o governo provisório de mato grosso
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O Governo Provisório de Mato GrossoMARIA DO SOCORRO CASTRO SOARESTRANSCRIPT
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MARIA DO SOCORRO CASTRO SOARES
O Governo Provisrio de Mato Grosso e a Questo da Anexao
da Provncia de Chiquitos ao Imprio
Brasileiro (1821 - 1825)
Cuiab
2003
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MARIA DO SOCORRO CASTRO SOARES
O Governo Provisrio De Mato Grosso e a Questo
da Anexao da Provncia de Chiquitos ao Imprio
Brasileiro (1821- 1825)
Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em
Histria do Instituto de Cincias Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos
requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Histria, sob a
orientao do Prof. Dr. Pio Penna Filho.
Orientador: Prof Dr Pio Penna Filho
Cuiab/2003
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Pio Penna Filho (Presidente)
__________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Moraes Lessa (Membro Externo)
__________________________________________________
Prof. Dr. Alfredo da Motta Menezes (Membro Interno)
__________________________________________________
Prof. Dr. Maria Adenir Peraro (Suplente)
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Agradecimentos
Agradeo...
A Deus
O dom da vida e o renascer constante da coragem com que tenho enfrentado os bices
impostos vida.
Ao esposo
Pelo companheirismo nos caminhos solitrios da pesquisa, pelas palavras de incentivo
quando o desnimo batia minha porta e, acima de tudo, pela compreenso e carinho a mim
dedicados, elementos que sempre me conduziram a porto seguro, no decorrer desses anos e
deste traba lho.
Aos filhos e netos
Pela compreenso demonstrada quando a labuta da pesquisa me afastava do aconchego
familiar, privando-os tantas vezes da minha presena.
Ao Orientador
Aprender descobrir aquilo que voc j sabe.
Fazer demonstrar que voc o sabe.
Ensinar lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto voc.
Somos todos aprendizes, fazedores e professores.
Richard Bach
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RESUMO
Este trabalho estuda as relaes polticas em Mato Grosso no contexto da
independncia do Brasil, quando se intensificou a rivalidade poltica local entre Cuiab e Vila
Bela da Santssima Trindade.
Embora a pesquisa tenha recuado at criao da Capitania, o recorte cronolgico
tomou como balisa o perodo de 1821-1825, por tratar da deposio do ltimo Capito-
General, Francisco de Paula Magessi Tavares, e da instalao das Juntas Governativas em
Mato Grosso, e do movimento emancipador promovido nas colnias espanholas, limtrofes a
Mato Grosso, que deu causa ao episdio da tentativa de anexao proposta por D. Sebastio
Ramos, governador da Provncia de Chiquitos.
A anexao de Chiquitos analisada neste contexto poltico especfico, de rivalidade
poltica em Mato Grosso e o processo de independncia da Bolvia.
ABSTRACT
This report covers the political relations in Mato Grosso with the context of Brazils
independence when the local political rivalry intensified between Cuiab and Vila Bela da
Santssima Trindade.
Although the research has been dated back to Capitanias creation, the chronological
cut-out was based on the period of 1821-1825, for dealing with the last Captain -Generals
removal from position, Francisco de Paula Magessi Tavares, and the installation of the United
Government in Mato Grosso and the emancipation movement promoted in the Spanish
Colonies, bordering Mato Grosso, which helped to cause the annexation attempt proposed by
D. Sebastian Ramos, the Governor of Chiquitos Province.
The annexation of Chiquitos is analyzed in this specific political context of political
rivalry in Mato Grosso and Bolivias independence process.
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SUMRIO
INTRODUO...............................................................................................................07
CAPTULO I
CONQUISTA TERRITORIAL NO CENTRO DA AMRICA PORTUGUESA: MATO
GROSSO E A CRIAO DA CAPITANIA..................................................................27
CAPTULO II
ORIGENS DE UMA RIVALIDADE: VILA REAL DO SENHOR BOM JESUS DO
CUIAB X MATO GROSSO........................................................................................53
CAPTULO III
GOVERNO PROVISRIO DE MATO GROSSO E A QUESTO DA ANEXAO DE
CHIQUITOS...................................................................................................................93
CONCLUSO..............................................................................................................135
FONTES E BIBLIOGRAFIA.....................................................................................141
MAPAS.........................................................................................................................152
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INTRODUO
O episdio da anexao da Provncia de Chiquitos ao Imprio brasileiro ficou
registrado na Histria do Brasil como um fato curioso, resultante da insensatez e
despreparo dos responsveis pela administrao da Provncia de Mato Grosso,
encarregados da defesa e guarda imediata da fronteira oeste do Brasil.
Pensando em construir um texto que esclarecesse melhor os emaranhados polticos
que permearam atos e fatos no cotidiano dos habitantes da capitania de Mato Grosso,
regio fronteiria do Centro Oeste brasileiro, procurei rastrear procedimentos que
revelassem significados de uma espacialidade entremeada de enfrentamentos e disputas na
aquisio ou manuteno do poder.
O tema deste trabalho de pesquisa, intitulado O Governo Provisrio de Mato
Grosso e a Questo da Anexao da Provncia de Chiquitos ao Imprio Brasileiro (1821-
1825), nos remeteu para anlises que apontaram singularidades e prticas que permearam
e fundamentaram essa tentativa de incorporao.Esse recorte temporal (1821-1825)
justifica-se pela criao das Juntas Governativas em Mato Grosso (1821), instalao do
Governo Provisrio (1823) e a tentativa de anexao da Provncia boliviana de Chiquitos,
em 1825.
Pouco estimulante seria apresentar o episdio da anexao considerando apenas o
fato enquanto acontecimento de rpida durao e que, visto dessa forma pela historiografia,
no tenha, por isso mesmo, importncia ou contribuio histrica digna de ser lembrada.
Importa dar ao episdio um lugar na histria, contextualiz-lo.Nesse sentido,
importante acompanhar Miceli quando afirma que nenhum tema possui, em si uma carga
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maior ou menor de historicidade; a relao que com ele estabelece quem o trabalha que
pode fazer dele um tema histrico.1
Foi acreditando nessa possibilidade que essa pesquisa fez emergir indcios que
proporcionassem novos olhares, novos entendimentos sobre pequeninas teias que
inscreveram suas prticas nas pginas da histria e que, infelizmente, so lidas como letras
mortas no contexto historiogrfico.
Pensar o episdio da anexao percorrer o vis fronteirio em suas peculiaridades,
perceber as estratgias que foram circunstancialmente (re) inventadas no desafio da
sobrevivncia; entender a formao das espacialidades urbanas como produtoras das
representaes do poder, onde corpos so distribudos no espao tendo sua importncia
medida conforme a funo que ocupa e no funcionalidade e operacionalizao desta.
Cronologicamente, a pesquisa se dispe entre os anos de 1821 e 1825, uma vez que
procura contemplar as manifestaes poltico-emancipatrias das vizinhas terras
espanholas, como tambm os reflexos sentidos pelos mato-grossenses, inclusive pelo
processo de independncia poltica do Brasil. Contudo, no foi possvel evitar um recuo
temporal e chegar at criao da capitania para que se tivesse maior compreenso da
dinmica poltica que permeou os principais ncleos urbanos (Cuiab e Vila Bela),
encontrar nas reminiscncias do tempo suporte que justifique a rivalidade entre ambos e
at que ponto esse sentimento de autodeterminao de cada um facilitou a tentativa de
anexao.
Com essa tica, a pesquisa procurou contemplar a construo de prticas sociais
constituidoras das disputas pelo poder poltico entre Cuiab e Vila Bela, onde ambas
1- MICELI, Paulo. Por outras histrias do Brasil. I N: PINSKY, Jaime (Org.). O ensino da histria e a
criao do fato. So Paulo: Contexto, 1994, p. 34.
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procuraram deter esse poder, manipulando-o segundo suas aspiraes comportamentos,
inclusive que refletiram maior visibilidade a partir da criao das Juntas Governativas.
Na viso elitista cuiabana a dualidade de governo coroou a inferioridade de
Vila Bela, considerada como insalubre, indigna da presena das autoridades reinis e,
portanto, espao negativo pa ra a elite da Provncia.
Os privilgios oferecidos pelo Capito-General Rolim de Moura a quem fosse
morar na vila-capital, como iseno de impostos e at perdo de crimes cometidos,
somados ao estigma de clima insalubre e a maior parte da populao ser negra, perdurou e
fez morada no imaginrio mato-grossense como um espao maldito; territrio impregnado
de sedies e de espritos sagazes, comportamentos que so explicados por Barbosa de S
e Corra Filho, pela prpria formao tnica e social da vila, como foi o caso dos negros e
ndios .
Corra Filho chega a afirmar, de forma radical que em Cuiab encontrava-se a fina
flor da populao, mais instruda, mais ordeira, mais opulenta e numerosa. Em Vila Bela,
predominavam os elementos sediciosos, capazes de maiores ousadias. 2
O pensamento depreciativo que os habitantes de Cuiab nutriam pelo fato de Vila
Bela ter sediado a capitania de Mato Grosso, apresentado com freqncia pela
historiografia regional, baseando-se principalmente no estigma de clima insa lubre. Aps
1835, com a transferncia oficial da capital para a cidade de Cuiab, um outro adjetivo foi
acrescentado cidade: cidade dos pretos.
Em relao a isso Borges Pereira assevera que:
2- possvel entrever-se que o embate entre Cuiab e Vila Bela conseguiu ultrapassar a barreira do tempo e fazer com que o autor, j no sculo XX, enfatize de forma pouco sutil e deselegante uma suposta supremacia social daquela cidade em detrimento desta.
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Vila Bela (...), ao longo dos anos, uma cidade construda por e para
brancos (...) v-se, por mltiplas razes, abandonada pelos seus
habitantes originais. A partir desse fato, como que se abre,
aparentemente sem maiores resistncias, s populaes negras e
mestias circundantes, algumas remanescentes de antigos quilombos,
um espao j construdo, pronto para morar. Cria -se, assim,
historicamente, um territrio negro, espcie de territrio entre aspas,
em meio a um Brasil que se pretende branco de todos os lados. 3
Espao esse que apesar de ter, segundo o autor, sido criado para atender as
necessidades dos brancos, o brao negro, em contrapartida, teve grande participao na
realizao desse projeto, contribuindo com sua mo-de-obra e imprimindo
concomitantemente os seus costumes.
