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Dario, o grande-rei, personagem em Histórias de Heródoto

Autor(es): Silva, Maria de Fátima

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23918

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MÁ THESIS 4 1995 63-88

DARIO, O GRANDE-REI, PERSONAGEM EM HISTÓRIAS DE HERÓDOTO

MARIA DE FÁTIMA SILVA

Tem sido, em geral, aceite por todos os estudiosos de Heródoto que, na sequência dinástica persa (Ciro, Cambises, Dario e Xerxes), tal como é desenvolvida em Histórias, se pressente uma linha oscilante no percurso da vida de um império: por um lado, Ciro e Dario são unanimemente colocados em pontos ascendentes e climáticos, enquanto Cambises e Xerxes esta­belecem o contraponto, cabendo-lhes sobretudo o papel de herdeiros e executores de planos deixados por aqueles que os precederam. E não deixa de ser curioso observar que a simples hereditariedade que, em Histórias , ga­rante a Cambises e a Xerxes um acesso tranquilo ao poder, parece determi­nar, desde o primeiro momento, uma permanente falta de iniciativa: com o trono, estes monarcas herdam igualmente um projecto que se limitam a cumprir, com maior ou menor sucesso. Pelo contrário, Ciro e Dario, com­pelidos a rasgar a via do poder, surgem, desde logo, no trono persa, como senhores de uma enérgica capacidade de iniciativa e de imaginação. Daí que, para além de consolidarem o poder recebido dos antecessores, lhes caiba romper, para o povo persa, novos caminhos de domínio e de con­quista.

Talvez se encontre, nessa proporção alternada de iniciativa e dinamis­mo com aceitação mais ou menos passiva que ditou a existência da corte persa, a explicação para o facto de, em terra masságeta, Ciro ter visto em sonhos 'o mais velho dos filhos de Histaspes com asas nos ombros, a cobrir com uma delas a Ásia e com a outra a Europa' (1. 209. 1). Compreendeu Ciro que tal visão significava a vinda de um usurpador do seu poder na pessoa de Dario, então ainda um jovem e totalmente ingénuo em tal projecto. Mas, na realidade, talvez os deuses quisessem revelar uma outra verdade: mais do que no seu sucessor e herdeiro natural, Cambises, seria em Dario que Ciro viria a ter um continuador à altura do seu poder e autoridade reais. Mais ainda, a visão revelava em que medida Dario, o primeiro sobera-

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no de uma nova linhagem descendente de Histaspes 1, cumpriria, dentro do nomos dinástico persa, a sua missão de soberano: mantendo um domínio firme sobre o império já constituído, estendida uma asa protectora sobre a Ásia, sem deixar de projectar novas empresas e de corresponder, assim, ao dever que pendia, como herança inabalável, sobre a tiara real: conduzir o povo persa à conquista do mundo. A Dario estava reservado um projecto muito para além daquilo que Ciro, o conquistador infatigável, poderia ainda sonhar: abrir uma asa dominadora sobre a Europa. Aproxima, portanto, Heródoto, através de um elemento profético, os dois monarcas determi­nantes na expansão do império persa, ao mesmo tempo que antecipa a aventura europeia, principal objectivo de Histórias, símbolo de uma ousadia ilimitada cuja frustração virá reduzir, aos seus verdadeiros limites, o reino que a ela se atreveu.

É no Livro III que Heródoto retoma os acontecimentos que o sonho de Ciro outrora tinha desvendado, quando, por morte de Cambises, o rei sem herdeiros, o poder persa foi, à traição, tomado pelos Magos, para ser, graças à intervenção de um punhado de notáveis, reposto em mãos aqueménidas. Aberto um lapso na transmissão do poder, o trono ofereceu-se àquele que soube agir a tempo, engendrar um plano, impor a sua autoridade, e a quem os deuses não faltaram com o necessário patrocínio: Dario.

A par da prosperidade, traçada em pormenor, que o império persa conheceu sob o domínio de Dario, Heródoto constitui deste monarca um retrato multifacetado - feito através da acumulação diversificada de episó­dios de ficção -, desde o momento em que surge na cena política de Susa, então em crise de sucessão, até à sua ascensão ao poder, à imposição de uma autoridade forte sobre um imenso território, para se propor, por fim, a novos empreendimentos de conquista (dentro de um progresso, nas suas grandes linhas, comum àquele por que Heródoto delineou os vários reinados da dinastia persa); o efeito geral, porém, está longe de resultar na figura, sólida e imponente, de um monarca dotado de uma clara superioridade, a quem a glória jamais tivesse abandonad02• Bem ao contrário da personagem

1 Como descendente de Histaspes, Dario incluía-se na fanu1ia dos Aqueménidas, embora provindo de um ramo diferente daquele que até então ocupara o trono; não era, portanto, um descendente directo de reis e seu herdeiro natural. Partindo de um ascendente comum, Aquémenes, e do seu sucessor, Teispes, a família subdividiu-se num ramo (Ciro I, Cambises I, Ciro TI, Cambises TI) a quem coube reinar sobre os Persas, a par de um outro (Ariaramnes, Arsames, Histaspes), que veio, com Dario, a chamar a si o poder. Seria Xerxes, filho de Dario e de uma filha de Ciro, Atossa, a unificar as duas linhagens identificadas num mesmo soberano.

2 Analisado em pormenor o conjunto de cenas em que Dario é personagem, histórica ou ficcional, o perfil resultante mal se concilia com o de um grande soberano, como aquele que K. H. Waters (Herodotos on Tyrants and Despots, Wiesbaden, 1971,

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superior que Ésquilo criou nos Persas, a servir de antídoto às fraquezas e erros de Xerxes, o Dario criado por Heródoto é sobretudo um ser humano, detentor de uma enorme missão, com qualidades e defeitos, dividido entre a ousadia e a fraqueza, susceptível de vitórias e fracassos, embora ligado ao clímax de maior prosperidade, riqueza e projecto na história do império persa.

O primeiro grande episódio em que se vê envolvido o filho de Histaspes é aquele que promove a denúncia do falso Esmérdis e o seu afastamento do poder, como condição para devolver aos Persas o trono de Susa. Cabe a Otanes, um homem da melhor aristocracia, ser o primeiro a desconfiar da identidade de Esmérdis e a diligenciar no sentido do seu esclarecimento (3. 68). Orientado por uma enorme prudência, sua principal característica, não se poupa o nobre a esforços para clarificar o assunto e para conseguir uma prova concludente. Heródoto, por um processo que se toma comum em todo o Livro III, envolve a solução ponderosa, do ponto de vista histórico, da sucessão de Cambises, de pequenas intrigas de corte3

que condicionam, às vivências comezinhas do quotidiano, o fluir da existência dos povos. É na intimidade da alcova que uma das concubinas do Mago poderá constatar, pela falta de orelhas do homem com quem partilha o leito, que o Esmérdis que ocupa o trono persa não é o legítimo herdeiro de Ciro. Da averiguação, tal como Heródoto a narra, sobressaem dois aspectos essenciais: a meticulosidade e perspicácia com que Otanes actua e a acuidade que põe na interpretação das informações obtidas, de onde vai inferindo a verdade profunda dos factos (69. 1). As cautelas tomadas encarecem a importância e o risco que a situação envolve (69. 2, 4), e, em consequência, o altruísmo e o espírito patriótico a que Otanes e a filha, em nome da nobreza de sangue, se sentem obrigados.4

Tais pormenores de actuação e atitude, minuciosamente encarecidos na narrativa, criam o cenário em que vai surgir, de improviso, a figura de

pp. 11sq.), fazendo-se porta-voz de uma detenninada corrente de opinião sobre Dario, traça com as palavras seguintes: 'Ele é um grande e hábil monarca, que, embora sem ser permanentemente bem sucedido (previu mal, por exemplo, a campanha da Cítia), deixou aos seus herdeiros um império bem organizado e extenso'. Na realidade, as palavras de Waters ganham, considerados os pormenores da narrativa, um tom relativo,

3 Recordemos, por exemplo, que a campanha de Cambises contra o Egipto é fundamentada em causas de natureza pessoal, em que a intervenção feminina é preponderante (3. 1-3); como também a ideia da campanha contra a Grécia é infiltrada em Dario na descontracção do leito, através de uma Atossa involuntariamente industriada por outrem.

4 Enquanto Otanes é, em Histórias, o verdadeiro promotor da conjura, o mesmo papel é por inteiro conferido a Artafernes, na versão de Ésquilo (Pers. 775sqq.).

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Dario. Pela linhagem de que descende, acharam-no os conspiradores digno de partilhar das suas preocupações; e, com a sua inclusão inesperada no grupo, o número de seis que formavam (70. 3) passa a sete, como o texto não deixa de registar (71. 1). Não se trata apenas, na menção deste total, de um desejo de precisão da parte de Heródoto; o número sete, com a carga ominosa que habitualmente lhe é atribuída, regista na situação a presença do transcendente, que põe Dario sob a protecção dos deuses e na mira do destino.

