outrora por gleiciane carvalho

168
8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 1/168  Escrito por Gleiciane Carvalho

Upload: gleicianecarva5067

Post on 07-Apr-2018

239 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 1/168

 

Escrito por Gleiciane Carvalho

Page 2: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 2/168

D  edicado a todos os meus amigos que entendem (ou pelo menos tentam) a minha imaginação e o meu humor para coisas surreais.

E, é claro, a Larissa (minha eterna estrelinha). Muito obrigada pelo imenso apoio, paciência e ajuda incondicional;  

Sem vocês eu já estaria maluca! 

Page 3: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 3/168

 A única coisa tão inevitável quanto à morte é a vida. — Charles Chaplin 

Page 4: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 4/168

UM.

 — Anna? Anna! Anna acorda, por favor! — eu estava sendo sacudida levemente. Eu

estava exausta, mas do que já estivera em toda minha vida. Tudo que queria era dormirpor um século ou dois seguidos — Anna! — meu nome foi dito mais uma vez, era umsom distante — Acorda, por favor, estou com medo! — Medo? A palavra pareceu serdita em um alto-falante.

 — Hum, o quê? — balbuciei enquanto abria meus olhos.

 — Estou com medo! — disse Molly, ela estava debruçada em cima de mim e suaspequenas mãos apertavam meus ombros. — Tinha alguém no meu quarto. Eu juro! Eu ovi! Você tem que acreditar em mim! — seus olhos brilhavam em expectativa e algomais que eu não sabia definir, pois, um: estava escuro e dois: eu estava quase

desmaiando de sono.

 — Moll, — comecei — Não precisa ter medo. Deve ter sido só um pesadelo e... Vocêachou que fosse real, — obriguei minha mente dormente a pensar em algo maisconvincente — Isso acontece comigo às vezes.

 — Não, Anna. Eu tenho certeza, era real! — ela apertou meus ombros para dar ênfaseas suas palavras. — Estou com medo.

 — Como ele era? — eu não sabia de onde tinha vindo essa pergunta cretina. Numanoite normal, onde eu não estaria apenas com metade do meu cérebro funcionado, eu

 jamais teria a proferido. O que? Agora eu supostamente quero saber como era o que, seilá o quê, a imaginação da minha irmã de cinco anos criou em seu quarto?

 — Bom... Ele era... — ela arregalou os olhos e me olhou assustada — Ele... Ai... Eu nãome lembro mais. — ela parecia assombrada.

Respirei fundo com meus olhos fechados. — Molly volte a dormir, é sério, foi só suaimaginação. Não tem ninguém nessa casa além de nós duas.  — minha voz embargada eabafada pelo travesseiro.

O aperto em meus ombros foi diminuindo aos poucos. — Posso ficar aqui com você?

Não quero voltar para lá. — eu mal a ouvia, mas afirmei positivamente.

Não me lembro de muita coisa depois disso. Quando acordei, ela estava deitada ao meulado coberta dos pés a cabeça. Eu não me lembrava de como ela tinha vindo parar lá.

Page 5: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 5/168

Tudo que eu queria era dormir mais um pouco e não ter que ir a escola hoje e nem terque trabalhar depois dela, mas eu não podia fazer isso. O relógio no criado mudo diziaque já havia passado da hora de eu me levantar.

Ás vezes eu queria ser apenas uma adolescente normal. E que não tivesse que trabalhar

meio-período depois da escola, agüentar o padrasto idiota e... Ser órfã. Queria ter minhamãe de volta, e consecutivamente minha vida.

Eu mal conheci meu pai. Ele morreu quando eu tinha três anos. Minha mãe me criousozinha desde então. Ela era a melhor mãe do mundo. Mas ai o Harry apareceu emnossas vidas e eles se casaram. Ele parecia ser um cara legal e minha mãe estavaperdidamente apaixonada. Quando ela engravidou da Molly ele ficou muito feliz. Era otípico casamento perfeito.

Os médicos disseram que minha mãe tinha uma doença grave e que por isso não resistiue acabou morrendo no parto. Ela nos deixou somente a Molly. De inicio eu a culpei;

lembro-me de ter gritado que ela que tinha matado a minha mãe, mas quando eu olheipara aquele rostinho inocente e inofensivo não consegui mais acusá-la de nada. E aceiteio que todos diziam: “Foi uma fatalidade”.

Eu não sei o que aconteceu com o Harry, mas ele nunca mais foi o mesmo. Eleraramente está em casa: ou está trabalhando ou está bebendo em um bar. Eu achava queseria só uma fase.

Mas me enganei.

 — Hum, está acordando agora? — fingi que não ouvi o seu comentário depreciável.Coloquei um pouco de leite em um copo e cereal em uma tigela — Deveria ser maisresponsável, Anna.

Bufei, um sorriso irônico se formou em meus lábios, porém eu não tinha a menorremota vontade de sorrir para ele mesmo que ironicamente — Olha só quem me vemfalar sobre responsabilidade. A propósito você tem alguma, Harry?

Ouvi o som do baque da caneca de porcelana na mesa da cozinha — Eu trabalho para manter esta casa, eu cuido de você...

 — Tá, tá, tá. — o interrompi — Ok. Eu já sei o seu discursinho, não precisa repeti-lo  —  sai da cozinha e voltei para o meu quarto. Molly continuava dormindo coberta dos pés acabeça. Puxei lentamente o lençol. Sua face de anjo era despreocupada. Eu a invejei porisso.

 — Molly, — chamei, ela nem se mexeu — Molly, vamos acorda. Estamos atrasadas. —  Ela abriu lentamente os olhinhos cor de mel, como os de mamãe, e me encarou.

 — Bom dia! — disse ainda sonolenta, mas já alegre. Ela sempre acordava assim nãoimportava o dia. Eu costumava ser assim também.

 — Bom dia — eu instintivamente relaxei, era como se eu tivesse a minha vida de voltapor um instante. Uma vida onde as primeiras palavras do dia eram gentis e amorosas e

Page 6: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 6/168

não cretinas ou acusativas — Levante, pequena. Vá para o seu quarto e fique pronta.Seu café está na mesa — eu disse a ela enquanto entrava no banheiro.

Logo após tomar um breve, mas nauseante banho e escovar meus dentes, eu tentei darum jeito no meu cabelo. Mas acabei desistindo, ele sempre ficava do mesmo jeito:

estranho. Uma vez Emma tentou me convencer a pintá-lo e eu quase concordei, mas noúltimo instante acabei decidindo que era melhor ter meu cabelo cor de terra do que tê-lotingido de vermelho-fogo ou de loiro prateado.

Algumas pessoas se produzem para a escola como se fossem ir a um evento de moda.Outras como se fossem aparecer na TV. Já eu me vestia com o que tinha e gostava:calça jeans, camiseta e um grande casaco de capuz.

Respirei fundo antes de voltar para a cozinha e pude suspirar aliviada quando encontreisomente Molly na mesa. — Não vai tomar café? — perguntou ela.

 — Não, eu como alguma coisa na escola.

 — Sabe, Anna, minha professora disse que o café da manhã é a refeição maisimportante do dia. E... Que se não comermos acabamos ficando sem energia e doentes.Não quero que você fique doente, então...

 — OK, senhora — sorri de sua preocupação. Às vezes parecia que era ela a irmã maisvelha. — Eu prometo que tomo meu café da manhã mais tarde. Já terminou?

 — Sim — ela se levantou da cadeira vindo em minha direção.

Atravessei o longo corredor que ligava a cozinha à sala. A casa em que morávamos eraum pouco rústica em padrão preto e branco. A sala era grande e espaçosa com umagrande lareira para o inverno, já a cozinha era menor com extensos armários e bancadasque fechavam um retângulo ao meio dela; uma pequena mesa de quatro cadeiras; ostons das paredes variavam de preto para o branco, e com alguns detalhes em madeira.Os móveis na maioria eram mognos e os eletros-domésticos brancos.

Mamãe a decorou sozinha. Ela era muito talentosa em tudo que fazia. Poderia terescolhido uma profissão que explorasse mais o seu talento, mas Violet escolheu seradvogada.

 — Pegou sua mochila? — perguntei, enquanto tirava a minha de dentro do armário.

 — Sim.

O Jardim de infância ficava a poucas quadras da minha escola. Se eu tivesse sorteconseguiria chegar lá e deixar a Molly e ainda teria tempo para correr até a Grand LakeHigh School antes de o sinal tocar. Se eu tivesse sorte.

Na porta de entrada beijei suavemente a bochecha dela — Tchau, boa aula.

 — Obrigada, para você também — ela sorriu graciosamente — Ah, Anna, quase meesqueci. Harry te deixou um recado antes de sair  — ela nunca o chamou de pai — Disse

Page 7: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 7/168

que quer que você faça um jantar... Descente — ela revirou os olhos ao som da palavra — Vai trazer alguém para casa esta noite.

Meu estomago se revirou de horror e nojo. Com certeza ele tinha encontrado alguma...Enfim, e vai trazê-la para casa essa noite. Nossa casa. Minha e da Molly. Eu queria bater

na cabeça do Harry. Eu queria que ele fosse embora e nunca mais voltasse para arruinarnossas vidas. Eu queria...

Atenuei meu rosto o quanto pude e tentei dar um último sorriso de despedida para ela.Continuei meu caminho para a escola. Faltavam exatamente dois minutos para o sinaltocar. O caminho do Jardim de Infância até a Grand Lake dura uns cinco minutos.Talvez eu conseguisse fazê-lo em três.

O ensino médio, para mim, nada mais é do que uma barreira que tenho que ultrapassar.A maior barreira, aliás. As coisas não são fáceis quando você não se encaixa emnenhum grupo. Há muito tempo atrás eu tentei me enturmar com alguém da Grand

Lake. Mas é claro que foi um completo fracasso. Depois disso eu me acostumei a ser a―anti-social‖. Eu acho que se não fosse por Emma, minha melhor amiga, todos achariamque eu tinha alguma deficiência mental ou psicológica.

Emma Newton é a minha melhor amiga desde sempre. Minha mãe era a melhor amigade Rose, a mãe dela. Elas eram tão ligadas que acabaram ficando grávidas no mesmoano. Depois da morte de mamãe, Rose tem sido a coisa mais próxima de mãe que eu eMolly temos.

Eu corri praticamente todo percurso até a escola. Eu deveria ser poupada das aulas deEd. Física por semanas, eu posso jurar que meu condicionamento físico é melhor do queo da maioria dos alunos.

Havia poucas pessoas no corredor da escola. Entre eles estava Emily Morgan, a ―rainha soberana da Grand Lake High School”. Seu cabelo loiro claro quase prateado reluziaconforme seus pequenos movimentos, enquanto ela passava o gloss labial encostada emseu armário. Na sua frente estava Ryan Brandon seu ex-passatempo preferido. Ryan é ocapitão do time de basquete da escola, então se Emily é a ―rainha‖, é claro, que Ryan éo ―rei‖. Ou era.

 — Eu sei que tinha prometido te ligar ontem à noite, baby. Mas...  — ele pausou. Estava

mais do que claro que ele tentava inventar um desculpa de última hora.  — Você sabe,tive que respeitar meu toque de recolher.

Emily se manteve indiferente. Eu não tive tempo e nem quis ouvir sua resposta, apenaspassei por eles apressada. Minha primeira aula já tinha começando há cinco minutos. OSr. Norton, meu professor de inglês, odeia atrasos, — o boato é que no dia de seucasamento com a Sra. Norton, ela acabou se atrasando tanto que até o padre foi emborae desistiu de fazer o casamento — mas ele tenta manter-se calmo e não gritar com osalunos que chegam atrasados — assim como ele deve ter feito quando sua esposa entrouna igreja de véu e grinalda, enfim, tudo lindo, maravilhoso e nos conformes, exceto pornão haver mais nenhum convidado restando e por o padre ter ido embora.

Page 8: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 8/168

Quando eu entrei na classe o Sr Norton, por sorte, não havia começado a aula. Pude vero olhar desaprovador que ele me lançou por cima de seus óculos quadriculados quandopassei por ele para ir para o meu lugar. Eu era a única na classe que tinha a grande mesabranca somente para mim — traduzindo: Eu era a única excluída da classe — e por issosempre deixava meus livros jogados na cadeira ao meu lado. Mas hoje ela estava

ocupada...

 — Hum-hum — o Sr Norton pigarreou chamando a atenção de todos para ele  — Temosum aluno novo na classe. Seu nome é Oliver Coleman. Espero que se dêem bem com onovo colega — ele disse isso olhando inquisitivamente para mim. Eu apenas acenei coma cabeça incapaz de dizer algo como: ―boas-vindas‖ para o meu novo parceiro.

Eu não sei exatamente o que estava acontecendo comigo e nem o porquê de eu nãoconseguir olhar para o meu novo ―parceiro‖. Tudo que entrava em meu campo de visãoeram suas mãos brancas e seu pulso um pouco descoberto pela blusa branca de mangacomprida.

Mas o que estava me deixando quase louca eram as sensações estranhas que varriammeu corpo, e o modo como meu coração ficou acelerado quando seu perfume doce eexcêntrico entrou por minhas narinas.

E é claro, havia algo que eu não sabia identificar exatamente o que era. Algo que merepelia a olhar para ele; algo que me dizia para sair do seu lado o mais rápido possível;algo que me dava medo.

E então eu percebi o que estava acontecendo comigo, não interiormente, masfisicamente. Minhas mãos não paravam de tremer, — apesar de eu não sentir nem umpouco de frio — e minha respiração era tão instável que era como se eu estivesse tendoum ataque de asma, só que sem a asma.

Enfiei minhas mãos no bolso do meu casaco e tentei me acalmar desviando a atençãodas mãos brancas que estavam ao meu lado para olhar para o Sr Norton. Mas o cheiroera embriagante e parecia que tomava todo o ar, apesar de ser suave, — era como umanévoa doce que cortava todos os meus outros sentidos e que me deixava arrepiada dospés a cabeça.

 — É uma tarefa simples. E eu quero que vocês a façam com a mesma empolgação que

têm para ir a uma festa. — eu escutei alguns risos debochados atrás de mim e um corode ―Uhul‖ seguidos de ―Ahhh‖. — Eu estarei supervisionando vocês. Quero que passemo maior tempo possível com seus parceiros. — arregalei meus olhos, tentando veratravés da névoa, percebendo que eu havia perdido algo. — Sim, Srtª Tanner?

 — Tipo, como assim todo o tempo? — Stacy Tanner, a segunda garota mais popular daescola e melhor amiga — ou como Emma a chama: cópia — de Emily Morgan,perguntou. Ela estava sentada apenas uma fileira a minha frente.

Antes que o Sr. Norton pudesse abrir a boca para respondê-la, Rick Ashton respondeu:

 — Tooodo o tempo, baby! Saiba que eu adorarei observar você... Toooodo o tempo!Isso é que é por a matéria em prática!

Page 9: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 9/168

  — Hamm, Sr. Ashton sinto informá-lo, mas o trabalho não visa invadir a privacidade desua colega e sim para que possa conhecer melhor a sua personalidade e talvez até quepossam ser amigos. —  ele frisou bem o, ―amigos‖.

Eu estava visivelmente atordoada. Sim, eu havia entendido o trabalho e sim eu entendiexatamente qual a sua finalidade, o que estava me deixando assim era o fato de que eunão sabia nada sobre o meu ―parceiro‖, quer dizer, ninguém sabia exatamente nadasobre ele. E sem contar que eu ainda não havia nem olhado para ele direito.

 — Bom, eu vou deixar vocês livres para conversar com seus parceiros. Podem começaro trabalho hoje. Eu estarei observando da minha mesa. Se eu perceber que não estãoconseguindo se socializar, tirarei ponto da nota dos dois. Ah, e nem pensem que podemme enganar com qualquer coisa, eu estou de olho em vocês. — ele tentou deixar sua vozsombria no final, mas sua tentativa de nos deixar assustados foi um fracasso, porquetodo mundo sabe que nem Sr. Norton e nem ninguém daria conta de supervisionar todos

os alunos da classe.

Todos começaram a tagarelar com seus parceiros sem parar, e eu... Bem o únicomovimento que fiz foi apoiar meus cotovelos na mesa. O meu plano inicial era esperaros próximos quarenta minutos passarem para que eu pudesse respirar um pouco de arlimpo longe daquela sala e longe do meu ―parceiro‖. Mas eu sabia que havia uma partede mim que queria que os ponteiros do relógio andassem bem devagar para que eupudesse ficar ali sentindo aquele delicioso cheiro que parecia dar descargas elétricas nomeu coração.

 — Algum problema, Srtª Mathers? — o Sr. Norton me olhava fixamente de sua mesa.

 — Não, nenhum. — eu fingi um meio sorriso enquanto dava de ombros. Ele continuouolhando para mim, então lançou um olhar para o meu ―parceiro‖, e depois abaixou oolhar para o papel em suas mãos.

Eu dei um longo suspiro, sabendo que não haveria alternativa a não ser me socializarcom ele. Porém, como eu uma não-sociável de repente me socializarei assim num passede mágica? E como eu poderia ignorar as sensações estranhas que eu estava sentindosimplesmente só de estar perto dele? Como eu poderia observá-lo sendo que eu malconsigo olhá-lo?

Eu disse a mim mesma que eu estava sendo ridícula e que não era necessário observá-lo,bastava perguntar algumas banalidades, escrever suas respostas num papel e depoisentregar para o Sr. Norton. Mesmo que a minha nota não fosse boa ela, com certeza, nãomancharia o meu boletim impecável.

Então, eu respirei fundo sentindo o seu doce aroma inflamar meus pulmões e não pudedeixar de pensar em escrever no número um da lista: Ele cheira muito bem  — é claroque eu nunca escreveria isso na redação — mesmo que seja pura verdade. Eu fuivagando meu olhar casualmente pela mesa e quando meus olhos fitaram seus ombrosvirei minha cabeça de uma vez para vê-lo. E então foi como se seus olhos estivessem

me levando para dentro de um profundo e hipnotizante buraco.

Page 10: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 10/168

DOIS.

Eu queria me olhar em um espelho e dar uma boa olhada para a minha expressão.

Choque e incredulidade deveriam ser o que eu veria. Céus, o que era aquilo? Era comose eu tivesse sido sugada para um buraco profundo, onde o azul predominava tambéminteriormente.

Aqueles segundos foram os mais longos de toda a minha vida. Parecia que eu tinhaparado no tempo, não melhor, como se seus olhos tivessem parado o tempo. Eu voltei amim quando ele sorriu. Pisquei algumas vezes tentando me estabilizar.

 — Olá — a voz dele era como veludo de tão macia, quase tão embriagante quanto seuperfume.

Passaram-se alguns segundos antes de eu encontrar a minha voz. — Oi — foi só o queconsegui dizer, e eu realmente não tive a intenção de soar ríspida, mas quando euescutei o tom da minha voz deduzi que seria melhor nem tê-lo respondido por que seriamais educado.

E para a minha surpresa em vez de se calar e se afastar de mim, como qualquer outrapessoa normal faria, ele só alargou seu sorriso expondo seus dentes brancosperfeitamente enfileirados, que me fizeram arrepiar dos pés a cabeça. Eu desviei meuolhar de seu sorriso e voltei a fitar a mesa, seu olhar parecia me queimar observandocada pequeno movimento que eu fazia. Espera, eu estava sendo observada? Ele jácomeçou a fazer isso?

 — De onde você veio? — Parabéns Anna, bem não natural!

Ele não respondeu de início, o que me fez pensar que ele havia se tocado e percebidoque eu não era uma boa pessoa para começar uma conversa no seu primeiro dia de aula.

Mas então ele disse:

 — Los Angeles — E ele disse isso de forma tão irônica que me fez olhá-lo novamente.

Meus olhos o inspecionaram e notaram que, além de sua aparência de um astro deHollywood, não havia nada de muito estranho nele. Então porque eu sentia essassensações estranhas?

 — A Califórnia é legal? — Eu perguntei, mas na verdade não era isso que eu queriaperguntar por que a Califórnia é legal, e é claro que eu sabia disso por que os melhoresanos da minha vida foram lá.

 — Não sei, me diga você — ele me olhava divertido arqueando uma sobrancelha. E eunão pude deixar de notar novamente o quanto ele era bonito e o modo como seus olhossempre procuravam os meus fazendo-me novamente cair o buraco azul e misterioso.

Page 11: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 11/168

 — A Califórnia é legal — eu disse monotonamente sem perceber de início o modocomo ele disse ―me diga você”, como se soubesse o que eu havia pensado. E então elepegou uma caneta e eu desviei meus olhos para o seu papel enquanto ele escrevia:

Anna Belle Mathers

 — Como sabe meu nome? — ele apenas deu mais um de seus sorrisos irônicos econtinuou escrevendo sem me responder.

Ela tem um passado ensolarado e feliz no sul da Califórnia, mas não gosta de falar sobre ele.

Minhas sobrancelhas se arquearam enquanto eu lia a primeira linha, e em vez de engolirem seco, revirei meus olhos. Ele estava blefando, chutando ou tentando ficcionalizarminha vida. Podia ser qualquer uma das três opções, mas nenhuma implicava o fato deque ele estava absurdamente certo.

 — Humm, — eu tentei preparar minha voz para que ela saísse de um jeito relaxado ouquase entediado — Não pode inventar.

Ele deu um meio sorriso, largou a caneta em cima do papel e se virou para me olhar e euesperei novamente cair no buraco azul e misterioso de seus olhos, mas desta vez nadaaconteceu. E eu pude ver sua superfície que era de um azul intenso feito safira, e que,apesar de serem lindos fez os pelos da minha nuca se arrepiarem de tão sombrios queeram.

 — Acha que estou inventando? — não soou como uma pergunta e sim como uma

acusação, como um juiz que tem todas as provas de que o réu é culpado e espera que eleadmita seu erro antes do decreto final.

Eu tentei não gaguejar e parecer indiferente á ele e aos seus olhos que pareciam detectarcada minúsculo movimento meu — Sim. Você não me perguntou se eu já estive naCalifórnia.

 — Eu não preciso perguntar para saber — ele disse isso como se fosse algo comum quetodos fazem. E não desviou nem por um instante seu olhar do meu.

 — Hum, então você é tipo o quê? Um vidente?

Ele tombou sua cabeça para o lado como se quisesse me ver de um melhor ângulo.

 — Não... Eu não sou um vidente.

 — Ah que pena porque eu estava prestes a lhe perguntar se iria ser reprovada emQuímica. — consegui dizer me perdendo de seu olhar por um instante.

Ele deu um minúsculo sorriso quase imperceptível — Nós dois sabemos que você vaipassar, é uma das melhores alunas da classe — ele se interrompeu — Não, melhor daescola inteira.

 — Eu deveria agradecer?

Page 12: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 12/168

 — Não, porque eu ainda não terminei — ele agora parecia me queimar diretamente como olhar me impedindo de desviar ou até mesmo piscar — Você pretende terminar oensino médio e dar o fora desta cidade o mais rápido possível. Talvez Yale? OuHarvard? Elas com certeza estão entre suas opções, mas você esta indecisa, aliás, serindecisa é um de seus maiores pontos fracos. E ainda tem o fato de que você quer voltar

para Los Angeles... Contudo tenta enganar a si mesma dizendo que não. Talvez, quemsabe, um dia não é Anna? — ele sorriu continuando — Já quase fugiu de casa, pensouem se matar, mas não é egoísta o suficiente ao ponto de abandonar a sua irmãzinha. Etambém é muito certinha. Escreve coisas que o mundo merece ler, sério, eu acho quevocê deve lutar para publicar aquilo; não é tão imaginário e surreal como você pensa.

Eu pisquei me vendo livre de seu olhar, mas incapaz de engolir em seco ou rir como seaquilo fosse uma grande piada. Porque não era. Ele disse aquilo tão sério e convicto, meolhando como se eu fosse totalmente transparente, como se me conhecesse á anos e nãoá somente minutos.Eu era incapaz de esboçar qualquer que fosse a emoção, mas eu estava, por algum

motivo, extremamente irritada.

 — Você não sabe nada sobre mim. — E agora era eu que procurava seus olhostentando fazer dos meus frios e agressivos.

Ele apenas sorriu amplamente se aproximando o máximo que a distância de nossosassentos permitia e sussurrou assustadoramente, apesar de sorrir:

 — Eu conheço você, Anna Belle. Eu conheço cada minúsculo subconscientepensamento seu. — seu hálito fazendo cócegas em meu rosto ficando ele tão próximoque apenas um curto espaço nos separava. Eu tremi, mas não de frio. Ele se aproximouainda mais, quase encostando seus lábios nos meus, desviando no último segundo paraminha orelha esquerda. — Foi um prazer conversar com você, parceira — E se levantoupegou suas coisas e saiu pela porta.

Eu queria me levantar e dizer que ele não conhecia nem se quer remotamente parte dequem eu sou. Eu queria olhar bem nos olhos de Oliver Coleman e dizer para ele ircuidar da sua vida bem longe de mim, e que o que tivemos hoje foi mais um monologoentre duas pessoas que falam línguas diferentes do que uma conversa. E que eu não meimportava se foi um prazer para ele ou não.

Mas eu não consegui. Somente fiquei ali parada encarando o vazio, e continuei assimpelo o resto das minhas aulas. E na hora do almoço, quando Emma me perguntou se euestava bem eu penas acenei com a cabeça.

 — Não parece, você nem tocou na sua comida. — ela apontou para a bandeja intocada aminha frente e uma parte do meu cérebro se lembrou do que tinha dito a Molly estamanhã. Peguei em um movimento robótico uma batata do saco de Ruffles1, malsentindo o gosto.

Mais tarde no trabalho, eu me distraí olhando o café que eu quase tinha derrubado numagarota ruiva — Oh, me desculpe. — pedi limpando o liquido preto e de cheiro forte da

1Marca de batata-frita

Page 13: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 13/168

mesa — Eu lhe trago outro café num instante. — disse eu saindo apressada, indo emdireção a cozinha.

 — O que houve? — Lizzie perguntou preocupada. Ela tinha por volta de uns trinta anos,não tinha filhos, não era casada e morava com o pai e seu cachorro.

 — Nada — respondi esperando a xícara de café ficar cheia. Ela caminhou lentamenteaté mim, suspirou e depois deu de ombros saindo.Depois do expediente Chuck, o sobrinho do Sr Anderson e por conseqüência o gerente,veio me trazer o envelope que eu esperei a semana toda para ver,  — não que fosse algomuito, muito bom, mas era o suficiente para eu continuar a vir a trabalhar noAnderson‘s — meu pagamento.

Ele estava no último ano da escola e as únicas palavras que me dirigiu dentro e fora daGrand Lake foram: ―Você está atrasada‖, ―Vou descontar do seu salário‖ e, ―Ah

desculpe, pensei que fosse outra pessoa‖.

No estacionamento dos funcionários Lizzie me chamou atenção acenando de sua SUV2 grande demais para somente ela.

 — Hey quer uma carona?

Eu primeiramente pensei em aceitar, mas então me lembrei que teria de comprar umacoisa antes de ir para casa.

 — Não, obrigada. Eu tenho que resolver algumas coisas.

Entrei na Lunabella, uma lojinha onde se encontrava de tudo que se podia imaginar, eao passar pelo departamento de livros um me chamou a atenção. Na capa, gafado emmeio à camurça o nome: Lunabella. Peguei-o observando melhor de perto, procurandopelo autor ou pela editora, mas nada havia ali além do nome escrito em vermelho-sangue.

 — Hey, estranha. Largue os livros e comece a pegar homens! Um gatinho lindo acaboude sair da loja — a voz nasalada e aguda soou atrás de mim e eu automaticamentedepositei o livro na prateleira. Olhei para ele surpreendida ao ver como ele tinha

mudado em tão pouco tempo; Seu cabelo agora estava cortado em uma franja lateral quequase cobria seus olhos na pele branca e fina, e suas roupas estavam ainda maiscoloridas em sua magra e baixa estatura.

 — Luke? O que faz aqui? Deveria estar em Oregon cuidando da sua tia doente!  — nãoera uma acusação pelo tom de voz que usei.

 — Ah, lá vem você também com a baboseira do sobrinho bonzinho ir cuidar da titiadoente — ele gesticulou com as mãos fazendo uma careta cômica — Meu bem acrediteem mim quando digo que aquela velha vai viver mais do que nós. E além do mais eunão agüentava mais aquelas coisas loucas que ela falava.  — Eu ri revirando meus olhos,

2Carro de grande porte

Page 14: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 14/168

voltando meu olhar para a prateleira — Então o que andou aprontando? Cabulou aula?Perdeu a virgindade? Usou camisinha? Fugiu de casa com ele?

 — Não! — eu não sei por que ainda me surpreendo com suas perguntas infames — Viua Emma? — perguntei, mudando de assunto.

 — Sim, liguei para ela assim que cheguei... Você pode me fazer um favor e me dizerquem é esse tal de Oliver Coleman? — ele perguntou ao meu lado. Eu estremecilevemente dos pés a cabeça ao som do nome. E antes que eu me recuperasse pararespondê-lo ele prosseguiu: — Ela não parou de falar nele. Diz aí, ele é gatinho?

 — Hum, é só um garoto novo na escola. — Eu dei de ombros fingindo estar distraídacom um livro. Ele não disse nada o que me fez corar, nas raras vezes em que ele ficavacalado era porque ele estava observando atentamente procurando vestígios de algo quetinha ficado no ar. Mas no meu caso, agora, não havia nada. Ou havia? Ele era só umgaroto. Um garoto bastante estranho. Mas somente um garoto.

 — Está trabalhando no caixa de novo? — Peguei novamente o livro de camurça, e abri-o na primeira página. Havia um nome escrito em dourado: Elisabeth di Veroni.

 — Sim, estou sendo escravizado de novo — ele se encostou de costas para a prateleiraao meu lado.

 — Sabe quanto custa isso? — ergui o livro para que ele pudesse ver.

 — Não, mas para mim, isso não vale nem um centavo. Se gostar, leve pra você, meuavô nem vai perceber mesmo, e além do mais quem iria querer comprar esta velharia?Faça de conta que você achou no lixo. Veja só está até com o nome do lixo: Lunabella

 — ele disse, enquanto eu ria.

 — Tudo bem, obrigada pelo presente encontrado no lixo. — ironizei, colocando-o embaixo do braço. — Eu tenho que ir. Só preciso pegar uma coisa. — falei andando pelocorredor de CDs e DVDs, indo em direção ao de brinquedos.

 — Voltou a ser criança? — ele fez uma piada quando eu parei em frente a uma Barbiena caixa.

 — Não, é que a Molly está de olho nesta boneca desde que foi lançada — peguei acaixa cor de rosa com uma linda Barbie em um vestido luxuoso em miniatura. Ela sorriae seu cabelo loiro estava preso em um coque-alto. — Vou dar a ela de presente deaniversário.

 — Humm, eu queria ter uma irmã como você. Sempre tão prestativa... Já sei Anna,porque você não me adota? — ele riu e eu revirei meus olhos. — Não sério. Essaboneca é mais cara do que minha TV, quem deveria estar comprando isso para ela é oHarry e não... — ele se interrompeu — Desculpe, eu sei que falo demais. Eu e minhaboca!

Eu suspirei.

Page 15: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 15/168

  — Não, tudo bem. — andei com ele em direção ao caixa. Ele foi para trás do balcão epassou o código de barras. Peguei o dinheiro e dei a ele. Eu não me importei em tergastado metade do dinheiro somente com aquela boneca; era para a Molly, então valia opreço.

Dei tchau para ele e sai para a noite fria. A rua estava vazia, a não ser pelos garotosencostados em uma escada e pela mulher que acabara de entrar no carro com umacriança. Coloquei minhas mãos no bolso da jaqueta. O embrulho do presente estavadentro da minha mochila. Eu só o daria a Molly no dia de seu aniversário.

Olhei por cima de meu ombro só por puro hábito, os garotos continuavam lá e a mulhertinha acabado de sair com o carro. Uma espécie de arrepio passou por minha espinha eeu apressei o passo.

Olhei para os dois lados antes de atravessar a rua. Uma fina garoa começou a cair e eupuxei o capuz para cima. O som dos meus passos e a minha respiração era a única coisa

que eu ouvia.Eu estava estranhamente em alerta e continuei assim até chegar a casa. Molly estavasentada no sofá com o controle remoto na mão, ela sorriu quando me viu  — Como foi oseu dia?

 — Normal. — eu dei de ombros mentindo, é claro, meu dia não foi nada normal — E oseu?

 — Foi ótimo. Sabia que vamos fazer uma peça teatral? — ela disse exultante — O temaé Romeu e Julieta.

Ergui uma sobrancelha.

 — Romeu e Julieta?

 — Sim, a professora disse que esse tal de... Shapeare era um ótimo escritor.

 —  Shakespeare —  Corrigi-a, sorrindo sentando no sofá.

 — Isso. Era esse o nome — voltou-se para a TV, notei que ela usava um vestido florido,que seu cabelo estava preso com presilhas azuis e nos pés ela usava uma sapatilha

prateada. Arrumada demais para um simples jantar. — Quem te arrumou assim? — perguntei.

 — Nancy. Ela fez o jantar também. Disse que foi o Harry que mandou.  — mudou ocanal da TV, As Meninas Super-Poderosas estavam na tela. Ela vidrou seus olhos deconcentração e não disse mais nada.

Nancy é a babá — de sessenta anos — da Molly.

Eu suspirei enquanto subia as escadas para ao meu quarto. Ao me ver sozinha, desabei

na cama querendo dormir para me salvar de meus pensamentos, mas eu tinha plenaconsciência de que eles me perseguiriam onde quer que eu fosse.

Page 16: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 16/168

 E aqueles malditos olhos que pareciam estar me queimando o dia todo. Droga de garotoesquisito! O que há de errado com ele? Aliás, o que há de errado comigo?

Depois de tomar banho e me vestir adequadamente, — não que eu quisesse causar boa

impressão para quem quer que o Harry trouxesse para casa — voltei para a sala.

Ao passar pela sala de jantar me deparei com algo que não via há muito tempo: A mesaestava posta com a nossa segunda melhor louça, uma das preferidas de mamãe. Euabaixei meu olhar para o chão sentindo o familiar aperto no peito.

Entrando na cozinha fui em direção ao fogão, um cheiro delicioso pairava no ar. Haviaum frango no forno que parecia estar muito bom, bem diferente da comida congeladaque comíamos á anos.

Ouvi a porta da frente sendo aberta e vozes. Voltei lentamente para lá, adiando ao

máximo o show de horror. A primeira coisa que vi ao adentrar o cômodo foi o rostosorridente do Harry, o que eu não via desde que minha mãe morreu. E depois meusolhos se cruzaram com os de uma linda mulher de cabelos castanho-claros, ela sorriapara mim. O rosto perfeito, sem nenhuma marca de rugas, oval e de nariz reto eclássico. Vestida com um sobretudo preto que logo foi retirado por Harry, expondo seulindo vestido de cashmere. Ela não se parecia em nada com o que eu imaginara.

Logo atrás dela estava ele, com um olhar fixo, que ao mesmo tempo em que estavadivertido estava obscuro; Nem um pouco surpresos, ao contrário dos meus. E de novo,mesmo que eu já estivesse preparada, fui puxada para dentro do buraco hipnotizante deseus olhos. Eu lutei para desviar os olhos dele e consegui a tempo de ouvir Harry dizer:

 — Estas são Anna e Molly. Minhas filhas. — eu ergui uma sobrancelha – que era aúnica parte de meu corpo que eu parecia ter controle no momento – estranhando o―minhas filhas‖, ele devia estar muito alienado para usar este termo – não que euestivesse em uma situação diferente. — Meninas, estes são Oliver e Susan Coleman:nossos novos vizinhos.

Page 17: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 17/168

TRÊS.

Eu tinha vontade de vomitar em cima do frango. Não que o gosto estivesse ruim ou quesua aparência fosse detestável, longe disso, estava muito bom; Estava delicioso antes

dos nossos convidados, e que a pouco eu descobri que são nossos novos vizinhos,chegarem.

A rua em que morávamos não é bem a mais habitada. Os donos da maioria das casasmorreram e seus parentes ou filhos saíram da cidade e parece que se esqueceram delas.Havia uma ou duas casas no começo da rua que foram vendidas, mas quem as comprounão apareceu. E havia a casa em frente a nossa casa. A misteriosa casa com a placavende-se desgastada pelo o longo tempo em que está lá. Esteve...

 — A casa de vocês é linda — Susan tinha comentado quando entramos na sala de jantar — Sua esposa tinha um ótimo gosto para decoração, Harry.

 — Obrigado. Violet era muito talentosa em tudo que fazia — Havia certo pesar no tomde voz que ele usou, mas eu não me importei em olhá-lo enquanto sentava a mesa aolado de Molly.

Eu mexia a comida de um lado para o outro mal prestando atenção no que eles diziamna mesa, até que senti um leve cutucam no meu ombro e olhei para o lado para verMolly me encarar com os olhos semi-serrados e as sobrancelhas franzidas parecendoesperar minha resposta para algo que eu havia perdido, eu aguardei ela repetir o quetinha dito:

 — Você não disse que a casa da frente era mal assombrada?

Eu me engasguei com minha própria saliva, enquanto ouvia três tipos de riso: oprimeiro fino e delicado; o segundo o mais macio que fez minhas bochechas arderem; eo terceiro num tom grave e conhecido que eu achava que nunca mais ouvirianovamente.

Eu esperei eles pararem de rir e conseqüentemente o rubor sair de meu rosto.

 — Por que acha que a casa da frente é mal assombrada, querida?  — Susan perguntou-

me.

Ela estava sentada a direita de Harry; que por sua vez estava sentado na ponta da mesa.Molly a sua esquerda eu ao lado dela, e bem ele estava sentado ao lado de Susan, ouseja, a minha frente. Eu evitei manter contato visual com ele desde o primeiro momentoque o vi entrar pela porta.

Eu dei de ombros, mas o movimento foi muito rígido para sair despreocupado enquantorespondia: — Coisas de irmãs. Era só uma história... — disse eu, fitando minhas mãosem cima da mesa, ainda sentia meu rosto quente.

Harry riu mais uma vez e eu olhei para ele desta vez. Eu comecei a desconfiar que elenão fosse o mesmo Harry desta manhã e nem os destes longos cinco anos. Ele retribuiu

Page 18: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 18/168

o olhar e havia ali um brilho estranho, algo como... Felicidade? Ele olhou para o ladooposto da mesa e então disse: — Anna estuda na mesma escola que você, Oliver. Jáhaviam se conhecido?

 Não. Eu não o tinha o conhecido. Ele que me conheceu. Ou melhor, parecia que ele já

me conhecia. Deixei meus olhos se levantarem por um instante, o suficiente para vê-lodar mais um de seus sorrisos irônicos — Somos parceiros em Inglês.

 — Ah mais que ótimo, querido. — Susan deu um meio sorriso, uma covinha apareceuem sua bochecha, observando-a melhor de perto percebi que não havia nenhuma linhade envelhecimento ao redor de seus olhos. Ela parecia ser jovial desde a aparência até apersonalidade — Espero que se tornem grandes amigos.

Controlei-me para não bufar. De uma coisa eu estava certa: Oliver nunca seria meuamigo. Não depois de ele praticamente falar da minha vida como se tivesse lido sobreela em algum lugar. Não depois de ele agir tão estranhamente ao ponto de me dar medo.

 — Estou certo que serão — disse Harry — Violet — ele pausou um breve, quaseimperceptível instante, ele praticamente nunca usou o nome desde que ela se fora, noentanto hoje já o usou duas vezes — Uma vez me disse que o que a literatura uneninguém separa.

 — Hum, bela frase — comentou Susan.

 — Ou, no nosso caso, uma redação — murmurou Oliver. Pega de surpresa eu levanteimeu olhar, mas ele não olhava para mim e sim para Harry.

 — Redação?

 — Sim, temos que fazer uma — seu rosto estava divertido.

 — Qual o tema? — Anna. — ele respondeu calmamente, um sorriso imperceptível em seus lábios,enquanto ele virava o rosto para mim. Eu olhei para outra direção antes que seus olhosme prendessem.

 — Anna é o tema? Que legal! — Molly disse, eu a olhei espantada. Como assim que

legal? — Eu não sou o tema — comecei a explicar o que o meu parceiro esqueceu-se de fazer

 — O tema é observação. Temos que observar-nos e escrever o que vemos em um papel.Só isso. Não é legal.

 — Tipo espiões? — ela sorriu com os olhos brilhando. Eu quis bater na minha testa. Oumelhor, na testa de meu parceiro.

 — Não. Espiões bisbilhotam, e bisbilhotar a vida alheia é errado — uma leve indireta.

Ele percebeu, pois vi pela minha visão periférica outro de seus sorrisos.

Page 19: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 19/168

 Eu me sentei no sofá contra a minha vontade depois daquilo. Eu ainda tinha vontade devomitar.

Harry começou uma conversa animada com Susan sobre o trabalho. Ela, por

coincidência, também irá trabalhar no mesmo hospital onde ele trabalha. O que eu acheimuita coincidência para a minha sanidade mental.

Levantei-me e fui até a cozinha tirar a louça da máquina. Na verdade eu só queria ficarum pouco sozinha para poder reorganizar os meus pensamentos.

Estava tudo acontecendo de um jeito estranho e eu não gostava disso. Primeiro Oliverna escola, depois a estranha sensação de estar sendo seguida, e agora Harry com suaestranha... Felicidade? É, era isso que eu começava acreditar que fosse o brilho em seusolhos.

Eu quase deixei os pratos caírem no chão quando uma voz veio de trás de mim:  — Querajuda?

Ainda não totalmente recupera do susto respondi:

 — Não. — e foi tão arrogante que eu me obriguei a completar — Obrigada.

E ainda sem me virar para ele caminhei até a prateleira de pratos para colocar a pequenapilha de volta ao lugar. Mas era alta e eu certamente precisaria de algum banco paraalcançar.

A primeira coisa que vi para subir foi à cadeira da mesa da cozinha. Eu poderia subirnela ou pedir a Oliver que colocasse os pratos na prateleira.

Não se precisa de muito esforço para saber qual foi minha opção.

 — Tem certeza que não quer ajuda? — eu podia ouvir o sorriso em sua voz.

 — Tenho. — desta vez eu não me incomodei em ser mais educada.Movi a cadeira de lugar deixando os pratos na pia.

 — Cuidado. — alertou-me ele, enquanto eu subia vi-o de relance encostado na bancadacom os braços cruzados e um leve sorriso irônico no canto dos lábios.

Os músculos e a pele branca expostos pela camiseta preta de mangas curtas, a calçaLevi‘s3 meio surrada com botas também pretas. E por um instante meu olhar se perdeuem suas feições, o suficiente para me desconcentrar e a cadeira tremer sob mim. Ospratos escorregaram das minhas mãos. E eu já podia imaginar sentir a dor, primeiro doscacos de vidro e porcelana me cortando e depois da queda. Mas antes que isso pudesseacontecer braços fortes me envolveram. Não houve baque de coisas se quebrando: nemde meus ossos, nem dos pratos. Somente o baque silencioso de seu perfume, agora maisforte e ao mesmo tempo mais suave do que nunca, inflamando meus pulmões.

3Tipo de calça jeans

Page 20: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 20/168

  — Eu disse para ter cuidado... — seu hálito doce foi lançado perigosamente em meurosto, como uma neblina inundando novamente meus sentidos, enquanto ele mecolocava no chão. Atordoada, cambaleei para o lado quase tropeçando nos meuspróprios pés. Ele me segurou pelos meus cotovelos. — Você está bem?

Eu acho que fiz que sim com a cabeça, mas não tinha muita certeza dos meusmovimentos. Minha cabeça girava, era como se eu tivesse levado um choque elétrico.Eu precisava sair dali, eu precisava sair dali agora. Então por que minhas pernas não meobedeciam?

E a sensação desconfortável não passou até ele retirar suas mãos de meus cotovelos. Eupisquei algumas vezes voltando a mim, por um momento eu cheguei a acreditar quefosse ele que havia provocado aquilo. Observei-o pegar os pratos em cima da bancadaonde ele havia estado encostado e casualmente colocar em cima da prateleira sem sequer se esticar. Colocou a cadeira junto à mesa, e depois se voltou para mim com uma

sobrancelha arqueada me olhando fixamente, e por mais que eu tentasse resistir a elemais uma vez me perdi no buraco profundo e azul de seus olhos, durou tempo osuficiente para ele estar a poucos centímetros de mim de novo, e para a mesma sensaçãoestranha voltar.

 — O que você quer? — perguntei sem fôlego, me agarrando a borda da madeira, meus  joelhos fraquejando.

Ele sorriu mostrando seus perfeitos dentes cintilantes.

 — Muitas coisas. — eu notei que havia certa malicia no modo como ele disse, mastentei me manter indiferente a isto. — Mas neste momento estou esperando que umagarota me agradeça por não a deixar se esborrachar no chão.

Eu prendi a respiração, tentando me desvencilhar da neblina. Acabe com isso logo e saiadaí.

 — O... Obrigada — eu disse sem ar.

Ele sorriu minimamente e se afastou.

 — Disponha. —  Corra, corra. Droga de pernas que não me obedecem. Eu calculei adistância entre eu e ele. Depois entre eu e a porta. E meus instintos não gostaram nadade ele estar mais perto do que ela. — E, então, quantas linhas?

Eu desviei meus olhos da porta e me arrependi de tê-lo o feito. Eu não sabia o que erapior: o buraco profundo e misterioso de seus olhos ou sua superfície como safira econgelante. Engoli em seco, os pêlos da minha nuca se arrepiando.

 — C-como?

 — A redação. Quantas linhas eu já tenho? — pisquei meio que voltando a mim.

Eu meio que sorri – uma clara tentativa distorcida de imitar o seu sorriso.

Page 21: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 21/168

  — Acho que... Nenhuma. —  Eu pensei que iria apagar aquele sorrisinho cínico de seurosto com isso, mas me enganei tudo que ele fez foi alargá-lo.

 — Uau! Isso significa que eu sou altamente misterioso ou que eu sou totalmente

desinteressante?

Totalmente desinteressante, por favor, diga isso.

 — Os dois. — Eu me peguei dizendo em vez disso. Ele deu um passo em minhadireção, o sorriso nos lábios e o os olhos sombrios ainda em seu rosto.

 — E isso é bom? — girou em seus calcanhares ficando de costas para mim, efinalmente pude ter parcialmente controle sobre minhas pernas o suficiente para memanter de pé, mas minha nuca continuava arrepiada e eu comecei a suar frio.

