quase não sentindo o peso

de uma administração central.

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154

E tal a exigência natural do federalismo, no

sentido do respeito à uma situação de fato, tornada

reivindicação constante no pensamento político e

freqüente objeto de iniciativas parlamentares.

Em 1870, o manifesto republicano o tomaria

como uma das suas principais teses. Ele exaltaria as

divisões naturais, estabelecidas pela fisiografia do país.

Matizes da topografia, a variedade de climas, com

produções diversificadas, as cordilheiras e as águas,

falavam em favor de uma exigência, a “de modelar a

administração e o governo local acompanhando e

respeitando as próprias divisões criadas pela natureza

física e impostas pela imensa superfície do nosso

território”.(103)

E tal haveria naturalmente de se oficializar com a

Proclamação da República.

Assim, Cipriano Barata levantava a bandeira do

Federalismo com muito realismo e de forma pioneira, e

inspirado não somente no modelo americano ou no de

países da Antigüidade, mas também na própria realidade

brasileira.

Na época em que viveu, isso se fazia sentir de

modo impositivo. Se pesou mais a idéia unitária é que

assim se atendia aos interesses da estrutura de

autoridade emergente com o Império, com a fundação do

Estado nacional brasileiro. Faltou um modelo político

capaz de compatibilizar os objetivos da organização

imperial e os da autonomia provincial.

E o liberalismo radical não preconizava uma

autonomia absoluta das províncias, a ponto de se tornar

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impraticável um governo central. Nota-se, pela retro-

citação do panfletário em exame, que essa a verdadeira

versão.

Aí se classificam duas ordens de leis: uma

específica das províncias, da competência delas

mesmas; e outra atinente à união de todas elas, na

composição do Império.

Faltou às províncias, dentro do arcabouço polít ico

imperial, um mecanismo de poder que lograsse influir

decisivamente na elite dominante. Tal ficou claro no

momento em que essa elite consegue a adesão do jovem

Imperador à mensagem de autoridade, de ordem, a qual

vedava de fato a sensibilidade às aspirações provinciais.

Observe-se, pois, que o Federalismo se situava no

cerne do projeto radical de diluição ou de amor te-

cimento do autoritarismo, quando também prevenido

contra a supremacia das oligarquias locais.

Todavia, tão marcante o autoritarismo que, com a

própria República federativa, ele se robusteceria nas

oligarquias estaduais sem se esvaziar no governo

central. Isto é: ele correria solto no Federalismo.

Justamente porque persistiu a estrutura de auto -

ridade condenada por Cipriano Barata.

O rompimento dessa estrutura de autoridade,

ainda hoje, se faria conseqüência do processo de

desenvolvimento, com a diversificação racional dos

grupos sociais, mais autônomos e conscientes, excluindo

privilegiamento abusivo de qualquer deles.

Nessas condições, admirável se apresenta o

projeto político utópico do ideólogo radical.

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Mobilizando os valores avançados do seu tempo,

surgia na arena política como um antecipador do que

melhor convinha ao país. Demorava-se na dimensão do

futuro-presente. Um profeta. Um precursor.

NOTAS

(58) O Doutor Barata. Imprensa Oficial do Estado, Bahia, 1938,

p. 1-2.

(59) Ibidem, p. 2.

(60) Ibidem, p. 2-3.

(61) Ibidem, p. 3.

(62) Ibidem, p. 13.

(63) Ibidem, p. 5.

(64) Ibidem, p. 17.

(65) Ibidem, p. 18-23.

(66) CARVALHO, Alfredo de. “Os Motins de Fevereiro de

1823”. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico

Pernambucano, Vol. X, p. 14-15.

(67) CASCUDO, Luís da Câmara, “O Doutor Barata”. Bahia,

Imprensa Oficial do Estado. 1938. p. 28-29.

(68) Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos.

(69) “Frei Caneca: A Luz Gloriosa do Martírio”. In: Corpo do

Tempo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1976, p. 129.

(70) Doc. cit.

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(71) CUNHA, Pedro Octávio Carneiro da. In: História Geral da

Civilização Brasileira, Tomo II. “O Brasil Monárquico”, 1º Vol.,

p. 177. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.

(72) Ibidem.

(73) Ibidem.

(74) Ibidem.

(75) Ibidem.

(76) Ibidem.

(77) Ibidem.

(78) Ibidem.

(79) “A Experiência Republicana”, 1831-1840. In: História

Geral da Civilização Brasileira, II. O Brasil Monárquico. 2. São

Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967, p. 10.

(80) “Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco”, 26 de

abril de 1823.

(81) Ibidem.

(82) Suplemento à Sentinela da Liberdade, 3 de maio de 1823.

(83) Sentinela da Liberdade, 10 de maio de 1823.

(84) L’Ideologie libérale. Paris, Anthropos, 1970. p. 110.

(85) Sentinela da Liberdade. 10 de maio de 1823.

(86) Ibidem.

(87) Ibidem.

(88) Sentinela da Liberdade, 14 de maio de 1823.

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(89) Ibidem.

(90) Sentinela da Liberdade, 17 de maio de 1823.

(91) Ibidem.

(92) Ibidem.

(93) Sentinela da Liberdade. 14 de junho de 1823.

(94) “As duas faces da ‘Conciliação’ ”, entrevista. In: Caderno

especial do Jornal do Brasil, 10 de outubro de 1976.

(95) Sentinela da Liberdade, 14 de junho de 1823.

(96) Le Príncipe Espérance, I. Paris, Éditions Gallimard, 1976,

p. 239-241.

(97) Sentinela da Liberdade, 14 de junho de 1823.

(98) Ibidem.

(99) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.

(100) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.

(101) VENTURI, Franco. Utopia and Reform in the Enligh-

tenment. Cambridge, Cambridge University Press, 1971, p. 80.

(102) Sentinela da Liberdade, 8 de outubro de 1823.

(103) FERREIRA, Waldemar. História do Direito Brasileiro. Rio,

Freitas Bastos, 1951, v. 1, p. 152.

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3. A OBRA DOUTRINÁRIA

DE FREI CANECA

Formulação ideológica em níveis sobrepostos.

O encontro da teoria com a praxis

Constrói Frei Caneca um pensamento deveras

plantado na circunstância, e com vistas à sua modi-

ficação, utilizando, é verdade, materiais doutrinários

importados, mas, no esforço de interpretá-la, de sugerir-

lhe guias valorativos, acolhe dela Projeções, produzindo

um sistema ideológico autônomo.

Daí resulta um discurso de níveis sobrepostos. No

sentido de um conglomerado de perfis doutrinários, ou

de influências de autores, como os do Iluminismo, com

os seus diversos matizes, e os do Liberalismo pro -

priamente dito, entre fins do século XVIII e as duas

primeiras décadas do século XIX, em suas várias rami-

ficações, o Jusnaturalismo, maxime o de Pufendorf, o

Constitucionalismo de Montesquieu, de Locke, o Fede -

ralismo americano.

Tal a parte mais saliente, acrescentando-se ainda

o procedimento iluminista de apelo ao humanismo

greco-romano, à Antigüidade clássica.

O que suscita um nível teórico e estratégico com

ampla autonomia de manipulação, principalmente no

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que diz respeito à uma concepção de história e à uma

técnica de justificação ética.

Mas não se deve omitir uma postura pro fético-

crítica, fundada num conceito peculiar de Cristianismo ,

que nasce com a Reforma e se desenvolve no

Liberalismo.

Por fim, cabe enfatizar um patamar ideológico

vigoroso ainda do período e originário da Retórica, e

responsável pelo arbítrio e pelo autoritarismo de juízos.

E até mais, com considerável aspecto da postura

ideológica caneciana.

O desempenho panfletário do carmelita em exa-

me, em que mais se articulam os ditos níveis, contém,

de modo preponderante, o grande influxo da circuns -

tância. Quando o teor ideológico mais ganha identidade

própria.

Está-se diante de um pensamento caracteristica-

mente circunstancial.

E com um significado todo especial.

Aquele que se elabora em função do aconte-

cimento, da conjuntura.

Toda a coloração doutrinária exposta, se não é

algo diretamente condicionado pelo evento ou pela

trama factual, com vistas à racionalização em termos

valorativos de um momento histórico, de suas ten-

dências, de seus grandes objetivos, representa, segundo

as projeções do espírito liberal de então, uma su-

perposição do dado valorativo, do juízo político, da

proposição filosófica, da expressão retórica, da narrativa

histórica, sobre o acontecimento ou sobre a conjuntura.

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Tal como se fazia na objetivação racionalista do

Liberalismo, com os complementos derivados da origi-

nalidade do autor. De uma ou de outra forma, não perde

a nota de pensamento ideológico. Em função mesmo do

engajamento político na circunstância.

Importante o destaque que se deve dar, malgrado

a superposição referida, ao realismo que daí provém, à

uma mais aguda observação, à melhor possibilidade de

alcançar a verdade ínsita no processo histórico.

Assim, passava a ocorrer maior aproximação

entre as contingências que se desenhavam na vida

política, na esfera sócio-econômica, e as expressões, os

significados traduzidos na linguagem.

Por isso, tem-se em Caneca um pensador que

prega um liberalismo mais coerente com a realidade

brasileira.

Afirma-o com agudeza Silvio Romero.

E atualmente José Honório Rodrigues, ao se

referir ao seu “nacionalismo caboclo”.(105)

Valorizou a história do Brasil. Nela, freqüen-

temente, haurindo justificativas para as suas teses.

Exemplo: sustenta que os brasileiros, ao longo da

evolução histórica do país, formaram “um espírito de

independência, de insubordinação e de liberdade

extrema”.(106)

Como bom iluminista, recorre à história,

juntamente com a autoridade e com a razão, como fonte

demonstrativa de suas argumentações. Tal se registra

claramente ao mostrar “que a Pátria de Direito é

preferível à Pátria de lugar”.(107)

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Ele mesmo foi historiador, deixando o ‘Catálogo

dos Bispos de Pernambuco e dos Governadores que

existiram no mesmo tempo”.

Além dessa obra, refere o Prof. José Antônio

Gonsalves de Mello à outra. Seria a “História da

Província de Pernambuco”, perdida, comprometida

politicamente.(108)

Não há como evitar o registro de que a sua

pregação liberal ao calor da refrega política ativíssima

que assinalava o momento histórico, despertava-lhe um

sentido de temporalidade que punha o presente em

tensão entre o passado e o futuro.

Tem da história uma perspectiva de engajamento.

Está constantemente a racionalizar “situações”,

tomando partido e influindo com a sua elaboração

doutrinária na marcha dos acontecimentos.

Isso daria um enfoque ideológico a grande parte

de sua produção intelectual, notoriamente a panfletária.

A conotação ideológica, a reiterada fidelidade aos

temas liberais no púlpito, nos escritos, nas escaramuças

políticas, expressam um sentido particular da obra de

Frei Caneca. Ele desautoriza a crítica de imparcial ao

heróico frade porventura atribuída, segundo a concepção

clássica. Não “construiu” uma filosofia nos moldes tra-

dicionais, descompromissada do trabalho de modifi-

cação da realidade concreta, até dela afastada. A crítica

que exerce sobre o momento político é engajada, como

imperativo inarredável de então. Porque, mesmo as que

se pretendem “neutras” e nem de longe envolvidas

diretamente pelos eventos, não guardam isenção com-

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pleta. No fundo, externam uma convicção ideológica.

Exemplo: a obra de Silvestre Pinheiro Ferreira, o teórico

do liberalismo centrista entre nós.

Caneca faz ideologia. Mas uma ideologia sui

generis. A do participante dos acontecimentos, dos

episódios marcantes do período em que viveu. Assume o

perfil ideológico do liberalismo radical a partir de

Cipriano Barata, imprimindo-lhe fisionomia nova, mercê

de teses originais, de um embasamento filosófico,

epistemológico, de conformação particular.

A linguagem virulenta do panfletário oposi-

cionista, que se ergue de imediato e prontamente contra

decisões ainda quentes do governo, sobrepõe outra

linguagem: a do erudito versado no humanismo clássico,

na doutrina canônica, no iluminismo avançado, na

moderação do constitucionalismo de Montesquieu, na

teoria de Locke, na lição dos federalistas americanos. E

como constituindo uma exposição à parte. Nesse

segmento, pode-se detectar algo mais sofisticado, mais

refinado. Como se tratasse de uma dedução estritamente

teórica, “descompromissada”, nela se verificando o

encadeamento das teses doutrinárias e das ilustrações

humanísticas apanhadas nos clássicos.

Nesse ponto, nota-se a filiação filosófico-ideo-

lógica, a concepção do mundo, os valores concernentes

a uma Antropologia típica do Iluminismo.

Concerne a uma espécie de introdução ao que se

segue, a descida vertical nos acontecimentos, na con-

juntura política, desferindo os seus ataques contra o que

julga despótico, opressivo, anti-constitucional etc.

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É preciso convir que essa justaposição de partes

distintas na seqüência do discurso caneciano, não afeta

propriamente a unidade do pensamento.

Apenas a linguagem sofre uma inflexão,

procurando colher o circunstancial. E de um modo que

atinja o seu objetivo primacial: não fazer doutrina pela

doutrina, não comentar ou reconstituir aspectos

relevantes ou a visão global de sistemas, de tendências

filosóficas, de ideologias.

Nisso, ele parece seguir um procedimento típico

do período, qualquer que seja a ideologia adotada.

Por ora, basta atentar para a relevância doutri-

nária que cercava as linguagens políticas de então: a

panfletária, a retórica, a parlamentar. Tal comprova que

a linguagem circunstancial alcançava a generalidade dos

homens públicos, dos periodistas de um extenso período

da história brasileira. Dos publicistas mesmo.

Não há dúvida que Caneca aprofundou essa

metodologia.

Ativou-a a ponto de tirar da circunstância, do

acontecimento, lições morais e guias de ação, perfis de

elaboração doutrinária autônoma

Haja visto a teorização que faz em torno do Poder

Moderador. Na doutrina deste insere muito das nossas

realidades, correlacionando-as com as raízes doutri-

nárias do processo político que vinha da Colônia. De

sorte que a doutrina do Poder Moderador se adapta à

circunstância brasileira.

Quer dizer: anota tal excrescência constitucional

no corpo da fundação do Estado nacional entre nós

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dentro de uma obra de recondicionamento político que

macula o liberalismo a serviço da tradicional estrutura

de autoridade.

Voto de Frei Caneca, apresentado por escrito à

Câmara municipal do Recife, expressa-o muito bem:

“O poder moderador de nossa invenção maquiavélica é a

chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote

mais forte da liberdade dos povos. Por ele o Imperador

pode dissolver a câmara dos deputados que é a

representante do povo, ficando sempre mo gozo dos seus

direitos o senado, que é a representante dos apaniguados

do Imperador. Esta monstruosa desigualdade das duas

câmaras, além de se opor de frente ao sistema, que se deve

chegar o mais possível a igualdade civil, dá ao Imperador,

que já tem de sua parte o senado, o poder de mudar a seu

bel prazer os deputados, que ele entender, que se opõem

aos seus interesses pessoais, ficando o povo indefeso nos

atentados do imperador contra seus direitos, e realmente

escravo, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo

da desgraça...”.(109)

Como se vê, vincula o Poder Moderador ao cerne

mesmo da vida política do país. E daí extrai linhas de

ação políticas ao longo da sua obra.

Exemplo de que o produto doutrinário estrangeiro

sofre recondicionamento ao aqui chegar, mercê do

imperativo de harmonizá-lo com a realidade nacional.

É que a teoria do Poder Moderador se inclui no

sistema de direito constitucional de Benjamin Constant,

publicista francês. E no dito processo de recondicio-

namento parece que Caneca vai mais longe do que

outros ideólogos do seu tempo.

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Porque do próprio acontecimento ele deduz a

doutrina, sem perder de vista a radicalidade da fonte

importada.

Quer dizer: exprobra os desvios do modelo cons-

titucional, o malferimento das liberdades coletivas, o

descumprimento da norma legal, os surtos de auto -

ritarismo ocorrentes no momento, conservando os cri-

térios ideológicos, os grandes perfis conceituais do

Iluminismo e do Liberalismo.

Mas a fidelidade às origens doutrinárias impul-

siona-lhe a acrescentar algo mais no quadro do seu

pensamento.

Trata-se de um plus que se produz ao encontro da

filosofia esposada com a análise conjuntural.

No final, obtém-se uma unidade ideológica que

acolhe aquela superposição de segmentos – o da ideo-

logia pura e o da racionalização do episódio – apre-

sentando-se original, enraizada na circunstância, desta

ganhando novo matiz.

E, provavelmente, a radicalidade ideológica induz

a tanto. Justamente porque ela encerra grandes motiva -

ções para o despertar de uma consciência crítica.

Não evidentemente no mesmo nível da de hoje.

Mas, sem dúvida, ela é plena de sugestões de devas-

samento, de prospecção da realidade circunstancial.

Apenas ainda não se capacita, em virtude da

indigência do instrumental metodológico e da ausência de

uma teorização forrada em bases epistemológicas seguras,

a deter-se analiticamente na consideração dos movimentos

sócio-econômicos e políticos de caráter estrutural.

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O Iluminismo que, nesse ponto, fornecia à Caneca

os recursos epistemológicos e conceituais, não o

permitia, a despeito de ser o instrumento analítico que

mais longe ia nesse trabalho.

A radicalidade iluminista é, apesar de tudo, um

poderoso estímulo de elaboração crítica da realidade.

Assim, se explicita a qualidade crítica super ior do

liberalismo radical, face ao liberalismo centrista.

É que, diante do cuidado de fortalecer a auto -

ridade, de aparelhar o Estado com instrumentos que lhe

ensejasse a melhor operacionalidade de suas ins -

tituições, de seus objetivos, tendia o poder central a

esvaziar a força crítica do liberalismo. Principalmente

quando, no caso brasileiro, confluía com a corrente do

tradicionalismo político, do autoritarismo.

A tradição absolutista na metrópole e na Colônia,

presente também em vertentes ideológicas propul-

sionadoras da ação violenta, como nos episódios da

reação miguelista em Portugal e das revoluções

abrilistas e pró-restauração de Pedro I no Brasil, todos

eles instigados pelo colunismo, constituía forte entrave,

sólida barreira, ao desenvolto desempenho libertário.

Para o que contribuía a inexistência de classes, gerando

o monopólio dos papéis político-sociais e econômicos

pelos grandes proprietários.

A radicalidade, que está na base do pensamento

caneciano, resulta da transposição do limitado e fechado

enfoque autoritário, alcançando o âmago da circuns-

tância. Não importa que ela fuja ao espírito de sistema.

O que importa é extrair do julgamento caneciano sobre

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instituições, episódios e comportamento de camadas

sociais, de líderes políticos, um discurso coerente que,

na sua fluência, edifica critérios de orientação, de

filosofia política, de prática social, de política religiosa,

os quais, na verdade, constituem um pensamento.

Nem se diga que, por não ter levado às últimas

conseqüências as vigas mestras do seu discurso, omitiu-

se ou deixou de dar uma visão racional de fundas

conotações axiológicas, morais, do quadro político e,

mais do que isso, do quadro conjuntural de um período

agitado e turbulento da vida nacional.

A circunstancialidade dos seus escritos, produ-

zindo aquela coloração ideológica própria e autônoma,

tornou viáveis, através de uma postura lógico -

epistemológica determinada, uma prospectiva, rica e

significativa, uma amplitude tendencial de suas co -

locações, uma análise valorativa dos fa tos e das

conjunturas, que têm muito de teorização específica da

Filosofia da História.

Não o acuse também de omisso na formulação de

conceitos-chaves. O que se faria no seio do “Ecletismo

Mitigado” de Silvestre Pinheiro Ferreira.

Tal, por exemplo, o conceito de pessoa humana.

Não pretendeu, como afirmado antes, o frade

carmelita fazer uma reflexão filosófica na linha do

aprofundamento sistemático de conceitos, acabando num

“modelo” cujas partes se articulam entre si por força do

rigor lógico-epistemológico, pelo propósito de desen-

volver exaustivamente proposições em função do

modelo.

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O tipo de reflexão desenvolvido por Caneca é

outro. Ele escreve ao sabor das circunstâncias, dos

acontecimentos políticos, das crises provinciais e

nacionais. Volta-se para a evolução conjuntural de

Pernambuco. Daí a variedade dos seus escritos, no

gênero e na temática.

São sermões, o tratado de retórica, o periodismo,

o relato de expedições militares, a descrição histórica

etc. Tudo sem o encaixe harmonioso na arquitetura do

conjunto.

Quer atender a imperativos do momento em que

escreve. Quase se poderia dizer que Caneca é o pe-

riodista por excelência. Aquele que está sempre

descrevendo fatos emergentes, conjunturais se armando,

eventos marcantes do cotidiano. E o faz no estilo da

Imprensa do tempo, de mistura com a elaboração

doutrinária, com juízos de valor que se articulam

coerentemente entre si, formando uma linha de

pensamento.

As considerações expendidas até agora autorizam

a afirmação de que há na obra caneciana algo de muito

original.

E concerne à correlação que estabeleceu entre

teoria e praxis.

Porquanto o caráter circunstancial dessa obra,

levando-a a privilegiar o acontecimento, lhe atribui um

sentido de praxis inerente, senão ao conhecimento, pelo

menos aos valores liberais, aos do humanismo

iluminista, suscitando a conseqüente aplicação prática

deles.

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E isso tudo no meio de intenso teor de mo -

ralidade.

Lógico que é uma praxis que não alcança a

plenitude do real, dadas as imitações do conhecimento

da sociedade global e a não constituição epistemológica

das ciências humanas.

Todavia, dentro do quadro de pensamento, no

qual se destaca a superposição, com o desnível da

doutrina e do evento, em função de acentuado volun-

tarismo se desenha uma praxis específica. Esta vai

assumindo diferentes planos, ora de maior, ora de menor

densidade, segundo o estilo que adota: o polêmico -

contestatário, o retórico, o do publicista etc.

Em todos eles fica claro o alcance prático.

O projeto político que propõe ao Brasil é de-

monstração objetiva de sua concepção de praxis.

Aí está uma Constituição que oferece um novo

aparelho político-institucional.

Trata-se de um documento que, não obstante

proposto por ele, foi redigido por “uma sociedade de

homens de letras”.(110)

É um “pacto-social” que redimensiona o

problema da autoridade, contendo salvaguardas contra a

opressão.

Por aí se vê o cuidado de se preservar as

liberdades, os “direitos naturais, políticos e civis”, numa

definição manifesta de que o grande objetivo político é

o aniquilamento do autoritarismo. Assim, se patenteia a

visão objetiva de uma realidade sócio-política que deve

ser vencida. E através do remédio legal.

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Isso vem denunciar justamente um tipo de

relacionamento teoria-praxis, haurido nas fontes

iluministas.

Os enciclopedistas franceses, numa linha dou-

trinária que remonta a Newton, infensa em tudo à

construção de “sistemas”, explicam já a tônica sobre o

circunstancial, sobre o real.

Não acentuam mais a dedução a partir de uma

certeza fundamental, na verdade uma hipótese abstra ta

que desceria até o âmago do Ser, possibilitando a

integração dos elementos mediatizados por ambos os

momentos.

Surge agora outra concepção de filosofia, mais

dinâmica, mais abrangente do real. E justamente

tomando por modelo a ciência natural.

Então, vem a campo o problema da instauração de

novo método. Acolhe-se aquele estipulado nas regulae

philosophanti de Newton.

E a nova postura metodológica opera uma

verdadeira revolução no campo do pensamento.

Não mais se começa sublinhando conceitos

fundamentais, premissas absolutas, princípios axiomá-

ticos, para, por intermédio da dedução , chegar ao

factual, ao particular. Inverte-se a orientação.

Qual o resultado desse procedimento?

Perdem os princípios elevada dose de abstração,

porquanto eles são assentados agora após a apreciação

detida dos fenômenos, dos dados, a conseqüência destes.

Dessa forma, supera Newton a oposição entre

“experiência” e “pensamento”. Não se pode mais falar

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numa distinção taxativa, numa separação absoluta entre

o “pensamento puro” e o “fático puro”.

Essa atitude metodológica logo é abrigada por

enciclopedistas como D’Alembert, Condillac, Voltaire,

Condorcet etc.

Pretende-se a conciliação fecunda entre a

positividade e a racionalidade.

A “razão’ não se a apreende como um princípio,

uma norma, proposta anteriormente aos fenômenos,

aprioristicamente posta. Há estreita vinculação entre

ambas. E no terreno da própria imanência. É evidente a

presença do fantasma da abstração alienada. Quer-se

extrair a lógica dos próprios fatos. Depois da análise

detida e demorada dos fenômenos é que o investigador

reúne condições para, dirigido pelo movimento

fenomênico, estabelecer a lógica precisa. E mais do que

isso: a verdade.