A reunião que então tem lugar e as palavras aí proferidas desvendam, de um modo definitivo, alguns aspectos de carácter constantes na persona­lidade e em toda a actuação de Dario em Histórias. Uma certa arrogância existe já no jovem conspirador: recém-chegado a Susa, colhido num plano em marcha, o filho de Histaspes não se inibe de procurar assumir o comando dos acontecimentos. Uma petulante primeira pessoa a abrir o discurso que pronuncia procura chamar sobre si a atenção geral. E não é sem surpresa que o ouvimos antecipar-se aos restantes com a afirmação de estar convencido de ser o único informado da situação (eyro ... aUtOç 1l6voç; emmaa&t, 71. 2). Heródoto não nos dá para o facto qualquer explicação; será que, na inoportunidade desta afirmação, não estará implícita a denúncia de uma tentativa de antecipação, mais fruto de um grande arrojo do que de um verdadeiro conhecimento de causa? Do mesmo modo que a narrativa não avança qualquer explicação sobre o facto de Dario ter vindo a Susa na intenção de conspirar contra a vida do Mago; e ainda neste caso será legítimo interrogarmo-nos se o filho de Histaspes, convidado a participar num golpe contra o Mago, não está apenas a inverter a ordem dos factos? O silêncio do texto permite, pelo menos, a dúvida, sobretudo pelo contraste com que nos é pormenorizadamente relatada a investigação promovida por Otanes. Se esta leitura estiver correcta, a primeira aparição de Dario em cena valoriza um lado da personalidade do monarca, a sua tendência para a habilidade e o oportunismo, que, em contextos diversos, virá a manter-se como uma característica do seu carácter e actuação.

Na realidade, Dario procura sempre demarcar-se dos restantes cons­piradores (71. 2) e tomar a dianteira naquele aspecto ainda em aberto - a execução de um plano; a sua proposta é a passagem imediata à acção (71. 2), sem reticências nem delongas. Incisivo e peremptório, carregado de deter­minação e urgência, o discurso de Dario reforça a oposição já pressentida entre o filho de Histaspes e o velho Otanes, o promotor escrupuloso, embora lento e prudente, de um desinteressado e patriótico golpe de estado.

Quaisquer palavras de reflexão só conseguem estimular a urgência de Dario e levá-lo a exceder-se, enveredando até pela ameaça. Outra vez o jogo pronominal insistente retoma a ideia de que mais do que ser um dos conspiradores, o filho de Histaspes pretende distanciar-se deles para lhes

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assumir o comando: 'Teria sido melhor que vocês se encarregassem sozinhos (En' ÚJ.1Érov u\l't(7)v) da questão; mas já que vos (ÚJ.11v) pareceu bem alargar o caso a outros e meter- me (EJ.1o{) na conspiração, ou agimos hoje ou fiquem vocês (ÚJ.11v) a saber que ( ... ) eu próprio (U\)'toç Eyro) irei denunciar tudo ao Mago' (71. 5).

E perante o ultimato de Otanes que o força a propor de imediato um plano de actuação, Dario não hesita em fazer um discurso de marca sofística5

, a que dá o tom seguro de quem tudo prevê e resolve. A dicotomia palavra/acção (À.óyoç/i!pyov), com que abre a sua nova argumentação, coloca, nos termos próprios e com o rigor de uma especulação técnica, a divergência a separar os dois condutores da discussão. Para além daquilo que os une - a condição aristocrática -, Dario põe a tónica na diferença, que o deixa no papel daquele cujo sentido da oportunidade pode abrir portas dificilmente transponíveis. E ei-Io, maquiavélico, a fazer a apologia da falsidade, dentro de uma nova dicotomia: verdade/mentira (àÀ:fj9E1U hJlEUOOÇ). Estes são valores que não passam, na perspectiva de Dario, de meios que podem, indistintamente, trazer vantagens (KÉpOOÇ) e, por isso, reduzir-se a duas vias úteis, cada uma a seu tempo, para a realização pragmática de objectivos idênticos. Tal posição é aniquiladora de princípios - 'tanto faz que quem diga a verdade passe a mentir, ou que quem minta diga a verdade' - em nome dos interesses práticos (KEpOTjcrEcr9ul), perspectiva que muito tem a ver com a atitude pragmática e amoral que valeu aos sofistas uma certa animosidade entre os contemporâneos6

• Com este significativo discurso, para além de resumir e teorizar questões polémicas

5 Sem ainda propriamente poder espelhar o pensamento sofístico no seu apogeu, que foi posterior à composição de Hist6rias, Heródoto regista, no entanto, como contemporâneo de Protágoras que era, uma atitude que tem muito em comum com racionalismo, relativismo e individualismo, características que impregnam todas as manifestações intelectuais do séc. V a. C. ateniense. Cf. W. K. Guthrie, Les Sophistes, trad. fr., Paris, 1976, pp. 172-184; J. Romilly, Les grandes sophistes dans l' Athenes de Péricles, Paris, 1988, pp. 34sqq. A oposição dicotómica de elementos ou princípios, como a relatividade de valores, espelltam já, nas intervenções de Dario, uma atitude meticulosa de análise e a aceitação da subjectividade das coisas face ao ser humano, que estão claramente consignados no pensamento de Protágoras. Significativo é que esta teoria possa ter sido desenvolvida pelo sofista num tratado que se intitulava A verdade (cf.,op. cit., pp. 121-127). Mais tarde, a verdade voltou a ser tema de um tratado de Antifonte.

Sobre as possibilidades de haver, nestas considerações de Heródoto, influências orientais, nomeadamente religiosas, cf. D. Asheri, Erodoto. Le Storie, III, Milão, 1990, p.XXI.

6 Sobre a importância desta dicotomia verdade/mentira, aquiteorizada, ao longo do Livro III, vide Asheri, III, pp. XIX-xxn. Sobre a perspectiva sofística nesta matéria, vide G. B. Kerferd, The sophistic movement, Cambridge University Press, 1981, pp. 78-82.

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entre os intelectuais do momento, Heródoto suscitava uma reflexão sobre regras e princípios que se encontram subjacentes aos diversos momentos em que a personalidade do monarca se expõe em Histórias. Funcionam por isso os valores palavra/acção e verdade/mentira como elementos de coesão na diversidade dos episódios que constituem o logos de Dario.

A mesma divergência, que desde o primeiro momento opôs Dario a Otanes, terá um prolongamento expressivo face ao evoluir dos aconteci­mentos a partir da morte de Prexaspes. Com esta ocorrência imprevista, tudo mudou na situação vivida em Susa. O segredo, com tanto zelo guardado pelos Magos, foi publicamente desmascarado de forma que a possibilidade de um golpe passou a ser previsível. Tais factos apanharam os conspiradores em plena execução do seu plano e sustiveram-nos num momento de reflexão; o texto é por demais expressivo na forma por que devolve a radicalização dos pontos de vista: oi ,.tf;V à,J.l<pl 'tov 'O'távTjv ... oi Oe à,J.l<pl 'tOV ~apEl0v (3. 76). Dario não se encontra mais isolado, a demarcar-se dos conspiradores; agora ele está ao comando de uma facção, logrou dividir os companheiros e impor-se. O segundo passo, que fará de Dario o chefe incontestado da conspiração, é dado pela mão dos deuses; a visão de uma luta pressaga entre falcões e abutres reduziu os conspiradores a um grupo coeso, oi Élt'tà 1táV'tEÇ, disposto a seguir Dario sem discussão.

Ousadia, ambição, amoralidade, desprezo pela ponderação ou pela prudência, aliados à protecção divina, abrem o caminho a um novo soberano, disposto a correr riscos, mas menos seguro das vitórias, que dependerão, acima de tudo, da vontade dos deuses e do destino.

Chegado o momento de passar à acção, Heródoto introduz uma frase de elogio à capacidade de previsão e planeamento de Dario: 'Tudo aconte­ceu como Dario tinha previsto' (77. 1). Mas, na realidade, a condução dos passos dos conspiradores no interior do palácio não encontra no filho de Histaspes o chefe intrépido e decidido que as suas anteriores palavras poderiam ter deixado prever. A dicotomia pelo próprio estabelecida entre palavra e acção ganha agora, na nossa memória, um sabor irónico. Dario aparece totalmente assimilado ao grupo, diluída a sua actuação nos movi­mentos colectivos dos conspiradores: 'como os sete queriam penetrar ainda mais .. .' (77. 2), ou 'mas os sete, a exortarem-se mutuamente, puxaram da espada .. .' (77.3). E a confirmar a ideia de que ao filho de Histaspes falta, no terreno, a qualidade do chefe, Heródoto devolve-nos, do golpe que se executa, a hora do confronto: Magos e Persas, armas na mão, discutem a posse do trono de Susa. O foco volta-se, de repente, para Dario e Góbrias, em perseguição de um dos Magos. É Góbrias o primeiro a agir e a agarrar o inimigo; Dario fica estático (78. 4), hesitante (78. 4), pela primeira vez cauteloso e atento às consequências da precipitação. O texto insiste na imobilidade (à,PYov E1tE(J"tEro'ta, 78. 5), na inoperância daquele que, em

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palavras, era todo decisão e movimento. Terá de ser Góbrias não apenas a tomar a iniciativa de agir, mas a usar da palavra para incentivar o compa­nheiro; a Dario (~apEioç oe 1t€te6~€voç) restará um modesto papel se­cundário, o da obediência ao desafio que lhe é feito; e se fere o Mago, é ainda porque o destino decidira favorecê-lo (l!'C\)X€ ... 'tou ~áyou)1. Encerrado este quadro parcelar, o desfecho da conspiração regressa ao tom colectivo: a vitória pertence aos sete, foi como obra dos sete que os Persas a saudaram e a ela aderiram sem reservas (79).

O passo seguinte na organização do poder persa correspondeu à necessidade de encontrar, entre os sete vitoriosos, o futuro monarca. Mastando-se, também neste ponto, de outras versões dahistória8

, Heródoto prefere um processo a que não falta imaginação, uma tonalidade sacra, a interferência divina e aquele jogo verdade/mentira, que prossegue como um eco da doutrina exposta por Dario. Tudo se decidirá ao nascer do sol, com os candidatos montados a cavalo, e irá depender daquele animal que primeiro fizer ouvir o seu relincho. O carácter sacro do sol e o respeito pelos cavalos considerados pelos Persas como sagrados espelha-se do próprio testemunho de Heródoto (cf. 1. 131. 1, 189. 1,3.90.3, 106.2)9.