Meu olhar em seu punho semicerrado. Neste momento eu tive consciência do por quetinha de sair dali. Recusei-me acreditar no primeiro instante, mas havia algo quepraticamente gritava dentro de mim – acho que meus instintos, – dizendo o que parecialoucura, mas que parecia estar na minha cara:

Oliver não era somente um cara estranho... Há algo nele que vai além disso. E por algum motivo, que eu não sabia qual, ele não gostava de mim.

Não que eu não estivesse acostumada com a rejeição. Normalmente as pessoas nem seaproximam de mim. Emma já tentou me convencer de que isso não é verdade, mas nãohá como negar o que está ali. Acho que eu tenho algo que repele as pessoas. Ou elas temalgo que me repelem.

Ele de repente se virou de novo para mim com os olhos ainda sombrios, com uma mãomassageando suas têmporas.

 — Eu tenho que ir. — e dizendo isso me deixou sozinha.

Eu tentei acalmar minha respiração. E minhas pernas, agora, pareciam que tinhamcriado vida própria. Enquanto todos os meus instintos diziam para eu não me mover eficar ali, elas andavam apressadas atrás dele. Volte, Anna.

 — Você está bem? — eu o alcancei no grande corredor que separava a cozinha da sala.

 — Sim — ele respondeu calmamente, mas eu juro que vi seu corpo tremer. Continuouandando e mais uma vez eu o segui. Droga de pernas, e agora o que há de errado comelas?

Chegando à sala de estar percebi que Susan já estava indo em direção a porta, ela eHarry ainda conversavam animadamente. Molly brincava com os babados de seuvestido no sofá de dois lugares, eu caminhei até ela e me sentei ao seu lado.

 — Foi uma honra recebê-los, venham sempre que quiserem para jantar. — Harry nãodisse isso apenas como cortesia, ele disse isso como quem pede algo.

Page 22: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 22/168

 — Ah claro, nós viremos — ela lançou um breve olhar para Oliver que estava encostadono batente da porta de entrada olhando para fora, mais precisamente, para cima —  Deixe só nos estabelecer-nos melhor e desta vez o jantar será em nossa casa.

 — Eu aprecio o convite. — aquilo era o que afinal? Eles estavam, tipo, flertando?

Porque era o que parecia. Ela se virou para nós duas ainda com aquele sorrisoextremamente jovial.

 — Eu adorei conhecê-las, meninas.

Eu dei um leve aceno com a cabeça fingindo um meio sorriso. Quando eles foramembora eu me senti meio que aliviada. Não, aliviada não era a palavra. Eu me sentisegura.

 — Foi um belo jantar, hein? — eu contive o sorriso irônico, ele deveria ter dito: Foiuma bela visita.

Olhei para Molly e vi nela uma boa oportunidade para fugir daquela estranheza deHarry, aliás, para fugir de tudo que era estranho e me trancar em um lugar ainda maisseguro.

 — Hora de ir para cama, senhorita.

Ela resmungou um protesto enquanto me seguia para seu quarto. Dei a ela sua roupa dedormir e a levei para escovar os dentes e, enquanto a cobria com seu cobertor percebiseu sorriso. — O que foi? — Ela abriu e fechou a boca e fez uma cara de mistério.

 — Estou curiosa só isso. — disse simplesmente.

 — Sobre? — liguei o abajur do criado mudo. A luz era baixa e dava um constate meiorosado a tudo.

 — Sobre Susan e Oliver. —  Eu também, pensei mentalmente. — Você viu como elaolhou para você? — Eu tentei me manter calma.

 — Não. Como ela olhou pra mim? — eu dei um meio sorriso aparentando achar graçadaquilo.

 — Eu não sei... Acho que a palavra é deslumbre. É era isso, ela parecia estardeslumbrada com você. — Eu franzi o cenho ainda sorrindo.

 — Andou lendo um dicionário? — mudei propositalmente de assunto.

Page 23: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 23/168

 — Não, mas Srtª Evans está trabalhando novas palavras conosco. — ela bocejou.

 — Hum, legal. — murmurei beijando sua testa. — Boa noite e durma bem. Qualquercoisa, estou no fim do corredor — falei enquanto saia do quarto.

 — Boa noite. Durma com os anjos. — a ouvi dizer enquanto eu fechava a porta.

Ótimo, finalmente sozinha.

Eu escorreguei minhas costas pela porta me sentando no chão do meu quarto. Sentia-me exatamente como em todas as noites ali. Não havia pessoas para eu sorrir e parecernormal. Não havia nada que não fosse familiar. E, principalmente, não havia coisasestranhas. Só havia a velha Anna e seu velho quarto.

As paredes em tons pastel, a cama no centro com uma velha colcha rocha com desenhosflorais que Nancy — , que antigamente era a minha babá, — havia bordado assim que

cheguei a Atlanta. Minha velha escrivaninha mogno e uma cômoda da mesma cor. Aolado da cama um criado mudo com apenas uma gaveta, um abajur em cima, e um fotominha e de Molly no natal passado emoldurada por um porta-retrato. A janela grande devidro estava aberta e por ela passava um vento não muito forte, mas ainda assim frio,que balançava as cortinas da mesma cor da minha colcha de cama.

Era essa a decoração do meu quarto. Mamãe tentou decorá-lo da melhor maneira semcontradizer com o meu — mau — gosto. Ela queria que fosse mais sofisticado e euqueria algo simples e de cores não muito chamativas, assim como na nossa casa deMalibu: Não se precisava de muito, a linda paisagem da janela era o suficiente. É claroque a paisagem daqui não é tão boa quanto à de lá.

Uma única lágrima solitária caiu de meu olho esquerdo e eu rapidamente a limpei. Fuiaté o banheiro para lavar o rosto, a sensação foi tão boa que eu decidi tomar um banho.A água quente do chuveiro rapidamente adormeceu meus músculos. Fechei meus olhosapreciando a sensação.Não sei quanto tempo fiquei assim, mas quando os abrinovamente o vapor embaçava tudo como uma névoa densa em um dia de neve.

Enrolei-me em uma toalha e passei minha mão pelo espelho e tarde demais notei que omeu cabelo estava encharcado. Desviei meu olhar da garota do espelho e escovei meusdentes. Coloquei um pijama velho de flanela, e me deitei na cama.

Eu tinha a impressão de que tinha acabado de fechar os olhos, mas o relógio marcava05h00min da manhã. Harry tinha acabado de sair para seu plantão no hospital e Mollyainda dormia. Eu não tinha a mínima idéia do que me acordara, mas não tinha um pingode sono esta manhã. E por incrível que pareça estava bem disposta. Tanto é que fizpanquecas, o prato preferido de Molly e ainda adiantei meu dever de matemática.

Estava procurando algo, quando peguei por acidente o Lunabella, o livro que Luke medera — ou melhor, usando suas próprias palavras, que encontrei no lixo — eu o abri nametade e estava em branco, à página anterior também, e a posterior, a última, apenúltima, enfim, o livro todo estava em branco. Bufei, enquanto guardava-o na gaveta

da escrivaninha.

Page 24: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 24/168

Eram 06h00min e eu ainda estava de pijamas, ignorando o café que tinha preparadocomecei a tomar sorvete direto do pote, não estava com fome para comer as panquecas,mesmo que não houvesse comido praticamente nada no jantar. Só em relembrar omotivo meu estomago se revirava e eu tinha vontade de vomitar.

Arrumei-me para escola trinta minutos antes do que normalmente faria. Meu cabeloestava todo embolado nas pontas e eu demorei uns dez minutos só para retirar os nósque tinham se formado. Fazia calor, o que era ruim, já que eu não poderia usar meucasaco. Vasculhei entre as pilhas de camisetas que eu tinha. Havia algumas poucasblusas de alças, que eu já deveria ter dado para a caridade por que eu raramente asusava. Acabei desistindo de procurar algo descende e coloquei uma blusa de botões,uma calça jeans escura e um velho par de all star.

No caminho para escola, logo depois de ter deixado Molly no Jardim de Infância,Emma buzinou do seu Miata.

 — Eu fui até a sua casa para te pegar, mas você já tinha vindo. — ela disse, enquantoeu escorregava para o banco do passageiro. — E para a minha surpresa, eu encontrei umDeus grego numa Hayabusa preta saindo em alta velocidade.

 —  Eu franzi o cenho, enquanto a olhava. Mostrando que não havia entendido.

 — Hello, Oliver Coleman. — ela disse o nome num suspiro — Desde quando aquelemonumento é seu vizinho?

Eu revirei os olhos para ela.

 — Ele e a tia se mudaram ontem.

 — Ele mora com a tia? Conte-me tudo que sabe sobre ele. — ela parecia uma jornalistaloca da CNN.

Eu dei de ombros, eu não sabia nada mesmo e olha que eu precisava saber já que tenhoque fazer aquela maldita redação sobre ele.

 — Eles vieram de Los Angeles, Susan...

 — Quem é Susan? — ela me encarou com um olhar assassino com um misto de pânicoe terror.

 — A tia dele. — bufei, rindo logo em seguida quando a vi suspirando aliviada. — Bom,ela vai trabalhar no hospital com Harry.

E era só isso que eu sabia. Não sei se Emma ia gosta de saber que o seu ―monumento‖ étotalmente estranho e... Amedrontador.

 — Ele é lindo. Eu o encontrei ontem no estacionamento da escola, e cara, eu quasedesmaiei quando olhei naqueles olhos. Luke me ligou... — ela se interrompeu. — Ele

está de volta, já ficou sabendo? — Fiz que sim com a cabeça, já que ela não me deixariamais falar com essa tagarelice toda. — Então, eu disse a ele que Oliver era mais bonito

Page 25: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 25/168

do que Paul Walker, Brad Pitt, Zac Efron e todos aqueles outros deuses loiros deHollywood juntos. Ele disse que eu deveria estar exagerando...

E ela continuou tagarelando o caminho todo. Eu só voltei a escutá-la quando ela parouno estacionamento.

 — Você acha que eu tenho chance com ele?Eu olhei para ela e disse o que qualquer pessoa diria a sua melhor amiga:

 — É claro. — e eu acho que não menti, afinal de contas, Emma é linda com seuscabelos avermelhados, sua pele lisa e sua estatura longa. E bem, Oliver era bastanteestranho, mas tirando isso e a parte de ele me dar nos nervos, ele deveria ser umapessoa, ham... Normal, não? — Vocês combinam.

Ela me deu um daqueles abraços de agradecimento.

 — Obrigada. Mas você vai ter que me ajudar. Eu... Fiquei um pouco tímida perto dele enão consegui dizer nada. E já que você está com ele em Inglês, bom, poderia falar umpouco de mim, saber o que ele gosta... — ela se interrompeu novamente. — Ah, mas senão quiser, tudo bem. Eu dou outro jeito.

Ela me encarou com os olhos esperançosos e eu não tive forças para negar.

 — Não eu posso fazer isso. — eu disse mais para mim do que para ela. Eu teria quefalar com ele novamente, mesmo. Não havia escapatória.

Fui para minha sala, depois de Emma ter me agradecido umas mil vezes. O Sr. Nortonnão havia chegado, e eu mantive o olhar num ponto fixo enquanto me sentava em minhacadeira. O perfume magnífico estava lá, mas eu já estava preparada para isto.

 — Oi. — ele me disse, eu não o encarei enquanto acenava com a cabeça. Eu ouvi umriso baixo, mas continuei olhando para frente. — Então, ignorar seu parceiro faz partedo trabalho?

 — Não, porque a palavra parceiro não se enquadra a você. — retruquei.

 — E o que se enquadra a mim?

Eu fingi pensar.

 — Estranho, louco... Imbecil...

 — Wow. Estou vendo que vai fazer uma ótima redação.  — ele riu — E o que mais? Sóisso? Não encontrou mais nenhum outro defeito?

 — Sim. — menti. — Mas gastaria muito tempo falando.

Eu esperei que ele retrucasse, mas em vez disso ele, me pegando de surpresa, girou

minha cadeira me colocando de frente para ele. E eu não estou dizendo que ele arrastoua cadeira até ele, e sim, que ele levantou a cadeira uns cinco centímetros do chão com

Page 26: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 26/168

Page 27: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 27/168

Ela estava me contando sobre o que Paris Hilton tinha aprontado mais recentemente eeu tentava com todas as minhas forças me prender ao assunto e esquecer o real motivodo por que estar fazendo isso. Até que inesperadamente ela se calou. Eu vi os olhos deEmma arregalar-se e brilharem numa intensidade fora do normal.

 — Posso me sentar aqui?

Eu conhecia aquela voz. E eu tinha plena certeza de não estar delirando.  — Claro. — foio que ela disse antes que eu pudesse esboçar alguma reação. A cadeira ao meu lado semoveu para trás e o perfume me inundou novamente. E eu gostaria realmente de dizerque era enjoativo, mas ao contrario, aquilo já se tornava quase viciante.

 — Eu sou Emma Newton. Nos vimos ontem no estacionamento — bom se isso era sertímida acho que alguém tem que inventar outra palavra para mim.

 — Oliver Coleman. Desculpe por não ter me apresentado antes. — e eu pude ver pela

reação dela que ele estava dando um daqueles seus sorrisos.

 — Sem... Problemas. — ela disse sem fôlego.

Céus, alguém, por favor, me tire deste lugar. Aparentemente minha melhor amiga estáflertando com um cara que acabara de me dizer que era mais do que perigoso  — e queeu tenho certeza de que não estava brincando quanto a isso. E eu estou entre os doisdando uma de cupido sem noção.

Ah, e parece que Oliver parece ser bem mais sociável e normal com outras pessoas doque comigo, o que reforça a minha tese de que ele não gosta de mim. Aliás, ninguémgosta.

 — É uma pena não estarmos juntos em nenhuma aula. Você só estuda ou faz maisalguma coisa depois da escola? — eu me mantive alerta com relação a isso. Oliverpoderia se manter uma incógnita para mim e não responder nenhuma de minhasperguntas, mas seria difícil fazer o mesmo com Emma. E eu contava com isso. A minhanota em Inglês dependia disso. E era somente por isso que eu estava interessada.

Page 28: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 28/168

 — Eu gosto de correr. — esportes? Eu nunca adivinharia isso. Apesar de ele aparentarter um corpo... Bastante forte. Aparentemente, é claro. Eu nunca prestei atenção nisso.Certo agora eu estou mentindo para mim mesma.

 — Atletismo?

 — Não. — ele disse meio que debochado, mas Emma estava aturdida e confusa demaispara se sentir ofendida — Estou falando de correr com carros e motos. Eu participo dealgumas corridas.

 — Isso deve ser demais. Engraçado eu ainda não ter ouvido falar em competições nacidade.

Era impressão minha ou ela ainda não tinha percebido que ele estava falando de rachas,o que era ilegal o suficiente para não ser anunciado na TV? Eu tinha algo mais paraescrever sobre Oliver Coleman: Ele era um fora da lei.

.

Page 29: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 29/168

QUATRO.

 — Desculpe-me por vir aqui e não lhe trazer nada  — eu estava sentada ao lado dotúmulo da minha mãe. Não pude evitar ler novamente a frase: “Grande mulher,

amiga, mãe, esposa e advogada. Ficará para sempre em nossos corações” . Empurreipara baixo o nó que se formou em minha garganta, e murmurei: — Eu não tinha feitoplanos de vir aqui hoje

Eu sorri, imaginando o que ela diria se pudesse me ver agora.

Certo, eu estou sozinha em um cemitério, sentada ao lado de um túmulo e conversandocom minha mãe morta — não que ela estivesse realmente falando comigo... E seestivesse que fique bem claro que eu não posso escutá-la.

Mas vir aqui durante todos esses anos para fazer este monólogo estranho, por mais quepareça loucura, me faz bem.

É como ir a um psicólogo. A diferença é que eu tenho certeza absoluta que minha mãenão vai contar meus segredos para ninguém, e ela não me cobra consultas  — porque seeu tivesse que pagar para vir aqui, teria que roubar um forte de banco.

Ervas daninha rodeavam os túmulos, e a grama precisava ser aparada. Eu vinha aquiquase toda semana, e sabia praticamente o nome de todas as pessoas que ali jaziam. Otúmulo da minha mãe era o que deveria receber mais visitas, sempre que vinha lhe traziaalgo, em maioria flores. Uma específica: Violetas4. Eram suas preferidas.

O cemitério ficava no meio do bosque. Era um caminho meio difícil de fazer, mas eu jáestava acostumada. Antigamente eu tinha medo de vir aqui, mas depois que minha mãemorreu, esse lugar se tornou meio que um santuário para mim.

 — Bom, eu tenho que ir trabalhar por isso não posso ficar aqui muito tempo, mas euvolto em breve — eu respirei fundo. O ar inundado por todos os tipos de flores, notúmulo ao lado um buquê de gira-sois. Havia também o cheiro de terra e folhas secas —  Eu... — respirei fundo e balancei minha cabeça — Sentimos sua falta mamãe.

Nesse momento, um corvo negro passou pelo céu, ele fez uma sombra imensa enquanto

sobrevoava. Eu o observei por um instante, as asas abertas e imensas, o bico alongado.Ele parecia estar caindo quando levantou vôo novamente e saiu de minha vista, sumindono infinito. Eu desejei poder fazer o mesmo.

Beijei a palma da minha mão e depois a coloquei sobre a lápide antes de me virar. Eucaminhei até saída do cemitério e empurrei o portão, que fez um barulho cortante queecoou pelas árvores. Um riso meio esganiçado saiu de minha boca, enquanto me ocorriaque qualquer coisa poderia ser amedrontadora ali.

Antes de ir para o trabalho, eu tinha um tempo vago de meia hora depois da escola.Normalmente eu ficava com Emma, mas desde o fim do almoço, eu resolvi manter

4 Tradução: Violet. 

Page 30: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 30/168

distância dela. Não dela exatamente, e sim de seu do seu assunto desde fim do almoço:Oliver Coleman.

Quando o último período chegou, eu estava colocando minhas roupas dentro do meuarmário no vestiário feminino. Eu odiava aquele uniforme. Eu odiava ter que me vestir

igual à Emily e suas cópias.

Elas estavam sentadas no banco dos reservas conversando animadamente sobre a festaque iriam dar hoje à noite. ―A grande festa do ano‖. Eu havia escutado uma garota naaula de história sussurrando para si mesma: ―Eu não acredito nisso. Quem não for aessa festa terá sua vida social arruinada até o fim dos tempos.”

Eu tive vontade de rir, mas me controlei. Eu acho engraçado o modo como á maioriadas pessoas se importam tanto com coisas fúteis. Afinal, é só uma festa. Mas não eraassim que Emily queria que ás pessoas pensassem. E se Emily Morgan diz uma coisanaquela escola, essa coisa tem que ser seguida ao pé da letra. E isso é o que eu, Emma e

Luke nunca aceitaremos.

Luke estudou os primeiros dois meses do ano escolar na Grand Lake High School, masele preferiu ser transferido, afirmando que preferia ir para um lugar onde todos osalunos eram nerds do que ficar num lugar onde as cobras predominavam. — Atualmenteele estuda em uma escola particular do outro lado da cidade. O pai dele pagou uma notasomente para ele ser aceito.

Eu me sentei na arquibancada observando á maioria dos alunos se aglomerarem aoredor de Emily, como uma colméia de abelhas.

Srtª Smith entrou na quadra e ao lado dela estava um garoto. Ele vestia um moletom daNike, calções lagos e um tênis azul, que mesmo eu não podendo identificar a marca,devido á distância, poderia dizer que é o dobro do meu salário. Os ombros dele eramlagos e dava para ver seu muscular definido mesmo sob o moletom. Os cabelosarrepiados para cima num tom castanho escuro quase negro. Não parecia que ele haviapassado gel ou levado um choque elétrico, e sim que eles se arrepiaram naturalmente. Eo resultado final era arrebatador. Ao ponto de me deixar assombrada com tamanhabeleza.

Eu escutei um assovio vindo do grupo de Emily, risinhos e uma série de cochichos em

seguida.O garoto nem mesmo moveu a cabeça em direção a elas, ele continuou caminhando aolado da Srtª Smith, uma mulher franzina de cabelos curtos presos em um rabo de cavaloe que apesar de ser pequena tinha uma voz de comando que fazia qualquer um selevantar e dar dez voltas na quadra.

Ela pegou o seu apito e o levou em direção à boca. O som fino cortou o ar em umafração de segundos, eu tinha certeza que teríamos problemas futuros com a nossaaudição se alguém não der um fim naquele apito.

 — Quero todos de pé aqui em frente. — ela ordenou. Eu acho que a Srtª Smith se dariabem no exército.

Page 31: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 31/168

 Eu me levantei e caminhei lentamente até a beira da quadra, ficando mais afastadapossível do grupo de Emily, e me pus a observar o garoto novo. Fiquei inicialmenteassustada quando o peguei também me olhando. E antes que eu pudesse olhar para outradireção, aconteceu.

Num momento eu estava observando suas feições, — o nariz reto e anguloso, a bocacarnuda e avermelhada, e os olhos os mais verdes que já vi, meio acinzentados  — e nooutro tudo ganhou um contaste meio enegrecido em preto e branco.

Eu estava entre árvores tão altas que parecia que suas folhas se perdiam no céu. Euvestia o uniforme da escola e meus tênis estavam sujos com a terra úmida e folhas secasdo chão irregular.

Observei ao redor, era impossível saber se era dia ou noite, pois ás árvores encobriamtodo o céu, deixando-me num breu extenso. Eu ouvia gritos em pouca distância, e antes

que eu pudesse decidir se era melhor eu ir em direção á eles ou continuar ali, eu jáestava a caminho deles.

Eu não estava sentindo medo, aquilo parecia mais um sonho que eu sabia que acordarialogo. Era surreal demais para ser amedrontador. Eu só estava confusa.

Depois de andar alguns metros por entre as árvores, deparei-me com uma enormeclareira. Assustei-me inicialmente com a quantidade de pessoas que ali estavam, não erapossível estimar um número mais era superior a cinqüenta, eu deduzi. Elas carregavamtochas, e algumas usavam crucifixos em seus pescoços. Elas diziam coisas em umalíngua indistinta, mas o som saia com tanta fúria que chegava a congelava meus ossos.

Usavam roupas estranhas e de época. As mulheres vestiam longos vestidos e os homenscasacos grossos e botas pesadas. Alguns mais bem vestidos que os outros. Haviatambém uma fileira de mantos vermelhos formando um circulo. Aliás, todos estavamem formato de um circulo — um pouco desorganizado comparando com os que vestiamos mantos.

Demorei um pouco para entender que eles rodeavam uma fogueira. Eu já havia vistoalguns rituais em filmes e isso foi à primeira coisa que me ocorreu que pudesse seraquilo. Eu tentei chegar mais perto do centro, o lugar onde estava a fogueira, mas neste

momento eu despertei. — Você está bem, Srtª Mathers? — Srtª Smith me perguntou. Eu estava sentada em umbanco apoiando-me em seu braço. Eu permaneci em transe por alguns instantes, respireifundo algumas vezes para me acalmar.

Tudo voltou ao normal. Minha visão clareou e tudo voltou a ter cores novamente,alguns alunos me lançavam olhares curiosos, mas a maioria se mantinha entretida nogaroto, este eu percebia que ainda me encarava a poucos metros de mim e Srtª Smith.

 — Eu estou bem. — eu disse num fio de voz.

Page 32: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 32/168

 — Não parece. Está pálida. Tem certeza que não quer ir para enfermaria? — elacontinuou, preocupada.

Ir para a enfermaria não seria uma boa idéia, além de ter que ficar sendo observada poraquela mulher estranha que parece que a qualquer momento vai enfiar uma agulha em

seu braço, com certeza, chamariam alguém para vir me buscar, já que o meu aniversáriode dezesseis é só mês que vem — e eu não queria incomodar a mãe de Emma. E eurealmente me sentia bem. Fisicamente.

 — Tenho. — eu tentei parecer normal. — Eu estou bem.

Ela assentiu e me ajudou a levantar, voltamos para a beirada da quadra e antes de sopraro apito, ela me lançou mais um olhar.

 — Tudo bem, nós vamos jogar basquete hoje. Quero que formem um time misto. — euouvi alguns suspiros.

Basquete é o esporte número um da escola. Não que tivéssemos um ótimo time, masera isso que os populares faziam, e eles tinham um lema: ―Se você não gostar de

 basquete, você é maluco‖. Traduzindo: ―Se você não é igual á eles, você é umfracassado‖. E era assim que funcionava basicamente tudo naquela escola.

 — Mas antes quero apresentar á vocês seu novo colega: Gregory Lybieri. É o seuprimeiro dia aqui, e eu quero que mostrem a ele do que nosso time é capaz.  — Éimportante ressaltar que a Srtª Smith odeia o Treinador do time, o Sr Donner. Ou seja,consecutivamente ela odeia o time. E quando ela diz, ―do que nosso time é capaz‖, elase referiu ao lado ruim da coisa.

Emily jogou o seu cabelo liso e loiro para trás, ela perecia que tinha saído de umcomercial da Pantene, e acenou para o aluno novo acompanhado de seu melhor sorriso:―Oi, já estou afim de você‖, — eu o apelidei carinhosamente de sorriso tóxico. Ele nemao menos olhou para ela, aliás, ele continuava olhando para mim e isso começava a medeixar desconfortável.

Eu ainda tinha flashes daquela visão estranha e não conseguia esquecer que a tinha vistono memento em que olhei para ele. E eu definitivamente não queria que aquiloacontecesse de novo, tudo era confuso e estranho demais.

 — Vamos lá. — a Srtª Smith não estava nem um pouco animada em comparação aoresto dos alunos. — Hamm, Gregory quer escolher o time? Sei que não sabe o nome deninguém e nem de suas habilidades, mas... — eu fiquei curiosa em relação á isso,mesmo eu não estando olhando-os diretamente eu podia sentir que ela usava um tom derespeito ao falar com ele.

 — Tudo bem. — e a voz dele parecia musica aos meus ouvidos de tão suave ecrescente e ao mesmo tempo decidida e comandante.

 — Certo. Quem quer escolher o outro time? — Todos se entreolharam, estava claro que

todos queriam ser do time de Gregory Lybieri, por duas razões: Um, estava obvio queele já era popular, porque se Emily Morgan deu seu sorriso toxico para ele é por que ele

Page 33: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 33/168

merece ser visto. Dois: o jeito como ele se portava lembrava aqueles atletas da NBA,talvez um pouco mais rígido e clássico. Um meio termo entre um aristocrata e um atleta,o definiria bem.

 — Eu escolho. — neste momento surgi pela entrada do ginásio nada mais nada menos

que Ryan Brandon, o capitão do time. Atrasado como sempre.

 — Acho que não preciso lembrá-lo que mais um atraso e o senhor não ficará na minhaaula nem mais um dia, não é Sr. Brandon?

 — Certo, Smith. — Ele assentiu. Ryan era o típico capitão de time de basquete. Loiro,forte, olhos castanhos claros, um sorrisinho sacana e atrevido no rosto, metido a ―eu soudemais‖. Ah, e é claro, metade das garotas correndo atrás dele.

 — Tirem par ou impar para começar... — ela começou, mas claro, Ryan a interrompe:

 — Eu, como um bom capitão, deixo nosso novo colega começar. — ele deu um de seussorrisinhos acompanhados de seus fiéis escudeiros, que Emma também apelidou deratinhos, Rick e Scott Ashton que são irmãos gêmeos. Ambos desengonçados, sacanas eidiotas.

Eu não vi o que Gregory fez, mas Ryan parou de sorrir e fechou a cara, enquanto ásgarotas riam, inclusive Emily e suas cópias. —  Você.

Eu estava absorta, me preparando para esperar até que todos sejam escolhidos e o timeazarado me tivesse nele, quando percebi uma carga de olhares sobre mim. Eu olhei parao garoto novo sem entender, ele me lançou um breve sorriso e eu tive uma sensaçãoestranha no estômago.

 — Sua vez. — ele dissera a Ryan.

 — Emily, minha gata. — Emily revirou os olhos, claramente despontada enquantoresmungava:

 — É bom você escolher uma droga de time bom.

Quando todos já haviam sido escolhidos, eu ainda sentia a sensação estranha no

estômago. O jogo começou. Eu tinha que marcar Stacy Tanner, a cópia número um deEmily. Minhas habilidades em esportes nunca foram das melhores, eu me saía bemquando jogava com Luke e Emma, mas quando estava no meio de muita gente eusempre acabava ficando nervosa e fazendo algo errado.

Eu me mantinha o mais longe possível da bola, por sorte Stacy não parecia muitointeressada em jogar, então eu não precisava ficar marcando-a de verdade.Eu mais assistia do que participava do jogo. Eu observei Gregory roubar a bola de Ricke jogá-la para Mark Lee que a devolveu rapidamente para ele, e então Gregory fez umaincrível cesta de três pontos. O time inteiro comemorou inclusive Emily que pertenciaao outro.

Page 34: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 34/168

 — Bela cesta. — ela dissera a Gregory, ele lhe devolveu um sorriso educado e depoisdesviou seu olhar do dela.

Havia uma pontinha de mim que gostou disso. Garotas como Emily acham que podemter qualquer um, e que ninguém resiste á elas. Talvez isso seja verdade, mas eu gostei

do modo como Gregory não parecia se importar com suas investidas.

O jogo estava quase acabando e o placar estava empatado. Gregory fez a maioria denossos pontos, e Mark — que nem se quer era do time principal — conseguiu fazer boasassistências.

E então Stacy resolveu jogar, justo quando eu peguei pela primeira vez no jogo inteiro abola nas mãos, num lançamento de Gregory. O cabelo dela chicoteou em meu rostoenquanto ela me empurrava com o seu braço direito tomando a bola de minhas mãos.Cai no chão, por sorte, não foi de mau jeito, como geralmente acontecia.Srtª Smith apitou e gritou: falta. Eu me levantei ainda atordoada enquanto a bola era

 jogada em minha direção, eu a peguei por reflexo.

 — Isso é injusto, ela caiu sozinha. — reclamou Stacy.

 — É, e você tentou segurá-la com o seu braço, Tanner. — disse Srtª Smith, irônica,Stacy fez uma careta. — Conhece ás regras. Quem sofre a falta cobra, Mathers.

Eu encarei o rosto de todos um pouco apavorada. Emily estava com ás mãos na cinturaao lado de Stacy.

 — Ela vai errar. — ela disse propositalmente para eu escutar.

Mark estava nervoso. Os outros do time não estavam muito confiantes. E Gregory, bem,ele sorriu para mim. E não foi um sorriso ―tudo bem se você errar‖, foi um sorriso―Ganhamos o jogo‖. E eu comecei a me questionar o que aquele garoto vira em mimpara ter tanta confiança. Primeiro ele me escolhe e agora isso...

Eu não sei o porquê, mas me senti reconfortada com isso e também confiante.

 — Dois lances livres.

Eu joguei a bola, e ela bateu no aro e voltou para mim. Ótimo, quem eu estava pensando que era? Michael Jordan? Legal, só mais um e você vai voltar a ser a garotaque ninguém vê, a estranha que não fala com ninguém. Ah, e terá que também ser ―afracassada que fez o time perder‖.

Ouvi risos atrás de mim, enquanto pegava a bola.

 — Legal, ganhamos. — Emily destilou seu veneno mais uma vez.

 — Quem canta vitória antes do tempo acaba chorando quando o jogo acaba. — euestava de costas para eles, mas ninguém tinha aquela voz que eu acabara de ouvir; que

em tão pouco tempo já ficou gravada em minha memória.

Page 35: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 35/168

 — Chorando de emoção. — zombou Ryan.

Gregory não se deixou afetar.

 — Não, chorando como perdedores que são.

 — Perdedores? Está falando com quem? Estamos quase na final do campeonato.

 —  Foi o que disseram á dez meses atrás. O ―quase‖ é sempre tudo que conseguem,nunca vão além disso.

 — Quem você pensa que é? — Ryan perguntou, pelo tom de voz ele estava muito, masmuito zangado. Ninguém nunca o tinha confrontado daquela maneira.

 — Apenas um cara. Um cara que acha que em vez de jogar basquete você deveria sepreocupar em aprender boas maneiras.

 — Enfia as boas maneiras no...

 — Já chega Sr. Brandon. Mais uma dessas e... Você já sabe.  — ameaçou Srtª Smith. Elaapitou e eu me preparei para lançar a bola.

E então eu senti o descontrole do meu corpo. Era como se alguém o estivessecomandando, e esse alguém não era eu. Não era como se eu estivesse fora dele, eu aindaestava ali, mas não fui eu que fiz aqueles movimentos. E não fui eu que fiz aquela cesta.Eu tinha certeza... Foi Gregory.

 — Parabéns. — uma garota passou por mim e disse. Eu estava me trocando novestiário, ainda muito confusa, tentando não me lembrar daquela visão estranha e muitomenos do que acabou de acontecer.

Depois da escola eu vim correndo para o cemitério. Eu não sei o que exatamente meguiou até lá, mas eu precisava ficar longe de tudo aquilo.

Eu estava há poucos metros do Anderson‘s, quando algo me chamou atenção. O quediabos estavam fazendo ali?

Havia pessoas entrando e saindo por toda parte. Um homem com um capacete na cabeçae com um papel em mãos me chamou atenção. Ele parecia comandar o que cada pessoaali presente fazia. Eu olhei para todos os lados para constatar que ali era mesmo o lugaronde eu trabalhava. Desde quando resolveram reformar?

 — Cuidado aí pessoal. — o homem de capacete dizia, enquanto eu me aproximava. —  Não, não. Isso é pra cá, Roy. Cuidado com isso é muito frágil...

 — Hamm, com licença. — eu chamei.

 — Não está funcionando hoje, querida. — ele dissera rapidamente antes de entrar no

restaurante.

Page 36: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 36/168

Eu estava com ás mãos na cintura me perguntando onde é que o Sr. Anderson arranjaradinheiro para fazer uma reforma. Uma vez eu ouvira Chuck resmungar que ele guardavauma fortuna embaixo do colchão. Talvez fosse isso.

 — Hey, Anna. — Lizzie me chamou.

Ela e Chuck estavam saindo de dentro do restaurante. Chuck estava com a expressãocarrancuda como sempre, o cabelo encaracolado pendia para todos os lados como se eleestivesse mexido nele sem parar.

 — Está atrasada. — Foi o que ele dissera quando passou direto por mim.

Lizzie bufou.

 — Você acredita nisso? O Sr. Anderson vendeu o restaurante!

 — O que?

 — Isso mesmo. Ele vendeu. Só fiquei sabendo hoje quando cheguei para trabalhar eencontrei isso — ela apontou para os operários e toda a parafernália que carregavam deum lado para o outro.

 — Quem comprou? — eu estava chocada. O Sr. Anderson construiu aquele restaurantetijolo por tijolo, o restaurante era a vida dele.

 — Chuck disse que foi um cara novo na cidade. Ele não disse muita coisa, masresmungou algo como ―agora sou escravo de um pirralho‖. Eu não entendi direito.Você sabe como ele é sempre emburrado e chato.  — Ela arqueou uma sobrancelha edepois sorriu. — O bom é que vamos ter uma folguinha por um tempo.

 — Folguinha? Vamos ser demitidas! — falei, eu já começava a ficar preocupada comisso. Onde é que eu iria arranjar um emprego sem ter 16? Teria que esperar até o meuaniversário para começar a procurar. O Sr. Anderson tinha sido até bonzinho em ter meaceitado aqui — é claro que ele fez isso porque não havia ninguém mais querendotrabalhar ali.

 — Não! O mais legal é que o novo dono resolveu continuar com os antigos

empregados. Mas acho que ele vai contratar mais gente. — Lizzie jogou o seu cabelocastanho mel para trás estourando a bola de chiclete que mastigava. Ela ás vezes secomportava com uma adolescente. Talvez fosse por isso que ela ainda não conseguiuum marido. — Bom eu já vou indo. Até mais.

Depois de alguns minutos, eu ainda estava ali parada olhando a fachada que estavasendo feita.

Eu comecei vagar pelas ruas sem nem perceber. Eu estava distraída me lembrandodaquela visão estranha que tive logo após ver o novo garoto. Aliás, isso estavacomeçando a me dar nos nervos. Primeiro Oliver me atordoando com suas coisas

estranhas, e agora isso. Aquela sensação estranha de estar fora do controle do meu corpo

Page 37: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 37/168

e de sentir, de certa forma, Gregory controlando-o ainda me assombrava. Eu deveriaestar ficando louca. Chega de assistir filmes de terror de madrugada!

 — Luke! — eu o chamei. Ele estava de costas para mim. Mas ninguém tinha um cabelotão repicado e vestia roupas tão coloridas como ele.

Ele se virou para mim.

 — E aí, estranha!

Era divertido andar com Luke. Além de Emma, ele sempre fora o meu melhor amigo.

Quando éramos crianças brincávamos o dia inteiro na caixa de areia do parque. E elesempre preferia ficar conosco do que com os outros garotos.

O ruim era quando ele tomava nossas bonecas.

 — Não deveria estar trabalhando? Não me diga que Anna Mathers, a rainha do sou-responsável, decidiu viver um pouco e saiu daquele inferno! — estávamosesparramados em um banco na sorveteria. O meu Sundae de morango começava aderreter.

 — Sr. Anderson vendeu o restaurante. O novo dono está reformando. Não sei quandovolto para lá. — resumi ao máximo que podia. Meus pensamentos em um lugar bemdistante dali. Mais precisamente no garoto que eu estava olhando através das janelas devidro da sorveteria.

 — Quem é o gatinho? — Luke já estava grudando seu nariz no vidro, parecia que elenem havia ouvido minha resposta.

Eu respirei fundo antes de responder. Uma corrente elétrica passava por todo meu corpoenquanto eu o observava. Do outro lado da rua em frente a uma banca de jornal estavaGregory Lybieri. Eu o reconheci desde o primeiro segundo em que meus olhos foramguiados até ele.

 — O garoto novo da escola.

 — Aquele é o tal do Oliver? — se antes ele estava encostado, agora ele tentava perfuraro vidro com o nariz.

 — Não. Este é Gregory Lybieri, ele chegou hoje. Está em Ed. Física comigo.  — a visãovoltando a povoar minha mente, eu tentei afastá-la balançando a cabeça.

 — Hum. — ele murmurou me olhando de soslaio. Eu não gostei disso. — O que foi?

 — Você está louquinha por ele.

 — O que? — meus olhos saíram do vidro, e eu segurei meu queixo para ele nãodespencar na mesa.

Page 38: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 38/168

  —  Garota eu conheço este tom. O modo como você disse ―Ele está em Ed. Físicacomigo‖... Não sei não.

 — Você que está ficando louco! Eu o conheci hoje, tá legal. E o que há de errado com o

meu tom?

 — Tom de ETG!

 — ETG?

Ele bateu em sua testa.

 — Hello, Eu To Gamada!

Eu bufei.

 — Isso é ridículo. Eu o vi hoje. Mal o conheço. E se quer saber ele é bem esquisito.  —  gritei para ele. Não bem Gregory, e sim o que ele faz comigo, - eu quis dizer  — E eu deforma alguma me sinto atraída por ele!

 — Ótimo, diga isso á ele. Ele acabou de entrar.

E era verdade. Ele estava se sentando á uma mesa de distância da nossa. Vestia umacamiseta preta e bermudas jeans, mas ainda assim me lembrava um pouco àquelesaristocratas ingleses.

 — Você está mais pálida do que Edward Cullen.

 — Cala a boca!

 — Já sei, porque não fazemos uma festinha de garotas hoje à noite?  — Sugeriu, ele —  Eu ligo para Emma, vamos comemorar... — parecia procurar um motivo — Aliberdade. — disse por fim. — Veja só, você está livre do seu emprego, e eu me livreidaquele lixo que meu avô chama de loja. Então vamos comemorar!

Eu dei de ombros.

 — Parece uma boa idéia.

O que Luke chama de festinha e chamo de reunião. Porque é estranho chamar de festaum encontro de três pessoas.

 — Que tal lá em casa? Harry vai estar de plantão, e eu acho que Molly vai dormir nacasa de uma amiga. — eu disse, aliviada por estar em outro assunto.

 — Certo, mas posso chamar uma pessoa?

 — Claro — eu dei de ombros novamente.

Page 39: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 39/168

 — Oh Gregory! — ele chamou, enquanto acenava freneticamente com a mão.

Eu acho que desmaiei. É, tivesse eu essa sorte.

Page 40: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 40/168

CINCO.

 — Você disse que eu podia! — ele murmurou com um sorrisinho cínico.

Fechei minhas mãos em punhos. Eu nunca senti tanta vontade de socar a cara de Lukecomo naquele momento.

Ele começou a se levantar.

 — Se você fizer isso... Eu juro que vai ter troco!  — , por um momento uma nuvem dedúvida passou por seus olhos, acho que ele não esperava o tom de voz que usei: duro, epor incrível que pareça, calmo. Mas, depois o sorrisinho cínico voltou ao seu rosto, elese levantou e me deu as costas .

Eu não o olhei enquanto ele andava até a mesa de Gregory e fiquei inicialmente gratapela distância das mesas que impossibilitava que eu os escutasse. E se eu aparentavaestar calma por fora, por dentro eu estava em ebulição.

E conforme os segundos se passavam, mais a curiosidade começava a aflorar dentro demim. O que ele diria a Luke? Ele era um garoto recém chegado, mas ele com certezadeve conhecer pessoas na cidade. Bem, se ele não ás conhecia, elas o conheciam. Achoque depois de hoje Gregory Lybieri deve estar no topo da lista dos mais populares. E elesó havia ido á escola somente um dia!

Ás duas garotas que estavam sentadas do outro lado da sorveteria não deixavam dúvidas

de que sabiam quem ele era. E a garota de costas para mim, sentada ao lado delas,também sabia. É, claro. Eu reconheceria aquele cabelo loiro e brilhante com grandescachos — feitos com babyliss — em qualquer lugar. Emily Morgan estava jogando todoo seu charme tóxico, atraindo olhares da ala masculina presente. Parte de mim ficou um

 pouquinho feliz por Luke estar entretendo Gregory.

E, então, meu foco se voltou para eles. Protelei antes de dar uma espiadela na conversa,mas Gregory já estava se levantando para ir embora. Antes que eu pudesse respiraraliviada, Luke se virou exibindo um grandioso sorriso de vitória. Essa não!

 — Ele disse que vai! — ele praticamente pulava exaltado. — Não é demais?

 — Não. — eu murmurei mal humorada, pegando minhas coisas do chão. — Não é nadademais!

Eu já estava caminhando para a saída, mas antes que eu pudesse sair dali meus olhosforam parar na mesa de Emily. E a cena que vi durante apenas um segundo não parou depassar em minha mente, como um CD que travou justo na música que você maisdetesta.

Estava tão absorta no que havia acontecido na escola, que acabei me esquecendo queEmily iria dar uma festa hoje à noite. E depois de vê-la quase se jogando nos braços de

Gregory, não me restaram dúvidas de que ele seria seu convidado de honra.

Page 41: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 41/168

O que deveria me deixar aliviada.

Mas não deixou.

 — É claro que é. Você deveria me agradecer, e não ficar emburrada. — disse Luke. —  

Ah, vai, Anna! Eu te fiz um grande favor, você nunca teria coragem para convidá-lo.

 — Eu não queria convidá-lo!

 — É claro que queria. Logo, logo você estaria sonhando com ele em sua casa...  — eledeixou a frase parando no ar de forma maliciosa. — Eu só adiantei isso.

 — Você é maluco. — eu disse, bufando. — E, além disso, não importa. Ele não vai.Emily vai convidá-lo para a festa dele hoje á noite.

 — Ah, a cobra rainha? — ele franziu um pouco os lábios. — Não, Grigor não iria

romper conosco para ir à festa dela. — ele disse confiante.

 — Grigor? — eu estranhei. — E de onde veio toda esta confiança? Você mal o conhece.

 — É esse o apelido dele. Ele veio de Nova Iorque. E é emancipado!

Ser emancipada sempre foi o meu maior desejo desde que minha mãe morreu. MasHarry decidiu por fazer da minha vida um inferno e não me conceder isso.

 — Bom, e você sabe que eu tenho um faro para cobras. E Gregory não é um deles.Confie em mim, ele estará lá ás oito. Capriche no visual, querida, hoje é a sua chance!

 — Foi o que ele me disse antes de me deixar em casa.

E eu me peguei realmente querendo que ele estivesse lá ás oito.

Molly estava com um pirulito na boca sentada no meu velho balanço ao lado de casa.Nancy estava sentada numa cadeira, os cabelos grisalhos estavam espalhados por seurosto. Ela estava dormindo. Eu me aproximei das duas sorrateiramente. Isso vai serdivertido!

 — Ei, menininha, passa aqui este seu pirulito! — eu gritei, Nancy acordou sobressaltada

enquanto eu e Molly riamos. — Anna? O que faz aqui tão cedo? — Ela estava arrumando os óculos desajeitados.

 — Não tive trabalho hoje. Só volto quando o novo dono assumir.

 — O Sr. Anderson vendeu o restaurante? — o choque atravessando seu rosto.

Eu assenti, me sentando na grama. Molly continuou a se balançar e Nancy voltou parasua soneca. E eu me aconcheguei melhor ali, e acabei deitada olhando o sol que estavaescondido por entre ás nuvens.

Page 42: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 42/168

O cheiro de terra recém molhada foi à primeira coisa que senti quando abri meus olhos.Minha boca estava seca e a parte direita do meu rosto doía.

Eu me levantei rápido demais e quase voltei para o chão novamente. O céu estava todoescuro. Que horas eram?

 — Molly! — entrei em casa e corri para o segundo andar.  — Molly! — chameinovamente.

 — Aqui! — Ela saiu de seu quarto com uma mochila cor de rosa nas costas.  — Puxa,você demorou a acordar. Eu tentei te chamar, mas você nem se mexeu. Nancy tambémtentou antes de entrarmos.

 — Que horas são? — eu perguntei passando á mão por meu rosto, ainda sonolenta.

 — Não sei. Mas a mãe de Jéssica vai vir me buscar sete e meia — um som estridente de

uma buzina veio do lado de fora. O rosto de Molly se iluminou com um enorme sorriso.

 — Deve ser ela. Te vejo amanhã. — ela disse antes de me soprar um beijo e descercorrendo ás escadas.

O meu plano era ir correndo até a minha cama, me enterrar lá e nunca mais levantar.Mas meu celular começou a tocar no andar de baixo, eu o ignorei. Mas na terceira vezque ele começou a tocar novamente, eu me dei por vencida.

O encontrei em cima as mesinha de centro.

 — Alô? 

 —  Que voz é essa? Parece que estava em coma. — Emma disse do outro lado da linha.

 —  Espero que já tenha ao menos tomado um banho. Estamos a caminho da sua casa. Harry ainda guarda aquelas garrafas de vinho na dispensa? Esqueça, eu estoutrazendo comigo duas. Vamos nos divertir hoje, hein! Luke me contou do Grigor e você.