Acompanhando essa perspectiva, Vila Bela, num passado longnquo, ficou como
marco divisor de fronteiras que manteve intacto o interesse geopoltico da Coroa
portuguesa, no representando, atualmente, importncia alm de algumas runas (que nem
sempre so apreciadas considerando seu valor histrico) e de ter a maioria da sua
populao negra, fator que mostrado como atrao turstica que Mato Grosso pode
oferecer aos visitantes.
A presena da comunidade negra no (embora de forma sutil) expressa ou vista
considerando-se sua importncia histrica no contexto de formao do prprio Estado
mato-grossense. Quando a cidade apresentada ou cultuada feito de forma a exibir o
diferente. menos com vistas ao reconhecimento do lugar histrico que detm a velha
vila-capital e sua comunidade negra (mesmo aps o abandono dos brancos que a deixaram
seguindo os rastros do poder), que a apresentao do singular e do extico.
3- APUD. BANDEIRA, Maria de Lourdes. Territrio negro em espao branco. So Paulo: Brasiliense, p. 14. Doravante, todas as citaes obedecero grafia original dos documentos.
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Uma das intenes ao desenvolver esta pesquisa foi fazer emergir diferenas entre
Cuiab e Vila Bela, tarefa que se apresentou como estmulo na busca de pontos que melhor
esclarecessem essas individualidades.
Essa busca justificou-se pelo fato de entender que a questo da anexao de
Chiquitos ocorreu via Governo Provisrio, sediado em Vila Bela que, por sua vez, no
representava os interesses polticos de Cuiab, o que se subentende repartio de poderes e
divergncias de interesses, e que nos levou a entender que o contexto sciopoltico-
administrativo entre ambas no caminhava de mos dadas.
Isso nos fez compreender que o episdio no se materializou obedecendo a um
desejo unnime das foras polticas da Provncia (considerando que Cuiab no fora
consultada) e sim na inabilidade poltica do Governo Provisrio, ajudado pelo
favorecimento de alguns dos seus membros ao Governador de Chiquitos,
especialmente, o Deputado Manuel Velozo Rebelo.4
Ao longo da dissertao procurei considerar as disputas e estratgias utilizadas
entre Vila Bela e Cuiab, buscando perceber os enfrentamentos entre ambas na aquisio
do poder poltico.
Tem-se na ocupao da fronteira oeste do Brasil um processo de povoamento
carregado de encontros e desencontros entre o ns e o outro. Este aspecto ir imprimir
a essa regio fronteiria feies singulares em relao s determinaes dadas pelas
metrpoles ibricas.
A demarcao do espao parece ter sido uma condio inerente ao homem, na
busca da sua auto-afirmao, enquanto possuidor de uma territorialidade. Assim sendo, a
delimitao de espaos seria a condio primeira para o exerccio do poder, apresentando-
4- APUD. MELLO, Arnaldo Viana. Bolvar o Brasil e os nossos vizinhos do Prata. Rio de Janeiro: Olmpica, 1963 p. 88.
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se como a possibilidade concreta da execuo/permisso do desenvolvimento do que tido
como permitido ou benfico aos ocupantes de um determinado espao.
A partir da, possvel entender a fronteira como a limitao de um poder em
relao a outro, seria a margem extrema de uma territorialidade, o que nos remete ao
Professor Chavelas que caracteriza fronteira como "(...) cicatrizes deixadas pela Histria
(...), pois uma cicatriz no seno a marca de uma experincia que refletiu a debilidade de
um corpo, e a fortaleza de outro, que nos deixou sua impresso. 5
Assim, a fronteira seria encarada como um ponto conflituoso que teria na
militarizao da defesa a sua principal base de sustentao. Nesse caso, a fronteira aparece
como escudo protetor de uma determinada espacialidade, dando-lhe contornos
demarcatrios territoriais.
Segundo Raffestin, as finalidades das delimitaes fronteirias vo estar
diretamente ligadas s funes pelas quais esses marcos limitadores foram pensados ou
idealizados:
(...) pela demarcao elimina-se no um conflito geral, mas um
conflito do qual a fronteira pudesse ser o pretexto(...). A demarcao
(...), permite o exerccio das funes legais, de controle e fiscal. Com
efeito, a linha fronteiria adquire diferentes significados segundo as
funes das quais foi investida.6
Andr Roberto Martin, em sua anlise sobre fronteira, dispensa especial
importncia para o sentido de palavras que algumas vezes so tomadas como sinnimas,
tais como: fronteira e limite e demarcao e delimitao. Segundo ele, o limite de um
5- CHAVELAS, Bismark Alfredo Hernandes. UNAM/Mxico. IN: ARRUDA, Ney Alves. Breves notas sobre o Direito de Fronteira e aproximao do conceito de cidadania. Revista Jurdica da UNIRONDON. N. 2- 2001/02, p. 11. 6- RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder . So Paulo: tica, 1993, p. 167.
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Estado aparece como linha imaginria, marcada na superfcie terrestre por objetos naturais
ou artificiais. Sendo assim,
(...) o limite reconhecido como linha, e no pode, portanto ser
habitada, ao contrrio de fronteira que, ocupando uma faixa,
constitui uma zona muitas vezes bastante povoada onde os habitantes
de Estados vizinhos podem desenvolver intenso intercmbio. 7
Quanto delimitao e demarcao, ainda segundo Martin, tem-se que:
(...) por delimitao, entenda-se o estabelecimento da linha de
fronteira isto , o limite a qual determinada a partir de um
tratado assinado entre as partes envolvidas. Demarcao, por sua
vez, a locao da linha de fronteira no terreno isto , a
construo da divisa atravs do estabelecimento de marcos e
balizas. 8
Analisando a fronteira sul e em relao s linhas demarcatrias que deveriam
dividir os imprios luso-hispnicos em terras sul-americanas, Arno Alvarez Kern,
considera as misses jesuticas como um ponto de equilbrio nas relaes fronteirias do
Brasil colonial e recomenda que:
necessrio reconhecer que nos povoados missioneiros, os jesutas e
seus convertidos, buscaram sempre uma situao de equilbrio entre
o Trono espanhol e o altar cristo, entre a socie dade espanhola e a
sociedade indgena, entre os interesses das frentes de colonizao
luso-espanhola e os objetivos da ao dos missionrios, entre os
7- MARTIN, Andr Roberto. Fronteiras e naes. So Paulo: Contexto, 1994, p. 47. 8- Idem, p. 49.
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interesses mercantilistas dos brancos e o desejo de sobrevivncia dos
ndios.9
Isso nos leva a refletir que as carncias cotidianas ditavam por si mesmas as linhas
fronteirias. Ou seja, no caso especfico da fronteira oeste do Brasil, possvel entender a
fronteira como elemento flexvel de avanos e recuos. Percebe -se que contatos eram
mantidos de acordo com os interesses contingenciais, produzindo, de certa forma, uma
elasticidade s linhas demarcatrias que dilatavam-se e recolhiam-se, menos em nome do
poder institudo (que, ao contrrio, deixava lacunas no abastecimento de suas colnias),
que no atendimento das necessidades da prpria populao fronteiria, inferindo assim
uma perspectiva de fronteira como zona de integrao.
Nessa perspectiva, as pesquisadoras de fronteira, Reichel e Gutfreind, trabalham
uma abordagem que foge ao conceito tradicional, como ponto desintegrador. Segundo elas,
possvel entender que:
(...) a fronteira (...) propicia contatos espontneos e naturais,
responsveis pelo surgimento de interesses socioeconmicos e
culturais comuns. Nesse sentido, em oposio idia de
desintegrao, ela pode ser percebida como uma zona de
intercmbios econmicos e de integrao humana que se superpe s
determinaes dos estatutos polticos de soberania de um Estado
sobre um territrio 10.
Nesse sentido convm acompanhar Jos de Souza Martins quando afirma:
na fronteira que encontramos o humano no seu limite histrico.
nela que nos defrontamos mais claramente com as dificuldades
9- KERN, Arno Alvarez. Tradio e transformaes histricas nas fronteiras coloniais: Jesutas, Guaranis e sexualidade. In: Histria: fronteiras. XX simpsio nacional da ANPUH. Florianpolis-SC, Julho, 1999, p. 265. 10- REICHEL, Helosa Jochims, GUTFREIND, Ieda. Fronteiras e guerras no Prata.So Paulo: Atual, 1995, p. 3.
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antropolgicas do que o fazer histria, a histria das aes que
superam necessidades sociais, transformam as relaes sociais e
desse modo fundam e criam a humanidade do homem 11
Essa tica permite entender fronteira como ponto luminoso no fortalecimento das
relaes sociais intermediadas pelo sentir-se humano. a solidariedade tramitando entre
uma carncia e outra que faz com que o homem fronteirio (re) encontre-se com o eu
humano, sentimento muitas vezes diludo pela prpria adversidade do meio; contudo, a
identificao de necessidades permite aflorar o sentimento de pertencimento ao humano,
conduzindo esses homens e mulheres escrita de suas prprias histrias.
Para melhor compreenso da simbologia que representa o termo fronteira seria
importante que antes de pensarmos em um ponto de ruptura, pensssemos num ponto de
ligao, de aproximao, de testemunho.12 Ney Alves de Arruda, fazendo uma anlise
jurdica sobre fronteira, afirma que:
Se pensarmos na fronteira por seu vis jurdico, ento teremos que as
relaes de vizinhana fronteiria no so, e at melhor, no
representam uma linha de separao de soberanias estatais, porque,
antes de qualquer considerao, estamos diante do lugar de encontro
e contato entre soberanias estatais. nesse lugar de diviso fsica
entre culturas e civilizaes distintas que nasce uma outra cidadania,
resultante do encontro dinmico de povos, o qual pode gerar muitas
relaes economicamente benficas para todos como foi em dados
perodos, no passado colonial.13
11- MARTINS, Jos de Souza. Fronteira: A degradao do outro nos confins do humano. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 3. 12- MAGNOLI, Demtrio. O que Geopoltica. 3 ed. So Paul o: Brasiliense, 1991, p. 92. 13- ARRUDA, Ney Alves.Breves notas sobre o Direito de Fronteira e aproximao do conceito de cidadania transfronteiria. Revista Jurdica UNIRONDON , N 2- 2001/02 - Cuiab, MT, p. 19.
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As palavras de Arruda encontram ressonncia nas afirmaes de Lenharo, quando
este discorre a respeito das privaes sof ridas pela primeira gerao de colonizadores da
fronteira oeste, quando buscavam lenitivo nas vizinhas terras castelhanas:
Os cronistas no confirmam, mas no difcil avaliar a
importncia que Moxos e mesmo Chiquitos assumiram
no socorro aos aventureiros que saam cata do ouro
na primeira notcia de sua descoberta, sem a menor
proviso de mantimentos para sua sobrevivncia (...).