Ora, tal implica numa reformulação do rela -

cionamento entre sujeito e objeto. Conseqüentemente

entre teoria e praxis.

Ernst Cassirer ensina a respeito:

“La nueva lógica que se busca, y con respecto a la cual se

está convencido que se encontrará siempre en el camino

del saber, no es la lógica de los escolásticos ni la del

concepto matemático puro, sino mejor la ‘logica de los

hechos’. El espiritu tiene que abandonarse a la plenitud de

los fenómenos y regularse incesantemente por ellos,

porque debe ser seguro y, lejos de perderse en aquella

plenitud, encontrar el ella su propria verdad y medida. De

este modo se alcanza la auténtica correlación entre

‘sujeto’ y ‘objeto’, de ‘verdad’ y de ‘realidad’ y se

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establecer entre ellos la forma de adecuatión de

correspondencia, que es condición de todo conocimiento

cientifico”.(111)

Com efeito, daí parte uma reformulação completa

da filosofia, agora com novo enfoque lógico-

epistemológico.

E o argumento central desse enfoque é a cons-

trução do conceito de razão. É um conceito operacional.

Resulta de um fazer. Não é um conceito de ser.(112)

Reorientado o relacionamento sujeito-objeto,

também o será o relacionamento teoria-praxis.

Toda a filosofia do Iluminismo passa por essa

revolução epistemológica.

Mas não se conclua daí que tenham os pensadores

iluministas chegado à exaustão total do problema. Muito

ainda se teria que fazer para se atingir a concepção

contemporânea de praxis. O que só se dará com o

advento da dialética hegeliana. Se bem que Kant

houvera lançado os fundamentos de uma dialética que

seria desenvolvida por Hegel. Pois justamente Kant

estabelecera os conceitos básicos da teoria crítica do

conhecimento de modo rigoroso. E a partir do

acabamento da dedução transcendental no “eu penso”,

campo da unidade sintético-originária da apercepção.

Mas a influência do modelo newtoniano afetará

substancialmente a reflexão do pensador de Konisberg,

como a dos outros pensadores do período iluminista.

Isso porque, malgrado o pensar sobre a história

entre vários deles, colocando-a como eixo das inves-

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tigações sobre a sociedade, o direito, o homem, o

Estado, advêm as conseqüências prejudiciais daquele

método analítico-sintético.

A concepção de história aí subjacente é deveras

incompleta.

Faltou aos pensadores do período a consciência

da necessidade de uma construção epistemológica a

partir da realidade específica da história, da realidade

humana. Obra que caberia a Dilthey, neokantiano, fazer,

seguindo a inspiração do método crítico de Kant. Pois

só aí seria elidida uma separação injustificável entre o

mundo inteligível e o domínio do sensível.

Veja-se i impasse a que chegou a filosofia da

história de Kant por ter reproduzido aquela separação.

Ela incide na pura especulação, a despeito do que

inovou na ordem do relacionamento teoria-praxis. E tal

ocorre no próprio campo de Filosofia da História, que

conservando embora certo teor de especulação, limitava

os seus altos vôos, renunciando a atingir o sentido

último da evolução, como expressa bem Raymond

Aron.(113)

A filosofia kantiana da história se estrutura no

ensaio Idéia de uma História Universal de um ponto de

vista cosmopolita, vinda a lume em 1784.(114)

Distingue, de início, o filósofo alemão, entre

manifestações fenomenais, nas quais se inserem os

próprios atos humanos compartilhando da natureza, e

leis naturais de caráter universal.

É uma distinção que, de logo, assume uma

importância fundamental.

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Trata-se de uma dedução que promoveu ao longo

da Crítica da Razão Pura, ao separar o mundo inteligível

do mundo sensível.

Clara a transposição para o plano da Crítica da

Razão Prática, porque ela já entende com o conceito de

liberdade da vontade.

Está-se diante de um princípio a partir do qual se

desenrola a explicação kantiana da história.

Ele permite uma tomada de posição peremptória a

respeito dos eventos, considerados isoladamente, na sua

singularidade.

Compõem tais eventos dados sensíveis que, nessa

qualidade, não são passíveis de interesse pelo filósofo

da História.

Apenas mediante aquelas leis universais, autên-

ticas formas, alcançam dignidade epistemológica.

Assim, o conteúdo da História não merece, no

plano em questão, a atenção do investigador.

Acentue-se, porém, que as ditas leis universais

resultam da descoberta de um curso regular das mani-

festações fenomenais.

Como se faz essa descoberta?

Através daquilo que, mais tarde, Hegel chamaria

de astúcia da razão. Ou através do “jogo da liberdade

da vontade humana na generalidade”.(115)

Não importa o desconhecimento das causas dos

fatos.

O importante, realmente, é a constatação de uma

constância no desenrolar dos eventos, que não provém

da realidade externa, mas de disposições originárias dos

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indivíduos. Constância que se esboça no desenvol-

vimento contínuo dessas disposições.

Aqui Kant já deixa pressupor uma prevalência das

atitudes e dos atos individuais sobre a realidade

fenomênica.

Ou, em outras palavras, a ascendência do eu, das

suas iniciativas de fundo ético, sobre o plano da história

objetiva.

Duas inferências podem ser tiradas dessa

colocação.

A primeira: o relevo que toma o dado estatístico,

como configurador de leis naturais universais.

Cita Kant o exemplo dos casamentos, os quais,

em qualquer país, submetem-se a uma certa causalidade,

impossível de determinar nas minúcias, mas possi-

bilitando, no conjunto, leis naturais, uma regularidade

de manifestações.

Em segundo lugar, uma reformulação da relação

teoria-praxis.

Nesse ponto, merece destaque o contributo

valioso de Francisco Javier Herrero.

Considerando que “la práctica sólo tiene sentido,

valor y realidad efectiva en la medida en que surge del

concepto de deber”, mostra que em Kant “este deber

contiene los principios que possibilitan y prescriben la

praxis”.(116)

Tais princípios são as mesmas disposições origi-

nárias. O homem é sujeito da lei moral. Nisso ele guarda

a sua autonomia. Orienta-o o dever, por essência tenden-

cial, concitando-o a encarnar na História a razão, o Ser.

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Por esse ângulo Kant abre novas possibilidades

para a praxis.

Como sumamente esclarecedora a palavra de

Herrero, convém retomá-la.

Na verdade, o filósofo de Konisberg renovou o

significado dos conceitos de teoria e de praxis.

Agora, o caso não é apontar uma teoria pre-

cedente à prática. Nem isso se põe no contexto crítico

de um circunstanciamento histórico, do qual trans -

pareceriam motivos para uma nova fase da prática.

Também não se trata de incorporar os resultados da

ciência à ética. Há necessariamente que correlacionar a

praxis do homem, posta em dimensão completa, a um

fundamento: o da razão prática, vista como liberdade

agente. Compartilha a praxis, mesmo da teoria “en

cuanto ésta es inherente a la consciencia misma e acción

moral, en cuanto es um deber realizarla inte -

gramente”.(117)

Percebe-se, contudo, que o dever se mant ém

condicionado à liberdade da vontade. E esta, eviden-

temente, não se orienta sempre na direção do dever. Os

homens agem, na sua maioria, desatentos ao imperativo

categórico. E há sempre oposição entre eles no tocante

às intenções. Pois cada um cumpre a sua separadamente,

não se preocupando com as dos demais. E até povos

inteiros procedem assim.

No entanto, existe um desígnio oculto da natu-

reza, que leva todas essas ações, muitas vezes con-

traditórias, a, inconscientemente, se harmonizarem no

sentido de um propósito. É que Kant situa os homens

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num plano de ação intermediário, numa posição entre os

animais e os “cidadãos racionais do mundo” que seguem

um projeto determinado.

Quer dizer: agem como obedecendo aos seus

interesses, ambições etc., no meio dos quais a

racionalidade pouco aparece.

Assim, não reúne o filósofo condições para

presumir um particular objetivo racional nos homens.

Resta-lhe somente ensaiar captar um desígnio da

natureza no transcorrer absurdo das coisas humanas, a

partir do qual se faça viável uma história que se curva a

um determinado plano da natureza, a respeito de

criaturas que agem sem plano próprio.(118)

Depreende-se daí a não valorização devida do

indivíduo, prosseguindo a linha da filosofia do

Iluminismo.

Sustenta Emilio Estiú que Kant não atribui vali-

dez às diferenças existentes entre os indivíduos, mas

sim ao fator racional que as pervade e as torna

homogêneas.

Em atinência com a concepção que tem do rela-

cionamento teoria-praxis, não vê a humanidade como

um todo dos homens, como um conjunto simples de

pessoas habitando os diversos países.

Isso seria considerá-la numa postura estática.

Kant tem da humanidade uma visão dinâmica,

como uma totalidade, como uma associação universal

dos homens engajados numa tarefa comum. E esta

consiste na realização das possibilidades infinitas e

indeterminadas que emanam da razão.

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Na razão se localiza o mais elevado valor, ao qual

inerente a universalidade, correlativa da racionalidade.

Um acontecimento, uma iniciativa particular re-

vestem-se de valor ao representarem o universal.

Assim, compreende-se logo a escassa importância

que Kant atribuía à história factual. Via nela uma

simples crônica.(119)

Nisso ele se contrapõe radicalmente ao atual

entendimento da Teoria da História, unânime na

valorização dos eventos, pelo que têm de individual,

quer postos destacadamente, quer construindo uma

“situação”, que configura uma “estrutura” única.

A universalidade que nelas existe é inerente

mesmo a essa singularidade.

Tal, entre outras, a exegese de José Antônio

Maravall, historiador espanhol, para quem “es en esos

conjuntos que englobam um gran número de datos

donde, lejos de descubrir uma generalización, ha llamos

lo individual que caracteriza el objeto de la

História”.(120)

Nessas condições, pode o historiador detectar um

sentido, uma tendência ou tendências daquelas estru-

turas, independentemente de apriorismos sobreimpostos

aos fatos.

É ele movido pela observação dos determinismos

sociais e das ações das grandes personalidades.

Embora impossível a exclusão dos valores, a

interferência da subjetividade no trabalho do histo -

riador, este, contudo, se norteia, numa postura cien-

tífica, pelos dados colhidos da t rama causal de cada

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estrutura histórica. No campo em exame, só se pode

falar em generalização com uma conotação particular,

restrita à especificidade do objeto.

Daí a crítica justa de eminentes historiadores

contemporâneos, que expressa a inviabilidade, em ter-

mos científicos, de uma história universal.

Lógico que a concepção da história de Kant induz

a afirmação de que o sentido, uma regularidade na

evolução factual, seriam elaborados pelo filósofo e não

pelo historiador.

Analisando essa posição, Henri Marrou de-

monstra a possibilidade de coexistência “de lois ou de

principes généraux expliquant réellement le compor-

tement humain dans le temps”, e “la validité de cette

expérience directe du passé, de cette connaissance

singuliére, que représente l’histoire , que conservarait sa

valeur propre, son niveau spécifique d’inteli-

gibilité”.(121)

Como se vê, em Kant a Idéia se sobrepõe à

história concreta.

Sendo a Idéia os conceitos racionais, compondo o

mundo inteligível, não há como se materializar na

experiência.

Eis que o destino do homem se revela como uma

Idéia, sobreposta, e distanciada dos fatos empíricos, das

obras concretas, urdidas ao longo da história.

Nesse passo, mais uma vez se evidencia o en-

tendimento kantiano a respeito da teoria e da praxis.

Pois somente os indivíduos correlacionam de modo

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consciente a razão e o dever, que é ação que imprime

sentido à teoria, à mesma razão.

Esta alimenta a liberdade da vontade, inerente ao

dever. Agora se retoma o ponto nuclear dessa inves-

tigação, tal como explicit ado de começo, na colocação

do problema.

Preciosa novamente a informação de Herrero,

aprofundando o mesmo ponto.

Escreve ele:

“Si la razón no puede determinar lo real que le es dado ni

encontrar la realidad que corresponde a su necesidad de

determinación absoluta, ahora se le abre la posibilidad de

producirlo. Para encontrarse a si misma y llegar a su fin,

la razon debe hacerse práctica”.(122)

É aí, com efeito, que se dá a união da razão

teórica e da razão prática.

E se pode dizer que é a partir dessa união que se

torna possível o novo dimensionamento da relação

teoria-praxis.

Porém não logrou o grande filósofo realizar de

modo plenamente satisfatório aquele novo dimen-

sionamento. Não o logrou em virtude mesmo de sua

concepção da história.

É que, descartando, como se anotou, as indi-

vidualidades históricas, as particularidades concretas

dos povos numa dimensão temporal, forçosamente teria

de evitar o problema do relacionamento entre “la

individualidad de los hombres y los pueblos, por uma

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parte, y la universalidad del todo de la historia, por la

outra”.(123)

E aí se esclarece a comunidade doutrinária entre

Kant e os outros filósofos iluministas.

No terreno da filosofia política, então, notória e

identidade de concepções entre Kant, Rousseau,

Montesquieu e outros.

Daí ser interessante a recapitulação do ponto de

vista do pensador alemão sobre importante aspecto do

ideário político.

Trata-se do Estado, cujo papel é deveras saliente.

Antes da presença do Estado, havia um abismo

profundo entre a Idéia e a realidade.

Ele vem justamente possibilitar o enlace entre os

dois reinos.

Através dele viabiliza-se a passagem ou a

ascensão da realidade à Idéia, conforme sublinha Emilio

Estiú.

Ao Estado, pois, está reservada uma grande

missão.

E ele cumpre essa missão em virtude de com-

portar na sua estrutura elementos dos dois reinos.

Com efeito, participa concomitantemente da Idéia

e da realidade: “Tiene um origen empirico, fundado en

el poder, y uma finalidad moral, concretada en el

derecho y la justicia”.(124)

Assim sendo, o Estado encarna a possibilidade de

a Razão se apresentar, de fato como unidade.

Ele encaminha o enlace da razão teórica e da

razão prática.

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Porque, articulando a eticidade e as propensões

naturais, arma as condições do progresso.

Kant situa o Estado na raiz da realização

progressiva do sollen.

Surge como um princípio absolutamente

incondicionado do dever: “Il dovere di passare dallo

stato di natura allo stato civile”, observa Michele

Barillari.(125)

Dá-se nesse passo a transição da matéria à forma,

a qual se põe sob a tutela de um princípio prático da

razão.

Tal salienta peremptoriamente e normaliza a

adesão e a obediência à uma vontade legislativa geral.

A lei encerra o dever de submissão à uma vontade

superior, o contrato.

Indica uma atitude de transcendência, porquanto

não parece estabelecida pelos homens, mas por um

legislador supremo e infalível.

Em Kant persiste o substrato ultra-jurídico do

princípio segundo o qual toda autoridade provém de

Deus.

Como assinala Barillari, identifica-se aí a mesma

posição de Aristóteles, que na “Política” levanta uma

questão profunda da relação psico -social entre comando

e obediência, a qual relação adquire o valor de lei

natural.

Nisso transparece uma supremacia sacra a

imutável, representada como unidade do mundo moral e

assegurando ao contrato uma nota ideal, estritamente

ideal.

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Assim, faz-se mais compreensível a qualificação

moral da política.

Enfatizando o contrato como pura idéia da razão,

assume ele o critério de valorização por excelência,

servindo para distinguir as leis injustas das justas.

Também encerra o ideal de uma constituição

política, diante da qual devem curvar-se os súditos.

Mais ainda: leva os governantes ao dever de

adaptarem gradativamente os diversos Estados

concretos. E, naturalmente, na medida em que se for

realizando a idéia do Soberano Bem Político ínsita

naquele contrato.

Inferência lógica é a presença constante na

filosofia kantiana da história do que se poderia chamar

de normativismo.

Trata-se de uma manifestação típica do

Jusnaturalismo presente nos pensadores do período.

Isso é que faz Kant formular um tipo de

pensamento racionalista.

Não entronca aí a tradição jusnaturalista,

sobressaindo-se com Pufendorf, e tão presente em

Caneca. Não é evidente nos iluministas a qualificação

oral da política?

O normativismo também se faz presente.

O papel do Estado como um instrumento

transcendental.

Nele se associam experiência e finalidade moral.

Manifesta a herança rousseauniana: o dever de

caminhar do estado de natureza para o estado civil, e

com o acréscimo de Kant, através do Estado.

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O grande problema está na passagem de um

princípio, de um mundo inteligível, para o interior da

realidade objetiva, temporal.

Parece que o impasse, que tranca o acesso à

praxis, decorre justamente da insuficiência do método

analítico-sintético visto, malgrado o enriquecimento da

relação teoria-praxis com Kant.

E, na verdade, subsiste o modelo cartesiano que

procria premissas absolutas, axiomas, princípios in-

dependentes da experiência, conceitos-guias da prática.

O que resulta numa superposição da teoria sobre a

praxis, no bloqueio da realidade concreta, grandemente

inacessível no desdobramento dos seus processos

imanentes, nos encadeamentos factuais.

Ora, o que se infere daí senão a enfatização do

normativismo, do moralismo, do legalismo?

Clarifica-se, dessa forma, aspecto relevante da

postura caneciana.

Ela ainda se prende à concepção iluminista, de

conformidade com a qual a norma resolve todos os

problemas. E que a sua aplicação é automática. Persiste

nela a superposição da teoria sobre a prática. O

legalismo é o mesmo compartilhado pelos autores da

época.

Isso, porém, é temperado, é amortecido pela

superposição ideológica que se comentou, pela imersão

nos acontecimentos vivos, “quentes”, ensejando -lhe

certo domínio sobre a conjuntura e rasgos de realismo

na análise de instituições sociais.

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A praxis, contudo, na sutileza dos seus dina-

mismos, conserva-se indomável, sujeita aos prejuízos,

às limitações da herança iluminista.

A esta altura, de utilidade a exposição de alguns

pressupostos da filosofia do século XVIII, para melhor

precisar o binômio teoria-praxis no pensamento político

de Caneca.

Essa filosofia absorve elementos jusnaturalistas

veiculados, em grande parte, retoricamente.

Na Economia Política se formam já com fun-

damento na doutrina de Locke, aí pela segunda metade

daquela centúria, concepções que estruturam as leis da

Sociedade Civil e do Estado.

Aquilo que Locke expendera, relativamente à

complementação da teoria da Sociedade Civil “par une

conception de la politique comme domaine public”,(126)

vai apresentar-se de muita importância para a colocação

e para o encaminhamento do problema. Tal teoria, em

virtude de sua base científica, não obstante acabar numa

aplicação técnica, conserva um liame inconsistente com

a prática das pessoas que dispõem do poder decisório e

são agentes ativos na sociedade.

Eis que transparece a necessidade de se lhe dar

um complemento didático. Ele, na verdade, não aparece

como um prolongamento natural da teoria, mas sim

prático.

De qualquer modo, isso representa um progresso,

um passo adiante do que concebiam os fisiocratas, que

atribuíam ao monarca o papel de segurador da “ordem

natural”, posta na sociedade.

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Mas já se falava num “público esclarecido”, como

instância a que o monarca deveria recorrer. Por si só,

não reunia condições para dominar as leis da “ordem

natural”.

Entra em cena, então, o que se passou a

denominar “opinião pública”, efeito de sedimentada

educação de amplos setores da população pelos

filósofos, e ao redor dos fundamentos da ordem social.

A opinião pública visualiza as leis naturais dessa ordem

social mediante “la forme des certitudes pratiques des

citoyens agissants”.(127)

Ao príncipe cabe daí extrair

orientações.

Tal concepção é encontradiça entre os publicistas

liberais que perfilham a doutrina moral escocesa.

E aqui se dá justamente um avanço em relação à

Fisiocracia.

A mediação da opinião pública se coverte em

“elément de l’extension de la théorie de a société civile

en philosophie de l’historie”.(128)

Os direitos naturais se colocam numa linha de

historicidade que atravessa toda a sociedade civil. Es -

tabelece-se a lei do progresso contínuo e necessário da

humanidade. A começar do primitivismo dos primeiros

tempos. E com uma meta: a de uma sociedade liberal

política e economicamente.

Ao longo do desenvolvimento da economia

liberal, vai estruturando-se uma consciência política,

propiciando conceitos novos sobre a igualdade social e

os direitos correlatos.

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É clara a associação entre um tipo de socialização

e uma filosofia da história, sendo esta a seqüela

daquela.

Dita socialização reitera o imperativo de

crescimento da consciência prática.

Todavia, importante sublinhar um ponto: a

socialização não explica as suas conexões com a prática.

Tem no crescimento da consciênc ia prática algo

necessário. Ou que apresenta o caráter de necessidade.

Não havia, assim, a possibilidade de intervenção

prática em sentido vertical na sociedade. A qual não ia

além do ato de firmar certas diretrizes concernentes à

ação individual. E a limitadas ingerências do aparelho

político na ordem social. Notoriamente quando

assomava uma concepção que alimentava a correlação

necessária e o acordo que estava havendo entre o

processo histórico e aquela limitada intervenção. Nessas

condições, inexistia a exigência de orientação dos

cidadãos acerca do modo como deviam “organiser le

progrès social”.(129)

Observe-se que, na base dessa concepção, estava

o cienticismo colhido nos métodos e na estrutura da

Física, especialmente. Então, focalizava-se o curso dos

acontecimentos históricos nos moldes do curso dos

fenômenos naturais. Daí a possibilidade de solução do

problema do relacionamento teoria-praxis.

Entende-se, portanto, a extensão natural das

previsões da filosofia da história aos efeitos práticos dos

seus princípios, no momento da atividade prática dos

cidadãos.

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Não se atentava, com essa postura, à possibi-

lidade de modificação da teoria pela prática.

Partia-se de uma estrutura teórica tida como

cientificamente rigorosa, para sofrer, qualquer abalo e m

decorrência de sua aplicação.

O caráter de apêndice imposto à política,

“apêndice didático” da mesma estrutura teórica, tendia a

operar, sem que disso se tomasse consciência, modi-

ficação da teoria.

Tal passou inadvertido ao evolucionismo dos

autores escoceses e à filosofia linear da história dos

enciclopedistas.

A filosofia social, ao se ocupar da prática, o faz

de um modo antecipado. Ou seja: diz o que os cidadãos

vão fazer, antecipando na história a consciência prática

deles. Cidadãos que se comportam politicamente. Uma

inferência de ordem metodológica se tira daí: a de que

não havia como considerar relevante o confronto entre o

dispor e o agir. Ou melhor, não havia como desconhecê -

lo.

A filosofia social oferecia-se cientificamente co-

mo filosofia da história, e se fundava numa metodologia

rigorosa. E esta, ao alcançar a consciência prática, não

se dobrava ou se reformulava, mantendo-se coesa e

granítica. Não se via a exigência de flexibilidade, de

provisoriedade, do método, sem quebra do seu rigor, da

sua precisão.

Sem dúvida, com os iluministas, sem considerar

outros filósofos como Hobbes, a teoria obstaria, com o

hermetismo metodológico, a prospecção larga do real, e

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se conservaria fechada às solicitações de mudança de

orientação prática. Isso implicaria necessariamente

numa reformulação da própria filosofia social. De modo

que houvesse uma mediação eficaz entre a teoria e a

prática. Tal reformulação iria esclarecer um ponto

essencial; o de que a doutrina política já surgira como

uma introdução à prática.

Jürgen Habermas, a apoiar essa parte, traz à

colação subsídios esclarecedores de Vico e de Kapp. E

no que concerne à tradição grega a servir de respaldo à

doutrina clássica da teoria e prática.

O primeiro demonstrou que, entre os gregos, os

procedimentos tópicos e retóricos acompanhavam a

política.

Mas não estruturavam eles um método científico.

Tanto no que se relacionava com a filosofia

teórica, como com a filosofia prática, apenas um método

era usado: o da arte do diálogo, a dialética.

O segundo, após interessante pesquisa, chegou à

conclusão de que, com Aristóteles, abandona-se a dia-

lética. Quer dizer: ela perde a dignidade metodológica e

passa a assumir um papel pedagógico. Fica como uma

espécie de propedêutica ao aprendizado e à pesquisa.

Sob esse ângulo, a dialética, continua Habermas, ganha

o nível de discurso didático, e algo introdutório à

analítica.

Acontece que a filosofia prática desfigura esse

posicionamento da dialética, dando-lhe outra função.