Enquadrada neste ambiente de religiosidade, é a simples artimanha de um escravo que põe Dario no poder. Tal como no momento da conspiração, o futuro irá depender para o filho de Histaspes da iniciativa de outrem. A sua inoperância é, porém, mais acentuada, porque não só a execução como a ela­boração do próprio plano são, por inteiro, assumidas pelo palafreneiro de confiança. O texto insiste no engenho desta personagem (àWjp cr<><p6ç,85. 1), que tem agora ensejo de revelar todas as suas potencialidades (85. 1-2). Por

7 Este episódio parece ganhar tanto mais importância no estabelecimento dos traços principais de Dario, quanto representa uma versão própria de Heródoto, diferente de todas as outras pelas quais o caso é relatado; na inscrição de Behistun, destinada a glorificar o monarca, Dario afirma ter assassinado o Mago com um pequeno punhado de homens, sem no entanto declarar tê-lo ferido por suas próprias mãos; Ésquilo (Persas 776) dá a Artafemes a gloriosa autoria daquele acto; frnalmente Ctésias generaliza a responsabilidade daquela morte ao grupo dos atacantes. Sobre este episódio da vida de Dario, vide E. J. Bickerman, 'Darius I, Pseudo Smerdis and the Magi', Athenaeum 56, 1978, pp. 239-261.

8 A versão de Heródoto encontrou eco, e. g., em Ctésias, FGrHist 688F l3 (17); Justino 1. 10. 3-10; Plutarco, Moralia 340b. Mas outras versões foram adoptadas como solução para a escolha do futuro monarca: a inscrição de Behistun (1-5) fundamenta a preferência por Dario na sua linhagem aqueménida; Ésquilo (Persas 779) parece preferir deixar o caso 'à sorte'.

9 Justino (1. 10. 5) faz mesmo a sobreposição destes dois elementos, ao considerar o sol como o único deus dos Persas e o cavalo como o animal que lhe é consagrado. Sobre este assunto, vide Asheri, m, p. 302. Bickerman (op. cit., p. 242) salienta aliás que o tema da interferência divina funciona como um topos das apologias reais no antigo oriente.

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suas mãos, irá surgir um estratagema ardiloso (J..lTlXavro, 85. 1, cf. 85. 2), de que tudo vai depender; Dario limita-se a insistir na necessidade de agir sem demora, o tópico mais nítido nas suas intervenções (85.2)10.

Mais uma vez - os deuses permaneciam fiéis aliados de Dario -, no momento em que, graças aos bons ofícios do palafreneiro, o cavalo do filho de Histaspes relinchava antes dos mais, 'um raio brilhou no céu sereno e ouviu-se um trovão' (86. 2). Em simultâneo, a vontade dos homens e o aplauso dos deuses consagravam o novo monarca.

Comenta Asherill a propósito da fase que vai abrir-se na carreira de Dario: 'A figura do grande rei aqueménida transforma-se; de conspirador revolucionário, autoritário e sem escrúpulos, toma-se num monarca restau­rador, que restabelece a paz e reorganiza a administração, e que não é desprovido de humanidade e sensibilidade'. Será que subjaz a esta afIr­mação a ideia de que a personalidade de Dario se alterou, face ao novo estatuto, satisfeita de alguma forma a ambição que se mostrara o móbil principal de todo o comportamento anterior? Mais parece que o que está em causa é a importância de um certo conjunto de medidas administrativas, que visa sobretudo dar força e estabilidade ao poder a custo conseguido, ainda que o carácter de Dario, na sua essência, permaneça o mesmo.

Do ponto de vista estrutural, o logos consagrado a Dario obedece, em Histórias, a um esquema semelhante àquele por que se desenvolvem os reinados dos restantes monarcas persas. Depois de um largo espaço consagrado ao acesso ao poder, totalmente justificado pelas dificuldades do estabelecimento de uma outra linhagem no trono de Susa, segue-se, a um ritmo ágil, o processo de ascensão. Ao contrário de Ciro, cuja maior glória resultara de uma sucessão imparável de conquistas, o poder de Dario, nesta fase, vai assentar sobretudo no impulso dado às reformas administrativas, que trarão ao grande território anteriormente conquistado uma estabilidade até então desconhecida. As campanhas militares do novo rei, que por enquanto representam mais a pacificação de territórios já conquistados do

10 O quadro aqui proposto por Heródoto tem características comuns com inúmeras situações que vieram a tomar-se um lugar comum na comédia, em toda a sua história, desde os mais antigos ascendentes gregos e latinos. Trata-se do diálogo entre um patrão em dificuldades, que apela ao criado matreiro para que ponha todo o engenho que possui ao serviço dos seus interesses. Neste episódio ao senhor cabe, portanto, o papel da incapacidade, diante do talento bem sucedido do servo fiel, o verdadeiro rei da cena. Como um qualquer Xântias ou Psêudolo, Ébares pronuncia-se com um tom, ao mesmo tempo irónico e tranquilizador, perante os anseios de umjovem patrão apaixonado pelo fascínio da riqueza e do poder: 'Meu senhor, se daí depender que tu venhas ou não a ser rei, sossega esse coração, fica tranquilo, que nenhum outro há-de ser rei na tua vez. Eu cá tenho as minhas mezinhas' (85. 2).

11 III, p. 303.

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que outras jóias a acrescentar ao tesouro da coroa, merecem a Heródoto uma revista apressada ou mesmo a brevidade de uma simples referência.

Investido no trono, começa para Dario a consolidação do poder sobre a Ásia anteriormente conquistada. A luta pela estabilidade trava-a, na narrati­va de Heródoto, numa outra frente: contraindo uma série de alianças matrimoniais, com descendentes em linha directa de Ciro, de forma a apertar os laços com o ramo, até então reinante, dos Aqueménidas, e com uma filha de Otanes, da melhor nobreza persa. Celebradas estas alianças, pode registar-se o conforto seguro da autoridade real: 'Tudo se impregnou do seu poder' (88. 3); o que lhe permitiu desencadear um plano de reforma administrativa sobre todo o território submetido ao seu domínio, sob a forma de uma repartição em satrapias e do estabelecimento de um rendoso sistema tributário. O pormenor com que todo este plano organizativo é tratado por Heródoto (89-96) representa, sem dúvida, o reconhecimento da importância de um processo político e social, que trouxe ao vasto império persa uma enorme prosperidade. Não é, no entanto, este passo isento de uma alusão àquela ambição que sempre mobilizava o espírito de Dario: 'Devido à cobrança deste imposto e a outras medidas semelhantes, dizem os Persas que Dario era um comerciante, Cambises um tirano e Ciro um pai; o primeiro porque com tudo fazia negócio, o segundo porque era azedo e sobranceiro, o último porque se mostrara bondoso e fora capaz de lhes proporcionar todo o tipo de benefícios' (89. 3). Por este forma, Dario consolidara o seu poder até aos confins da Ásia, limite oriental do seu império. No entanto, Immerwahr12

chama a atenção para o facto de a descrição do poder de Dario não ser, mesmo assim, isenta de algumas restrições: os Árabes, que em vez de tributos presenteiam o rei, denunciam um ponto de fraqueza na adminis­tração geral do império; como também a própria descrição dos confms do império estabelece uma fronteira com os povos que o rei persa não controla.

A ligação entre os capítulos que se ocupam da estabilização do poder de Dario e aqueles que virão a tratar das suas campanhas é feita através de um bloco de episódios, que preenchem o espaço entre esses dois pólos e com eles se articulam; desempenham por isso uma importante função de coesão estrutural. Na sua diversidade - história da irrigação da planície asiática (117), a morte de Intafemes (118sq.), a morte de Polícrates (120-125), o assassínio de Oretes (126-128) e o episódio de Democedes (129-138) -, contêm estes capítulos um conjunto de observações que desvendam ou confirmam vários traços no perfil de Dario, ao mesmo tempo que representam uma pausa num ponto climático, onde a curva da existência do monarca irá sofrer uma mudança de sentido.

12 Form and thought in Herodotus, a PhA Monograph 23,1966, p. 172.

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Claramente voltadas para o passado são as histórias da irrigação da planície asiática e da morte de Intafernes. A primeira vem na sequência imediata do tema dos tributos e exemplifica a legitimidade da afrrmação daqueles que viam em Dario um negociante. O bem-estar das populações fá-lo o rei depender do controle régio e do pagamento de um suplemento aos já pesados tributos. O episódio da morte de Intafernes, por seu lado, abre com uma referência aos sete conspiradores, fazendo-nos regressar aos primeiros passos de Dario a caminho do trono. Todo o episódio retoma o tema dos compromissos assumidos entre os conspiradores e das regalias garantidas aos elementos do grupo, para pôr em causa a desconfiança mútua que, logo depois, vicia este pacto. Levanta-se assim um véu sobre a instabilidade que minou o primeiro ano do reinado de Dario. Heródoto não deixa de denunciar a precipitação e suspeita de Intafernes, ~~ ver condicio­nado o seu direito de livre acesso ao rei (úPp{cruv'tu, 118. 1); mas da parte de Dario é patente uma mesma desconfiança e o exagero de quem não se sente seguro entre os melhores dos seus súbditos. Domina-o o aroma da conspiração, o temor do golpe, de que procura defender-se com alguma precipitação e uma extrema severidade. Mas quando, pela condenação dos potenciais inimigos, se sente de novo senhor da situação, Dario dá largas à magnanimidade, dentro de uma tradição conhecida na corte persa: conce­der ao inimigo dominado, caído em profundo aniquilamento, a benesse de uma graça real 13 • Não lhe neguemos uma certa humanidade na forma como se deixa apiedar pelas súplicas da mulher de Intafernes; mas do todo não se exclui alguma prepotência por parte de um soberano que decide da vida ou morte dos vassalos a seu bel-prazer.