Alm das provises chegavam atravs das mones, na
falta delas ou devido falta de mantimentos, apesar
delas, os pueblos espanhis podiam dispor de cavalos,
mantimentos, prata, pagos com ouro. 14
Assim, a fronteira passa a sediar o lugar de encontros de realidades distintas mas
tambm de necessidades comuns de sobrevivncia, como lembra Brocano:
La frontera es, asi, el lugar de encuentro entre yo y
el otro, ese que es distinto a mi (...). La frontera es
una tierra en disputa. Es un espacio cultural o, si
prefieren, un texto, que se escribe con sangre. Es, en el
fondo, un conflicto de identidades que se muestran
irreconciliables. Y sin embargo, el contagio, la mezcla,
el mestizaje, la fusin, son inevitables. Y el resultado ya
no es yu, ni es el otro; es una identidad indefinida y
conflitiva que ha perdido sus sens y, por tanto, su
lugar en el mundo.Auque el individuo intente aferrarse
14- LENHARO, Alcir. Crise e mudana na frente oeste de colonizao. Cuiab, UFMT - Imprensa Universitria PROEDI, 1982, p. 39.
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a los valores de su cultura, pues en ello le va la propria
supervivencia. 15
Para este trabalho, interessa a anlise da fronteira da capitania de Mato Grosso, com
especificidade Vila Bela da Santssima Trindade e a provncia boliviana de Chiquitos, o
que convm conhecermos suas pores geogrficas:
Vila Bela (...) situada na margem oriental do rio
Guapor em terrenos e campos que todos os annos se
inundam, e cercada de pntanos d'este rio e do Sarar,
que lhe fica 3 legoas ao sul, na latitu de 15 gros e na
longetude de 317 gros e 42 minutos (...). Dista esta
capital 50 lgoas ao ocidente da foz do Jauru, espao
que extrema pelo sul com os domnios hespanhis da
Provncia de Chiquitos.16
A proximidade entre possesses espanholas e terras portuguesas em Mato Grosso
favoreceu em muito uma relao que extrapolou o sentido militar de defesa ditado pela
Coroa portuguesa nos idos coloniais. Esse procedimento passa a ser completamente
jusficado quando consideramos que a Coroa lusa negligenciava no atendimento s
necessidades mais prementes dos povoadores das reas limtrofes, como ferramentas de
trabalho, vestimentas e at mesmo gneros alimentcios necessrios ao sustento da
populao.17
Embora tenha sido autorizada pelo Conselho Ultramarino, em 1755, com o
compromisso de abastecer a regio mineradora, a criao da Companhia de Comrcio do
Gro-Par e Maranho, no foi capaz de manter um fornecimento contnuo, at porque as
15- BROCANO, Manuel. IN: La frontera, mito y realidad del Nuevo Mundo. Leon: Universidade de Leon, 1994, p. 168. 16- Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Tomo XX, 1887, p. 229. 17- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. O processo histrico de Mato Grosso. UFMT, Cuiab, 1990, p. 22.
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condies financeiras da metrpole se encontravam limitadas.18 Esse fator termina
impulsionando uma relao de intercmbio entre a capitania mato-grossense e terras
castelhanas limtrofes.
relevante entender que os habitantes das reas fronteirias da
Capitania/Provncia 19 no viviam circunscritos s condies impostas pela Coroa
portuguesa. Extrapolavam limites, num intercmbio contnuo. Esse aspecto adquire
especial importncia se levarmos em conta que a Coroa portuguesa, naquele momento,
estava mais preocupada com a efetivao da posse dos seus domnios, como tambm com
o provimento dos seus cofres to endividados.
Subtende-se, portanto, que a Coroa portuguesa pouca capacidade teve em oferecer
possibilidades concretas colnia brasileira, para que a mesma fosse municiada de
melhores condies logsticas, at para que pudesse responde r melhor aos anseios
mercantilistas da poca. como se a fronteira mato-grossense deixasse de ter, por parte da
Coroa portuguesa, a importncia que determinou a sua criao, deixando os habitantes
dessas reas limtrofes desprovidos de suas necessidades mais primrias, fazendo com que
buscassem alternativas e, nesse caso, o outro lado passou a ser buscado como
possibilidade de suporte prpria sobrevivncia. Naturalmente, o contrrio tambm
ocorria.
A capitania de Mato Grosso testemunhou no sculo XVII, por parte da metrpole
portuguesa, uma participao que ia alm da cobrana do quinto como: isenes de
impostos a quem se predispusesse a fixar residncia na faixa oeste da fronteira,
militarizao, fortificaes e a criao de uma Companhia de Comrcio (Gro-Par e
18- VOLPATO, Luiza Rios Ricce. A conquista da terra no universo da pobreza. So Paulo: Hucitec, INL, 1987, p. 47. 19- Aqui tomo o binmio capitania/provncia, considerando o perodo da sua criao, em 1748, at 1825, quando ocorreu a tentativa de anexao de Chiquitos, j na condio de provncia.
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Maranho) responsabilizada pelo abastecimento da regio guaporeana. Contudo, a
fraqueza da produo aurfera fez minguar esses cuidados antes dirigidos capitania.
As dificuldades surgidas apresentaram alternativas, institucionalizadas ou no, na
busca da sobrevivncia. Como lembra Prado Jnior, referindo-se a pouca ateno dada
colnia, pela Coroa portuguesa:
(...) de modo geral, pode-se afirmar que a
administrao colonial portuguesa (...) no criou nada
de original para a colnia (...). O que se encontrar de
diferente se dever mais as condies de particulares
(...) a que tal organizao administrativa teve de se
ajustar, ajustamento que se processar de fato, e no
regulado por normas legais (...).20
A falta de diligncia metropolitana em questes que no fossem a tributao,
relegando a segundo plano seus "filhos de alm-mar", justifica, de certa forma, as prticas
clandestinas realizadas entre provncias castelhanas e Mato Grosso.
Diante disso, o conceito de fronteira deixa de ser a linha de limitao e passa a ser
uma possibilidade de sobrevivncia, de integrao, ultrapassando o limite do permitido e
com isso proporcionando um intercmbio alm do econmico, terminando por deixar
rastros scio-culturais em ambos os lados.
Portanto, em relao a Mato Grosso, somos tentados a analisar o conceito de
fronteira como algo contraditrio. Ou seja, o que deveria ser fronteira, implicando a um
limite, um marco cerceador, como delimitao do espao permitido, terminou provocando
um senso de inte rdependncia do "outro" que, diante de circunstncias variadas,
20- PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1997, p. 302.
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apresentou-se como caminho de possibilidade na resoluo de problemas, sejam eles de
cunho econmico (como no caso de transaes comerciais, clandestinas ou no), social
(fugas de escravos ou pessoas livres em dbito com o fisco) ou at mesmo o poltico (caso
da questo da anexao da provncia boliviana de Chiquitos).
Tem-se, pois, uma situao fronteiria bem singular que, ao mesmo tempo em que
cerceou tambm possibilitou liberdade; preocupou-se em assinar e fazer cumprir tratados
demarcadores de limite e, entretanto, esteve sempre buscando a dilatao desses domnios;
coibiu a migrao para o "outro lado" e mesmo assim acolheu os que de l chegaram, como
nos lembra Correa Filho:
(...) j nos tempos de um Oeynhausen, foram recebidos
em Cuiab, com toda a deferncia, alguns realistas, a
quem as hostes emancipadoras infligiram grandes
reveses. Da por diante repetiram-se casos anlogos,
que ameaavam comprometer a diplomacia
brasileira.21
Enfim, como se o sentido poltico designado fronteira se decompusesse em
antteses, promovendo ao contrrio do limite o ilimitado; do proibido o permitido; da
sujeio a liberdade.
Aqui mais uma vez importa buscar Brocano quando diz que
(...) frontera si refiere (...) a um lugar de la mente o, si
lo preferiren, a uma regin mtica o arquetpica
uma tierra fabulosa donde la realidad de triunfar est
al alcance de todo aqul que se lo propone22
21- CORREA FILHO, Virglio. Histria de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1996, p. 311. 22- BROCANO, Manuel. op. cit. p. 168.
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Frente s contradies que o termo e suas implicaes sugerem, os prprios
habitantes fronteirios oscilavam entre o lcito e o ilcito, quando a prpria Coroa
incentivava o contrabando:
(...) e at mesmo possa introduzir para os domnios
coloniais espanhis todos os gneros de que caream,
exportando dali a prata, bem entendido, que essa
operao se deve fazer por meio de um comrcio livre e
nunca por conta da Fazenda Real, que jamais deve
fazer as funes de negociante (...).23
Essas prticas terminavam confundindo o pblico e o privado24, ou seja, o homem
fronteirio, apesar da obedincia devida, enquanto sdito, ao poder pblico institudo,
deixava-se reger pelas necessidades surgidas no mbito da sua vida privada, situao que o
colocava entre o fogo cruzado das necessidades particulares e os interesses metropolitanos.
Lenharo analisa bem essas contradies: "Se para o outro lado da fronteira era lcito
contrabandear, como aceitar que fosse proibido faz-lo de fora para dentro das
fronteiras?"25
Ou seja, percebe-se que fronteiras tambm iam se formando no interior da prpria
fronteira, o que permite entender Jos de Souza Martins quando afirma:
A fronteira de modo algum se reduz e se resume
fronteira geogrfica. Ela fronteira de muitas e
diferentes coisas: fronteira da civilizao, fronteira
espacial, fronteira de culturas e vises de mundo,
fronteiras de etnias, fronteira da Histria e da
23- Ofcio de D. Rodrigo Sousa Coutinho a Caetano Pinto. APEMT, cx. 1799 a. 24- LYRA, Maria de Lourdes Viana. O pblico e o privado no Brasil Imperial. Histria: fronteiras. XX AMPUH, 1 vol., 1999, p. 283. 25- LENHARO, Alcir. Crise e mudana na frente oeste de colonizao. Cuiab/UFMT, 1982, p. 37 -39.