Sobreveio um acréscimo. Primeiramente, suprime o

caráter propedêutico da dialética. A retórica tinha a

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serventia de conclamar, de aconselhar, com vistas à ação

dos cidadãos. No calor mesmo dos debates políticos, ela

se transfigura ao fazer “oeuvre philosophique d’habilité

pratique”.(130)

Por importante, merecem transcrição os dizeres

textuais de Habermas, em prosseguimento à exposição:

“C’est là qu’Aristole conseille la procédé tipique comme

un procédé dialectique: il part de quelque chose de connu

pros hemas, de points de vue rendus légitimes et dignes de

foi par la tradition ou l’autorité, de leiux communs, de

règles, et les éprouve au contact de tâches pratiques dans

une situation déterminée Pa l’aide de la dialectique”.(131)

Os tópicos granjearam no “Organon” de

Aristóteles um lugar primordial, a crer em Hamelin, em

Werner Jaeger, entre outros estudiosos da filosofia

grega. E aquilo que absorvem se torna matéria do

silogismo dialético, ao transformarem-se em “ciencia

del razonamiento sobre lo probable”, como diz por sua

vez, Ferrater Mora.(132)

Como se vê, na transcrição acima de Habermas,

os tópicos visam a situações particulares, as quais se

vinculam a normas a se explicitarem na própria apli-

cação esquemática a tais situações.

Disso provém o seu estatuto lógico, a autoridade

de um instrumento que, por antecipação, produz esque-

mas a subordinar os casos particulares. Tem-se então

uma hermenêutica do vivido, de situações expe-

rimentadas. O que permite a formação de acordo entre

os cidadãos que desenvolvem atividades políticas.(133)

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A circunstancialidade do pensamento caneciano

se acasala com essa concepção da teoria e da prática,

que perfilha.

No “calor” do evento racionaliza os dados da

“situação”.

E o faz de um modo que ela, entendida como um

conjunto de casos particulares, imediatamente se sujeita

aos tópicos, pela recepção de um modelo iluminista-

constitucionalista, o do liberalismo radical, que assimila

tais casos aos já incorporados nesse modelo. Ou, pelo

menos, a técnica de subordinação é a mesma, mudando

os casos, as situações particulares. A verdade é que

perdura a sobreimposição da teoria. A prática como a

sua mera aplicação.

Há, desse modo, a tendência à reiteração de si-

tuações. Ou a pouca ou nenhuma diversificação dos

eventos, do ponto de vista de sua significação. Ou a

utilização unívoca ou padronizada do mesmo esquema

interpretativo, da mesma leitura, sem que fatos super -

venientes possam modificá-los.

Todos esses fatos se ajustam arbitrariamente ao

esquema. Isso conduz ao enfoque autoritário, de que

falam Horkheim e Adorno.

Aliás, o tópico já encerra essa conotação auto-

ritária. E, com razão, tem nascimento na política, lugar

do mecanismo refinado do poder. Nesse ponto, favorece

a exuberância ideológica. Principalmente nisso que a

ideologia procria o congelamento do pensamento. Daí

ser travado o curso mais desenvolto e frutífero da

criatividade. A contestação aí emergente tem muito de

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retórico. Ela não leva a uma prática metodológica e

filosoficamente fundamentada. Não dispõe de uma

consciência crítica que desça fundo nos centros

irradiadores da movimentação política, da formação

institucional, centros esses que não devem ser enfocados

a partir apenas de atitudes morais e da instrumentação

político-jurídica. Os quais desligados de seus suportes

sócio-econômicos. Faltava ao período aquela cons-

ciência. Esta é especificamente moral, empolgando

tanto os liberais centristas quanto os radicais.

Contudo, ela é mais abrangente, contando com

uma dimensão social, dada a presença notória de

Rousseau, de Mably, mais precisamente. Tem um

sentido mais vivo do progresso, da mudança. Por igual o

sentido da nacionalidade, vista perfeitamente compatível

com a estruturação institucional que se fazia. Ou

melhor, em harmonia com ela. Tal consciência encerra

uma face utópica, de muita importância como força

propulsora que, se aproveitada convenientemente na

política, teria suscitado transformações mais amplas da

realidade brasileira. Pois dispunha de poderoso recurso,

dinâmico por natureza, que, bem harmonizado com o

princípio da autoridade, com a ordem que se fazia mister

aperfeiçoar, poderia ter-se firmado na vida nacional

domo tendência dominante, em contraste com a linha

tradicionalista que acabou vencendo, após a vitória

definitiva do liberalismo centrista, com Pedro I.

A liberdade, no seu processo de amadurecimento,

na sua caminhada, encontrava sérios obstáculos: a

mentalidade da época, a organização sócio-econômico

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em vigor, os valores religiosos que radicavam na es -

colástica tridentina, na Contra-Reforma, o tradi-

cionalismo.

A ideologia religiosa é permeada pelos valores

políticos da ordem, no regime “unionista”. O libe ra-

lismo radical tendida a exaurir -se diante desses

obstáculos, fortemente calcados nos interesses da elite

proprietária. A sua tragédia está em que não dispõe de

meios eficazes, de condicionamento sócio-político,

credenciando-o a romper a velha ordem.

E não só pela desfuncional correlação que

mantinha entre a teoria e a prática. Mas também pela

falta de adequada consciência crítica, que está na raiz

dessa desfuncional correlação, Daí porque assimila os

elementos tradicionalistas. E vale-se até dos agentes do

sistema, com a vedação de clara definição dos objetivos

do liberalismo radical. Afinal, este se insere num

contexto ideológico heterogêneo. Está-se a ver o

impasse a que chegara tal ideologia política, justamente

pela inexistência de bases sociais sólidas, a se

constituírem em todos de irradiação axiológica

autônoma.

A justaposição de dois planos ideológicos – o do

Iluminismo e o do circunstanciamento provincial-

nacional – se compõe com um estado de coisas ca-

racterizado pela vigorosa herança colonial, pela

opressão dos proprietários que concentram os papéis

mais relevantes da organização social, pela fragilidade

institucional, pelo legalismo reinante (um dos elementos

da velha ordem a pesar sobre o liberalismo radical).

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Como levar às últimas conseqüências o radica-

lismo inerente a essa ideologia? Não havia como fazê-

lo. A tendência era exaurir -se no papel de agente

proeminente da cena política, e transferir -se para os

subterrâneos do complexo institucional, para a

intimidade das convicções sinceras e abnegadas, de

onde ressurgiria periodicamente no transcurso de longa

história.

Para manter-se ativamente, com o empolgamento

ruidoso dos seus partidários, necessita incutir a sua

mensagem em canais funcionais e expressivos de

reivindicações de classes, de grupos sociais conscientes

e objetivos na apresentação de um projeto nacional. O

que não havia no tempo.

Inconsistente era o projeto que propagava, eivado

de legalismo, de moralismo.

Não havia ainda aparecido grupos sociais capazes

de se apropriarem com eficácia, e como uma constante

política, da dimensão utópica subjacente na mensagem

ideológica. Eis que não se percebe tal impasse, evi-

denciado de modo especial no esquema de distribuição

de poderes na sociedade do período, maxime na per -

nambucana, e com todo aquele envolvimento estrutural-

valorativo.

Isso significa que o binômio teoria-prática, como

posto, sustava o expedito desenvolvimento das

virtualidades utópicas no projeto do liberalismo radical.

Com base nesse raciocínio, e considerando o

quadro da sociedade brasileira de então, não há como

deixar de reconhecer que o liberalismo centrista foi mais

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realista. Desde que se registre a disposição de forças

políticas em atuação. E a não viabilidade de êxito do

movimento confederativo de 1824.

Era preciso que aquelas virtualidades utópicas se

fossem realizando pari passu com a montagem do

aparelho político nacional. A fim de que o liberalismo

radical persistisse e animasse novas transformações,

novas conquistas no campo sócio-econômico, segundo

as possibilidades da época. Por aí ele seria mais aberto,

na pauta de uma organização social menos rígida, menos

senhorial, e com estímulos razoáveis ao progresso geral.

Diante do exposto, claro fica que o liberalismo

radical se deparava com óbices intransponíveis ao

objetivo de se encarnar no aparelho político brasileiro.

Ele não tinha condições de efetuar a com-

patibilização com a ideologia da ordem reinante, de seus

critérios, valores, metodologias e metas. É que nessa

ideologia repousavam os critérios valorativos mais

destacados e atuantes da vida política, naquela idade do

século de aguda indiferenciação social. O liberalismo

radical, que lograria destaque com a Confederação do

Equador, deve a sua curta presença no poder às

circunstâncias políticas do Nordeste, vítima de política

discriminatória do Imperador em favor das Províncias

do Sul, e que redundava em opressão econômica do

Pernambuco açucareiro, tolhido no seu desenvolvimento

autônomo. O que incentivaria, em “clima” assim ex-

cepcional, o apelo ao radicalismo. Coisa transitória.

Logo refluindo para os subterrâneos da atividade

política, até que momentos outros de tensão aguda, a

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fizessem aflorar sobranceiramente. E, menos de uma

década depois, ver-se-ia rebentar acerbado surto

reacionário, pró-restauração de Pedro I, 1831, a

chamada abrilada, que mobilizaria também senhores de

engenho.

Nunca demais repetir que, no bojo geral do

liberalismo no Brasil, abundavam os impedimentos à

formação de guias valorativos de eficaz transformação

da ordem política, etapa mediadora da real promoção do

homem e da organização social.

O liberalismo centrista gozava de melhor

viabilidade por se compor com os interesses da classe

dominante.

E sem veleidades outras senão a de co mpatibilizar

a organização política nacional com a ordem privada,

aprimorando as condições de funcionamento do aparelho

político.

Afinal de contas, tudo radicava na natureza do

encontro teoria-prática, ínsito ao liberalismo, qualquer

que fosse a sua modalidade.

Era impressionante a sobreimposição da teoria

sobre a prática, num corte epistemológico que privile -

giava autoritariamente a primeira.

Dela não escapa Caneca.

Típica a sua afirmativa de que da natureza das

idéias decorre a boa ou má qualidade das açõ es, como

repercussão em todo o corpo social.

Inerentes às idéias ou delas dependentes a

vontade, a mora, os costumes de um povo. Eis o que diz

textualmente:

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“Com efeito, as idéias falsas e inexatas, que fizermos das

cousas sociais, produzirão infalivelmen te juízos falsos,

incoerências, crimes, atentados, perturbações da sociedade

e a sua ruína afinal. Isto não só mostra a razão, como, para

desgraça da humanidade, o comprova a experiência diária

desde os mais remotos séculos.; E se em alguma parte

produz efeitos prejudiciais e funestos a imperfeição das

idéias, é sem contradição na moral e nos costumes dos

povos...”.(134)

Está aí exemplo claro de um intelectualismo com

raízes na filosofia grega, na pauta mesma do Ilumi-

nismo, a remontar constantemente aos clássicos da

Antigüidade.

Trata-se de colocação fundamental, a mais geral,

a partir da qual se chega a outras, articuladas com as

situações particulares, quando se dá o encontro real da

teoria com a prática.

Nesse último aspecto, assoma o voluntarismo,

aquela conotação moral da razão, do conhecimento, que

assume um papel instrumental, de mediação, entre a

verdade, o que se deve fazer, e os atos que a executam.

Surge, então, a necessidade de se explicitar o

projeto político caneciano.

Ele ganha elevada nitidez ideológica ao ser

acentuado o voluntarismo, algo por si imanente à

ideologia.

Aderindo ao princípio axiológico formal se

encontra “la voluntad de superar la oposición sujeto -

objeto e a de erigir barreras entre el sujeto y el

objeto”.(135)

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Tal se erige como uma constante no curso da

historia. E converge para os complexos estruturais-

conjunturais que se vão formando no tempo, e que são

produtos da integração dinâmica, ou melhor, conciliação

dialética entre a vontade em tensão do ser individual ou

coletivo, dominado pela insatisfação causada pelas

avaliações determinantes do real (presente), e esse real

numa fase de potenciação possível de sua historicidade.

Isto é, na efetivação de sua transcendência, alcançando

o futuro.

O levantamento de obstáculos entre sujeito e

objeto concerne à atitudes axiológicas negativistas, e

talvez preferível fosse apresentá-lo não como mera

alternativa, mas como elemento necessário à formulação

dialética a que se submete a oposição sujeito -objeto na

ação.

Aqui o elemento vontade logra especial relevo.

O Ciclo axiológico se completa na transcendência

do real, quando o fim é atingido por uma intenção de

ação, como frisa Raymond Polin, em que a vontade se

exerce eficazmente, superando a fase puramente

“imaginativa” e dando àquele fim a dimensão precisa de

valor, eleito entre outros que o sujeito depara no

confronto entre o projeto representativo e desvinculado

da vontade e da concretude, e as possibilidades, medidas

circunstanciais e tendências de uma ação que se leva a

cabo, conscientizada, portanto, na avaliação de uma

situação objetiva. É, então, que se resguardam fins

concretos particulares.

Veja-se a exegese sensata e penetrante de Polin:

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“Le ...projet acquiert sa pleine signification téléologique

lorsqu’il devient une intention d’action, une fin

proprement dite… Le proprie de l’intention d’action, c’est

de conformer à la fin en tant que telle un projet d’oeuvre

particulier. On ne peut concevoir d’intention d’agir sans

un projet imagé auquel elle s’applique”.(136)

E pouco além:

“Dans le projet téléologique intervient, comme remarque

Kaufmann, l’appréciation de la probabilité avec laquelle

cet état imagineire pourra se réaliser. Mais dans sa forme,

l1intention d’action se présente comme une décision el

relève du vouloir, de la volonté générale de transcender le

réel et d’effectuer contre lui une transcendance; elle est,

selon le mot de Scheler, un vouloir agir”. (137)

Na verdade, o fim entende diretamente com algo

a ser executado em meio ao conhecimento de uma trama

circunstancial.

Daí vem a alusão de Polin à consciência de uma

ação prática impelida pela vontade e precedida ou

embasada pelas criações “imaginativas” que lhe dão

forma, constituindo dois momentos axiológicos inte-

grados, procurando o segundo transcender o primeiro no

domínio e manipulação do real.

Atribui-se por igual ao fim a índole de momento

axiológico, porque a sua concretização implica neces -

sariamente em avaliações decorrentes da transcendência

do primeiro momento com o indefectível cortejo de

aplicações e de readaptações dos valores no campo

fático. Isso em conseqüência do caráter dialético de toda

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ação social e também das distorções que sofre a

realização dos valores na prática, por fatores múltiplos

relativos à liberdade humana e à modificação das

circunstâncias. Tal não significa que ao momento do

“projeto imaginário” se segue automaticamente um

momento de prática em que adquire nova tonalidade

axiológica.

No fundo, sempre se conserva uma linha

continuada de coerência entre um e outro momento.

Geralmente, são as alterações provocadas pelos fatos

que determinam a adoção de novos critérios de ação e

que, devido ao caráter dialético desse, sugerem a

atualização do projeto.

O importante em tudo isso é a vontade de agir, de

efetuar a transcendência do real, vontade de agir imersa

na dupla linha de integração – a do projeto e a da ação

intencional, numa consciência crítica de toda uma

situação que se pretende trabalhar.

Pois bem. O projeto caneciano, tendo em mente o

espírito do tempo, o estado da cultura e da prática do

período, não reunia possibilidades de desdobramento

alongado, de efeitos significativos, no leito da história

política brasileira. A não ser que se considere o

contributo que deu ao implante de te4ses liberais em

diversos documentos políticos e ao progresso da

consciência de resistência ao autoritarismo.

Mas não transpõe eficazmente a fase imaginativa,

por falta de recursos de avaliação do real, do presente,

numa postura de globalização que arma de melhor

operacionalidade à ideologia.

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A vontade não transcende a dita fase imaginativa.

Aspecto esse já relacionado com a inoperância do pe-

ríodo diante das virtualidades históricas, das alter -

nativas que somente a verticalização na historicidade

enseja.

Diante disso, o moralismo, correlativo do volun-

tarismo, era realçado.

O corte entre a teoria e a prática, a intransi-

tividade da fase imaginativa, a não consciência da

possibilidade de tensão dialética entre ambas, mesmo

em virtude de uma concepção contínua da história, tão

do gosto do Iluminismo, levam ao privilegiamento da

vontade. Mas de uma vontade individualizada, desligada

dos condicionamentos sociais.

Era como se a união de vontades individuais,

desatenta às vinculações de grupos, transcendendo até as

peculiaridades desses, pudesse formar um corpo coeso

capaz de operar as reformas institucionais preconizadas.

Nessas condições, estava-se frente ao irrealismo, que

fechava a avaliação correta dos obstáculos e das

possibilidades do real. Até mesmo nas coisas mais

simples se manifestava esse irrealismo. Como no

subestimar o poderio das forças políticas e militares à

disposição de Pedro I. Inclusive no mistão ideológico

que constitui o cerne do pensamento caneciano, integra-

se o providencialismo, de certo modo, uma contradição

com a antropologia iluminista.

Todavia, essa contradição parece ser aparente,

porquanto o providencialismo vem como explicação das

falhas das ações humanas, da sua incapacidade de prever

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os resultados que almejam, de transpor obstáculos. Ele

aparece como substituto do homem, na realização da

segunda fase do projeto, quando a vontade é exercitada,

completando o ciclo axiológico, ao transparecer o valor

concreto, particularizado.

Deus entra aí numa atitude de compensação,

como o valor concreto por excelência. A Sua vontade,

efetivando, independentemente do homem, a história, se

oferece como o instrumento primordial do aconte-

cimento. Isso limita a antropologia caneciana.

Como tornar viável e completo o projeto

axiológico? A ausência de certo controle sobre os fatos

favorecia a tônica sobre o papel da Providência.

Assim, escreve o carmelita:

“São inexcrutáveis os juízos do Altíssimo, e

incompreensíveis os seus mistérios! Quantas vezes se

frustram aos mortais as ações mais bem combinadas, e de

muito premeditadas! E a quem devemos atribuir o es torvo,

que nos embaraça e inutiliza os esforços, que se punham

em ação, senão e a vontade do Todo Poderoso, que

prescrutando os corações e as entranhas do homem, e

tendo presente todos os futuros, dirige todas as coisas para

o bem e felicidade de suas criaturas! Assim o pensamos

nós, e não receiamos ser contraditos pelo filósofo, que

reconhece uma causa prima na natureza, a cujo aceno tudo

se move, vive e acaba”.(138)

A condição de religioso de Caneca, vivendo e

atuando no seio de uma sociedade permeada de valores

sacrais, faz compreensível esse providencialismo. Porém

se está num período ansioso de abertura humana, de fé

nas possibilidades do homem.

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O grande problema é que a antropologia ilu -

minista tendia a chocar-se com a sociedade escravocrata

brasileira, com o mesmo providencialismo que conso-

lidava o status quo, com o autoritarismo carismático do

Imperador, não obstante o empenho do frade em

combatê-lo.

Transparece a todo momento a dificuldade de se

harmonizarem teoria e prática em Caneca.

Ele manobra um corpo abstrato de juízos, de

propriedade do racionalismo iluminista. Compõe um

espaço privilegiado, quase se diria inefável, um plano

superior, onde conquista a virtude.

Com isso, ele agirá eficazmente. Trata-se de uma

razão estática, universal, perfeita no prevenir todas as

situações, cabendo ao filósofo deduzir, estender os seus

princípios, ao cobrir a particularidade histórica.

E ao espaço da razão junta o argumento da

autoridade. Invoca o testemunho dos pensadores e dos

poetas clássicos, numa atitude metodológica que tem

muito da Escolástica, se bem que o espírito do huma-

nismo renascentista, tão sobrevivente e influente do

Iluminismo, esteja também vivo aí.

Ao se demorar no tema da pátria, essa meto-

dologia sobremaneira se explicita. É quando deixa o

carmelita expender a tese da primazia da sociedade

sobre os cidadãos.

Eis um tema, entre outros, por meio do qual

assenta a conexão entre a metodologia, imanente a um

pensamento mais geral, e os seus objetivos ideológicos,

relacionados com a circunstância nacional. E onde fica

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claro que, mesmo em se tratando de algo mais concreto,

particular, ele não abdica da metodologia iluminista.

Justamente por não haver empreendido a articulação

mais funcional dos fatos com a teoria. Como as

circunstâncias e o estado da cultura, da ciência do seu

tempo não o permitiam.

Um trecho significativo:

“Por último fizemos ver, que nascendo o homem para a

sociedade dos outros seus semelhantes, ele é mais dos

outros, que de si mesmo, pelo que tudo quanto existe no

homem, que seja bem físico ou moral, se deve aplicar ao

benefício da sociedade, e ao feliz ser da república. E

dando à caridade aquela ordem, sem a qual ela deixa de

ser racional e justa, provamos, que na oposição dos

deveres de cada um cidadão para o comum, e os

particulares, as relações particulares, ainda as mais

próximas e estreitas, como de pai, filho, irmão

desaparecer, quando é necessário salvar -se a pátria e

libertá-la do despotismo e escravidão: e sustentaram

inabalavelmente nossas decisões a razão mais cla ra e

evidente, a autoridade dos mais célebres filósofos e poetas

antigos e modernos e afinal a prática sempre constante de

personagens conspícuas na história do gênero

humano”.(139)

Com efeito, a razão se materializa nos en-

sinamentos e no desempenho dos mais conspícuos

personagens da história, dos filósofos mais eminentes de

todos os séculos.

A virtude ganha, como conotação moral da razão,

especial destaque. Ela representa a associação da

perfeição física e da perfeição moral do homem, se -

gundo Cícero. Ou, mais restritamente, o valor, a

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coragem. Não sem propósito foi a virtude divindade

entre os antigos.

Ao se alcançar a virtude, mediante a razão,

alcança-se a perfeição, o que está concluído, o que

encerra toda a verdade. Está-se preparado, então, para

agir perfeitamente, como se tivesse a posse de um

receituário para todas as situações. Daí porque não

importa que o filósofo ou personagem da história seja da

idade antiga ou da moderna. Desde que haja

equacionado a razão e, com ela, a virtude, obteve uma

formula acabada, perfeita, julgamentos conclusos sobre

o sentido, as tendências, a natureza do homem, da

sociedade, da história. Resta apenas aplicá-los aos casos

particulares.

Aí subjacente a concepção da história do

Iluminismo. A despeito do apreciável progresso que

essa concepção alcançara com relação às anteriores,

efetuando maior aprofundamento do concreto, ressente-

se da sobrecarga das ciências da natureza. Busca, por

exemplo, com Voltaire, uma conciliação entre o

empírico e o permanente.

Ambos se enlaçam, com a distinção de cada um

deles.

Diz Cassirer:

“La solución tácita que nos da (Voltaire) en el Ensaio

sobre las costumbres consiste en que nunca permanece en

la exposición del acontecer, sino que la enlaza

directamente con un análisis intelectual de los fenómenos

mediante el cual se habrá de distinguir lo accidental de lo

necessario, lo permanente de lo pasajero”.(140)

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Essa razão não se dá de uma vez por todas, pelo

trabalho de assimilação. Ela se vai progressivamente

revelando à medida que vai rompendo o amontoado de

costumes e de preconceitos. Sem, porém, se afirmar

muita vez em virtude da resistência oferecida por esses

preconceitos. Mas isso não significa que ela deixe de ser

o que é, o que encerra a sua natureza.

O progresso, enquanto tal, não modifica a

universalidade da razão. A humanidade também não é

afetada pelas resistências à razão. O progresso irá

realizar a razão na sua explicitação empírico-objetiva.

Nessa explicitação, nessa efetivação da transparência da

razão, integra ele “el sentido profundo del proceso

histórico”. Eis que não se apresenta relevante para a

historia “el problema metafísico del origen de la razón...

porque la razón como tal es algo supratemporal,

necesario y eterno a lo que no puede dirigirse la

cuestión de su origem”.(141)

Essa tomada de posição epistemológica sublinha a

predominância do racionalismo, que funda a razão

absoluta, sobre a análise serena e detida dos fatos,

buscando a conexão existente entre eles, a estrutura que

os interliga e o significado autônomo daí emergente.

Porque não há dúvida que o peso dos juízos, dos

julgamentos “prévios” da razão, acaba obstando a

verticalização no processo histórico, a composição

funcional do relacionamento teoria-prática.

Em Caneca essa postura sofreria até um decesso.

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Nem sequer realiza ela a compatibilização

iluminista entre o permanente e o acidental de modo

satisfatório.

Pelo menos, Voltaire, Montesquieu, d’Alembert,

entre outros, desceram à uma prospecção original dos

costumes, da família, da vida política, das artes,

oferecendo um quadro sociológico incipiente, é verdade,

mas que serviria de ponto de partida para posteriores e

lúcidos desenvolvimentos. O frade carmelita não

chegaria a tanto.

Certo que não praticou de modo sistemático a

análise histórica. E quando o fez se esquiva, por

qualquer motivo, à tarefa de construção daquele quadro.