 A propósito tomei a liberdade de chamar Oliver. Só como amigos, é claro. Ele é umtantinho... Ah nem sei mais. Só sei que agora somos só amigos, e que não estou maistão interessada. Voltei para o meu pôster do Brad Pitt. Ah, tenho que desligar... Tem

uma louca buzinando atrás de mim!Eu joguei o telefone de volta para a mesa. Bocejando e me encolhendo no sofá. Minhamente dormente demorou exatamente cinco segundos para voltar ao normal, e maiscinco para eu começar a entrar em pânico.

Droga!

Eu acabei dormindo e me esquecendo da porcaria da festa!

Adentrei meu quarto e corri para me olhar no espelho. Eu estava horrível! Meu cabelo

estava uma confusão, grudado e encolhido em um imenso nó em cima da minha cabeçae havia algumas folhas entre os fios; minha bochecha estava vermelha e marcada pela

Page 43: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 43/168

grama; minha roupa estava suja de terra na parte de trás; e meus olhos estavam inchadose com grandes olheiras. Parecia que eu tinha sido atropelada!

Entrei no chuveiro quente com minha cabeça fervilhando. Eu tentava raciocinar deforma coerente, tentando juntar todas as informações:

Molly disse que a mãe de Jéssica viria buscá-la sete e meia. Luke disse que Gregoryestaria aqui ás oito — se ele viesse mesmo. Emma estava a caminho. Ela convidouOliver. Ele, por sua vez, está do outro lado da rua e a qualquer momento também podiachegar. Conclusão final: Eu tinha menos de meia hora para domar o meu cabelo, tentardeixar meu rosto menos inchado e vermelho, arranjar uma roupa descende, e torcer paraque nem Oliver nem Gregory estejam aqui antes que Emma ou Luke cheguem.

Vai dar tudo certo, Anna!, Eu murmurava, enquanto secava o meu cabelo depois delavá-lo duas vezes com xampu e desembaraçá-lo com o pente. Quando acabei, passei pócompacto nas olheiras. A parte mais difícil foi escolher o que vestir. Se fosse uma noite

normal eu colocaria um de meus moletons ou pijamas e passaríamos o tempo assistindoséries na TV. Mas hoje não seria assim. E eu ainda me lembrava da parte em que Emmadisse que estava trazendo bebidas. Quatro palavras: Isso não vai prestar!

Optei por um vestido de inverno que vinha até os joelhos e sapatilhas de balé. Deixeimeus cabelos soltos ao redor dos ombros.

Eu ouvi a porta da frente sendo aberta, e fiquei aliviada por Emma e Luke teremchegado. Desci ás escadas de dois em dois degraus.  — Eu juro que isso vai ter troco! —  disse á eles, mas soou de um jeito meio brincalhão que eu não queria usar.

 — Olha só! — Luke veio até mim e pegou minha mão, me fazendo dar uma pirueta.  —  Vejo mudanças, parece que alguém resolveu aposentar aquela maldita jaqueta e osmoletons velhos! — ele riu.

 — Rá-rá. Muito engraçado — disse sarcástica.

 —  Esse Grigor deve ser muito bonitinho para ter despertado a senhorita ―garotos nãosão importantes‖ para o mundo. — Emma disse, jogando sua bolsa e uma sacola grandeno sofá.

 — Ele é... Incrível! — disse Luke com um suspiro. — Pena que ele não joga no mesmo

time que eu. Sorte sua, Anna! — Chega! — eu gritei para eles. — Eu não sei de onde vocês dois tiraram isso... Mas eunão estou afim dele. Eu praticamente nem o conheço e ele provavelmente nem sabe omeu nome. Luke que o convidou para vir aqui. E se querem minha opinião, esse tal deGregory...

 —  Grigor. — Interrompeu-me Luke.

Eu bufei.

 —  Grigor. Tanto faz. Ele não vai vir. Emily Morgan vai dar a sua famosa festinha hojeá noite. E eles estavam bem... — Eu calculei minhas palavras, me lembrando da cena da

Page 44: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 44/168

lanchonete. —  Íntimos hoje. Vocês acham que ele vai deixar de ir a ―festinha do ano‖para estar aqui?

Terminei meu discurso e me joguei no sofá. De certa forma estava aliviada por colocaraquilo tudo para fora. Mas quando a campainha tocou, eu voltei ao meu estado de antes.

 — Será que é o Oliver? — Emma perguntou ao mesmo tempo em que eu me lembravade que ainda restava ele. Esse definitivamente não é o meu dia!

Arrastei-me até a porta e abri. Mas não era Oliver que estava lá. E sim Gregory. Querdizer, Grigor. E, céus, como uma pessoa pode ser extraordinariamente elegante comoum membro da nobreza de jeans, camiseta branca, e uma jaqueta de couro preta porcima?

 — Oi. — disse-me ele, os olhos verdes penetrantes. — Você é a Anna, não é?Eu ainda estava o encarando sem dizer absolutamente nada quando Luke e Emma

apareceram atrás de mim.

 — E aí Grigor? Vamos entre.

Eu saí do caminho, estupefata. Porque, de certa forma, eu esperava que aquiloacontecesse de novo. Que tudo ganhasse aquele aspecto enegrecido em preto e branco; eeu tivesse aquela mesma visão, assim que o visse.

 — Então, você é o famoso Grigor? Eu sou Emma Newton — apresentou-se ela,dispensando o tradicional aperto de mão e dando um beijo na face dele.

E eu continuava ali imóvel.

Por cima do ombro, Luke me lançou um olhar de desaprovação e disse, somentemexendo a boca, sem emitir som ―o que você está fazendo aí?‖

Eu dei de ombros, meus ossos estavam rígidos.

 — Humm, — Emma também me olhou, as sobrancelhas levemente franzidas e a mesmaexpressão de Luke. — Conhece minha amiga, Anna Mathers?

 — Sim. — Grigor se virou para mim, e novamente eu esperei que aquilo acontecesse. — Estamos em Ed. Física juntos, certo?

Diga alguma coisa!

Mas eu só consegui mover minha cabeça de cima pra baixo e engolir em seco.Quando a campainha tocou novamente, eu me virei para atendê-la. Mesmo sabendo queaquilo só iria piorar e ficar mais estranho no memento em que Oliver passasse poraquela porta. Mas talvez eu precisasse daquilo, talvez eu pudesse me esquecer da visãoquando eu olhar nos seus esquisitos olhos de safira.

 — Hey. — disse-me ele.

Page 45: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 45/168

Observando melhor, bem que Oliver poderia ser de um grupo de rock. Ele tinha um jeito meio ―dane-se o mundo‖, e combinando isso com seu comportamento estranho e asua aparência física, ele daria um belo vocalista. Talvez se a pele dele fosse um poucomais clara ou mais bronzeada, poderia também ser um daqueles atores de séries de TV.

Oliver era um meio termo perfeito entre ―os pálidos cor de papel‖ e os ―bronzeados bombados‖. O cabelo liso num tom de loiro escuro caindo um pouco em sua testa, ássobrancelhas retas sobre os olhos, e estes... Que eu mal conseguia definir, azuis escurose vividos, os lábios finos e avermelhados, o corpo másculo e esguio. Ele era sem duvidabonito. Bonito demais para Emily não tê-lo notado. O que ele também fazia aqui?

Ele pigarreou, me triando de meus devaneios.

 — Certo, eu posso conversar com você aqui, já que não vai me convidar para entrar.Está bonita, Mathers! — ele me pegou desprevenida. Olhando-me de cima a baixo, umsorriso malicioso surgindo em seus lábios. — Eu me pergunto, se tudo isso é pra mim...

 — Mais convencido e prepotente impossível. — retruquei.

Ele riu. Eu lhe dei as costas e sai de seu caminho, sem lhe dizer para entrar. Uma coisasobre Oliver: O que ele tem de bonito, tem de irritante.

Eu voltei para a sala de estar. Grigor estava sentado no sofá de três lugares, Emma aoseu lado e Luke estava mexendo no micro system da estante. Eu sentia Oliver andandoatrás de mim.

 — Olha só quem apareceu. — Emma disse sorridente. — Estava pensando em ir tebuscar na sua casa.

Mas ele não a fitava, estava olhando Grigor. Fuzilando, melhor dizendo. E Grigor porsua vez lhe devolvia um olhar sarcástico e debochado.

 — Vocês se conhecem? — perguntei. Emma não parecia notar a tensão que começava anascer na sala.

 — Há muito tempo. — respondeu-me Grigor. — Quem é vivo sempre aparece. — elesorria, mas agora seu olhar não era nada amigável.

 — Mas, os fantasmas também voltam para assombrar. — murmurou Oliver. Baixo demais, eu quase não pude escutar, mas Grigor pareceu ouvir claramente, pois o olharsarcástico voltou ao seu rosto.

 — Então você é o Oliver? Aquele que coloca o Zac Efron no bolso?  — Só agora eupercebi que Luke tinha uma taça de vinho em uma das mãos. Ele bebera menos dametade e já estava alto.

 — Hamm — Emma pigarreou, o rosto corando. — Não ligue pra ele, Oliver. Elecomeça a falar coisas sem sentido quando bebe!

Page 46: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 46/168

Sem sentido... Sei. Lembro-me bem dela dizer isso aos quatro ventos, e estava bemsóbria.

E então uma música alta começou a tocar.

Há situações em que é bom ter poucos vizinhos; quando o seu amigo gay fica bêbado eresolve fazer de sua casa uma boate, é uma delas.

 — Vamos dançar! — ele disse pegando a mão de Emma. A mesinha de centro já haviasido tirada e agora havia um grande espaço ali.

Levou pouco tempo para que Emma começasse a também ficar alta. E logo os doisestavam no mesmo nível de loucura. Eu meio que sentia vontade de me juntar á eles. Devez enquanto fazíamos isso também; bebíamos e depois nos acabávamos de dançar.Mas eu estava muito envergonhada e tensa para isso.E seja o que lá Oliver estivesseescrevendo sobre mim naquela redação, eu não o daria o gosto de escrever sobre como é

à experiência de me ver bêbada. Sendo assim eu fiquei surpresa quando ele começou abeber e se juntar a Emma e Luke.

Eu me sentei no mesmo sofá que Grigor estava. Ele estava rindo de alguma piadainterna, provavelmente.

 — O que foi? — perguntei tentando ser casual.

 — Seus amigos... Eles me lembram umas pessoas que conheço. — respondeu-me ele.

 — Sério? Eu mal consigo imaginar pessoas tão elétricas e malucas como Emma e Luke.

 — Acredite, há muita gente assim por aí. — disse pensativo. — A propósito, bela cesta.

Eu engoli em seco, me lembrando da sensação de perder o controle do meu corpo e deque ele estava o manipulando.

 — Obrigada. — murmurei.

 Nós ficamos em silêncio depois disso. A música ficava cada vez mais alta e Emma eLuke mais bêbados. Eu estava observando atentamente Oliver. Eu queria que ele fizessealgo errado e que eu conseguisse achar um defeito mais concreto nele. Mas eu estava

ficando hipnotizada pelo modo que ele mexia o corpo no ritmo da musica.Céus, onde é que eu estava com a cabeça quando deixei que isso acontecesse?

 — Vinho? — Grigor me ofereceu a taça. Eu hesitei em pega-la primeiramente, mas eusentia que precisava de um pouco de álcool no sangue para esquecer um pouco daquelaloucura.

Depois de entornar duas taças, ás coisas começaram a mudar. Eu me sentia leve edesinibida. E pouco a pouco fui me esquecendo de tudo; das visões; das sensaçõesestranhas; de quem me observava; de onde eu estava...

Page 47: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 47/168

Eu só ouvia a música e sentia a eletricidade pulsando em meu corpo. E não havia forçaspara resistir a isso. E de repente eu não queria mais resistir...

Minha cabeça doía quando eu abri meus olhos. O sol entrava pelas cortinas meincomodando e eu mal tinha forças para olhar que horas eram. Rolei na cama disposta ame esconder dos raios solares entre as cobertas.

Poderiam ter se passado horas, mas para mim foram segundos, quando um barulhoestranho veio da janela. Eu o ignorei. Mas depois começou novamente, mais forte, maispersistente, impaciente e principalmente irritante.

Eu me vi sendo obrigada a levantar e parar com o que quer que esteja fazendo aquilo.Afastei um pouco a cortina, a tempo de ver pedrinhas minúsculas baterem na vidraça evoltarei para o chão; um pouco mais forte e quebraria o vidro.

Primeiramente, supus que fosse alguma criança fazendo arte. Quando abri a janela ecoloquei minha cabeça para fora, estaquei ao ver que era Grigor que estavaarremessando-as.

 — O que você está fazendo? — eu perguntei confusa.

 — Checando para saber se ainda está viva. — ele respondeu rindo.

Eu abri a minha boca e depois a fechei.

Tentei me lembrar do que tinha acontecido na noite anterior. Eu me recordava depoucas coisas. Vozes... Musica alta, vinho... Eu bebendo o vinho... Ai! Dor de cabeça.

 — Vem dar um passeio comigo. O dia está lindo aqui fora.  — seria quase um crime seeu recusasse. Mas minha cabeça doía e eu deveria estar horrível, e seja o que lá tenhaacontecido noite passada... Quatro palavras: Não deve ter prestado!

 — Não. Eu... Não me sinto muito bem para sair.  — respondi-lhe. — Talvez, quem sabe,outro dia. — uhum, seria mais fácil eu ganhar na loteria duas vezes seguidas.

 — Não, vamos hoje. Eu te dou meia hora para se arrumar. Hoje é sábado, não pode ficarna cama o dia todo. — Ele sorriu, e o sorriso dele parecia ofuscar até mesmo o sol.

Meia hora depois eu estava dentro de shorts jeans e havia desenterrado uma de minhasblusas de alças. Mas não havia como não usar óculos escuros com aquelas olheirashorríveis.

Por mais que eu estivesse meio enjoada, com a cabeça explodindo, e sonolenta, nãohavia como não notar que ele tinha razão: ele estava lindo. Quer dizer, o dia estava.Huh.

 — O que aconteceu noite passada? — perguntei temerosa.

Page 48: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 48/168

 — Não se lembra? — ele perguntou divertido. — Emma e Luke estavam caindo debêbados, e os levei até suas casas.

 — Só isso?

 — Acho que seria um pouco mais trágico se eu não os tivesse levado. Emma nãolembrava nem o próprio nome.

Eu sorri, um pouco desconfiada de que ele estivesse omitindo algo.

 — Onde estamos indo, exatamente?

Ele franziu as sobrancelhas um pouco.

 — A verdade é que eu não sei.

Foi impossível não rir. É claro que ele não sabia onde estávamos indo, ele era novo nacidade!

 — Podemos ir até... — eu pensei um pouco — O bosque. — Foi o único lugar que meveio em mente. — Emma obrigou o pai dela a construir uma casinha para nós quandotínhamos sete anos. Acho que ainda está lá.

E estava.

A casinha pequena e de madeira ainda estava lá, no lado leste do bosque. Desgastadapelo tempo, mas ainda lá. Consumimos todo o nosso tempo de infância enfeitandoaquela casa. Era o nosso cantinho secreto.

Totalmente feita de madeira, com uma pequena janela ao lado esquerdo — colocamosum cortina rosa para enfeitar. Uma portinha no centro.

Vínhamos para cá depois da escola todos os dias. Mas infelizmente nosso cantinho foidescoberto por alguns garotos maiores e depois disso nunca mais pudemos voltar. E eledeixou de ser nosso.

Estar ali era como de certa forma voltar no tempo. Eu podia ver duas garotas quase do

mesmo tamanho. A primeira de cabelos castanhos na altura dos ombros, o rosto pálido eoval, a boca vermelhas e pequenos olhos negros; Emma. A segunda tinha os cabeloslogos quase no meio das costas — os fios não eram totalmente ruivos, e sim num tomestranho meio loiro e castanho, lembrando ferrugem. Era volumoso e deixava seu rostoclaro meio escondido. As sobrancelhas finas, o nariz pequeno, os olhos quase da mesmacor dos cabelos, a boca rosada; Eu.

 — Eu vinha aqui praticamente todos os dias. Achava que esse lugar era mágico.  — Eudei de ombros, não sabendo exatamente por que estava dizendo isso á ele.

 — Parou de vir?

Page 49: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 49/168

 — Sim, aconteceram algumas coisas... Garotos grandes vieram e o tomaram. Eu queriarecuperá-lo, mas a minha mãe... — eu comecei.

 — A sua mãe? — ele me instigou a continuar. — Ela morreu e... Eu parei de acreditar em magia. — disse e me virei para ele. Sem

conseguir olhar mais para a casinha abandonada.

Ficamos em silêncio. Grigor estava observando minuciosamente cada detalhe dela. Orosto dele parecia ser macio como algodão refletindo no sol. Eu me obriguei a voltar aolhar a velha casinha.

Eu passei ás mãos por meu rosto um pouco suado, aproveitando para tirar um pouco osóculos. Foi apenas por um segundo, mas eu a vi. Uma garota de vestido branco, ecabelos negros, parada em frente à pequena janela.

 — Tem alguma coisa errada. — sussurrou ele.

Ele a vira também?

 — Você a viu?Ele não respondeu.

 — Eu acho melhor você voltar para casa.

E eu percebi que quando ele disse ―você voltar para casa‖, ele não queria dizer  que eletambém voltaria comigo.

 — Você vai ficar? — eu perguntei assustada.

Ele não respondeu novamente.

O grito que veio a seguir congelou todos os meus ossos, e fez a minha circulaçãosanguínea parar. Era assustador. Macabro. Agonizante. Cruel. E vinha de dentro dacasa.

 — O. Que. Foi. Aquilo? — meus olhos estavam arregalados, e as palavras mal emitiramsom.

Eu dei um passo para trás. Minha respiração presa na garganta. Eu queria olhar paraGrigor, ver se ele estava tão assustado quanto eu. Mas não conseguia.

Outro grito. Desta vez mais forte. Ensurdecedor.

Eu dei outro passo para trás, acabei tropeçando em algo, não consegui olhar o que era.Eu escutei um leve estalar, mas não veio a dor. O medo entorpecia tudo.Quando finalmente consegui mover meu rosto para olhar Grigor, ele já não estava lá.

E eu percebi que estava sozinha.

Page 50: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 50/168

A porta foi se abrindo aos poucos com um rangido. Centímetro por centímetro,lentamente. Eu não conseguia mais me mover, completamente imóvel. Esperando. Ossegundos não pareciam passar.E quando a porta se abriu totalmente, eu ofeguei não acreditando no que via.

 — Oliver?

Page 51: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 51/168

SEIS.

Eu não conseguia mover nenhum músculo, completamente paralisada, enquanto elevinha em minha direção. Ele não tinha nenhuma expressão, o azul safira de seus olhos

não estava mais lá, e agora eles não pareciam ter superfície; era como um buraco negrosugando toda á luz;

O torpor foi passando e o sangue voltou a circular por minhas veias. Meu coração batiacomo uma locomotiva, e agora eu podia sentir constantes fisgadas no meu tornozelo;mas meu cérebro ainda não fora capaz de identificar a dor. Eu não sabia se conseguiriame levantar. Mas eu tinha que sair dali, de qualquer maneira; Meus instintospraticamente gritavam.

E ainda assim eu ainda continuava ali. Encarando-o. Esperando-o.

Será mesmo que a morte chegava assim tão demoradamente e torturante para todas aspessoas ou isso só acontecia com pessoas masoquistas como eu?

E era até de certa forma engraçado o modo como, mesmo sabendo que não haveria maischances para mim e que ali era o meu fim, eu ainda conseguia achá-lo lindo como umDeus.

Uma parte de mim — a que á tempos eu havia esquecido — o agradecia por estarfazendo isso. Porque agora perecia claro como cristal, o jeito como eu sempre anseiepela morte. E como ela sempre esteve presente em minha vida.

Tudo começou com a morte de meu pai. Eu era pequena demais para entender o que amorte realmente significava. Mamãe, mesmo aos cacos por dentro, tentava me fazer verum lado bom naquilo. Ela dizia: ―Seu pai agora vai ser um anjo no céu e vai cuidar denós duas para sempre‖.

E depois ela também morreu.

Não adiantava o que dissessem para mim; Eu não acreditava mais.

Minha mãe havia morrido... Eu estava sozinha. E se meu pai realmente fosse um anjo,

ele deveria ter o mínimo de misericórdia possível para me tirar daqui.Eu continuei viva. Mas morta por dentro.

Estando aqui apenas para cuidar de Molly. Porque, infelizmente, ela também só tinha amim.

E depois de tudo isso, parece irônico que eu fosse morrer justo agora. E mais irônicoainda que fosse Oliver a me matar.

E também é engraçado porque eu fui avisada. E de alguma forma, desde que eu o vi, eusempre soube disso. Ele disse que era perigoso e que era melhor eu me afastar dele

enquanto havia tempo. O tempo acabou, Anna.

Page 52: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 52/168

 E a cada passo que ele dava em minha direção, era um rosto de uma pessoa amadapassado em minha mente; Primeiro Molly, depois Emma, Luke, os pais de Emma: Rosee Chad, — que foram praticamente os meus pais postiços, o avô de Luke  — que sempreme deu sábios conselhos. Todos eles passaram. E não importava o que aconteceria

depois, eu jamais os esqueceria.

Fechei meus olhos aguardando. Cada segundo como horas.

Um barulho de Tum-tum-tum pulsava ao meu lado. Ritmado. Eu já estaria morta, seriaisso? Abri meus olhos e inacreditavelmente tudo tinha ganhado o mesmo aspectoenegrecido da tarde anterior. Mas eu não estava na mesma floresta.

Agora tudo era brilhante, mesmo em preto e branco. Grandes tochas penduradas emcandelabros perfeitamente enfileirados em cada canto do enorme cômodo. Uma grandeescada com um extenso tapete no centro. O piso era como um tabuleiro de xadrez,

portas duplas na extremidade sul e velas em todas as mesas. Parecia algum tipo dedecoração real para festas.

Eu estava ainda confusa e com meus olhos ardendo pela claridade quando uma garotade cabelos negros, pele de giz, vestindo em um elegante vestido que chegava até os seuspés, apareceu no topo das escadas. Ela era esguia e graciosa como uma pluma. Pareciaflutuar enquanto descia os degraus. Eu demorei a reconhecer; era a mesma garota queeu vira em frente à janela. Ela sorria, sua íris era negra e os lábios carnudos e vermelhoscomo sangue.

Ela passou flutuando por mim; e quando digo que ela passou estou querendo dizer que agarota me atravessou ao meio como se eu não estivesse ali; como se eu fosse parte doar; invisível... Como um fantasma.

Havia um homem sentado numa cadeira atrás das grandes mesas. Seus cabelos vinhamaté os ombros, uma grossa barba em seu queixo, os olhos pequenos e escuros, e elemantinha um sorriso perverso no rosto.

 — Estas quase na hora, minha querida. — disse ele, o sorriso perverso se alargou emseu rosto sombrio.

 — Estas. — concordou a garota. — Nossa vingança tardara, mas não falharás. — umreflexo do sorriso do homem surgiu em sua face de cera.

 — Logo tomaremos posse do que vos pertence. A praga dos Veroni será varrida detodos os mundos e dimensões. E nós reinaremos soberanos a tudo e á todos.  — surgiuum brilho nos olhos negros enquanto ele falava.

 — Seremos coroados na noite de Lunabella! — os lábios vermelhos se arreganharampor cima do dentes brancos como papel.

A visão mudou. Agora eu estava num lindo jardim, cheio de flores e pássaros coloridos

voando pelo ar. Uma grande casa branca num estilo medieval, como naqueles filmes

Page 53: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 53/168

escoceses. Seria uma linda paisagem se não fosse pelo homem ensangüentado naestreita escadaria que levava até a porta de entrada no centro da casa.

Um pouco repelida pelo sangue, caminhei até ele e me agachei ao seu lado á umadistância considerável. Ele vestia roupas de épocas e elegantes como ás pessoas da

minha visão na floresta. Tinha um fino bigode que o deixava parecendo uma pintura deum quadro e cabelos loiros como ouro.

O sangue escorria de seu peito, braços e pernas. Eu o julgava morto em razão aosferimentos, mas depois de alguns segundos ele abriu os imensos olhos castanhos.

 — Eu sabia que tu virias. — a voz dele mal tinha som.

Eu esperei que alguém aparecesse, demorou mais dois segundos para eu entender queele falara comigo. Ele podia me ver!

 — Quem é você? — perguntei, não com medo, mas sim, curiosa.

 — Sou aquele que provocou uma tragédia, e que o corpo nem a terra irás de querer.  —  um sorriso duro surgiu em seus lábios finos. — Escutes bem, minha cara, guardeminhas palavras como seu tesouro mais sombrio: O que em outrora foi feito éimpossível ser desfeito.

E depois eu abri meus olhos. Estava novamente de pé, a pequena casinha a minha frentecom a porta completamente fechada e remoída.

 — Acho que dá pra concertá-la. Levaria certo tempo, é claro, a madeira já deve estarquase toda roída por cupins, mas nada que não seja reparável. — eu escutava a voz deGrigor ao meu lado, mas ainda estava confusa e chocada demais para olhá-lo.Onde estaria Oliver?

 — Você... O quê... — eu não sabia por onde começar. Meu tornozelo estavaperfeitamente apoiado no chão e nada parecia fazer mais sentido.

Eu sentia seus olhos me queimarem, isso fez meu estomago dar voltas.

 — Eu entendo se você não quiser reconstruí-la. Olha, eu sei que já ouviu isso muitas

vezes, mas... Eu sinto muito pela sua mãe.Movi minha cabeça, para encará-lo. Não havia nenhum vestígio de pena que eu via nosolhos das outras pessoas quando falavam da minha mãe. Grigor somente me encaravafixamente deixando os qualquer sentimento que ele sentisse absorto dentro de si mesmo.Indecifrável. Era assim que ele era.

 — Tá. — murmurei ainda confusa.Eu estava desnorteada encarando tudo ao meu redor. Á poucos instantes eu jurava queestava a um passo de morrer e agora tudo parece tão calmo... E surreal.

 — Eu acho melhor a gente ir embora. — minha voz tremeu quando me referi a nós dois.Voltei a fitá-lo curiosa.

Page 54: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 54/168

  — Certo. — concordou ele. E quando eu não me movi ele disse: — Você está bem?

Eu balancei minha cabeça num sim mudo. Por que eu não estaria bem? Só porque euachei ter visto Oliver saindo daquela casa junto com uma garota, que por acaso também

a vi numa visão, e como se já não me bastasse tive outra em que um cara quase mortome dizia coisas sem sentido? Imagine.

Movíamo-nos lentamente por entre ás arvores e plantas. Grigor parecia relaxado ao meulado, eu desejava ansiosamente que ele me dissesse algo para eu esquecer o que sepassara — o que aparentemente só eu vira.

 — Luke me disse que você é emancipado. — resolvi começar. — Como é isso?

 — Até que é legal. — respondeu-me ele. — Sou responsável pelo que faço o que ásvezes também é um pouco ruim. Não podem colocar a culpa nos meus pais. — ele

piscou pra mim rindo. Eu sorri um pouco. — Mas é bom. Não tenho muito do quereclamar.

 — Seus pais devem ser legais. — na minha mente eles deveriam ser um casal liberal dearistocratas. Ligeiramente lindos. Bem humorados. E ao mesmo tempo descolados eelegantes. Como Grigor.

 — Eles eram. — ele concordou.

E então eu parei.

 — Desculpe, eu... — certo. Eu sou uma idiota. Eles morreram por isso ele éemancipado. Eu deveria bater minha mente dormente numa parede antes que ela causealgum mal a sociedade.

 — Não, tudo bem. — ele sorria de canto. — Eles morreram há muito tempo. Não sepreocupe.

Voltei a andar.

 — Mas eu tenho uma espécie de tutor que me visita de tempos em tempos.

 — Pra saber como você está. — eu deduzi.

 — Ou também para me vigiar. — o seu sorriso se alargou, um pouco duro, mais aindaassim ofuscante.

 — Atlanta deve ser calma comparada à Nova Iorque.

 — É, talvez. — murmurou ele pensativo. — Despende muito de que lado você olhar, osseus amigos e você deixam alguns jovens de nova-iorquinos no chinelo.Meu rosto corou violentamente.

 — Eu não sei por que, mas eu sinto que você está omitindo algo sobre ontem à noite.

Page 55: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 55/168

Ele riu o que meio que confirmava minha desconfiança.

 — Depois de um tempo você começou a ficar, digamos... Mais alegre.

 — Não! — minha boca se escancarando.

 — Você não fez nada demais. — ele tentou me acalmar. — Não agarrou ninguém etambém não levou ninguém para o seu quarto, eu acho.  — ele sorria como se aquilofosse engraçado. — Relaxa, eu só estou brincando. Não aconteceu nada. Você só bebeudemais e curtiu a festa. Se isso for um crime, me prenda, pois eu fiz a mesma coisa.

Demorou alguns minutos para que eu recuperasse a minha fala.

 — Você está conhece mais gente na cidade?

 — Algumas pessoas vieram falar comigo. O pessoal daqui é bem hospitaleiro. — ele

sorriu de canto. — Eu tenho também uns amigos no centro.

 — Você mora lá? — tive o cuidado de deixar o meu tom o menos interessado possível.

 — Não. Eu meio que aluguei uma casa aqui perto do bosque. Fica mais ao norte. Eu teconvidaria para ir lá, mas está uma enorme bagunça da mudança.

 — Não, tudo bem. Eu sei como é isso. — murmurei pensativa. — Bom, não precisa melevar até em casa, eu sei o caminho de volta. Até mais.

Depois de me despedir dele, eu corri para minha casa. Sim, eu corri. Parecia que todo otorpor fora substituído por adrenalina. Adrenalina correndo e pulsando em minhas veias,e depois juntamente com ela veio a raiva. Eu estava com raiva, não sabia de quê ou dequem, mas estava.

Quando eu entrei na minha rua, estava ofegando e cansada, mas eu ainda queriacontinuar correndo com a esperança de que a raiva passasse. Mas ela não passou e sóaumentou quando eu vi um garoto loiro de costas para mim em frente a uma moto quepoderia ter sido usada em velozes e furiosos.

Eu respirei fundo e marchei até ele, que se virou, quando percebeu minha aproximação.

 — Ora, ora, se não é a bela adormecida. — disse ele, com seu típico sorrisinho irônico. — Primeiro dorme no jardim, depois apaga antes de me beijar.

Então ele me vira dormindo no jardim... Minha boca se entreabriu com o fim da frase.

 — O que você disse?

 — Sério, dormir no jardim? Isso é um pouco esquisito, até para mim.

Eu bufei.

 — Depois. — exigi.

Page 56: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 56/168

  — Ah, claro. — seu estúpido sorriso se alargou. — Você apagou antes de me beijar.

Eu tentei não me afetar.

 — Você é maluco e idiota.

Ele riu.

 — Não foi o que pareceu ontem à noite. Certo, então eu sou o maluco e idiota que vocêquase beijou.

Engoli em seco. Ele estava blefando. Eu jamais o beijaria.

Sorri. Um sorriso superficial totalmente sem emoção, porque ás emoções que eu tinhapor dentro eu nunca as mostraria para ele.

 — Você é um ótimo inventor. — comecei. — Deve estar indo bem com o trabalhoinventando coisas sobre mim.

Isso foi o suficiente para tirar o sorrisinho da cara dele.

 — Dez páginas. — disse ele. — Sem invenções.

Eu arqueei uma sobrancelha, não conseguindo esconder totalmente a surpresa.

 — O que você escreveu?

 —  Coisas. — murmurou ele, sarcástico. — Coisas que eu sei não que inventei. E você?Escreveu só aquelas três palavras? Hum, eu acho que o Sr. Norton não vai gostar. Achoque você deveria dar um bom motivo para tê-las escrito.

 — Não vai ser nada difícil. — disse eu com desdém.

―Estranho, louco e Imbecil.‖ Bom, eu poderia começar dizendo que Oliver era estranhoporque aparentemente ele acabou de tentar me matar e, no entanto ele está aquiconversando comigo como se nada tivesse acontecido... É, com certeza, se eu

escrevesse isso o Sr. Norton tiraria os três adjetivos que dei a Oliver e colocaria emmim.

Ele sorriu mais uma vez. Mas não foi o velho sorriso irônico, foi um sorriso genuíno dequem realmente achou graça na situação, um sorriso que eu nunca vira em seu rosto. Eque o deixava mais bonito do que já é. Mais natural.

 — Já sei. Vamos fazer um acordo. — sugeriu ele, me pegando desprevenida. — Eu teajudo na sua redação, diminuo ás paginas das minhas tirando ás partes maisconstrangedoras que sei sobre você.

 — Partes constrangedoras? Tipo o que?

Page 57: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 57/168

Ele deu de ombros.

 — Sei que você chora vendo filmes bregas e que dorme seminua.

Ele está inventando, ele está inventando, ele está inventando!Ele não pode realmente

saber disso!

 — Eu topo. — por favor, que isso não tenha saído muito desesperado.

 — Não vai nem perguntar quais são ás minhas condições? — ele se virou de costas paramim. Agora eu podia ver que ele estava limpando a moto com uma flanela cheia degraxa.

 — O que? Vai me fazer de escrava?

 — Não. — a voz dele não me deixou nem um pouco certa disso. — São só duas

condições. Primeira: Vai sair comigo hoje á noite. Segunda: Sabe aquele seu novoamiguinho? Quero que fique longe dele.

O que?

 — S-sair com você? — meus olhos se arregalaram.

Ele riu. — Não vai ser um encontro. — ele se virou para mim. — Só vamos dar uma volta. Voute mostrar um pouco sobre mim e coisas que eu faço... Isso deve te ajudar a escrever aredação...

 — Tá. — murmurei. Eu não iria pensar nisso agora. — E o que há de errado comGrigor?

Ele se virou de novo.

 — Ele não é... Normal.

 — Você também não é normal.

 — É, mas eu também te disse pra ficar longe de mim. — retrucou. — Então... — eu não sabia que palavras usar. — Grigor é como você... Quero dizer...Grigor... Faz o que você faz.

Ele riu.

 — E o que eu faço?

 — Eu não sei. — respondi. — Mas não é bom... — minhas palavras mal tiveram som,mas ele escutou.

Page 58: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 58/168

 — Tem razão: Não é bom. — ele se voltou para mim. O rosto totalmente sério ecompenetrado. — Vai ficar longe dele?

Eu pensei por um minuto.

 — Não. — e isso soou mais como um desafio do que como uma resposta.

 — Como eu pensei. — murmurou ele mirando o horizonte.

Ele parecia estar em outro lugar enquanto fazia isso. Os olhos cerrados e maishipnotizantes do que nunca, com certo ar irônico, mas não arrogante. Ele era celestial!

 Mas também demoníaco!

Eu estava ficando louca, fato.

 — Aonde vamos? — perguntei.

Seja lá onde ele estivava, ele voltou a si. — Se eu contar perde a graça.

 — A que horas? — perguntei revirando os olhos. — Não posso demorar muito. Mollyvai chegar daqui a pouco e ela não pode ficar sozinha.

 — Harry não vai ter plantão esta noite. — ele disse, com uma convicção que meassustou um pouco.

 — Sem chance! Eu não vou sair com você á noite.

 — Certo. Então não temos um acordo?

Eu fechei meus olhos respirando fundo. Sim ele era um imbecil! E eu mais imbecilainda.

 — Temos.

 — Bom. — aprovou ele. — Depois da meia-noite, esteja pronta.

Não faça isso, Anna! É loucura!Por que diabos eu sempre acabo concordando com ele no final?

Eu estava em frente ao espelho do banheiro olhando o reflexo no espelho. Tinhacolocado um cardigã azul que achei no meu armário, jeans escuros e botas pretas. Eunão sabia aonde iríamos, então eu não fazia idéia se esta era a roupa certa. Prendi a parteda frente do meu cabelo com grampos e passei reparador de pontas para tirar o frizz.

Isso era tão irresponsável. Harry estava em casa o que é pior do que deixar Mollysozinha. Sim, ele estava melhor esses últimos dias — e eu desconfiava que isso era

devido a uma certa nova vizinha loira que agora trabalha com ele. Mas quando se tratade Harry nada mais me surpreende.

Page 59: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 59/168

Houve uma vez que ele chegou em casa bêbado e quase quebrou a cozinha inteira. Eume tranquei no quarto com Molly. Eu não podia ligar para a polícia porque com certezao conselho tutelar viria, e com certeza iríamos para um orfanato. E ninguém iria meseparar da Molly.

Somos como dois fios num nó cego. Não há como desfazer o nó sem cortar os fios. E seum quebra com o outro acontece o mesmo.

Eu mordia os lábios olhando o relógio no meu pulso. Meia noite e meia. Molly dormia eHarry estava vendo uma reprise de um jogo idiota de basebol na TV. O que me fezpensar em como eu sairia dali.

E quando barulhinhos começaram a sair da janela, eu suspirei e lembrei a mim mesmaque tinha concordado com isso e que iria até o fim porque eu precisava fazer o malditotrabalho e desvendar um pouco a vida do meu vizinho estranho.

Abri a janela e espiei a rua lá em baixo. A moto de Oliver estava encostada no meio-fioe ele estava com a cabeça para cima me olhando com o seu maldito sorriso.

 — Peguei uma pedra emprestada com o seu amiguinho. Espero que ele não seincomode. — ele sussurrou para mim, rindo baixo.Eu revirei meus olhos.

 — Isso não vai dar certo. Não tenho como sair, Harry está lá em baixo na sala.

Foi a vez dele de revirar os olhos.

 — O que há de errado em descer pela janela? — perguntou ele. — É um clássico.

Eu segurei meu queixo no lugar.

 — Eu não vou descer por uma corda... O que você tem na cabeça?  — bufei.

 — Quem está falando em descer por uma corda? Nem Julieta faria isso hoje em dia.Venha, eu te pego. — dessa vez meu queixo despencou.

 — O que?

Olhei a distância até o chão e uma forte vertigem me ocorreu.

 — Eu te pego. Não vou deixar você cair. — e não adiantava o quão persuasivo a frasedele soasse eu nunca seria idiota o suficiente para me jogar de uma janela a quase 5metros do chão.

 — Nem pensar. — eu disse firmemente.

 — Certo, então como vai descer? — perguntou sarcástico. — Voando?

Page 60: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 60/168

Mordi meu lábio e sai da janela. Não agüentava mais olhar para aquele sorrisinho. Eunão tinha opções. E não iria mais adiar aquilo. Quanto mais cedo eu saísse dali, maiscedo eu poderia voltar. Eu acho.

Desci degrau por degrau a escada e quando cheguei a sala, dei de cara com latas de

cerveja na mesinha de centro, a TV ligada com comercias chatos passando e com umHarry totalmente apagado no sofá.

Andei silenciosamente até a porta. Peguei meu molho de chaves e enfiei na fechadurafazendo o mínimo de barulho possível. Quando sai para a noite, suspirei. Tranquei denovo a porta e me virei para encarar Oliver.

Ele me olhou de cima a baixo e depois sorriu, felizmente não fez nenhum comentárioidiota.

 — Seja para sabe-se lá o lugar que você está me levando... Eu quero voltar logo! Ou

então eu vou ligar para a policia e dizer que me seqüestraram, vou dar o endereço da suacasa, vão rastrear a sua família intera até o fim do mundo e...

 — Ei! — ele me interrompeu rindo — Relaxa, vamos só dar uma volta.

Ele pegou o capacete que estava em cima da moto e me estendeu. Suspirei olhando amoto. Não vai dar pra trás agora, meu lado inconseqüente sussurrou. 

Coloquei o capacete na cabeça observando-o subir na moto: Uma versão totalmentedistorcida de um príncipe num cavalo branco. Não, aquilo não me lembrava nem umpouco contos de fadas.

 — Desistiu? — ele sorria, me desfiando.

Engoli todo o meu orgulho juntamente com o resto da minha sanidade e subi na moto,tocando o mínimo possível nele. Eu pude ver um reflexo de um sorriso surgindo antesde dar a partida e tudo ao meu redor ser reduzido à simples borrões. E antes que eupudesse me impedir,eu já estava totalmente grudada a ele, agarrada a sua cintura comose ela fosse a minha vida.

E mesmo que aquilo fosse aterrorizante e insano, eu tinha que admitir que era muito

bom. A adrenalina correndo nas veias como se fizessem parte do sangue, o vendo jogando meus cabelos para trás, me impedindo de me mexer e até mesmo de pensar.Fora que o cheiro de Oliver inflamava meus pulmões, aumentando mais ainda aquelasensação maravilhosa.

Liberdade.Era o que eu tinha naquele momento. Era como voar, e o mais incrível eraque não havia mais horizonte, não parecia ter um fim marcado, era como se nósestivéssemos passado por tudo, em direção ao infinito.

Quando a moto foi desacertando aos poucos, eu me obriguei a soltar a cintura de Oliver.Os músculos das costas dele estavam compridos na palma de minhas mãos. Desci da

moto cambaleando observando com muito cuidado o lugar onde tínhamos parado.

Page 61: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 61/168

Havia muitas pessoas ali. Homens com vestimentas da moda, não havia um padrão. Unstotalmente de preto, outros mais descolados. Alguns jovens e outros mais velhos. Já ásmulheres, sim elas tinha um padrão: Vestidos e saias mínimas, blusas mostrando abarriga e com enormes decotes. Olhei para mim mesma me sentindo como sempre: Aestranha.

Mas o que mais me impressionou foram os carros. Alguns eram até discretos, masoutros deixariam uma placa de neon piscando: ―Olhem pra mim‖ invisíveis, de tãoextravagantes. Eram de cores variadas: azul, amarelo, rosa, laranja...

Senti alguém pegar o meu braço e antes que eu pudesse me virar, Oliver sussurrou ao pédo meu ouvido:

 — Não fique encarando ás pessoas desse jeito... Eles não gostam de muita atenção.

Aham. Não gostam. Quem teria carros assim e não queria chamar atenção?

Mesmo assim abaixei meu olhar, e tentei não encarar ninguém, enquanto ele me guiavaaté um pequeno grupo de pessoas. Eu estava ficando nervosa com aquela quantidade degente. Estava querendo voltar correndo para casa e me enfiar embaixo das minhascobertas quentinhas.

 — Oliver! — uma mulher ruiva, extremamente extravagante veio até nós. Ela tinha umcopo com uma bebida vermelha nas mãos. Não pense besteiras, Anna!

 — Sarah. — ele não parecia nada empolgado enquanto preferia o nome dela, totalmenteao contrario dela que praticamente se jogou em cima dele. Ela deixaria Emily no chão,no quesito de se oferecer.

Ele se afastou gentilmente dela.

 — Chegou cedo. — ela disse.Dei uma espiadela no meu relógio: quase uma da manhã. Cedo! Ela até que era bonita.Vulgar. Mas bonita. Eu não me senti inferior até que uma garota chegou atrás dela. Seuscabelos tinham grandes cachos castanhos, que emolduravam perfeitamente seu rostoredondo; os olhos grandes e expressivos; a boca pequena e rosada; a maquiagem nãomuito forte comparada com a da que se chamava Sarah.

 — Oi. — ela disse a Oliver, dando um singelo beijo em sua face.

 — Oi. — e ele não respondeu da mesma forma entediada que usou com a outra. Eucomecei a me sentir ainda mais estranha. Como uma coisa que não era para estar ali.

 — Hamm, — Oliver olhou para mim. — Esta é a Anna.

A garota me olhou, não de cima a baixo como Sarah fez, e sim um olhar diferente igualao que Susan usava quando me olhava no jantar.

 — Oi, é um prazer conhecê-la. Eu sou Samantha e esta é minha prima Sarah.

Page 62: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 62/168

  — Oi. — eu disse meio envergonhada novamente me lembrando das minhas cobertasquentinhas.

 — Oliver, cara, é bom te ver aqui! — um homem de pele escura, careca e de óculos

escuros surgiu atrás das garotas. Os dentes dele eram brancos e afiados constatando comsua pele morena.

 — Blake. — Oliver o cumprimentou-o. — Esta é a Anna.

 — Ah claro. — eu me senti mais constrangida ainda quando percebi que ele me olhava.Os óculos escuros me impediam de ver seus olhos, mas eles pareciam ser tão sombrioscomo o resto do rosto.

Ele esticou sua mão até mim, assombrada eu assisti ele levar a minha mão até os seuslábios, num gesto que eu só havia visto em filmes antigos.

 — É um prazer conhecê-la. — a voz dele era grave como um trovão.

Eu somente assenti.

 — Vai correr agora ou vai esperar pela segunda corrida? — perguntou Samantha.

Claro, então era isso uma racha. Sinceramente, eu esperava algo como Velozes eFuriosos.

 — Eu vou agora. — respondeu ele. Samantha sorriu nos dando ás costas e puxandoSarah pelo braço.

 — Vai me desejar sorte? — perguntou ele para mim. Seu irritante sorrisinho no rosto.

 — Hum, não. Se você perder, eu vou poder colocar ―Garoto prepotente e perdedor‖ naredação.

Ele riu e me deixou sozinha. Com Blake.

 Não fique encarando ninguém. Eu lembrei a mim mesma. Mas por que esse cara

continua me encarando? — Acho melhor sairmos do meio da rua. Não acho que seria bom você ser atropelada. — ele sorriu.

Foi então que eu notei a fileira de carros e motos que se formava atrás da linha feita noasfalto. A maioria das pessoas estava aglomerada na calçada e somente eu e o tal deBlake continuávamos ali.

Que ótimo!

Caminhei até o outro lado, minhas bochechas um pouco quentes. Não olhe praninguém.

Page 63: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 63/168

 Observei meio fascinada uma garota, com ás mesmas vestimentas curtas das outras,derramar um líquido na pista e logo depois chamas brotarem do asfalto. Fascinante; eutinha de admitir.

Procurei Oliver pela extensa linha. O encontrei entre um... Digamos, um veículo  —  carro seria um pouco singelo demais comparado aquilo — azul, e outra moto preta. Eusó o reconheci por causa da moto, o capacete tampava totalmente suas feições. Aomenos ele usava um capacete.

 — Acha que ele vai perder? — perguntei a Blake ao meu lado.

Eu torcia para que sim. Não só pela redação, e sim para ter também o gostinho de ver aprepotência dele indo para o espaço.

 —   Não. —  respondeu ele rindo. — Ele é bom. Temos que ver isso na terceira corrida.

 —  Terceira?

 — É. Há a primeira corrida e a segunda que todos podem participar. E a terceira ésomente para os ganhadores das duas. Mas eu acho que hoje não há ninguém páreo paraele.