-
22
historicidade do homem. E sobretudo, fronteira do
humano. 26
No caso especfico da fronteira entre Brasil e Bolvia, portugueses e espanhis
buscaram-se mutuamente, apoiando-se na juno de esforos para a superao das
dificuldades apresentadas. Provavelmente venha dessa compreenso a definio da
fronteira oeste brasileira esboada por Ldia de Oliveira Xavier: Definir essa fronteira no
matria simples. Suas caractersticas flutuam: ora uma frente pioneira, ora uma zona
de integrao, uma regio, ora um limite militarizado a ser defiendido e muitas vezes,
tem todas essas caractersticas juntas.27
Analisando as interaes realizadas na fronteira oeste de Mato Grosso torna-se
possvel relacionar o pedido de anexao da provncia de Chiquitos ao Imprio brasileiro,
feito por D. Sebastio Ramos ao governo provisrio de Mato Grosso, com laos de
amizade j existentes entre membros desse governo e aquele governador. Sem deixar de
considerar outros fatores (como a inabilidade poltica de membros do governo provisrio),
importa avaliar que se j no houvesse um bom relacionamento entre ambos a proposta e
aquiescncia da mesma, no mnimo, teriam sido analisadas com maior prudncia e zelo
diplomtico.
Este trabalho fundamentou-se nas fontes documentais (as quais encontram-se
relacionadas nas fontes e bibliografia no final do trabalho) existentes no Instituto D.
Aquino Corra, Arquivo da Casa Baro de Melgao e Arquivo Pblico de Mato Grosso. O
uso de obras da historiografia regional tambm deu suporte pesquisa, principalmente em
relao aos parmetros diferenciais entre Cuiab e Vila Bela, sem, contudo negligenciar a
26- MARTINS, Jos de Souza. op. cit. p. 12-13. 27- XAVIER, Ldia de Oliveira. Conflitos e intercmbios: a construo poltica e social da fronteira entre o Brasil e a Bolvia, as margens do Guapor e do Paraguai, de 1825 a 1867. Dissertao de Mestrado, Universidade de Braslia. 2000, p. 86.
-
23
leitura de obras outras que de uma forma ou outra deram sustentao ao desenvolvimento
dessa dissertao.
A dissertao est dividida em trs captulos. O primeiro, A Conquista Territorial
no Centro da Amrica Portuguesa: Mato Grosso e a criao da Capitania, fez-se um recuo
temporal a partir do desmembramento da regi o de Mato Grosso da capitania de So Paulo
e instalao da capitania mato-grossense, em 1748.
A inteno foi percorrer os caminhos trilhados pelas personagens que, na busca da
sobrevivncia, foram dando vida e registrando impresses nesse espao que nos idos
coloniais, amparados pelo uti-possidetis , dilataram a posse portuguesa em terras da
Amrica confinantes com terras espanholas. foram observados os governos dos dois
ltimos Capites-Generais, Joo Carlos Augusto Oeynhausen de Gravemburg (1807-
1819) e Francisco de Paula Magessi Tavares (1819-1821). Isso justifica-se, entre outras
coisas, pela permanncia dilatada desses dois governadores na cidade de Cuiab (ao invs
de Vila Bela), pela transferncia de rgos administrativos de Vila Bela para Cuiab e a
forma como a populao mato-grossense utilizou parmetros diferenciais entre um e outro
governante, o que pode justificar a gestao da dualidade de poderes mais tarde
corporificada nas Juntas Governativas que sacramentaram a diviso entre Cuiab e a vila-
capital.
O segundo captulo, Origens de uma rivalidade: Vila Real do Senhor Bom Jesus
do Cuiab x Mato Grosso, procurou-se acompanhar o desenvolvimento poltico da
capitania de Mato Grosso e seguir o desenrolar da rivalidade entre Cuiab e Vila Bela,
gerado ainda com a implantao da capital no vale do Guapor, em detrimento da cidade
pioneira Cuiab, que teve como conseqncia a repartio de poderes, dando corpo s
Juntas Governativas.
-
24
Diante disso, foi possvel acompanhar a instabilidade poltica nacional
proporcionada pela presso das Cortes portuguesas a partir de 1820, na tentativa de
diminuir o poder do representante da Casa de Bragana no Brasil, terminando por oferecer
s capitanias a possibilidade de formarem suas prprias Juntas Governativas.
Em Mato Grosso, a exemplo de tendncias poltico-ideolgicas que permearam a
poca, a busca pelo poder poltico tomou corpo atravs da disputa pela territorializao do
poder, tornando-se visveis as tticas e estratgias de enfrentamentos na busca de xitos na
sobrevivncia pessoal, poltica e social que se consubstanciaram na formao da dualidade
governamental.
O terceiro captulo Governo Provisrio de Mato Grosso e a Questo da anexao
de Chiquitos, em seu primeiro item Os povos do Altiplano, as comunidades nativas que
habitavam o Alto Peru tambm so lembradas para que se tenha noo dos ascendentes que
deram origem ao povo boliviano, com especificidade os chiquitanos, povos habitantes da
Provncia de Chiquitos, parte do objeto deste trabalho. No foi objetivo dessa dissertao
pesquisar os chiquitanos enquanto etnia e sim apenas analisar a origem e localizao
desses povos, que com suas prticas e costumes, antecederam o povo boliviano.
No item Nascimento de uma nao: Bolvia, considerou-se que a necessidade de
mudanas na poltica colonial urgia aos interesses dos colonos hispano-americanos. O
incio do sculo XIX apresentou-se s colnias castelhanas na Amrica acenando
possibilidades de mudanas e a priso do rei Fernando VII despertou nos colonos a chama
da liberdade em relao metrpole espanhola, o que deu encaminhamento a lderes como
Simn Bolvar, Sucre, San Martin e outros de promoverem a independncia das colnias
hispnicas em terras da Amrica do Sul, processo que teve incio em 1809 e concluso em
1825, momento do surgimento de uma nova nao: a Bolvia.
-
25
Em a Unificao do governo em Mato Grosso e a Questo da anexao de
Chiquitos, tem-se como objetivo a dinmica poltica por que passou Mato Grosso durante
a dualidade de governos promovida pelas Juntas Governativas, compreendendo Cuiab e
Vila Bela como espaos de enfrentamentos.
A formao de um governo uno, em 1823, no promoveu as mudanas esperadas
por parte da populao, contrapondo o ponto de vista daqueles que acreditavam que a
falta de progresso da Provncia centrava-se na dualidade de mandos.
Foi durante esse perodo de governabilidade una que ocorreu a questo da anexao
de Chiquitos ao Imprio brasileiro, fato que procurei dar nfase, apesar da efemeridade
temporal, visto que o episdio integra-se na histria poltica de Mato Grosso e da poltica
exterior do Brasil.
Por fim, tm-se as Repercusses da tentativa de anexao, que vo esclarecer a
grande insatisfao dos lderes emancipadores das colnias hispnicas em relao ao
episdio. Procurei seguir o percurso dessa indignao dos libertadores, como tambm as
providncias tomadas pelo Imprio brasileiro e pelo prprio Governo Provisrio de Mato
Grosso, que com a interveno do seu presidente, Manuel Alves da Cunha, desfez a
anexao que legalmente no existiu. O governo Imperial brasileiro sequer tinha
conhecimento do fato que tanto indignao causou aos vizinhos emancipacionistas.
-
26
CONQUISTA TERRITORIAL NO CENTRO DA AMRICA
PORTUGUESA:
MATO GROSSO E A CRIAO DA CAPITANIA
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27
O espao territorial ocupado pelo Estado de Mato Grosso, j abrangeu em seu
incio, uma rea que compreende os Estados de Rondnia e Mato Grosso do Sul, tendo
como rea aproximadamente, 1.477.041 Km.2 28, espao que foi diminudo para 1.234.658
km.2 29 , por fora do Decreto Lei n 5812, de 13 de setembro de 1943, que criou o
Territrio Federal do Guapor (Rondnia). Outra reduo na rea territorial mato-
grossense ocorreu em 11 de outubro 1977, por meio da Lei Complementar Federal n 31,
que criou o Estado de Mato Grosso do Sul e que levou a nova diminuio da rea de Mato
Grosso para 901.420,7 Km. 2 30
O povoamento do espao em estudo teve como primeiro aglomerado humano de
origem europia a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiab que, segundo Correa Filho:
Vivaz flor de civilizao, desabrolhada no corao
da Amrica do Sul, a mais de quinhentas lguas do
litoral do Atlntico, ingressou Cuiab na histria do
Brasil como surpreendente e espontnea criao do
gnio bandeirante, exprime de influxos externos.
Nenhuma das contemporneas se lhe equipara no
tocante legitimidade da sua origem, em que no
colaboraram fatores estranhos.31
Percebe-se na fala de Correa Filho a exaltao apologtica feita ao bande irantismo,
como gnio formador de espacialidades para a Coroa portuguesa, desconsiderando ou, no
mnimo, colocando numa viso minimizada, as aspiraes econmicas individuais do
homem bandeirante que, antes de pensar no aumento territorial para sua Alteza Real, tinha,
com certeza, aspiraes prprias na busca da sua sobrevivncia.
28- FERREIRA, Joo Carlos Vicente. Mato Grosso e seus municpios. Cuiab: SEC, 1997, p. 24. 29- Idem p. 24. 30- Idem p. 24. 31- MELGAO, Baro. Op.cit. p. 26. 32- Idem p. 30.
-
28
A partir de 1732, os achados aurferos nos sertes mato-grossenses vo
promovendo o povoamento da regio guaporeana, formando as "minas do Mato Grosso",
tanto que em 1737, foram remetidos Coroa 1300 oitavas dos quintos e dzimos dessas
minas. 32
Os dois espaos urbanos, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiab e as minas do
Mato Grosso, constituram-se em duas reparties distintas que deram corpo Capitania
que estava prestes a ser criada.
Em 1727, j se tem notcia da existncia, em Cuiab, de uma igreja matriz 33, o que
pressupe a existncia de ritos socializadores, como celebrao de missas, novenas,
procisses, etc. Assim, a religio e a f exerciam o papel que lhes cabia na dinmica do
sistema colonial.
Em 1750, tem-se a seguinte descrio de Cuiab:
(...) as casas da vila so muitas fabricadas de madeira
e barro, e outras de taipa de pilo com seus sobrados,
e algumas de alvenaria, para o que tem cal, que
fabricam cozinhando a pedra em forno, maneira da
Europa; e dizem ser esta parte a nica da nossa
Amrica em que h este socorro sem dependncia do
reino. esta vila cabea de comarca e nela residem o
capito-mor das ordenanas, o ouvidor letrado, senado
da cmara, intendncia geral, e outros mais oficiais e
respectivos real fazenda.34
Percebe-se que na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiab, poca da criao da
Capitania, Cuiab j contava alguma estrutura que caracterizava o urbano, inclusive a
33- APUD, ROSA, Carlos Alberto. O Processo de independncia de Mato Grosso e a hegemonia cuiabana. Cadernos Cuiabanos-I, Cuiab, Prefeitura Municipal, 1976, p.14. 34- ROSA, Carlos Alberto. op. cit. p. 41.