Contudo, mesmo na dimensão do seu pensamento

circunstancial, não há uma imitação completa do modelo

iluminista. Às vezes, como no Itinerário, ao assumir

outra camada da linguagem, uma mais simples, mais

discritiva, permite-se certo realismo fecundo. Pois a

narrativa oferece a transparência crua e significativa da

imersão ativa, vertical, de Caneca em eventos que se

sucedem sob a tensão belicosa, Isso indica que o modelo

iluminista não é uma constante na sua obra. Ainda

quando o perfilha, não vai longe. É que torna a relação

teoria-prática mais rígida, ao passar sem muito rigor

metodológico dos juízos universais, da “razão”, para os

acontecimentos, para a conjuntura. Em que plano fica a í

a sua ideologia, aquela que se sobreimpõe, ou que se

justapõe à ideologia iluminista?

Na verdade, Caneca pratica com todas as in-

fluências doutrinárias que recebeu uma reposição pró -

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pria e lhes infunde uma configuração nova no contexto

do seu pensamento. Este se vai geralmente delineando

no meio dos episódios relatados, comentados. Do que

afloram um sentido, tendências que confluem em torno

de teses, na formação das quais entre muito de sua

contribuição pessoal, as suas observações particulares,

sobremodo positivas como interpretação de nossa

formação social ou política. Veja-se, por exemplo, a

descrição que faz, influenciado por Montesquieu, da

forma de governo adotada no país.

E o realiza sublinhando as peculiaridades bra-

sileiras, a diversidade de costumes, com a formação de

verdadeiras nações dentro da nação. O que, com seu

tempo, insuladas as províncias, com a falta de

comunicações expeditas entre elas, assim transparecia.

Mais: a ausência de classes, de alta distinção honorífica

da nobreza, um clero sem grandes poderes, a liberdade

inata entre os brasileiros e tão presente na evolução

histórica do país, com uma tradição de fato republicana

no governo de indígenas e de europeus, o despotismo

que assolou a nação no regime colonial de três séculos,

tudo isso confluiu para a opção política racional, a do

governo firmado na prática da liberdade, depois de

pesada e atenuada a força das circunstâncias.(142)

Quer dizer: o carmelita pernambucano tem o

sentido de certos determinismos históricos e sócio -

culturais a incidirem sobre a vida política. Não lhe foge,

assim, algum realismo. A “razão” não cai de um uni-

verso abstrato sobre a realidade. Com esta se harmoniza.

E se observe que não faz filosofia da história, como os

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iluministas. Provavelmente, jamais alimentou esse

projeto. Fica num domínio de maior realismo.

No exemplo retrocitado, chega a afirmar que o

Brasil se adapta naturalmente ao estado federativo.(143)

Contudo, ao fazê-lo, vai buscar justificativas ligadas à

identidade nacional, à circunstância brasile ira. E numa

linguagem periodística, na coerência límpida dos fatos,

praticamente não partindo da “razão”, não fazendo

doutrina. E parece ser esta a camada mais usada, ente as

várias que se superpõem na estrutura lingüística do

discurso caneciano. A ausência dessa razão é com-

pensada pelo adensamento ideológico da descrição

factual à qual prende incidentalmente postulados

teóricos, não submetidos à demonstração. É a linguagem

do panfleto. Esta a linguagem dominante. A mais

freqüente, considerando a circunstancialidade dos seus

escritos.

Observações particularizadas emergem com

assiduidade aí. Mas não são exaustivas, fazendo

sobressaírem objurgatórias, ataques violentos, em que o

particular é subposto no pathos ideológico. E que vem

para reforçá-lo. Malgrado não sobressaía a positividade

do factual e do significado dele extraído. Há, nessas

condições, em Caneca, até um desdobramento de posi-

ções em decorrência da variedade de linguagens com

que opera, fazendo oscilar o nível da relação teoria-

prática. Ainda que ela, estruturalmente, se mantenha a

mesma. Isto é: com os mesmos fundamentos, com a

mesma concepção. Algo se destaca em Caneca: a

autosuficiência do discurso, que dispõe de grande

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soberania, assimilando com largo arbítrio o proveniente

do exterior, do mundo histórico-social, da conjuntura

política.

As observações são feitas fora do intuito de uma

investigação científica sem comprometimentos ideoló -

gicos ostensivos. Elas são recolhidas ao interior do

discurso, para justificá-lo. Mais do que para modificar

as suas linhas estruturais, os seus condicionamentos

ideológicos. A teoria se emaranha no discurso, que nele

se desdobra e se repete, insusceptibilizando-se com uma

sua possível remodelação pela via dos fatos. Fecha -se ao

andamento dialético no encontro com eles, dada a

sobreimposição que se expôs antes. Uma passagem do

“Tratado de Eloqüência” o confirma: “Confirmação ou

prova é o discurso, que o orador produz para convencer

os ouvintes, ilustrando o entendimento”.

E continua afirmando que as provas são de duas

classes: intelectuais e morais. As últimas influem na

vontade, levando a incorporação do discurso na

prática.(144)

Isso que fica bem patenteado na eloqüência,

transpõe os umbrais dessa arte e alcança domi-

nantemente o discurso em geral, que, na exacerbação

ideológica, ganha acentuado relevo autocrático. Eis que

em Caneca e em outros escritores do período,

notadamente os panfletários, a elaboração do discurso se

mostra caracteristicamente como uma dedução a partir

de nutrizes ideológicas a priori acolhidas. Aí o factual é

visto pela ótica dada por essas nutrizes. Tal não

significa que os fatos sejam sempre distorcidos em favor

da causa. Acontece, porém, que eles são selecionados ou

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deslocados da conjuntura, para servirem de prova do

discurso. Por isso, se nota nos escritos do frade

pernambucano a despreocupação por documentar – afora

autores iluministas, publicistas, clássicos – o que expõe,

o que proclama. E assim mesmo essa documentação de

autores é restrita a certas introduções, a alguns

parágrafos. Eis que, no discurso caneciano, é comum a

transposição arbitrária do plano das idéias para o plano

factual. E, seguindo as premissas do racionalismo

iluminista, a privilegiarem a “razão”, aprioristicamente

tomada, de entendimento acerca da verdade.

Expondo, verbi gratia, as causas das longas

dissenções que tem havido entre os nativos e os

europeus, no Brasil, e mais particularmente em

Pernambuco, a partir de 1710, dissenções essas que têm

tanto perturbado a província, diz:

“Estes os fatos, que nos apresenta a história desta quarta

parte nova do mundo, sobre os quais refletindo a razão,

tem descoberto, que se não tem sido o motivo único desta

indisposição, ao menos lhe tem sublimado a acrimonia a

falsa idéia, que se tem feito da pátria do cidadão”.(145)

Isto é, ele declara que se europeus e nativos

tivessem uma concepção de pátria diferente da que se

baseia no lugar do nascimento, se considerassem, na

realidade, essa pátria o lugar onde desenvolvem as suas

atividades com uma alongada permanência, de modo a

se tornarem naturais do país e a compartilharem com os

nascidos aí as oportunidades e os frutos do trabalho, por

certo não teria ocorrido a Revolução de 17, fruto da

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rivalidade entre portugueses e pernambucanos, vistos

como estranhos, com interesses distintos por terem

nacionalidades distintas.

Se a palavra “patriota” tinha um sentido pe jo-

rativo para os portugueses, é que estes não concebiam a

idéia de adesão ao Brasil, a terra que os acolheu.

Mas, nada melhor que o entendimento de Caneca

acerca do que denomina “espírito geométrico”, para se

obter nítida percepção da sua estrutura teórica.

Pautando um procedimento tipicamente ilumi-

nista, busca assentar os princípios certos e infalíveis da

razão, princípios reguladores do raciocínio, de modo a

não se cair na inanidade da abstração deslocada. Eles

irão orientar e controlar a observação, a dedução, as

atividades práticas. Configuram uma estrutura teórica,

axiológica e pragmática, numa extensão facultada pela

articulação da teoria e da prática, num plano de ação da

razão que tem muito de cartesiano.

Privilegiamento do elemento utópico-prospectivo-ra-

dical num contexto de mentalidade conservadora

Em extensão ao enfoque utópico, prospectivo e

radical de Cipriano Barata, ao lançar os fundamentos do

liberalismo radical entre nós, desdobra-se, com mar-

cantes particularidades, o pensamento político de

Caneca.

A meta da liberdade, na estrita orientação ilu -

minista, já lhe assegura lugar prioritário em opção po -

lít ica revolucionária.

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Disso não se pode duvidar. É claro que se

contrapõe às posições francamente autoritárias do

liberalismo oficial vertidas no estatuto político do

Império, base angular do Estado nacional brasileiro que

surgia.

Contudo, não realizou o destemido carmelita uma

obra de simples perfilhamento ou de assimilação me-

cânica da doutrina iluminista-liberal alienígena. Obser-

vou-se o caráter circunstancial do seu pensamento. O

que lhe ensejou a comentada sobreimposição ideológica

no encontro dinâmico com os fatos.

Para maior esclarecimento, importa fazer a

comparação entre a postura liberal européia de natureza

radical e a sua congênere caneciana.

Aquela carrega um significado novo, inteiramente

inédito, de revolução.

Explica-o com perfeição Hannah Arendt:

“La conception moderne de la Révolution, inextri -

cablement liée à l’idée que le cours de l’Histoire,

brusquement, recommence à nouveau, qu’une histoire

entiérement nouvelle, une histoire jamais connue ou

jamais racontée auparavant, va se dérouler, était inconnue

avant la fin du XVIII siécle et ses deux grandes

révolutions”.(146)

E justamente a idéia de liberdade coincidia nesse

quadro com a de um acontecimento inédito, jamais

ocorrido antes na história da humanidade, imprimindo -

lhe nova orientação, novo começo. Ela assinalava

também o critério de julgamento das Constituições, o

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mecanismo livre das atividades políticas garantidas por

ela, a liberdade haveria de concretizar -se, feita a

revolução, substancialmente na liberdade de

movimento.(147)

Aí se explica a tese de Condorcet de que, com o

advento da liberdade, se inaugura nova história. Tese,

aliás, também compartilhada pelos outros enciclope-

distas.

Essa história aparecia em delineamentos impre-

cisos, dado o utopismo que a circunscrevia. O que havia

de preciso era a reformulação do poder, a nova organi-

zação política, como instrumento e como condição de

transformação histórica, de mudança social. Mas instru-

mento indireto. É que assegurava os meios político -

jurídicos de um livre desempenho dos cidadãos ani-

mados pelos objetivos burgueses.

A história futura seria a efetivação desses obje-

tivos na sociedade. Tarefa a cargo dos cidadãos,

individualmente considerados. E num prolongamento do

utilitarismo que franqueara o Renascimento. O qual se

casa com a secularização crescente, facilitando as

aspirações e o acesso centrados nos bens econômicos.

Emerge liberada a vontade de poder tendente à im-

plantação de nova ordem econômica com exaltação da

prosperidade, da acumulação de riquezas.(148)

O

voluntarismo, agora se percebe melhor, é inseparável do

liberalismo. E se revigora no liberalismo radical, a

privilegiar a liberdade. É a mola da história, da

construção da nova história, reformulado o poder,

edificado o Estado nacional no bojo das constituições

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garantidoras do novo desempenho econômico e das

subjacentes liberdades civis e políticas.

Mas é de muita importância estabelecer a dis -

tinção entre duas concepções de liberdade que

fundamenta, por sua vez, a distinção entre o liberalismo

centrista e o liberalismo radical ou utópico.

Concebeu-se entre os pensadores liberais dois

tipos de liberdade: a interna, campo do livre arbítrio, e a

externa, consistente em metas de realização humana, e

tomando como ponto de referência um determinado

contexto social; entende com o dado cultural. Um

segundo significado de liberdade externa diz respeito à

natureza completa e total do homem.

Assim, verifica-se que o liberalismo, compelido

pela circunstância histórica, tendia a enfatizar o

conceito de liberdade que se demorava na afirmação de

independência e de autonomia do indivíduo em face da

autoridade não apenas política mas também social. Ele

se opunha à toda sorte de constrangimentos, de res-

trições, que embaraçavam aquela afirmação.

A liberdade interna mereceu pouca atenção dos

mesmos pensadores, uma vez que comporta raciocínio s

da mais densa abstração, não afinando rigorosamente

com os objetivos político-ideológicos, pragmáticos, que

cercavam o liberalismo.

Sob a influência do determinismo metafísico ou

empírico, nega-se até, algumas vezes, a sua existência

ou possibilidade. Vem daí que, a partir de Descartes, o

racionalismo liberal assenta a determinação completa da

vontade pela razão.

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Embora atenuada, essa colocação é retomada por

Locke, que separa a vontade da liberdade. A primeira

“is an act of the mind directing its thought to the

production of any action, and thereby exerting its power

to produce it”.(149)

A segunda “is of a power in any

agent to do ou forbear any particular action, according

to the determination or thought of the mind”.(150)

. No

campo da liberdade, portanto, interfere com adequação a

razão, como juízo condicionante da vontade, e tendo por

meta o maior bem.

Está clara a subordinação da vontade à liberdade

que, por sua vez, se harmoniza com a razão e, por

imanente a esta, com a norma do bem. Não obstante,

Locke se mostra impotente no esforço de sobrepujar a

corrente de pensadores que negava o livre arbítrio, e

fortemente escorada em Newton, no mecanismo mate-

rialista, quando “une psycho-physiologie mécaniciste

remplace la métaphysique de l’homme et l’épist é-

mologie classique”.(151)

A idéia de liberdade externa, por não conflitar

com a concepção que nega o livre arbítrio, expande-se

consideravelmente, absorvendo todo o conceito de

liberdade.

Ela passa generalizadamente a ser tida como um

poder externo.

Apóia-se num indeterminismo que se cinge ao

curso da ação, e designa a afirmação absoluta do homem

sobre as coisas. Também a sua plena autonomia em rela -

ção aos outros. Isso entende ainda com o volun tarismo,

com o entendimento da praxis iluminista. A liberdade

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está a serviço de uma missão: a de investigar e recompor

as coisas no mundo, a que não se furta o ordenamento

do próprio homem, com vistas a alcançar o supremo

bem.

Então, a liberdade pressupõe a lei, sendo a sua

mais lídima expressão. Aquele supremo bem só será

usufruído se o homem submeter-se “aux lois de son être

et de sa raison”.(152)

Isso, com efeito, marcou fundamente o libe-

ralismo, a ponto de fundar o culto da norma, de ser

intrinsecamente normativista.

A tese kantiana está aí subjacente, de con-

formidade com a qual a liberdade se funda na sujeição à

lei. E não há como ver contraste entre a lei e os

determinismos.

A razão ilumina esses determinismos e os

vincula, portanto, à lei. Porque o pragmatismo dessa

razão aprofunda pelo conhecimento as relações entre as

coisas, entre elas e os interesses do homem, tornando -a

prática. E a vontade se faz explícita e melhormente

atuante no universo social.

Nessa perspectiva, a liberdade fica notoriamente

condicionada ao conhecimento, à capacidade do domínio

sobre as atividades humanas. Quanto mais preparado

para essas atividades, e aqui é relevante a educação,

mais exercita com eficácia o homem a liberdade. Depois

viria a recomendação de se analisar o envolvimento

social e a condição do pensamento, para o aprimo-

ramento do que seria agora uma liberação, e não mais a

liberdade no sentido tradicional.

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Querem-se, em conseqüência, regras práticas nos

diversos setores da nação, de tal modo que se orientem

utilitariamente o social, o político, o econômico.

Não há mais a liberdade universal, mas a liber-

dade social, a liberdade política, a liberdade econômica.

Em cada um dos ditos setores preside a ra-

cionalidade pragmática expressa num sistema de nor -

mas, guias-modelos do comportamento dos indivíduos,

do exercício da liberdade.

Na medida em que se vai aperfeiçoando a norma,

com a assimilação de novas relações, de novos ele -

mentos, mais a vontade se afirma concretamente,

dominantemente. Tal a doutrina corrente entre os pen-

sadores do século XVIII.

Todavia, não havia entre eles unanimidade a

respeito da liberdade externa ou de expansão.

“En effet, on peut considérer avec Locke, Montesquieu et

Voltaire, la liberté comme la condition culturelle de

l’individu, ou encore avec Rousseau comme sa condition

naturelle. L’une n’excluant pas nécessairement l’autre,

mais la qualifiant de sorte que la signification des

conclusions diffère sensiblement”.(153)

De acordo com a primeira tese, a liberdade, se se

desprender da fundação originária que é o estado de

natureza, atualiza-se no interior da ordem social,

viabiliza-se sob o império da lei. Somente quando a

razão a faz possível e real. Essa a concepção vitoriosa

no seio do liberalismo, na medida de sua efetivação nos

quadros políticos do Ocidente.

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Locke deixa isso bem claro, ao afirmar que a lei

natural, que disciplina o estado de natureza, e que

obriga cada indivíduo, se confunde com a razão e,

portanto, com a lei civil. E ela determina que qualquer

dos homens se abstenha de prejudicar a propriedade, os

bens da vida, do outro. Mesmo porque todos são iguais e

independentes.(154)

Porém é preciso não esquecer que, pela lei

natural, já tem o homem assegurada a sua autonomia no

interior de um circunstanciamento, e a sua

independência relativa frente ao poder político,

emergente posteriormente à mesma lei.

Por conseguinte, a liberdade, já estruturada no

estado de natureza, antecede à própria organização

social, ao ordenamento político-jurídico, cabendo a este

apenas regulamentá-la, dar-lhe um processamento fun-

cional, numa ampla compatibilização dos interesses em

jogo.

Daí se segue que não se deve submeter ao jugo da

autoridade despótica, a infringir a todo instante a lei

natural que resguarda a liberdade.

O homem sabe o que lhe convém. Ele tem o

princípio de seu comportamento colhido no direito

natural e, portanto, independe da autoridade para ser

exercido.

A ela compete sancioná-lo.

Nessa concepção, o indivíduo tem prioridade

sobre o Estado.

A razão está originariamente nele. E são seres

razoáveis, os indivíduos, que formam o Contrato e, por

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via de conseqüência, o Estado, com um raio de ação

estipulado previamente no documento que estrutura o

pacto social, a Constituição.

Dada a supremacia do indivíduo, o agente por

excelência da razão, aquele que contém em si a auto -

suficiência moral, uma vontade que se nutre da

racionalidade, que se encarna nas criações do progresso,

o Estado não tem outra missão senão a de garantir a

liberdade de todos, evitando a ruptura do pacto, o

bloqueio da harmonização dos desempenhos livres

individuais.

O Estado, então, é o lugar, o meio de for-

malização da liberdade, a instrumentalização da sua

coerência objetiva, no âmago de uma circunstância

histórica, nos limites de uma sociedade.

Ora, sofrendo essa limitação que endossa e

perfilha o status quo vigente numa nação, com a elite

burguesa no topo da hierarquia social controlando

aquela instrumentalização, o organismo político, os

meios de produção, a propriedade, a liberdade torna-se

elitista, ao alcance apenas dos que detêm bens eco -

nômicos.

Isso esclarece, por exemplo, a doutrina lockeana

da representação política, padecendo da mesma li-

mitação.

Sem tal odiosa restrição, porque fiel ao ideal

democrático, destaca-se a concepção rousseauniana da

liberdade.

Ela é radical.

Escreve Vachet:

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“Par contre, la deuxième conception de la liberté

d’expansion est radicale: partant aussi de l’homme

naturel, elle voit celui-ci dans une liberté totale qui n’a de

limite que l’individu lui-même. Pour Rousseau, par

exemple, l’homme naturel isolé exprime sa condition

essentielle dans sa liberté en tant que celle-ci se résume

dans l’auto-gouvernement. Cette liberté est originelle,

précédant la raison et. non seulement, toute règle sociale

ou politique, mais toute loi morale. Elle s’identifie en

quelque sorte à la nature”.(155)

Assim, o homem realiza até na imediatez con-

creta, sem qualquer instância mediadora, naturalmente

restritiva, as suas atividades, os seus projetos, como ser

livre. E essa instância pode ser o Estado, a Sociedade, a

Cultura. Nenhuma delas dispõe de poder, de autoridade,

para ocupar o lugar do homem natural, para se equiparar

ao modus essendi da liberdade. Isso significa que a

liberdade faz parte do ser do homem. É inalienável.

Insubstituível. Rousseau diz que da própria natureza dos

homens deriva a liberdade: “.. . la liberté étant un don

qu’ils tiennent de la nature en qualité d’hommes...”.(156)

Nesse caso, a lei não condiciona a liberdade, e sim a

liberdade condiciona a lei.

E aqui se tem um momento clássico na obra de

Rousseau, em que ele exalta o estado de natureza, longe

dos cerceamentos opostos pela sociedade ao livre de-

senvolvimento humano, distante dos embaraços trazidos

pela cultura, a qual, em nome da razão, criou distinções

odiosas entre as pessoas e fabricou toda sorte de males.

Com isso, tudo se complicou, não mais se valorizando a

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sensibilidade, a intuição, caminhos naturais do pleno

desabrochar das faculdades humanas.

Evidente que assim discorrendo, Rousseau cai no

radicalismo, na antagonização do indivíduo frente ao

Estado. Pois sem esta não havia como fazer viável a

liberdade, considerando que, ao se problematizá -la,

forçosamente, se joga com o dado da instituição política

onde acharão um denominador comum as liberdades

individuais em coexistência e, freqüentemente, em

conflito dentro de um espaço social. Percebeu o grande

filósofo francês o impasse. E tentou superá-lo no

Contrat social. Através da “forma de associação” que

preconiza. Nela, a liberdade individual não sofre

qualquer limitação. As pessoas conservam-se tão livres

quanto antes. O essencial é preservado.

O pacto social visa à garantia, à defesa da pessoa

e dos bens dos associados. E, ainda tornando per -

manente a união de todas as pessoas, as leis que daí

emanam resultam da vontade de todos, não como um

colegiado que faça desaparecer a participação de cada

um pela força mesma de entidade coletiva, mas que a

faça sobressair.(157)

Associação desse tipo não prescinde

do auto-governo do indivíduo.

Aí está a origem da lei. A vontade geral não passa

de um artifício para a preservação, para o exercício da

vontade individual. Nisso Rousseau legitima a sociedade

democrática. Sob o modelo das democracias da Grécia

antiga ou da Suíça.

Há uma completa participação das pessoas nas

decisões políticas ou coletivas.

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Nessa matéria, praticamente se confundem von-

tade individual e vontade geral. “L’individu ne se

retrouve donc que dans et par la volonté générale, c’est -

à-dire la volonté collective. La société civile,

l’État,devient donc le lieu de la liberté auquel s’oppose

tout privé, toute association particulière”.(158)

Dessa forma, a concepção radical de liberdade faz

Rousseau eliminar a representação política imanente ao

constitucionalismo de Montesquieu, de Locke, com mais

evidência. Justamente o punctum dolens do problema

prático da liberdade na construção do Estado liberal.

Porquanto ela aí se via, por razões históricas, na

contingência de se esvaziar quase totalmente de sua

dimensão utópica, prospectiva, para e acomodar à

estrutura de classes de uma sociedade permeada de

graves desigualdades sociais.

Na ambigüidade do projeto de Rousseau,

atravessado de tensão, que estabelece a permanente

oscilação entre a vontade individual e a vontade geral

precariamente individualizadas no cenário político,

provavelmente se preserva incólume a liberdade.

Eis que o filósofo do Contrato social não chega

propriamente a oferecer um projeto político, formal ou

tecnicamente falando.

Ele não se compõe de um modelo de organização

política, no qual se esboçam a estrutura e a dinâmica de

um governo, com as normas do seu funcionamento. A

liberdade aí estaria convertida num dado objetivado,

numa técnica, num procedimento cristalizado. O que,

evidentemente, não é o desejo de Rousseau.

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E vem, então, a necessidade de se colocar a

doutrina do Contrato social em harmonia com o que o

filósofo desenvolve na “De l’inégalité parmi les

hommes”.

Como assim?

Nessa última obra constrói o projeto de um

homem novo dentro de uma sociedade nova, onde as

opressões terão cessado, quando o binômio senhor-

escravo desaparecerá, quando os indivíduo s não mais se

depararão com entraves à plena realização de suas

potencialidades.

Ora, é inegável que o advento do pacto social,

não obstante as ambigüidades que comporta e as

concessões que arrisca, não se contrapõe à filosofia

social exposta em tal obra. Pelo contrário, pode até ser

tomado como meio de sua efetivação.

Esse meio seria não uma fórmula acabada, um

instrumento técnico, adequado a um momento histórico,

sopesadas as determinantes dos grupos que têm o poder

de decisão. E, claro está, que o signif icado desse

momento histórico se fundava no presente, na

circunstância da implantação segura do domínio

burguês, entre os constitucionalistas do liberalismo

moderado.