A história seguinte do castigo de Oretes, directamente relacionada com o episódio passado da morte de Polícrates, retoma o tema da inse­gurança de Dario e do seu permanente desejo de manifestar, diante dos súbditos, o peso da autoridade real. A punição do actual senhor de Sardes não é arbitrária, fundamenta-se numa série de crimes cometidos, que culminou com o assassínio de um emissário do próprio rei. Como In­tafernes, também Oretes peca por ÕPplÇ (126. 2, 127. 3) e motiva a reacção de Dario. Mas o castigo, preparado com subtileza e cálculo, comporta um sentimento de receio da parte de um monarca que pressente uma certa efervescência em sua volta; além de punir a deslealdade, o rei testa também a fidelidade dos executores da punição e desmotiva futuros traidores.

Por fim, esta série de histórias culmina com o episódio de Democedes, o médico grego vindo com Polícrates para Sardes, centro do governo de

13 Dentro da mesma linha se situa a atitude tolerante de Ciro para com Creso da Lídia, ou de Cambises para com Psaménito do Egipto, por exemplo.

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Oretes. Inteiramente relacionada com o contexto que a precede (a corte de Polícrates de Samos, a morte do tirano em Sardes e o castigo de Oretes), ela representa o despoletar de um projecto ambicioso no espírito de um monarca que se sente agora estável, como janela aberta sobre horizontes nunca sonhados. Nesse mundo novo, que passa a figurar nos planos do conquistador persa, avulta pela primeira vez a Grécia, o grande inimigo do futuro.

É vulgar em Heródoto que a motivação de um acontecimento central na história ou na narrativa seja justificada por causas essencialmente particulares ou pessoais, que actuam directamente sobre os impulsiona­dores dos factos, em vantagem sobre razões de natureza política ou nacional. Tal é o caso do grego Democedes que, levado pelo desejo de recuperar a liberdade e de regressar à pátria, insinua em Dario a ideia da conquista da Grécia e se prontifica a conduzir, numa missão de reconhe­cimento, um punhado de Persas em terra helénica; por este processo, Persas pisam, pela primeira vez, esse território distante e desconhecido com intenções belicistas (138.4). Asheri 14 salienta a importância do que designa por 'problemática da repatriação de exilados, dentro do tema da política imperialista e expansionista de um tirano, como um instrumento, pretexto ou motivo ocasional de conquista'. Este tema parece particularmente sensível dentro do Livro III, onde ocorrem sucessivos exemplos; recorde­mos a intervenção de um egípcio, também ele um médico exilado na corte de Cambises, que impulsiona o rei persa contra Amásis do Egipto e, por vingança pessoal, contribui para submeter o seu país à ocupação estrangeira (3. 1. 1-2); depois Fanes, ex-mercenário em fuga da corte do faraó, dá à campanha de Cambises o seu contributo, ao informar o rei invasor sobre a melhor forma de ultrapassar as principais dificuldades da expedição (3. 4); ou ainda o tarentino Gilo, exilado em lapígia, que tenta em vão regressar à pátria por intermédio dos Persas (138); ou finalmente Silosonte que vê realizada a mesma aspiração com o apoio de Dario (139-149). A todos estes casos de repatriação de exilados dá Asheri uma importância histórica, a par da sua função estrutural dentro da narrativa: 'São estes exemplos que não só assinalam a complexidade do problema do imperialismo e "colaboracio­nismo" no mundo grego arcaico, como prefiguram o fenómeno da repatria­ção de exilados políticos, que virá a ser preponderante nos livros seguintes em momentos históricos primordiais no conflito grego/persa' .

É patente que o episódio de Democedes merece a Heródoto uma particular atenção e desenvolvimento. Tudo poderia ter sido simplesmente referido de passagem, mas, pela importância dos elementos em questão na

[4 m,p.XIX.

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história, o autor desenvolve uma sequência de cenas dramatizadas, onde evidencia as qualidades de um narrador atraente e eficaz. Que interveni­entes accionaram o futuro, em que contexto se moviam, quais os interesses que os motivavam, constituem para Heródoto material de um conto de ficção, a que não falta expressividade e poder simbólico.

Coube ao acaso, sob a forma de um acidente de caça, desencadear os acontecimentos. Dario, ao descer do cavalo, torceu um pé. Não deixa de ser significativo que um cavalo participe directamente nos destinos da corte persa, pois já antes o mesmo animal decidira do próprio acesso de Dario ao poder; por trás dele e do carácter sacro que lhe está associado'5, pressente­-se a vontade divina. Os médicos que habitualmente se ocupavam da saúde real, egípcios dos mais credenciados no seu saber, mostraram-se incapazes e o sofrimento do rei alongou-se 'durante sete dias e sete noites' (129. 3); como não perceber, na insistência neste algarismo simbólico, ecos de outros momentos cruciais na existência de Dario, em particular aquele que fez dele o sétimo elemento de uma conspiração que havia de facultar-lhe o direito ao trono? Igualmente predeterminada parece a solução encontrada para o mal, que trouxe à cena o segundo actor da história, o médico grego Democedes: 'alguém, que ocasionalmente, tinha ouvido falar,já antes, ainda em Sardes, da competência de Democedes de Crotona, informou dela Dario' (129. 3).

As atenções voltam-se para esta segunda personagem e para a sua caracterização: a cena enche-se da figura trágica de um herói, detentor da arte maravilhosa da medicina, a quem o destino condenou à escravatura (129.3), ao esquecimento, e que se oferece aos olhos da nossa imaginação coberto de grilhetas e andrajos (129. 3). Bem próximo dos famosos reis mendigos da tragédia, de que sobretudo Eurípides veio a explorar todas as potencialidades, nem tão pouco faltava a este exemplo antigo do herói caído em desgraça a perspicácia, subtileza de espírito e prontidão do discurso de que os seus iguais da tragédia sempre foram dotados. Questionado por Dario sobre a sua arte, Democedes previu de imediato as consequências futuras da resposta, a possibilidade de os talentos de que era dotado o reterem junto do rei persa e de o impedirem de regressar à pátria. Não retarda assim Heródoto a referência ao traço da personalidade do médico, que se tornará vital na história: o desejo, sempre desperto na alma do exilado, de regresso à terra natal.

Estabelece-se entre os dois, o escravo e o monarca persa, um jogo ('tEXVÓ.ÇE1V) de verdade/mentira, em volta dessa aptidão de momento tão necessária ao enfermo: Democedes não confessa o domínio que tem da sua arte (àpproõérov f.11J ..• h:<pljvaç, 130. 1), Dario pressente a omissão

15 Cf. supra, p. 69.

DARIO, O GRANDE-REI, PERSONAGEM EM HISTÓRIAS DE HERÓDOTO 75

(lCU'tS<pÚVTj); finalmente, ameaçado de tortura, o médico revela a verdade (ElC<pU{ VSt), não sem se refugiar, numa última tentativa de defesa, naexcusa de que o seu saber era apenas superficial, o do aprendiz que mais tivesse observado do que praticado (130. 2). Depois deste quadro de desconfiança, reserva e violência, instala-se a tranquilidade e a doçura; em pouco tempo, com um tratamento suave e eficaz, Democedes devolveu a Dario a tranqui­lidade do sono, a cura e a serenidade a um espírito que desesperava já de recuperar a saúde. Não admira, portanto, que, deste ambiente de suavidade e confiança, saia curado um outro Dario, generoso e magnânimo, aquele mesmo que já mostrara, no caso de Intafemes, a capacidade de distribuir, não sem alguma sobranceria e exuberância, actos de uma generosidade majestática. Llropés'tut (130. 4), 'presenteia-o' surge de seguida, como a palavra chave de uma frase que exprime a necessidade de Dario de expres­sar a sua gratidão. Ironicamente, porém, a mesma frase reserva-nos, no final, uma swpresa: 'com dois pares de algemas de oiro'. Tão breve afirmação, envolvendo um soberano persa e um grego residente na sua corte, retoma outros confrontos semelhantes que põem em contraste duas mentalidades e duas culturas opostas: o fascínio do ouro e da riqueza, que representa para um bárbaro o supremo bem, face à consciência do grego de que tesouros pouco significam perante ideais e valores como pátria, família ou liberdade. Esta oposição encontra, em Heródoto, a sua expressão mais significativa na cena paradigmática entre Creso e Sólon, onde a questão da suprema felici­dade é debatida e analisada. O mesmo conflito de sentimentos regressa agora, no tremendo paradoxo que subjaz à oferta de dois pares de grilhetas de oiro, ou seja, a liberdade rendida à riqueza, que faz sentido para um monarca persa agradecido, mas que só pode causar repulsa num grego, sobretudo um exilado ansioso pelo regresso a uma vida livre na pátria distante.

Dario sensibilizou-se com a reacção do médico, exibiu mais uma vez o lado positivo que lhe permitia reconhecer uma atitude ou um sentimento elevado (atitude paralela àquela que lhe provocara o sofrimento e a opção da mulher de Intafemes). Abriu-se então o rei a uma generosidade mais profunda, franqueando a Democedes as portas da intimidade do palácio. De novo somos postos diante de uma cena de harém (cf. a anterior intervenção fundamental da filha de Otanes na denúncia do falso Esmérdis, bem como a futura actuação de Atossa junto do rei). Dentro destes limites privados domina a lealdade e a confiança, em confronto com o cepticismo sempre demonstrado por Dario no exercício público do seu poder. O monarca está seguro de que as mulheres da sua casa saberão gratificar devidamente o médico que devolveu ao seu rei o bem-estar. E, de facto, esta expectativa não é traída, as mulheres manifestam a Democedes a maior simpatia e carinho, sob a forma natural na corte de Susa: uma quantia em ouro que fez dele ... um escravo rico e poderoso.