-
29
presena de um poder institudo. Rosa faz uma exposio detalhada do que seriam os
termos correspondentes a cada repartio, o que muita ajuda na compreenso do que foram
esses espaos:
Termo do Arraial /Vila do Cuiab-1719/173
- Camapu (extremo sul)
- Santo Antnio (rio Cuiab abaixo)
- So Jos dos Cocais (sudoeste)
- Conceio, Jac e Chapada (nordeste)
1735/1752 - acrescenta-se
- Lavrinhas (sudoeste)
- Os arraiais do Mato Grosso: So Francisco Xavier, Nossa Senhora do Pilar, So
Vicente Ferrer e Santana
1752/1808
Cuiab- perdeu Lavrinhas e os arraiais do Mato Grosso e ganhou
- Aric e Mdico (nordeste)
- Aras e Insua (sudoeste)
- Nossa Senhora do Livramento/ Cocais, Vila Maria, So Pedro del Rei/ Pocon,
Tapanhoacanga, Sapateiro (oeste)
- Albuquerque, Coimbra e Miranda (sudoeste)
- Diamantino (norte)
Mato Grosso ou termo de Vila Bela:
- Jauru, Lavrinha (leste) e os antigos arraiais ao norte
- Palemos, Lamego, Leonil, Conceio/Bragana, Balsemo, Prncipe da Beira,
Guarajus e Nossa Senhora da Boa Viagem (noroeste)
- Santa Brbara e Casalvasco (sudoeste)
FONTE: Rosa, Carlos Alberto. - A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiab (vida urbana em Mato
Grosso no sculo XVIII: 1722- 1808).
-
30
O uti-possidetis 35 fundamentou, juridicamente, o povoamento do espao urbano
que foi dando configurao Capitania de Mato Grosso, espao inclusive, que s passou a
pertencer oficialmente Coroa portuguesa a partir de 1750, com a assinatura do Tratado de
Madri.
O povoamento desse ponto mais a oeste do Tratado de Tordesilhas cobriu -se de
importncia fundamental para a Coroa portuguesa, uma vez que se tratava de zona que
viria a ser fronteiria aos domnios espanhis (viria porque at 1750, apesar de ser povoada
por sditos portugueses, o espao, oficialmente, ainda era espanhol), tornando-se "o escudo
protetor" contra a expanso do territrio hispnico.
Razes geopolticas, muito mais que econmicas, determinaram a criao da
Capitania de Mato Grosso em 1748 e isso no muito difcil de entender se levarmos em
conta que, poca da sua criao, a minerao j estava em crise (embora as minas
diamantferas do Alto Paraguai tivessem sido encontradas, as mesmas foram proibidas de
ser exploradas), como nos lembra Volpato:
Pelo Alvar de 9 de maio de 1748, foi criada a
Capitania de Mato Grosso, quando as principais
jazidas da regio ( Cuiab e Mato Grosso) j se
encontravam em franca decadncia. O estabelecimento
efetivo do seu governo s ocorreu a partir de 1751,
poca em que chegou a Mato Grosso seu primeiro
capito-general, Antnio Rolim de Moura, com a
incumbncia de dar incio organizao
administrativa e militar 36.
35- Princpio utilizado na assinatura do Tratado de Madri, em 1750. A posse da terra caberia queles que as estivessem ocupando. 36- VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formao da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819. So Paulo: HUCITEC, 1987, p. 34.
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31
Portanto, no coerente interligar minerao com a criao da Capitania 37, quando
os interesses maiores da Coroa portuguesa estavam justamente na posse da terra por meio
do povoamento e na tentativa de tentar transformar essa regio em obstculo a possveis
invases hispnicas.
As notcias de que s margens do rio Guapor, e j em terras supostamente
pertencentes Coroa portuguesa, a presena missionria espanhola estava arrebanhando
ndios para aldeamento, despertou a preocupao de moradores da vila de Cuiab que, em
1740, com fundos providos pelo Senado da Cmara, do Ouvidor e de populares
patrocinaram a Antonio Pinheiro de Faria a misso de constatar a presena dos "invasores",
sem, contudo, deixar de verificar a possibilidade de um intercmbio comercial.38
Apesar do bom acolhimento por parte dos missionrios castelhanos, a empreitada
no apresentou resultados compensadores, o que no foi causa para que outras expedies
ocorressem, como a que participou Barbosa de S.39 Segundo este:
Adquiriu notcias de toda a Provncia pelos espanhis
e ndios com quem tractou e prezenteou observou seus
costumes tractos e negociaoens armas e foras
militares tomou conhecimento das naes brbaras
vizinhas distancias alturas capacidade de navegao e
37- Os governantes das minas e o termo da Vila do Cuiab, at a chegada, em Mato Grosso, de Antnio
Rolim de Moura, j como primeiro Capito-General da Capitania foram:
1- D. Pedro de Almeida Pimentel (conde de Assumar)-1719 a 1721;
2- Rodrigo Csar de Menezes. - 1721 a 1757;
3- Antnio da Silva Caldeira Pimentel. - 1727 a 1732;
4- Antnio Luiz de Tvora (conde de Sarzedas). - 1732 a 1737;
5- Gomes Freire de Andrade (conde de Borbadela) interno - 1737 a 1739;
6- D. Luiz de Mascarenhas - 1739 a 1748;
7- Gomes e Freire de Andrade (conde de Borbadela) interno - 1748 a 1751. 38- CORREA FILHO, Virglio. Histria de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1969, p. 249. 39- CORREA FILHO, Virglio. op. cit., p. 255.
-
32
tudo o mais que convinha fez hua fiel relao que
entregou ao Juis este a remeteu ao Ouvidor e este a
Sua Magestade com a qual informao veyo no
seguinte anno Decreto do dito Senhor em como fazia
Mato Grosso cabea de Capitania com Governo e
Juzo de Fora e privilgios a todos seus moradorese
pessoas que nelle fossem estabelecer.40
Ou seja, o cronista atribui ao seu relatrio descritivo um forte peso para a deciso
da Coroa portuguesa em tomar a regio de Mato Grosso (Vila Bela) como cabea da
Capitania, fato que se contrape ao pensamento do mesmo quando tece crticas
depreciativas escolha do local para sediar a capital mato-grossense.
Embora a "espionagem" fosse recproca, pois aos castelhanos tambm interessava o
conhecimento do "lado" portugus, aos expedicionrios sados do Mato Grosso e Cuiab,
interessava o reconhecimento da rea ocupada pelos espanhis. As localidades eram
descritas em pormenores:
A de Santa Maria da Madalena, por exemplo, tem um
grande ptio todo murado e dentro dele um templo, que
tem cem braos de comprimento e trinta de largo, com
quatorze naves, de madeira de ipina, por banda; tem
na Capela maior tribuna detalha divinamente cobrada
com ornamentos; e dentro do mesmo ptio, tem casaria
de sobrado com dormitrios e outras mais casas dos
ndios e so todas arrumadas com muita perfeio
coberta umas de palhas de outras de capim. Os grupos
mais acostumados agricultura, como os de So
Miguel, plantaram muitas roarias de milho pururuca
(...) a, bananais, mames, amendoins, batatas e fumais; 40- S, Joseph Barbosa de. Relao das povoaes do Cuyab e Mato Grosso de seos princpios th os presentes tempos.Cuiab: UFMT/SEC, 1975, P. 42.
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33
criam patos, marrecos, galinhas e outros pssaros e
aves silvestres a (...). Criadores de gado, cavalaria e
galinhas, de que nas minas havia carncia, mostrava
um grande desejo de fazer negcio e tinham grande
sentimento da proibio dos padres, e escondidos deles
vinham cometer negcios com seus trastes, pedindo
facas, agulhas e machados. 41
Assim como do lado portugus temia-se uma expanso castelhana, do "lado de l" a
situao no era diferente, os vizinhos luso-hispnicos instavam por saber quais as
intenes de um e de outro. Assim como a Coroa lusa, a Metrpole espanhola tambm
expediu ordens para que se averiguasse alm das reas ocupadas por espanhis.
As determinaes baseavam-se mais ou menos nos mesmos parmetros de deter a
expanso territorial: "(...) lo importante que es el que se evite por todos medios la
introducion de portugueses, y otras qualesquier naciones en sus dominios, y de que se
recuperen los en ellos ocuparen. 42
A incerteza na limitao de territrios luso-hispnicos terminou por limitar tambm
as investigaes castelhanas, contudo, o Padre Jesuta Agostinho Castaneles, baseado em
informao de ndios fugitivos de Cuiab, afirmava que:
No princpio del lago de los yarayes, poderia Cuiab
mobilizar grande numero de mutadores. Por esto,
refletia o capelo, siempre jusgu, para y tuvo por
arrojo el intentar desalojarlos de donde estan, pues
ademas de persuadirme no hariamos faccion de
provecho, que dariamos mal parados, u a riesgo de
perder aquellas nuestras Missiones (San Rafael y San
Miguel), y que internando-se ellos, con ocasion de 41- APUD, CORREA FILHO, Virglio. op. cit. p. 258. 42- APUD, CORREA FILHO, Virglio. op. cit. p. 271.
-
34
hurgales nosotros el abiespero, pogan en gran cuidado
el Reyno.43
Segundo Correa Filho, o depoimento do jesuta espanhol contribuiu para atenuar
embates belicosos e arrematou o cumprimento das instrues recebidas pelo Governador
do Paraguai, D. Rafael de la Moneda, das quais deu conta a El-Rei, em relao aos limites
das colnias espanholas. 44
Pela parte dos observadores de Mato Grosso, as incurses feitas s misses
espanholas na regio do Guapor, valeram uma descrio minuciosa enviada Metrpole
pelo Ouvidor de Cuiab, que em contrapartida obteve a deciso de D. Joo V, atravs do
parecer do Conselho Ultramarino, de 26 de abril de 1746, como medida preventiva, de
ordenar a fundao de uma vila na regio fronteiria, medida concretizada apenas em
1752. Porm, a determinao real j era realidade desde 1746, seno vejamos:
(...) sendo presente El-Rey nosso Snr.o quanto
conveniente h ao seo real servio, e bem comum de
seos vaallos a estabiledade e augmento dos seos
dominios, foi servido determinar por sua real ordem,
de 5 de agosto de 1746, que no destricto de Mattogroo
da Camara de Cuyab se erija huma villa em o citio
que se julgar mais conveniente, o qual da parte do
mesmo Cuyab h de ter por termo o Cubatto
desembarcadouro do Rio Jaur; E por dezejar o d.