Ficando em torno da especulação, da filosofia,

mesmo em matéria política, parece que Rousseau,

privilegiando o futuro, acreditava ser imprescindível se

transcender o presente, o status quo restritivo da

realização humana, ou mais precisamente, de fe-

chamento das possibilidades dessa realização, em

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sintonia com indicações de uma viabilidade política, não

formulada precisamente. O que acentua o seu utopismo.

Anote-se que, nesse contexto doutrinário, são

partes que compõem a visão social e a visão política.

A racionalização política de Rousseau, centrada

no Contrato, instituindo a democracia, já pressupunha a

igualdade, um dado social.

Ora, se a igualdade se conservava como um

projeto utópico, não há como não reconhecer se fazia

necessária a revolução para a implantar, dadas as

condições da época.

Isso ia cada vez mais encaminhando essa doutrina

para a alternativa socialista, com o crescente avanço do

liberalismo constitucional de Montesquieu, de Locke e

de outros publicistas.

Pois é inconteste que em Rousseau tem suas

origens “o comunismo moderno”, segundo Paul

Janet.(159)

Porém não se omita que faz esse papel no seio do

utopismo.

Assim, falta a precisão científica no trato com

problemas centrais, como a propriedade, não desen-

volvendo uma argumentação em ajustamento funcional

com os fatos, com os matizes da realidade social.

Escreve aquele autor:

“No fundo, só encontramos em Jean Jacques Rousseau

doutrinas incoerentes acerca da propriedade, doutrinas

essas, ora justas e exatas, ora errôneas; e deve confessar -

se que forneceu ao socialismo moderno mais fórmulas do

que argumentos”.(160)

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Ressalte-se, contudo, que ainda no século XVIII,

entre teóricos da Revolução Francesa, graças ao influxo

de Rousseau, ganha corpo, melhor precisão, uma teoria

do comunismo.

E é justamente Mably, que tanto influenciou

Caneca, quem primeiramente dá as bases de uma

estruturação geral dessa teoria.(161)

A caracterização utópica do pensamento do

filósofo francês se faz num estreito relacionamento

entre “ideals and facts, between hopes and reality”.(162)

Ele quase sempre está denunciando um quadro de

injustiça social sem, porém, deixar de sugerir a sua

correção no futuro, com a vinda de uma nova sociedade.

E, ao que tudo indica, trata-se de uma utopia

salientemente impregnada de modernidade, malgrado os

apelos freqüentes a modelos de sociedade antiga ou de

algumas décadas, como no caso da república genovesa,

que trazia a consciência das transformações econômicas

da época e de suas repercussões em todo o âmbito da

sociedade.

Assim, sabia Rousseau que a idéia de virtude

estava sofrendo grandes modificações em razão do

impacto dos novos padrões de vida econômica. Para ele,

a frugalidade mudou de motivação. Entre os repu-

blicanos da Antigüidade romana, era praticada por

virtude; entre os manufatureiros do seu tempo por

avareza, com o fim de obterem mais lucros.(163)

Quer dizer: o já examinado relacionamento entre

teoria e praxis no Iluminismo, possibilitava um melhor

conhecimento da natureza e do significado das trans -

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formações sócio-econômicas de modo a produzir o

redimensionamento da utopia, aproximando-a do seu

conceito mais atual, por por-vir, do ainda-não-existente.

Contudo, o conceito rousseauniano, o iluminista,

de utopia era pleno de moralidade, ficando muito numa

enunciação de denúncias, de opressões, que articulava

despotismo social e despotismo político, com o ofe -

recimento de projetos vagos de felicidade social. Os

quais, porém, constituíam apelos éticos para a par -

ticipação entusiástica na tarefa de construção da nova

ordem de coisas.

Aí está um aspecto importante da utopia, que

representa um avanço notável sobre as visões utópicas

de Thomas More, de Campanella.

Rousseau não tencionava propor um retorno a um

período histórico longínquo, a uma idade de ouro, onde

não houvesse senão “une répartition égale immédiate de

la propriété”.(164)

Depois, ele se situava realisticamente na corrente

do tempo. O futuro era trabalhado no presente. Havia

conexão entre ambos. Diferentemente pensavam os

chamados utopistas. Excluíam o futuro como o “lugar”

de realização do projeto de uma sociedade comunista

onde não existisse propriedade privada. Não admitiam

que essa sociedade nascesse com os recursos do

presente. Veja-se, por exemplo, que a cidade por eles

sonhada não se localiza no futuro, mas num espaço

afastado daquele em que viviam os seus autores.

Essa cidade, a sociedade perfeita, podia ser

instituída a qualquer momento e em qualquer lugar, a

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depender exclusivamente da vontade dos homens que

para tanto fariam uma constituição política.

A propósito, discorre Max Horkheimer:

“L’utopie saute par-dessus le temps. Partant des

aspirations qui sont conditicionnées par une situation

déterminée de la société et qui à chaque modification de a

réalité se modifient elles aussi, elle entend utiliser les

moyens qu’elle trouve donnés dans cette rélité pour

instaurer une société parfaite: le pays de cocagne d’une

imagination historiquement conditionnée”.(165)

Essa concepção de utopia conflita com os grandes

pressupostos da doutrina social e política de Rousseau,

os quais assentam numa antropologia tendente à

concessão de crescente autonomia ao homem.

E é importante ver que ela se inscreve numa pauta

de secularização iniciada com o Renascimento.

Até a religião entra nesse processo.

A religião natural é obra de Rousseau. Obra essa

que seria retomada e ampliada por Kant e por Hegel.

A intenção do filósofo em tela era trazer a

religião ao plano da razão. E através de um processo

educativo em que a pessoa internalizasse valores trans -

cendentais não pelo argumento da autoridade, mas pela

convicção livremente formada.

Os artigos da fé não são impostos “de cima pa ra

baixo”. Eles são conhecidos e acatados a partir de uma

reflexão sobre o indivíduo e sobre o universo que o

cerca. Portanto, sem o auxílio de dogmas ou do

pronunciamento da autoridade. Nessas condições,

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Rousseau adotava uma postura realista, de certo modo

antecipando a concepção mais atualizada da Teologia

que parte da Antropologia.

Com isso, ele se munia de poderoso suporte

ideológico para a sua doutrina social, liberando energias

para o trabalho de afirmação humana. Uma nova ética

surgia daí, aprestando a vontade livre e convicta no

inato amor da justiça. Em oposição ao sobrenaturalismo,

e numa linha que lembra os profetas do Antigo

Testamento, ensinava que a justiça, princípio inato na

alma do homem, aferido precisamente pela consciência,

deve ser praticada no mundo, e que não se deve

transferir a sua realização para o céu.(166)

Transpunha, dessa forma, Rousseau os limites

doutrinários do liberalismo na configuração utópica.

Como se viu, a sua concepção de liberdade é

radical. As bases filosóficas sobre que assenta o

explicam.

Diferentemente acontece com o liberalismo de

Locke, de Montesquieu, de Voltaire, e de outros, que se

orienta para a formulação constitucional, para a textura

de obrigação política que sanciona os interesses da

burguesia, concentrados na propriedade.

O objetivo social é inteiramente elidido aí.

A utopia, inerente ao liberalismo, por obra das

novas construções político-jurídicas, do impulso norma-

tivista, congela-se, paraliza-se. Esvazia-se a idéia li-

beral das nobres aspirações que cobriam o homem e a

sociedade, ao se corporificar no estatuto político, ao se

individualizar no circunstanciamento nacional, fugindo -

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lhe a universalidade e descendo ao mero plano de ideo -

logia de classe, e de classe dominante.

Com a exceção da corrente rousseauniana, é de se

reconhecer que a laicização do pensamento, completa

com a Revolução Francesa, enveredara por um prag-

matismo que atinge até o campo religioso, e que exalta a

satisfação dos apetites materiais, a apropriação de

riquezas, o conforto e o bem-estar trazido pela posse de

bens, pela propriedade, o grande instrumento de

produção econômica e de promoção social.

Descartes é o começo da nova perspectiva

filosófico-ideológica.

Ele ensinara ao homem a procurar por si mesmo,

numa investigação autônoma que afastava o argumento

da autoridade, fundado somente na razão, as leis do

universo, de tudo que nele havia, do corpo e da alma e

das relações entre ambos. Preconizava uma meto -

dologia, desse modo, autônoma, que levava ao domínio

incontrastável da subjet ividade.

Nesse intento, está implícito o cuidado de por

limites ao conhecimento, justamente para evitar que ele

se fizesse frouxo e sem consistência em conseqüência de

uma abstração sem freios, sem rigor lógico. Ou melhor,

fundada numa lógica cujo mecanismo era auto-propulsor

de verdades, tendo perdido o contato com a realidade.

No entanto, é necessário que ser ressalte o

ceticismo que a postura cartesiana gerava, por falta de

critérios objetivos que controlasse o subjetivismo. E

isso é bastante palpável nos pensadores liberais que, por

não contarem com a base segura de uma transcendência,

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no afã do imanentismo, resvalam quase sempre no

pragmatismo, no ideologismo.

A exceção de Rousseau, do liberalismo radical,

justifica-se muito provavelmente pela acentuada

presença implícita do cristianismo, que fornece os

grandes temas de uma antropologia, de uma teoria da

sociedade, do princípio-base da igualdade.

Assim, o hedonismo haveria de marcar defi-

nitivamente o liberalismo conservador, graças à in-

fluência da Psicologia, que vai justificar o indi-

vidualismo.

Abre-se um espaço da sensibilidade, o dos ape-

tites, como coisa natural, a merecer pleno acolhimento,

sob a jurisdição da razão.

Está-se diante de uma proposição que se presta

admiravelmente à uma justificação ideológica de uma

classe ansiosa por se afirmar nos negócios, nas ati-

vidades econômicas. Aquela razão dá-lhe agora forte

respaldo. E numa modalidade em que ela, esvaziada de

universalidade, concentra-se em área específica de

atuação humana, a de sua realização imediata. Torna-se

uma razão seletiva, firmada em prioridade de alcance

próximo.

Para Harold Laski, aí, na raiz do problema, uma

psicologia hedonista sobressai. Ela

“prepara o clima de que o liberalismo precisaria, ao

proclamar o direito do indivíduo a estabelecer os seus

termos com um universo em que o seu próprio conceito de

realização só é limitado pelos seus conhecimentos do que

um homem racional deve procurar atingir. Sua implicação

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é, portanto, fortemente individualista. O processo da vida

é, para o homem, uma constante busca de satisfações que

lhe conferem um sentimento de poder”.(167)

Como não poderia ser de outra forma, o egoísmo

é erigido em moda propulsora da vida humana, no

princípio nuclear de uma prática caracterizada pela larga

abstenção social. O indivíduo agora se rege por uma

moral utilitária que lhe estimula a ação livre nos

domínios da vida material, conquistando um poder

imenso. A moral, a psicologia e a política se encontram

na razão liberal, numa concepção do mundo oposta à da

Idade Média.

Eis que se forma uma teoria da sociedade que

retrata esse “background” filosófico.

Nela se funda o modelo político do liberalismo de

Locke, como de outros pensadores. Contudo, por se

relacionar com os objetivos do presente trabalho, ele

será aqui apresentado.

Locke tem um entendimento dos direitos naturais

que vai de logo afetar substancialmente o dado da

igualdade. É que ela ao tem existência concreta, viabi-

lidade prática numa sociedade cujas relações são típicas

de uma sociedade mercantil.

Di-lo com muito acerto C. B. Macpherson, tra-

duzindo o individualismo do século XVII lá subjacente:

“La sociedad se convierte en um hato de individuos libres

iguales relacionados entre si como proprietarios de sus

propias capacidades y de lo que han adquir ido mediante el

ejercicio de éstas. La sociedad consiste en relaciones de

intercambio entre proprietarios. La sociedad politica se

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convierte en un artificio calculado para la protección de

esta propiedad y para el mantenimiento de una relación de

cambio debidamente ordenada”.(168)

Trata-se de uma sociedade estruturada com vistas

ao domínio incontrastável da burguesia. Um modelo que

marginalizaria, na prática, a classe trabalhadora, cujos

objetivos e interesses subordinar -se-iam aos daquela,

detentora do poder.

Ainda que a Constituição, as leis generalizem a

liberdade, concretamente a aproveita a classe do -

minante. Ela se põe funcionalmente em relação com a

posse. Sendo a liberdade a essência da sociedade

política, e ela viabilizando os interesses da propriedade,

assegurando o pleno funcionamento das relações de

troca, tornar-se-ia um princípio ideológico de manu-

tenção das conquistas burguesas e, apenas de modo

remanescente e precário, uma fórmula utópica, a conter

aspirações de outras classes.

Nessas condições, os trabalhadores constituem

uma classe voltada a um desempenho subordinado, não

lhes sendo permitido sair do mero nível de subsistência

imposto pelo salário. O que lhes retira a pretensão de

participação decisiva na sociedade política. A sua

condição econômica impede-os de serem racionais. Evi-

dente que, desprovidos de propriedade, devem assumir o

papel de seres dependentes.

E Locke também adota a religião como instru -

mento ideológico de contenção, de conformação, dos

assalariados.

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Com orientação diversa da de Rousseau, embora

com ele tenha uma concepção de religião natural,

estabelece que os princípios religiosos devem estar à

altura da capacidade do vulgo, daquele que não tem

condições de elevar-se ao plano das verdades trans-

cendentais, do argumento lógico. Os dogmas mais

simples da fé, numa linguagem de fácil compreensão,

concitando à obediência, à prática dos bons costumes,

devem ser propagados entre os trabalhadores. E dogmas

que se firmem em sanções sobrenaturais, que por sinal

estende a todas as classes, uma religião de prêmios e de

castigos que lembra as recompensas e perdas da

sociedade mercantil.

Tal ainda é o corolário de uma concepção elitista

que alcançava os domínios do conhecimento, da polí-

tica, da economia, da religião.

O assalariado é o vulgo, o dependente, o incapaz

de assimilar a ética racionalista, como as verdades ra-

cionalistas em geral.

Pela religião natural, transfere-se para o além a

possibilidade de conquista do status burguês, de auferir

lucros e vantagens, desde que se mostre dócil, obe-

diente, pacífico, suportando sem queixas e sem revolta a

condição de assalariado.

É um moralismo, produto de racionalização reli-

giosa, que constituiria a fé.(169)

Esse moralismo funcionaria como poderoso fator

ideológico de aviltamento da classe trabalhadora. E num

crescendo que levaria a Restauração a retirar da doutrina

e da prática política direitos que a assistiam.

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Então, marcante se faz aqui a influência do

Puritanismo, que muito contribuiu para a idéia da

incapacidade moral de tal classe. Os trabalhadores eram

comumente considerados como pessoas de costumes

dissolutos, sem merecerem confiança. Já não são mais

vistos como compondo uma classe. São uma “raça à

parte”. Não mais cidadãos. “Un conjunto de fuerza de

trabajo potencial o real disponible para los objetivos de

la nación”.(170)

É comum o se ver nos assalariados uma

mercadoria, um meio de se produzirem riquezas, uma

“materia prima que debia ser elaborada y utilizada por

la autoridad politica”.(171)

É preciso deixar claro para o bom entendimento

do problema da igualdade em Locke, que, conforme a

exegese de Macpherson, há, na obra do pensador inglês,

dois conceitos de sociedade. O que obriga a um tra-

tamento bifronte desse problema.

O primeiro conceito, de inspiração cristã, tem os

homens como iguais, por essência.

Contudo, ele é elaborado através da ótica do

materialismo do século XVII, eivado do enfoque

atomístico, que acabaria destruindo a organicidade do

relacionamento social.

Pois se explicita que a igualdade natural, ao se

tornar problema prático, ao se materializar, exige a sua

conformação à capacidade, ao engenho de cada um. O

que se funda no individualismo a privilegiar o vo -

luntarismo, sem qualquer atenção aos determinismos

sociais.

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E, nesse passo, se cai de novo no moralismo.

É que, se os homens são iguais por direito

natural, também seguramente se afirma que eles são

racionais. Como tais, cumpre-lhes desenvolver as suas

capacidades, agirem denodadamente a fim de fazerem

jus à propriedade, ao lucro.

Assim, comportam-se como homens dignos, bons,

merecedores das benesses sociais, das posições

políticas.

A diligência é toda sustentada por uma ideologia

de fundas conotações morais. Ela se encaminha no

sentido da obtenção das recompensas engendradas pela

sociedade mercantil. O instinto possessivo constitui vir-

tude fundamental. A tanto leva o materialismo do

período, responsável por infrene utilitarismo.

Os homens que não chegam aos resultados

prescritos por essa ideologia omitiram-se na realização

do bem, marginalizaram-se socialmente, tornaram-se

indignos.

Inconteste que a teoria política de Locke se

compõe com essa teoria da sociedade.

Ela enseja a conciliação entre o Estado e o

indivíduo.

O constitucionalismo lockeano representa, em úl-

tima análise, a superação de possível tentativa de

confronto entre individualismo e coletivismo.

Como assim?

Os proprietários são os cidadãos, a eles com-

petindo dirigir o aparelho estatal.

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Exercendo eles o controle da sociedade civil,

naturalmente exercem também o da sociedade política.

Vê-se, assim, o individualismo reforçado pela

presença do Estado.(172)

Tal individualismo se converte no modelo

constitucional em exame em segura salvaguarda do

direito de propriedade.

Mais de uma vez se faz elucidativo o juízo de

Macpherson:

“En el estado de Locke no se halla directament protegido

ningún derecho individual. La única protección de que

dispone el individuo frente a un gobierno arbitrario se

sitúa en el derecho de la mayoria de la sociedad civil a

decir cuando un gobierno ha perdido su confianza de

actuar siempre en el sentido del bien público e nunca

arbitrariamente”.(173)

Possivelmente concebia Locke que os direitos dos

indivíduos estavam subsumidos no direito da maioria. E

o importante era a tutela da propriedade, a qual, como se

deduz facilmente, formava a base de todo o exercício da

racionalidade humana. Fora dessa base nada era

possível, do ponto de vista da valia sócio-econômica ou

política. E da dita maioria se excluía a classe

trabalhadora.

Do sutil jogo do individualismo com o cole -

tivismo no modelo político de Locke sai recrudescido o

bloqueio à afirmação plena dos indivíduos, oficia -

lizando-se a marginalização da maioria real deles. Aí se

revigoram as instituições típicas da classe burguesa, a

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repousar no pragmatismo que dificulta crescentemente a

vertente utópica do liberalismo, congelando-a mesmo no

domínio incontrastável da maioria formalizada pelo dito

modelo.

Com isso, a igualdade não alcança o patamar da

objetivação, permanecendo apenas de modo subjacente

no modelo liberal, e por força da inspiração cristã, como

força latente a emergir nos momentos de crise.

E é fundamentalmente por justificar as desi-

gualdades sociais numa teoria elitista da sociedade, que

a concepção de liberdade é restritiva. Com ela se tem o

liberalismo centrista ou autor itário.

O pensamento político de Frei Caneca integra a

chamada corrente do liberalismo radical, que, como se

examinou, privilegia a utopia.

No entanto, necessário se faz sublinhar que a

peculiaridade da postura caneciana produz uma mani-

pulação toda especial da utopia, dando-lhe um facies

conceitual específico.

De início, e como postulado básico, não se deve

omitir que a circunstancialidade do pensamento do car -

melita, determinando-lhe atitudes estratégicas, de den-

sas implicações políticas, transmite essa mesma circuns-

tancialidade à utopia.

De sorte que não se pode falar sequer da

possibilidade de permanência da mesma postura em

outras circunstâncias.

Por outro lado, ressalte-se o profundo emba-

samento ideológico, traduzido na mentalidade conser -

vadora, dominante no período, entre nós.

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O próprio estado da sociedade brasileira assim o

determinava. Sociedade escravocrata, com domínio

absoluto de uma elite proprietária, cavada por grandes

desigualdades sociais.

As normas e os valores atuantes denunciam

notoriamente a herança colonial, o projeto da Contra -

Reforma, a antropologia pessimista e alienante expressa

no saber de salvação, o conceito pobre e inexpressivo

da história, em que pese a reforma pombalina. O que se

retém de mais progressista são as idéias do Enciclo-

pedismo, as do Federalismo, as teorias constitucionais,

no seio de uma elite estudiosa.

Nessas condições, a veiculação do liberalismo

radical dá-se, no país, num contexto de mentalidade

adversa, ainda que se queira apelar para a ação

subversiva das entidades secretas com o auxílio de

ideologias radicais.

A tese que se propõe agora é a de que Frei

Caneca não levou até à autêntica radicalidade o seu

pensamento. Faltavam-lhe condições subjetivas e

objetivas para tanto.

Prioritariamente, a circunstancialidade de sua

obra doutrinária, em grande parte condicionada pelas

exigências da luta política, não lhe permitia a

formulação em bases sólidas de uma filosofia radical. E

a partir da qual toda a sua reflexão política se

desenvolvesse com originalidade e necessária

amplitude.

Onde uma concepção da história, uma teoria da

sociedade, uma antropologia, profundamente estrutu-

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radas e articuladas com um modelo político, nos escritos

do frade pernambucano?

Isso não quer dizer que não apresentem eles todas

essas coisas. Porém o fazem ao calor do exarcebamento

ideológico, quase sempre, sob o acicate da luta par -

tidária. Daí revelarem principalmente tendências, dire-

ções de pensamento, entre posicionamentos estratégicos,

muito ao sabor do momento, dos acontecimentos.

Nesse labor, afloram com freqüência elementos

da mentalidade conservadora do período, ao lado de

proposições radicais e, às vezes extremamente radicais.

Tome-se o exemplo seguinte: Em trecho de um de

seus escritos, adotando uma concepção francamente

escolástica, contraposta à outra que dignifica a auto -

nomia humana, tão a gosto do Iluminismo, diz, inclusive

ressuscitando a ideologia feudal:

“O monarquia, a aristocracia, a democracia , todas são

potestades; todas vêm de Deus; todas são ordenadas por

Deus; a todas se deve de obedecer, e por todas se deve de

orar.

E a maneira que Deus é o instituidor na monarquia, o é

também na aristocracia e democracia, ou puras, ou

temperadas.

E a única conseqüência que daqui se deve tirar é que Deus

aprova toda e qualquer forma de governo, que as nações

hajam de estabelecer para melhor encherem os deveres da

lei natural; bem como quando se trata da escravidão Deus

manda aos servos e escravos, que obedeçam a seus

senhores temporais, com temor e tremor, na sinceridade de

seus corações; com o que jamais se pode provar, que Deus

mande positivamente estabelecer a escravidão”.(174)

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Em outro escrito assume uma tese completamente

oposta à retrocitada, ao afirmar: “Toda espécie de tributo público, diz o abade Mauri a fl.

233, desagrada o povo, e não pode jamais existir algum,

que não prejudique parcialmente a liberdade ou a

propriedade dos cidadãos, e M. Rainal, no tomo 3º, fl.

552, que o tributo e o imposto é a prova do despotismo, ou

aquilo que mais depressa ou mais devagar conduz a

ele...”.(175)

Aqui Frei Caneca perfilha a corrente mais radical

do Iluminismo francês.

A circunstancialidade dos escritos, dos quais

destacados os trechos acima, então se patenteia. Eles

refletem dois momentos diferentes, duas estratégias

diferentes. O discurso caneciano, mesmo na limpidez da

linguagem periodista, se desdobra sob a ars probandi,

que traz à colação qualquer dado capaz de fortalecer a

tese. Trata-se de uma linguagem essencialmente ju-

rídica, que não deixa de utilizar o silogismo. O que é

muito válido para o escrito ideológico, circunstancial.

No fundo, pretende-se atingir aquele objetivo particular.

Assim, se clarifica a circunstancialidade de uma obra

doutrinária, que, ao final, se apresenta bastante

fragmentária, nela podendo-se apontar pesadas

contradições, como se viu no exemplo há pouco

projetado.

Diante das considerações expostas, cumpre agora

precisar a dimensão utópica do liberalismo de Caneca.

Já foram registradas as influências múltiplas e

contraditórias que estão no cerne dos seus escritos.

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Entre elas, Kant tocou profundamente o que diz respeito

à concepção da teoria e da praxis.

O grande filósofo fecha o caminho para uma

prática sob a égide da utopia, e tendente à realização ao

longo do tempo da igualdade social.

Numa colocação muito aproximada da de Locke,

aceita a coexistência do Estado liberal de duas

categorias de cidadãos, os ativos, dis Staatsbürger,

eleitores e com plena participação na soberania, e os

passivos, die Staatsgenossen, sem personalidade civil,

apenas desfrutando da proteção das leis. Nessa última

categoria colocava as mulheres, os assalariados e os

criados. Todavia, estes podem passar de uma categoria

para a outra, se assim a lei o permite. Nesse passo,

procura conciliar a liberdade com a igualdade natural.

Sem que, porém o consiga. Porquanto persistem, na

verdade, as grandes desigualdades.