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Heródoto abre um parêntesis para retroceder ao passado de Demo­cedes; através do seu curriculum, relatado agora com a secura de um verdadeiro registo profissional, o historiador 'dá-nos a conhecer o longo itinerário percorrido, desde Crotona sua cidade de origem, através de numerosas e prestigiadas cidades gregas (Egina, Atenas e Samos). Em todas elas, Democedes foi colhendo gratidão e apreço, que se traduziram em somas de dinheiro cada vez mais avultadas, em troca de serviços prestados, para além de um prestígio que envolveu o seu nome e, a partir dele, granjeou, para todos os médicos de Crotona, a fama dos mais distintos e competentes de toda a Grécia. Depois da dura prova da escravatura em Sardes, Democedes recuperava, na corte persa, o reconhecimento e a distinção que sempre merecera. Além de dinheiro, o médico grego recebera do seu mais notável paciente uma moradia e a homenagem de poder incluir­-se entre os comensais da corte. Uma só regalia - e a mais preciosa - faltava a Democedes recuperar: 'poder regressar à Grécia; tudo o mais lhe era proporcionado' (132. 1). Da influência de que gozava junto do monarca, tirou o grego algumas vantagens, que revelaram a lealdade e a colegialidade de que era dotado, particularmente para com aqueles a quem o destino reservara percalços semelhantes aos da sua própria experiência - os colegas egípcios que haviam falhado na cura de Dario, e, em consequência, sido condenados à morte, como um adivinho grego, também reduzido à es­cravatura e ao exílio (132. 2). Não conseguiu, todavia, obter a graça pessoal a que tanto aspirava; a todos 'salvou', sem ousar sequer implorar a própria salvação. Por conhecer profundamente Dario, Democedes temeu que a abordagem directa da questão, o seu pedido de liberdade, pudesse receber uma negativa peremptória e difícil de abalar; como previra, a sua arte, que tantas vantagens lhe trazia, representava por outro lado um inquebrantável grilhão dourado. Assim, a primeira parte da história de Democedes, aquela que faz do prisioneiro de Samos o médico dilecto de Dario e o mais distinto dos seus convivas, acaba num impasse; da generosidade real tudo lhe é possível conseguir, menos o único e verdadeiro prémio da sua arete: a liberdade.

Para a obter, Democedes precisou de um aliado mais poderoso do que ele próprio, que o acaso lhe colocou diante na pessoa de Atossa16

• A história de Democedes entra então num novo ciclo, que resultará para o grego numa outra cura extraordinária, desta vez da rainha, que agora, para além de

16 Atossa, filho de Ciro, fora primeiro casada com Cambises (3. 31), depois com o falso Esmérdis (3. 68), antes de desposar Dario (3. 88). Por toda a sua experiência da vida da corte, tomou-se senhora de uma enorme autoridade, cujo 'mito' sobressai da imagem transmitida pela literatura grega do séc. V. Heródoto afIrmará adiante (7. 2. 2, 64. 2) que a própria sucessão de Xerxes a Dario foi decidida por sua influência.

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prestígio e gratidão, lhe proporcionará a realização do mais caro dos seus sonhos: o regresso à Grécia. Dentro de uma estrutura conhecida em algumas histórias de ficção famosas em Heródoto (cf. a história de Giges e Candaules), também neste episódio se reencontra um esquema bipartido e simétrico.

A figura de Atossa reveste, neste momento de Histórias, aspectos típicos de uma personalidade feminina oriental, a par de uma capacidade de interferência firme junto do soberano. Atingida por um mal de seio, a primeira reacção de Atossa é a de preservar a todo o custo a sua privacidade; por isso ela esconde e cala, envergonhada, o seu mal (133. 1). Mas obrigada, pelo progresso da doença, a recorrer a Democedes, a rainha jura prestar-lhe, em troca da cura, um misterioso favor. Heródoto explora a personalidade das duas personagens. Atossa, angustiada pelo mal que a aflige, compro­mete a sua palavra, sem mesmo saber o favor que virá a prestar, satisfeita com a simples garantia de que não se trata de nada que possa trazer-lhe opróbrio (133. 2). Democedes actua mais uma vez com prudência e sentido da oportunidade: não deixa escapar a ocasião que se lhe oferece de intervir junto de Dario, mas oculta da rainha os seus verdadeiros objectivos, para impedir que qualquer inconfidência ou simplesmente o tempo de reflexão de Atossa sobre o assunto pudesse inviabilizar o efeito de surpresa.

À rainha cabe, em toda a história, o papel do emissário e executor passivo de uma estratégia de que Democedes é o único artista (134. 1,4); pensado até ao pormenor, o plano tem por cenário a intimidade da alcova, e por armas os argumentos aduzidos pela rainha para aliciar Dario a novas campanhas. As palavras transmitidas por Atossa revelam ainda o conhe­cimento exacto que Democedes tinha da personalidade do monarca e da mentalidade real persa17• Como primeiro argumento, Atossa recorda o compromisso herdado pelos monarcas de Susa, de garantir o avanço constante do seu povo para novas conquistas, de modo a colaborar na execução do destino persa: possuir o mundo. Dario é poderoso (134. 1), mas desse poder não beneficia o povo se o rei se mantiver inactivo. Percebemos o possível efeito de tais palavras, sobre o Dario que se quer o legítimo

17 Este tipo de argumentos, destinados a estimular o brio e a ânsia de conquista de um soberano jovem, ecoam aqueles que a Atossa de Persas considera responsáveis pela campanha louca e frustrada de Xerxes: 'Foi essa a doutrina que, em contacto com gente mal intencionada, colheu o fogoso Xerxes. Repetiam-lhe que tu tinhas conquistado, através da guerra, uma imensa riqueza para os seus filhos, enquanto ele, cobarde, combatia na alcova, indiferente a aumentar a prosperidade paterna. À força de ouvir os sarcasmos dessa gente mal intencionada, foi que ele concebeu a ideia desta expedição, uma campanha contra a Grécia' (Persas, vv. 753-758). Curiosamente, Heródoto coloca Atossa na posição de fazer valer, junto de Dario, o arquitecto da campanha contra a Grécia, os argumentos dessa 'gente mal intencionada'.

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herdeiro dos Aqueménidas, como sobre o conspirador de outrora, que defendia a acção imediata e pronta quando se tratou de conquistar o trono. Depois de se dirigir ao soberano, Atossa visa também o homem, na plenitude da vida e da prosperidade (134. 2). Nas suas palavras, ecoa a voz do técnico de saúde, que prevê a velhice e a debilidade fatal de que é portadora. Urge ao monarca entregar-se 'à acção' para ganhar a conside­ração do povo e garantir a estabilidade do poder: pelo respeito que aos súbditos impõe um verdadeiro Homem, e pela actividade que os manterá ocupados e ineptos para qualquer conspiração. Do discurso avulta o elogio do poder, o estímulo à acção e a garantia da pacificação de um povo à sombra dominadora da figura poderosa do seu chefe; argumentos que vêm ao encontro do espírito inquieto de Dario, ambicioso e ousado por um lado, mas sempre temeroso e desconfiado de penumbrosas contestações 18.

A Dario é, mais uma vez, proposto um projecto de actuação política, que o coloca, como sempre nos momentos cruciais no progresso da sua carreira, na dependência de alguém, a cuja proposta, pensada e elaborada, o filho de Histaspes adere. Mas também agora esse papel parece desa­gradar-lhe e estimulá-lo a tentar inverter a ordem dos factos. De novo Dario escuda-se na agressividade dos pronomes para pôr em destaque a sua pessoa: 'ó mulher, acabas de dizer tudo aquilo que eu próprio (ul)'róç) penso executar. De facto eu decidi ... (eyCo ~s~oÓÀS\)IlU1.)' (134.4). Como outrora também, diante dos conspiradores, Dario procura impor-se através de um plano que o coloque ao comando das operações, insistindo na urgência da acção: 'Decidi lançar uma ponte que una um continente ao outro, e marchar contra os Citas. Projecto este que, dentro de pouco tempo, estará em curso' .

Tal procedimento tivera o poder de se opor às palavras de Otanes, dividira os conspiradores e obtivera o resultado desejado por Dario de dobrar os companheiros à sua vontade. Desta vez, porém, Dario sai vencido. Neste debate, agora na intimidade, Atossa domina; recusa o plano do rei, à vontade do soberano sobrepõe a própria, com uma firmeza que ombreia com a do opositor: 'Tu - faz isso por mim- trata antes de conquistar a Grécia' (134.5). Ao 'eu decidi' de Dario, Atossa opõe um peremptório 'mas eu quero' fundamentado num capricho de rainha poderosa: 'servas

18 O mesmo carácter enérgico e infatigável é atribuído a Ciro (cf. 1. 185. 1); e, mais tarde, MardónÍo repete, junto de um Xerxes hesitante perante o projecto da campanha grega, a mesma argumentação. Cf. ainda as palavras do próprio Xerxes, em 7.8. 1.

Sobre o nomos imperialista e a coacção que impunha ao comportamento do soberano persa, vide J. A. S. Evans, Herodotus, explorer ofthe past, Princeton, New Jersey, 1991, pp. 23-28.