Eu arqueei uma sobrancelha.

O ronco dos motores foi ficando cada vez mais alto, ensurdeceres. Antes que eu pudesseperceber qualquer sinal, eles deram partida. Deixando fumaça e fogo pela pista. Elespareciam rasgar o ar, enquanto sumiam no fim da rua. A coisa mais magnífica que eu jávi, nem efeitos especiais superavam aquilo.

 — Quando eles voltam?

 — Não vai demorar muito... A não ser que aconteça alguma coisa... — havia um sorrisomalicioso nos lábios dele.

Eu tentei não demonstrar que estava assustada.

Foi nesse momento que a ficha caiu totalmente. Eu estava sozinha, no meio de genteestranha, bebidas, drogas e mulheres seminuas. Eu procurei o tal do Blake, mas ele játinha sumido no meio da multidão. Droga e droga!

E tudo isso só por causa de uma redação! Onde é que eu estava com a cabeça quando fuiconcordar com isso?

Page 64: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 64/168

E tudo só piorou quando eu escutei no fundo da rua o barulho das sirenes. A correriacomeçou. Carros arrancando em alta velocidade, garotas espremidas em motos, gentegritando, e eu parada sem saber o que fazer no meio de tudo.

Eu já podia me imaginar na delegacia. O que eu poderia dizer? Que fui a uma racha com

um colega de escola para fazer uma redação?

Ai. Meu. Deus.

Busquei meu celular no meu bolso de trás, ao mesmo tempo em que me lembrava que otinha deixado em cima da mesinha de centro — onde deveria estar enterrado em meio alatas de cerveja.

Corri para longe da multidão que se dissipava a cada segundo. Entrei num beco escuro aprocura de alguma saída. Corri até o fim e quando achava que tinha encontrado-a, umamão forte agarrou meu braço e outra tapou minha boca me impedindo de gritar.

A sirene estava próxima. No começo do beco, um policial estava com uma arma na mãogritando coisas incompreensíveis para os poucos que continuaram ali.Eu comecei aachá-los sortudos: A delegacia deveria até ser aconchegante, comparando-a a situaçãoque eu estava.

O sujeito começou a me puxar até o fim do beco. Eu tentei gritar, mas a mão dele meimpedia e tudo que saia era resmungos. O beco ia ficando cada vez mais escuro eúmido. Não parecia haver fim.

Quando saímos do outro lado, a rua era igualmente escura, deserta, e silenciosa demais.Só um mínimo barulho de sirenes ao fundo.

Vasculhei meu cérebro em busca de alguma saída. Eu não tinha nenhuma experiênciacom lutas, tudo que eu sabia se resumia a filmes do Jackie Chan, Menina de Ouro eRocky Balboa.

Continuei sendo puxada em direção a um carro mal estacionado no meio fio. Eu nãopude identificar a marca e nem a cor antes de ser jogada para dentro no banco docarona. Eu tentei abrir as janelas para tentar sair, mas elas já estavam travadas.

Busquei desesperada por qualquer coisa que pudesse feri-lo, mas não havia nada. Umavez, há muito tempo, eu vi, num seriado qualquer, um cara enforcar um homem com suacamiseta. Eu não tinha muitas idéias e muito menos opções.

Eu queria chorar, mas as lagrimas não vinham.

Quando o sujeito entrou pelo outro lado, eu decidi que era agora ou nunca. Joguei-meno pescoço dele torcendo com toda força que eu tinha o tecido fino do meu cardigã.

Ele tentou me fazer soltar o tecido puxando meus pulsos para cima. Eu torci com maisforça ainda. Eu só precisava imobilizá-lo por cinco segundos. Depois sairia correndo a

toda velocidade até o outro lado do beco e me jogaria em cima do carro da polícia sefosse preciso.

Page 65: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 65/168

 — Pa... Re! — ele pediu sufocado me empurrando para trás. Cai deitada no banco decouro. O que restou do cardigã em minhas mãos.

 — Você ficou maluca? — eu reconheci a voz mesmo ela tendo saído em meio aofegadas.

 — É você mesmo? — minha voz mal saiu da garganta. Eu estava cansada e elétrica, malacreditando no que estava acontecendo.

 — Quem mais seria? — ele perguntou, tentando ser sarcástico mesmo quando estavaquase morrendo sem ar. — O que deu em você, garota?

 — Eu achei que fosse outra pessoa... — tentei me explicar. — Mas o que também deuem você, garoto? Precisava me pegar daquele jeito? Eu quase morri achando que iria serseqüestrada, ou coisa pior! — respirei fundo tentando me acalmar. — Aliás, o que vocêestá fazendo aqui, Grigor?

 — Onde você arranja tanto fôlego? — ele riu, e tossiu logo em seguida. Uma parte demim começando a se sentir culpada, enquanto a outra já estava se escondendoenvergonhada. — Eu vim ver alguns amigos... Não imaginava te encontrar aqui. Apolicia chegou e eu percebi o seu desespero e tentei te ajudar. Não imaginava que vocêiria tentar me matar com um... Cardigã!

Ele sorria. Pelo menos ele não parecia chateado comigo.

 — Desculpe, eu... — sorri, sem fôlego.

 — Tudo bem. Eu vou me lembrar disso e cobrar mais tarde.

 —  O que? — perguntei confusa.

 — Te livrei de ser presa e ainda te perdoei por tentar me matar. São duas coisas que euraramente faço, baby! — ele piscou pra mim e deu o seu melhor sorriso, que pareciabrilhar até no escuro.

Page 66: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 66/168

SETE.

Eu mantinha meus olhos no painel luminoso do carro, que era a fonte da única luz quenos iluminava. Grigor havia parado em frente a minha casa e eu hesitava em abrir o

cinto de segurança e sair do carro. Não por medo de Harry me ver,  — ele deveria estarbêbado e sonolento, eu poderia inventar qualquer desculpa e ele não estaria emcondições de me questionar, e amanhã ele nem lembraria o próprio nome — a verdadeera que eu não queria me despedir de Grigor.

Havia algo de errado e se não era com ele, provavelmente seria comigo. Mas o fato eraque sempre que estávamos próximos alguma coisa de muito estranha acontecia — eessa coisa só eu percebia: As visões, aquela cena estranha no bosque, e ainda tinha ofato de eu ter sentido ele dominado o meu corpo.

Mas também era impossível negar que ele também me atraía em uma forma diferente.Não digo isso pela forma física e nem pelo rosto que parecia ter sido arrancado de umadas páginas da revista Vogue, e sim pela sua personalidade... Pelo seu mistério, quemesmo ele parecendo ter uma vida comum como a dos outros garotos, eu sei que oenvolve completamente.

 — Ainda não me disse como foi parar em uma racha.

Eu ri nervosa.

 — É uma longa história... Mas foi por uma boa causa, acredite! Tudo por causa de uma

redação de Inglês. — soou brincalhão, mas era a mais pura verdade! — Você iria dizer isso na delegacia? — ele riu.

 — Não, eu não sou idiota. — É talvez só um pouquinho. — Eu iria dizer que fuiseqüestrada por um cara louco e que ele foi embora e me deixou ali.

A parte do seqüestro não era bem uma verdade; Oliver não colocou uma arma na minhacabeça e me mandou subir na moto, mas mesmo assim era culpa dele a razão de eu estarali.

O que me fez me perguntar onde é que ele estaria agora. Rindo da minha cara,provavelmente. Ele deveria achar que eu estava na delegacia, e com certeza tentaria tiraro corpo fora e me deixar como a delinqüente da situação. Eu aceitaria isso se ele nãousasse seu sorrisinho irritante.

Talvez isso tivesse acontecido mesmo se Grigor não me encontrasse naquele beco.E foi só quando eu estava no meu quarto, embaixo das minhas cobertas quentinhas, equase adormecendo foi que eu me lembrei que não o tinha agradecido.

No domingo pela manhã, eu me refugiei no antigo escritório de minha mãe. Havia umaextensa mesa de mogno no centro, um computador antigo — minha mãe odiava

tecnologia — e uma máquina de escrever empoleirada em cima de uma cadeira.Exatamente como ela tinha deixado.

Page 67: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 67/168

Eu puxei uma cadeira giratória e me sentei em frente à mesa, peguei um papel e umacaneta e escrevi cuidadosamente no papel:

Oliver Coleman 

Engoli em seco e comecei a escrever:

Extremamente irritante; prepotente, e insano.

Não me pareceu justo a sua personalidade; fui boazinha até demais. Eu peguei outrafolha de papel e escrevi:

Louco! Deveria ser internado e exilado de qualquer contato com a sociedade.

E quando havia uma pilha de papéis na minha frente todos com somente uma linha, eucomecei a realmente ficar preocupada.

Afinal para que servira me arriscar tanto noite passada se no fim das contas eu aindacontinuava sem saber nada sobre ele? Certo, ele era um arruaceiro, e deve fazer parte deuma gangue, mas eu não tinha provas para escrever isso na redação.

Joguei minha cabeça para trás e impulsionei meu corpo para o lado, fazendo a cadeiragirar e girar. E quando eu fiquei tonta ao ponto de até meu cérebro não parar de girar,parei e abri meus olhos, observando o velho computador no chão.

Não demorou muito para eu conectar todos os cabos nos lugares certos, e por sorteainda tínhamos uma internet discada que Harry usava para checar seus e-mails deconsultório.

Esperei, desanimada demais para ficar irritada, o computador carregar a página doGoogle.

Certo, talvez Oliver tenha alguma sujeira enterrada na internet. Com sorte, talvez eletenha uma página pessoal em algum desses sites de relacionamento. Isso seria o melhorque eu podia esperar, bastava uma boa olhada no perfil pessoal dele e eu poderia colocar

tudo no papel... E caso ele descobrisse isso depois, eu diria que usei minhas própriaspalavras e que estava sendo tão trapaceira quanto ele que inventava coisas sobre mim.Mas havia milhares de Olivers Colemans no Facebook. Eu tentei a sorte, e fui pararnuma página de um senhor de 80 anos, solteiro e a procura de uma namorada.

Voltei para o Google de novo. Desta vez digitei Susan Coleman, médica, Los Angeles — as únicas informações que eu tinha sobre a tia dele. Fui clicando nos números depáginas aleatoriamente e acabei indo parar em um site de medicina. Havia uma foto deuma folha de jornal impresso e antigo: Dia dez de novembro de 1894. Observei ásletrinhas desgastadas e

Page 68: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 68/168

miúdas, mas não havia como distinguir as palavras. Só a foto em preto e branco de umamansão em meio ao campo.Li a pequena matéria que havia em baixo da fotografia do jornal. Meus olhos searregalaram nas últimas linhas:

(...) Susan tentou salvar seu jovem sobrinho, Oliver Coleman, de apenas 17 anos daschamas do fogo, mas acabou ficando presa entre os escombros. A mansão dosColeman’s era uma das mais caras e cotadas da região. Não houve sobreviventes.

Coincidência. Eu disse a mim mesma, enquanto digitava Mansão Coleman na caixa depesquisa do Google.

Fiquei surpresa ao número de resultados: Apenas cinco.

Cliquei no primeiro site. A matéria também era sobre um incêndio, só que maiscompleta.

O general Coleman, saiu naquela noite para resolver uns problemas na cidade,deixando sua irmã e seu filho dormindo em um dos quartos da mansão. O incêndiocomeçou por volta das onze horas, sem nenhuma causa aparente.Susan tinha acordado e estava na cozinha, algumas pessoas disseram que ela tinhauma vela nas mãos e a tinha deixado em cima da mesa, provavelmente a vela teriavirado e começado a queimar a mesa e se alastrou para tudo que encontrou pela frente.

 Já religiosos contaram que a mansão era mal assombrada por um espírito maligno eque foi ele que gerou o incêndio, condenando os Coleman ao inferno na terra.

 Não se sabe ao certo o que originou o incêndio, mas naquela triste noite a MansãoColeman deixou de existir juntamente com seus donos.

Copiei a matéria com minhas mãos tremendo. Sai do escritório e sem pensar muito noque fazia atravessei a rua e toquei a capainha da estranha casa recém vendida.

 — Oh, Anna querida, fico feliz em revê-la. — Susan atendeu a porta sorridente,expondo suas convinhas na bochecha. Um arrepio subiu por minha espinha, mas retribuio sorriso. — Vamos entre!

A casa tinha mudado drasticamente. Os móveis eram de muito bom gosto, a decoraçãoimpecável, a sala era ampla e bem iluminada e os sofás eram tão brancos que pareciam

que nunca foram usados. Linda. Mas eu ainda continuava a achando mal assombrada.Eu me virei de volta para Susan cautelosamente.

 — Veio ver o Oliver? — perguntou ela.

 — Ele está? — devolvi com outra pergunta.

Ele sorriu.

 — Sim lá em cima terminando sua redação. Suba é o primeiro quarto a direita.

Eu a examinei por um instante, pela primeira vez agindo com precaução desde que leraaquela estranha matéria na internet.

Page 69: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 69/168

Subi lentamente degrau por degrau. Meu coração martelando em meu peito. Primeiraporta a direita. Eu estaquei em frente a ela. Eu dei uma pequena batida e ela rangeu e seabriu, me revelando um cômodo branco completamente vazio. Olhei ao redorverificando, mesmo sabendo que esse era o quarto. Adentrei com um passo.

Havia uma janela em frente à porta, o cômodo era bem grande  — pela ausência dosmoveis, e o cheiro de Oliver estava impregnado ali.

A porta se fechou atrás de mim sobressaltando-me. Virei-me para sair do quarto, masfiquei paralisada ao ver a figura em frente à porta, com as mãos nos bolsos das calças

 jeans e o rosto completamente ilegível.

 — Fico feliz em te ver. — ele me disse num tom áspero, que tirou completamente osentido da frase, o que me deixou inicialmente assustada. Mas menos de um segundodepois eu estava explodindo de muita, mas muita raiva.

 — Sério? — eu disse entre dentes, sarcástica. — Esperava que eu estivesse numadelegacia?

 — Não. Estava começando a achar que estivesse morta.

A raiva se refugiou um pouco com o novo choque.

 — Ah, claro! Então era esse o seu planinho? Me deixar sozinha no meio daqueles seusamiguinhos delinqüentes para eles me matarem?

 — Do que está falando, Anna?

Eu pisquei, ele era tão cínico!

 —  O que eu estou falando? — cuspi para ele.

 — Eu não te deixei sozinha. Você que saiu correndo como uma maluca ensandecida.

 — Não me deixou sozinha...? Do que você está falando?

 —  Eu ia correr aquela racha, mas desisti dela para justamente não te deixar sozinha.

Emprestei a moto para um cara, e quando estava voltando para o seu lado, você saiucorrendo para um beco e depois sumiu.

 — Você é louco.

 — Não, você que é.

 — Eu vi quando a policia chegou.

 — Policia? Acha que a policia vai se meter no meio daquela gente?

 — Você está tentando me confundir, eu sei o que eu vi e eu me lembro exatamente decada detalhe.

Page 70: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 70/168

  — E o que você viu?

 — Tudo! — eu comecei a ofegar, exasperada. Eu esperava que ele me dissesse qualquerbanalidade, mas não que tentasse me confundir ou que fosse ele a me questionar.

 — Eu vi você saindo com a moto, depois todo mundo começou a correr e gritar porcausa da chegada da policia, eu corri para o beco e...

 — E...? — ele me instigou a continuar.

 — Não é da sua conta! — lhe devolvi irritada. — O que importa é que consegui chegarem casa viva! Sinto muito se estou te desapontando... — terminei novamente sarcástica.

Ele ficou calado me encarando, enquanto eu ainda ofegava.

 — Certo, você diz que eu me viu sair na moto — ele deu um meio sorriso. — Entãocomo eu sabia que você entrou em um beco? — indagou.

Eu abri a minha boca para dizer algo e a fechei.

Eu ainda não havia notado isso. Minha primeira resposta seria que alguém tinha contadoá ele, mas naquela correria, quem iria prestar atenção em uma estranha? Principalmentecorrendo o risco de ser preso?

Esperei os segundos se passarem calada. Se Oliver pretendia me confundir, eleconseguira.

 — Me diga o que aconteceu no beco! — eu encarei seus olhos azuis safira, mas o queme hipnotizava era sua voz... Macia e aveludada.

 — Por que quer saber? — indaguei.

Ele piscou.

 — Curiosidade — ele disse e quando viu meu olhar determinado a não lhe responder,completou: — O que? Quer que eu escreva na redação que você tem uma crise de

pânico e simplesmente sai correndo para becos escuros? — Escreva. — o desafiei.

Ele se calou. E quando eu achei que o assunto estava encerrado ele disse de repente:

 — Por acaso encontrou o seu amiguinho lá?

 — Que amiguinho? — me fiz de desentendida.

Ele sorriu, seu sorrisinho irritante. Então, eu soube que ele não precisava que eu

dissesse, ele já sabia. Droga, quando é que eu vou aprender a blefar decentemente?

Page 71: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 71/168

  — Eu sabia! — o sorriso sumiu. — Deixe-me adivinhar? Ele te levou até sua casa evocê o agradeceu fervorosamente por tê-la salvado. Deve ter feito você vê-lo com umherói. E você é claro acreditou na farsa que ele fez. — ele fazia uma voz extremamenteirritante e irônica, o que me fez pensar se ela ganhava do sorriso, o resultado? Deu

empate.

 — Você é patético.

 — Isso é quase um elogio vindo de você. — ele disse, amargamente.  — Quer saber deuma coisa? Você realmente não sabe nada sobre mim! Herói... — bufei.

 — Não é assim que o vê? — ele entortou a cabeça para um lado me observando.

 — Não. — dei um passo em sua direção. — Eu não gosto de heróis.

 — Gosta do que então? — ele riu. — Vilões?

Eu bufei.

 — Oh, senhor vidente! Você não deveria perguntar, deveria saber! — respondisarcástica.

 — Ok. Talvez eu não saiba tudo sobre você. — ele sorriu não seu sorriso irritante, esseera normal... Natural!

 — Fico feliz que isso seja ao menos recíproco.

Ele deu alguns passos até mim, e quando eu ia me afastar, já era tarde demais. A folhade papel já estava em suas mãos.

Observei atônita ele vagar os olhos pelas linhas. E mais atônita ainda ele rasgar a folhade papel ao meio.

 — Eu tenho uma copia. — menti, dando de ombros.

 — Escreveu isso a mão duas vezes? — o sorrisinho irritante deformando o outro.

Ignorei seu desdenho.

 — Eu quero a verdade!

 — Que verdade?

 — Sobre você.

 — O que quer saber?

Eu respirei fundo.

Page 72: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 72/168

  — Oliver e Susan Coleman morreram em um incêndio. Quem são vocês? — a minhavoz não tinha emoção.

 — Sabe quantas pessoas no mundo tem o mesmo nome?

Eu abanei minha cabeça, meus olhos não desgrudavam dos seus. Ele poderia me chamarde louca novamente, mas eu não iria desistir. Talvez isso fosse apenas umacoincidência, mas eu não iria acreditar nisso até que ele provasse.

Estávamos bem próximos. Os pedaços de papel estavam jogados aos nossos pés noassoalho marrom. Ele estendeu a mão até meu rosto, mas não tocou minha pele,somente fez os contornos da minha face no ar.

 — Você é uma criatura bem insistente.

Eu, por algum motivo inexplicável, tive a mesma vontade de tocar em seu rosto. Masme detive. Apenas me contentei pela a sensação de ter suas mãos tão próximas de mim,e seu perfume me inundando.

 — E você é uma criatura irritantemente misteriosa.

Um sorriso quase imperceptível surgiu em seus lábios.

 — Sabe qual o problema de um mistério? — disse ele. — É que sempre tem alguémquerendo desvendá-lo.

 — Eu não vejo problema em desvendar mistérios.

 — Você não vê problema em nada. — Ele riu baixinho — É engraçado o modo comotudo acontece ao seu redor, bem na sua frente, e você não percebe, Anna.

 — O que quer dizer com isso?

Ele deu de ombros.

 — Oliver Coleman morreu. E eu sei que há milhares de outros no mundo. Mas nem um

deles é você. — eu tentei de novo retomar o assunto. — Então quem eu sou? — perguntou ele, retórico é claro, mas havia certo tom dedesafio em sua voz.

 — É o que eu estou tentando descobrir.

 — Sabia que quando se investiga algo, você jamais deve avisar ao suspeito de que estáo investigando?

 — Eu sou uma péssima investigadora. — concordei. — Mas não importa. Eu estou de

olho em você.

Page 73: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 73/168

 Quando eu saí daquela casa estranha, que agora era habitada por pessoas mais estranhasainda, eu tinha plena certeza de que mais do que nunca teria de descobrir quem eraaquele garoto. Eu queria continuar agindo como um robô, mas depois de conversar comele, eu comecei a me dar conta de que não poderia agir por puro impulso. Cautela. Eu

precisaria ter mais cautela se quisesse descobrir algo.

Talvez não tenha sido mesmo uma boa idéia contar a ele tudo que eu já sabia. Mas decerta forma foi bom avisar ao senhor ―mistérios‖ de que eu iria desvendá-lo, nem queprecisasse virá-lo do avesso.

Resolvi ocupar minha mente com outras coisas até ficar suficientemente calma parapensar em como iria investigá-lo. Arrumei de novo meu quarto; tirei o pó da estante dasala; e ajudei Molly com o dever de casa — já que não poderia terminar o meu.

Quando a segunda feira finalmente chegou, eu escorreguei para o banco do Miata de

Emma completamente extasiada. Enquanto ela se lamentava no banco do motoristasobre como foi ter de passar o final de semana inteiro de castigo por ter chegado bêbadaem casa, e como seus pais acharam Grigor gentil e responsável, eu me estiquei até osom do carro em busca de alguma estação de radio que combinasse com meu estado deespírito.

 — Desde quando você ouve pop? — ela riu, interrompendo a frase que dizia ao meio.

 — Desde agora. — dei de ombros.

 — Eu amo essa música, sério! — e então ela começou a cantar junto com a cantora, nãotão desafinada quanto era á uns dois anos atrás, quando o seu maior sonho era ser umacantora country.

Emma estacionou o Miata numa das vagas pouco usadas por se localizar bem distanteda saída e muito mais distante ainda dos populares. Eu foquei meus olhos no fim doestacionamento e observei Ryan Brandon estacionar seu lindo Mercedes numa vagapara deficientes.

Ele se recusou a abrir a porta e simplesmente saltou do banco do conversível em direçãoao solo. Menos de cinco segundos depois Rick e Scott já estavam em seus calcanhares.

 — Olha só os ratinhos, já estão agrupados. Onde será que estão a cobra e suas cópias? — Emma murmurou rindo.

Abri a porta do carro e deslizei para fora. Tinha prendido meu cabelo em um rabo decavalo e como hoje o sol resolveu dar as caras eu tive que deixar a minha jaqueta emcasa.

Eu avistei o cabelo de Emily entre um grupinho que estava se formando, as ―cópias‖estavam logo ao seu lado.

 — Ali. — eu mostrei a Emma. — Por que está procurando por elas? Pelo que eu saibavocê sempre fez de tudo para evitar vê-las.

Page 74: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 74/168

 Ela sorriu maliciosamente e disse:

 — Hoje não, baby. Segure-se, Anna, por que hoje o império de cobras vai desmoronar.

 — Emma? — eu a chamei, mas ela já havia saído de meu lado e caminhava em direçãoao grupinho. Essa não!

Eu andei apressada tentando alcançá-la, mas ela já havia chegado até eles. Já era maisdo que tarde, a escola inteira parecia ter parado para olhar Emma puxar o cabelo loirode Emily e derrubá-la no chão.

 — O que está fazendo sua louca? — Emily gritou tentando se levantar.

 — Nunca mais, está me ouvindo? Nunca mais fale da minha família? — Emmaesbravejou em resposta.

Eu me aproximei, mas não muito; o que era um grupinho já tinha se transformado emuma multidão. Consegui me mover mais um pouco, ficando quase próxima a entradaonde Emily se encontrava caída e Emma continuava a gritar para ela palavrasindistintas.

Quando Emma acabou, Emily riu em total deboche, acompanhada de quase toda amultidão que acompanhava a cena.

 —   Não fale mal da minha família. — ela debochou, enquanto era levantada do chão poralguém. — Você chama aquilo de família? Seu pai escreve coisas velhas que ninguémcompra, e a sua mãe... — ela riu mais, um riso que chegava a doer meus tímpanos.  — Asua mãe é uma daquelas mulheres da Avon, oops, errei! Eles chamam agora derepresentantes de vendas!

E a multidão riu com ela mais uma vez. Risadas maldosas que pareciam ter saído dealgum filme de terror. Eu observei ao meu redor. Eu convivi com a maioria dessaspessoas quase a minha vida inteira desde que cheguei de Los Angeles.

Crescemos juntos, claro em grupos diferentes, mas ainda assim juntos. Eu tinha certezaque eles sabiam quem era Emma, e seus pais provavelmente eram amigos de Rose e

Chad.Era revoltante o modo como eles riam debochados. Como se Emma e seus pais fosseminferiores a eles. E tudo por culpa de Emily. Ela fazia uma coisa e eles a copiavam semse importarem quem são os alvos, como belas cópias que são.

 — Parem! — eu gritei.

Não me preocupei com os olhares que recaiam sobre mim pouco a pouco. E como se afúria que eu sentia estivesse sendo vista, eles abriram caminho e eu andei os poucosmetros que faltavam até a garota infernal de risada medonha que ainda sorria de sua

mais nova maldade.

Page 75: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 75/168

  — Olha só se não é a outra nerdzinha. — debochou novamente ela, arrancando maisalgumas risadas da multidão. — Veio defender a sua amiginha?

 — Cala boca, sua cobra dos infernos. — eu cuspi para ela.

Houve um tilintar de risos, mas bastou um olhar de Ryan, para que todos se calassem.

 — Uau! Olha só que boca suja que ela tem. — Stacy que estava logo atrás de Emily riu.

Eu meio que sorri em resposta para ela, irônica.

 — Pelo menos a minha não tem veneno como a sua. — Retruquei, esperando não tergaguejado.

Um deslize meu, e aquela multidão desabaria em risadas zombadoras.

Stacy arregalou os olhos, surpresa. Alias todos estavam. Ninguém nunca parecia terprestado atenção em mim naquela escola. Eu nunca falava com ninguém a não serEmma, e também nunca recebi muito destaque quando o assunto era garotos. Agora agarota ―invisível‖ recebia toda atenção pelo simples fato de ter respondido a altura a―rainha‖.

Parecia que a qualquer momento alguém gritaria: ―Cotem-lhe cabeça!5‖. Eu ri, deixandotodos mais pasmados ainda.

 — Do que está rindo? — Emily pela primeira vez tirou seu sorriso medonho do rosto, eparecia irritada.

 — O que? Agora é proibido rir? — ele sorri abertamente. — Desculpe-me, rainha. Porfavor, impeça-me de rir novamente e não use tanta maquiagem para não ficar parecendoum bobo da corte.

E desta vez nem o rosto autoritário de Ryan foi capaz de deter as gargalhadas quevieram. Eu tenho que admitir que aquilo me fez bem. Eu sabia que alguém teria decolocar Emily Morgan no lugar, só nunca imaginei que esse alguém viesse a ser eu.

Mas a minha alegria não durou muito, pois minutos depois o sorriso medonho de Emily

 já voltava ao seu rosto e eu soube que ainda havia mais veneno a ser destilado. — Ok. Certo, Hamm, como é mesmo o seu nome? — ela me olhou de cima a baixoteatralmente. — Ah, me lembrei. — ela levou a mão à boca fingindo surpresa dando umsorriso de Cheshire6. — Anna, não é? A sua mãe não lhe ensinou a ser educada, não?Ah, é... Você não tem mãe! Você mora de favor, é um estorvo para o seu padrasto! Masse bem que é um preço justo a se pagar por ter sido filha daquela VADIA!

Não foi como se eu tivesse tempo de pensar, ou como se eu tivesse mesmo que terpensado; Quando a minha mão voou em direção ao rosto pálido de Emily, eu tinha

5

 Frase famosa da personagem Rainha de Copas, do livro Alice in Wonderland. 6

Gato de Alice in Wonderland.

Page 76: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 76/168

esquecido qualquer coisa que pudesse me impedir de fazer aquilo. Somente deixei que osentimento de revolta tomasse conta de mim e fiz.

A minha mão ardia, eu a cerrei em um punho. Eu não ouvia nada ao meu redor, mastinha uma vaga consciência de que algumas pessoas gritavam e riam. Já a maioria

permanecia chocada incapaz de fazer qualquer coisa, como a própria Emily. Ela levou amão à face esquerda, onde eu havia esbofeteado-a, e apenas continuou me olhando.

Eu não sabia definir o que era aquele olhar. Minha visão estava destorcida e embaçada,e eu cambaleei para trás buscando apoio. Alguém se prontificou ao meu lado e segurouminha mão, a pele era fina e delicada. Outra pessoa passou um braço por minha cinturae eu pude me apoiar nela enquanto andava.

 — Você... Meu Deus! — eu ouvia os gritos que Emma dava desconectados. Ela nãoconseguira formular nenhuma frase ainda.

Eu mantinha meu rosto escondido em minhas mãos. Deixei que a consciência, quecarregava de brinde a vergonha, me varressem de cima a baixo.

Grigor estava sentado ao meu lado. Eu queria poder dizê-lo pra ir para sua sala, para nãose meter em confusão por minha causa, e que ele não tivera nada haver com aquilo  —  mas eu, se quer, conseguia tirar o rosto de minhas mãos.

Nem mesmo Emma tinha que estar ali; ela também não fizera nada de tão errado. Sealguém tivesse que ser suspensa ou até mesmo expulsa, esse alguém seria eu.A agressora.

 — Você... — Emma tentou de novo, ela respirou fundo e continuou: — Aquilo... Foidemais! Incrível!

 — Incrível? — eu funguei, ainda com as mãos em meu rosto.

 — Claro! A cara que a Emily fez foi impagável. Eu queria ter filmado aquilo... Imaginea cena no Youtube! — ela riu. Como uma pessoa poderia rir numa situação dessas? —  Eu tenho que contar isso para Luke, ele vai pirar!  — ela ria como uma criança com umdoce na mão. — Não se preocupe, vai ficar tudo bem. Você sempre foi muito boazinha,a diretora vai ficar chocada, é claro. Mas ela não iria colocar uma de suas melhores

alunas para fora.Certo. Mas e quando uma das melhores alunas esbofeteia a garota mais popular daescola, que por acaso é filha do homem que acabara de doar uma quantiaexageradamente alta para a nova biblioteca da Grand Lake High School?

Talvez eu devesse chorar para a diretora, a Sra. Clinton. Isso seria até mesmo esperadopor ela, mas eu não sentia vontade nenhuma de chorar. E o mais incrível, ou talvezinsano, era que eu não me arrependia nem um pouco de ter agredido Emily.

Eu me sentia envergonhada, mas isso não me fazia me arrepender do que tinha feito.

Minha mãe era a mulher mais forte, digna, honrada e sábia que já conheci; ela era umaótima advogada e sempre defendeu causas importantes. Alguém como Emily não tem

Page 77: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 77/168

nem sequer o direito de tocar em seu nome, quanto mais ofendê-la — mesmo elaestando morta. Eu nunca teria tomado aquela atitude se Emily tivesse direcionado suaira somente a mim.

 — A Sra. Clinton está esperando. — Trina uma das coordenadoras, avisou-nos.

Eu levantei meu rosto com toda a honra e determinação que alguém poderia ter naquelasituação.

 — Não precisa entrar. Você não fez nada, nem deveria estar aqui. — eu sussurrei paraGrigor.

A sala da Sra. Clinton era a típica sala de uma mulher ocupada: Muitas pilhas de papéisem sua mesa; envelopes transbordando de mais papeis; um telefone que nunca para detocar; ar condicionado ligado no máximo; uma mesa no centro — em que ela estavasentada logo atrás; e algumas cadeiras em frente a ela.

Ela estava com as duas mãos apoiando seu queixo, enquanto encarava-nos. Ela olhoupara mim e eu imediatamente abaixei meu olhar, a vergonha tinha avançado um passopara culpa.

 — Também está metido nisso, Sr. Lybieri? — disse ela, a voz era calma erazoavelmente baixa, meio rouca, mas que emitia comando.

Eu olhei para Grigor acusando-o; eu tinha dito para ele ir embora, e ele, é claro, não meobedecera. Eu observei incrédula, ele dar de ombros.

A Sra. Clinton suspirou.

 — Sentem-se.

 Não, não. Isso é muito ruim; não bastava dizer logo que eu estava expulsa? Eu mesentei no meio. Grigor ao meu lado direito e Emma no esquerdo.

 — Vejamos, me contaram que a Srtª Newton empurrou propositalmente a Srtª EmilyMorgan no estacionamento da escola. Confirma isso? — perguntou ela a Emma.

 — Sim. — respondeu ela; não havia um pingo de arrependimento ou medo em sua voz. — Depois disso, a Srtª Mathers discutiu e esbofeteou a face de Emily. Correto?

Eu somente assenti com a cabeça.

 — Agora não me disseram o que o Sr. Lybieri fez no ocorrido.

 — Ele não fez... — eu dizia, mas Grigor me interrompeu antes que eu pudessecontinuar:

 — Soquei a cara do Ryan. — ele disse isso como se contasse um, dois, três; simples.

Page 78: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 78/168

Onde eu estava quando isso aconteceu? Eu me lembro bem de ver Ryan atrás de Emilyo tempo todo e de depois Grigor me trazer até a direção.

 — Este é o seu segundo dia na escola. — lamentou-se a Sra. Clinton. Ela suspirou denovo.

 — Srtª Newton, explique-me o motivo que a fez derrubar Emily Morgan.

Emma suspirou e eu ainda continuava pasmado com o quão relaxada ela estava.

 — Aquela... — ela se interrompeu percebendo o olhar reprovativo da diretora. — Bom,ela andou espalhando boatos completamente falsos sobre mim e a minha família pela aescola toda!

Eu esperei a Sra. Clinton dizer algo, mas ela continuou muda e calma e direcionou seuolhar a mim.

 — E você Srtª Mathers, porque a agrediu?

Respirei fundo, ciente de que teria que escolher minimamente minhas palavras.

 — Emily ofendeu a memória de uma pessoa que infelizmente não está aqui para sedefender.

 — Sr. Lybieri tenho ótimas recomendações suas, não esperava isso logo no seu segundodia. O que o levou a agredir Ryan Brandon?

Grigor só deu de ombros e disse:

 — Ele é um idiota.

Eu vi Emma se controlar para não rir. Sra. Clinton massageou as têmporas e sorriu umpouco, um sorriso que não chegava aos olhos, meio irônico:

 — E esses são motivos suficientes para agredir uma pessoa?

Nem um de nós respondeu. Mas parecia estar escrito em nossas testas a palavra sim.

 — Anna a sua mãe era uma ótima advogada, você deveria saber, mais do que qualquerum nesta escola, que jamais devemos agredir um ser e que tudo pode ser resolvido compalavras.

Vi pela minha visão periférica Grigor sorrir de canto completamente sarcástico. Euassenti, esperando ela dizer logo o que seria o meu fim.

Não o fim, mas quase. Quais são as chances de alguém expulso entrar em uma boauniversidade? Talvez isso não fizesse mesmo parte do meu destino. Talvez eu tivesseque ficar nessa cidade para sempre, mas Molly não merecia isso; ela merecia conhecer o

mundo, ter uma vida, longe de Harry e dessas outras pessoas nojentas e falsas comquem convivemos.

Page 79: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 79/168

 — Emma e Grigor podem ir para suas salas, peguem uma anotação com a Srtª Sky eentreguem aos seus professores. — eu fiquei aliviada por pelo menos eles estarem foradessa.

 — E a Anna? — Emma inquiriu, ela colocou a mão sobre meu ombro.

 — Vamos conversar mais um pouco.

Quando eles saíram da sala, eu comecei a me acostumar com a idéia de sair da GrandLake. Aquela escola não era ruim — se olharmos do ponto de vista acadêmico, mastambém não era a melhor do mundo para formar alguém. Não que eu pudesse entrar emuma melhor do que essa agora sem desembolsar uma boa grana.

 — Sabe Anna, — Sra. Clinton se acomodou na cadeira. — O pai de Emily tem feitograndes contribuições para escola para garantir o futuro de sua filha, mais isso tambémda á todos os alunos um melhor aproveitamento. Emily é sua única filha e ele é um

homem muito ocupado por isso confia em nós para que cuidemos dela.

Por favor, diga logo que eu estou fora.

 — Mas eu sei o que está sentindo. — disse ela. Eu a encarei com desdém, não querendoser mal educada, mas como ela poderia saber isso? — Eu sei o que é não ter uma mãequando se é adolescente.

Pela primeira vez, eu realmente observei a Sra. Clinton. Ela usava óculos de grau delentes quadradas, tinha a pele clara, algumas expressões faciais que deixavam marcas ealgumas rugas ao redor dos olhos. Apesar disso, ela tinha uma serenidade que a deixavamais jovem.

 — Eu perdi a minha quando tinha a sua idade. — ela entortou a boca tentando sorrir. —  As outras garotas ocupavam suas mentes com garotos e eu só me afundava nos livrostentando esquecer a dor da perda. Fui alvo de chacota de meus colegas, mas nunca perdia compostura. Até que um dia uma garota... Ofendeu a minha mãe. Não estou dizendoque você fez a coisa certa, Anna. Isso foi completamente errado e merece ser punida,mas nós temos uma política de tratar todos os alunos igualmente e se você merece sercastigada por agredir Emily, ela também deve por denegrir você.

Arqueei uma sobrancelha, surpresa demais para dizer alguma coisa. — Vou pensar em algo para vocês. — garantiu-me ela. — Volte imediatamente para suasala, quando eu resolver qual vai ser o castigo, chamarei vocês quatro aqui.

Nós quatro. Isso incluía: eu, Grigor, Emma... E Emily!

Saí da sala da Sra. Clinton completamente inerte. Encontrei Emma e Grigor no corredorcorrendo o risco de serem pegos apenas para me esperar.

 — Como foi? — Emma me perguntou.

Page 80: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 80/168

 — Meio estranho. Ela disse que iria pensar num castigo para nós. — Resolvi omitir ofato de que Emily estava incluída no nós. 

 — Está vendo? Deu tudo certo. — ela cantarolou. — Balançamos o trono das cobras!Agora um empurrãozinho e ele despenca!

Eu suspirei e olhei para Grigor, que estava encostado em um armário. Ele me olhousorrindo, e aquilo me fez esquecer por um tempo inacreditável o que acabara deacontecer. Eu voltei a mim quando Emma começou a estralar os dedos querendo chamarminha atenção.

 — Perigo: Monitor se aproximando. Temos que correr!

Eu estaquei na frente da porta da Sala de Inglês. Eu estava uns vinte minutos atrasada — meu novo recorde — , e tinha certeza que no momento que eu entrasse na sala, todosos olhares se voltariam para mim.

Dei uma pequena batida. A porta foi aberta pelo Sr. Norton, antes que ele pudesse dizerqualquer coisa, entreguei-lhe o papel da direção. Ele abriu espaço para que eu entrasse.Minhas bochechas não poderiam ficar mais quentes do que estavam, eu tinha certeza.Escorreguei para a minha cadeira, esperando que as pessoas parassem de me olhar.Stacy, que estava sentada uma fileira a minha frente, virou todo o seu tronco para mefuzilar com os olhos.

 — Oliver me entregou sua redação... Pelo pouco que olhei está ótima! — ele piscou pramim. Espera! Oliver entregou minha redação? Eu olhei para o garoto sentado ao meulado. Ele estava com o queixo apoiado no punho de sua mão, parecia entediado, equando viu que eu o olhava deu mais um de seus sorrisos irritantes.

Eu não tinha uma redação — a menos que Oliver tenha colado pedacinho por pedacinhoda folha que eu tinha copiado daquela matéria estranha da internet. E aquilo tambémnão se enquadrava em uma redação.

 — É uma pena que tenha perdido a nossa brincadeira... — lamentou-se o Sr. Norton,Oliver riu baixinho. Isso não vai prestar. — Mas vamos fazer de novo, queremos sabero quão vocês sabem um sobre o outro, não é classe?Alguns murmúrios empolgados, já outros nem tanto. Eu comecei a comparar aquilo a

um Talk-show de horrores. — Vamos lá Oliver, — anunciou o Sr. Norton. Eu franzi as sobrancelhas, confusa. —  Descreva Anna em uma palavra.

Oliver não vacilou; e muito menos pareceu refletir.

 — Tentação.

A maioria das pessoas ali presentes riram, os únicos que se mantiveram sérios foramStacy — que me dirigiu um olhar assassino por cima do ombro — , o Sr. Norton que

olhava para mim e Oliver curioso sobre algo, e é claro, eu que deveria estar

Page 81: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 81/168

violentamente corada, além de também querer socar a cara de Oliver — O que não seriatão inesperado, já que agora eu deveria carregar a fama de ―valentona‖ pela escola toda.  

 — Interessante. — murmurou o Sr. Norton. — Anna, sua vez. Descreva Oliver em umapalavra.

Eu estava a um passo de dizer ―imbecil‖, mas eu não daria esse gostinho para Oliver;não queria ser previsível; e também estava cansada de seu olhar sarcástico, prepotente earrogante.

 — Redenção.

Não fez muito sentido para mim, primeiramente. Mas depois, não havia uma palavraque definisse melhor Oliver para mim do que esta. Porque nestes últimos dias que oconheço, eu fiz mais coisas irracionais e idiotas do que fiz a minha vida inteira, entãoera como se eu estivesse pagando por ter sido inerte, ou como todos dizem: ―boazinha‖,

por tempo demais. Minha redenção.

Na hora do almoço, eu entrei no refeitório e avistei Emma e Grigor na nossa habitualmesa. Puxei uma cadeira e me sentei, evitando o máximo olhar, mas tinha a consciênciade que metade dos alunos não desgrudava os olhos de mim.

 — Você está sendo mais vigiada do que artistas de Hollywood.  — Emma riu,apontando para o grupo de garotas que faziam parte do jornal da escola. Ótimo; á essahora eles já deveriam ter uma matéria sobre mim com uma manchete reluzente: Garotaespanca Emily Morgan. — Até os góticos viraram seus fãs.

Eu olhei para os garotos pálidos todos de preto no fim do refeitório que acenaramlentamente para mim. Eu dei de ombros.

 — Isso é coisa de momento, daqui a pouco todo mundo vai esquecer.  — nem eu meconvenci com minhas palavras.

 — Cadê a Emily? — eu dei uma rápida olhada para a mesa no centro do refeitório,contendo lideres de torcida, garotos de time de basquete, populares e atletas;

 — A cobra? Estou rezando para que ela esteja chorando no banheiro.

Eu bufei; o sentimento de culpa voltando. Eu ainda não tinha perdoado o que eladissera, mas eu tinha consciência de que Emily era só uma criança mimada querendochamar atenção.

 — Chama ela de cobra? — Grigor riu. Uma risada macia e doce.

 — Uhum, — Emma entoou. — E aqueles que a seguem, chamamos de cópias. Tá vendoaqueles caras? — ela apontou para os garotos do centro. — São Rick e Scott, - não mepergunte quem é quem -, eles são como ratos: Vivem seguindo o idiota do Ryan.

 — Você bateu mesmo no Ryan? — perguntei a Grigor.

Page 82: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 82/168

 — Não, mas eu vou. Só dei um aviso à diretora caso ela o veja andando por ai com umolho roxo. — ele piscou para mim.

 — Tá vendo, Anna? É esse o espírito!

Eu revirei meus olhos, mas ri também. Parei quando no fundo do corredor duas figurassurgiram. Era Emily, o rosto já não tinha nem um pouco de vermelhidão, e ela sorriaradiante.

Mas o que me deixou paralisada foi à segunda figura que vinha abraçada com ela:Oliver Coleman.

Deveria me sentir grata pelo holofote ter saído de cima de mim. Mas naquele momento,eu não sentia nada. Foi como uma acotovelada pelas costas. Como uma queda; você ficadurante alguns segundos sem reação.

 — Céus! — Emma exclamou ao meu lado. Ela deveria estar tão incrédula quanto eu. —  Isso me dá nojo!

Eu queria sentir nojo também. Mas eu não sentia. Somente um sentimento, que eu nãosabia definir, tomou o meu peito; sugando todos os pensamentos racionais para dentro.Sai do refeitório e ignorei o sinal da minha próxima aula. Droga de garoto idiota! Eunão deveria ter confiado nele! O que eu estava pensando? Aliás, por que aquiloimportava?

Oliver era de perto um conhecido. Não tínhamos ligação alguma e ele só estava comigopara fazer aquele maldito trabalho. E agora que tudo acabou, era normal que eleresolvesse se socializar com pessoas mais interessantes; mas eu no fundo não esperavaque isso acontecesse tão rápido e que essa pessoa fosse justo a Emily.

Abri a torneira da pia do banheiro. Lavei meu rosto e prendi minha respiração durantealguns segundos e quando não agüentei mais levantei minha cabeça para respirar.

Minha visão estava embaçada, mas eu pude ver a frase escrita bem na minha frente emvermelho vivo:

Isso é só o começo!

Eu dei um passo para trás. Aquilo não estava ali, eu teria visto  — ou estava tãotranstornada que não percebera nem mesmo alguém entrando no banheiro e escrevendoaquilo bem na minha frente?

Toquei o que parecia ser sangue, mas eu sabia que não era. Tinha cheiro de morango, eacho que poderia ser algum tipo de batom. Peguei papel higiênico, molhei e comecei alimpar.

Aquilo era loucura! Deveria ser alguma brincadeira que alguém quis fazer, nem deveria

ser para mim. Deveria estar ali o tempo todo, e só naquele momento eu tinha visto. Éera isso!

Page 83: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 83/168

 Eu senti a respiração do corpo que estava atrás de mim em meu pescoço. Com o sustominha mão escorregou pelo espelho, espalhando mais ainda a mancha vermelha.

 — Estamos atrasados. — Grigor sussurrou.

Eu me virei para ele.

 —  Está querendo me matar de susto? E o que está fazendo aqui? É um banheirofeminino.

Ele deu de ombros.

 — Isso é leve comparado com as regras que já quebrei.  — garantiu-me, sorrindo decanto — A diretora te obrigou a limpar os banheiros da escola?

 — Não eu... — dizia enquanto me virava de volta para o espelho. Estaquei diante do

reflexo completamente limpo de nós dois, sem nenhuma macha. — É...

Eu não sabia o que dizer. Porque eu tinha certeza que não tinha chegado nem perto determinar de limpar aquele borrão imenso.

 — Não me diga que você é maníaca por limpeza!