Snr. favorecer aos seos vaallos assistentes em parte
tem remota que habilitarem a villa que S. Magestade
manda fundar: Ha por bem de lhes conceder todos os
privilgios, prerrogativas, e izenes de direito, e
liberdade adiante declarados: Ha S. Magestade por
43- APUD, CORREA FILHO, Virglio. op. cit. p. 273. 44- CORREA FILHO, Virglio. op. cit., p. 272.
-
35
bem que os officiaes da Camara da cidade de Sam
Paulo Capital deste Governo para o que se lhes
passar carta em forma (...). Ha S. Magestade por bem
de fazer merc a todos os moradores da dita villa e seo
destricto de os izentar de pagarem fintas, talhas, e
quaesquer tributos ainda o das entradas, e isto por
tempo ds annos que ho de ter principios do dia da
fundao da dita villa em que se fizer a primeyra
elleio das Justias que nella h de servir, como
tambm os da S. Magestade por izentos de pagarem
pello dito tempo quaesquer direitos reaes que so
devidos ao d. Snr. e somente dos metaes dos direitos,
satisfazendo somente a decima parte em lugar do
quinto que devem (...) h servido que todos os
moradores dentro da nova villa (...) no possam se
executados por dvidas que tiverem contrado fora
dellas e seo districto., o que se entende somente nos
primeyros tres annos contados do dia em que forem
estabeleere na dita villa em qualquer tempo que seja,
ou nos princpios da sua fundao ou no futuro (...),
para que a todos seja motoria a mandey publicar por
este meu Bando que depois de Redigido nos Livros da
Secretaria deste Governo, nos da Ouvedoria geral e
mais partes a que tocar se fichar na praa publica da
cidade de Sam Paulo e nas das villas onde tambm se
publicar. Dado e passado nesta villa e praa de Santos
a 9 de outubro de 1747. O Secretario Manoel Pedro de
Macedo Ribeiro o fez-Dom Luiz Mascarenhas. 45
Percebe-se que a necessidade em povoar a vila que se estava erigindo, para abrigar
a capital da nova Capitania urgia aos interesses da Coroa portuguesa pois, os incentivos
45- APUD, CORREA FILHO, Virglio. Op. cit. p. 294.
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36
dados, como a iseno de impostos e a proibio da execuo por dvidas contradas fora
do seu distrito implicavam na importncia dada ao povoamento do vale guaporeano,
objetivando vedar o que seria uma porta de entrada para os espanhis.
Cuiab e Mato Grosso, integrantes de uma mesma capitania, foram reparties
poltico-administrativas distintas que utilizaram estratgias e prticas diferenciadas na
busca de suas sobrevivncias e alcance dos seus objetivos.
A criao da Capitania e fundao da sua respectiva capital, aliada s dinmicas
geopolticas entre Portugal e Espanha, encaminhou a efetivao das questes fronteirias
entre as duas Metrpoles em terras da Amrica. Protagonizaram o palco de comando da
Capitania mato-grossense vrios Capites-Generais que, com maior ou menor dilignc ia,
contriburam cada um a seu modo, com o seu desenvolvimento.
A esse respeito Correa Filho deu seu parecer:
Sempre houve a mais completa continuidade de
pensamento e ao entre os governantes de Mato
Grosso no meio sculo inicial de sua autonomia:
1) Antonio Rolim de Moura, o fundador, manteve-se
em exerccio durante 13 anos, 11 meses e 14 dias,
operosos, vigilantes, a comear janeiro de 51;
2) Joo Pedro da Cmara, por um quadrinio e dois
dias, continuou a poltica do tio, a quem imitou no
rechaar a invaso pelo vale guaporeano;
3) Lus Pinto de Sousa Coutinho encontrou perodo de
paz, trs anos, 11 meses e dez dias, em que se preparou
para socorrer os vizinhos contra os jesutas;
4) Lus de Albuquerque de Melo Pereira e Ccere,
desde 13 de dezembro de 1772 revelo-se o fronteiro
insigne, que a Metrpole conservou no posto defensivo
at novembro de 1789, por mais de 16 anos;
-
37
5) Joo de Albuquerque seguiu o exemplo do seu
irmo, at sucumbir no posto, a 29 de fevereiro de
1796;
6) Caetano Pinto de Miranda Montenegro entrou, a 4
de novembro de 1796, em exerccio que lhe permitiu
ufanar-se da vitria obtida em Coimbra por Almeida
Serra;
7) Manuel Carlos de Abreu e Menezes, falecido a 8 de
novembro de 1805, apenas governou durante 1 ano, 3
meses e 1 dia;
8) Joo Carlos Augusto Oeynhausen Gravemburg
assumiu o poder a 18 de novembro de 1807, em Vila
Bela (...).46
Neste trabalho, no fundamental discorrer a respeito do governo de cada um. A
referncia mais especfica feita a Rolim de Moura ocorreu pelo fato de enfatizar uma
possvel rivalidade, mesmo que embrionria, sedimentada ainda na criao da vila-capital
no vale guaporeano e no em Cuiab.
A pretenso em esclarecer as rivalidades ufanistas (re) comea a partir do incio do
sculo XIX, tomando aqui como ponto de partida o governo do penltimo Capito-
General, Joo Carlos Oeynhausen Gravemburg, por tratar-se de referencial comparativo
com Francisco de Paula Magessi, ltimo Capito-General da Capitania, que redundou em
fomentar o sentimento de supremacia nutrido pelo grupo poltico de Cuiab e que vai dar
vazo a uma srie de mudanas poltico-administrativas, acompanhando, inclusive, o
contexto poltico nacional.
Com a fundao de Vila Bela, podemos dizer que mesmo com os incentivos
oferecidos para os que l quisessem fixar residncia, Cuiab no se despovoou: Na regio
46- CORREA FILHO, Virglio. Op. cit., nota 105, p. 448.
-
38
cuiabana foi mantida parte importante da populao a qual, tradicionalmente estava ligada
ao comrcio e s atividades agrcolas. Em 1796, existiam 79 engenhos nas vizinhanas de
Cuiab e o rebanho bovino chegava a 43 mil cabeas. 47
Mesmo considerando as dificuldades financeiras resultantes do arrefecimento da
explorao aurfera, Cuiab obteve, em relao ao restante da Capitania, posio poltico-
econmica privilegiada:
Apesar da precariedade econmica da regio, os
proprietrios dos grandes latifndios, tambm
militares e burocratas, alm de comerciantes,
conseguiam um enriquecimento individual que os
situava acima do conjunto da populao (...). A patente
militar ou o cargo burocrtico, prestgio.48
Apreende-se, portanto, que proprietrios rurais, comerciantes, burocratas e militares
que foram dando corpo chamada elite cuiabana e, como tal, agenciadores da dinmica
poltica por que vai passar a Capitania nas primeiras dcadas dos oitocentos.
Em relao a essa multiplicidade de atividades, Peraro nos lembra que:
(...) essa era uma situao comum dos grandes
proprietrios, que tinham na diversificao das
atividades uma possvel alternativa para a crise
econmica advinda da minerao.Ela pontua, portanto,
a imbricao de papis reservados aos destacamentos
militares como mantenedores da segurana nas
fronteiras e agentes fixadores do povoamento.49
47- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. O processo histrico de Mato Grosso. Cuiab: Guaicurus, 1990, p. 92. 48- VOLPATO, Luiza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. So Paulo: HUCITEC, Braslia, DF: INL, 1987, p. 155. 49- PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Imprio. So Paulo: Contexto, 2001, p. 124.
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Os abaixo relacionados podem ser exemplificados como aqueles que integravam a
elite cuiabana e muitos deles dividiam-se entre a vida militar e a de latifundirios e
comerciantes:
Jernimo Joaquim Nunes: Tenente-Coronel de artilharia de linha; Comandante da
Legio de Milcias; Cavaleiro da Ordem de So Bento de Aviz e proprietrio de imveis
rurais e urbanos.
Andr Gaudie Ley: Sargento-Mor das Milcias; Tesoureiro geral das rendas reais;
Cavaleiro da Ordem de Cristo e proprietrio de imveis urbanos, desde 1813.
Antonio Navarros de Abreu: Tenente-Coronel de Milcias e abastado
comerciante.
Joo Poupino Caldas: Comerciante de grande prestgio; Tenente -Coronel de
Milcias e proprietrio de imveis no permetro urbano de Cuiab; poltico, desde 1815.
Padre Jos da Silva Guimares: Comissrio Sub-Delegado da Bula da Santa
Cruzada e homem de extensa cultura.
Antonio Correa da Costa: Proprietrio de bens rurais em Chapada do Guimares e
Tesoureiro geral da Provedoria dos Ausentes. 50
O grupo poltico institudo em Vila Bela da Santssima Trindade, no era diferente
do de Cuiab ou mesmo do restante da Col nia, o mesmo militar graduado poderia ser
grande comerciante ou grande proprietrio, como infere o ofcio de Manuel Rebelo Leite a
Oeynhausen:
(...) Meu Senhor quando fui finalmente beijar os ps a
V. Ex. no Buriti, levei impresso a pedir a V. Ex. a
graa de me dar licena para o ms de outubro at fins
de janeiro pela alternativa ir at minha casa em
50- APUD. Rosa, Carlos Alberto. O processo de independncia... Op. cit., p. 13.
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teno no s de visitar sempre minha famlia, mas de
fiscalizar algumas obras que mandei fazer no meu
Engenho, que necessita da minha disposio, porm
nessa ocasio no tive nimo de falar a V. Ex. sobre
tal particular, o que agora fao rogando a V. Ex. a
referida graa (...). 51
A transao comercial com o Centro-Sul ligava Cuiab a Minas Gerais, Gois, Rio
de Janeiro e Bahia, colocando essa elite em situao vantajosa dentro da Capitania, uma
vez que visava conseguir proeminncia poltica na colnia; em contrapartida, aos cortesos
significava a ampliao e legitimidade do seu poder na Capitania interiorana. 52
possvel entrever-se as diferenas entre Vila Bela e Cuiab se considerarmos os
aspectos populacionais, scio-econmicos e polticos que foram elementos que fizeram
parte do emaranhado de interesses que permearam as respectivas cidades.