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lacedemónias, argivas, atenienses e coríntias'19. Neste momento, Atossa faz suas as pretensões de Democedes; já não se trata apenas, para a esposa de Dario, de cumprir o compromisso assumido para com o médico que a tratou; é também a sua vontade que é desafiada perante a do marido, sobre quem ela parece não querer perder um habitual ascendente. Se Dario tem um plano para a conquista da Cítia, Atossa tem outro para a da Grécia: 'Dispões do homem, entre todos o mais capaz, para te abrir o caminho para a Grécia e te servir de guia: aquele que tratou o teu pé' (134.5). Habilmente Atossa acentua, em relação a Democedes, a amizade e simpatia do rei; as suas palavras são vagas, o grego um anónimo, apenas 'aquele que tratou o teu pé' , para escamotear qualquer possível ligação entre Democedes e si própria; além da poderosa filha de Ciro, Atossa é uma mulher inteligente, hábil e persuasiva. Dario capitula de imediato, abdicando pela primeira vez do uso da primeira pessoa, para conspirar com o plano de um adversário mais forte: 'Se te parece que nós devemos atacar primeiro a Grécia ... , então eu acho que é melhor enviar lá primeiro um punhado de Persas, sob o comando desse homem que tu mencionaste' (134.6).

O resultado não deixa margem para dúvidas; na sombra, Democedes agia com firmeza, conhecedor da psicologia do par real: das razões às quais Dario podia ser sensível e do poder impositivo de Atossa. Do ponto de vista da causalidade do processo histórico, o mesmo pressuposto de sempre regressa agora: o de que o destino dos povos - Egípcios (cf. supra p.65), Persas e Gregos - é decidido no leito ou no círculo pessoal do grande rei, por motivações de ordem psicológica ou pessoal. Para Asheri20 esta é a denúncia de uma corte efeminada e decadente, imagem que posteriormente haveria de tornar-se comum nas descrições de Persica. Para além de eventuais impressões colhidas nas suas viagens, talvez Heródoto tivesse presente a personagem esquiliana da rainha-mãe, coberta da mesma autori­dade e ascendente.

Desta forma, a cena entre Dario e Atossa concentra em si uma ideia fulcral: a de insinuar no espírito do rei persa a campanha grega, não como uma interferência meramente pontual (caso de Samos), ou como a vingança

19 Eliano (Natureza dos animais, 11. 27) insiste na mesma tradição de que o capricho de Atossa estivesse na origem da invasão da Grécia.

Esta pretensão de Atossa irá ter um eco expressivo na transferência para a Ásia das gentes da Peónia (5. 12-13), depois que a Dario foi oferecido o espectáculo doloso do vigor e da actividade das mulheres locais. Não se tratará então, para Dario, de satisfazer o capricho de Atossa; na realidade, o rei é de novo vítima de um engano, que faz sobrepor à sua outra vontade, mesmo se convidado a constatar 'pelos seus próprios olhos' e a certificar-se 'pelo que ouviu' da veracidade do quadro que é servido à sua credulidade.

20 m, p. xm.

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limitada de uma ofensa (cai>o de Atenas e Erétria após a revolução iónica); o horizonte que Atossa, desejosa de se rodear de um séquito de servas gregas, abre diante de Dario é o da conquista, total e plena, da terra grega. E, para tal, se iniciam de imediato os preparativos com o envio de um grupo de espias, a fazerem o reconhecimento do terreno; Persas pisavam, pela primeira vez com intenção de conquista, solo helénico.

O início imediato (dJ.Ul i!7toç; Kallipyov Ê7toíee, 134.6 ) da execução deste plano afasta Atossa de cena, para reunir de novo o rei e Democedes. Fraco diante da rainha, Dario recupera, no contacto com os vassalos, as características de sempre: a desconfiança e um jogo artificioso de defesa. Como bem previra Democedes, a grande preocupação de Dario é a de garantir-se o regresso do seu médico, depois desta visita à Grécia. Desdo­bra-se, para o efeito, em recomendações, primeiro aos espias, depois ao próprio Democedes, encarregado da chefia da expedição; e não se poupa em presentes ao grego, 'presentes para a família', 'presentes redobrados depois do seu regresso' , além de 'um barco de carga carregado de riquezas' que o acompanharia durante a expedição. Heródoto tem o cuidado de afirmar que, por detrás daquele exagero de generosidade não havia, da parte do rei, qualquer intenção oculta, apenas mais uma exibição majestática; mas do comportamento de Dario espelha-se também insegurança, repartido como se encontra entre a premência de ouvir um informador capacitado e o risco de se entregar nas mãos de alguém que pertence, pelo sangue, ao inimigo. Talvez por isso, procurasse o rei apoiar-se no poder da riqueza e cativar, com grilhetas de ouro, Democedes, incorrendo assim, pela segunda vez, no mesmo erro. O médico, porém, teve receio de que a atitude perdu­lária de Dario fosse um teste às suas intenções - por demais conhecia ele a desconfiança do rei. Não quis, por isso, levar consigo todas as ofertas, mas deixar algumas que funcionassem como a garantia palpável do seu regresso.

Para além de um contraste de culturas, todo este episódio assinala uma divergência de personalidades, entre o bárbaro e o grego, entre Dario e Democedes. E permite acrescentar à afirmação de Immerwahr21 de que 'no decurso da narrativa, Dario passa do usurpador astuto, para o governante próspero e finalmente para o soberano frustrado e tirânico das campanhas' , que este progresso passa sobre alguém que se mantém psicologicamente inteiro e coerente, senhor de uma personalidade constante, dentro de contextos sucessivamente novos.

Iniciava-se, no reinado de Dario, um novo capítulo: aquele em que o monarca se voltaria para a actividade conquistadora. Sem dúvida que este reinado se multiplica em campanhas de grande alcance, orientadas para um

21 Form and thought, p. 169.

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imenso espaço geográfico. Como não é menos verdade que lhe cabe, no essencial, o projecto de conquista da Grécia. No entanto, uma análise mais atenta da narrativa que corresponde à actividade bélica do Grande Rei irá denunciar os limites e os fracassos que se associaram a cada um dos passos decisivos para o alargamento do império, empreendidos por Dario. Por razões que nada têm a ver com o compromisso com Atossa, foi contra território grego - a ilha de Samos - que o rei voltou primeiro as suas atenções. De novo uma dívida de gratidão para com um exilado da ilha impulsionava Dario. Silosonte satisfizera, um dia, um capricho do jovem Dario, quando o filho de Histaspes era ainda e apenas um ilustre desconhe­cido: sem exigir qualquer pagamento, oferecera ao persa o seu manto de púrpura, que aquele cobiçara e quisera comprar (3. 139-141). Este favor haveria de ser cobrado a Dario, já rei poderoso, disposto então a cobrir de riquezas o benfeitor de outrora22

• Não era, porém, ouro que Silosonte pre­tendia, mas que o rei lhe garantisse, pelas armas, o regresso a Samos e o poder sobre a ilha. Este motivo, que justifica a primeira campanha de Dario contra território grego, inserido na sequência imediata da cena de Demo­cedes, tem com ela semelhanças flagrantes: a intervenção de um exilado grego, para com quem o rei persa tem uma dívida de gratidão; a prontidão do monarca em saldar essa dívida; a recusa que o grego faz do dinheiro, por lhe preferir outros valores, o regresso à pátria em ambos os casos, embora Democedes precise de usar de um subterfúgio para o fazer valer; qualquer dos episódios parece empurrar, por vontade divina23

, os Persas contra os Gregos; por fim, de ambos os encontros se projecta o mesmo conflito de culturas (apreço do ouro I devoção por um ideal) que se torna simbólico do sentido profundo de todo o conflito entre os dois povos.

O processo desencadeado por estes dois episódios representa para Dario, pelo menos em parte, um insucesso, na medida em que as ordens dadas não foram completamente cumpridas nem os objectivos previstos totalmente alcançados: Democedes escapou ao cativeiro dourado de Susa e os espias do rei voltaram da missão de reconhecimento, depois de sucessivos desaires, sem poderem satisfazer a curiosidade real. Do mesmo modo que Otanes, incumbido da missão de Samos, conseguiu colocar Silo­sonte no poder da ilha, mas de uma ilha dizimada, pois que, ao contrário do

22 Dario não esquece os benefícios de que é objecto e mostra-se sempre disposto a compensá-los. Não é, no entanto, isenta de nuances essa gratidão. Sobre este episódio, vide J. Labarbe, 'Le manteau de Syloson', Civiltà Classica e Cristiana, 7, 1986, pp. 16sq.

23 Cf. as palavras de Heródoto, a respeito do encontro, no Egipto, de Dario e Silosonte, no dia em que este cedeu ao capricho do persa e lhe entregou o manto, 'levado por uma inspiração divina' (139. 3).

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que o irmão de Polícrates desejara, a campanha não se fez sem um cruel derramamento de sangue.