 — Não, — eu balancei minha cabeça. — Esqueça. — eu disse mais para mim do quepara ele.

 — Temos Ed. Física agora. Acho que o banheiro é um lugar meio obvio para mataraula.

Deus! Eu estava matando aula! Isso era abusar demais da sorte...

Mas eu não tinha a menor remota vontade de olhar na cara de Emily de novo, então eume convenci de que matar aula era apenas uma conseqüência disso.

 — Não quero sair daqui. — eu tentei deixar a minha voz o mais normal possível.

Eu me virei de volta para ele. Só agora eu tinha percebido o quão próximo nós

estávamos; a consciência disso fez com que um arrepio subisse por minha espinha. — Então vamos correr o risco de sermos pegos... — ele sussurrou. Um novo arrepio,agora em meu corpo inteiro. Ele tinha um hálito delicioso e afrodisíaco. A boca dele eratão vermelha e carnuda de perto. — Não quero ser pego num banheiro feminino pornada, você quer?

Eu mal tinha ouvido o que ele tinha dito, estava hipnotizada pela forma como seuslábios se moviam. Mexi com a minha cabeça negativamente, mais para sair do transe doque para respondê-lo.

E quando seu rosto chegou mais perto do meu, minhas pernas fraquejaram e eu preciseime apoiar na pia trás de mim para continuar de pé. Eu sentia a respiração dele em meu

Page 84: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 84/168

nariz, era como se duelássemos pelo mesmo oxigênio naquele curto espaço. A jaquetade couro dele roçou na pele arrepiada de meu braço quando ele também apoiou as mãosna pia.

 — Então vamos ficar e dar um motivo decente a eles para nos levarem de novo para adireção.

E então os lábios dele vieram urgentes aos meus.

E de repente eu precisei mais do que a pia para continuar de pé.

Eu não sabia como se fazia aquilo direito; eu não tinha muita experiência com garotos.Emma praticamente tinha me jogado para cima de um uma vez. Eu nem lembro o seunome e a experiência não foi nem perto de quase bom; Quanto mais perto disso.

Os lábios dele eram macios e doces, mas ainda assim exigentes. As mãos dele puxaramminha cintura para mais perto, e eu levei em conseqüência minhas mãos até a sua nuca

aproveitando para passar os dedos por seus fios arrepiados e pude sentir a maciez.

Eu estava em transe, mas fui puxada de volta quando um barulho veio da porta.  Não,não.

Minha racionalidade ainda não tinha voltado quando Grigor se separou de mim. Ele mepuxou até uns dos cubículos e fechou a porta. Eu estava ofegante e vermelha, e mal eracapaz de lembrar meu próprio nome.

Escutei leves passos no banheiro, zonza cambaleei para frente e pelo espaço serextremamente pequeno — feito apenas para uma pessoa, e não para duas  — acabeitrombando com Grigor, que me pegou antes que eu batesse com a cabeça na porta.A torneira da pia foi aberta; a garota — eu supunha — parecia lavar algo. Eu estava merecuperando do transe e tentando me lembrar de respirar quando um ofegar de dor veiodo lado de fora.

Algo começou a pingar no chão, eu imaginei ser a água da torneira. Criei coragem paraencarar Grigor. Ele tinha a testa franzida e uma expressão confusa no rosto. Eu, entãonotei no que tinha me metido; se alguém nos visse juntos num pequeno cubículo o queiria pensar?

Céus!Voltei a encarar o chão. O azulejo branco do banheiro estava com uma coloraçãoestranha. Ou melhor, machado de um jeito estranho, algo parecido com terraavermelhada parecia ter sido arrastada por todo o piso.Eu tentei me agachar, curiosa para saber o que era aquilo. Quando um pequeno pingovermelho caiu ao chão e manchou ainda mais o piso, eu me esforcei para ver melhor oque acontecia ali. E de repente algo vermelho começou a escorrer de algum lugar emgrande quantidade. Era como se tivessem colocado corante na água que derramava dapia.

O liquido viscoso começou passar pela fresta da porta por onde eu olhava, quando iaencostar meu dedo nele, Grigor agarrou meu braço com uma força demasiada forte.

Page 85: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 85/168

 Eu o olhei confusa, ainda um pouco envergonhada.

 — Não toque nisso! — havia uma urgência em sua voz mesmo sussurrada, que eu nãodetectei primeiramente. — Escute bem, eu vou sair. Espere alguns segundos, feche osolhos... E corra! Não chame ninguém, somente vá para casa!

 — O que está acontecendo?

Mas ele somente saiu sem me responder. Meu coração começou a bater forte em meupeito, mas estava confusa demais para ter um ataque de pânico. O liquido vermelho seespalhou por todo o cubículo. Disposta a sair daquela situação o mais rápido possível,abri a porta.

Eu me esqueci da parte em que ele me mandou fechar os olhos — o que agora eupercebia que deveria ser a parte mais importante. Porque ali bem na minha frente, umagarota se debatia no chão completamente transtornada. E o liquido vermelho que

manchava todo o piso branco, não era um liquido qualquer; Era sangue. Era o sanguedela.

Tapei a minha boca com minha mão, e busquei por Grigor. Ele estava olhando para agarota, não havia emoção nenhuma em seu rosto e sua face era severa e fria. Os olhosdele estavam mais verdes do que nunca — como uma esmeralda ou um diamantebrilhando no sol.

Eu não podia mais ver aquilo. Mas não importou que eu saísse daquele local; a imagemme perseguiu por todos os lugares que eu passei correndo.

Porque aquela garota não era uma garota qualquer; Ela era Emily Morgan.

Page 86: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 86/168

OITO.

 — E então Mendison Palmer disse que queria ser Julieta, mas ela não conseguiu acertarnem uma fala e a Srtª Evans disse que Mendison poderia ser outra personagem  — Molly

dizia animada, ela estava sentada na mesa da cozinha com os pés balançando no ar.  —  Eu não queria ser essa tal da Julieta, mas ela me escolheu então resolvi aceitar.

Eu movi meu corpo vagamente até a geladeira e abri o freezer encontrando caixas emais caixas de congelados.

 — Parabéns. — minha voz não tinha um pingo de vida. — Só temos pizza demussarela.

Meu cérebro trabalhando lentamente.

 — Você está bem? — perguntou ela, a testa franzida levemente.

 — Estou. — minha voz tão baixa que era como se eu não tivesse falado. — Por quê?

 — Está estranha desde que chegou da escola... — disse ela, a voz fina de soprano e docepreocupada. — Luke ligou, ele disse pra eu te dizer que o avô dele te quer de escravaenquanto você não volta a trabalhar no restaurante.

Trabalhar com o Sr. Chan? Seria a melhor coisa do mundo! Eu teria revirado os olhosao som de escrava se meu cérebro não estivesse falhando de dois em dois segundos.

 — Eu ligo pra ele depois.

Mas eu não liguei para Luke. Depois de me certificar que pelo menos Molly tinha jantado naquela casa, eu subi para o meu quarto e me tranquei lá dentro.

Minha cabeça girava, e eu sabia que não conseguiria dormir;

A sensação era parecida com a de ter assistido um filme de terror; a diferença era que eusabia que era real; que tinha acontecido de verdade. Era Emily se debatendo jogadanaquele chão como se estivesse convulsionando; jorrando sangue sem parar; o sangue

dela.

Fui até o banheiro e lavei meu rosto repetidas vez. A náusea tomando conta de todo omeu corpo, me fazendo perder o controle dele.

Não sabia quanto tempo havia se passado desde que sai correndo da escola  — Descobritambém que era fácil fugir dela, talvez fosse somente sorte, mas quando eu atravessei oportão da Grand Lake High School, ninguém me parou.

Lá fora um silêncio incômodo tomava a escuridão. Harry tinha pegado um plantãonoturno, e somente eu e Molly estávamos em casa. Ela deveria estar dormindo em seu

quarto, eu não sabia que horas eram.

Page 87: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 87/168

Resolvi tomar um banho com a esperança de que a água quente do chuveiro meacalmasse. Mas, é claro que não deu certo. Percebi isso nos primeiros cinco segundos,que foram o suficiente para eu quase desabar num choro exasperado e meio semsentido.

Saí do Box e vesti minhas roupas íntimas e uma fina regata  — curta demais para sechamar de blusa — , sem coragem para procurar qualquer roupa dentro do armário paravestir, enrolei-me numa toalha e voltei para o quarto.

Um vento frio passou pela janela, levantando as cortinas e os pelos dos meus braços.Caminhei até ela e a fechei, tendo o cuidado de também fechar as cortinas.

Foi por um segundo, mas minha visão periférica detectou a sombra que se moveu naescuridão. Antes que eu pudesse gritar, a palma de uma mão foi colocada em cima demeus lábios fazendo de meus gritos simples murmúrios.

Comecei a me debater contra o corpo atrás de mim, disposta a me soltar de seus braços.Ele rapidamente prendeu minha cintura com a sua, aumentando o aperto para que eunão me soltasse.

 — Calma, garota. — ele murmurou. Eu conhecia aquela voz o suficiente para querer mesoltar ainda mais rápido possível dele.

Eu levantei uma perna e com toda força que tinha a impulsionei para trás, fazendo umaespécie de alavanca, me impulsionando para frente e conseguindo me soltar dele.

 — O que está fazendo aqui? — cuspi para ele, e como não me pareceu o bastante e nemo correto, completei: —  Como você entrou aqui?

Ele aparentando estar bem relaxado se sentou em minha cama e me olhou de cima áabaixo. Eu ofeguei me lembrando o que vestia, ou melhor, o que eu não vestia.

 — Subi pela janela. Foi fácil. — Oliver respondeu-me, eu mal o enxergava no escuro, ea minha única esperança era que ele também não estivesse me vendo.

Eu não acreditaria nele, mas era isso ou ele tinha atravessado a porta, porque ela estavaperfeitamente trancada.

Respirei fundo, tentando inutilmente me acalmar.

 — Saia do meu quarto. — E isso pareceu mais uma súplica desesperada do que umaordem.

Ele riu baixinho, mesmo estando longe seu riso me provocou arrepios.

 — O que foi, Anna? Você pode se trancar num banheiro com um cara que mal sabe onome, mas não pode receber a visita de seu amável vizinho?

 — C-como sabe disso? — perguntei, tarde demais para negar o que ele dizia e maistarde ainda para retrucar seu ar irônico.

Page 88: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 88/168

Ele não respondeu. Eu respirei fundo.

 — Você... Você viu a Emily? — perguntei sem conseguir dizer o que realmente queriaperguntar. Respirei fundo de novo e atirei para ele: — O que você fez com ela?

 — O que eu fiz? — perguntou retoricamente, o tom exaltado e raivoso desta vez. Eutremi involuntariamente com sua ira. — Eu não fiz nada, você deveria perguntar aqueleservo o que ele anda fazendo!

 — Está falando do Grigor? — meu cérebro um pouco desperto pelo medo começou atrabalhar em total confusão. —  Servo? Do que você está falando?

Meus olhos já estavam se acostumando com a pouca luz, e eu já podia ver um sorrisoduro surgindo em seus lábios.

 — Eu achava que você era uma garota esperta, Anna. — disse ele. — Eu revelei que

não sou bom desde que você me conheceu, e ainda, contra os meus princípios, disse queele também não é. Mas é claro que ele conseguiu te hipnotizar! Eu me pergunto qual vaiser o fim disso...

Eu cambaleei para trás em busca de apoio. A confusão tinha se transformado numanáusea que fazia todos os meus músculos doerem dormentes.

 — Eu não sei sobre o que você está falando, e não estou pronta para desvendar os seusmalditos mistérios agora, mas eu preciso saber... — suspirei cansada. — Grigor e vocêtiveram alguma coisa haver com o que aconteceu com Emily?

 — O que aconteceu com ela?

 — Não se faça de desentendido! — gritei para ele. — Como você sabia que nósestávamos no banheiro? Eu vi você no refeitório com ela e depois ela entrou nobanheiro... E aquele sangue... E...

Eu escorreguei pela parede atrás de mim derrotada. Não podia pensar e muito menosracionalizar porque agora a imagem de Emily naquele chão branco tomava toda minhamente. A dúvida agora me confundia sob todos os aspectos, ela me rondava como umbeco sem saída.

Mal vi quando Oliver se aproximou de mim. Eu me encolhi no chão disposta a não merender a névoa de seu cheiro. Não sabia o que fazer, mas não podia me render a isso.

O fato era que desde que Oliver e Grigor chegaram, a minha vida anda saindo docontrole. Eu tomei decisões arriscadas e pus em risco tudo que venho ansiando desdeque perdi a pessoa que mais amei em minha vida. E agora nada parece fazer sentido.Ele se sentou próximo de mim e suspirou.

 — Me... Desculpe?

Eu ofeguei, havia um milhão de coisas que ele poderia se desculpar comigo, masnaquele momento eu não me lembrava de nenhuma importante.

Page 89: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 89/168

  — Pelo o que?

 — Eu não sei. — ele deveria estar sorrindo, não o seu sorriso irônico e irritante e sim oseu sorriso natural... Perfeito. — Eu não queria fazer isso, e não queria estar aqui. Masacho que se eu não fizer nada... Isso vai ser pior do que se eu fizesse.

 — Por que fica fazendo essas charadas comigo? Por que não me diz logo o que estáacontecendo?

 — Porque não é tão fácil assim.

Eu levantei meu rosto para encará-lo.

 — Eu... Hoje percebi que nada é fácil. — comecei, tentando me segurar para nãocomeçar a chorar na sua frente. — Vi coisas demais... Ando sentido coisas estranhas, edepois aquilo no banheiro. Eu queria que estivesse ficando só maluca, seria mais fácil se

eu soubesse que é só coisa da minha cabeça. Mas não é . Eu vi Emily Morgan quasemorrendo se esvaindo em sangue!

 — Talvez esse seja o motivo que eu tenha que me desculpar. — ele sorriu, e sim, eleusou o seu sorriso perfeito. — Eu só estou na platéia, observando.

 — Faça alguma coisa então. — pedi-lhe.

 — Já disse que não é tão fácil assim. — ele me encarou, a luz baixa não impedia queseus olhos me sugassem para dentro do buraco profundo. — Se eu fizer... Se eu decidirfazer isso... Vai ser uma verdadeira guerra.

 — Você está com medo?

 — Não. — ele parecia ofendido. — Eu só não quero me meter nisso... Não quero voltara ser um servo como ele.

 — Não quero que você volte a ser isso... Seja lá o que signifique. Só quero que façaalguma coisa. Estou cansada de ficar tentando te entender, se vai continuar meconfundindo é melhor fazer isso direito... Eu não tenho medo de você — eu disse, edesta vez isso realmente saiu sincero. — E eu tenho a consciência de que mal entendo o

que estou te pedindo, mas não importa: Faça alguma coisa!As palavras saíram de minha boca por conta própria. E eu não esperava que ele fosseme ouvir e muito menos que ele fizesse o que ele fez. Porque Oliver simplesmente mepuxou para ele e colou nossos lábios sem aviso prévio, sem hesitação.

A língua dele tocou a minha sem pudor, e suas mãos puxavam a minha cintura cada vezmais para perto, colando nossos corpos sem nenhum desprovimento. Minha pulsaçãoacelerou e eu cravei minhas unhas em seu pescoço quando ele se jogou comigo no chãoficando em cima de mim, me tendo absolutamente sob seu controle.

Page 90: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 90/168

Uma parte insignificante do meu cérebro me advertiu sobre aquilo, porque afinal o quediabos eu estava fazendo? Rendendo-me ao Oliver quando agora eu sabia que as coisassaíam dos trilhos quando isso acontecia?

Obriguei-me a tentar me soltar dele, mas Oliver tinha outros planos. Ele prendeu minhas

mãos com as suas, como algemas sob minha cabeça e continuou a me beijar dessa vezcom mais calma, mas ainda assim com certa urgência.

 — Não. — eu balbuciei em sua boca e foi como se eu nem tivesse dito nada, na verdadepareceu mais um gemido. Eu quis me chutar por isso.

Eu estava sem forças e trêmula completamente entregue e envolvida por seus toquesquando um grito agudo atravessou as paredes do meu quarto. Eu me debati contra ele nomesmo instante, e então ele me soltou.

Eu corri para a porta e demorei mais do que o esperado para abrir, disparei pelo

corredor e encontrei a porta do quarto de Molly escancarada. Um novo grito. Pudeperceber que vinha da escada.

 — Ele voltou, Anna! Ele voltou! — e então ela gritou novamente.

 — Quem?

 — O homem do meu quarto. Eu o vi de novo! Não estou inventando ele é real, eleestava lá, ele disse umas coisas...

Eu suspirei metade de mim ainda atordoada a outra sem saber o que fazer.

 — O que ele disse? — Oliver perguntou.

Eu quis chutá-lo, eu quis me chutar. Eu deveria saber lidar com isso, já que não era aprimeira vez que acontecia. Deveria ter pegado um daqueles livros de como ajudar seufilho — mesmo que a bibliotecária me olhasse suspeita.

 — Ele disse... — ela forçou as sobrancelhas. — Ele disse que isso é só o começo.

Algo em mim foi desperto. Meu coração parou por um segundo e depois começou a

bater forte em meu peito. A imagem da frase no espelho parecia estar viva em minhamemória. Eu sacudi-a a tempo de ouvir Oliver dizer:

 — Já o tinha visto antes?

 — Sim. Mas eu não me lembro direito, eu me esqueço, mas desta vez não! Vocês têmque acreditar em mim! Eu não estou inventando.

Meia hora depois Molly cochilava no sofá. Eu tinha subido e colocado roupas e estavame preparando para encará-lo de novo.

Page 91: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 91/168

Meu cérebro agora trabalhava rapidamente e agora a frase ―Que diabos eu fiz?‖ pareciaser a única no meu vocabulário. Desci as escadas de dois em dois degraus, tentando meconvencer que o quão mais rápido eu começasse aquilo mais rápido terminaria.Eu estava com esse pensamento quando a capainha da porta tocou. Eu poderia estarainda atordoada, mas sabia que já se passava da meia-noite e que normalmente visitas

vinham de dia — a não ser que essa visita fosse, usando suas próprias palavras, meuamável vizinho.

Caminhei até a porta, Oliver estava sentado no braço do sofá, mesmo este estandovazio me encarando, eu torci que minhas bochechas só estivessem ardendo por dentro.

 — Quem é? — minha estava um tom acima do normal, Molly se remexeu no sofá.

 — Espero não incomodar. — eu a abri imediatamente.

 — Grigor? O que... — eu suspirei, parecia que todas as minhas perguntas começavam

com ―o que‖ em vez de ―por que‖. Eu desisti de tentar dizer algo.

 — Está sozinha? — perguntou ele.

Eu abri a boca para responder, mas Oliver, o meu amável vizinho fez o favor derespondê-lo:

 — Não. — e o não dele soou mais como um vá embora.

Ele estava atrás de mim, e eu podia ver a conexão que os olhos de Grigor tinham com osdele, ele mal piscava. Um sorriso ameaçador surgiu em seus lábios.

Revirei meus olhos e bem, eu tinha duas opções. A primeira era mandar Grigor entrar, ea segunda era mandá-lo embora, e nisso eu poderia pegar carona e mandar Oliverembora também.

Mas eu tinha perguntas; Perguntas que precisavam de respostas urgentemente e que seeu não fosse esperta acabaria louca e sem elas. Então eu coloquei meu melhor sorriso norosto e disse:

 — Entre.

Eu tinha usado a desculpa de colocar Molly na cama para me recuperar um pouco. Eupoderia usar uma abordagem direta ou indireta — se é que é possível ser indiretaquando se quer ir direto ao ponto.

Quando estava voltando estaquei no topo das escadas, ouvindo:

 — Não se meta nisso! Volte para onde você veio! — A voz de Oliver era coberta deódio.

Um riso zombador preencheu o ar.

 — Pelo menos eu posso voltar... O que? Acha mesmo que vão deixar você fazer isso.

Page 92: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 92/168

  — Eu não me importo se eles deixam ou não, ela é minha.

 —  Sua? — a voz de Grigor tinha um tom de surpresa misturado com revolta. — Elaestaria morta se eu não tivesse aparecido. Você não se importa com nada.

 — Tem razão, não me importo. — concordou Oliver. —   Não sou tão diferente de você.

 — Você está enganado, eu me importo.

Desta vez foi Oliver que riu.

 — Até que Lunabella chegue. — ele parou de rir ao dizer isso e quando falou de novosua voz era fiada e dura como aço — Não vou deixar você seguir adiante com isso.

Eu terminei de descer as escadas e parei no último degrau. Meus braços cruzados com

força ao redor de meu peito enquanto eu repetia um milhão de vezes à conversa deles.

Foi como antes, num momento eu estava os olhando e no outro tudo tinha ganhado umaspecto enegrecido e em preto e branco.

Eu estava na mesma floresta da minha primeira visão. Escutava ao longe as pessoasgritando e uma leve luz avermelhada atravessava a escuridão. Eu caminhei atordoada,como nas outras vezes, em direção as vozes que ficavam cada vez mais fortes.

Mas algo chamou minha atenção antes que eu pudesse chegar até elas, ouvi um tilintarde sinos atrás de mim. Eu me virei e caminhei na direção contrária em que estava indo.Eu podia ver a figura se movendo como um fantasma na escuridão vindo em minhadireção. Eu esperava que ele também me visse, mas isso não aconteceu. Minutos depoisoutra figura apareceu por entre as árvores, eu não sabia distinguir se eram homens oumulheres.

 — Acalme-te. — a voz era suave e profunda. — Já és tardes, tu tens de saíres daquiantes que o peguem-lhe.

A luz vermelha dançou pela escuridão, e iluminou o rosto da figura que acabara defalar. Eu o conhecia, ele era o mesmo homem ensangüentado da escadaria.

 — Não! — a outra voz era forte e determinada. — Não posso ficar sem ela... Nãoimporto-me mais com nada. Todavia quero que faças uma coisa por mim, Lorenzo:Mate-me!

 — Estás louco? — a luz vermelha vacilou no rosto de homem, enquanto ele se encolhiaparecendo chocado.

 — Eis de morrer de quaisquer maneiras, porém o que me atormentas és que nãoimportas o lugar para onde eu fores... Ela não estarás lá. Tenho que morrer hoje; tenhoque morrer agora, enquanto ainda és Lunabella!

Page 93: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 93/168

E depois eu voltei a mim. Minha respiração estava irregular e eu me apoiei no corrimãoda escada para não cair. Fiz menção para que nenhum dos dois se aproximassem.

Deixei os minutos passarem analisando-os cuidadosamente. Nenhum dos dois se mexia,pareciam estátuas — ou monumentos — no meio da sala.

 — O que é isso? — Oliver perguntou de repente.

 — Isso o quê?

Ele não respondeu de imediato, seus olhos varreram a sala em busca de algo.

 — Tem alguma coisa errada. — murmurou ele.

 — Sim, tem. — disse Grigor. — Você está aqui.

Oliver sorriu seu melhor sorriso irritante e provocativo.

 — Eu posso sair. — ele deu de ombros. — Mas levaria a Anna comigo, precisamosterminar o que começamos. — ele piscou para mim.

Revirei meus olhos, tentando impedir o rubor que tomava conta da minha face.

 — Chega. Eu vou direto ao ponto: O que houve com a Emily?

Eu encarei Grigor, analisando-o firmemente, tentando não me desconcentrar com seurosto perfeito.

 — Ela vai ficar bem. — prometeu-me ele.

 — Não perguntei isso. — gesticulei irritada. — Quero saber o que aconteceu com ela!

E então eu escutei um barulho estranho. Parecia algo sendo arrastado e quebrado. Evinha do segundo andar. Eu disparei escada acima, mas antes que eu pudesse alcançar otopo delas uma mão se fechou em torno de meu braço.

 — Tenho que tirar você daqui. — disse Grigor, ignorando minhas tentativas de tentar

me soltar. — Solte-a. — a voz de Oliver estava próxima.

Eu me aproveitei que Grigor tinha se distraído e me soltei de seu aperto. O som vinhado meu quarto e a porta estava fechada.

Entrei no quarto de Molly e suspirei aliviada quando a encontrei em sua cama.

 — Moll, — chamei. — Molly!

Ela se remexeu.

Page 94: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 94/168

  — O que? — a voz era manhosa.

 — Temos que sair daqui.

Segundos depois, eu e Molly estávamos no carro de Grigor e eu já tinha ligado umas

cinco vezes para policia, e nada de eles chegarem.

Tinha algum estranho dentro da minha casa, e eu não estava falando de Oliver.

 — Cadê o Grigor? — eu perguntei quando ele entrou no carro ocupando o banco domotorista.

 — Ele acha que pode cuidar disso. — Oliver deu de ombros.

Meu queixo caiu. Grigor estava sozinho com um possível ladrão, serial killer, oulunático na minha casa?

 — Por que não podemos ficar na nossa casa?  — Molly perguntou no banco de trás.

Oliver pareceu refletir um pouco antes de soltar, sorrindo:

 — Porque lá tem um rato, e um cara tentando matá-lo. — respondeu arrancando com ocarro.

Eu peguei meu celular e disquei de novo para a polícia. — Aquele garoto vai matar o rato? — Molly disse surpresa. — Ele é corajoso!

Ele é maluco isso sim!

Meu celular desligou sozinho depois do segundo toque. Droga de bateria! Porque eusempre fico sem celular quando eu mais preciso dele?

 — Vamos ficar rodando pela cidade, enquanto Grigor está sozinho na minha casa?

 — Eu te levaria para jantar... Se tivesse algum restaurante aberto á essa hora. — ummeio sorriso surgiu em seus lábios vermelhos.

Eu revirei meus olhos. —  Podemos ir ao McDonald‘s! — Molly disse animada.

Ela estava se empanturrando com o seu Mc Lanche Feliz no banco de trás, quandoOliver manobrou para fora do Drive thru.

 — Isso é muito legal, esse rato poderia vir a nossa casa mais vezes!

Oliver riu completamente relaxado, eu não encontrava motivos para ele estar assim.

 — Não se preocupe. — disse-me ele.

Page 95: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 95/168

 — Está com medo do rato não sair de lá, Anna? — Molly perguntou inocentemente.

Eu suspirei e só fiz que sim com a cabeça.

 — Por que ele acha que pode cuidar disso sozinho? Ele está se achando o que? Um

super-herói?

Oliver riu como se eu tivesse contado a melhor piada do mundo.

 — É só um rato, Anna. — Molly disse para me tranqüilizar. — Não vai te machucar. —  ela colocou uma batata na boca e sorriu.

Eu estava me lembrando exatamente disso quando acordei pela manhã no meu quarto — que tinha encontrado exatamente como tinha deixado: sem nenhum móvel fora dolugar e nada quebrado.

Rondando a minha total confusão havia certo alívio por, pelo menos, não ter acontecidonada de muito grave se eu olhar toda a situação de um ponto de vista físico — porque seeu for encarar tudo de um ponto de vista mental perceberia que a coisa está feia, muitofeia!

As visões; os pesadelos de Molly — que ela jura serem reais; um estranho na minhacasa; Emily no banheiro; a frase que simplesmente sumiu do espelho; Tudo isso, e paracomplicar ainda mais Grigor e Oliver me confundindo, me tirando do controle de minhamente.

Decidi não ir à escola hoje. Seja lá o que tivesse acontecido com Emily eu iria descobrirde qualquer jeito. Neste momento eu precisava desabafar sobre tudo que vinha meatormentando nos últimos dias.

Estava à meia-hora sentada de pernas cruzadas no tapete da sala do Sr. Chan. Eleparecia flutuar pela casa, ás vezes limpando, ás vezes bagunçando.

 — Luke está na escola. Eu disse a ele que se não quisesse não precisava vir trabalhar naloja. — disse-me ele, a voz sutil típica de orientais. — Ele não parece gostar disso tudocomo eu.

Ele suspirou. Observei a xícara de chá listrada com desenhos geométricos que eu malbebi em minhas mãos; Tinha gosto de hortelã, açúcar, canela e algo mais  — o Sr. Channunca revelou o que colocava em seu chá.

O Sr. Chan trabalha naquela loja desde que era criança. Pelo que sei, o avô dele viajavapelo mundo todo e quando chegou a Atlanta resolveu criar uma loja com um pouquinhode tudo que viu e conhecia. O que resultou na Lunabella, que tinha a tradicional legendaem baixo do nome na fachada: ―Viaje, suma e se encontre, sem sair daqui.‖

Page 96: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 96/168

 — Sr. Chan, — chamei-o. — Por que o nome Lunabella?

Essa era uma das perguntas que surgiram em minha mente sem eu dar muita atenção. Eu já havia escutado esse nome umas duas vezes nas minhas visões estranhas e só agorahavia conciliado os fatos.

Sr. Chan sorriu repuxando os lábios finos, e fazendo seus olhos pequenos e puxadosquase sumirem.

 — É uma longa história que vem sendo passada de geração em geração por minhafamília. — começou ele. — Eu tentei contá-la a Luke uma vez, mas ele me deixoufalando sozinho antes mesmo de eu chegar à metade. Tem certeza que quer ouvi-la?

Eu dei de ombros.

 — Eu tenho tempo. — retribui seu sorriso, mas era muito superficial para parecer

natural.

 — Dizem que há uma única noite em que tudo pode acontecer. Em que todos os portaisde todos os mundos ficam abertos e que é possível atravessá-los sem ser convidado. —  disse ele suavemente. — Uma noite sem estrelas, e de uma lua tão bela que ofusca tudoe parece estar viva no céu.

―Tudo começou com uma garota, não se sabe muito sobre ela nem mesmo onde elaviveu tudo que sei sobre ela é que ela era muito bonita. Ela sabia sobre Lunabella etodas ás noites olhava o céu com a esperança de que fosse a tal noite magnífica. Essanoite, para muitos não é nem um pouco romântica, mas a garota achava que Lunabellaera o melhor dos contos de fadas.‖

―Havia milhares de histórias sobre essa noite, uns diziam que quando ela chegasse seriao fim do mundo, outros diziam que seria o dilúvio para um novo mundo. Já a garotaachava que em Lunabella poderia realizar todos os seus sonhos e encontrar o seuverdadeiro amor.‖

―E Lunabella chegou, mas ninguém percebeu somente ela. A garota fugiu para a florestae subiu até o lugar mais alto da montanha para chegar mais perto da lua.‖

―Ela foi encontrada algumas horas depois, estava pálida, ensangüentada e seus olhoseram negros como a noite. Foi acusada de bruxaria, mas a grande maioria das pessoasachava que ela havia sido possuída por um demônio. Queimaram-na em uma fogueirana mesma noite. Na noite de Lunabella!‖

―Depois disso começaram a achar que em Lunabella os demônios passeavam livres pelaterra e que quem fosse possuído por eles deveria ser queimado em uma fogueira paraque o demônio fosse destruído e ficasse preso a esta noite sem poder vagar por nenhum

 plano ou mundo.‖

Respirei fundo ainda olhando o Sr. Chan.

 — Ainda não entendi porque a loja tem esse nome. — confessei.

Page 97: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 97/168

Ele sorriu.

 — Meu avô colocou esse nome na loja porque, ao contrário dos seus antecessores, eleacha que Lunabella é perfeita porque nela se encontra de tudo: o amor, a raiva, adeterminação, a liberdade... Tudo! Em Lunabella pode-se fazer tudo! Não importa o que

seja, nem o que aconteça... Lunabella é mágica!

 — E quanto ao livro?

Sr. Chan franziu as sobrancelhas brancas e finas.

 — Que livro?

 — O livro de Lunabella que eu encontrei na prateleira e Luke disse que eu poderialevar. — resolvi poupar o Sr. Chan da parte em que ele disse que aquilo era um lixo.

 — Nunca soube de livro nenhum. — respondeu-me ele. — Tem muitas coisas nessaloja que o meu avô trouxe. Tem algo sobre essa história nesse livro?

 — Não, está todo em branco!

Eu coloquei uma mecha de meu cabelo para trás, enquanto repetia a história em minhamente. Ela perecia surreal e fantasiosa demais para que eu acreditasse em algo, mas nãopodia negar o fato de que a parte em que a encontraram ensangüentada mexeu commeus nervos, afinal eu mesma encontrei Emily nesta situação.

Mas o que diabos eu estou pensando?, perguntei a mim mesma.

Emily está bem, e isso é só uma história.

Respirei fundo e me fiz prometer de que no momento em que encontrasse Grigor iriaconfrontá-lo até ele me dizer o que ficou fazendo no banheiro com Emily naquela tradedepois que sai. Mas eu não podia enganar minha mente dizendo que obteria algumsucesso com isso, porque se essa conversa tivesse o mesmo fim da que eu tive comOliver... Bom, não seria bem uma conversa.

O que me lembrava de que eu tinha realmente beijado Oliver Coleman. Aliás, eu só não

o tinha beijado com também me rendi a ele, completamente indefesa e dominada. Logodepois de ter também beijado Grigor, e a situação não foi muito diferente. Porque um,eu estava completamente atordoada em ambos os momentos; dois, eu nem mesmo fizalgo para impedi-los; e três, eu fiquei exposta e entregue sem poder racionalizar direitono momento em que ambos me tocaram.

E eu também não podia me esquecer que depois disso coisas estranhas aconteceram;O que me obrigou a perceber o que realmente estava acontecendo na minha vida. Umlado mais irracional do meu cérebro percebeu que ás coisas ficam fora do controlesempre que Grigor está por perto, e o outro lado mais racional notou que não só ascoisas ao meu redor como eu também fico fora de controle.

Page 98: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 98/168

Aliás , “eu sempre acabo trombando com ele onde quer que eu esteja” eu tentei parareste pensamento. O que eu estava pensando? Ele vai à mesma escola que eu, é naturalque nos encontrássemos.

 Mas e na noite da racha? Uma voz fina soou em minha cabeça, impedindo-me de

esquecer o assunto.

Aquela noite foi estranha. Bom, não tão estanha como eu achava que era: Oliver a fezficar estranha e confusa. Porque eu sei que vi a policia chegando. Eu sei que foi por issoque corri para aquele beco. Mas ele insiste que não havia policial nenhum naquela noitee que eu de repente saí correndo.

E que por acaso acabei encontrando Grigor no mesmo beco. Num beco escuro e sinistro.O que Grigor estava fazendo sozinho num beco escuro, enquanto todos os outros―participantes‖ e ―apreciadores‖ de rachas estavam na rua? — que em termos declaridade e segurança não era muito diferente do beco.

Eu sempre mirei minha desconfiança e minha insegurança inteiramente para Oliver; Eleera o garoto estranho e sinistro em minha vida. Mas e Grigor Lybieri? O que eurealmente sabia sobre ele?

Certo, ele é emancipado, morava em Nova Iorque, seus pais morreram, ele vivepróximo ao bosque e tem uma espécie de tutor que o visita de vez em quando.  Mas issoé o que ele diz. Não há nada que confirme isso, nada.

Paranóica, não seja paranóica, eu entoei para mim mesma.

Oliver o chamou várias vezes de servo. Mas tudo o que Oliver diz é confuso então não écomo se isso fosse um código ou algo com significado, já que tudo que ele fala pareceser assim.

E aquela conversa que eles tiveram na sala...

“— Ela estaria morta se eu não tivesse aparecido. Você não se im porta com nada”,Grigor dissera.

“—  Tem razão, não me importo. Não sou tão diferente de você.”, Oliver disse logo

depois.Minha memória falhou, mas eu me obriguei a lembrar de mais:

“—  Você está enganado, eu me importo”, Grigor tinha dito depois de um silêncio.

“—   Até que Lunabella chegue.” Oliver dissera.

E depois disso eu não conseguia me lembrar de muita coisa que ouvi.

 Até que Lunabella chegue, eu repeti a última frase.

Eles sabiam sobre Lunabella?

Page 99: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 99/168

Eu me despedi do Sr. Chan e rumei até a casa de Emma. Que era longe o suficiente paraeu me acalmar e pensar no que iria dizer.Rose atendeu a porta. Ela tinha o cabelo um pouco avermelhado, liso e desfiado, e umpar de olhos verdes, no rosto fino e pálido; sua estatura era baixa e era bem magra.

 — Anna, — ela me abraçou. — Finalmente veio até aqui, você andou sumida depois danossa última reunião, estava começando a achar que a razão de seu sumiço era justamente por isso. — ela disse a tempo de me soltar e olhar em meus olhos.

Rose fazia uma espécie de reunião de mulheres toda semana. A casa enchia de mulherese produtos de beleza e elas se faziam de Barbie enquanto se produziam e fofocavamsem parar. Na última eu fui o alvo. Eu fui a boneca da vez; elas me colocaram numacadeira e cada uma parecia querer arrancar uma parte de meu corpo, tentando deixá-lo omais bonito possível. Para mim, não era muito diferente de uma cena de filme de terror,é claro que isso é o meu ponto de vista, para Luke e Emma aquilo foi à melhor tarde que

 já tiveram — Luke é o único ser com um cromossomo y que já participou destas

reuniões.Eu jurei a mim mesma que nunca mais participaria de algo assim.

 — Ham, não, eu estava ocupada com... — eu dizia enquanto procurava uma desculpapara dar.

 — Anna! — Emma chamou aparecendo na sala.

A casa dos Newton era simples. Não havia muitos móveis e nada sofisticado, não era amais bonita da rua, muito menos a mais cara. Mas era a casa que mais me lembravaminha casa de Malibu, ou seja, a que eu mais me sentia bem. Tinha flores e enfeitesartesanais em todos os cômodos — que eram sala, cozinha e dois quartos — Napequena sala o sofá estava coberto com uma capa floral de rosas vermelhas, umapequena estante feita de madeira, as paredes eram em tons claros e aconchegantes. Portaretratos e catálogos de revistas cobriam a mesinha de centro — o que para muitos seriavisto como uma enorme bagunça, mas que para mim só me lembrava mais e mais deMalibu. Só me deixava mais em casa.

 — Venha. — ela pegou a minha mão e me arrastou para o seu quarto sem se importarcom os resmungos de Rose sobre como não se devia interromper uma conversa e queprecisava conversar comigo.

Acontece que Rose além de vendedora de produtos de beleza também tem seusmomentos de ―vidente‖. Ela acredita em signos, cartas de tarô e todas essasparafernálias que dizem saber o nosso futuro. E como Emma e Chad já tinham secansado e deixado bem claro de que não queriam mais saber disso, ela decidiu me tercomo nova cobaia.

Emma fechou a porta atrás de si rindo. Eu me joguei em sua cama enquanto tentavaabafar minha risada. A colcha dela era feita de retalhos de panos e por isso era todacolorida. Não havia mais nada no quarto além disso. Bom a não ser que pôsteres debandas e atores sem seminus contem como móveis.

Page 100: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 100/168

 — Ok. Agora me diga por que me deixou ir sozinha para aquele ninho de cobras? — elaperguntou se jogando na cama ao meu lado.

Respirei fundo.

 — Não estava me sentido muito bem. — respondi, o que não era totalmente umamentira. — O que aconteceu lá? — tentei deixar a preocupação fora de meu tom.

 — Nada. — Emma deu de ombros. — Bom, a cobra rainha não apareceu, o que é umalivio tremendo, mas as cópias e a cópia numero 1 fizeram bem o papel dela.

 — Emily não foi à escola?

 — Não. — ela me olhou, eu voltei meu olhar para o teto de madeira e de luz baixa paraque ela não visse meu pânico. — Mas isso não é nada importante, nem sei por queestamos perdendo tempo falando dela. Que tal mudarmos de assunto para o capitão do

time de basquete?

 — Ryan Brandon? — eu estranhei.

 — Não. — Emma pareceu enojada por ter ouvido o nome — Gregory Lybieri.

 — O que?

 — Ele é o novo capitão do time. — ela franziu um pouco as sobrancelhas. — Nãototalmente quero dizer. Todo mundo estava comentando que o Treinador estava umafera com Ryan por ele não ter respeitado o toque de recolher e por faltar nos treinos... Ebem, ele viu Grigor jogar basquete em Ed. Física e como ele também jogava basqueteem sua antiga escola, não é difícil saber quem vai substituir o Rei dos ratos no time.Mas nada está confirmado já que Grigor não foi à escola hoje.

 — E-ele não foi? — eu gaguejei enquanto me levantava da cama.

 — Não. — ela também se levantou me encarando.

Não me preocupei em tentar adivinhar o que se passava por sua mente me vendo andarde um lado para o outro no seu minúsculo quarto.

Emily não foi à escola, Grigor não foi à escola...

 — Oliver também não foi, acha que isso pode ser algum tipo de doença...  — ela dizia,mas eu não consegui escutar mais nada.

Meu coração se acelerou a medida que novos tremores passavam por meu corpo, repetitodas as informações que tinha novamente: Emily estava no banheiro quase emconvulsão, Grigor ficou sozinho com ela depois disso, Oliver e ele estavam na minhacasa conversando sobre algo que me fazia ter arrepios, havia alguém dentro do meuquarto, Grigor novamente ficou sozinho com isso, e por último: nenhum dos três citados

acima compareceu a escola hoje.

Page 101: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 101/168

Eu parei de repente.

 — Que tal fazermos uma visitinha ao Grigor? — eu tentei deixar minha voz relaxada nofinal.

 — Tá falando sério? — ela se animou, mal percebendo a tensão que irradiava de mim. — Mas você sabe onde ele mora?

 — Não, — confessei. — Mas fica perto do bosque e podemos procurar. Não tem muitascasas por ali, não deve ser difícil encontrar.

 — Hum, ele mora perto do bosque? — os olhos dela brilharam numa intensidadeassustadoramente maliciosa. — Cara, você já viu as casas ao redor do bosque? Tipo temque ser muito rico mesmo para comprar uma casa daquelas.

Eu dei de ombros, minha mente ocupada e temerosa demais para pensar nisso agora.

 — E ele é emancipado... — ela murmurou para si mesma. — Você acha que Grigor éherdeiro de uma fortuna? Eu acho que sim, porque ele é muito jovem para ter tantagrana.

Eu fechei a porta do carro com força, mais para parar os pensamentos horripilantes quepovoavam minha mente, do que para calá-la.

 — Tudo bem, eu paro, só não bata no meu bebê, eu batalhei muito para ganhá-lo.  — eladeu ré e depois acelerou dando partida.

Encostei minha cabeça no encosto do banco. Um novo pensamento — não muitoracional, para variar — passando por minha mente.

 — Não, espera, — eu chamei sua atenção para mim. — Eu preciso ver uma pessoaantes.

 — Quem?

 — Emily Morgan.

 — Sem essa! — ela abanou a cabeça. — Eu não quero ver aquela Barbie tóxica denovo. O que deu em você, Anna? Se esqueceu de tudo que ela nos disse.

Eu abaixei minha cabeça, mal conseguindo entender o que ela dizia.

 — Só preciso ver uma coisa. — respondi mordendo meu lábio.

 — O quê?

Ver se Emily está viva.

 — Não sei, eu só... Preciso vê-la.

Page 102: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 102/168

Ela me olhou como se eu fosse maluca, mas não disse nada. Meia hora depoisestacionamos aos redores da residência dos Morgan‘s.

 — Se você não voltar em cinco minutos eu ligo para a polícia. — Emma disse enquantoeu saia do carro.

Eu atravessei o pequeno jardim por uma estradinha de pedras que levava até a entrada.Toquei a campainha. Meu coração acelerando a medida que os segundos passavam.

Uma mulher robusta atendeu a porta. Seu rosto redondo era grave quase severoenquanto me encarava, ela vestia um uniforme azul marinho e branco, e seu cabelocastanho estava preso em um coque alto sem um fio fora do lugar.

 — Pois não?

Eu comprimi meus lábios e respirei fundo.

 — Oi, eu sou uma... — pausei brevemente escolhendo uma palavra adequada. —  Colega da Emily da escola. — eu deduzi por fim. — Hamm, eu vim trazer a matéria queela perdeu hoje.

Depois de alguns segundos eu percebi que minhas mãos estavam vazias e que minhadesculpa era um blefe descarado, então completei rapidamente:

 — Meu caderno está no carro, eu pensei em chamar a Emily até a minha casa parafazermos juntas lá.

Engula isso por favor!

Ela balançou a cabeça de um lado para o outro.

 — Emily não pode sair de casa hoje, querida. — o rosto severo foi se atenuando atéficar somente composto e de certa forma calmo.

Emily não pode sair... Então ela estava lá! Suspirei aliviada, e a mulher me olhou comum olhar curioso beirando a desconfiança. Eu me recompus rapidamente.

 — Que pena... — eu murmurei. — Ela está bem?

 — Sim. — ela respondeu rapidamente. — Até. — e fechou a porta na minha cara.

Eu abri minha boca e fechei, o alivio tinha escorregado de mim com seu estranhocomportamento. Respirei fundo e me virei para sair dali. Mas meus olhos ficarampresos nos dois adolescentes que saíram pela lateral da casa, e pararam na cerca demadeira do jardim da frente.

Aproximei-me sorrateiramente, tentando escutar o que eles diziam.

 — Ela está estranha. — um garoto, não devia ter mais de catorze anos murmurou para a

garota. Ele tinha os cabelos avermelhados, era baixinho e franzino, vestia um uniformenas mesmas cores da mulher que me atendeu.

Page 103: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 103/168

  — Ela está é louca isso é. — a garota, também baixinha e franzina respondeu. Ela erabem parecida com o garoto, mas tinha a pele mais bronzeada e os cabelos negros.  —  Você viu o jeito que ela me olhou... Parecia que ia me devorar! E olha que ela nuncanem olhou para nós, sempre com aquele nariz empinado. Acredita que ela começou a

dizer coisas estranhas e a falar sozinha? Quando o pai dela chegar de viagem vai tomarum belo susto.

 — Ouvi dizer que ela brigou na escola com uma garota, talvez seja por isso ocomportamento estranho. Ela não está louca, Linnie. — o garoto disse. ´

Eu me encolhi no vão de um dos pilares de entrada.

 — Está sim! Sei lá, estou toda arrepiada! Acho melhor chamarmos um médico ou umpadre, essa garota está me assustando.

Um chamado veio de dentro da casa e eles sumiram pela lateral da mesma. Suspireivoltando para o carro. Emma tinha estacionado em outra rua, ela tinha resmungado algocomo: ―Deus me livre de chegar perto do ninho de cobras‖.

Eu abri a porta e me sentei no banco do passageiro.

 — Viu ela? — perguntou colocando a chave na ignição.

 — Não. Mas ela estava lá. — respondi, pensativa.

Ela estava lá... Isso já era alguma coisa.

Emma suspirou.

 — Hum, — ela resmungou alguma coisa incompreensível. — O que estamos indo fazermesmo na casa do Grigor? Porque eu estou começando a desconfiar de que isso não é sóuma visita.