Afirma Raymond Polin:

“Kant abre por esse modo o caminho para um liberalismo

aristocrático, notável pelo rigor dos seus princípios, pela

sua preocupação de emancipação política , mas também

pela estreiteza de suas aplicações”.(176)

Um dos teóricos que mais influenciaram Caneca,

Montesquieu, por igual barra o acesso liberal à utopia,

na forma característica do pensamento da Restauração.

A sua concepção da história já traz esse

fechamento. Ela se articula funcionalmente com a teoria

política que esboça.

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Aliás, não criou ele propriamente uma teoria da

história.

Não chega a desenhar um sentido da história.

No interior de uma relação constante entre a

natureza e o princípio de governo busca apanhar a

evolução histórica.

Esta se dá, portanto, em limites pré-estabelecidos,

em quadros pré-definidos, que reprimem a esperança em

mudanças radicais, em transformações que rompam

aquela relação constante, ensejando o advento do

novum.(177)

A ênfase que igualmente dá aos costumes, às

tradições, na melhor linha romântica, determinantes da

eficácia das leis, já diz bem da sua posição.

Não sem razão considera a monarquia o regime

do presente. E a monarquia com os fundamentos da

ordem feudal.

Uma monarquia se apoiando na nobreza e no

clero, especialmente na primeira, mas pressupondo a

estrutura de ordens, dentro das quais se inserem.

As leis encontram arraigado suporte aí, donde flui

o poder.

Assim, a essência da monarquia é a honra.(178)

A existência de ordens privilegiadas por si corta a

possibilidade de materialização do princípio da igual-

dade social. As desigualdades, dentro do regime

monárquico, são uma constante.

Ao tratar da república, Montesquieu que, evi-

dentemente, a desdenha, diz que nela se pratica a

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democracia. Não porém a democracia direta de anti-

gamente, e sim a representativa.

E, ainda aí, se mostra a propensão elitista do

pensador francês. Porque afirma textualmente a sepa-

ração dos “homens livres” dos que não o são. Tais os

escravos e os artesãos. Isso nas democracias antigas,

cuja separação aplaude. Com as adaptações necessárias,

transpõe o modelo para a teoria política do seu tempo,

recomendando cuidado para não se acolher o “baixo

povo” na dita representação.(179)

Quer dizer: também na democracia devem per-

sistir as desigualdades.

Na famosa teoria da separação dos poderes, a

moderação pretendida ou a suposta autonomia absoluta

de cada um deles, instituindo um sistema de freios ao

arbítrio governamental, acaba, na prática, numa “com-

binación de potencias”.(180)

Aí o poder do monarca, que representa o poder

executivo, consolida-se, na verdade, como o mais

forte.(181)

Desse modo, mesmo na monarquia constitucional

ele tem predominância. E a criação do Poder Moderador

viria apenas coroar com um reforço as prerrogativas do

monarca, conferindo-lhe uma posição ímpar na “divisão

dos poderes”.

Em tudo isso se vê o objetivo primacial dos

teóricos da Restauração em restringirem cada vez mais o

exercício da soberania do povo. E é justamente esse

objetivo que vai incentivando as desigualdades sociais,

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pela concentração dos direitos políticos na classe dos

proprietários, com a restrição das liberdades civis.

Nessa linha doutrinária se destaca Benjamin

Constant, o criador das chamadas constituições cen-

sitárias, inclusive com receptividade entre nós.(182)

Veja-se Silvestre Pinheiro Ferreira e a Cons-

tituição de 1824.

Não há dúvida que, como bem disse Lemos Brito,

a realeza encerra um autoritarismo contrário à de-

mocracia.(183)

Tanto isso é verdadeiro que Caneca, no calor da

refrega revolucionária abandonaria a devoção que

prestava à monarquia constitucional e, em parte, às

lições de Montesquieu, para adotar plenamente a causa

da república democrática.

Porque, qualquer que seja a forma de monarquia,

ela tende, na verdade, a limitar a soberania do povo, as

liberdades, especialmente num país de fundas tradições

autoritárias como o Brasil. A esta altura, já se percebe

melhor a dificuldade de se fazer viável no contexto do

país o liberalismo radical.

Afora o mencionado contexto de mentalidade

conservadora vigente entre nós, Caneca se via

embaraçado pelos próprios autores liberais que muito

contribuíram para a sua formação, notadamente para a

elaboração do modelo constitucional que propagava.

Como se examinou, esses autores traziam

acentuado teor de conservadorismo que favoreciam

antes a implantação do Estado liberal centrista ou

autoritário. Daí vem que o carmelita se veria compelido

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a mobilizar a componente radical ou utópica do seu

pensamento em outras fontes.

Antes de tudo, necessário lembrar que ele já

encontra elaborado um núcleo originário do liberalis mo

radical com Cipriano Barata.

Por aí se apoderava do utopismo rousseauniano,

que, com efeito, vai constituir -se um aspecto importante

mas não único do seu liberalismo.

É que não se devem omitir o profetismo inerente

à teologia que esposava e ela própria, de muita

importância.

Tem-se aí uma exuberante tônica sobre teses que

se ocupam de uma justiça, de uma liberdade, repassadas

de utopia, de alcance num futuro distante.

No primeiro capítulo deste trabalho foram ano-

tadas algumas atitudes proféticas do grande carmelita,

algumas delas tendo por alvo o próprio Cabido de

Olinda, o comportamento da Igreja a que pertencia.

Primava pela autenticidade, não se conformando

com o erro, com a injustiça, com a opressão, com a

omissão, onde quer que elas se manifestassem, cora-

josamente denunciando-as.

Assim, nutria admiravelmente um sentido an-

tecipador das coisas. Como se as visse sempre incon-

clusas. Como se o Ser fosse apanhado no dinamismo de

sua realização, mas se deixando contemplar de antemão

em plenitude.

O Iluminismo otimista está na raiz dessa postura.

Como também o Cristianismo que, na visão antecipada

do futuro absoluto, na parusia, instaurou a meta, onde o

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Ser é o próprio ato, realizada toda a potência, na

linguagem aristotélica.

Importante sublinhar em Caneca o espírito de jus -

tiça imanente à uma linha de comportamento autêntico e

de realização integral do homem, dentro da prática

religiosa, ou talvez melhor dizendo prática da fé, tal a

grandeza dos juízos que expende sobre o assunto, que

ele parece transpor os limites do confessionalismo, tão

vivo no seu tempo, na verdade antecipando teses da

Igreja contemporânea, pós-conciliar.

Então, ele supera o dualismo espírito-matéria,

corpo-alma, natural-sobrenatural, vendo o homem como

um todo, permeado em todos os momentos de sua vida,

em todas as áreas do seu comportamento, por profunda

moralidade que o faz cônscio de obrigações para com

Deus, para com a sociedade, para com o próximo, para

com a nação, numa unidade indissolúvel.

Desse modo, não cabe na teologia caneciana a

separação cartesiana dessas obrigações. Há uma impli-

cação recíproca entre elas. O que, com efeito, representa

na época um radicalismo, uma extensão do liberalismo

utópico, que pregava nos meios mais desenvolvidos a

indissolubilidade da antropologia e da política, dentro

do contexto histórico-social.

Portava, assim, uma visão mais integral, mais

ampla, que o liberalismo centrista, longe de, na prátic a,

intentar, muito ao contrário tratava de obscurecer ou

marginalizar.

Recriminava a caroline, a hipocrisia inerente ao

devocionismo absorvente, que leva à desqualificação

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moral do homem, que pode servir de pretexto para a sua

grave omissão diante dos problemas sociais e políticos.

Caneca quer vê-lo atuante, cumprindo os seus

deveres de estado, os quais concebia como uma parcela

de participação na tarefa em prol da nação.

A religião tem uma profunda dimensão ética, para

ele, e como tal, de muita influência na vida social, na

vida política.

Aliás, este problema foi focalizado no primeiro

capítulo do presente trabalho, quando se demonstrou a

impossibilidade de nítida distinção entre os

fundamentos religiosos e os fundamentos filosóficos na

obra do carmelita.

O importante agora é explicitar o fato de uma

religião entremeada por uma moral secularizada, emba-

sando-se numa antropologia, servindo de suporte

ideológico à ação política.

A própria religião já fora secularizada por

Rousseau, tornando-se moral, como se verificou

anteriormente.

A reforma pombalina, de par com o Iluminismo

francês, favorece o advento da nova teologia, voltada

para o terreno secular, também, se bem que dita reforma

não permitisse que ela se abrisse a ponto de pôr em

risco a segurança do Estado inaugurado sob a égide do

despotismo esclarecido.

Num dos seus escritos Caneca deixa claro que a

Igreja não deve ficar alheia aos graves problemas que

afligem a pátria, aos cidadãos.

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Assim, ele se opõe ao que considera omissão do

Cabido de Olinda no concernente a essa matéria,

dizendo, entre outras coisas, o seguinte:

“Viu o cabido a guerra civil abrir a lice; derramar -se o

sangue precioso do irmão pela mão do mesmo irmão; e o

cabido?

Caladinho.

Viu os povos divididos entre o erro e a verdade, vacilant es

sem saberem que estrada seguir; a intriga e a calunia

correndo com a rapidez do raio, levando os estandartes da

revolta até o mais interior do bispado; os cidadãos probos

caluniados, consternados, trementes, e esperando a cada

momento pelo seu degoladouro sobre os altares do

interesse e da ambição; e o cabido?

Caladinho!!!”.(184)

Está clara aí uma tomada de posição a favor do

engajamento da Igreja em assuntos da vida secular,

desde que em jogo as exigências da verdade e da justiça.

E, sem dúvida, se identifica nesse setor um

núcleo filosófico estimulante e consolidador da estrutura

utópica do pensamento caneciano.

É que tal núcleo, em aliança com o ideário radical

do Iluminismo francês, possibilitaria a propositura de

teses francamente utópicas, e com o significado es-

clarecido por Karl Mannheim:

“Chamaremos utópicas somente as orientações que

transcendem a realidade e que, ao serem postas em

prática, tendem a destruir, parcial ou completamente, a

ordem de coisas existente em determinada época”.(185)

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A começar pela idéia central de liberdade, os

escritos do carmelita estão plenos de temas cuja

aplicação importaria necessariamente na transformação

ampla da sociedade brasileira do seu tempo. E isso ia

contra os valores dominantes e que inspiravam a

disposição das forças sociais e políticas dessa

sociedade.

Tanto é assim que, no seu tempo, Caneca en-

contraria formidável resistência ao tipo de liberalismo

que propunha. Apenas o futuro algumas proposições

dessa doutrina, como o Federalismo, achariam o mo-

mento propício de realização.

Todavia, ao longo do Império e até da República,

o ideário utópico do frade seria uma constante,

alimentando uma possibilidade.

Depois do que já foi examinado, tem-se por

comprovadamente assentado que esse ideário não

percorre tranqüilamente todo o contexto da obra ca-

neciana. Mesmo se ficando no mero domínio político.

Ele compõe um momento epistemológico, que se

diferencia em muito dos outros, eivados de conteúdo

doutrinário que fechava o acesso à utopia.

Montesquieu e Locke, entre outros, estão nessa

linha.

No entanto, tal a carência de estruturas políticas

no país, na quadra da Independência, que ambos se

completavam em darem subsídios importantes para a

edificação do novo Estado brasileiro.

A monarquia constitucional vem daí.

Nesse ponto tinham a sua serventia.

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Numa nação recentemente saída do estado de

colônia, o projeto político da Independência era uma

colocação obrigatória.

E veja-se que o liberalismo utópico não se preo-

cupara prioritariamente com esse projeto. A não ser p ara

instrumentalizar os direitos individuais, a liberdade. Em

Caneca isso é bem típico.

Retomando a postura rousseauniana, lança as

“Bases para a formação do Pacto Social, redigidas por

uma Sociedade de homens de letras”, na qual se dá mais

ênfase à liberdade do que à organização política.

Trata-se de um projeto de documento introdutório

ao projeto de Constituição, sem o qual esta não

desfrutaria de nenhuma eficácia.

Esse documento traria as normas que visam “a

conservação dos direitos naturais, civis e políticos”.(186)

Tal a prioridade que o liberalismo radical lhes

concedia. Constituíram o objetivo mesmo da Carga

Magna.

Por transcender a realidade do seu tempo, a

proposição em foco, com todas as conseqüências dela

extraídas, mergulha na utopia. Diz também da ausência

de um sistema coerente nos escritos do carmelita. Os

quais se ressentem, na verdade, de sólido embasamento

teórico.

Com razão afirma Antônio Paim:

“De modo geral, o combativo publicista não parte de

princípios claramente estabelecidos. Desejoso da

Independência e de um ‘governo constitucional’ – cujos

contornos precisos nunca chegou a delinear – foi

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elaborando uma doutrina ao sabor dos acontecimentos e

até mesmo da posição dos adversários”.(187)

Já se observou linhas acima a coexistência de

partes contraditórias nos escritos de Caneca.

Isso é resultante da dita insuficiência teórica, com

o reforço da circunstancialidade.

Mas não se deve esquecer que se está diante de

um pensamento político-ideológico, armado para o

estabelecimento de critérios norteadores de uma tensa

conjuntura política, conflitante especialmente ao nível

das elites.

Como tal, ele é fruto da mobilização urgente de

valores que orientassem a ação prática, o ímpeto

revolucionário. No que se vira forçado a realizar cortes

epistemológicos no copioso acervo dos publicistas de

vários matizes, com esse fim.

O dado político se sobrepõe ao teórico.

Não importa, seguindo essa tese, o confronto

entre textos conservadores e textos utópicos ou radicais.

A não ser para a sua melhor explicitação.

Antes de tudo, a própria insuficiência teórica se

compõe com o contexto de mentalidade conservadora,

de atonia social, a denotar a inexistência de matrizes

culturais consistentes, capazes de incentivarem a

elaboração de um liberalismo entre nós, de ext ração

nacionalista.

E como era forte o determinismo que fluía dessa

mentalidade conservadora!

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O pensamento político-ideológico de natureza

circunstancial, com vistas ao alcance revolucionário, tal

como possível no período, facilmente se coadunava com

aquela mentalidade.

É que o utopismo nele imanente não ia

naturalmente ao ponto de sequer pleitear reformas de

largo porte, sociais, não obstante Rousseau, Mably,

Raynal. Nem tampouco o povo, cujo conceito talvez seja

o mais ambíguo em Caneca, recebeu cuidadosa atenção.

Porquanto o interesse básico, aí subjacente, é o de uma

burguesa que emergia e que já se revoltara em 1817.

Assim, não havia condições pára a bem cuidada

elaboração teórica do liberalismo radical no país.

Disse-o com propriedade Vicente Barreto:

“Para serem bem compreendidas as dúvidas e imprecisões

conceituais de Frei Caneca é preciso lembrar que a sua

obra teórica foi feita para atender circunstâncias políticas

em que era requerida uma racionalidade dos acon -

tecimentos”.(188)

O fato de a utopia caneciana se intensificar em

quadra revolucionária, nos instantes de crise, quando até

teses denodadamente defendidas anteriormente são

substituídas por outras, no que há de muito estratégico,

com o abandono do freqüente tom conciliatório imposto

pela mentalidade conservadora, demonstra à sociedade o

caráter circunstancial, político -ideológico, destoante do

rigor teórico, de um pensamento que não encara rea-

listicamente os obstáculos que se lhe antepõem.

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Provavelmente por tática ignora-os, ou se recusa a

avaliá-los.

Assim, ao passar do tom conciliatório ao

genuinamente radical, o projeto político que sustenta

sofre modificações, contanto que seja fortalecido o ideal

da liberdade. A evolução dos acontecimentos vai

gerando essas modificações. Resume bem essa atitude

Lemos Brito ao escrever:

“Trabalhando pelas idéias de Montesquieu a respeito da

liberdade, assustado pelas ameaças da antiga metrópole,

que trama a reconquista da sua colônia, estimulado no

próprio Brasil em oposição aos interesses da nação

emancipada, o frade pernambucano abandona as soluções

intermediárias, como fizeram os patriotas do Rio, que

certamente não se acomodaram ao golpe da dissolução da

Constituinte por docilidade perante o monarca, mas pelo

temor de sacrificarem a independência pela liberdade

política, e se entrega de corpo e alma ao pregão de uma

democracia avançada, com a liberdade de imprensa por

base e a sujeição do imperador à vontade popular por

culpa do regime”.(189)

Isso está bem patenteado no “Typhis Pernam-

bucano”, de 27 de maio de 1824.(190)

Interessante é que, quanto mais se fortalecem os

obstáculos, rejeitando a autoridade central as propostas

conciliatórias, mais ganha corpo a utopia, como nos

episódios descritos na citação acima. Então, cada vez

fica mais distante a meta.

A insuficiência teórica do projeto polít ico

caneciano aqui se faz sentir de modo acentuado, pre-

judicando-o visivelmente.

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O conceito do povo, por exemplo, apresenta-se

ambíguo, ora num sentido depreciativo, ora num signi-

ficado mais dignificante.

O carmelita pernambucano, nesse passo, como em

outros, sofreu a influência elitista de Locke e de

Montesquieu. E porque não dizer da própria tradição

absolutista?

De sorte que, ao dizer que a soberania vem do

povo, fica no terreno da imprecisão, não se sabendo qual

autor ou qual momento lhe dita o significado.

Ao aludir às três classes: nobreza, clero e povo,

provoca a dúvida quanto à soberania residir no povo

como classe ou no Povo, reunindo todas elas.

Há momentos em que Caneca revela grande

pessimismo com relação ao povo.

Não tem confiança nele.

É profundamente elitista.

Num dos seus escritos assevera que

“a volubilidade e o amor da novidade é, como diz o

Venusino, o caráter essencial da população; a qual hoje

lança por terra e despedaça as estátuas, que ontem

levantou aos seus bemfeitores e aos seus heróis. Mas que

tenham assim obrado homens, que pelos seus talentos, sua

doutrina e suas ações pareciam estar sobranceiros ao povo,

nos faz ou chorar com Heraclito a loucura e inconstâncias

dos homens, ou delas nos rirmos com Demócrito”.(191)

Assim, não é de admirar que afirme: “A canalha

de qualquer lugar é a parte mais ínfima do povo, pela

sua qualidade, pelas suas ocupações, pelos seus vícios,

pela falta de educação honesta”.(192)

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De outro ângulo, quando o instante político,

muito provavelmente, exige que se afague o povo, tem

para ele palavras enaltecedoras.

Diz, por exemplo, que os matutos, os homens do

mato, “são o verdadeiro órgão da pública opinião”.(193)

Também condena a aristocracia, com os seus

privilégios abusivos, vendo na concentração ou na

“reunião das diversas regalias no chefe do poder

executivo”(194)

uma forma de sua manifestação.

No entanto, isso não retira de Caneca o elitismo,

mas atenuado, próprio da época em que vivia, de

transação entre a velha e a nova ordem.

É justamente esse elitismo que arrefece o ímpeto

revolucionário, nacionalista, de congraçamento amplo

das raças, do europeu, do brasileiro, caindo muito na

retórica ao colocações que a respeito faz em “Sobre o

que se deve entender por Pátria do Cidadão”.

No auge da crise política, em 1824, na ocasião de,

com a pregação da democracia, se apelar para o povo e

com a necessidade do seu recrutamento para a luta

armada, para a insurreição, sente-se a falta da comu-

nicação consciente com ele. Porquanto, entre outras

coisas, não fora suficientemente valorizado no libe -

ralismo radical.

Recorde-se que, na época, os proprietários rurais

detinham a vida política. Fora eles havia a grande massa

de escravos e uma esfera reduzida de homens livres, d e

pouca valia política. Desse modo, percebe-se que Frei

Caneca nutria uma concepção de povo, bastante

condicionada pela realidade social do seu tempo.

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A propósito, preciosa a informação de Paulo

Mercadante:

“Quando da independência, na segunda década do século

passado, o Brasil político era algumas centenas de

famílias dispersas pelos extensos latifúndios e que

constituíram a única realidade política do país. Uma

sociedade de proprietários, em geral rudes, cuja vida

repousava naquela dualidade econômica já aludida.

Senhores de escravos nos domínios e comerciantes de

produtos de exportação. Entre essa gente próspera das

fazendas e a massa de escravos, mestiços e cafusos,

vegetava com ínfimos salários nos centros urbanos uma

parcela reduzida de homens livres. Estes dispunham de

modos de pensar correspondentes a estratos sociais

inferiores, sem validade pública; ao domínio é que caberia

fornecer grupos sociais encarregados de proporcionar uma

visão do mundo para a sociedade senhorial”.(195)

E não há dúvida que o frade pernambucano

representava os interesses de uma elite proprietária que,

na sua província, chegara a um estado de radicalismo,

conforme se analisou no primeiro capítulo.

Trata-se de uma circunstância na qual somente os

elementos dessa elite e os seus prepostos, e entre estes

os que compunham uma intelligenza, tinham re-

presentatividade política.

O restante era aquela massa amorfa, ociosa ou

agarrada ao sub-emprego, a turba, facilmente trabalhada

para as agitações.

Em uma circunstância tipicamente pernambucana,

que empolga o espírito de Caneca, retirando-lhe a

possibilidade de uma visão coerente do todo nacional.

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Ao expor “no Typhis do dia 10 de junho os

princípios da separação das províncias, sente -se quanto

em seu pensar o sentimento local estava acima do

sentimento nacional, quanto Pernambuco preocupava-o

mais que o Brasil inteiro”, escreve Tobias Monteiro.(196)

Em face dessas colocações, a utopia caneciana se

circunscreve nos domínios da mentalidade conserva-

dora. E o radicalismo que preconiza não passa dos

limites da luta armada. Tudo isso não obstante

Rousseau, Mably e outros genuínos radicais.

Esses pensadores, cm o acréscimo da concepção

do Cristianismo propagada pelo heróico carmelita,

provavelmente a face mais original do seu pensamento,

e mais Cipriano Barata, dariam os aspectos de maior

abertura do liberalismo radical entre nós.

Todavia, todo esse material é manipulado por ele

com vistas à montagem e ao desdobramento de sua

estratégia.

E nesse material se inclua o subsídio do

constitucionalismo da Restauração, do próprio libe-

ralismo centrista ou moderado, do racionalismo

tradicional.

A utopia caneciana se dobra àquela estratégia.

Esta é estilizada ideologicamente em momentos

sobrepostos, com o objetivo de alcançar as metas

políticas, que culminariam numa república democrática

federativa.

A conciliação do elemento doutrinário vário se

põe nessa perspectiva. É preciso ver o pensamento

caneciano sobretudo como um pensamento político, para

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se entender o jogo da manipulação de dados díspares,

com vistas aos interesses que abriga.

Nunca demais o realçar o vigoroso caráter

ideológico aí incrustado, ao qual se ajunta a camada da

utopia, em larga desenvoltura. E com essa estratégia e

ideologia, ou melhor dizendo, o elemento utópico da

ideologia não se conforma com razoável precisão aos

quadros da realidade objetiva. Principalmente quando se

tem em mente a tarefa a empreender, a se operar, uma

mudança importante nessa realidade.

Daí o reforço compensatório do voluntarismo, do

moralismo. E, por essa via, conciliando a “razão” liberal

com as exigências da ação.

A “sobreimposição” que marca a ideologia

caneciana, e já comentada, viria com o impulso político,

num período de impossível elaboração autônoma do

material nacional. Ela também reflete os momentos, o

exercício da estratégia política. Disso a simplificação é

uma conseqüência natural.

O legalismo, tão presente na obra de Caneca, por

si só, atesta essa simplificação, sofreando o alcance

utópico, na linha do liberalismo.

A mobilização do discurso racionalista. Retórica e do-

mínio autoritário da linguagem. O estilo polêmico na

confluência do padrão racionalista e da circunstância.

O discurso racionalista tende a criar uma situação

de arbitrariedade no jogo complexo dos signos, das

expressões, das frases, projeções mesmo dos axiomas,

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das premissas, de antecipações cristalizadas de formas

verbais, que constituem a base mesma do arrazoado.

Ele utiliza uma linguagem que busca a coerência.

Mas não de um modo a referenciá-la no contexto

dinâmico das objetividades, com o rigor que lhe é re-

querido. Assim, é um discurso silogístico, auto-demons-

trativo, auto-suficiente, autoritário.

Por isso, privilegia a forma, com prejuízo do

conteúdo. Não sem razão, e a partir da Aristóteles, a

lógica, no discurso racionalist a, é imanente à linguagem,

na expressão sintática se firmando.

A semântica é o próprio mundo dos significados

fornecidos pela palavra como criação artificial, e não

como o reflexo pleno da realidade humana, aí.

Então, o mundo, essa realidade humana, con-

tinuam distanciados do sujeito. E o diálogo se ressente

de maneira inusitada, fortalecendo o exarcebamento

ideológico, os preconceitos, o monólogo, que cristaliza

e dogmatiza “posições”.