A segunda campanha de Dario nesta fase voltou-se contra Babilónia, que teve de ser reconquistada depois de se ter rebelado contra o domínio persa. Desta vez Dario em pessoa comandou o exército, mas nem por isso a campanha correu de forma mais auspiciosa. O cerco durava já há longo tempo, sem que Dario encontrasse um plano eficaz para resolver o conflito. Impotentes, chefe e exército entregavam-se ao desespero, depois de terem ensaiado todos os estratagemas; tão flagrante era a incapacidade do invasor, que os sitiados se mantinham tranquilos e ousaram mesmo desafiar e troçar do rei e dos seus homens (3.151). Tal impasse só seria ultrapassado graças à intervenção divina (153sq.) e à lealdade de Zópiro, o verdadeiro autor do sucesso que, por um preço elevado, culminou esta campanha. Neste episódio regressam as dicotomias palavra/acção, verdade/mentira. Dario detém-se no uso da palavra; quando interrogado por Zópiro sobre a importância da tomada de Babilónia, o rei encarece-a (1toÀÀou 1:111<!>"to, 154), elogia-a e, com estas palavras, estimula o nobre a formar um plano e a passar à acção (ÉaI)"tou "tO i!pyov, 154. 1). Não omite Heródoto, neste momento de reflexão que precede uma vitória, um elogio à acção nobre (aya90upyia, 154. 1) pela qual os Persas têm um enorme apreço e que muito veneram. O processo está prestes a seguir o seu curso fora do controle de Dario, pela mutilação de Zópiro. Perante ela, terá o rei oportunidade de intervir de novo pela palavra, com um protesto indignado e veemente (avé~Olcré "tE Kat dpE"tO, 155. 1). No diálogo que então se instala, a estratégia para a tomada de Babilónia, que se fará através deste terrível dolo, concentra-se num jogo de duas figuras, articuladas, como em outros episódios atrás analisados, num elaborado contraste pronominal: 'Não existe nenhum outro homem a não seres tu (111) cró), com poder suficiente para me ter posto neste estado; não foi um estranho que me deixou assim, mas eu próprio por minhas mãos (au"toç eyoo eI1EOlU"t6v, 155. 2). Confron­tado com esta manifestação de extrema lealdade, o rei resume a situação em expressivas palavras: i!pY<9 "t<!> aicrxicr"t<9 oiSvol1a "tO KáÀÀtcr"tov i!9EO, 'puseste ao acto mais horrendo o nome mais belo' (155.3). Este o lema paradoxal do sucesso sobre Babilónia, que, através de uma acção horrenda, se gravem a letras de ouro as sagradas palavras lealdade e vitória.

Também nesta campanha, Dario é remetido a uma posição passiva, de adoptar, sem protesto, um plano que é descrito diante de um soberano atónito. Vocábulos como 1tpácrcrEtv, 1tOtEiv e i!pyov multiplicam-se na boca de Zópiro, que antevê o momento de agir; nele serão actuantes duas personagens: o próprio Zópiro, autor e protagonista do processo ( e yoo l1ev, 155. 4), e o soberano (cro Sé ), que escuta e retém as instruções que lhe são dadas, para desempenhar, com acerto, um papel de simples comparsa.

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Em campo inimigo, Zópiro não teve dificuldade em fazer crer na verdade das suas palavras O"éyS1V àÀTj9éu, 157. 1), a tal ponto a evidência parecia confirmá-las, sobretudo quando 'os actos se conciliaram com as suas afirmações' (tale; i!1tSO"l 'tà i!pyu 1tupsX6/lsVOV ()/lOlU, 157. 3) e o massacre de alguns Persas, sob o comando do trânsfuga, pareceu garantir intenções de vingança contra os seus, potenciais autores da dolorosa mutilaçã024

• Sucessivamente repetido e testemunhado pelos Babilónios (i86v'tse; 0& leUl 'tou'to 'tO i!pyov, 157. 4, roe; 0& leUl 'tou'to leu'tspyó'cru'to, 157.4), este massacre deu à mentira a aparência sólida da verdade e garantiu a Zópiro os seus objectivos: ganhar a confiança do inimigo. Como muito a propósito comenta S. Said25

, Zópiro não se contenta com palavras, antes faz mentir os próprios actos. Só então o dolo de Zópiro se revelou com flagrante evidência, na hora em que Babilónia caía, pela segunda vez, em poder dos Persas. Pelo artifício, conseguira Zópiro também aquele que os Persas consideravam o supremo bem: o de ver reconhecida e honrada a sua àyu9oupy{u (160. 1). Dario não deixou, ainda neste caso, de manifestar ao herói a sua gratidão, com a habitual generosidade. Algum sentido humano transpirou da reacção real, ao considerar demasiado elevado o preço da conquista. Depois veio o galardão, aquele que maior apreço colhe entre os Persas, a oferta de generosos e confortantes presentes, traduzidos em bens e regalias.

As atenções de Dario voltaram-se então para a Europa e ei-Io que, ao comando do exército, se lança contra os Citas. Um conflito se coloca neste ponto da narrativa, face à cena fulcral entre o soberano e Atossa. O rei persiste no seu plano de avançar, em primeiro lugar, contra a Cítia, com o pretexto de vingar uma anterior ocupação da Ásia (4. 1); mas na realidade esta campanha corresponde ao abrir de uma porta para a conquista do ocidente e a um golpe estratégico para a desejada invasão da Hélade. Não perde, em consequência, o diálogo entre o par real o seu efeito de causa­lidade, por contribuir decisivamente para alargar, no espírito de Dario, as fronteiras de um projecto. Dado o carácter simbólico desta expedição e a importância que revestiu na marcha definitiva dos Persas contra a Europa, ela merece a Heródoto uma descrição alongada como nenhuma das que a precederam. Resultou, no entanto, para Dario num evidente fracasso, que

24 É oportuna a observação de J. Hart (Herodotos and Greek History, London and Camberra, 1982, p. 117) a propósito da reacção que, num grego, não deixaria de desencadear o consentimento e adesão que Dario deu ao plano de Zópiro e que custou, ao seu exército, o sacrifício 'teatral' de 7 000 homens, destinado unicamente a convencer e iludir o inimigo.

25 'Guerre, intelligence et courage dans les Histoires d' Hérodote' ,Ancient Society, 11112, 1980/1981, p. 101.

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só não se saldou num trágico desastre porque conselheiros atentos tiveram o dom de intervir no propósito do soberan026•

Para Dario esta foi uma campanha de que esperou os mais auspici­osos resultados. Abonam este estado de espírito o empenho posto nos preparativos e o tom peremptório ou mesmo cruel com que afastou aqueles que, pelo conselho ou pela súplica, quiseram interpor ao seu projecto o mais leve obstáculo (83-84). Rodeou de aparato a travessia a caminho do outro continente, mirou, de lugar sobranceiro, o Ponto Euxino e o Bósforo (86-87)27, últimas fronteiras a separá-lo da Europa. Nesse olhar envolvente e longo espelhava-se o sonho. Sonho de vitória, a que dava asas o número imenso de homens sob seu comando. Dario registou, em duas estelas da alvura do mármore, os nomes de todos os povos que dirigia, reviu-se na ponte que mandara construir, viu imortalizado, numa pintura, este momen­to fulcral na sua prosperidade, presenteou com largueza aqueles que para ele tinham contribuído (87 -89). Falta a este momento o carácter místico e a expressão filosófica com que Ésquilo o gravou como causa de um enorme desastre; mas sobeja-lhe efeito simbólico, de um imperialismo sedento de poderio, assente no número e na força, toldado por um sonho que arrasta o chefe persa, optimista e aventureiro, à conquista do desconhecido para além do mar. Finalmente Dario estendia aquela asa, entrevista por Ciro, e precipitava o seu povo num futuro enigmático.

Dos Citas dependeu toda a estratégia por que se pautou esta campa­nha: primeiro, de se fazerem perseguir pelos Persas, a pequena distância, sem nunca se deixarem apanhar; perante a provocação de Dario, que os desafiou para uma luta frontal (126-127), os Citas denunciaram a ignorância do inimigo sobre os hábitos nómadas28

, mas, alterando o seu procedimento, passaram a arremeter constantemente contra o invasor, até lhe destruírem por completo as condições de resistência física e psicológica (4. 128). Por

26 Desses conselheiros avulta a figura de Góbrias, um dos conspiradores contra o Mago, com quem Dario é posto, em várias ocasiões, em contraste. Recordemos a actuação de ambos, lado a lado, na perseguição do Mago (cf. supra pp. 68 sq.); agora, na Cítia, a Góbrias é conferido de novo o papel de dar ao rei sugestões importantes de que depende a condução futura dos acontecimentos: é Góbrias o intérprete clarividente do presente simbólico dos Citas (4. 132), é dele a previsão da hora certa de abandonar o terreno para evitar a catástrofe (134), como também lhe pertence o plano que permite aos Persas desmontar o acampamento sem levantar as suspeitas do inimigo (134) e retirar a bom salvamento.

27 Cf. atitude semelhante de Xerxes, 7. 128, 130.

28 Apesar dos alertas lançados a Dario por Artabano (4. 83) e Góbrias (4. 134) sobre as dificuldades que os hábitos nómadas dos Citas poriam a um invasor, na realidade o monarca, como é comum em Heródoto, não escutou as palavras sensatas dos conselheiros e persistiu numa atitude desajustada face às circunstâncias.

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fim, o presente simbólico de um rato, uma rã, um pássaro e cinco flechas - de que Góbrias deu a interpretação mais sensata: 'Se vocês se não torna­rem pássaros e não se escaparem nos céus, ou se se não tornarem ratos e se não sumirem debaixo da terra, ou se se não tornarem rãs e não saltarem para os charcos, nunca hão-de regressar à vossa pátria; antes se tornarão vítimas destas flechas' (4. 132) - anuncia a catástrofe e impõe um regresso apres­sado e vergonhoso.

Por desconhecimento de um inimigo poderoso e imenso, Dario sentiu a hostilidade de uma paisagem que cada dia erguia na sua frente enormes barreiras, correu em vão atrás de uma vitória que teimava em escapar-se-lhe; para depender, em última análise, da ambição de um iónio, Histieu de Mileto, para um regresso, coberto de frustração, à terra asiática. Não fosse o interesse mesquinho de Histieu (137) em manter o poder daquele de quem dependia a sua própria autoridade à frente dos destinos de Mileto, e o fim da multidão dos Persas teria ocorrido diante do Istro, partida pelo inimigo a frágil passagem por onde corria o caminho do regresso. Mais do que uma penosa destruição, os Persas tiveram na Cítia o sentimento doloroso de se empenharem numa campanha que escapou inteiramente ao seu controle, porque diferente de toda a sua anterior experiência.