Olhei para ela derrotada, queria desabafar, mas se eu o fizesse com certeza ela metaxaria como louca — não que eu não já não estivesse me acostumando com isso.

 — Não é mesmo, — disse eu. — Tem alguma coisa no Grigor... Olha, eu não sei o queé exatamente e não é só com ele, é com o Oliver também. Eu já pensei em tudo,comecei a pensar em coisas que colocam em risco a minha sanidade, mas Emm, eutenho que descobrir o que há de errado com eles!

 — O que? Você acha que eles podem ser tipo psicopatas ou agentes disfarçados da CIA,espera e se eles forem vampiros? — ela disse, primeiramente séria, e depois desabou arir, caçoando.

Eu revirei meus olhos.

 — Pode ser. — disse ignorando o seu sarcasmo. — Bom, eu não sei. Mas tenho quedescobrir, não importa como. Vai me ajudar ou não?

Page 104: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 104/168

 — É claro que vou! Você pode estar ficando maluca e vendo coisas demais, mas sevocê for parar em um manicômio eu quero ir junto. Não posso viver sem você!

E essa vai para a nossa lista de declarações de amizade estranhas.

E realmente ás casas ao redor do bosque não pareciam ser nada baratas. Não que euestivesse esperando isso depois de ver o carro do Grigor — que com certeza, com odinheiro que ganho, não conseguiria comprar nem daqui uns oitenta anos.

 — Então, como vamos fazer? — Emma perguntou.

 — Eu não faço a mínima idéia. — confessei.

 — Acho melhor perguntarmos.

 — Não é uma boa idéia, se ele não estiver lá, não quero que saiba que estivemos.

 — Ele não vai saber. Vamos perguntar para aquela menininha ali, — ela apontou parauma garotinha de uns cinco anos empurrando sua bicicleta cor de rosa. — Se ela souberonde ele mora, vamos até lá, se não souber, nós vamos embora, simples.

Eu dei de ombros, sem mais idéias.

 — Oi menininha linda. — disse Emma tentando ser simpática.

 — Eu não tenho doces. — garantiu ela apreensiva, tentando se afastar do carro eempurrar a bicicleta ao mesmo tempo.

Eu ri, Emma chutou meu pé com o seu para que eu parasse.

 — Eu não quero doces. — o tom simpático tinha saído de sua voz. — Estou de dieta.Na verdade quero saber onde mora um amigo meu da escola. O nome dele é GrigorLybieri, conhece?

 — Ah, sim. — ela revirou os olhos, olhando para Emma como se ela fosse um E.T —  Como não conhecer ele? Ele é simplesmente o vizinho mais gato que já tive.

Eu a olhei de novo minuciosamente. Ela tinha o cabelo castanho-claro, vestia umacamiseta e uma saia azul, era branca e tinha o rosto oval, os olhos pequenos e puxadosbem claros. Ela realmente não deveria ter mais de cinco anos, e por isso não deve tertido muitos vizinhos.

 — Eu me esqueci onde ele mora, pode me lembrar qual é a casa? Sei que é por aqui.

Mordi meu lábio, nervosa.

 — É aquela no fim da rua, a mais bonita. — ela disse, e retorceu a boca num jeitoestranho. — Você é o que? A namorada dele ou uma assaltante? Ele não está em casa,

mas eu sei o número da policia e... Ei!

Page 105: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 105/168

Emma a deixou falando sozinha.

 — Como planeja descobrir algo sobre ele? Vai perguntar assim na lata se ele é umpsicopata? Sabe, Anna, se ele for realmente isso, — ela bufou e tossiu tentando não rirde si mesma. — Não vai revelar assim de graça, você vai ter que descobrir, eu duvido

que ele vá lhe contar. Vamos aproveitar que ele não está em casa, você entra lá eprocura por algo e eu fico vigiando aqui do lado de fora para ver se algo der errado.

 — Desde quando você se tornou mestre em invadir casas?

 — Desde os meus dez anos, quando jurei a mim mesma que iria entrar no quarto doBrad Pitt, de qualquer forma.

Eu não sei se a casa dele era a mais bonita da rua — eu nunca fora boa em analisarimóveis, a única coisa que sabia, que por acaso foi Luke que me ensinou, é que sehouver um portão grande tapando toda a entrada da casa é porque a casa é de gente rica.

E no caso de Grigor, aquilo parecia mais uma muralha do que um portão.

 — Como vamos entrar?

 — Ele deve ter um gamado, e eu duvido que ele passe os fins de semana aparando.

Eu a olhei sem entender onde ela queria dizer. Essa não!

 — Pronto — eu disse a ela, enquanto suspendia meu corpo com minhas mãos, sentandoem cima do concreto que recobria a parte superior do portão de aço.

“Eu não estou fazendo isso. É só um pesadelo que vai chegar ao fim, é só eu acordar” ,disse a mim mesma.

Emma estava certa sobre o gramado. Aquilo parecia não ter sido aparado há meses.

 — Rápido pule!

Pular. A palavra é tão fácil de ser dita, mas quando é no sentido literal e não nofigurativo, a coisa muda de situação.

Deveria ter outro jeito de descobrir, eu não precisava pular de um muro para descobririsso, uma parte do meu cérebro pensou, enquanto outra bem pequena, mas que pareciagritar pensada: Covarde!

Eu comecei a contar: 1,2,3...

Não foi tão ruim como eu imaginava.

 — Você está viva? — Emma perguntou do lado de fora.

 — Não. — resmunguei, pude escutar ela rindo.

Page 106: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 106/168

 — Procure uma janela ou qualquer coisa. — ela instruiu. — Me diga que está com o seucelular!

 — Estou. — eu disse, não era uma mentira, ele estava comigo no bolso de trás,descarregado, mas isso é só um detalhe!

 — Eu vou te ligar se algo der errado, e se você não atender por algum motivo, quesempre acontecesse, eu vou começar a gritar.

E é claro que eu poderia ouvi-la, porque depois de assistir O Grito com ela três vezes,não me restavam duvidas de que ela tinha um megafone no lugar das cordas vocais.

Eu considerei procurar alguma janela, mas comecei a pensar: se eu tivesse um portãoimenso na frente de minha casa para quê fecharia porta? Bom, só se eu pensasse nahipótese de alguém pulá-lo, o que me parecia meio absurdo se eu fosse o Grigor.

A porta se abriu com um ranger me revelando o hall de entrada. Eu tentei não prestarmuita atenção na decoração da casa, mas tudo ali parecia estar duelando para chamarminha atenção: desde os sofás acolchoados e pretos, até a linda TV imensa da sala.Tudo era bem espaçoso e organizado, o que me surpreendeu um pouco. De certa formaa decoração combinava com ele. Havia algumas cadeiras parecidas com as de ilha nasala encostadas-se a uma das paredes, e obras de arte que deveriam ser bem caras namesma. Simples e aristocrático.

Eu tirei meus olhos da decoração com muito esforço, voltando a me focar no plano... Seeu tivesse algo para esconder, onde esconderia? O meu quarto era a minha primeiraopção.

Subi ás escadas até o andar de cima. Parei no imenso corredor. Para quê tantos quartosse ele mora sozinho? Droga!

Eu fui abrindo porta por porta. Todos pareciam serem muito impessoais, não havia nadaque me lembrasse ele ou quarto de um garoto, pareciam mais com quartos de hotéis.

É claro que tinha de ser o último!

Eu abri a porta do último quarto, e novamente me surpreendi. Eu nunca, jamais, deduzi

que Grigor era fã de jogos. O quarto dele era repleto deles, uma mesa de pebolim estavaencostada ao lado da estante, um joystick estava jogado em cima da grande cama delençóis negros e havia uma pilha de jogos de vídeo game empilhados no criado mudo.

Eu parei de olhar para aquilo tudo, e tentei me focar no que viera fazer ali. Eu abri aporta de seu armário e comecei a procurar por entre suas roupas — o detalhe era que eunão sabia pelo quê procurar. Uma arma talvez... Qualquer coisa. Eu precisava de umaprova de que ele não era um garoto normal, de que eu não estava ficando maluca.

Mas não havia nada ali. Eu comecei a me lembrar de cenas de filmes, talvez eleescondesse no piso ou no teto...

Chega!

Page 107: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 107/168

Eu me sentei na cama derrotada. Recusava-me a sair dali de mãos vazias, mas ficandoali por mais tempo correria um risco terrível. Se Grigor me encontrasse ali, o quepensaria? Eu passaria de estranha, para maluca e depois para delinqüente.

Eu me dei de presente mais alguns minutos ali. Sai do quarto e comecei a zanzar pelo

corredor. Havia uma pequena escada no fim dele; uma corda descia por ela. Aproximei-me, receosa puxei-a e observei o teto em cima da escada se mover.

Era um sótão escuro, e empoleirado. Subi os degraus da escada e tive que me abaixarum pouco quando pisei no chão dele. A luz era muito baixa, mas havia uma pequena

 janela redonda de vidro colorido que refletia a luz do sol, dando um aspectoestranhamente multicor à escuridão.

 — Aí!

Eu dei um passo para frente e bati minha perna em algo que rangeu me assustando, algo

que estava em cima dela deslizou pelo piso de madeira e parou aos meus pés. Era sóuma cadeira de balanço; respirei fundo tentando me acalmar. Peguei o objeto do chão, eum pouco aturdida vi que era uma lanterna.

Acendi-a e tive uma melhor visão do que tinha a minha frente. Parecia ser tudo muitoantigo; uma estante de livros grossos e pesados estava atrás da cadeira. Umaescravainha mogno mal encostada à parede e ao seu lado, algo parecido com umcavalete estava coberto por um lençol branco típico de mudanças.

O cavalete era de madeira, trincado e minuciosamente trabalhado. Parecia ser a únicacoisa ali que não estava coberto de poeira; Longe disso, a madeira brilhava parecendoter sido polida recentemente. Eu puxei o pano para ver que quadro ele suspendia.

Minha primeira reação foi ficar estática.

A próxima foi me afastar.

E depois eu comecei a tremer.

Não de frio. Mas de medo.

Aquela pintura conseguira arrepiar todos os pelos do meu corpo.Era uma garota. Ela tinha um sorriso misterioso no rosto — não como Monalisa. Osorriso dela era diferente, um que eu jamais vira, de tão misterioso chegava a serassustador. Ela era branca, porém um pouco bronzeada o que deixava sua pele num tomamarelo. O nariz era pequeno e reto; os olhos um pouco puxados no cantos; a iris eraclara, um mistura de castanho com um dourado levemente avermelhado. Ela tinha oscabelos cheios, não tão lisos, com uma cor inacreditavelmente parecida com a dosolhos. Atrás dela ao lado esquerdo havia uma sombra, estranhamente brilhante. Nodireto havia outra, também brilhante, mas num brilho avermelhado.

Ela vestia um vestido, mas somente a parte de cima aparecia na pintura; tinha mangasbufantes, e era bem colado ao corpo, realçando seu busto. Um belíssimo colar estava

Page 108: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 108/168

pendurado ao seu pescoço, ele era fino e de ouro, e o pingente era em forma de losangoe no meio tinha uma pedra brilhante e vermelha; talvez fosse uma rubi.

Poderia ser uma obra comum e talvez eu nem a notaria se eu não conhecesse aquelerosto; Se eu não tivesse convivido com aquele rosto, vendo-o mudar, sem nem perceber,

a cada ano durante toda a minha vida.

Porque aquela garota da pintura era eu.

Mas na base dela escrito no cavalete havia outro nome: Elisabeth Di Veroni.

 — Grigor! Que surpresa te encontra aqui! — Um grito distante se infiltrou aos meusouvidos. Eu corri um pouco rígida demais até a janela que dava exatamente para frenteda casa, ultrapassando até mesmo o portão de aço.

Emma estava visivelmente desesperada em frente ao Grigor, gesticulando nervosa para

ele.

Definitivamente, Droga!

Page 109: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 109/168

NOVE.

Eu me afastei daquele sótão o mais rápido que pude, e corri pelo corredor tropeçandonos meus próprios pés. E então desci ás escadas apressada, mas quando cheguei ao fimà porta se abriu. Terminei de descer o último degrau e corri para de baixo delas,

torcendo para que ele não conseguisse me ver ali.

 — Nossa, que coincidência você morar aqui! Sabe, eu vim visitar uma velha amiga eacabei me esquecendo qual a casa em que ela morava, você não vai acreditar o quantoeu me esqueço das coisas! — Escutei a voz de Emma próxima. — Uau! Que casaincrível!

 — Valeu. — a voz de Grigor soou também próxima. — Como é o nome da sua amiga?Quem sabe eu a conheça.

 — O... O nome dela? — ela tossiu tentando disfarçar o nervosismo. — É Tani...Li... Du. — se eu não estivesse à beira de um ataque de pânico estaria rolando no chão de tantorir agora. — Você conhece? — ela perguntou alarmada.

 — Hamm, não. — confessou ele.

 — Ah, que pena... — disse ela deslizando um pouco na atuação e mostrando seu alivio.

 — Você é emancipado mesmo?

 — Yeah.

 — Sério sem querer ser intrometida nem nada, mas como é que conseguiu isso tudosozinho e tão jovem?

Grigor riu, e eu derreteria com sua risada se meu coração não estivesse tão acelerado.

 — Minha família tinha bons negócios. — eu supus que ele sorria pelo tom de voz.

 — Que tipo de negócios? — a voz de Emma sobre-supôs a dele, ela tentava não soarnervosa, mas sua tentativa era um fracasso. Qualquer um detectaria o que se passava porsua mente nesse momento... Drogas, roubos, contrabando... Talvez máfia.

 — Carros. Vendíamos carros em Nova Iorque.

 — Ah! — eu pensei ouvir um suspiro dela.

Ouvi alguns passos se aproximando do local onde eu estava. Mais passos, só que maisapressados vieram atrás destes. Eu pude ver a silhueta de Grigor fazendo sombraenquanto ele se aproximava mais.

 — Grigor? — chamou Emma, ela já estava logo atrás dele tentando chamar toda a suaatenção. — Hamm, fiquei sabendo que você está no topo da lista do Treinador para sercapitão do time!

Page 110: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 110/168

Ela deu mais alguns passos, e seus olhos cruzaram com os meus por um milésimo desegundos.

 — Basquete? Não, não! Acho que vou dar um tempo nisso. — dissera ele sumindo deminhas vistas.

 — Você jogava na escola antiga?

 — É, de vez em quando. — havia certa ironia em sua voz.

 — Gosta de esportes? — Emma perguntou ao mesmo tempo se virando para mim egesticulando freneticamente para a porta indicando que eu tinha que sair dali.

 —  Como? — eu sussurrei de volta.

 — Gosto de jogos.

 — Hum, isso soa meio geek7! — Emma disse, e depois sussurrou para mim: —  Corra para a porta, vou distraí-lo.

 — Nem tanto assim. — a ironia em uma dose carregada em sua voz desta vez.

Ela saiu do meu campo de visão.

 — Meu Deus! — a voz dela saiu exageradamente alta e falsamente surpresa. — Nãoposso acreditar que você tem esse quadro!

Eu fiz o que ela disse e corri sorrateiramente para a porta. Antes de abri-la pude ter umaúltima visão de Grigor de costas, e de Emma praticamente se jogando e gesticulandopara o quadro como se realmente fosse uma fã de arte moderna.

E o Oscar vai para...

Fechei a porta fazendo o mínimo de barulho. O portão estava aberto, o que poderia serconsiderado a única coisa que eu tive sorte no dia inteiro.

Já era quase noite; o céu assumia um tom de cinza escuro e sombrio.

Eu resolvi me precaver e não esperar Emma no carro. Andei pela rua me distanciando omáximo possível da casa. Meu coração ainda estava acelerado, e eu também estavapreocupada por tê-la deixado sozinha lá dentro.

 — Olha só, se não é a amiga da assaltante. — A garotinha da bicicleta disse, ela estavaquase ao meu lado. Eu não a vi se aproximando.

 — Não fomos assaltar ninguém. — eu disse a ela, tentando não me preocupar com ofato de ela saber demais.

7 É uma gíria da língua inglesa, usada para definir alguém viciado por jogos ou coisas do tipo.

Page 111: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 111/168

Ela somente riu maliciosamente — demais para a sua idade — e se afastou com a suabicicleta.

Eu deveria ter andado o equivalente a duas quadras quando o Miata de Emma parou aomeu lado. Corri para o banco do passageiro e ela imediatamente deu partida, deixando

para trás aquele lugar tão refinado e ao mesmo tempo tão sombrio.

 — Encontrou alguma coisa? — ela me perguntou.

Eu mantive meus olhos na estrada.

 — Hamm, — eu pausei sem saber o que lhe dizer. Eu tinha encontrado um quadro, quepelo menos para mim provava que Grigor Lybieri não é um cara normal; Mas Emmaconsideraria isso como prova? — Ele gosta de games. — eu disse por fim.

 — Ele me disse isso. Está vendo? Grigor é somente um cara rico e extremamente

gostoso, e não tem nada de anormal nele.

Eu fiquei com o final de sua frase na cabeça; nada de anormal nele...

Por que somente eu achava que tinha algo de muito anormal nele e no Oliver?

 — Se você quiser saber alguma coisa simplesmente pergunte, baby. — ela disse quandome deixou em casa.

Certo; perguntar é fácil. Resta saber se ele irá me responder.

 Não. Se eu quiser saber algo eu tenho que descobrir sozinha por conta própria. E eutinha pelo menos algo pelo que começar. Bom isso era um livro estranhamente embranco com o nome de Lunabella, mas ele era a única coisa que eu tinha, então...

Eu corri para o meu quarto e antes que eu pudesse revirar meu quarto inteiro, lembrei-me que o tinha guardado dentro da gaveta do meu criado mudo.

Mas este estava vazio.

Eu cai sentada no chão.

 Droga!

Alguém tinha o pegado. Mais quem? Havia alguém arrastando e quebrando coisas nomeu quarto naquela noite, e Grigor tinha ficado na minha casa sozinho com isso. Umdos dois havia pegado o Lunabella.

Eu poderia procurar na casa de Grigor novamente... Eu bati na minha testa tentandoparar este pensamento. Eu não iria mais voltar para aquela casa.

Eu teria de arranjar outra forma de recuperá-lo.

Page 112: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 112/168

Eu estava tentando me concentrar no meu dever de casa quando o telefone tocou. Eu oignorei, deixando-o tocar. Quando acabou eu pensei que tivessem desistindo. Mas elecomeçou a tocar de novo e de novo. E então parou. Antes que ele começasse novamenteresolvi descer e trazê-lo até o meu quarto.

 — Alô? — eu disse.

 —   Achei que você tinha tirado férias da escola por hoje... Deixe-me ver, você deveestar fazendo seu dever de casa agora mesmo. Tão previsível.

Eu arregalei meus olhos surpresa.

 — Como conseguiu meu número de telefone?

Oliver riu do outro lado da linha.

 —   Isso realmente importa? Eu bufei em resposta.

 — Quero que faça uma coisa para mim.  — ele disse.

 — Rá-rá. Desde quando eu virei sua garota de favores?

 — Espera, você nem sabe o que vou te pedir e eu posso te dar algo em troca.

 — Não importa, — eu disse tentando soar inflexível. — Eu não faço mais acordos comvocê.

Silêncio, e depois Oliver desabou numa gargalhada.

 — Ok. Vamos ver até onde isso vai.

E ele desligou. Na minha cara.

Extremamente irritada eu joguei o aparelho em qualquer canto, mas mal tinha acabadode fazê-lo e ele começou a tocar novamente.

 — Olha aqui Oliver... — eu cuspi ás palavras, mas logo fui interrompida por uma vozfeminina quase infantil.

 —  Oliver? Quem é esse?  — Reconheci a voz de Lizzie do outro lado da linha.

 — Desculpe, eu achei...

 — Esqueça. Olhe venha para o restaurante agora mesmo, vamos inaugurar hoje e achoque não vamos dar conta de tudo. Arranje um jeito e venha agora!

E desligou.

Page 113: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 113/168

Ok. Harry não estava trabalhando hoje, e bem, ele deveria estar por algum lugarenchendo a cara. Eu não poderia deixar Molly em casa sozinha e Nancy deveria estarem alguma casa de auxilio aos menos favorecidos como voluntária. Então só me restavaum lugar para deixá-la.

 — Isso vai ser tão divertido, será que tia Rose me deixa maquiar as mulheres dasrevistas de novo? — ela perguntou.

Eu não conseguia entender como ela era tão disposta para essas coisas e achava tudotão legal. A minha casa era muito longe da de Emma, longe o suficiente para eu já mesentir cansada só em pensar em ir até lá. Mas Molly é completamente diferente. Talvezseja porque Rose faz sempre de tudo para mimá-la.

 — Eu acho que sim. — eu disse quando nos aproximávamos da casa.

Bati na porta. Chad apareceu quando ela se abriu. E não tinha como olhar para ele e

depois para Emma e ver que eles são parentes. Porque Emma é praticamente a cópiafeminina dele. Os dois são altos e tem uma pele lustrosa e branca, além dos traçosmarcantes no rosto. Os cabelos castanho-escuros, agora com uns fios grisalhos, estavamprecisando de um belo corte, e ele estava usando seus óculos de grau. O que eledetestava e o que indicava que ele estava escrevendo mais um capítulo de seu maisnovo-antigo livro.

Chad é escritor e ele antigamente trabalhava em uma editora, mas saiu recentemente.Parece que eles aceitaram o seu original o problema é que eles colocaram a condição deChad alterar algumas partes de seu livro para que ele fique mais, Hamm, atrativo. Chadnão quis alterar o livro e por isso o demitiram.

Emma disse que isso é besteira e que o pai dela era um cabeça-dura. Mas eu achei queChad fez o certo em não mudar nada, afinal a idéia do livro era dele e ele tinha o direitode permanecer com ela e se eles não o achavam atrativo, pelo menos eu, pelo pouco quevi, achava.

 — Hey, — ele disse sorrindo, Molly pulou em seu colo.

 — Oi, Chad. Hamm, eu posso deixar a Molly aqui hoje à noite? É que me ligaram dorestaurante e eu vou ter que...

 — Tudo bem, não precisa se explicar, Anna, não há problema nenhum. — disse ele. —  Achei que você tinha vindo para a reunião.

 — Não, não! — eu disse rapidamente, ele riu do meu tom de pânico.

Page 114: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 114/168

 — Então corra, antes que elas te vejam!

Eu mandei um beijo para Molly e sai de lá o mais rápido que pude. Eu sentia vertigenssó em pensar; Não se pode colocar reunião, Rose, e Avon na mesma frase sem que issoacontecesse.

A minha idéia inicial seria ir direto para o Anderson‘s mas algo, um sentimento que nãosei definir bem, me fez mudar de direção.

Eu fiquei parada na frente da casa de Emily Morgan durante uns cinco minutos. Cincominutos que me fizeram refletir sobre muitas coisas, cinco minutos que apesar depassarem rápidos foram atordoantes para a minha mente.

Emily estava mesmo bem? A pergunta insistia em ser feita em meus pensamentos.

Suspirei e comecei a pensar nos prós e contras. Se eu fosse simplesmente embora ficaria

com minha cabeça martelando sem parar a noite inteira e amanhã na escola, caso Emilynão aparecesse, a situação só iria piorar. E como eu iria descobrir o que realmenteacontecera no banheiro? Mas se eu batesse naquela porta, havia uma séria chance de tera mesma resposta que obtive mais cedo, e mesmo que conseguisse ver Emily, ela comcerteza não me receberia como um sorriso no rosto.

 Não seja covarde. Eu pensei.

Toquei a campainha uma vez e disse a mim mesma que se ninguém viesse me atenderiria embora. Mas a porta se abriu quase que imediatamente.

A mesma mulher de mais cedo me encarava do lado de dentro da casa. Eu tentei sorrir.

 — Oi. — comecei, respirando fundo e tentando parecer normal. — Hamm, eu volteipara... Ver a Emily, sabe, ela deve estar tão entediada por ficar o dia inteiro em casa semnenhuma amiga para conversar.

Mordi meu lábio esperando. A mulher me encarava ainda calada, seus olhos pareciamcaptar cada movimento meu, me inspecionando.

 — Sinto muito, querida. Emily não pode receber visitas hoje. — ela tentou sorrir,

tentando parecer simpática. — Quem está aí, Lucy? — uma voz masculina veio de dentro da casa.

 — Uma amiga de Emily, Sr. Morgan — A mulher a minha frente respondeu. — Euestava a dizendo que Emily não pode receber visitas hoje, pois...

 — Ora, não seja boba. — a voz a interrompeu. — Deixe-a entrar. Quem sabe... — umapausa, eu quase pode ouvir o suspiro. — Isso possa ajudá-la.

A mulher a minha frente me encarou, inspecionando-me mais uma vez. E então ela

abriu espaço deixando espaço.

Page 115: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 115/168

 — Pode entrar, querida.

Na sala, dois sofás cor marfim dividiam espaço com uma imensa estante de mármorebranco. Grandes janelas de vidro dividiam as paredes ao meio. E ao norte uma imensaescada de um formato estranho, meio arredondado, levava ao andar de cima. Havia

algumas flores naturais espalhadas pelos vasos em pontos estratégicos próximos as janelas. A casa toda parecia ser clara e arejada, cheia de elementos geométricos eaparelhos eletrônicos.

Eu parei olhando o homem sentado em uma poltrona próximo as janelas dos fundos.Seus cabelos eram loiros num corte moderno caindo alguns fios por sua testa; e sua peleera clara com um leve bronzeado. Ele vestia uma camisa branca e calça social comsapatos brilhando como novos, pretos. Ele sorria para mim.

Eu já o tinha visto antes, ele raramente ia à escola, mas havia um foto dele em uma dasparedes da biblioteca. Eu tentei retribuir seu sorriso.

Havia alguma coisa errada ali, eu percebi pelo modo como seus olhos pareciamcansados.

 — Emily está em seu quarto. Fico feliz que tenha vindo, ela não costuma trazer muitasamigas para casa. — ele disse a voz calma e serena. Eu imaginava o Sr. Morgan comoum tradicional homem de negócios totalmente robótico. Imaginei errado. — Lucy leve-a para cima.

A mulher me indicou as escadas. Elas eram longas e eu acompanhei com os olhos oformato engraçado do corrimão. Paramos em frente à primeira porta do corredor. Esteera estreito e o piso era coberto por um grosso carpete.

 — Pode entrar. — a mulher, chamada Lucy, me deu as costas, mas antes me lançou umolhar, não me inspecionando como tinha feito antes, e sim, me incentivando a entrar.

Eu abri a porta e me deparei com algo que eu nunca imaginei pertencer a Emily. Aquelequarto parecia ser de uma garota de seis anos, todo em rosa bebê e branco. A cama tinhaum enorme dossel descendo ao redor das bordas do colchão e era coberta por almofadasfofas. O chão era forrado com um grosso e macio carpete carmim e as duas janelas, queficavam dos lados opostos da cama tinham as cortinas brancas. As paredes eram uma

mistura de rosa e branco; Tudo no quarto era claro e infantil. Nada parecido com oconceito audacioso de Emily Morgan que eu tinha.

Eu encarei o cabelo loiro pálido dela. Ela estava sentada em um banco em frente a umapenteadeira que assim como todos os outros moveis também era branca. Ela deslizavasua escova de cabelos por toda a extremidade de seus longos fios meticulosamente,vestia um vestido branco até os joelhos e estava descalça.

Ela me viu pelo reflexo e eu esperei qualquer tipo de reação menos a que ela teve.

Emily me abriu um sorriso, não seu famoso sorriso medonho e toxico, este era suave e

amigável; o que inicialmente me assustou. O rosto dela estava mais branco do que o

Page 116: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 116/168

normal assim como seus lábios, que antes eram sempre cobertos por gloss e batom,agora tinha um aspecto meio azulado e fraco.

 — Aí está você. — ela me disse ainda sorrindo e se virando para mim.

Eu permaneci calada a encarando chocada. Emily, apesar do aparente bom humor esimpatia, parecia doente; sua aparência era de alguém a beira da morte.

 — Senti sua falta. — ela me disse me assustando ainda mais, ela me encarava como sefossemos velhas amigas. — Sabe, ninguém veio me visitar.

Eu pressionei meus lábios um contra o outro, e desviei meus olhos do seu rosto magro eabatido; um rosto que eu jamais pude imaginar pertencer a ela.

 — Você está bem? — eu perguntei depois de algum tempo e engolindo em seco.

 — Ótima, melhor do que nunca estive. — disse ela, e depois riu escandalosamente.

Eu observei ela tremer conforme as gargalhadas ecoavam por todo o cômodo, e entãoela riu mais, como se tivesse acabado de ouvir o final de uma piada.

Ela não estava bem; aliás, bem era um adjetivo que poderia ser esquecido no dicionáriose fosse para definir Emily naquele exato momento.

E eu mal percebi quando o riso foi ganhando um aspecto meio distorcido e sufocante; Eentão Emily estaca chorando a plenos pulmões.

Sem saber como reagir a isso eu dei um passo à frente. Minhas mãos pareciam tremermeio fechadas em punho, meio estendidas para ela.

Eu nunca sabia o que fazer quando via alguém chorar.

Ela foi parando aos poucos e então ela sorriu maliciosamente e ficou parada parecendouma pintura viva me encarando sombriamente.

 —  Ele disse que você viria.

 — E-ele quem? — gaguejei. — Não se faça de boba. — ela rolou os olhos. — E shhiiii, fale baixo ele pode nosouvir. Ele está por toda parte agora nos observando, nos ouvindo e sentindo. Ele saberáse aprontarmos. Ele disse para você não ser uma menina má.

 — Do que está falando, Emily? — eu ofeguei, dando um passo para trás.

Ela ainda sorria para mim.

Ela soltou um tilintar de riso, e depois parou com os olhos arregalados a boca

entreaberta.

Page 117: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 117/168

 — Ele quer você, Anna. Ele não vai parar até ter você e ele está bem perto, muito perto,ao nosso redor, nos vigiando, mas nós não podemos vê-lo... Ele... — ela olhou para simesma chocada. —   Não! Não! Não! — ela gritou esfregando suas mãos em seus braçosfreneticamente, e depois em seu rosto e pescoço e então parou olhando para suas mãos.

 — Não! De novo não! Sangue! Tem sangue por toda parte. Socorro! Socorro! Sangue!

A porta foi aberta brutalmente e o Sr. Morgan entrou por ela acompanhado por doishomens grandes e fortes trajados de branco.

 — Emily, querida, o que está acontecendo? — perguntou ele.

 —  Sangue, está aqui, papai. Socorro! Ajude-me! Você não está vendo?

Ela puxou a bainha de seu vestido rasgando a parte de frente do mesmo expondo suasroupas intimas enquanto ainda gritava e se esfregava freneticamente, aléia a tudo ao seu

redor. Parecia que ela estava coberta dos pés a cabeça por alguma coisa horripilante epegajosa. Mas só ela via.

Os dois homens olharam ao mesmo tempo para o Sr. Morgan. Ele permaneceu olhandochocado para Emily, depois de alguns segundos permanecendo paralisado, ele engoliuem seco e assentiu para eles.

Eles atravessaram o cômodo e puxaram Emily para cima. Um deles agarrou os braçosdela e prendeu-os atrás de seu corpo magro, numa espécie de camisa de força humana,enquanto o outro tirava uma seringa de dentro de seu jaleco e aplicava no braço de umaEmily histérica e aterrorizada.

Aos poucos eu a vi se acalmando e sua cabeça cair pesada em cima do ombro dohomem que a segurava; como uma criança que bagunçou o dia inteiro e desmaiou decansaço quando a noite chegou.

O Sr. Morgan se aproximou deles, e postou sua mão da cabeça de Emily, afagando-lheos cabelos carinhosamente. Eu podia ver sua tristeza por debaixo da mascara compostade seu rosto. Ele estava se controlando para não chorar. 

 — Cuidem bem dela. — quando ele falou sua voz era igualmente composta, mas

também igualmente falsa. Ele retirou a mãos de seus cabelos e passou uma última vezpelo rosto dela. — Ela é a única coisa que tenho.

Depois que os dois homens saíram do quarto carregando Emily com eles o Sr. Morganme encarou e sem forças para dizer nada, — ele parecia ter envelhecido uns dez anosem poucos minutos — saiu do quarto me deixando sozinha.

Sozinha no quarto de princesa. Sozinha no quarto da rainha da Grand Lake HighSchool. A rainha que se fora.

Eu descia as escadas lentamente. Não sabia que expressão carregava no rosto e nem me

importava com ela. Eu mal via o que estava ao meu redor. Agora que os gritos de Emily

Page 118: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 118/168

se foram, aquela casa parecia silenciosa e agonizante; como a sala de espera de umhospital.

Lucy abriu a porta para mim. Havia uma luminosidade em suas bochechasrechonchudas, talvez fossem lágrimas. Eu não conseguia ver direito.

Porque havia algo nublando tudo ao meu redor; nublando meus pensamentos. Não erauma tristeza comum, era só uma espécie de vazio. Um sentimento parecido quando umamigo antigo de mamãe morreu. Eu não o conhecia. Mas eu vi a tristeza nos olhos dela,e então me senti triste também. Vazia.

Emily não morrera, mas eu sabia que não a veria novamente. O seu pai também sabia. ELucy também. E logo todos saberiam.

Eu comecei a imaginar a história que seria bolada e logo passada de boca para boca portoda a escola. O pai de Emily a mandou para um colégio interno na Europa. Ou para

algum lugar bem distante. Não importava. Logo isso seria aumentando até que tudoparecesse tão falso que seria esquecido. E Emily seria somente uma garota de Atlanta.Invisível. Como eu.

Houve algo na voz do Sr. Morgan quando ele disse ―ela e a única coisa que eu tenho‖.Agora eu podia ver o quê: Um homem tão rico e importante, não podia fazer nada emuma situação dessas. Nada importava, nem suas propriedades e nem suas ações emdiversas empresas por todo o país. Ele não era nada. Ele não tinha nada, que pudesseimpedir que sua filha fosse parar em um hospital psiquiátrico.

Eu não sei por quanto tempo andei. Parecia que em um momento eu estava no quarto deEmily e no outro eu estava ali parada em frente à nova fachada do Anderson‘s.

Mas aquilo não se chamava mais Anderson‘s. No alto, em letras grandes e chamativasem vermelho e preto, o nome Burned Fallen reluzia chamando atenção de todas aspessoas que passavam ali em frente convidando-as a entrar.

A entrada era extensa em um dourado cintilante. Vidros decoravam a lateral dela, masestes eram escuros impossibilitando ver seu interior. Tudo tinha um aspecto meiomedieval e aristocrático, pouco percebido se observasse somente as cores. Muito negro,vermelho-vivo, e um leve tom de dourado cintilante.

Não parecia em nada com o que eu pensara se tornar.

Tudo parecia tão elegante e ao mesmo tempo tão jovem e simples.

Atravessei as postas do Burned Fallen, e eu não conseguia acreditar que eu realmenteiria trabalhar num lugar como aquele. O antigo Anderson‘s era modesto, pequeno esilencioso. Normalmente ás pessoas vinham aqui, — pelo menos no meu turno de meioperíodo — , para tomar café ou comer um lanche. Já agora no atual  Burned Fallen, os

 jovens gritam de empolgação por cima da música razoavelmente alta, e pessoasuniformizadas passam para lá e para cá com bandejas e bebidas nas mãos  —  

funcionários que eu ainda não conhecia.

Page 119: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 119/168

Ás mesas ficavam todas em uma única área e a maioria já estavam ocupadas, separadaspor um espaço confortável, — em que seu vizinho da outra mesa não pode escutar suaconversa — , havia uma espécie de pista reservada para aqueles que queriam dançarmais ao norte, ao lado do bar, com uma extensa bancada e bancos na frente. Todos osambientes estavam estrategicamente separados, para que de acordo com eles, pessoas

não se misturassem com certos tipos de pessoas, parecia haver uma placa entre elas: ―Sóse misture se quiser, mas não arranje confusão‖

A iluminação parecia mudar conforme se andava, no lugar onde ás mesas estavam, asluzes pareciam claras e brilhantes, na pista de dança era mais escura e suave, mas nobar, — o lugar onde eu estava parada encarando tudo ao meu redor sem saberexatamente para onde ir — , a luz era vermelha e ofuscante, quase florescente.

E estava muito calor. Primeiro eu não detectei o quanto a temperatura havia mudadodesde que eu estaquei ali, mas com o tempo meu corpo começou a suar. E eu finalmenteliguei os fatos. Aquilo estava Queimando8, literalmente.

Encostei-me na bancada e encarei o barman, ele tinha a cabeça raspada, a pele branca,vestia uma camisa preta colada ao corpo, e tinha uma grande tatuagem em seu pescoço,

 — a gola da camisa cobria a maior parte da figura.

 — Hamm, oi. — eu chamei.

Esperei ele se aproximar, ele tinha quase um sorriso nos lábios, um sorriso estranho quequase deformava o seu rosto. Foi neste momento que percebi que meu subconscienteachava o seu sorriso feio porque o sorriso dele não brilhava como o sol ou um diamante,o sorriso dele era feio porque eu o estava comparando-o com o de Grigor.

 — O que vai querer, baby? — agora com ele mais próximo eu podia ler no discretocrachá em sua camisa, o nome Gustav.

Ele era novo ali, porque mesmo que eu nunca tivesse pegado um turno noturno, eu tinhacerteza que o Anderson‘s não tinha um bar, e logo assim, não teria um barman. Eletinha os olhos um pouco azulados, quase imperceptíveis, não pela luz, e sim porque elesnão tinham nenhum atrativo. E então eu percebi que estava fazendo de novo,comparando o pobre barman com o Oliver.

Pare com isso! Eu pensei. — Não, não. Na verdade eu trabalho aqui, eu só quero saber onde é a entrada para osfuncionários.

Seus olhos me inspecionaram. Eu dei uma rápida olhada em mim, eu com certeza nãoparecia alguém do serviço de inspeção sanitária ou qualquer tipo de coisa que poderiaencrencar o restaurante logo na reinauguração. Ele pareceu perceber isso.

 — Aos fundos, suba escada e estará lá. — ele disse por fim.

8Em inglês seria Burned.

Page 120: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 120/168

 — Obrigada.

Eu fiz o que ele dissera e me deparei com uma porta. Havia algumas garotas que eu nãoconhecia lá dentro. Todas de aparência gentil e doentiamente atenciosas, do tipo quequando se entra numa loja elas vêm correndo perguntar: ―Posso ajudar?‖.

Eram seis no total. Parecia ter certo padrão entre elas, porque todas tinham o cabelonum tom de loiro, tinham a pele bronzeada, um sorriso largo no rosto, e os olhos meiorepuxados, fora o fato de elas estarem vestidas iguais. Todas estavam com um vestidopreto e discreto, mas que parecia estiloso demais para garçonetes . Tinham o cabelopreso em um coque alto com alguns fios soltos o que as deixava despojadas e juvenis.Lizzie apareceu logo depois que eu entrei. Ela vestia o mesmo que elas.

 — Você demorou! — ela disse para mim. — Caramba, isso aqui está cheio, não sei senem com todas essas garotas vamos dar conta. Seu uniforme está no banheiro, se vista evá atender imediatamente as mesas. — ela se voltou para as garotas. — Vamos, vamos,

isso aqui está muito Caido9 e agora ele tem que Queimar10.

Eu me vesti no pequeno banheiro, que só tinha uma pia, um espelho e uma pequena janela no alto. Eu tinha certeza de que eu estava fora do ―padrão‖ totalmente. Eu nãotenho uma pele bronzeada, nem um cabelo loiro, — meu cabelo era da cor da terra,areia, ou barro, tudo dependia da luz. E, além disso, no quesito simpatia, eu não tinhauma placa de neon piscando ―Faça seu pedido a mim!‖

Desci as escadas e olhei ao redor. As garotas já estavam trabalhando freneticamenteescrevendo pedidos em seus bloquinhos. Parecia que o número de pessoas só aumentavaconforme o tempo passava.

Então eu comecei a me perguntar por que continuava ali parada. Resolvi procurar umamesa de poucas pessoas, só para me testar, não estava habituada a receber muitospedidos de uma vez só. Eu andei pelas mesas e parei entre uma mesa de um casal develhinhos e outra de uma garota e um garoto de uns doze anos, eles pareciam dividir omesmo lenço de limpar o nariz. EW!

 — Anna.

Eu estava me virando para os velhinhos quando eu ouvi meu nome sendo chamado. Eu

girei minha cabeça para todos os lados, tentando encontrar a pessoa que havia o feito.E então eu o encontrei. Perto de duas portas duplas, entre o espaço entre as mesas e obar. Com uma camiseta preta agarrada ao seu peito musculoso, com sua habitual jaquetade couro jogada sobre o ombro, vestindo calças jeans igualmente escuras, e tênis decano longo, também pretos ele poderia se misturar com a escuridão, se quisesse. Masacho que mesmo que o fizesse Grigor não deixaria de atrair os olhares femininosalucinados de todas as partes.

9 10

No inglês, Fallen e Burned. Trocadilho

Page 121: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 121/168

Hesitei antes de me aproximar e tentei parecer normal enquanto o fazia. Eu tinha certadificuldade em vê-lo com desconfiança, porque certo, eu sei que há algo de muitoerrado nele e que se Oliver for algo de muito ruim e sinistro  — o que ele mesmo diz ser

 — , Grigor está a dois passos dele, se não no mesmo nível, ou mais...

 — Hey, — eu disse, minha voz aparentando cansaço, apesar de meu coração estáacelerado em meu peito.

Eu não disse mais nada e permaneci o encarando minuciosamente, procurando qualquergesto suspeito. A boca dele se curvou em um meio sorriso.

 — Isso é estranho. Não sabia que trabalhava aqui. — disse-me ele.

 — É eu trabalho. — eu disse, minha testa se enrugando sem entender o porque deleachar estranho. Eu que tinha que achar aquilo estranho, porque isso iria para a minhalista de lugares onde ele aparece do nada. — Porque estranho? — havia uma irritação

que eu não queria demonstrar em minha voz, e então eu pensei mais um pouco, em algoque sim seria muito, muito estranho. — Não me diga que você também vai trabalharaqui.

Minha voz saiu diferente. Não excitada com a idéia. Não desanimada com ela. Muitomenos chocada. Ela saiu meio esganiçada e... Algo mais.

 — Tecnicamente.

O que diabos quer dizer tecnicamente? Eu fiz cara de paisagem mostrando que nãohavia entendido onde ele queria chegar.

 — Eu meio que comprei isso aqui e só me avisaram hoje.

Minha boca se abriu. Agora sim eu estava chocada.

 —  Você... Você comprou o Anderson‘s?

 — Não eu exatamente. Foi Leonard, meu... Tutor. — ele disse. Porque será que elesempre responde tudo sobre ele com essa ironia, como se tivesse um duplo sentido emtudo? Que diabos! — Ele acha que eu estou meio desocupado na cidade. — ele revirou

os olhos ao som de suas palavras.Eu não sabia o que dizer.

Page 122: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 122/168

Se Grigor e o tutor dele compraram o restaurante, o antigo Anderson‘s que agoraganhou o nome de Burnerd Fallen, — que carrega consigo esses trocadilhos estranhos

 — , isso faz de Grigor o patrão, e de mim... A funcionária dele.Minha boca quis se abrir mais uma vez. Ele era o meu chefe. Eu senti meu rosto corar.

Como eu o encararia como isso agora? Quando uma pessoa era dono ou dona de algumacoisa, ela normalmente era evasiva — do tipo que não tem contato direto com osfuncionários, do tipo que se pode trabalhar lá, mas não se sabe nem o nome do dono  —  ou velha, como no caso de Sr. Anderson.

Mas Grigor não se encaixava nisso. Ele estudava na mesma escola que eu. Eu oconhecia. Eu o tinha beijado.

 — Eu tenho que voltar ao trabalho. — eu disse rapidamente, me virando.

 — Espere. — ele estava segurando meu cotovelo para que eu não saísse do lugar.  —  

Tenho uma coisa para te dizer.

Eu pensei em um milhão de coisas que ele poderia me dizer. Ele poderia dizer algosobre o beijo, algo do tipo ―somos só amigos, OK‖, ou me dar minhas tão esperadasrespostas sobre o que aconteceu na minha casa naquela noite estranha, ou a frase maispertinente e bizarra que eu já imaginei saindo da boca do Sr. Anderson ou de todos osdonos de lugares que eu ponderei trabalhar algum dia, mas nunca da boca de Grigor:―Você está demitida‖.

 — Que coisa? — eu perguntei. Uma pequena parte de mim torceu loucamente que fossequalquer uma das outras coisas que pensei, menos a do beijo.

 — Eu vou te cobrar o que me deve. Agora.

Franzi minhas sobrancelhas. Ele me observou atentamente esperando algo. Uma nuvemse instalou em minha mente enquanto eu pensava. Eu devia algo a ele? Não eradinheiro, certamente. Eu não era como Luke.

Uma luz se acendeu em minha mente.

Page 123: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 123/168

 — Está falando daquilo do beco? — eu perguntei atordoada demais para me lembrar dequalquer outra coisa. Grigor havia me tirado daquela confusão na noite da racha —  confusão que Oliver fez ficar ainda mais confusa.

 — Exatamente. — e o sorriso dele de ofuscar até o sol apareceu, mais por trás da luz

havia também certo ar obscuro.

 — O que quer que eu faça? — eu perguntei.

A luz e a obscuridade duelavam em seu sorriso. E eu não sabia se me derretia com ou seme assustava com isso.

 — Na verdade você já fez. Mas eu quero que faça isso direito.

 — Eu não entendi. — confessei.

 — Humm, vamos ver se isso te lembra. — e ele tirou de dentro de seu bolso de trás umconhecido objeto. Meu celular .

Page 124: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 124/168

DEZ.

Ele balançava o aparelho na minha frente, a obscuridade agora ganhava em seu sorriso.Eu pressionei meus lábios um contra o outro, minha respiração saindo às ofegadas.

 — Eu o encontrei em cima da minha cama. — a voz dele tinha um tom meiodespreocupado, mas o seu sorriso deletava tudo. — E isso é um pouco engraçado einjusto porque eu não estava lá com você.

Pense em alguma coisa. Dê-lhe alguma explicação. Eu pensei.

Mas havia alguma explicação para dar?

 — Eu... Eu... — balbuciei sem saber o que lhe dizer.

Ele deveria estar pensando que eu sou uma delinqüente ou coisa pior. Mas se eu lhecontasse a verdade passaria disso para uma louca perseguidora, não? Então eu me caleie resolvi continuar calada e deixar que ele tirasse suas próprias conclusões.