Sustenta Georges Gusdorf:

“Le langage manifeste la transcendance de la réalité

humaine, seule capable de constituer le monde. Avant la

parole, le monde n’est que le contexte actuel, toujours

évanouissant, des comportements humains, sans même que

soient bien délimités les confins de la personnalité et de

l’ambiance. Le langage apporte dénomination, précision,

décision; à la fois conscience et connaissance” .(197)

Daí porque não pode haver dinâmico e eficaz

relacionamento sujeito-objeto, pessoa-mundo, sem uma

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linguagem que seja o meio de expressão vigoroso dos

acontecimentos, dos desdobramentos do real, com o

enriquecimento correlato da subjetividade.

Quanto mais a linguagem se insere nesse contexto

dialético, como instrumento de uma expressão humana

aberta para o novum, para o ser em processo de

plenificação, que divisa horizontes, que perscruta

tendências, que arma antecipações, que é futurística,

mais ela torna flexível a sua estrutura.

E, nesse caso, instrumentaliza a liberdade de

forma criativa, no plano da pessoa humana e da

sociedade. Ela marcha concomitantemente com o pen-

samento, que é sempre palavra.

O discurso racionalista criou uma compensação

artificial às suas limitações estruturais no tocante à

abertura para o mundo; o normativismo.

Por ele e através dele se formaram expressões

típicas, nasceram fórmulas, estereótipos, tão freqüentes

nos pensadores, nos publicistas, e que alicerçaram

concepções, construções político-jurídicas, um direito

natural a se sobrepor às contingências particulares.

A falta de uma linguagem dinâmica, integrada

funcionalmente com a cultura, com sólidos liames

antropológicos, cavaria a situação de se pretenderem

universais aquelas fórmulas, quase todas verdadeiras

ficções, mas absolutizadas pelo liberalismo.

E a linguagem senhorial, com muita ênfase vei-

culada pela sociedade tradicionalista e, at ravés da

retórica, principalmente no período da Restauração,

andaria de mãos dadas com a linguagem do liberalismo.

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Nos escritos de Frei Caneca, tocados pelo espírito

da Restauração, isso se fez sentir com ascendência.

Os seus sermões são trabalhados seguindo os

critérios dos melhores mestres da Eloqüência. E sobre a

qual elaborou um tratado.

Mas a retórica não fica apenas aí. Ela pervade

toda a obra caneciana, ora isoladamente, ora em com-

binação com a linguagem mais direta, simples.

Exemplo solitário é o “Itinerário”, onde o autor

faz um relato muito fiel dos eventos, sem qualquer

atavio literário, como quem está redigindo uma carta.

Aqui não há o emprego da retórica.

No panfleto, evidencia-se um estilo próprio, de

alta exacerbação ideológica, no qual se realiza

integralmente aquela combinação. Ele constitui um

extraordinário campo de pesquisas.

Pois onde a retórica, a ideologia, o autoritarismo,

dão ao discurso uma configuração especial, traduzindo à

perfeição a postura política utópica-radical do carmelita.

Todos os números do “Typhis Pernambucano” assumem

essa forma.

Com efeito, sem a análise da linguagem retórica,

nos seus diversos desdobramentos, não se compreenderá

de todo o discurso caneciano.

A retórica, pela sua natureza, dispõe de auto -

dinamicidade, de uma movimentação própria, sob

princípios ordenadores, com larga captação de recursos

na esfera dos sentimentos e da imaginação sob o

pretexto de agradar a leitores ou a ouvintes.(198)

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Nisso, ela se pode converter numa ideologia,

quando não é já de começo uma ideologia.

Afora o elemento intelectual, sobre o qual age a

influência retórica, induzindo a confirmação ou a

modificação dos dados que o sujeito, que recebe a

mensagem, possui a respeito da circunstância presente

ou do futuro, o elemento afetivo, muito dinâmico na

manifestação ideológica, pode levar o mesmo sujeito

“a desejar ou a temer a realidade de certos dados da

situação presente ou a realização de certas eventualidades,

quer despertando neste parceiro a esperança de certas

satisfações ou o receio de insatisfações, quer, ao

contrário, procurando inibir tais esperanças ou

temores”.(199)

E se observe que a nota dominante dos escritos de

Frei Caneca é a de convencer os leitores da certeza e da

veracidade de suas teses, num estilo demonstrativo ou

jurídico, que traz as informações ao interior do

arrazoado mais para aumentar o poder de convencimento

do que para construir as mesmas teses. Estas estão

previamente estabelecidas. Cumpre levá-las adiante.

Mas não houve mudanças no projeto polít ico

caneciano, com o desdobramento dos acontecimentos?

Sim, de fato. Isso não trouxe, contudo, alteração

na técnica, na forma do poder de convencimento.

A retórica facilmente se mantém em diferentes

domínios do saber ou dos saberes. Transpõe-nos mesmo

atingindo todos os campos da realidade humana, ine-

rente que lhe é uma linguagem geral, projeção indis -

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cutível das práticas sociais. Uma constante ideológica,

que assume maior ou menor intensidade, esta ou aquela

configuração, a depender da circunstância histórica.

Para Roland Barthes, “a retórica é a técnica

privilegiada (já que só pagando se consegue adquiri-la)

que permite às classes dirigentes assegurar-se a pro-

priedade da palavra”.(200)

Até o século XIX ela reinou, numa ampla

oficialização, normativamente imposta, sobrevivendo

hoje em certas atitudes ideológicas facilmente

identificáveis.

Barthes tem inteira razão. Em Caneca é manifesta

na mobilização retórica, a vontade de poder de uma elite

burguesa, que se vê distanciada da propriedade política.

O autoritarismo de sua linguagem, energicamente

afirmativa, se compraz no jogo retórico do monólogo de

quem se reputa dono da verdade, e que a defende

exacerbadamente.

Na verdade, a retórica é uma linguagem senhorial

correlativa de uma ideologia da forma.

Ela quer se sobrepor à história e se pretende

invulnerável aos seus determinismos.

Representa uma sócio-lógica e contém uma

identidade taxionômica, em correspondência com o

estrato histórico que lhe é inerente. E de tal sorte que,

desfeito esse estrato, ela se esboroa.(201)

Eis que a dimensão utópica do liberalismo ra-

dical, entre nós, somente se viabiliza da forma singular

explicitada, a saber mediante a superposição lingüística

que acompanha a superposição ideológica. Outros níveis

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de linguagem que não o da retórica, principalmente, ou

em combinação com ela, veiculam a mensagem utópica.

A mentalidade conservadora, por sua vez,

permite, sem graves danos para a elite proprietária, que

tal mensagem transcorra as esferas sociais que lhe estão

atreladas. Pois ela com ou sem os ingredientes retóricos

não transpõe perigosamente os lindes dessa mentalidade.

Assim, corre frouxo o desdobramento utópico no

plano do discurso caneciano, sem abalar a ordem social

vigente.

Jamais esse discurso reúne condições de alcançar

a ascensão do discurso rousseauniano, malgrado as

influências deste.

Jamais ele se levanta contra a propriedade, contra

as desigualdades sociais.

A não ser a condenação expressa nas “Bases para

a Formação do Pacto Social” à escravidão, não se

registra uma Palavra enérgica à malsinada instituição.

Ao fazê-lo ele estaria infringido as linhas mestras da

ideologia senhorial que compartilha.

No discurso caneciano é trancado o acesso p leno

ao real.

Nele, linguagem e ideologia tecem uma viva

intercorrência dialética, sendo difícil a separação entre

ambas.

Essa intercorrência dialética não se estende

funcionalmente à dinâmica social.

Porque a linguagem continua com as mesmas

construções, com o mesmo ordenamento tradicional das

proposições, tendendo a conservar intactos o mundo do s

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valores, a retórica, o conjunto articulado dos sig -

nificados.

Tais valores, dado aquele relacionamento teoria -

prática, afinavam com as operações rotineiras da so -

ciedade pouco dinâmica.

Assim, ocorria até que conservadores, e foram

muitos os que aderiram à Confederação do Equador,

eram liberais radicais, uma camada da burguesia que

achava no radicalismo uma abertura para os seus

interesses.

Isso obstruiu uma concepção eficaz da história.

O estilo polêmico-panfletário seria a exacerbação

dessa linguagem ganhando a dimensão plena da

linguagem política, na qual emerge o sentido neurótico

da disputatio.(202)

E não é a exacerbação das “posições” a projeção

do fechamento da linguagem, que impede a composição

dialética dos pontos de vista, o reconhecimento dos

dinamismos sociais, um denominador comum de in-

teresses em torno dos objetivos públicos, num período

de intenso privatismo, que cobria os segmentos da

classe dominante, determinando que cada um deles

guardasse intransigentemente a sua posição?

Daí não vinha que o campo do discurso, na

contextura de proposições axiomáticas, de juízos abso -

lutos, fosse o abrigo da certeza inquestionável, dos sig -

nificados irremovíveis e seguros?

Ora, na prática panfletária isso se intensificava.

Os interesses políticos em jogo assim o ditavam.

As paixões eram gigantescas no tempo.

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O teor ideológico recrudescia, alcançando o

pathos efervescente, numa circunstância vivamente

conflitiva. E a nota conflit iva era mais intensa porque

resultava da contraposição entre segmentos da elit e do-

minante, que só conhecia uma linguagem, a do

autoritarismo retórico.

Havia, então, a confluência do mesmo padrão

lingüístico-ideológico, desconhecendo-se outros, apenas

possíveis numa sociedade razoavelmente diferenciada.

Pois se houvesse tal diferenciação social, e com

ela a diferenciação do discurso, da linguagem, quebrar -

se-ia aquele autoritarismo. O tom exacerbado do dis -

curso, da polêmica arrefeceria.

Até onde entra aí a atmosfera do sagrado de uma

sociedade, o absolutismo religioso que se projetava no

sermão, na eloqüência que o armava?

A eloqüência tem um papel destacado aqui. Ela é

campo propício ao juízo absoluto, à verdade absoluta.

O que dizia esgotava o tema. Ela quer demonstrar

as altas teses.

Essa demonstração desce até ao panfleto.

Apenas este se faz mais ideológico, mais circuns-

tancial, mais ao nível do conflito. Assim o conflito entre

liberais centristas e liberais radicais.

A superposição é evidente: racionalismo sobre

acontecimento, ensejando o desnivelamento ideológico

por razões estratégicas e de composição teórica, com a

reunião de material diverso, sobretudo em função da

circunstância. O que se faz com certo arbítrio, com certa

simplificação.

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O absolutismo do discurso racionalista o fran-

queava. Mais ainda no momento do confronto.

Diante dessas considerações, apreende-se melhor

a correlação entre utopia e discurso em Frei Caneca.

Esse discurso é urdido de tal modo que a utopia

nele se apresenta com uma especial conformação.

Preliminarmente se observe que, em termos

gerais, “el campo de la posibilidad lógica es más amplio

que el de la posibilidad real”, segundo Frédéric

François.(203)

Aí está um traço fundamental do discurso. Disso

se vale o heróico carmelita para impor a sua estratégia

político-ideológica, conforme os moldes expostos.

Nela se manifesta uma racionalidade que não se

dá conta do irracional que absorve.

Dir-se-ia que a possibilidade lógica, adquirindo

inusitada auto-suficiência, gerava possibilidade dita

real, na verdade se traduzindo em segmentos quebrados

da realidade objetiva, da história que se fazia.

O caso da República Federativa, o do auto-

ritarismo contido no poder central, formam exemplos

expressivos de um desdobramento utópico não alinhados

dentro de uma perspectiva global de dados concretos,

perfeitamente imbricados entre si.

Por isso, prestam-se mais ao uso político-

ideológico, dando-lhes conformação própria.

É que, a ideologia caneciana, como as demais,

incluindo as contemporâneas, e ela com as limitações do

período, desenvolve-se em situação conflitava, portanto

uma imagem verossímel do real.

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“Lo que hace posible, linguisticamente, el conflicto entre

las ideologias, es que todas ellas son verosímiles.

Verosimil no se opone a cierto. Atribuimos mucho menos

certeza a nuestras ideologias que a nuestra ciencia, en la

cual el análisis se efectúa, antes, en términos de

probabilidad. Verosímil significa: alli donde no que se

puede hacer otra cosa que mostrar donde la demonstración

analitica no es más que un artificio”. (203a)

Nos escritos do frade pernambucano essa ve-

rossimelhança adere à estratégia político -ideológica que

perfilha, numa estrutura de superposições lingüísticas,

na qual a retórica tem primazia.

Então, nasce o artifício que viabiliza a pregação

utópica sob os condicionamentos da mentalidade

conservadora.

Quer dizer: o material libertário, o mais avançado

no tempo, é utilizado em prol de determinados objetivos

políticos, adaptando-se perfeitamente àquela estratégia,

com o esvaziamento de teses que, noutro contexto,

levariam a perturbações mais sérias da ordem cons-

tituída. Os agentes do liberalismo radical entre nós in-

tegravam a elite dominante, com interesses, com

linguagem, com práticas, com comportamentos próprios

dela.

A concepção do mundo que adotavam se chocava

com a dos liberais radicais de outros países, não só pela

diversidade de contexto cultural, como também pelo

desnivelamento de linguagem, pela maior ou menor

abrangência de utopia, pelo maior ou menor aco -

lhimento do universal, pelo maior ou menor desen-

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volvimento dado ao problema da liberdade, pela

densidade antropológica e social, aprofundada nas

fontes, mitigada aqui.

Com Michel Foucault torna-se possível um exame

mais apurado dos diversos discursos que, ao longo dos

tempos, constituem amostras sucessivas de

regularidades, imanentes às quais uma prática.

Tais regularidades entendem diretamente com

conjuntos de enunciados.

Usando a expressão daquele filósofo, quer-se

acentuar aqui a “homogeneidade enunciativa”.

Ela compõe uma unidade global que permite uma

compreensão mais ampla das articulações que se

desenham no emaranhado das práticas discursivas.

Por isso, abre horizontes, alarga perspectivas de

apreensão do dizer humano, e com todas as implicações

de ordem antropológico-existencial.

E Foucault diz que a homogeneidade enunciativa

se distingue da “analogia lingüística (ou traduti-

bilidade) e da identidade lógica (ou equivalência)”.(204)

Ela marca períodos específicos, mas não

herméticos, porque a sua influência cobre vários deles,

embora sem a plena autonomia e o domínio do momento

originário.

Em todo discurso há enunciados diretivos a

condicionarem o campo da observação e o dos objetos a

serem detectados, os modos de descrição e de exegese, a

formação dos conceitos com uma conseqüente aplicação,

as colocações estratégicas que manipulam recursos da

linguagem, da lógica, certas técnicas.

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Assim, a homogeneidade enunciativa utiliza

elementos da linguagem, das configurações lógico -

epistemológicas, dos procedimentos metodológicos, das

filosofias, das visões do mundo, sem se confundir com

nenhum deles.

E não lhe escapam também o jogo entre as

instituições, as práticas sociais, as ideologias e as

linguagens.

Nisso, Foucault dá uma original e importante

contribuição às ciências humanas, considerando-se que

o “objeto (destas) é agora a linguagem, as leis segundo

as quais se organizam as linguagens sociais, históricas

ou psicológicas. A consciência não é mais, nessas

condições, do que uma representação – o mais das

vezes, falaciosa dos determinismos que a or-

ganizam”.(205)

No setor das ciências humanas, a história, e mais

particularmente a história das idéias, muito aproveitou

da “descoberta” da arqueologia. Porque através dela se

capta com especificidade as formações discursivas, os

enunciados, o campo enunciativo, as práticas discursivas

etc., sublinhando diferenças.

Verdade que entre arqueologia e história das

idéias há uma radical contraposição de procedimentos,

de objetos.

A única afinidade entre ambas proporciona-a o

fator tempo, a sucessão, fazendo da arqueologia uma

história.

Todavia, tendo em mente aquela relação já

mostrada entre linguagem e determinismos sociais, entre

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linguagem e práticas que afloram no campo da cultura,

não há como deixar de reconhecer a utilidade para o

historiador das idéias da elaboração de Foucault.

Desse modo, just ifica-se plenamente o emprego

da arqueologia na análise do discurso de Frei Caneca.

E tanto mais quanto se percebe que esse discurso,

composto principalmente entre 1820 e 1824, retrata

certas regularidades, certas formações, próprias do

racionalismo clássico, e analisadas pelo filósofo francês.

Por outro lado, não fica tudo aí. Pois uma

perquirição não muito demorada colherá no discurso do

clérigo revolucionário de diferentes níveis, todos eles

articulados operacionalmente, e com vistas à propagação

do liberalismo radical. Assim como à estratégia da luta

armada e ao confronto de ideologias panfletárias. E

refletindo o momento subseqüente à independência

política do país, o qual culmina na Confederação do

Equador.

Aqueles diferentes níveis, sobrepostos uns ao s

outros, denunciam uma formulação composta, a teoria

política de Montesquieu, o federalismo e as projeções da

circunstância, como se analisou.

Essa formulação produz uma distribuição peculiar

dos enunciados, maior ou menor afirmação das

verdades, diversificação de ritmos de linguagem e de

estruturas narrativas, segundo o gênero da produção e a

conjuntura, ambos postos freqüentemente em relação

dialética.

De modo que ao se pode encontrar a linha de uma

rígida uniformidade, aí.

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Na verdade, existem diversos campos enun-

ciativos nos escritos de Frei Caneca, atestando aquele

caráter compósito.

Sermões, panfletos, obras didáticas, relatos his -

tóricos, diário, estudos cívico -políticos, análises

teológicas, integram o acervo intelectual do autor em

foco. Essa variedade por si só marca a existência de

variados campos enunciativos, de desníveis no discurso.

O que se intensifica pela força da circunstância, muitas

vezes. Mas não convém esquecer que, no bojo das

diversificações, na trama das sobreposições de lin-

guagens, permanece subjacente o discurso clássico.

E o afrontamento dinâmico da conjuntura, ao

realçar a insuficiência ou a indigência desse discurso,

como que lhe forneceu uma compensação.

É que a linguagem que nele se externa acentua

uma soberania, a qual mais acentuada ainda no calor da

refrega panfletária e na crispação revolucionária.

Num primeiro momento, a dita soberania se

confina estritamente ao espaço da representação. E de

uma maneira que o pensamento é imanente à repre -

sentação, e não ao mundo.(206)

Num segundo momento, porém, essa linguagem,

pela sua inacessibilidade ao mundo, se fecha em

introduções retóricas e autoritárias do discurso, ne -

cessitando de um complemento para comunicar o

evento, o desenrolar da conjuntura. E assim vem a

sobreposição, o desnível, a desritmia, manifestos de

forma particular: através do relato periodístico, que tem

muito das palavras do senso comum.

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Ao final de contas, efetuou-se uma derivação que

apenas toca a realidade exterior, sem lhe absorver o

cerne, distanciada ficando de suas conexões desve-

ladoras. E é justamente aqui que entram em cana o

doesto, a incriminação violenta, a repulsa enérgica aos

adversários.

Isso funciona não de forma uniforme, porquanto,

como se disse a ausência de uniformidade percorre todo

o discurso de Frei Caneca.

Trata-se, contudo, de um esquema que funciona

no interior das formações particulares de enunciados,

ora com maior ora com menor intensidade.

Tome-se um exemplo claro, o da dissertação que

tem por título “Sobre o que se deve entender por P átria

do Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”.

Na introdução, coloca ele as premissas, racio -

nalistas como sempre, do tema que irá desenvolver

adiante.

Nelas faz aflorar a supremacia das idéias sobre o

contexto social, sendo elas independentes dele, como

verdades que se absolutizam, que requerem apenas

aplicação prática. E nessa aplicação prática se con-

servam incólumes. Tal espelha os contornos dogmáticos,

herméticos e soberanos do pensamento como repre-

sentação, e nada mais do que representação.

Escreve o monge carmelita:

“Sendo dado ao homem o entendimento para, ao favor de

suas luzes, saber marchar nos diversos caminhos da vida,

e ser-lhe um como fio de Ariadne no intrincado labirinto

do mundo, quem poderá duvidar, que não sendo este bem

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formado com as idéias das coisas humanas, cairemos em

erros absurdos?

Com efeito, as idéias falsas e inexatas, que fizermos das

coisas sociais, produzirão infalivelmente juízos falsos,

incoerências, crimes, atentados, perturbações da sociedade

e a sua ruína final”.(207)

E ele prossegue atribuindo a selvageria de um

povo à sua ignorância.

É pela instrução que o cidadão pode prestar o

maior serviço ao seu país.

Ao trazer à colação trechos da poesia de Horácio,

reforça o apelo racionalista ao acervo do humanis mo

greco-romano.

E, aqui particularmente, esse acervo tem um

efeito probante, demonstrativo. Pois se compreende que,

na soberania da linguagem racionalista, principalmente

de matiz clássico, o argumento da autoridade tenha

especial privilégio.

Na peça em exame a introdução vale como

introdução retórica, tal como usual nos sermões da

época.

Daí parte para a abordagem propriamente dita do

tema, que é motivada pela intensa rivalidade, respon-

sável por muitos atritos, entre portugueses e per -

nambucanos. E o faz sem se deter em algum momento

sobre os determinismos próprios da conjuntura, moti-

vadores do confronto.

O que responsabiliza pela rivalidade?

Nada mais, nada menos que “a falsa idéia, que se

tem feito da Pátria do Cidadão”.(208)

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Então, não percorre o autor sequer a epiderme de

uma trama causal dos acontecimentos.

Apenas faz menção ligeira de datas-chaves, de

episódios marcantes da história pernambucana, no que

concerne à dita rivalidade, e através de um estilo

retórico, que estabelece de logo uma estratégia peculiar

para o discurso.

É uma estratégia que, tal como o sermão, quer

convencer, e não explicar ou interpretar.

Daí porque não se tira daí senão a lição moral.

Longe estava a época, entre nós, de um cuidado

pressuroso sobre o encadeamento dos fatos uma língua-

gem que o encarnasse.

O moralismo, tão transparente no discurso ra-

cionalista, é o centro mesmo daquela estratégia, que

prepara a distribuição dos enunciados, a articulação de

um sentido que é mais o do sujeito que fala do que o dos

eventos, o das “coisas sociais”.

As regras de composição do sermão, não no seu

rígido formalismo, mas no espírito que procria, contudo,

a indefectível disposição formal, estão aí presentes.

Elas ditam o acasalamento do estilo retórico, com

pesada carga sobre enunciados prenhes de afirmações

didáticas, com a intentio probandi.

Natural, então, que as proposições, ao darem

conta da infidelidade dos homens e dos fatos à oral

inerente ao discurso, tendam à recriminação, à censura

acre das pessoas sobre as quais caia responsabi lidade

das práticas sociais, das conjunturas.

E, desse modo, transborda o individualismo.

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Ele é a face natural do moralismo, da ênfase

sobre o sujeito, numa época em que o objeto permanece

subsumido nas malhas da linguagem, como uma coisa

opaca e pouco translúcida.

Estranho o conúbio aí entre eventos trazidos em

citação, e ocorridos em períodos transatos, como a

Antigüidade, e os contemporâneos, apenas aflorados,

fazendo da História algo inanimado, que já disse todas

as coisas.

É a História do tempo cíclico, fruto da concepção

grega. Ela constitui material didático, servindo ao

intencionalismo moral.

Como então não ver que, assim, a linguagem

também é cíclica? Não sem razão o tema da pátria

recebe um tratamento especial, herança típica que é da

tradição romana, transplantada para o racionalismo

clássico. E se prestando para configurar enunciados-

modelos, inseridos na doutrina liberal.

Qualquer que seja a situação, o acontecimento, a

conjuntura estão presentes tais enunciados no imo -

bilismo do discurso, correlativo do imobilismo social.

O tempo do discurso é correlativo do tempo

social.

Por isso, a linguagem jurídica, filha do modelo

clássico, é empregada com muito freqüência por Frei

Caneca, ao construir enunciados demonstrativos, os

quais podem pertencer à família dos enunciados-

modelos.

Ele mesmo também é um jurista, e invoca o

direito natural, com as fórmulas clássicas, as do direito

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romano ou as posteriores, com o propósito de fun-

damentar enunciados-teses, de dirimir questões que ele

próprio suscita e não diretamente o contexto.

O legalismo representa uma face do moralismo,

insinuando-se com naturalidade numa linguagem que se

fecha ao real.

Com o legalismo aquele imobilismo recebe forte

respaldo.

E os objetos do discurso ganham, em função de

tudo isso, uma soma absurda de repetições, de

postulados cristalizados, que impede as distinções

naturais que há em cada um deles, à medida que o tempo

transfigura ou matiza as coisas.