Da expedição que se seguiu - contra Gregos sediados na Líbia -Dario manteve-se ausente; a campanha africana foi mesmo o resultado de uma iniciativa pessoal de Ariandes, sátrapa do Egipto, embora eventual­mente estimulado à distância pelo rei (cf. 4. 167). A menção de que, antes desta campanha, poucos povos líbios obedeciam ao rei persa, e que, depois dela, a situação pouco mudou (4. 167, 197), coloca dúvidas sobre o êxito e a eficácia da expedição. Em última análise, como bem nota Legrand29, 'os acontecimentos aqui narrados (expedição contra a Cítia e a Líbia) têm, aos olhos do autor, uma outra relação para além da contemporaneidade; o de serem duas expressões semelhantes, tanto mais significativas quanto se manifestam uma após outra, em lugares distintos, de uma ambição sem limites, que, mesmo depois de falhar na Cítia e de falhar na Líbia, vai, ainda assim, para ocidente, persistir numa arremetida contra a Grécia'.

Ao contrário do mais distinto dos seus antecessores, Ciro, Dario não era um militar. Por isso, depois do insucesso da Cítia, vivido sob seu comando directo, o rei retirou-se para a corte, de onde passou a emitir planos, deixando a militares da sua confiança a direcção das operações. Assim, as campanhas que se seguiram, numa sequência que progressiva­mente foi aproximando os Persas do seu grande objectivo, a Grécia continental- através do Helesponto, da Trácia e da Macedónia - passaram-

29 Hérodote, Histoires, IV, Paris, 1949, p. 13.

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se, para Dario, como um eco à distância. Com o curso do tempo a dicotomia palavra/acção tornava-se, para o rei, um progresso em total desequilíbrio, onde apenas o plano e a ordem lhe pertenciam; para a acção o soberano exibia uma total inapetência.

Em toda esta fase do progresso do império persa, a luta mais impor­tante foi sem dúvida a despoletada pela revolta dos Gregos da Iónia. A ela dispensa Heródoto uma maior atenção, ainda uma vez reduzindo a um simbólico recontro pessoal entre Histieu e Dario as causas do conflito. Neste recontro cabe ao monarca o papel do crédulo que cede às pretensões, amigas ou traiçoeiras, é difícil defini-lo, de um grego.30 O desejo de evidenciar gratidão face aos serviços prestados pelo tirano de Mileto na retirada da Cítia, deixa o rei persa nas mãos do hábil Histieu; só quando alertado por um dos seus homens de confiança (5. 23), Dario se dá conta de ter atribuído a alguém por demais 'fino e hábil' (5.23) o poder sobre um território rico e um povo numeroso (Mircino junto ao Estrímon, 5. 1), criando condições propícias à rebelião; tanto mais que a localização, na Trácia, deste território, oferecido a Histieu como prémio pelos serviços prestados, podia até vir a constituir um obstáculo aos projectos expansio­nistas dos Persas. Desta vez, o plano de prevenção de futuras consequências é-lhe proposto por Megabazo, alguém cuja perspicácia se pode medir com a do iónio: proceder com subtileza, para neutralizar o poder do inimigo sob a capa da deferência e da simpatia; chamar Histieu para o círculo dos que rodeiam o rei, cobri-lo de benesses, mas em definitivo afastá-lo dos seus e neutralizar-lhe a capacidade de revolta, eis o esquema a executar. A Dario coube o papel passivo de aceder sem dificuldades (etntE'tÉroÇ 6tEt8E, 24) àquilo que a perspicácia de Megabazo tornara bem evidente (EÕ1tPOOpÉrov, 24) e de tomar, em conformidade com o conselho dado, as respectivas precauções.

Logo, através de uma mensagem enviada a Histieu, Dario actuava pelo elogio, louvando, no destinatário da missiva, o homem bem intencionado (EUVOÉcr'tEPOV), que se evidenciara, pela palavra e pela acção, um alia­do fiel do soberano ('tou'to Oe ou ÀlryOtcrt à.M.' ~P'Y01crt, 24). Por reconheci­mento dos serviços prestados é que o rei, chegada a hora de um novo plano e de uma acção de grandes proporções (emvoÉro yàp 1tP1ÍYJ.lu'tu J.lEyá).,u lCU'tEpyácrucr8ut), requisitava a sua colaboração. Para além do regresso explícito das noções de palavra/acção, verdade/mentira persistem no es­pírito e actuação de Dario como valores indistintos a usar segundo a exigência de cada circunstância.

30 Cf. J. A. S. Evans, 'Histieus and Aristagoras: notes on the Ionian revolt' ,AJPh 84, 1963, pp. 113-128.

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Com falsos protestos de confiança e amizade, Dario esgrimiu com Histieu, que aliciou para o convívio real. Já em Susa, o iónio deparou-se com renovados protestos de simpatia a que sobejou um enorme cinismo. O artista da palavra que Dario desde sempre se revelou insiste na dor da ausência, que lhe causa o afastamento, dos seus olhos / da sua supervisão (6Ç oq>9aÀI.u'õv / roç O'E ioEi v), de alguém muito querido, um amigo avisado e leal. As principais preocupações e causas de desconfiança de Dario tomam-se, por força da arte de mentir, nas razões de elogio e sedução do potencial traidor.

Com o tempo, Histieu, ao dar-se conta do peso que representava o exílio dourado na corte, fomentou, à distância, a revolta dos Milésios, numa tentativa de criar condições para o seu regresso à Iónia (5.35). Em plena crise de insubordinação, Heródoto confronta de novo as duas personagens, para dar, desta vez, a Histieu a vantagem no uso do argumento falso. Protestos de amizade e lealdade são agora usados por Histieu, que se revê na suprema felicidade de ser conselheiro e conviva real. Se revolta existe é porque ele, o único capaz de a controlar, se encontra à distância, sem possibilidades de supervisão (6Ç oq>9aÀI.u'õv, 5. 106). Na realidade, argu­mentos e palavras de Dario são agora retomados em sentido inverso, a que a ordem quiástica do discurso dá a conveniente expressão formal. Perma­nente parece ser o cinismo, o apelo à mentira, teoria de que Dario se mostra sucessivamente o defensor e a vítima.

Na generalidade, a revolta iónica, que há muito fervilhava no espírito dos Gregos da Ásia Menor, impulsionada em Histórias por motivações de carácter político e pessoal, funciona como uma primeira fase no grande recontro entre a Ásia e a Europa. Já na sua terceira arremetida, dado que Creso e Ciro haviam antes empreendido uma mesma luta, a campanha contra a Iónia, desenvolvida no tempo de Dario, ganha uma dimensão e uma dinâmica novas. Pela primeira vez Gregos do continente tomavam parte activa no conflito, dando a Dario pretexto para avançar contra o seu alvo mais distante; a vingança contra Atenas e Erétria tomou-se o motivo aparente da marcha dos Persas contra a margem oposta do Egeu. A partir deste momento, os Persas rompiam caminho através da Grécia, somando breves e ligeiros momentos de sucesso com horas de pesado sofrimento e derrota, de que o Monte Atos e depois Maratona se destacam.

Foi como um saldo negativo que Dario contabilizou as notícias que lhe chegavam e quis, por fim, chamar a si o comando pessoal da campanha contra a Grécia e o Egipto, que entretanto se rebelara. O destino, porém, assim o não consentiu, e a morte veio pôr fim às aspirações deste soberano, que, pela última vez, teve de delegar em outrem a realização dos seus sonhos. Assim Xerxes se tomou o executor dos planos de Dario, num ambiente onde se patenteia hesitação, insegurança e anarquia. Se Dario não

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cai vítima dos seus excessos, como outrora Ciro, o termo do seu reinado é a triste constatação de que a obra de consolidação e alargamento do império se lhe quebrava nas mãos, destruídos num momento acção e planos.

Pela projecção que a história deu à figura e reinado de Dario, não pôde Heródoto eximir-se a fazer deste rei um momento de ascensão no progresso da dinastia persa. Mas, se a prosperidade bafejou o império nesta fase da sua história, a análise da personalidade do soberano denuncia uma fraqueza latente, que havia de repercutir-se naquelas que foram as grandes iniciativas de Dario para cumprir os seus deveres de herdeiro dos Aquemé­nidas. Esta personalidade real impõe-se ao longo de quatro livros de Histórias, um espaço que só por si exprime a atenção particular que o soberano merece. Mas, nesse intervalo, Dario nem sempre é presença viva e actuante. Sentimo-lo activo enquanto se trata de preparar um plano de acesso e estabilidade do poder. Multiplicam-se as histórias de ficção que sobretudo destacam em Dario a face pessoal e psicológica, através de um conjunto de situações diversas em que o rei é actor. Por trás dessa diversidade, existe, no entanto, uma linha de coesão estabelecida a partir do discurso de Dario, ainda então simples filho de Histaspes; dos temas prin­cipais dessa sua intervenção - palavra/acção, verdade/mentira - provém uma lógica consistente em momentos distintos do seu futuro reinante. Sobrava a Dario o poder da palavra, verdadeira ou falsa, arma poderosa na defesa das suas muitas ambições. Faltava-lhe, porém, capacidade de acção, que o reduzia, na hora de actuar, a um mero subalterno, conduzido ao sabor dos interesses, elevados ou mesquinhos, de um qualquer comparsa de ocasião. Tornou-se esta fraqueza gritante no momento de ir além da organização e de passar à conquista; após alguns insucessos, Dario demitiu­-se, como nenhum dos seus antecessores fizera, do comando activo das tropas. Só a derrota ressuscitou nele o desejo de acção; era, porém, já tarde. A morte colheu-o activo, a organizar uma nova força que, sob seu comando, conquistasse o fruto da vitória. Tão inesperadamente como tinha aparecido, Dario desaparecia, num clima de insatisfação e derrota, depois de 'tudo ter inundado do seu poder' .