E quando eu percebi que ficar o assistindo tirar suas conclusões sobre mim, —  conclusões que chegavam a me dar dor de dente de tanta vergonha  — eu me virei decostas para ele e rumei em direção as escadas da entrada dos funcionários.

Eu entrei no pequeno cômodo e depois fechei a porta do banheiro. Eu não poderia ficarali. Eu não queria mais ficar ali. Porque se eu ficasse, eu iria descer as escadas e encararaquele ser obscuramente encantador, e misteriosamente atraente e lhe dizer a seguinte

frase: ― Certo, eu invadi a sua casa esta tarde. E certo, eu devo parecer idiota por isso.Mas não importa, eu vou descobrir o que diabos você é.‖ E isso com certeza não seriauma boa idéia.

Porque eu sabia que ele tinha segredos escondidos por aí  — segredos que depois que euvi aquele estranho quadro, eu sabia que me envolviam. Mas eles com certeza nãoestavam escondidos em baixo do tapete da sala.

Havia uma janela no topo. Uma janelinha, para ser mais especifica. Mas eu já haviapulado um muro... Então, porque não ser mais estúpida ainda e sair do Burned Fallenpor ela?

Do lado de fora, eu me levantei do chão enlameado. A queda tinha sido brusca, e destavez eu não posso dizer que escapei ilesa sem um único arranhão.

Eu tinha que sair dali. Mas definitivamente não queria ir para casa.

Lizzie poderia me ligar perguntando por que eu abandonei o trabalho em plenoexpediente. Ou mil vezes pior: Grigor poderia ir me procurar lá. Ele poderiasimplesmente me demitir. Seria mais fácil para ambos, cortar as relações, todas asrelações.

Page 125: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 125/168

Resta saber se ainda assim eu conseguiria ficar longe de seu caminho. Ou ele do meu.Porque eu estava começando a desconfiar de um possível imã — algo que nos une, algoque sempre me faz trombar com ele.

Rumei então para o cemitério.

Alguns pingos de chuva atravessaram as copas das arvores e caíram em meu rosto. Essefoi o último aviso que tive de que aquele não era um bom momento para ir visitar aminha mãe.

E depois a chuva começou de verdade. E eu me encontrei parada sem saber secontinuava ou se voltava para trás. Eu já estava próxima ao meu destino, então resolvicontinuar. Além disso, eu já estava encharcada.

Meus pés se tornaram escorregadios no solo irregular e eu tive que me segurar nasgrades do portão de ferro para não cair. Eu o fechei e continuei a caminhar.

Eu estava a poucos metros da lápide da minha mãe quando eu escutei o baque doportão.

Eu ofeguei de repente sufocada. Meu tronco se virando em direção ao barulho. A chuvaatrapalhava minha visão e grudavam meus cabelos em minha face tornando difícildefinir o que era borrão e o que era real. Mas eu o vi.

Parecendo uma estátua em cima de uma das lápides, com apenas uma calça pairando emseu quadril, Gustav estava um pouco agachado sorrindo assustadoramente para mim. Acabeça raspada pareceu reluzir o raio que rascou o céu.

Ele saltou de cima da lápide caindo ao chão com um mínimo flexionar de joelhos. Seusolhos eram negros como um buraco fundo e cruel, ele deu um passo em minha direção,e eu rapidamente me afastei.

Um rápido deja vú me veio à mente; Eu me lembrei imediatamente da imagem deOliver caminhando como um Deus da destruição em minha direção... Mas com Gustavera completamente diferente. Havia algo de diferente;

Quando eu vira Oliver saindo da velha casinha eu já pensara estar morta, e ainda assimcontinuei ali o esperando, e depois ele sumira; como uma brisa que somente dá calafrios

e depois se vai.Mas Gustav continuava ali com seu sorriso ameaçador vindo em minha direção. Eusabia que ele me via — aquilo não era uma visão.

Eu me desloquei mais para trás.

O sorriso sumiu de seu rosto e ele olhou para trás como se tivesse ouvido algo. E entãoele se voltou para mim, e meus olhos mal foram capazes de acompanhar seusmovimentos. Como uma flecha disparada de um arco, o barman correu em minhadireção, rompendo a tempestade.

Page 126: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 126/168

Ele agarrou o meu pescoço, suspendendo-me no ar. Meus olhos reviraram-se em minhasórbitas por tamanha era sua força. Eu tentei chutá-lo com meus pés, mas a força queusei pareceu ser revertida somente para mim; era como se eu tivesse chutado umaparede de concreto.

Meus pulmões doeram com a falta de ar, e uma sensação de desespero se arrastou portodo o meu corpo. A minha visão falhou, sucumbindo-se, e de repente eu só sentia oaperto de sua mão estrangulando o meu pescoço.

Uma névoa começou a se instaurar em meu cérebro, ela foi ficando escura e mepuxando e confundindo; inacreditavelmente rápida; como apagar uma luz; nummomento eu estava ali e no outro não.

Eu não sentia mais nada; o aperto se fora e eu parecia flutuar ao relento na escuridão.Isso durou apenas alguns segundos; e então era como se eu estivesse caindo... Caindo deum lugar muito alto e pousando bruscamente no chão.

Eu ofeguei levando minhas mãos ao meu pescoço; a chuva tinha se transformado emgranizo e eles pareciam martelar os meus ossos. Tentei me levantar, e abastecer os meuspulmões, que pareciam secos e rasos, com o máximo de ar que conseguisse exalar.

Não foi muito depois disso que a minha visão voltou. Eu arregalei meus olhos,incrédula, para tentar ver melhor a cena que se desenrolava a minha frente.Gustav estava com sua cabeça sendo batida repetitivas vezes contra uma lápide apoucos metros de mim — o lado esquerdo de seu crânio estava ligeiramente amassadopara dentro. O corpo dele voou por todo o terreno do cemitério como um vulto, e entãoele caiu de pé em cima de outra lápide a uns vinte metros de mim.

Eu tentei focalizar meus olhos no outro ser vestido de negro que agora disparada paraonde ele estava. Eu o vi arremessar Gustav para mais trinta metros de distância, destavez ele cambaleou quando pousou.

Eu tentei me manter de pé, meus olhos só conseguiam acompanhar os vultos a longadistância que deixavam rastros em meio à chuva de granizo.

Eu deveria aproveitar para sair dali. Tudo em mim dizia para cair fora, para não veraquilo. Mas meus músculos paralisaram e meus pés pareceram criar raízes no chão

quando eu percebi que o vulto negro, que agora tinha imobilizado Gustav no chão, eraGrigor.

Uma luz avermelhada surgiu entre eles. Meus olhos saíram de foco com a repentinaclaridade. Um relâmpago seguido por um trovão me despertou do meu repentino transe.Quando eu abri meus olhos não havia mais luz, mas eu pude ver a tempo Gustav sumirem pleno ar.

Eu tinha certeza que aquilo não poderia ser ilusão de ótica; ele realmente sumira.

Minha boca se entreabriu; eu dei um passo para trás. O vulto negro se levantou e se

virou para mim. Os cabelos de Grigor estavam jogados para trás e escuros e, mesmo adistância, eu sabia que o seu rosto estava inacreditavelmente composto e sério.

Page 127: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 127/168

Um único soldado sobrevivente a guerra; um homem a poucos centímetros de umfuracão e que mesmo assim não se move, sem um pingo de temor nos olhos; um anjomaligno observando o inferno arder; ele poderia ser qualquer um destes. Mas aindaassim era glorioso. Gloriosamente diabólico.

Meus olhos paralisaram no objeto em seu pescoço. Era uma espécie de medalhão; suacorrente fina era de um dourado brilhante e acompanhava ondulada até a minúsculapedra do centro dele. Eu pude ter um último vislumbre da luz avermelhada, antes queele o enfiasse sob sua jaqueta.

Não demorou muito até que ele estivesse a minha frente. Ele não disse absolutamentenada quando sua mão se fechou em meu braço e me puxou contra ele. Eu ofeguei umaúltima vez, antes de ser jogada para cima de seus ombros, ficando de ponta cabeça.Demorou exatamente dois segundos para que o choque fosse substituído por umaestanha ira.

 — Coloque-me no chão! — eu exigi.

 — Desculpe, mas não. — a voz dele soava calma e ligeiramente provocativa aos meusouvidos. — Você já me deu trabalho demais para uma noite, não estou a fim de ter quecorrer atrás de você de novo.

 — Simples: Não corra! Deixe-me ir em paz! — eu disse. — Coloque-me no chão agora!

 — Não acho que você esteja em condições de exigir nada, Anna.

Eu tentei me mexer e usar minhas pernas para me libertar, mas ele rapidamente prendeuminhas mãos com as suas e não houve reação sua de dor com os meus pontapés.

 — Mas que diabos! O que você quer?

 — Eu já lhe disse: Quero que faça as coisas direito.

 — Que coisas? — eu me vi obrigada a perguntar.

 — Vamos ver, primeiro: você invadiu minha casa, a única coisa que estragou é o fato dea rua inteira ser monitorada por câmeras, mas eu tenho que admitir que adorei ver você

pulando o muro da minha casa. Segundo: É um erro terrível esquecer coisas, Anna.Ainda mais no meu quarto. E sem que eu esteja lá.

Eu engoli em seco.

 — Para onde está me levando?

 — Para minha a minha casa.

 — Por quê? — perguntei exasperada. — O que diabos eu tenho que fazer direito?

Page 128: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 128/168

Eu sabia que ele estava sorrindo descaradamente agora. Eu não precisava vê-lo parasaber disso; essa era a sua reação as minhas perguntas: Ele sempre sorria como sehouvesse uma ironia em tudo.

 — Eu ainda estou me decidindo. Mas no momento, eu só quero que você volte para o

meu quarto.

Céus!

 — Você é um tarado ninfomaníaco e está planejando me atacar? — eu gritei para ele. — Grigor eu estou avisando é melhor me deixar ir embora ou então...

 — Ou então o quê, Anna? — perguntou ele divertido. — Fique tranqüila, eu não vou teatacar... — eu quase pude escutar o ainda perambulando pelos seus lábios. — Só queroesclarecer algumas coisas com você.

Eu engoli em seco novamente enquanto pensava nisso. Ele iria me dar as minhasrespostas? Ele finalmente iria encaixar as peças desse grande quebra cabeça sombrioque a minha vida se tornou desde que ele e Oliver chegaram?

Eu me calei. Meu cérebro começou a repassar a cena do cemitério e mais perguntas seformularam em minha mente. O que havia acontecido com Gustav? Tinha algo dediferente nele; algo que eu não notei quando o vi atrás daquele balcão no bar no BurnedFallen.

Ele não era o mesmo cara que tentou me matar estrangulada no cemitério. Certo, era ele.Mas não exatamente. Havia algo nas feições desse cara que não havia nas feições dobarman. Esse cara parecia doentio e inumano; ele era maligno e irracional, robótico...Possuído.

Meus olhos se focalizaram na pista. Já tínhamos saído do bosque e eu ouvi o bip que ocarro de Grigor deu quando ele destravou o alarme. Eu sabia que aquela era a minhaúnica chance para fugir. Mas eu mudei meu raciocínio de se eu conseguiria escapar dele para se eu queria escapar dele.

Eu queria minhas respostas; eu não suportaria ficar mais nestes jogos de vida ou mortesem nenhuma pista do que estou me metendo. Eu precisava saber.

Mas então eu pensei: Eu realmente queria saber?

Eu queria realmente saber no que estou me metendo? Ou melhor, a parte do meucérebro, — a parte que não está completamente rendida e obcecada pelas respostas, aparte que enxergar somente os garotos misteriosos e atraentes que eles são... A parte queestá – eu engoli em seco em somente pensar na palavra, então eu rapidamente me fizpensar em outra –  envolvida com eles, ela quer realmente saber no que eu estou memetendo?

Houve o click da porta e então eu fui jogada para o banco do passageiro, e logo ele

estava ao meu lado arrancando com o carro.

Page 129: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 129/168

Uns cinco minutos depois Grigor estacionou o carro em frente a sua casa. A chuva aindanão tinha parado, ao contrário, ela só parecia ficar mais e mais intensa.

Deveria estar fazendo frio; mas eu tampouco o sentia. Uma adrenalina angustiantecomeçou a tomar conta de mim. Eu ao menos pensei nas conseqüências. Estava cansada

de suposições, estava cansada dos ―e se” que assombravam todos os meus pensamentos.Eu teria a verdade, e no momento, eu não queria me preocupar com isso.

 — Vou pegar algo para você vestir — Grigor disse quando paramos no meio da sua sala.Eu coloquei a minhas mãos nos meus bolsos encharcados por puro habito.

Ele deslizou sua mão pela parede, e eu ouvi o click click do interruptor, mascontinuamos na escuridão. Sem luz, que ótimo!

 — Então agora é a lei do silêncio? — ele perguntou, seus lábios estavam curvados emum quase sorriso.

Eu estava parada com um pé dentro e o outro fora do seu quarto o encarando revirar oseu closet a procura de algo que me sirva. Eu não me importava com minhas roupasmolhadas, tampouco queria por outras. Eu só precisava das minhas respostas.

Meus olhos pousaram em cima de sua cama.

 — Você toca? — eu não pude evitar perguntar encarando o violão.

 — De vez em quando. — ele disse. Eu mordi o meu lábio, movendo os meus olhosentre o violão e ele. Então eu o imaginei tocando-o... E a imagem formulada na minhamente foi tão sexy. Eu ruborizei fortemente com ela. — Eu acho que isso deve lheservir.

Era um moletom de Oxford; Emma ainda sonha em conseguir um, se ela me visseusando isso provavelmente enlouqueceria.

 — Se quiser pode se vestir no banheiro. — dissera ele. Eu demorei um pouco para sairde meus devaneios, tempo suficiente para ver Grigor tirando sua jaqueta. A camiseta debaixo dele molhada estava agarrada ao corpo, revelando todos os músculos rígidos edefinidos do seu peito largo.

Eu fechei a porta do banheiro atrás de mim antes que minha mente, que hoje deu paraimaginar de mais, me fizesse parecer um pimentão novamente.

Eu retirei o meu novo e molhado uniforme. Minhas roupas de baixo estavammilagrosamente secas. Eu enfiei meus braços para dentro das mangas do moletom, e asdobrei três vezes para que minhas mãos pudessem ser vistas. O comprimento ficou emcima dos meus joelhos, e eu repeti para mim cinco vezes que não iria me preocupar emestar usando somente isso na frente dele.

Eu abri a porta e encarei Grigor sentado em cima da cama. Ele tinha colocado outra

camiseta preta, o que me fez acreditar que ele tivesse um estoque delas; e estava com

Page 130: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 130/168

uma bermuda jeans da mesma cor; mas o que marcou mais foi o meio sorriso que eletinha no rosto, um sorriso que só me prometia uma coisa: encrenca.

E simples assim, eu decidi que não era o momento de confrontá-lo. Eu já deveria saberdisso, eu já deveria ter percebido isso há muito tempo: Eu não tinha coragem para isso.

Eu não poderia simplesmente perguntar.

Uma vez Emma e eu combinamos de nos reunir para estudar, mas acabamos ficando atarde inteira ouvindo música. A nossa prova final era para o dia seguinte. Um garoto,acho que seu nome era Samuel, não era Miguel, disse que tinha todas as respostas doexame. Eu estava apreensiva e nervosa, mas ainda assim não tive coragem de pegá-las.Desde então Emma sempre frisa que eu sempre busco resolver meus problemas pelosmeios mais difíceis.

E era justamente o que eu iria fazer agora.

Eu iria desvendar todos os mistérios e saber de todos os segredos que Grigor e Olivermantinham na escuridão. Mas sozinha, por minha própria conta.

 — Eu tenho que ir embora, não posso ficar aqui — eu disse, e pigarreie para que minhavoz soasse forte e decidida. — Me leve para minha casa.

 — Não podemos sair nessa tempestade, é perigoso. — o sorriso curvo dele reacendeu aira que eu vinha guardando;

 — Como se ficar aqui sozinha com você não fosse.

Ele riu baixinho; uma risada que só confirmou minhas suspeitas: Eu não estava segurasozinha com Grigor!

 — Não se engane, você não apenas quer como deve passar a noite aqui comigo. Eu nãomordo.

Minhas mãos começaram a suar quando ele disse passar a noite... Então minha mentefinalmente encarou a realidade: Eu estava presa ali. Com ele.

Flashes de Gustav povoaram minha mente; Ele sumira em pleno ar... E aquela luz

avermelhada.

Page 131: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 131/168

 — Gustav ele... — minha voz falhou e eu engoli o caroço que surgiu em minhagarganta. — O que foi aquilo?

Ele virou seu rosto para o lado, eu não podia ver sua expressão, mas pela sua posturarígida e pelos seus punhos cerrados eu soube que aquele não era um bom momento para

perguntar isso. Mas então eu pensei: Dane-se! Eu precisava saber. Pelo menos isso.

 — Como você fez aquilo? — eu pressionei.

Ele se virou e eu me assustei com a sua expressão, ou melhor, com a sua não-expressão;O rosto de Grigor era limpo de qualquer uma; ele era frio, calculista... E lindo. Eu meencolhi. Ele era um bad-boy. O tipo de cara que minha mãe desaprovaria para mim; otipo de cara que ela definiria como ―errado‖.

 — Não posso te dizer isso... Não agora. — disse ele por fim, se levantando. Ele pegou aminha mão e me puxou para ele, me fazendo sentar ao seu lado.

Eu tentei não me distrair com isso, e me focar no assunto.

 — O que há de errado com o agora? Qual a diferença de me contar isso ou não?

 — Não posso despejar isso em cima de você de uma só vez.

 — Por que continua com isso em vez de simplesmente me dizer a verdade?

 — Não posso te contar tudo de uma vez, porque você não suportaria, Anna. — sua bocase curvou em quase um sorriso genuíno. — E, além disso, eu gosto de jogos.

 — Seus jogos estão me cansando.

 — Cansando? Eu ainda nem comecei a jogar! — ele riu sem humor.

Oh Deus!

Ele se inclinou para mim, me mantendo presa sob seu olhar magnético. Seus lábiosroçaram em minha mandíbula. Eu me obriguei a me afastar.

 — Por que faz isso?

 — Isso o quê?

 — Me confunde e depois...

 — Já passou pela sua cabeça que você é simplesmente irresistível?

Eu revirei meus olhos, mas não pude me impedir de corar. Ele colocou seus dedos emminha bochecha quente.

 — Eu gosto do seu sarcasmo, eu gosto do jeito como você tenta esconder o que sente,

mas acaba entregando tudo quando pressiona seus lábios exatamente como está fazendoagora. — ele disse, seu hálito doce veio forte em meu rosto me desnorteando ainda

Page 132: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 132/168

mais. Eu me obriguei a separar meus lábios. — E eu gosto até do seu cabelo estranho corde avelã.

 — Cor de quê?

Ele não respondeu. Somente beijou a curva do meu pescoço. Ele começou a brincar comuma mecha do meu cabelo, e passou um braço pela minha cintura me trazendo aindamais para perto. Involuntariamente minha cabeça pousou em seu ombro. Era impossívelresistir a isso. Era impossível resistir a ele

 — Durma.

E não era como se eu tivesse ou quisesse ter escolha, eu simplesmente o obedeci.

Page 133: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 133/168

ONZE.

Eu fitei meus pés descalços no chão. Eu tinha uma vaga consciência do que acontecia aomeu redor. A casa estava quente, apesar de lá fora o dia ser nublado e gélido. Emma

assistia alguma série na TV. Rose fazia mil tranças no cabelo de Molly  — o que eraquase impossível, já que o cabelo dela era liso e escorregadio, de modo que quandoRose acabava de fazer uma trança, duas feitas já tinham se desmanchado.

Meus pensamentos estavam voltados para ás lembranças de ontem à noite. Maisprecisamente em todas as partes dela em que Grigor aparecia. Primeiro no BurnedFallen, quando eu descobrira faticamente que agora era sua funcionária; depois nobosque quando ele me encontrou com Gustav — agora olhando por um lado eu vejo queaquilo seria sorte no ponto de vista de algumas pessoas. Afinal ele me salvara deGustav. Ele salvara minha vida... Mas há algo nessa história que não se encaixa, comopor exemplo, como Gustav sumiu em pleno ar... Certo, estava chovendo e a minha visãoainda um pouco nublada, mas ele não poderia sumir tão rápido.

E então eu pulei a cena da casa dele, porque eu realmente não queria me lembrar delaagora. Grigor Lybieri é cheio de facetas, mas duas delas se sobressaem: a parteassustadora e principalmente a galanteadora. O estranho é que ele usa as duas ao mesmotempo me deixando indecisa se devo correr ou ficar rendida a ele.

De manhã, quando eu acordei nos lençóis macios de seu quarto, eu me dei conta de queeu tinha avançado um passo para desvendar seus mistérios, mas soube também quequanto mais eu o desvendava, mais eu me envolvia. Mais eu estava em perigo...

Em diversos tipos de perigos...

Parece irracional que o menor, e talvez o mais bobo deles seja o que mais me incomode.Na minha vida planejada eu não tinha feito planos para isso. Eu sempre tive em mentede que terminaria o ensino médio, entraria numa faculdade bem longe de Atlanta elevaria Molly comigo. Garotos não faziam parte do plano...

Então eu simplesmente me levantei, peguei meu vestido ainda úmido no banheiro e,como diria Luke, dei no pé.

Eu estava ficando especialista em fugas e invasões de propriedade. Eu nunca achei quefosse precisar fazer isso na minha vida, mas também nunca pensei que coisas estranhas fizessem parte da minha vida.

Caminhei por quilômetros até a casa de Emma. Eu poderia cortar caminho pelo bosque,mas algo se movendo na vegetação me repeliu. Gustav; foi à última coisa que eu penseiantes de correr desesperadamente por todo o percurso do resto do caminho.

Poderia ter sido só um animal, ou até mesmo alguma pessoa andando por ali. Mas, bem,apesar das atitudes idiotas e impulsivas que venho tomando nas últimas semanas, eu nãofico procurando por situações de alta adrenalina — humm, talvez de vez em quando,

mas eu não estava a procura disso exatamente, eu só queria respostas...Respostas que estão me custando cada vez mais caro.

Page 134: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 134/168

Agora eu estou parada aqui vendo os segundos passarem demoradamente. Por conta datempestade de ontem, todas as aulas foram canceladas. Mas eu ainda tinha que irtrabalhar... Se é que eu ainda tinha um emprego!

 — Não é, Anna? — alguém disse, e como normalmente faço quando estou no meu

piloto automático, digo:

 — Claro.

 — Legal! Está vendo mãe? Anna é a pessoa mais responsável que conhecemos e até elaconcorda que não há problema em viajarmos sozinhas e que nós duas devemos ir aSavannah para curtir neste fim de semana.

 — O quê? — eu e Chad, que acabara de chegar à sala, dissemos ao mesmo tempo.

 — Savannah! A quanto tempo não vamos a praia?  — perguntou, mas ela mesma

respondeu. — Há um milênio! O pai de Luke alugou uma casa lá, que eles nuncausaram. Podemos ir sexta à noite e no domingo pela manhã já estaremos aqui. Seremosresponsáveis, só queremos sair um pouco dessa cidade, por favor, papai!

Por favor, papai; Ela disse isso quando viu o Miata em uma concessionária. Naquelaépoca, Chad estava em um emprego de corretor — profissão que ele detesta — e elestinham uma situação financeira estável.

 — Vou pensar nisso, querida. — disse-lhe rapidamente, antes de voltar para a suamáquina de escrever situada no pequeno jardim de Rose no quintal da casa.

 — Ótimo, isso é um adjetivo para não. Mas não vamos desistir, não é, Anna?

 — Claro. — droga! Alguém bata na minha cara até eu despertar de vez?

 — Você está bem, querida? Parece preocupada. — Rose disse. Ela ainda não desistirade entrançar o cabelo de Molly.

 — Estou. — eu me obriguei a dizer, e esquecer a palavra claro do meu vocabulário.

Ela não disse nada mais a respeito. O cômodo ficou silencioso, a não ser por a voz do

galã perigoso da série que Emma assistia. — E a sua peça, Molly? — perguntei para me retirar de dentro de minhas lembranças. — Como está indo?

 — Bem, já decorei todas as minhas falas.

 — Vocês estão fazendo uma peça? — Emma, que mudava de canal entediadamente,perguntou.

Page 135: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 135/168

 — Sim. Romeu e Julieta.

 — Oh, Shakespeare, tão romântico. — entoou Rose.

 — Molly vai ser a Julieta. — comentei.

 — Oah! Pelo visto temos alguém talentoso nesta família! Lembra da terceira sériequando Luke quis ser Julieta, e Emily roubou o papel dele?

Todas as três riram; mas ao ouvir o nome de Emily, eu só consegui engolir em seco.

 — Quando vai ser a apresentação? — perguntou Rose.

 — Domingo à tarde.

 — Olhe só, tudo perfeito. Podemos chegar de Savannah, descansar e ir ver a peça.

Rose revirou os olhos; ela não gostava de ser uma mãe chata e imbatível, por isso eladeixava as repreensões para Chad, que tinha tão pouca vontade de ser isso quanto ela. Eisso resultava que Emma sempre conseguia o queria. Não tudo. Quase tudo. Eles fazemum acordo em que as duas partes ficam satisfeitas, eu fazia isso com a minha mãeantigamente, claro que ela saia ganhando, afinal a profissão dela exigia que ela sempresaísse em vantagem.

 — Acho que devemos ir, eu tenho que ir trabalhar e Nancy está te esperando Molly.

Quando chegamos em casa, eu adiantei a matéria que havia perdido, lavei e coloquei nasecadora o meu uniforme, e liguei para Lizzie para saber se ainda tinha um emprego.

 — Você tem sorte. Ninguém percebeu que você não estava. Com a chuva o movimentodiminuiu e fechamos mais cedo do que o previsto. — ela me dissera.

Eu não sabia se aquilo era uma boa notícia. Eu sabia que não poderia mais trabalhar lá — não quando o dono era Gregory Lybieri. Não deveria ser tão difícil arranjar outroemprego, em breve eu teria 16 anos, e ainda teria a experiência adquirida noAnderson‘s. Bastava agüentar essas últimas semanas em que eu ainda teria 15 anos e 11meses para começar a procurar um.

Vesti o meu uniforme já completamente seco e confortáveis sapatilhas de balé. Prendi omeu cabelo em um coque, e testei o meu sorriso no espelho. Parecia superficial eforçado, para mim, mas deveria ser o bastante para combinar com as outras garçonetes.

Duas horas depois eu estava mais ocupada do que já estivera em toda a minha vida. Sóhavia duas garotas que conheci noite passada, e é claro Lizzie, que mais cutucava suasunhas pintadas de rosa choque do que me ajudava.

Eu estava entregando um pedido na cozinha, quando alguém tocou o meu ombro. Mevirei assustada dando de cara com uma das garotas loiras, eu não sabia definir qual das

duas eram, não que eu não fosse boa em guardar rostos, mas os nomes delas também

Page 136: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 136/168

não ajudavam. Talvez essa fosse Brenna, e a outra que estava vindo logo atrás delafosse a Drenna.

 — Tem um cara na mesa número dez... — disse-me a primeira.

 — Ele quer que você vá atendê-lo. — completou a segunda.

 — Ele é o que seu? — indagou à primeira.

 — Tipo, seu namorado? — a segunda novamente completou.

 — Não... Eu não tenho um namorado. — minhas sobrancelhas se uniram confusas,primeiro por elas duas parecerem alguma espécie de desenho animado, algumaanimação com duas cabeças, e segundo, por que fui pega de surpresa.

Desde quando alguém tinha preferência por mim?

A curiosidade me levou até a área das mesas — houve uma pequena reforma ali, agoraas áreas não eram mais separadas por espaços, elas eram divididas por espécies de

 paredes molengas que pareciam cortinas olhando de longe, e somente o ―restaurante‖estava sendo usado.

Parei olhando a mesa número dez, e quase dei meia volta quando vi quem era. Umvelho ditado me veio a cabeça: ―quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece‖.

Percebi o olhar bisbilhoteiro de Brenna e Drenna atrás de mim. Se eu não fosse até lá,elas provavelmente contariam tudo a Chuck, que provavelmente me demitiria. Mas eraexatamente isso que eu queria, dar o fora dali. Mas eu não estava gostando da idéia deOliver ser a causa disso.

Não. Eu pensei. Se eu fosse sair daquele emprego seria com as minhas próprias pernas.Foi por isso que eu parei em frente a mesa número dez, coloquei o sorriso falso que euhavia treinado em frente ao espelho, e perguntei o mais educada que eu consegui:

 — Posso anotar o seu pedido, senhor?

Ele riu baixinho, antes de levantar sua cabeça para me olhar, eu me mantive ereta e

desviei minha visão de seus olhos. — Senhor? — zombou ele, com uma sobrancelha arqueada.

Eu me mantive ereta e não respondi, apenas dei um leve aceno entediado.

 — Não acho que o que eu quero esteja no cardápio. — continuou ele com a zombaria.

Não perca o controle, Anna.

Eu quis xingá-lo, mas me controlei.

 — Lamento, mas então não posso ajudá-lo. — disse estridentes.

Page 137: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 137/168

 — Tem certeza? — ele cruzou os braços em cima da mesa, seu sorriso idiota estavaemoldurando seus lábios.

 — Absoluta. — respondi. — Se me der licença eu ainda tenho mais clientes paraatender.

Ele me encarou fixamente, os olhos meio que me inspecionaram de cima a baixo. Nãohavia mais sorriso nenhum em seu rosto, ao contrário, ele se tornara frio, quaseameaçador.

 — Eu preciso de uma coisa que você tem.

Eu tentei sorrir novamente, meu melhor sorriso ―vai se danar‖.

 — E eu preciso que você me deixe em paz.

 — Eu não vou embora até conseguir o que eu quero.

 — Espero que esteja confortável sentado, você vai esperar uma eternidade.  — Eu disseantes de lhe dar as costas.

Esperei uns quinze minutos antes de voltar e ele já não estava lá. Por mais que eutentasse não pensar nele eu não pude evitar me perguntar o que ele queria.

Quando meu expediente acabou, eu troquei de roupa e desfiz o coque no meu cabelo, ovolume tinha cedido um pouco na raiz, mas as pontas estavam onduladas e volumosascomo nunca antes. Meu rebelde e abominável cabelo de sempre.

Eu não acredito. Foi o que pensei quando vi a moto de Oliver estacionada do outro ladoda rua. Ele estava perto, eu sentia, era como uma premonição, me alertando de que eunão estava segura, de que eu deveria correr.

Olhei para todos os lados, a rua estava bastante movimentada, a maioria das pessoasapressadas querendo chegar logo em casa, eu me meti entre elas, e puxei o meu capuzpra cima, prestando atenção em tudo ao meu redor.

Quando o fluxo de pessoas diminuiu, eu parei e olhei para trás. Não havia sinal nenhum

dele. Mas a sensação estranha ainda me rondava. Minutos depois eu chequei novamentesó para ter certeza de que aquilo era coisa da minha cabeça.

Um pouco aliviada continuei meu caminho na calçada, o fluxo de pessoas tinhadiminuído consideravelmente, mas as que ainda continuavam ao meu redor pareciamziguezaguear em meu caminho impossibilitando que eu andasse mais depressa.

Ajeitei o capuz para fora da cabeça, e foi justamente nesse momento de distração quetrombei com algo duro, fino e alto a minha frente. Um poste, eu pensei. Mas um postede óculos escuros, blazer e um sorriso reto no rosto.

Page 138: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 138/168

 — Des... Culpa. — eu murmurei, assustada. Ele era o homem mais alto que já vira emminha vida, só havia visto pessoas assim na TV naqueles programas de ―tal coisa maior do mundo‖.

 — Anna? — chamou-me.

Olhei para cima, e ele olhou para baixo. Seria cômico se eu não estivesse à beira de umataque de pânico.

Eu sabia que não se deveria dizer seu nome a pessoas estranhas, isso é sempre o quedigo a Molly, mas bem... Tinha um cara do tamanho de um poste parado na minhafrente que queria saber se meu nome é Anna, o que eu posso fazer?

Acenei. Meus olhos deveriam estar do tamanho de duas azeitonas de tão arregalados.

 — Venha comigo.

Trinta segundos depois eu ainda o encarava, não com medo, mas sim curiosa. Aquelesujeito parecia ter saído de algum livro infantil, um gigante de uma terra distante, elenão parecia real. Se bem que havia nele um tom assustador, comicamente assustador...

Eu abanei minha cabeça, em um gesto de zombaria, mas zombando mais de mimmesma do que dele. Sair por aí seguindo o gigante? Não, eu ainda não cheguei a essenível de loucura.

Afastei-me dele, mas ele continuou em meu encalço.

 — Você não é Anna Mathers? — ele perguntou novamente.

Eu diminui um pouco o passo, isso deveria me dar nos nervos, mas agora eu sóconseguia achar graça naquilo. Aquele cara sabia meu nome inteiro, isso é mil vezesestranho, assim como Oliver parece ter lido algum livro sobre mim, eu precisava checaro meu nome no Google e ver se a Wikipédia tinha fotos e minha biografia completa,porque isso estava começando a me assustar... E a me fazer rir ao mesmo tempo. Sim,agora eu cheguei ao nível de loucura.

 — Sim, meu nome é esse ai. — eu disse, não dando a mínima para o que qualquer

pessoa normal diria: Não é da sua conta! — Tem que vir comigo então.

Eu abri minha boca e depois pressionei meus lábios.

 — De que mundo você veio, cara? — perguntei debochada.

Ele não respondeu primeiramente, e então disse, mas não em tom de brincadeira, o queme fez achar ainda mais surreal.

 — Do paraíso, Outrora precisamente, Travessa Nº11, atrás do Sonar.

Page 139: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 139/168

Pelo visto não sou só eu que estava nessa situação meu colega gigante estava no mesmocaminho que eu: em direção ao hospício.

 — Outrora? Sonar? — indaguei rindo. — Paraíso? Legal, fui passar as férias lá no natal. — zombei.

 — Mesmo? — disse curioso.

Ok, agora chega.

 — Cara, — eu disse, parando e me virando para ele. — Eu estou atolada de problemas,tenho que chegar em casa para cuidar da minha irmã mais nova, preparar a mesmadroga do jantar congelado que comemos a anos, amanhã ir para o inferno que chamamde escola, aturar certos infortúnios e coisas... — pensei por meio segundo. — Bizarrasque acontecem em minha vida, estou tentando ser demitida, meus malditos 15 e onzemeses não me dão liberdade para nada nem mesmo para ter um carro ou arranjar outro

emprego, e... E acho que tem alguém querendo me matar, alias estão tentando me matarse não fisicamente, psicologicamente. — respirei fundo. — Você não acha que já tenhoproblemas demais e que tem garotas muito mais interessantes para você levar para sabe-se lá Deus?

Depois de dizer tudo aquilo a um completo estranho louco, eu me senti aliviada, comose pudesse tirar a metade dos pesos em cima dos meus ombros por um minuto.Pronta para dar o fora da li, ouvi o estranho comentar:

 — Sua vida é bem depressiva.

Eu bufei.

 — Obrigada. — murmurei, sarcástica.

 — Mas estou falando sério, se você for mesmo Anna Mathers tem que vir comigo. —  disse-me quase suplicante.

 — Para onde? — droga, alguém me faça ir embora, chamar por ajuda, ligar para algumum hospício, mas se bem que eles ficariam na duvida de quem deveriam levar: eu ou oestranho.

 — Bleach11, a duas quadras daqui.

 — Bleach? Que lugar é esse? Uma loja de produtos de limpeza?

 — Uma oficina de carros.

Arqueei uma sobrancelha.

 — O que eu posso fazer em uma oficina de carros? Sério, preciso de um emprego masnão entendo nada de motores.

11 Bleach ao pé da letra é alvejante em inglês. 

Page 140: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 140/168

 — Não é isso, — ele podia estar revirando os olhos, mas a minha visão não alcançavatão alto. — Tenho que entregar você.

 — Fracamente, eu não lhe entendo.

 — Foi o que me mandaram fazer, levar Anna Mathers até o Bleach.

Eu tentei rir.

 — E se eu não estiver a fim de ir?

 — Desculpe-me, mas vou ter que te levar mesmo assim.

Em um movimento rápido ele tirou seus óculos me sugando para uma imensidão azulque foi a última coisa que vi antes de apagar.

Page 141: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 141/168

DOZE.

Meus olhos estavam pesados, assim como meus membros pareciam estar fora do meucorpo – algum lugar bem distante para que eu ao menos os sentisse. Era uma sensação

 parecida com a de ficar embaixo d‘água sem fazer nenhum movimento: eu não tinhacontrole sobre mim, a minha vontade era de ficar parada e deixar que as ondas do marme levassem para longe.

Mas depois de um tempo a sensação foi completamente diferente. Era como se meucérebro finalmente desse por falta de oxigênio e desesperado, exigisse que eu memovesse e que eu tentasse voltar à superfície. E foi assim que eu abri meus olhos.

A iluminação era forte o que fez minha visão fraquejar durante alguns minutos. Eu meencolhi, estava deitada sobre algo que cheirava a couro e álcool e era extremamentedesconfortável. De olhos abertos, observei a lâmpada que zunia a cima de mim. Apoucos metros um carro reluzia em vermelho, coberto pela metade por uma lona cor delama. Empilhados no chão, chaves de fenda e outras bugigangas estavam espalhadas portodos os cantos, algumas penduradas no teto como algum tipo de enfeite. Mais carroscobertos por lonas, alguns esqueletos do que, eu suponho, já deveria ter sido umestavam em fase de decomposição em uma área mais afastada.

E então meus olhos pararam nas duas figuras paradas a poucos metros de distancia. Meuolhos pararam em outro cara. E então tudo estava vermelho.

 Mas, é claro!

 — Seu idiota maluco, é claro que é você! — eu andei até ele, tremendo de raiva —  Você vai ver só o que vai te acontecer, eu vou chamar a polícia e não vou sossegar até tever atrás das grades mofando na cadeia, seu sequestradorzinho de meia-tigela. Quemvocê pensa que é? — apertei minhas mãos ao redor de seus ombros e comecei a sacudi-lo.

Então ele começou a rir.

Eu queria matá-lo.

Eu odiava Oliver Coleman naquele momento como eu nunca odiei a ninguém.

Ele segurou minhas mãos entre as suas, ignorando minha resistência. Travamos umabatalha, ele rindo estupidamente, e eu querendo socá-lo, derrubá-lo, e depois chutá-lo.Tudo ao mesmo tempo.

Ele já tinha capturado uma de minhas mãos, mas eu ainda não tinha desisti-lo deestilhaçá-lo ali mesmo, e então puxei seu cabelo dourado e um pouco úmido com forçapara que ele me soltasse, mas isso não deu muito efeito, ao contrário, isso facilitou paraque ele capturasse a minha outra mão, e logo as suas estavam ao redor de meus pulsos,como algemas inflexíveis.

Page 142: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 142/168

Isso me deixou mais irada ainda, porque ele era o delinqüente que merecia usaralgemas, e não eu.

Comecei a tentar chutá-lo, mas pelo menor dos segundos ele me libertou de suas mãos eme virou de costas para ele, logo capturando minhas mãos novamente, só que desta vez

elas estavam atrás de mim, e ele as segurava só com uma mão, porque a outra estavasegurando a minha cintura impedido que eu pegasse impulso para agredi-lo.

O desgraçado ainda ria; seu hálito mandando vibrações por todo o meu rosto.E não era só ele que estava se divertindo com a minha raiva insana. Um cara moreno,que acabara de se esparramar no sofá onde estive deitada, também não parava de rir.Ele era familiar.

 — Garota raivosa essa que você foi arranjar, Oliver. — disse ele.

 Blake.

O cara estranho que eu encontrei no dia da racha.

 — Gosto das bravinhas. — o desgraçado-futuro-morto, disse atrás de mim, sua bocaperigosamente perto do meu ouvido.

Eu me impulsionei para trás, o que não pode machucá-lo de maneira alguma. Masminhas mãos acabaram, ham, bem perto de sua cintura... Emma uma vez tinha me ditoque se eu quisesse machucar um cara aquela região seria...

 — Dá pra parar de tentar me agredir com a sua cabeça?  – ele interrompeu meuspensamentos, quando sussurrou ao pé do meu ouvido.

 — Dá pra parar de ser um idiota e me soltar? — repliquei.

 — Se você prometer que vai parar de ser uma criança e escutar o que eu tenho parafalar.

 — Se você prometer que eu posso te matar depois.

Ele riu sem humor.

 — Eu prometo que vou deixar você tentar .

 — Eu prometo que vou não vou falhar quando isso acontecer.

Ele estava tão perto que eu podia sentir seu sorriso se moldando a cada segundo.

 — Feito. — ele me soltou.

Eu esfreguei meus pulsos e fui o mais distante dele que pude.

Page 143: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 143/168

 — Escute, Anna, — ele deu um passo em minha direção, eu me afastei dois novamente,ele levantou uma mão em sinal de paz — Eu realmente não queria ter que fazer isso,mas você não me deixou opções.

Mordi minha língua para que nenhum xingamento que se passava por minha mente

escapasse.

 — Eu preciso que você me dê o diário. — continuou ele, os olhos dele agora estavamsinceros sem nenhum pingo de ironia ou deboche.

 — Que diário? — eu estava verdadeiramente confusa.

Blake suspirou pesadamente, como se estivesse cansado de minhas perguntas.

 Dane-se, eu pensei mal-educada.

 — Elisabeth di Veroni. Esse nome te lembra alguma coisa? — Oliver perguntousuavemente.

Eu pisquei.

Um minuto e depois outros passaram, enquanto eu pensava com clareza. E depois deracionalizar mais com a razão e não com a ira, eu disse:

 — E se lembrasse... O que eu ganharia com isso?

Blake riu no sofá.

 — Ela é mais parecida com você do que eu imaginava.

Oliver não o deu atenção, enquanto me observava.

 — O que você quer?

 — Respostas.

Ele arqueou uma sobrancelha, e eu continuei:

 — Quero que me conte de onde veio, o que diabos você é, e o que eu tenho a ver comisso. Eu quero que me diga tudo!

Mais minutos se passaram. Eu não sabia o que ele iria me dizer. Depois de um tempocomecei a achar que ele era egoísta de mais para me dar isso; eu não achava que ele selivraria da camada de segredos que o envolve em troca de um simples diário. E então,me pegando de surpresa, ele disse:

 — Me dê o diário e eu te digo. É essa a minha proposta.

Tentei deixar meu rosto lívido de qualquer emoção e fixei meus olhos no rosto deOliver. De todas as vezes que eu conversara com ele, esta foi à primeira em que ele

Page 144: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 144/168

parece ter esquecido seu ar irônico. Só é que ai que estava o problema: Ele estavafalando sério.

Oliver queria aquele diário. E em troca ele me contaria a verdade.

Inacreditável, ao ponto de eu achar que algo não se encaixava.

Porque afinal de contas: o que um cara como Oliver Coleman iria querer com um diárioem branco?

Eu ponderei por alguns segundos. A proposta era justa, e superficialmente limpa. Maseu deveria mesmo confiar na palavra dele? E se eu o entregasse a ele e ele simplesmentese negasse a me dizer ou então sumisse? Um cara normal faria a primeira opção, jáOliver, com certeza, a segunda.

E, além disso, eu não tinha mais o diário. E, bem, eu não era idiota. Desde que eu o

conheci, Oliver sempre foi um cara misterioso envolto em uma nevoa de segredos —  que ele parece mostrar que os tem apenas para me enlouquecer  — e tudo que aconteceao seu redor parece não atingi-lo. Ele parece não se importar com nada, e isso pode sero seu ponto forte.

Como infringir algo a alguém sendo que essa pessoa não tem o porquê de obedecê-lo?Como castigar alguém sendo que não há nada que o atinja — nada que ele se apegue?E desta vez, Oliver, pela primeira vez, demonstrou que há algo que ele quer  — algo quepara conseguir ele está disposto a sair do escuro e me revelar o seu tão obscuro mistério.Então, talvez esse seja o acordo mais justo que ele já propôs. E a única coisa que elequeira — o único castigo que alguém poderia aplicar a ele, e que, com certeza, ele nãoqueria que ninguém soubesse.

Só que, maldição, eu sabia!

 — Tentador, eu diria, — fingi ponderar mais um pouco, coçando meu queixo — Mas,sinto muito, Oliver, — pressionei meus lábios um contra o outro. — Eu não posso dá-loa você.

 Doce vingança.

Neste momento eu senti como se todas as pessoas que ele já tenha lançado seu sorrisoirritante me aplaudissem de pé.

Claro, que isso era somente uma farsa. Porque é claro que eu não poderia dar o diário aoOliver porque eu não tinha diário. Ele sumira do meu quarto misteriosamente e desdeentão eu nunca mais o encontrei.

Só que, maldição, ele não sabia!

Ele semicerrou os olhos, como se estivesse duvidando da minha resposta.

 — Achei que o que você mais queria era saber a verdade. — apontou.

Page 145: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 145/168

 — Talvez fosse... Mas eu mudei de idéia. — Cruzei meus braços, torcendo para que elenão tenha percebido a minha voz falhar no fim da frase, a prova de que eu estavablefando.

Ele jogou a cabeça para trás como se para invocar paciência, ou então para

simplesmente não me matar. Ele estava irado. E eu insanamente, naquele momento,gostava disso.

 — Você está fazendo isso de propósito, — ele disse depois de alguns segundos — Eusei que você está se roendo de vontade de saber, só não quer dar o braço a torcer.

 — Você faz muitas suposições, e me subestima demais, é esse o seu problema.

 — Tem certeza que esse é o meu principal problema? — ele voltou a me encarar, umasombra de seu sorriso irritante já começava a nascer em seu rosto.

Eu ergui meu queixo.

 — Sim? — soou com uma pergunta.

 — Está errada.

 — E qual o seu principal problema?

 —  Você.

Eu não pude evitar estremecer, mas disse:

 — Estamos quites então.

Eu deveria dar as costas e ir embora agora — era o que acontecia nos livros, e nosfilmes. Mas minha vida não era assim. Eu não era a moçinha destemida que se arriscaraa história inteira fugindo dos perigos e no fim ia de encontro ao lindo herói.

Eu só tinha essa droga de vida.

E para piorar, agora eu tinha Oliver nela... E Grigor.

 — Isso não vai ficar assim.

 — É uma ameaça? Era para eu ficar com medo? — eu sorri superficialmente de novo aodizer: — Porque eu não estou.

 — Ainda.

Ele também sorriu, e eu sabia que o sorriso dele tinha o dobro de ameaça e ironia domeu.

Eu sacudi minha a cabeça. Aquilo tinha que acabar.  Agora.