No tema em foco, o da pátria, por força de

estereótipos enunciativos, Caneca invoca opiniões de

filósofos e de publicistas, desde os tempos greco -

romanos até os de sua atuação, para dar uma definição

de pátria, que acaba enrijecida e que não acolhe as

distinções dadas pelas épocas, pelos lugares.

É que, na linguagem jurídica, se identifica va o

leito natural da autoridade e da razão.

Não é de estranhar, portanto, que, em deter -

minado momento do seu “arrazoado”, afirme o frade

pernambucano: “Basta de autoridades, passemos às

razões”.(209)

Então, começa a fazer demonstrações silogísticas,

que constituem formas de derivações juntamente com as

“deduções”, a partir de certos postulados.

Tudo para justificar uma tese, previamente

colocada.

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E novamente traz o apoio do legado greco-

romano e do Iluminismo: Ovídio, Cícero, D’Alembert,

Voltaire, afora outros, entre os quais estabelece uma

comunidade discursiva.

Pois entre eles situa uma intercorrência de

pensamento, de postulados de derivações, fundando uma

estratégia que tem muito do Iluminismo, mas também

dele próprio.

Por ela, autoridade e razão são elementos

inseparáveis, elos centrais de uma cadeia de enunciados

demonstrativos, que visam ao convencimento.

É que todas as derivações se fundam, ao final de

contas, no argumento da autoridade, direta ou in-

diretamente.

Como assim?

As deduções, mesmo sem se firmarem expli-

citamente num autor tradicional ou moderno, acostam-se

a uma formulação axiomática ou a colocações próprias

da tradição ou do racionalismo clássico.

De sorte que não há jamais uma linguagem

imanente aos fatos, a não ser em raros momentos,

quando o senso comum condiciona o relato.

Quer-se afirmar isso com despeito ao nível

enunciativo, do qual é exemplo frisante o do tema da

pátria.

Ainda aí se observa que o argumento da razão

ganha acentuado arbítrio, mercê da soberania da

linguagem que não se defronta serena e humildemente

com a realidade externa. E a ponto de incorporar ao

cerne da argumentação um dado que lhe é visceralmente

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antípoda, contrário. Especialmente se se considerar a

linha de secularização que percorre o Racionalismo.

Esse dado é o da Providência, que emerge como a

intervenção de um poder superior ao dos homens.

Isso significa que o humanismo iluminista se

auto-limitava, não concedendo plena autonomia ao

homem, vendo-o ainda impotente no mundo.

Parece que a interferência de uma força

sobrenatural é inerente à estrutura de uma linguagem

que se mostrava indigente na edificação de uma

Antropologia voltada para o real, para o domínio do

concreto, de modo eficaz.

Caberia à Feuerbach iniciar o momento autônomo

dessa Antropologia.

A prática iluminista ainda se ressente do

adensamento contemplativo, não obstante o humanismo

que inaugura. A sua linguagem bem o demonstra.

Concomitantemente com o providencialismo, ins -

tila-se destacadamente em Caneca um certo pessimismo,

que se articula com o implícito reconhecimento das

imitações humanas.

Nesse ponto, há, de certo modo, uma contradição

com outros textos do autor, aqueles que se intervalam

em produções que indicam outros níveis enunciativos,

portadores de outras regras, de outras estratégias , de

outros contextos, de outros condicionamentos.

Porque o comum nele é uma confiança inabalável

no homem, como ser capaz de efetuar mudanças insti-

tucionais, de transformar situações de opressão, de im-

plantar um regime político sob o primado da liberdade.

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Só em ele ser um revolucionário, um incon-

formado diante de uma estrutura absolutista ou auto -

ritária, não se comprazendo apenas com o protesto

verbal ou escrito e indo até à luta armada, diz bem da fé

que alimentava no homem como agente de mudanças.

De maneira que ao afirmar: “pede a razão que nós

olhemos toda terra como um lugar de desterro, à fim que

nos costumemos à todo lugar, à que nos levar a

providência”,(210)

deve-se admitir-se aí a postura comum

de uma sociedade sacralizada, na qual a religião exercia

um papel absorvente dentro da cultura e das instituições

brasileiras.

Isso naturalmente pesava na formação de um

religioso, malgrado os interesses seculares que, no

período, começavam a envolver o clero no país.

Tal se ligava ao contexto do discurso iluminista,

um grande instrumento de estímulo àqueles interesses.

Importante realçar que o providencialismo de-

nuncia um contexto lingüístico ambígüo, cuja expressão

semântica se demora sobre a liberdade, sobre o ativismo

do homem e, ao mesmo temo, sobre o “desterro” que é a

terra.

Frise-se, contudo, que, no jogo da ambigüidade

semântica, a ênfase é sobre o humano, o secular.

E o apelo à providência se faz normalmente como

reforço retórico da demonstração que se intenta, da

dedução que se faz.

Aquelas limitações antropológicas assim o

determinavam. Pois a linguagem soberana utiliza meios

compensatórios de um sentido que se articula com o

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real. A falta de plenificação do sentido no real induz

essa prática.Todos os níveis do discurso do mártir

pernambucano adquirem identidade segundo os matizes

de linguagem.

É que esta dispõe de uma elasticidade que

acompanha talvez mais o gênero literário do que a

filosofia do escritor.

Os cortes de linguagem, obedecendo à uma

estratégia política ou didática (ou as duas combinadas),

formam diferentes discursos.

Assim, no sermão, no panfleto, no diário, na

dissertação, se desenrolam pensamentos, uma visão

teológica, uma analítica de conjunturas, uma filosofia

política, uma antropologia, uma concepção da

sociedade. E de uma maneira tal que se inserem não de

todo, globalmente, nesta ou naquela obra. Cada uma

enfatiza determinados significados, até com certa

peculiaridade de sintaxe, com uma formação enunciativa

particular, na dependência daquela estratégia.

Acontece até abandonar Frei Caneca a domi-

nância da enunciação demonstrativa para se concentrar

no relato seco, na descrição simples, que corre ao sabor

das impressões da campanha como guerrilheiro, ao final

do movimento confederativo de 1824, do qual foi o

ideólogo.

Tal se dá no “Itinerário que fez Frei Joaquim do

Amor Divino Caneca, saindo de Pernambuco a 16 de

setembro de 1824, para a Província do Ceará Grande”.

Mas ainda aí não se encontra ausente uma

“estratégia”, um tema, a teoria política, uma concepção

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do homem, o providencialismo. E na introdução do

trabalho. É que aqui os objetos, a estrutura enunciativa

corrida, a explicitação semântica, os conceitos expen-

didos, respondem ao gênero do mesmo trabalho.

Daí o corte especifico que produz na obra do

autor.

Quer dizer: o que há de mais comum no discurso

caneciano, a alta densidade axiomática, formada por um

edifício de enunciados cuja base a compõem as pre-

missas da autoridade e da razão, e cujo topo ou

conclusão um determinado alinhamento dos fatos ou dos

objetos com vistas aos propósitos ou ao cerne axio -

lógico assentados na base, vai perdendo ou diminuindo a

carga desse modelo à medida que se passa dos escritos

mais doutrinários para os de pouca ou quase nenhuma

formalização ideológica.

A literatura panfletária do clérigo pernambucano,

malgrado os desníveis nela existentes, se enquadra entre

os escritos de menor densidade.

A ideologia, no recinto do panfleto, compõe uma

estratégia toda especial, na qual a doutrinação ora

alcança um alto teor de expressividade, na “introdução”

ou ao longo do desdobramento enunciativo, ora se

esmaece no relato factual.

Mas essa expressividade não se articula tanto com

aquela densidade axiomática, e sim com o impacto dos

acontecimentos de uma conjuntura política convul-

sionada.

Está-se na quadra subjacente ao momento da

Independência.

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O confronto entre a idéia autoritária, abrigada no

liberalismo centrista, e a idéia libertária, com morada no

liberalismo radical, do qual Frei Caneca é o principal

arauto, o grande teórico, empolga os espíritos. E cons-

titui facções que se defrontam com exacerbação.

É então que se desenvolve a literatura panfletária,

cujos representantes máximos são José da Silva Lisboa,

pelo liberalismo centrista, e Frei Caneca, pelo libera-

lismo radical.

Isso na quadra compreendida entre 1822 e 1824.

Diga-se de logo que há uma visível comunidade

de métodos, de formação e de distribuição dos grupos

enunciativos, de tratamento dos objetos, de linguagem,

que denuncia o discurso racionalista.

Nos panfletos dos centristas há um privile-

giamento exaustivo do conservadorismo, que apenas

reorienta as colocações liberais, quer as atinentes à

ordem, quer as referentes à liberdade.

Interessante que aqui se correlacionam três or -

dens: a do cosmo, a da sociedade humana e a do dis -

curso, o que se veicula através de uma linguagem que

recapitula a representação, numa demonstração de que

não acompanhara essa facção certas conquistas da

empiricidade e do homem na linguagem da mesma

época, notadamente na Europa.

Nesse caso, ocorre um maior distanciamento entre

os objetos-eventos e a formulação enunciativa, com-

pondo uma prática que se esmera na sacralização dos

atributos majestáticos, autoritários, da ordem esta-

belecida. E com a emergência de um sentido vivo de

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hierarquia dos seres, de hierarquia de estamentos, com o

rei no topo.

Um forte teor de religiosidade integra essa

ideologia.

Dentro de uma região fechada do sagrado a re-

resentação como que recobra forças, bloqueando no

interior dos enunciados, da estratégia, da organização do

discurso, a epifania de algo importante, a ruptura

provoca pela intensa crispação dos acontecimentos.

O sagrado se cinge à dimensão do tempo estático,

repetitivo. Coroa a soberania da representação e se

acompanha do móvel moralista, tirado do racionalismo.

No moralismo se manifesta também a comunidade

existente entre o conservadorismo e o radicalismo.

A diferença está em que no primeiro ele busca a

obediência, o posicionamento definitivo e eterno das

pessoas conforme a ordem estabelecida, o acatamento de

todos à autoridade intocável do soberano, que, na or-

ganização política, se situa de modo privilegiado, acima

de qualquer outro poder; e, no segundo, ele erige como

valor primordial a liberdade, cobrindo os opressores

com o estigma da desumanidade, da malvadeza etc.

A objurgatória violenta, os doestos, os insultos,

as diatribes contra os adversários políticos, tidos na

realidade como inimigos, a paixão virulenta das dis -

cussões, coisas assim que são imanentes à linguagem

panfletária, indicam bem a força do moralismo, afora a

natural paixão partidária do período.

Não se omita que o voluntarismo é uma das faces

do racionalismo.

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Isso significa que a prática dos homens, o com-

portamento das facções, quando inspirados na ideologia

racionalista-liberal, estavam orientados por uma vo n-

tade, que se justapunha, mas não era do domínio natural

da representação, porque, como se examinou, essa,

fechada à realidade exterior, não integrava a ação, a

história, a praxis, campo específico do comportamento

humano.

Em conseqüência, produzia-se um fenômeno no

âmbito do discurso, o da sobreposição de blocos

enunciativos, um arranjo singular dos objetos, uma

atuação particular do sujeito ou dos sujeitos, um tipo

original do relacionamento sujeito-objeto, uma mar-

cação distinta dos eventos, determinando uma estrutura

de linguagem, a panfletária.

É digno de interesse a verificação daquele esmae-

cimento da força axiomática no ordenamento dos

parágrafos, no aligeiramento do estilo, na simplicidade

da sintaxe, da estratégia.

Mas é justamente no dito esmaecimento que

ganha relevo e energia o discurso político, agora armado

de maior poder de comunicação. Poder de comunicação

que é vontade de poder, que atravessa com impe-

tuosidade os círculos da elite letrada e proprietária,

levando o apelo à ação ou à reação.

Esse apelo não passa pelas mediações sociais, não

se socorre de uma análise das possibilidades do

manuseio e das modificações dos objetos, de um plano

de superação dos males condenados, dos fatores que

confluem, quando devidamente absorvidos, para o bom

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desempenho das atividades políticas, e com vistas ao

êxito da causa esposada.

A linguagem racionalista não o permite.

Vem então o voluntarismo, cujas projeções claras

e impositivas constituem a própria densidade moral de

um agrupamento de enunciados, a estrutura de com-

posição do texto, por onde caminham como gritos de

fogo as recriminações contra a violação das teses da

ideologia política abraçada pelo panfleto.

As infringências ao modelo do constitucionalismo

liberal puro, sem concessões à velha ordem monárquico-

feudal, são recebidas, pela facção radical, como atos que

denunciam uma trama de grupos conservadores, a al-

mejarem o retorno ao estado de dependência a Portugal.

Manifestações anti-liberais de Pedro I, como a

dissolução da Assembléia Nacional, levam aquela

facção a ver a execução da mesma trama.

E então vêem no corpo do discurso panfletário

uma estratégia moralista na qual os dados do hu-

manismo iluminista, habitualmente jogando com me-

táforas, com disposições retóricas que absorvem desde

elementos da mitologia grega até às projeções da

história, se acasalam com os episódios integrantes da

conjuntura nacional ou provincial, sempre terminando

com invectivas, com censuras acres ao despotismo

ministerial, a uma política oficial que pratica arbi-

trariedades, prisões ilegais, atos anti-constitucionais.

E tal numa escala ascendente, a começar aí por

1823, até culminar no concitamento à revolta armada

para defender, entre outras coisas, a autonomia pro -

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vincial, o absoluto respeito aos direitos individuais, u ma

constituição que estabeleça a supremacia do poder

legislativo, aquele que abriga a representação nacional,

a voz do povo.

O estilo do panfleto é polêmico, que afronta o

adversário com palavras de fogo, inserindo-o no interior

de uma estratégia entremeada pela descrição factual,

pelas colocações retóricas, pelo tom de desafio, pela

ironia ferina que acompanha a objurgatória, pelas de -

clarações de heroísmo.

Ocupa o discurso panfletário um lugar especial

num contexto estratégico que responde aos desafios

reiterados, freqüentemente duros, da luta política.

Por isso, ao contrário de outros escritos, vê -se

constrangido ao confronto envolvente dos fatos, das

ocorrências da conjuntura tumultuada.

O alinhamento enunciativo que, em função disso,

se dá, enseja dificuldades. Porque a realidade exterior

não sabe de modo funcional no seio da representação

inerente a uma teoria que apenas começou a romper a

opacidade da linguagem, se conseguir, porém, con-

figurar os objetos, os fatos, numa dimensão de processo

sócio-político.

Porém não se esqueça que, no âmago do discurso

panfletário, é que Frei Caneca, como outros, conseguem

maior sintonia com os eventos, com a conjuntura.

A indigência ainda persistente nesse gênero não

autoriza um apanhado, mesmo periodístico, da situação

factual. De modo que a descrição não equaciona devi-

damente a trama conjuntural, o emaranhado completo

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dos fatos e do mundo de significados daí decorrentes.

Porquanto esses fatos são os marcantes de uma

conjuntura, como o da dissolução da Assembléia Na-

cional, e compondo uma classe de enunciados in-

tercalados na exposição ideológica, a do liberalismo

radical, e com o sentido de afirmação autoritária dessa

exposição.

Não há uma correlação dinâmica entre os fatos e

a estratégia presente no discurso. É que faltou uma

análise mais minuciosa, mais objetiva, salientando o

jogo das realidades nacional e provincial, os meandros

da situação real da sociedade civil e as suas ligações

com a sociedade política, adotando uma nomenclatura

tão a gosto dos publicistas liberais.

A radicalidade do discurso caneciano, nessas con-

dições, malgrado uma prospectiva, uma utopia, que lhe

são imanentes, se fechava no bojo de uma estratégia

ainda muito tocada pela representação, insusceptível de

realizar a abertura ampla e dialética com a conjuntura,

até ao ponto de modificá-la operacionalmente.

Tudo isso está presente na vasta polêmica par -

tidária que desenvolveu no “Typhis Pernambucano”, em

“Cartas de Pitia a Damião” etc.

Tal polêmica se abre num discurso que se

inscreve na afirmação soberana, autoritária, de uma

postura ideológica que se sobrepõe às alternativas

históricas, à dilucidação objetiva dos fatos.

E isso é responsável pelo maniqueísmo axio -

lógico, que se instala nos refolhos da linguagem, e dita

as regras do enfoque, a sobreposição da justificação

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sobre os incidentes da circunstância, que nunca é

esclarecida de todo.

Esse maniqueísmo escolhe os incidentes que não

se ajustam às suas grandes linhas, e por eles res -

ponsabiliza a grei oficial, acusando-a de infidelidade, de

imoralidade e de outros epítetos desse jaez.

Então, a descrição factual e a sua estrutura

interpretativa quase se esvaziam de todo, com exceção

de alguns momentos em que Frei Caneca se alonga em

fazer história, especialmente em textos mais densos.

Aliás o apelo à história, como se viu, é a história

já feita, já escrita, tido como “modelo”, como este -

reótipo pedagógico, a incrementar a justificação

ideológica.

É assim subjacente aos objetivos do discurso.

Jamais para fundar uma mais ampla integração da

prática histórica com a teoria, com a estratégia, se bem

que, nos limites do discurso racionalista, houvesse certa

integração entre ambas.

O problema consistia no impasse criado pela falta

de maior valorização da história em elaboração con-

juntural do que da história escrita.

Todavia isso diz respeito ao problema teoria -

praxis, que só mais tarde seria satisfatoriamente

equacionado.

Pela ausência de um discurso que formalizasse o

problema, nesses moldes, a ideologia liberal-radical,

presa ainda às malhas da representação em que se

circunscrevia o pensamento, mostrava-se de todo im-

potente no viabilizar as teses que oferecera à Con-

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federação do Equador, frustrando-a após várias esca-

ramuças no Nordeste.

É o ideal, desatento à realidade social mas ali-

mentado pelo voluntarismo, que estimula o movimento

por algum tempo.

Assim, conclui-se que a espessura ideológica da

obra de Frei Caneca, marcada por uma composição

híbrida de diferentes doutrinas, desde as de linhagem

empirista às de coloração idealista e tradicionalista , com

os acréscimos da circunstância, e num ritmo alucinante

de confronto político, fabricou um discurso que, com

certas variantes, se inclui na episteme clássica.

NOTAS

(105) Ob. cit., p. 132.

(106) “Oferecendo a continuação da resposta ao ex -redactor do

Regulador Brasileiro”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 346.

(107) “Sobre o que se deve entender por Patria do Cidadão”. In:

Obras Politicas e Litterarias. p. 199.

(108) “O Historiador”. In: Ensaios Universitarios sobre Frei

Caneca. Ob. cit., p. 97-98.

(109) “Noticia sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca”. In:

Obras Politicas e Litterarias, p. 42.

(110) Frei Caneca. Ensaios Políticos. PUC/RJ, Conselho Federal

de Cultura, Editora Documentário, 1976, p. 105.

(111) Ob. cit., p. 23-24.

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(112) Ibidem, p. 29.

(113) La Philosophie Critique de l’Histoire. Paris, Librairie

Philosophique J. Vrin, 1964, p. 15.

(114) Editorial Nova, Buenos Aires, 1958.

(115) “Idéia de uma História Universal de um ponto de vista

Cosmopolita”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História, 2ª

ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1974, p. 28.

(116) Religión e Historia en Kant. Madrid, Gredos, 1975, p. 166.

(117) Ibidem, p. 166-167.

(118) KANT, Filosofia de la Historia. Buenos Aires, Ed. Nova,

1958, p. 40.

(119) “Filosofia Kantiana de la História”. In: KANT, Immanuel.

Filosofia de la História. Ob. ct., p. 17.

(120) “Teoria del Saber Histórico”. In: Revista de Occidente.

Madrid, 1961, p. 73.

(121) De la Connaissance Historique. Paris, Du Seuil, 1966, p.

200.

(122) HERRERO, Francisco Javier. Ob. cit., p. 21.

(123) ESTIÚ, Emilio. Ob. cit., p. 22.

(124) ESTIÚ, Emilio. Ob. cit., p. 36.

(125) “Rilettura della ‘Rechtslehre’ Kantiana”. In: Rivista

Inrternazionale di Filosofia del Dirito. Marzo, Giugno, 1959, p.

132.

(126) HABERMAS, Jurgen. Théorie et Pratique, 1. Paris, Payot,

1975, p. 101.

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(127) Habermas, ob. cit., p. 101.

(128) Ibidem, p. 101-102.

(129) Ibidem, p. 102.

(130) Ibidem, p. 103.

(131) Ibidem, p. 103.

(132) Diccionario de Filosofia. Buenos Aires, editorial

Sudamericana, 1971, vérbete Topico.

(133) Habermas, ob. cit., p. 104.

(134) “Dissertação sobre o que se deve entender por Pátria do

Cidadão, e deveres deste para com a mesma Pátria”. In: Obras

Politicas e Litterarias, p. 181.

(135) STERN, Alfred, Filosofia de los Valores, 2ª ed., Buenos

Aires, Comp. General Fabril Editora, p. 173-174,

(136) La Création des Valeurs, Paris, Presses Universitaires de

France, 1952, p. 175-176.

(137) Ibidem, p. 176

(138) “Itinerário que fez Frei Joaquimd o Amor D ivino Caneca,

saindo de Pernambuco a 16 de setembro de 1824, para a Província

do Ceará Grande”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 110.

(139) “Sobre o que se deve entender por Pátria do Cidadão, e

deveres deste para com a mesma Pátria”. In: Obras Polit icas e

Litterarias, tomo II, p. 220.

(140) CASSIRER, Ernst. Ob. cit., p. 246.

(141) Ibidem, p. 247.

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(142) “Typhis Pernambucano”, de 8 de julho de 1824. In: Obras

Politicas e Litterarias. tomo II, p. 593.

(143) Ibidem, p. 592.

(144) “Tratado de Eloqüência”. In: Obras Politicas e Literarias,

tomo II. p. 68.

(145) “Sobre o que se deve entender por Pátria do Cidadão”. In:

Obras Politicas e Litterarias, p. 185.

(146) Essai Sur La Révolution. Paris, Gallimard, 1967, p. 36-37.

(147) Ibidem, p. 38 e 42.

(148) VACHET, Andre. Ob cit., p. 70.

(149) An Essay Concerning Human Understanding. London, Ency-

clopedia Britannica, Inc., 1952, p. 184.

(150) Ibidem, p. 180.

(151) VACHET, Andre. Ob. cit., p. 199.

(152) Ibidem, p. 201.

(153) Ibidem, p. 202.

(154) An Essay Concerning the True Original Extent and End of

Civil Government. London, Encyclopaedie Britannica, In., 1952,

p. 26.

(155) VACHET, ob. cit., p. 204-205.

(156) ROUSSEAU, De L’Inégalité parmi les Hommes, Paris,

Éditions Sociales, 1954, p. 134.

(157) The Social Contract. London, Encyclopaedia Britannica,

Inc., 1952, p. 391.

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(158) VACHET, ob. cit., p. 206.

(159) As Origens do Socialismo Contemporâneo. Salvador, Livra-

ria Progresso Editora, 1950, p. 125.

(160) Ibidem, p. 127.

(161) Ibidem, p. 127.

(162) VENTURI, Franco. Ob. cit., p. 82.

(163) Ibidem, p. 82.

(164) HORKHEIMER, Max. Ob. cit., p. 99.

(165) Ob. cit., p. 100.

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(169) MACPHERSON, C.B. Ob. Cit., p. 192-195.

(170) Ibidem, p. 196.

(171) Ibidem, p. 197.

(172) Ibidem, p. 218-219.

(173) Ibidem, p. 219-220.

(174) “Sobre a Pastoral do Cabido de Olinda de 4 de março de

1823”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 307.

(175) “Sobre os Projectos Despoticos do Ministério do Rio de

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(177) ALTHUSSER, Luís. Montesquieu: La Política y la Historia.

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(178) Ibidem, p. 84 e ss.

(179) MONTESQUIEU, “The Spirit of Laws”. In: Encyclopaedia

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(180) ALTHUSSER, Luís. Ob. cit., p. 123.

(181) Ibidem, p. 125.

(182) POLIN, Raymond. Iniciação Política. Ob. cit., p. 122.

(183) BRITO, Lemos. Ob. cit., p. 89.

(184) “Sobre a Pastoral do Cabido de Olinda de 4 de março de

1823”. In: Obras Politicas e Litterarias, p. 303.

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(189) BRITO, Lemos. Ob. cit., p. 75.

(190) Obras Politicas e Litterarias, p. 544.

(191) “Typhis Pernambucano”, de 4 de março de 1824. In: Obras

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nº 26, de abril de 1823

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Manuscritos

BARATA, Cipriano. Motivos de minha perseguição e desgraça em

Pernambuco e Rio de Janeiro, ou breve e curiosa memória e

relação dos acontecimentos interessantes ao Brasil. Rio de

Janeiro, Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.