Por volta da primeira metade do sculo XIX, enquanto a regio de Cuiab
apresentava uma populao em torno de 73%, a regio liderada por Vila Bela representava
20% do total da Provncia 53, onde os brancos representavam apenas 7,5% desse total. Em
relao ao comrcio, Cuiab e regio detinham 79% da Provncia e nquanto Vila Bela tinha
uma participao de 14%. No que tange s foras militares, embora Vila Bela tivesse sobre
si a responsabilidade de resguardar a fronteira oeste mato-grossense, contava, em 1818,
com apenas 34% do efetivo militar, enquanto a regio de Cuiab reunia 57% do total. 54
A partir dessa conjuntura, Vila Bela, que abrigava a sede da Capitania, durante o
governo dos ltimos Capites-Generais (de forma mais aguda, Magessi), foi preterida em
51- Ofcio de Manuel Rebelo Leite a Gravemburg, em 22/09/1810. Arquivo D. Aquino Correa, pasta 71, n. 1846. 52- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. op. cit., p. 93. 53- Nome dado s capitanias a partir da instalao do Imprio brasileiro (1822), sendo substitudo pela denominao de Estado a partir da Proclamao da Repblica (1889). 54- ROSA, Carlos Alberto. O processo de independncia... op. cit., p. 20.
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favor de Cuiab que, conforme estatsticas, reunia condies estruturais mais slidas que a
velha capital.
Cuiab, pelo fato de deter liderana econmica, militar e populacional, reivindicou
para si um direito que j exercia de fato, ou seja, o foro de capital. Vila Bela, em
contrapartida, embora em desvantagem, econmica populacional e militar, no abriu mo
do seu antigo status e no querendo subordinar-se a Cuiab se municia de elementos e
tticas para a defesa do seu primado.
Percebe-se que a no aceitao da capital em Vila Bela foi um pensamento que
esteve presente no imaginrio da elite econmica que liderou o processo poltico em Mato
Grosso, como nos faz supor a carta de Joo Severiano Maciel da Costa, ao Presidente da
Provncia:
Senhor Presidente e Sua Majestade o Imperador a
representao do presidente da provncia de Mato
Grosso, em que expe os motivos, que julgou
poderosos, para ser removida a Capital da Provncia
do lugar, em que se acha, por ser o mais insalubre, e
quase nos limites dela, para outro mais sadio e central,
designado para este efeito a vila de Alto Paraguai
Diamantino, que oferece todas as vantagens aos seus
habitantes; igualmente a necessidade de se fazer
convocao do Conselho da Provncia interinamente
na cidade de Cuiab. O mesmo Augusto Senhor,
tomando em considerao a importncia destes objetos
e deferindo benignamente a segunda parte da
mencionada representao: manda pela secretaria de
estados dos negcios do Imprio participar ao dito
Presidente que h por bem que a convocao do
sobredito Conselho seja interinamente na cidade do
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Cuiab at que se tomem as convenientes medidas para
a ereo de uma capital, que rena em si os cmodos
de ambas as povoaes. Ficando, porm obrigado a ir
a capital de Mato Grosso o maior nmero de vezes que
lhe for possvel. Palcio do Rio de Janeiro em 9 de
fevereiro de 1824. Joo Severiano Maciel da Costa 55
Observa-se que a busca pelo status de capital no alvoroou apenas os nimos dos
de Cuiab e Vila Bela. Em 1805, a liberao da explorao diamantfera no distrito de Alto
Paraguai Diamantino, com o passar dos anos vai fazer com que essa vila tenha tambm
suas pretenses de se tornar capital, colocando-se, segundo o documento acima, em muito
melhor condio de sediar a Capitania do que Cuiab. Entretanto, interinamente, Cuiab
sediaria at que se tivesse condies de estruturar a nova capital. Eram as elites se
articulando e buscando alianas para a conquista do poder poltico.
Os embates entre Vila Bela e Cuiab passaram tambm por uma fronteira interna,
onde foras foram medidas e a busca pe la espacialidade do poder foi constante. Embutidas
nessa bipolarizao estiveram as peculiaridades de cada uma que, embora geograficamente
pertencentes mesma Capitania, apresentavam-se com feies diferenciadas, chegando
inclusive, a uma dualidade de governos, atravs da criao das Juntas Governativas que
substituram o ltimo Capito-General, Francisco de Paula Magessi.
A elite cuiabana vislumbrava na transferncia da capital uma possibilidade de ligar
seus interesses econmicos a um contexto mais amplo. Isso comea a tomar forma a partir
do governo do penltimo Capito-General, Joo Carlos Augusto Oeynhausen de
Gravemburg, que em 1812 fixou residncia em Cuiab.
55- Carta de Joo Severiano Maciel da Costa pedindo a transferncia da capital da cidade de Vila Bela. Arquivo D. Aquino Correa, pasta 16 n. 2208.
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As intenes do Capito-General em fazer de Cuiab capital da capitania ficam
claras a partir do momento em que o mesmo, alm de fixar residncia, passa a dotar-lhe de
melhorias estruturais.
Nas palavras de Estevo de Mendona seu governo foi:
(...) fecundo e para perpetu-lo bastava os seguintes
atos: a criao em Cuiab de uma sala de cirurgia e
anatomia, como preliminar para a fundao de uma
escola de medicina; a fundao dos hospitais de So
Joo dos Lzaros e o de Nossa Senhora da Conceio;
a criao de uma escola de marinheiro e construes
navais e a instalao de um horto botnico. 56
Rosa, fazendo uma breve anlise sobre Gravemburg, aponta que seu governo
somou foras crise financeira j estabelecida na capitania uma vez que:
(...) de 1807 a 1819 ele criou uma milcia (Companhia
Franca dos Leais Cuiabanos, 1808), deu incio
navegao comercial pelo Arino-Tapajs (1812),
procurou incentivar o cultivo e o beneficiamento do
algodo (1813), tentou reativar a minerao com o
auxlio de particulares (1814/17). 57
Porm, ainda de acordo com Rosa, o que bem caracterizou a administrao
fidalga de Oeyhausen foram as grandiosas festas em Cuiab, que o colocavam frente
elite cuiabana como prottipo de perfeito administrador, justificando que (...)grandes
comerciantes eram simpticos s repetidas festas, especialmente os banquetes faustosos. O
56- MENDONA, Estevo de. Datas mato-grossenses. Goinia: Ed. Rio Bonito, 1973, v. 2, p. 287. 57- ROSA, Carlos Alberto. op. cit., p. 29.
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senhorio rural, por sua vez, encontrava no governador os padres de fidalguia que ansiava
incorporar s suas vidas rsticas 58.
As justificativas se estendem tambm s classes sociais menos favorecidas de
Cuiab:
As classes mais baixas de Cuiab tambm tinham o
governador em grande conta, devido aos hospitais que
ele criou e fartura das festas em que eram
prodigamente distribudos refrescos, doces e licores.
Observe-se tambm que um governador com
Oeynhausen, que permitia aos negros e mulatos a
participao nas festas oficias, jogando capoeira e
danando o batuque e o cururu, s poderia ser
estimado. 59
Atravessando a capitania forte crise financeira, ficam claras as intenes do
Capito-General em promover essas festividades, ou seja, uma forma prazerosa de desviar
a ateno, onde a participao popular imprimia uma mscara de igualdade, como se as
festas anestesiassem por alguns dias a real situao financeira da capitania e, o
fundamental, transmitindo ideologicamente o sentimento de corpo, de unio, como se
todos os nveis sociais comungassem os mesmos desejos, como bem afirma Madureira:
Em geral, as festas populares promovidas por
Oeynhausen contavam com a participao dos vrios
segmentos da sociedade cuiabana. Dessa maneira
misturavam-se e acotovelavam-se, lado a lado, o povo
e a elite, num espetculo que revelava, falsamente,
58- Idem, p. 30. 59- Idem, p. 30.
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igualdade e transmitia a v idia de que a situao da
Provncia de Mato Grosso era fisicamente estvel. 60
As promoes festivas feitas por Oeynhausen permitem visualisar a estratgia
utilizada pelo Capito-General, no sentido de camuflar a realidade econmica vivida pela
Provncia, que via seus magros cofres serem cada vez mais sugados e endividados.
Contudo, maioria dos cuiabanos, principalmente das classes menos favorecidas
financeiramente, ficava a impresso de abastana promovida pelo gentil governante.
Atravs de Carta Rgia de D. Joo VI, datada e assinada no Rio de Janeiro, em 17
de setembro de 1818, Cuiab e Vila Bela foram elevadas categoria de cidade, tendo esta
ltima recebido a denominao de Mato Grosso. 61
A crise financeira que assolava a capitania nas primeiras dcadas dos oitocentos fez
descortinar o pseudo-fausto mascarado pelas festas fidalgas de Oeynhausen.
Afirma Virglio Corra Filho que a correspondncia encaminhada ao Capito-
general, enviada pelos comandantes militares das Cmaras de Vila Bela e Cuiab, era
sempre a mesmice de pedidos de recursos com que pudessem suprir as ameaas de fome,
como esta, de Manuel Rebelo Leite:
Meu amo e Senhor. Cheio de respeito na vista o oficio
que V. Ex.. se dignou a dirigir-me (...). Por ora no h
como mais digna de representar a V. Ex.. a pobreza
que reina na capital indizvel, e principalmente
naqueles que esto com a boca aberta sobre o cofre
das Rendas Reais. Que aflies no padeceria o
generoso corao de V. Ex.. se estivesse presente (...).
Eu sou um dos que desejo estar coberto das vistas de V.
60- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Op. cit., p. 95. 61- Vila Bela recebeu em 1818 a denominao de Mato Grosso, somente em 29 de novembro de 1978, atravs da Lei Estadual 4012, a cidade voltou a sua antiga denominao: Vila Bela da Santssima Trindade.
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Ex.., porm desejava que V.Ex. se comovesse livrar
sempre das nossas misrias (...). 62
Em outra ocasio, em resposta s requisies do Presidente da Junta de Fazenda de
Vila Bela, escreve Oeynhausen de Cuiab, em 11 de abril de 1818:
A idia que a se faz de que o Cuiab a terra da
promisso, e que aqui h tudo inclina talvez a Junta a
supor que me basta o Fiat para tudo se fazer.
bem ao contrrio, e a escassez aqui talvez bem maior
porque o consumo tambm maior. No se julgue pois
em Mato Grosso que o Cuiab mais feliz e assim
diminuir a errada idia que se faz das venturas
alheias que ainda no existindo exageram os males
prprios. 63
Nessa resposta dada ao Presidente da Junta de Fazenda de Vila Bela, Oeynhausen
tenta desfazer a impresso de fartura que o restante da provncia acreditava ter Cuiab. Ou
seja, passando a Provncia por grave crise financeira, claro est que as festas que duravam
at dias e que aprofundavam as dvidas pblicas nada mais foram que estratgias utilizadas
pelo Capito-General, no sentido de preservar a popularidade da sua imagem frente aos
provincianos. Deve-se a essa difcil situao financeira a satisfao do Capito-General ao
comunicar aos seus comandados a nomeao do novo governador acompanhada de
grandes recursos.