Page 146: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 146/168

 — Eu vou embora... — e então eu parei para analisá-lo. — Ou além de mandar seucapanga me seqüestrar, vai me fazer de prisioneira?

Ele riu sem humor.

 — Eu não tenho um capanga, Anna. Apenas cobrei um favor a Georg.  — deu deombros. —  Vá.

Algo me dizia que o vá dele consistia em muito mais do que ele poderia dizer. Pareciacomo se ele estivesse me desafiando a ir, era como se... Ele estivesse me ameaçando.

Mas ainda assim, eu me virei, e resisti à vontade de mandá-lo para o inferno.Eu dei alguns passos por entre um esqueleto de um carro e o que já deveria ter sido umo interior dele. A atmosfera era quente, mas um calafrio percorreu minha espinha,fazendo meus ossos tremerem.

Correntes foram entalhadas e grudadas na parede como algum tipo de decoração.Pôsteres de bandas de Metal manchavam de preto e cinza o que já deveria ter sido ummural. Uma caveira parecia estar me observando ironicamente num deles, eu devolvium olhar irritado, e me obriguei a dar mais alguns passos.

Eu sentia como se devesse ser cautelosa, como se aquilo fosse algum tipo de prova  —  talvez a palavra mais adequada fosse provação — que eu deveria passar.

Eu tossi com o cheiro de fumaça e gasolina. Um estranho sentimento parecia sufocarmeu peito, enquanto eu me perguntava por que diabos não saia logo dali.

Saída. Tem que haver uma saída. Eu entoei para mim mesma.

Sete segundos se passaram, e então eu dei outro passo. O ar parecia estar ainda maisquente. As luzes zuniam e piscavam para mim. Eu pisquei de repente ofegante. E olheinovamente para a caveira. Ela riu de mim.

Eu me senti insana. Meu tronco se curvou ligeiramente para frente, mas eu me obrigueia ir dar mais um passo. A caveira parecia se deleitar agora.

Mais um passo, outro e outro...

E simples assim, eu me encontrei do lado de fora.

Latas de cerveja, e sacolas corriam livres pelos meus calcanhares como fantasmas. Anoite estava fria, essa foi a primeira coisa que notei, mas eu jurara que estava no infernohá segundos atrás, então o frio me agradou. Olhei para trás. E se minha pulsação nãoestivesse ao máximo de acelerada e se eu não fosse ainda jovem, eu teria um ataquecardíaco.

Porque ali não havia nada. Nenhuma porta, ou parede. Nada. Nada ao meu redor.Somente aquela rua deserta e que parecia sem fim.

Eu não sabia onde estava. Eu não sabia que caminho deveria pegar.

Page 147: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 147/168

Mas então algo gritou para mim: ―Corra!‖ e foi o que fiz.

Eu corri por tempo indeterminável, e quando minhas pernas insistiam em parar, eucorria mais, sempre olhando para todos os lados, me sentindo perseguida, mesmo nãoouvindo nada além da minha respiração ofegante de meus passos rápidos.

Eu olhei para trás e antes que pudesse evitar, quando olhei para frente trombei com algoduro como um poste a minha frente. Eu abri a boca para gritar, mas antes que pudesse,um par de olhos azuis me paralisou, me sugando para dentro do mar hipnotizante,sinistro e sombrio.

Eu abri meus olhos lentamente, o ar era aconchegante, mas minhas roupas estavammolhadas com o suor. Primeiramente eu não detectei que havia alguma coisa erradanaquela cena; parecia como se estivesse observando um quadro monótono penduradoem uma parede, e não o meu próprio quarto.

Espere: MEU QUARTO?

 — Oliver! — eu chamei, irracionalmente, me levantando e começando a caminhar deum lado para o outro, como se a qualquer momento eu acordasse daquilo.

O relógio no meu criado mudo marcava 06h00min. Eu me afastei dele como se ele fossealgum tipo de inimigo a me observar. O quarto estava escuro, e eu tropecei em algumacoisa no chão.

Minhas roupas eram as mesmas que eu usava antes...

Eu parei. Minha boca estava escancarada. Eu não me lembrava do que aconteceu noantes.

Mas de alguma maneira eu sabia que eu não estivera no meu quarto. Não era possível,eu sentia como se meu cérebro tivesse parado de funcionar, ou como se precisasse deóleo para ferrugem.

Era como se tudo estivesse nublado.

Oliver, eu estive com ele a pouco e... Eu não me lembro de mais nada!

E se aquele relógio estiver certo, e se a luz da manhã que agora preenchia meu quartopela janela que eu acabara de abrir não fosse uma alucinação, e se eu não estiver, agora,completamente louca... Já é de manhã.

Duas batidas na porta me chamaram a atenção, logo depois a porta foi aberta, já que eunão me mexi. Molly estava de pijama, o rosto sonolento, e os cabelos numa desordemde tranças que viraram nós.

 — Achei que estivesse dormindo — disse-me, mais dormindo do que acordada — Temcerteza que não podemos ficar em casa hoje também em vez de ir para a escola?  —  

continuou manhosa — Podemos prolongar até... Até semana que vem!

Page 148: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 148/168

Escola... Então era mesmo de manhã.

Mas eu podia jurar que estivera com Oliver a pouco, eu ainda sentia seus olhos mepenetrando, seu sorriso sínico me assombrando, seu cheiro...

Eu me obriguei a responder Molly:

 — Nada disso, — eu tentei soar firme, mas a verdade era que eu mesma queria ficar emcasa, e se pudesse não prolongaria até a próxima semana, e sim  para sempre. Mas eusou a irmã mais velha e tinha que dar exemplos. Foi isso que fiz a minha vida inteira  –  mas agora isso soava tão estúpido que chegava a me deixar corada.  — Temos que ir, váse arrumar. Seu uniforme está dentro do seu armário e... Venha até aqui para eu arrumaro seu cabelo. — instrui-a.

Permaneci algum tempo parada observando a porta agora fechada. Eu deveria fazer algo — eu precisava fazer algo. E eu ainda estava profundamente irritada com algo. Mas os

motivos que me levavam a isso eram nulos.

Eu não me lembrava o que fizera depois do trabalho e como viera parar em casa. Nãoera possível que eu tenha simplesmente me esquecido — não era a chave da porta decasa, e nem o meu celular, era a minha memória. Eu não poderia esquecer algo tãocrucial.

Era como se alguém tivesse passado uma borracha em meu cérebro e a sujeira aindaficara me incomodado e alguns rabiscos de memória tinham resistido. E o quesignificava isso? Tudo que eu sei é que a maldita sujeira que está me incomodando e osrabiscos que sobrevivem vivos me lavam a Oliver.

Eu queria voltar para cama, e não ter que pensar nisso,  pelo menos não agora. Masenquanto eu o fazia, meu pé se enroscou em algo aveludado no chão. Distraidamente ochutei o para o lado, o que fez um barulho terrível de um farfalhar de folhas como sefossem asas de um pássaro.

Abaixei-me procurando o objeto em baixo da cama, minhas mãos pegaram em algofrágil e delicado, o puxei com cuidado. Meus olhos se arregalaram, enquanto eu soltavaaquilo e me afastava bruscamente como se minhas mãos estivessem em chamas.

Era o Lunabella. — Já terminei. — Molly abriu a porta, eu a olhei de soslaio. — Porque está sentada nochão?

Eu balancei a cabeça, mal entendo o que ela dizia, e me levantei, chutando o diárionovamente para de baixo da cama. Eu me encolhi, sentindo minha visão falhar, ganharcores novas e invertidas. Fechei os olhos. E então tudo piorou. Como fantasmas daescuridão uma par de olhos azuis surgiram, me rodeando como uma névoa assustadora,levando-me para um lugar distante e escuro... Quente. A caveira — ela me encaravaagora — e em vez de rir ou zombar de mim, ela me oferecia sua indiferença — como

uma caveira comum.

Page 149: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 149/168

E então eu me lembrei. O gigante; Blake, aquele lugar estranho... Oliver. Ele queria odiário. Mas eu não o tinha. No entanto o Lunabella estava em baixo da minha camaagora. E eu não tinha a mínima idéia de como ele voltara para o meu quarto, assimcomo não sabia também como eu viera parar aqui.

 — Anna?

Abri meus olhos e encarei Molly, assombrada. E de repente eu senti os cantos da minhaboca se repuxarem nos cantos em um sorriso quase fantasmagórico.

 — Sério vamos nos divertir para valer, eu nem acredito que finalmente vamos ter umpouco de liberdade longe dessa gente da escola... — Emma continuou a tagarelar ocaminho inteiro até a Grand Lake.

Meus pensamentos estavam bem longe de Savannah e do fim de semana, e sim nodiário de veludo que sacudia dentro de minha mochila, enquanto Emma se

desconcentrava da estrada e não via o pobre cachorro que atravessava a rua.

 — Ai meu Deus! — ela gritou alarmada. — Acho que matei alguém!

 — Não matou não, olha ele ali. — apontei para o pobre cão que corria assustado para acalçada. — Mas vai matar se continuar falando ao invés de dirigir.

 — Ow! Credo, o que deu em você hoje para estar tão azeda.

Eu murmurei um nada à contra gosto.

 — Anna eu te conheço desde sempre, você é a minha quase irmã, ande logo e me diga oque está acontecendo! Eu já tenho até um palpite...

 — Não está acontecendo nada.

 — Está sim, e começa com O ou com G! — cantarolou ela — Somos melhores amigasvocê não pode esconder nada de mim e vice versa, me conte logo, para que eu possa tefalar do Cody.

 — Quem é Cody? — agarrei a minha única chance mudar de assunto.

 — Ah, é o amor da minha vida! — suspirou. — O conheci na internet.

Ow-ow. Isso é mau!

 — Emma... — eu comecei.

 — Nada disso! Você não vai repetir o mesmo sermão da minha mãe, e não senhora,você não vai mudar de assunto. Me diga: o que o Oliver e/ou o Grigor fizeram para tedeixar com esse humor?

Não haveria como escapar, então eu disse tudo de uma vez:

Page 150: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 150/168

 — Grigor me beijou. E Oliver também.

Um barulho terrível irrompeu meus ouvidos, e minha cabeça foi jogada para frente, edepois para trás, enquanto o meu estomago dava voltas no mesmo lugar comprimidopelo cinto de segurança.

 — Ai, meu Deus! — ela ainda continuava a gritar.

 — Dessa vez fui eu que você quase matou! — soltei o cinto, me debruçando, apoiandomeus cotovelos nos joelhos para massagear minha cabeça. — O que deu em você hoje?Está dirigindo pior do que Luke.

 — Você me dá uma noticia dessas e quer que eu não me descontrole. Quando issoaconteceu? Desde quando você esconde coisas de mim? Quantos caras já te beijaram evocê não me contou? Oh, meu deus, Anna Mathers, que tipo de melhor amiga você é?

 — Ai, minha cabeça! — eu arfei.

 — Não me venha com ‗Ai‘! Eu sempre te contei tudo o que acontecia comigo, e sempreachei que você fazia o mesmo, mas não! Todo mundo esconde coisas da Emma!  — elachoramingou. — Você é igualzinha ao Luke.

 — Emm, — eu arfei por ar, meu corpo ainda não completamente recuperado do baque.

 — Eu ia te contar eu juro, mas eu não tive chances.

 — Não teve chances. — ela repetiu, aparentando estar realmente magoada. — Não seesconde umas coisas dessas de sua melhor amiga.

 — Me desculpe.

 — Desculpas, nada! Eu quero um relatório completo sobre isso! E você vai me contartim-tim por tim-tim como os dois caras mais gostosos da escola foram cair aos seus pés.Luke vai morrer quando souber, alias, ele vaie é te matar quando descobrir que vocêescondeu isso de nós.

Eu repassei nossa conversa inteira durante a aula Inglês, era uma coisa boa ter algo em

que pensar para desviar meus pensamentos de Oliver. Ele não dissera absolutamentenada durante a aula inteira.

E em vez de se sentar ao meu lado como era de costume se sentou ao lado de umacriatura loira, e que hoje, atraía todos os olhares exclusivamente para si. Stacy Tanner.A fiel escudeira de Emily Morgan parece muito contente por a amiga que ter idoembora. A história que ouvi da boca de uma garota ruiva sentada atrás de mim, é queEmily fora passar uns tempos na Europa fazendo intercambio. É claro que a história jásofrera algumas modificações, algumas mais conclusivas outras chegavam até a seaproximar da verdade: Que Emily estava em um hospício.

Eu ainda estava com o estranho sentimento de quando a vi pela última vez. Não elaexatamente, e sim o seu pai. Pobre homem.

Page 151: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 151/168

Suspirei.

E quanto ao Oliver, eu disse a mim mesma que não me importava que ele tivessemudado de lugar, e que muito menos estava preocupada que ele estivesse possivelmentezangado ou me odiando por eu não ter lhe dado o diário. Ao diabo o que ele pensa de

mim, era eu que era para estar irritada com ele por ter me levado para aquele fim demundo com seu capanga. Ele tinha sorte por eu não o ter denunciado. Mas lá no fundoeu tinha dificuldades para respirar.

O sinal tocou, e todos se encaminharam para a porta ao mesmo tempo, bloqueando asaída e me impedindo de escapar o mais rápido possível dali. Oliver permaneceu em seulugar e Stacy também. Maravilha. Tudo que eu queria era presenciar uma conversa entreos dois.

 — Então, Oliver, — a voz manhosa chamou o nome dele — Você está mais queconvidado para a minha festa neste fim de semana.  — ela estava falando num volume

que com certeza não era só para que ele escutasse. Levando a mão até a boca como sefosse cochichar, mas ao invés disso quase gritando: — Vai ser a melhor festa quealguém dessa escola já foi.

As cabeças a minha frente se viraram todas para ela enquanto ela disparava todos osdetalhes da tão maravilhosa festa que estava planejando. Eu aproveitei a chance paraescapar.

Nas outras aulas eu finalmente tive um pouco de descanso. A notícia da festa de Stacyagora estava disputando com a fofoca da mudança de Emily nas bocas de todas asgarotas. No refeitório Emma realmente me obrigou a dizer tudo o que havia acontecido.Eu resumi tudo ao máximo que pude retirando os detalhes escárnios como, porexemplo, Grigor ter me agarrado no banheiro feminino e Oliver no meu quarto, comoum intruso, e eu estando somente com as roupas de baixo.

Eu coro só em relembrar.

Eu ainda tinha Ed. Física como ultima aula. Poucas pessoas estavam presentes, amaioria muito ocupada em fofocar para ir à aula da srtª Smith, que muito a contra gosto,obedeceu às ordens da diretora que liberou o nosso horário para um aquecimento para aequipe de basquete. O Treinador estava no centro da quadra com os jogadores. Ryan

não estava presente, e eu não estava muito interessada em saber quem era o novocapitão, como os outros poucos presentes, até que um cara que até então estava afastadodo grupo se levantou da arquibancada a alguns bancos a minha frente.

Eu sabia quem ele era mesmo ele estando de costas. Havia algo no modo como eleandava, uma aura que o envolvia que o distinguiria de qualquer um.

O Treinador continuou a gesticular com uma costumeira prancheta que sempre que ovia ele a tinha nas mãos. Ele era um homem alto, moreno e forte, mas em compensaçãoera tímido e de voz serena... A menos que ele esteja debatendo com a Srtª Smith oudefendendo e dando ordens ao time.

Cinco segundos depois e eu estava escapando pela saída lateral do ginásio.

Page 152: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 152/168

Covarde. Eu disse a mim mesma.

Eu sabia que um dia iria ter que encará-lo. Mas hoje não seria esse dia. Não quando euainda estou em um estagio alem do choque. Não quando eu o vi sumir com um cara.Eu entrei no banheiro feminino. Um bom lugar para se esconder da Srtª Smith, mas

péssimo para me esconder das lembranças de Grigor.

Sozinha eu respirei fundo e tentei não pensar no que acontecera quando eu estivera alina ultima vez. Mas era tarde demais. Antes que eu pudesse ser alertada por meu instinto,antes que eu pudesse correr dali, eu estava paralisada encarando o espelho:

Está com medo? Mas eu ainda nem comecei a brincar, Anna.

Fechei os olhos e contei. 1, 2, 3...

E quando os abri tudo havia sumido. Eu aspirei ar para dentro dos meus pulmões, mesentindo zonza. Eu apertei a ponte de meu nariz, me concentrando em minha respiraçãoacelerada.

Os pelos da minha nuca ainda estavam arrepiados; meus cabelos grudavam na testa,como se eu estivesse em um forno quente, mas ao invés de sentir calor, eu tremia defrio.

Eu me apoiei na pia a minha frente, me impulsionando para trás para fazer com queminhas pernas funcionassem como deveriam. Meu instinto estava confuso. Uma partedizia: fique, enquanto a outra gritava: fuja.

Eu movi uma perna para trás, e girei em meus calcanhares, e então ele estava lá.Parado em frente à porta, com as mãos nos bolso perfeitamente imóvel. Um sorrisofantasmagórico obscurecia ainda mais o seu rosto. Gustav.

Eu parei onde estava. Minhas pernas tremendo, minha cabeça girando, mas meu olharfirme e ao mesmo tempo assombrado com sua presença.

Eu procurei por algum tipo de reação. Eu deveria gritar? Aliás, eu poderia ou teriatempo para tal?

 — É incrível, — começou ele, movendo sua cabeça de um lado para o outro.  — Você eela são idênticas, uma copia perfeita. Mas digamos que Elisabeth era um pouco menoscorajosa... Não! —  ele sorriu, se interrompendo bruscamente. — Ela era sim corajosa,só que para coisas erradas...

Busquei por algo que pudesse usar a minha defesa. Eu procurei disfarçadamente poralgo nos bolsos da minha calça jeans, — eu não tinha posto o meu uniforme de Ed.Física — e encontrei minhas chaves, balas e umas anotações de física.

Ele riu.

Page 153: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 153/168

 — Eu não deveria dizer essas coisas, você não poderá entendê-las ainda, mas é umapena que não possamos conversar, eu tenho certeza que você tem muito mais emcomum do que a aparência. — ele estalou a sua língua. — Até mesmo o péssimo gostopor brincar com o perigo...

O que eu poderia fazer com aquele cara maluco? Ele tentara me matar. Ele era umbarmen, e seus olhos azuis cinzentos e sem graça se tornaram obscuros sugando toda luzcomo lodo. Ele era forte e alto — o que não tinha muito valor, já que mesmo que eletivesse o mesmo porte físico que eu, eu muito dificilmente conseguiria lutar contra ele.Eu poderia distraí-lo e talvez alguém pudesse sentir a minha falta e vir procurar pormim. Eu engoli em seco, porque a única pessoa que pudesse fazer isso seria Emma, eela deveria estar bem distante para poder me ajudar. Mas eu me obriguei a teresperanças. Ela deveria ser a última a morrer, certo? A não ser que eu morresseprimeiro.

 — Quem é você? — perguntei, minha voz instável.

 — Depende. — ele sorriu, como se minha pergunta fosse extremamente divertida. —  Eu posso ser...

E então Gustav sumira, e a minha frente estava outra pessoa. Angelicalmente toxica.Piscando como se quisesse flertar até com o ar ao seu redor. Sorrindo maliciosamente.

Os cabelos lisos caindo pelos ombros, por cima do uniforme azul escuro e branco delíder de torcida da Grand Lake. Emily Morgan.

 — Ou então...

E lá estava ele. Devolvendo-me o seu sorriso mais irritante de todos. Os olhos azuisbrilhando perigosamente. Os cabelos dourados caindo por sua testa. E todo o seucharme de garoto rebelde. Oliver Coleman.

Eu arfei.

 — Ou até mesmo...

Ele aparecerá bem diante de mim. A pose descontraída e ao mesmo tempo elegante. O

cabelo castanho-escuro arrepiado meticulosamente para cima. Os olhos verdespenetrantes e misteriosos. A aura de mistério ao seu redor era quase visível. GrigorLybieri.

 — E por que não... Você!

Era como me olhar diante de um espelho. Os mesmos olhos, rosto, cabelo, roupas,altura... Eu mesma. Eu estava diante da minha copia mais perfeita.

Ela sorriu maliciosamente para mim.

Eu me afastei da figura, parando quando o meu quadril bateu na pia do banheiro. Eufechei meus olhos e depois os abri. E ela continuava lá.

Page 154: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 154/168

 — Quem é você? — eu repeti a minha primeira pergunta, minha garganta se fechandoem um nó.

 — Não é meio obvio? — ela deu outro passo em minha direção. — Eu sou você! Mastambém posso ser aquela patricinha maluca, ou aquelas duas pestes dos infernos que

vivem entrando no meu caminho!

Ela semicerrou os olhos.

 — Mas isso terá logo, logo um fim. Assim que eu der um basta em você,  — ela deuoutro passo, parando a minha frente. Eu apertei meus dedos na borda da pia. Meus olhosolhando ao redor e se focalizando em um objeto. — Anna Belle Mathers. — sussurrou.

Ela se virou de costas rindo escandalosamente.

 — Mathers! — repetiu. — Ora que disparate! E em imaginar que só esse simples

sobrenome me impediu de colocar minhas mãos em você!

Era a minha chance. Eu me estiquei até o pote de sabonete liquido, e torcendo para queacertasse, mirei bem na cabeça da garota de costas para mim. O meu... Eu.

Um baque surdo e depois o liquido vermelho com cheiro de morango escorria desde oslongos cabelos até o chão branco do banheiro. Ela soltou um grunhido, voltando-se paramim.

 — Típico. — cuspiu. — Você não nega o sangre podre que corre em suas veias. Jáchega de conversa! A hora do nosso acerto de contas irá chegar, e aí sim eu poderei temostrar quem eu realmente sou. Mas antes... Um pequeno castigo pra você, garotamalcriada!

Paralisei. Meu coração acelerou e minhas pernas fraquejaram diante da imagem.Era como se alguém enfiasse uma estaca em meu peito, e perfurasse minhas lembrançascom cacos de vidro. Porque eu sabia que não era real.

Era como um sonho — sonhos que eu me impedi de ter a muito tempo, porque eles sóme machucavam.

Mas mesmo assim eu não consegui deixar de olhar a mulher a minha frente.Sorrindo graciosamente e usando um vestido violeta de verão. Os olhos mais amorososque já vi. A pele bronzeada e que mesmo de longe podia ver sua maciez. Os cabeloscacheados caindo pelos ombros em um loiro avermelhado perfeito. Os lábios sempreemoldurando um sorriso afetuoso, e sincero. Minha mãe.

Eu fechei os olhos. As lagrimas queimando em meu rosto, minhas mãos meioestendidas querendo tocá-la e o resto de meu corpo se retraindo repelindo a mentira; afantasia que eu sabia que ela era.

Um perfume doce de flores invadiu meu nariz. O perfume mais aconchegante que já

senti. E sussurrando ao pé do meu ouvido, com uma voz sutil e macia, ela disse:

Page 155: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 155/168

 — Até Lunabella, Anna Belle... Di Veroni.

Eu quis destruir a imagem em mil pedaços, por fazer com que toda a fortaleza que euconstruí para banir qualquer vestígio daquilo em minha mente se esvaísse em pó.Mas quando eu abri meus olhos para fazer, me encontrei sozinha e encarando mais uma

vez o mesmo sentimento que senti no dia de seu funeral.

Eu me obriguei a enxugar as lagrimas.

Sabendo que por mais que aquela imagem falsa estivesse costurada ao meu cérebro deum jeito tão real, eu sabia a verdade:

Minha mãe estava morta.

 — Anna! — Emma entrou no banheiro gritando. Eu tinha acabado de lavar meu rosto,depois de tentar dar um jeito na bagunça com o sabonete liquido.  — Estou te

procurando por toda escola! Corra, parece que Grigor e Oliver estão tendo uma briga noginásio da escola!

 — O que?

Page 156: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 156/168

TREZE

 — Você tem que ir lá! — Emma me empurrou para dentro da multidão.

 — Por quê?

Ela revirou os olhos, como se eu estivesse sendo muito inconveniente.

 — Porque você é tipo, sei lá, a moçinha, você tem que separar a briga, essas coisas!

 — Não sou a moçinha. — eu disse, mais para mim mesma.

Toda a gritaria cessou de repente. Coloquei-me na ponta dos pés, tentando enxergaralém das mil cabeças a minha frente. O que não deu muito certo, eu não sou muito alta.

 — Ali! — Emma disse, indicando o muro que separava a saída do ginásio para aentrada do estacionamento. — Suba naquilo e grite, seja a minha heroína!

 — Você ficou maluca? — arregalei meus olhos.

 — Vamos Anna, por favor!

 — Por que eu deveria fazer isso?

 — Porque ter dois caras lindos brigando por mim sempre foi o meu maior sonho, porém

eu não tenho. Mas você tem! Então seja a minha heroína e suba já naquele muro! — Mas Emm...

 — VAI!

“Emma é maluca” Eu disse mentalmente, examinando o meu novo machucado no joelho. “E eu sou uma idiota” complementei.

 — Desculpe-me, — Emma me disse, abaixando a cabeça fazendo com que seus cabelosse espalhassem por seu rosto. — Na minha cabeça aquilo iria ser lindo.

Eu bufei, não podendo deixar de rir.

 — Eu prometo que nunca mais te meto em nenhuma furada.

 Hum, eu sinto que já ouvi isso antes...

 — Como naquela vez que você nos obrigou a te carregar pela a escola inteira na terceirasérie ou como naquela que você achou que o Brad Pitt estava dentro de um taxi epraticamente nos matou correndo atrás dele? — Luke perguntou, ironicamente.

Page 157: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 157/168

Emma telefonou para ele dizendo que precisávamos dele aqui, agora. Era a nossareunião de emergência. Mas eu não via nada de tão urgente assim. Eu pelo menos nãohavia quebrado nada. Eu acho.

 — Eu estava com o pé quebrado e, qual é, eu tinha certeza que era ele! — defendeu-se

ela.

 — É, e naquela vez em que eu estava doente e você me fez sair na chuva...

 — Eu não sabia que você estava doente, e você que foi burro por esquecer o guarda-chuva...

E então eles estavam falando ao mesmo tempo, Luke relembrando todas as vezes quefoi posto em situações ruins e Emma tentando se defender. Sra.Dollan, a bibliotecária,nos encarou carrancuda, por cima de seus óculos de grau.

 — Gente, gente! — eu chamei, tentando calá-los. — Chega, isso foi passado.

 — Mas Emma continua nos colocando em encrenca!

Emma se encolheu, franzindo a testa e comprimindo os lábios. Eu sabia o que viria aseguir:

 — Vocês me odeiam! — ela choramingou.

 — Não! — eu queria choramingar também. — Luke para com isso, ela não fez por mau.

 — Como foi que isso aconteceu? — ele indicou meu joelho, onde um Bad AID estavaposicionado.

 — Eu caí. — respondi, dando de ombros.

Isso não era o que me incomodava. Poderia ser a lembrança das risadas das pessoasquando me viram despencar do muro e encontrar o chão logo em seguida. Mas não eraisso. Era outra coisa; uma que me fazia me sentir estúpida apenas por estar sentindo.

 — E tudo por minha culpa. — Emma choramingou. — Obriguei a Anna a subir no

muro da escola.Recebemos um shhii de Sra. Collins.

 — Por quê? — Luke apoiou seu cotovelo na mesa, ignorando-a.

 — Oliver e Grigor estavam brigando, e eu tive a idéia estúpida de fazer com que Annaseparasse-os. Na hora eu pensei que tudo seria lindo. — ela engasgou no fim da frase,derramando lágrimas de um só olho.

 — Isso não é estúpido... — Luke suspirou, e quando Emma estava prestes a se sentir

reconfortada, ele continuou: — Isso é além de estúpido, é quase um crime! Vocêdeveria ser presa por ter feito isso!

Page 158: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 158/168

Emma encostou sua testa na mesa, seus ombros tremendo.

Eu suspirei, parte de mim ali na mesa, a outra clamando por ser enterrada.

 — Não seja insensível. — eu murmurei para ele. — Peça desculpas.

Ele revirou os olhos.

 — Desculpa. — resmungou.

Emma não respondeu. Então ele se voltou para mim, os olhos me inspecionando de um jeito que eu não gostei.

 — Hum, querendo separar brigas? Sinto cheiro de algo no ar. — ele sorriu,maliciosamente.

 — Anna os deixou louquinhos por ela! — Emma levantou sua cabeça somente paradizer isso.

 — Isso é... Isso é... Mentira! — eu disse, não gostando da conversa. Eu não queria falardeles agora, não quando eu ainda sentia fagulhas do que me incomodava dentro de mim.

 — Sério? — ela arqueou uma sobrancelha, irônica. — Luke advinha quem é a novabeijoqueira da escola?

 — Quem? — ele arregalou os olhos teatralmente, surpreso.

 — Anna Belle Mathers. — Woow! — ele gritou.

Sra. Collins bateu com a mão em seu balcão para que fizéssemos menos barulho.

 — Parem com isso! — eu cochichei, irritada.

 — Parar com o que? — Emma se fez de desentendida.

 — Com isso? — Luke fez sinais com os dois dedos indicadores, os juntado e osseparado logo em seguida, com se eles estivessem se beijando.

 — Ou com isso? — Emma riu, mandando beijinhos para ele.

 — Parem! — eu ameacei me levantar.

 — Certo. — eles riram, parando.

Eu fechei a cara. Mas eu não estava me importando. Isso não chegava nem perto de meincomodar. E nem de longe era tão estúpido como o que eu estava sentindo.

 — Ah, Anna o que foi? Ainda está chateada com o que aconteceu? Olha, eu juro que

não foi por mal! Você sabe como eu sou idiota às vezes...

Page 159: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 159/168

 — Só às vezes? — Luke murmurou, debochado.

Ela o ignorou.

 — Eu faço o que você quiser se você me perdoar, eu prometo.

 — Ela quer o seu carro e o seu Cd dos Beatles também, e ah, também quer todos os seuspôsteres. — Luke se intrometeu.

 — Não quero nada, não há o que perdoar.

 — Então porque essa cara?

 — Eu só... — eu balancei minha cabeça. — É tão idiota.

 — Hum, diga, eu tenho certeza que já ouvi coisas piores, não é Emma?  — cutucou-a,ela continuou o ignorando.

 — O que aconteceu? — quis saber.

Eu resolvi não prolongar aquilo.

 — Stacy Tanner, estava beijando Grigor.

O queixo de Emma despencou na mesa.

 — Quando? Onde?

Eu abri a boca para responder, mas Claire Aboot, a redatora do jornal da escola, sesentou a mesa conosco. Ela tinha o cabelo encaracolado, e era baixinha e gorduchadesde sempre.

 — Oi! — ela nos cumprimentou, sorridente como sempre. — Eu acho que sei sobre oque estão conversando, aliás, todos estão falando disso. Vocês querem a história todacom detalhes ou só o necessário?

Luke franziu as sobrancelhas, não entendendo o que aquela garota de saia escocesa eaparelhos nos dentes estava querendo dizer — foi isso que vi quando ele olhou para

mim assustado. Eu dei de ombros, já acostumada com as fofocas dela.

Ela sabia de tudo. Sempre. Se algo acontecia, ela estava lá.

 — Conte tudo! — Emma incentivou.

 — Bom, vocês sabem que eu odeio fofoca, mas como você querem saber tanto... Olivere Grigor estavam discutindo, por motivos ainda desconhecidos. Mas eu saberia sesoubesse falar latim.

 — Latim? — Emma estranhou.

Page 160: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 160/168

 — É, eles falavam uma língua estranha e de repente os dois foram em direção aoestacionamento. Eu não pude ver bem a briga porque eu não consegui correr com meussaltos. — ela apontou as plataformas em seus pés. — Mas quando cheguei lá, logodepois do treinador, Oliver estava caído no chão perto das latas de lixo e Grigor nãoparecia bem. Acho que ele tinha quebrado o pulso ou algo do tipo.

―Eles continuaram vociferando aquelas palavras estranhas, e então varias pessoasestavam ao nosso redor — um bando de intrometidos, em minha opinião. O treinadorestava sem entender nada assim como todos. Oliver tinha se levantado e rindo ele disseas seguintes palavras:‖ 

Ela pigarreou e depois disse grosso:

―Ela é minha‖

―Grigor sorriu, o pulso já parecia bom de novo, e então respondeu:‖ ―É o que vamos ver.‖ 

―Oliver semicerrou os olhos e simples assim saiu. Agora vem a melhor parte: StacyTanner que estava no meio da multidão simplesmente se jogou nos braços de Grigorgritando ―eu sou sua!‖e o beijando depois‖. 

Emma arregalou os olhos e Luke permaneceu com um ponto de interrogação na cabeça.Eu suspirei, jogando minha cabeça para trás.

 — E foi isso. — ela se levantou e assim como veio se foi. Deveria estar procurandoalguém para fofocar — digo, compartilhar seus conhecimentos.

 — Isso foi bizarro. — Luke murmurou.

Eu não respondi, apenas continuei encarando a luz no teto.

 — Não acredito nisso. — continuou ele, murmurando para si mesmo. — Stacy VadiaTanner! Ela conseguiu superar até a cobra-rainha!

 — Ela beijou mesmo o Grigor? — Emma não parecia conseguir acreditar.

 — Ela pulou em cima dele. — Luke respondeu.

 — Como sabe? Você nem estava lá...

 — Grigor não iria beijar uma daquelas cobras, ele não é do tipo de cara que faz isso,principalmente depois de ter beijado Anna.

 — Eu não confio em nenhum homem. Só no Brad, e olhe lá... — ela disse, cutucandosuas unhas.

Page 161: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 161/168

 — E aquele tal de Oliver? — Luke arqueou uma sobrancelha e então eu sabia que aquilonão seria uma discussão sobre o beijo de Stacy e Grigor, e sim para ver quem tem omaior ego. Eu assistia isso desde o Jardim de Infância.

 —  Ele é perfeito. — Emma cantarolou. — Ele é lindo, sensual e perigoso. Se fosse ator,

eu juro, largaria o Brad e me tornaria sua fã numero 1!

 — Ele é bizarro isso sim. E ele pode ser sei lá um traficante de drogas!

Emma escancarou a boca, ofendida.

 — Ele não é um traficante. E o que você me diz de Grigor Lybieri, ele é o que? Damáfia? Ou aquela pose dele é só fachada mesmo?

 — Cala-a-boca! — Luke exclamou. — Se formos comparar, Grigor deixa o chave decadeia no chinelo.

 — Quem você chamou de chave de cadeia? — Emma ameaçou se levantar e pular nopescoço de Luke, que continha um sorriso vitorioso nos lábios.

 — Ei, ei! — eu resolvi intervir antes que uma briga começasse bem ali na minha frente.

Chega de brigas por hoje!

 — Emma se acalme, e Luke pare de provocar. Nós dois sabemos que isso não é sobreGrigor e Oliver.

 — Claro, isso é sobre Emma e sua cabeça de vento. — continuou provocando.

Eu esperei Emma fazer algo, mas ela continuou parada encarando algo sobre a minhacabeça.

 — Posso falar com você? — alguém sussurrou ao pé do meu ouvido e eu imediatamente já sabia quem era.

 — Não. — Emma respondeu com cara de pouco amigos. — Estamos tendo umareunião.

 — É claro que pode, Grigor. — Luke disse, estridentes. — Nós já acabamos.

 — Úh uh, que tal você não ir lá chamar a Tanner, Luke? Assim a gente tem umaconfraternização, e você pode se mudar para o ninho da cobras. — retrucou.

E de repente eles já haviam se esquecido que eu estava na mesa, aliás acho que eles nemsabiam direito sobre o que realmente discutiam.

 — Preciso falar com você. — Grigor chamou minha atenção.

 — Estou ocupada. — murmurei, voltando meus olhos para a mesa.

Page 162: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 162/168

Meus olhos caíram sobre o Lunabella, que eu tinha pegado de minha mochila quando eue Emma viemos para cá. Eu não havia me dado conta que eu ainda continuava com eleaberto. Havia uma frase na página em branco:

Eu arregalei meus olhos, lendo:

Oh, Ron, como tu fostes capazes?

Grigor suspirou.

 — Você já ficou sabendo de Stacy. — sussurrou ele, mais para si mesmo. — Eu possote explicar.

 — Você não me deve satisfações.

 — Mas eu quero dá-las.

 — Por quê? Nós não temos nada... Você pode fazer o que bem entender, e beijar quembem entender. — eu disse, mas eu estava remoendo isso por dentro.

 — Eu não beijei Stacy, ela me beijou.

Eu bufei.

 — E qual é a diferença? — revirei os olhos.

 — Essa. — e então ele tinha empurrado seus lábios para os meus. Foi rápido, mas o

suficiente para me levar até as estrelas e voltar. — Você... Você... — gaguejei aturdida. — Você não pode fazer isso!

 — Você disse que eu podia. — ele arqueou uma sobrancelha.

Eu respirei fundo, tentando me acalmar e não ficar hipnotizada pelo olhar provocanteque ele me lançava.

 — Mas não comigo! — eu disse um pouco mais alto, travando meu maxilar.

 — Não fique brava, nós só nos beijamos.

 — Eu não estou brava e foi você quem me beijou! — eu disse rápido demais para euperceber o que estava dizendo.

 — E qual é a diferença? — perguntou ele, me fazendo engolir goela a baixo minhaspróprias palavras.

Eu mordi minha língua, literalmente.

 — Espera, espera, vocês estão tendo uma DR bem aqui? — Luke disse, eu não havia

percebido que eles tinham parado de brigar. — DR? — Emma estranhou.

Page 163: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 163/168

 —  Discussão de relação, criatura.

Antes que Emma retrucasse, eu disse:

 — Nós não temos uma relação.

 — Não temos? — Grigor perguntou, ele havia puxado uma cadeira e se sentado ao meulado e agora me encarava confuso e carrancudo ao mesmo tempo.

Que diabos!

 — Er... Não.

 — Ih, acho que eles estão naquela fase de passagem de só pegassão pra a do namoro.Desculpem-me, mas eu estou carente demais pra ver isso! — Luke se levantou.

 — E eu também. — Emma fez o mesmo. — Estou a um milhão de quilômetros doCody.

 — Quem é Cody? — Luke estranhou.

 — Meu namorado virtual.

 — Oh, meu Deus! — lamentou-se ele, a puxando pelo braço em direção a saída. —  Quantas vezes eu vou precisar te dizer que precisamos de namorados reis? — eu o ouvidizer a ela antes de sumir de minhas vistas.

Eu me virei de volta pra Grigor e não esperava que ele estivesse tão perto. Eu limpeiminha garganta, mas não havia o que falar. O que eu poderia dizer?

Ele não me devia explicações, por mais que intimamente lá no fundo, eu me sentissemagoada por isso. Droga, eu sentia ciúmes dele, e isso me corroia por dentro. Porqueele não pode ser meu.

E eu não deveria querê-lo para mim. Garotos não fazem parte do plano. Eu só tinha queterminar a escola e dar o fora dali. Eu não podia ter algo que me prendesse ali. Eu nãopodia querer ter um namorado.

Eu voltei meus olhos para o Lunabella. E eu posso estar louca, mas a frase não era amesma:

E eu, como posso sentir-me assim se tu não me pertences?

 — Saia comigo esta noite. — disse ele, de repente, não deixando espaço para que eunegasse. — Temos duas reservas no melhor restaurante do centro.

 — Cancele-as. — eu disse tentando soar segura. — Eu não poderei ir.

 — Não posso cancelar.

 — Leve outra pessoa, Stacy ou qualquer outra garota da escola adorariam ir.

Page 164: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 164/168

 — Eu não quero levar para jantar Stacy ou qualquer outra garota, — disse-me ele. — Euquero levar você, Anna.

Eu não tinha resposta para isso.

E como tu te atreves a encarar-me com estes olhos que enxergam-me até a alma, eainda me convidares para o breu que és tua vida?

 — Uma noite. — insistiu ele. — Só eu e você.

Eu pressionei meus lábios um contra o outro.

 — Eu tenho que ir trabalhar.

 — Hoje é seu dia de folga. — falou ele dando um meio sorriso.

Eu me senti irritada com isso. Quem era ele para me dizer quando devo trabalhar ounão? Ah, sim. O meu patrão.

 — Eu vou pensar. — eu disse já me arrependendo.

Pensar era ruim. Muito ruim. Eu deveria ter dito um não logo. Eu deveria eliminar osproblemas da minha vida. E Grigor é um dos principais deles.

Ele desviou seus olhos dos meus e enfiou a mão no bolso da sua calça de jeans. Com aoutra mão livre, ele pegou a minha e meio segundo depois colocou algo duro e geladoque tinha tirado de seu bolso em minha mão.

 — O que é isso?

 — É um presente.

Eu examinei o quadrado metálico. Meu dedo circulou uma espécie de botão, e depois oapertou revelando uma tampa que se abriu mostrando uma pequena chama avermelhada.

 — Um isqueiro? — indaguei surpresa.

 — Este é especial.

 — Por quê? — desviei meus olhos da chama e encarei seus olhos esmeralda.

Ele somente deu de ombros.

Eu revirei meus olhos, já acostumada com o jeito com que ele não responde as minhasperguntas.

E eu devo estar ensandecida, pois estou prestes a aceitar teu convite.

 — Eu... Te ligo mais tarde para dar a minha resposta. — eu disse, fechando o Lunabella

e me levantando. — E valeu pelo isqueiro.

Page 165: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 165/168

 — Não seja chato, Luke, só porque você não consegue arranjar ninguém legal pelainternet não quer dizer que eu não consiga. — encontrei Luke e Emma no Miata,éramos praticamente os únicos ali, pois a maioria dos alunos já haviam ido embora hámuito tempo.

 — Por favor, por favor, me diga que ele te pediu em namoro! — Luke arqueou suassobrancelhas sugestivamente quando me viu.

Eu revirei meus olhos.

 — Não, de onde você tirou isso? — eu abri a porta de trás do carro e entrei.

 — Fala sério, Anna! —  Emma ajustou o retrovisor para me encarar pelo espelho. — Tudo bem, eu admito que só disse aquelas coisas dele porque Luke é um idiota! Euacho Grigor um cara legal, apesar de eu realmente gostar mais do Oliver.

Luke não pareceu perceber que tinha sido chamado de idiota, enquanto falava:

 — Ele gosta de você e rola um clima entre vocês dois, e aquele beijo foi para tirarqualquer duvida! Então porque não admite logo que vocês estão quase namorando?

Eu entreabri a boca.

 — Porque nós não estamos!

 — É claro, ainda tem o Oliver. — lembrou Emma. — Você tem dois caras na sua cola,não tem do que reclamar. Logo, logo você vai ter um namorado para fazer inveja nagente.

 — Ei! Eu não quero um namorado.

 — Claro que quer, todo mundo quer um. — suspirou Luke.

 — Todo mundo precisa de um. — corrigiu Emma, dando partida.

Eles estavam enganados. Eu não precisava de um namorado na minha vida. Aliás, paraque eu iria querer um namorado? Tudo que eu sempre quis foi dar o fora dali. Eu não

precisava de um motivo para ficar. Eu não precisava... Amar mais alguém. Aprendidesde cedo que quanto mais se ama, mais chances você tem de perder. Eu nãosuportaria perder mais nada. E evitar isso logo no começo seria o melhor. E eu fariaisso. Eu tinha de fazer.

 — Menos eu. — murmurei. — Podemos mudar de assunto?

Emma sorriu e abriu a boca, mas Luke já estava falando antes que algo pudesse sair.

 — Ah não me venha outra vez com esse tal de Cody! — reprimiu ele. — Anna lembradaquele livro velho que você achou?

Page 166: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 166/168

 — O Lunabella? — eu olhei instintivamente para minhas mãos vazias, eu o acabara deguardar em minha mochila.

 — Sim, esse daí mesmo. Lembra da minha tia maluca de Oregon?  — ele não esperouque eu respondesse. — Ela me ligou cinco horas da manhã para me dizer que essa coisa

é maligna.

Eu pressionei meus lábios, meu coração subitamente acelerado.

 — De onde ela tirou isso? — Emma quis saber.

 — Ela disse que alguém disse para ela em um sonho. — ele revirou os olhos. — Oualgo do tipo. Aquela velha é maluca, eu já disse, e eu estava morrendo de sono, só estoute dizendo isso porque achei uma coisa estranha: Ela sabe que o livro está com você!

 — Ai! — Emma parou o carro em um sinal vermelho. — Me arrepiei toda!

 — Como?

 — Eu não sei! Eu não disse para ninguém que tinha te dado o livro, juro, mas a malucasabia. Ela disse seu nome inteiro, só que em vez de Mathers disse Verona ou algo assim.

Um arrepio subiu pela minha espinha juntamente com uma lembrança. Tão viva quetive que engolir um grito preso em minha garganta. Como se alguém tivesse sussurradoas mesmas palavras de Gustav ao pé de meu ouvido:

“—   Até Lunabella, Anna Belle... Di Veroni.” 

 — Bom, ela disse que era para você se livrar dessa coisa o quanto antes, disse algotambém sobre fogueiras e almas, eu não entendi muito bem. Entenda, eu estava pra lá degrogue e quase mandando ela para um lugar não muito legal.

 — Você está com essa coisa aí? — Emma perguntou, ignorando o som das buzinas quevinham de trás de nós.

 — Na minha mochila. — eu apontei para ela no chão do carro.

Emma se esticou pelo console até ela, e então a abriu sacando o Lunabella de lá.

 — O que vai fazer? — eu e Luke perguntamos ao mesmo tempo.

 — Me livrar disso! A minha falecida avó sempre falava para não duvidar dos loucos,pois eles vêem muito mais do que nós.

Foi o que eu ouvi antes de ela jogar o livro pela janela do carro e então arrancar com ocarro a toda velocidade.

 — Se a tia de Luke disse para você se livrar disso, é porque tem alguma razão. Se eufosse você, Anna, eu procuraria uma igreja. — ela se virou para me encarar com osolhos injetados de obscuridade e seriedade e então riu mostrando que só estava

caçoando de mim.

Page 167: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 167/168

Luke também ria ao seu lado achando tudo uma grande piada.

Eu não via motivos para rir, porque eu tinha motivos suficientes para acreditar que a tiade Luke falara a verdade. Talvez seja porque eu também estava maluca, como ela. Outalvez, Emma estivesse certa, eu tinha que procurar uma igreja.

Page 168: Outrora Por Gleiciane Carvalho

8/4/2019 Outrora Por Gleiciane Carvalho

http://slidepdf.com/reader/full/outrora-por-gleiciane-carvalho 168/168

Distribuído gratuitamente pelo Blog oficial: www.outrora-on.blogspot.com 

Não distribua esta obra sem autorização prévia da autora, Gleiciane Carvalho.

Mais informação somente no blog oficial.