Contudo, as minguadas finanas e os tantos pedidos de ajuda, sem soluo
concreta, no fizeram com que a imagem do Capito-General deixasse de ser reverenciada,
como nos sugere oficio de Manuel Rebelo Leite ao governador Oeynhausen em 1815:
62- Oficio de Manuel Rebelo Leite a Gravemburg, em junho de 1817. Arquivo D. Aquino Corra, pasta 71 n. 1830. 63- Corra Filho, Virglio. op. cit., nota 1, p. 499.
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Meu amo Senhor (...) parece que a brilhante estrela
com que V.Ex.. veio ao mundo o quer mantificar na
demora do seu governo desta capitania e suavizar pela
mesma as saudades, que j por vrias vezes nos tem
principiado a acometer (...). inexplicvel o alvoroo
do meu corao pelas noticias que V. E. me d de que
se prope a vir passar as guas nesta capital, mas
sempre temo e temerei pela sade de V. Ex.. em clima
to oposto humana conservao, principalmente em
semelhante estao (...).64
Tendo o Capito-General, durante a sua governana, assistido to pouco a velha
capital, percebe-se a satisfao do seu subordinado diante de uma possvel visita, o que
implicaria um sentimento de pertencimento ao poder expressado pelo Comandante militar
sediado em Vila Bela. Contudo, a preocupao e o cuidado com o bem estar de Sua
Excelncia falaram mais alto. A fala do comandante de Vila Bela refora o pensamento de
insalubridade atribudo cidade e, portanto, no digno de pessoa to ilustre.
Mesmo usufruindo da simpatia de boa parte da populao mato-grossense,
Oeynhausen,supliciado pelas dificuldades financeiras ansiava por se ver substitudo no
cargo e essa substituio ocorre em 6 de janeiro de 1819, quando chega a Cuiab o
Tenente-Coronel Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, nomeado por Carta
Rgia de 7 de julho de 1817.
Supondo que Magessi vislumbrasse alguma iluso em relao aos cofres da
capitania, cedo essas iluses foram desfeitas, pois esquadrinhando-os com avidez, no
encontrou com que pagar os 10 soldados que o acompanhavam 65. Em oficio dirigido pelo
64- Oficio de Manuel Rebelo Leite a Gravemburg, em junho de 1817. Arquivo D. Aquino Corra, pasta 71, n 1830 65- Corra Filho, Virglio. op. cit., p. 457.
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governador Secretaria de Estado, em 19 de janeiro de 1818, Melgao chegou seguinte
concluso em relao s finanas de Mato Grosso:
(...) depreende-se que os cofres estavam sem dinheiro;
que no serto no havia um s morador por causa dos
ndios; que tropa de linha na capital era somente
fornecida carne e meio dcimo de farinha por mdia;
que perto de 600 homens que guarneciam a fronteira
eram sustentados pelos lavradores e senhor de engenho
a quem se tornava muito pesada a falta de pagamento;
que a divida da capitania era a seguinte:
Folha Militar 401: 897 $ 643
Folha Civil 51: 777 $ 305
Folha Eclesistica 8: 208 $ 592
________________
461: 883 $ 540
Dvida extrada de 1769 a 1818 221: 049 $ 952
Dvida contrada em 1818 7: 493 $ 874
_________________
Total 690: 427 $ 366 66
Diante de tal situao, o Capito-General resolveu executar uma poltica rgida,
dando especial ateno a militana, como homem afeito s atividades militares.
Dentre as medidas tomadas por Magessi com o fito de melhorar estruturalmente a
capitania pode-se apontar:
66- MELGAO, Baro de. op. cit., p. 132/133.
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- organizao de expedio s minas dos
martrios;
- franquia do porto geral de Cuiab ao
comrcio com as provncias espanholas;
- garantia do monoplio da exportao de ferro
Companhia de Minerao de Cuiab;
- transferncia, de Vila Bela para Cuiab, de
importantes organismos pblicos. 67
As medidas tomadas por Magessi no amenizaram a crise financeira por que
passava a capitania, entretanto, visibilizou a preferncia do Capito-General por Cuiab,
cidade que, segundo seu gosto, deveria achar-se a capital 68. Essa afeio pode ser
perceptvel pela sua permanncia de 18 meses em Cuiab, durante os 19 meses do seu
governo.
Mesmo as aes empreendedoras do Capito-General no foram capazes de
reverter a opinio dos mato-grossenses em relao a sua pessoa, fato que pode ser
verificado pela anlise da historiografia regional, como faz Corra Filho, tomando como
parmetro o penltimo Capito-General, Joo Carlos Augusto Oeynhausen Gravemburg,
que, segundo o autor, era:
(...) o modelo do governo paternal, a quem os
subordinados tinham gosto em obedecer. Ainda quando
ordena, mais parece pedir. Ao Senado da Cmara, em
particular, se deseja guiar para algum ato, insinua-lhe,
67- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. op. cit., p. 96. 68- Corra Filho, Virglio. op. cit., p. 459.
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sem o parecer, qual deva ser o procedimento, evitando
ostentar o seu poderio.69
Magessi parece seguir itinerrio contrrio s graas dos mato-grossenses:
(...) estadeava nos mnimos gestos o militar afeito
rija disciplina (...). Mandava com entorno de quem
fosse o prprio rei. A capitania afigurava-se-lhe como
enorme caserna, cuja atividade deveria regrar-lhe pelo
mesmo regime. 70
Para Madureira:
Magessi representava as antigas foras polticas,
advindas do perodo colonial, os quais estavam
sofrendo imensa rejeio da sociedade brasileira.
Neste momento emergiam foras polticas oriundas de
uma elite nativa, que desejava obter poder poltico, a
nvel das diferentes provncias e passar a ser a
condutora de independncia a nvel central.71
Rosa tambm registra suas consideraes a respeito do ltimo Capito-General:
Da fidalguia de Oeynhausen bem poucos traos
poderiam ser encontrados em Magessi. De tpica e
ortodoxa formao militar, sem ter oportunidade de
por em prticas seus conhecimentos blicos contra os
hispano-americanos (...), Magessi passa a governar a
vida pblica como se esta fosse uma enorme caserna.72
69- Idem, p. 459. 70- Idem, p. 460. 71- SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. op. cit., p. 97. 72- ROSA, Carlos Alberto. Op. cit., p. 30.
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ORIGENS DE UMA RIVALIDADE:
VILA REAL DO SENHOR BOM JESUS DO CUIAB X MATO GROSSO.
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A preocupao na imposio de limites fronteirios nas possesses luso-hispnicas
em terras da Amrica se fez presente durante todo o perodo colonial entre Portugal e
Espanha, o que suscitou inclusive assinaturas de vrios tratados (Tratado de Madri-1750,
Tratado de El Pardo-1761, Tratado de Santo Ildefonso-1777 e Tratado de Badajs-1801),
visando com isso uma demarcao imbricada no trip geopoltico-econmico que mais
vantagens trouxesse a uma ou outra Metrpole.
Foi, portanto, com objetivos bem definidos que, em 1748, foi criada a capitania de
Mato Grosso, tendo como primeiro Capito-General D. Antnio Rolim de Moura Tavares,
que trouxe dentre suas muitas atribuies, a misso do estabelecimento de uma sede
administrativa para a recm criada capitania.
A Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiab, primeiro ncleo de povoamento da
capitania, foi elevada condio de vila ainda em 1727, quando da visita do Capito-
General Rodrigo Csar de Meneses, Governador da Capitania de So Paulo, como ressalta
Barbosa de S:
(...) no primeiro de janeiro deste anno mandou o
general levantar pelourinho com grandes aplausos do
povo que em repetidas vezes bradava: viva a villa
Real do Senhor Bom Jesus do Cuyab, tomou cazas
para Senado da Cmara citas na rua chamada do sebo
de fronte do oratrio nomiou por Olvidor o Doutor
Antnio lvares Lanha Peixoto Olvidor que era na
villa de Parnago mandada por sua magestade para
adeministrao da justia mandou-o erigisse Senado
da Cmara na forma da Lei.73
73- S, Joseph Barbosa de. Relao das povoaes do Cuyab e Mato Grosso de seos princpios th os prezentes tempos. Cuiab: edies UFMT/SEC, 1975, p. 24.
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53
Quando poca da criao da Capitania, a populao cuiabana viu na emancipao
proporcionada pelo Alvar de 9 de maio de 1748, novos horizontes que deveriam
alvoroar as aspiraes sertanejas74, contudo, as Instrues trazidas pelo Capito-General
Rolim de Moura frustraram os sonhos cuiabanos de sediar a nova capitania, considerando
as recomendaes reais feitas a 19 de janeiro de 1749:
1-Suposto entre os distritos de que se compe aquela
Capitania geral, seja o de Cuiab o que ache mais
povoado, contudo atendendo a que no Mato Grosso se
requer a maior vigilncia por causa da vizinhana que
tem, houve por bem determinar que a cabea do
governo se pusesse no mesmo distrito Mato Grosso; no
qual a vossa mais costumada residncia.75
Convm aqui esclarecer que, segundo Barbosa de S, j em 1731 se teve notcias
dos sertes do Mato Grosso:
(...) chegaro a esta villa (Cuyab) vindos do dito
serto o Licenciado Pais de Barros seo irmo Artur
Pais, seos sobrinhos Joo Martins Claro e Jos
Pinheiro todos naturais da villa de Sorocaba e
apresentaro hum cruzado de ouro de amostra das
minas de Mato Grosso Lavado com hum prato de
estanho no lugar adonde se acha hoje a capela de
Santa Ana.76
No ano seguinte, 1732, Melgao, fundamentando-se nos Anais do Senado da
Cmara de Cuiab, justifica o topnimo:
74- CORREA FILHO, Virglio. Histria de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1969, p. 319. 75- MENDONA, Rubens de. Histria de Mato Grosso. 4 ed. Cuiab: Edio da Fundao Cultural de Mato Grosso, 1982, p. 32. 76- S, Joseph Barbosa de. Op. cit., p. 32.
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54
Segundo os Anais de Cuiab parece que neste ano
foram trilhados os sertes de Mato Grosso pela
primeira vez, sendo que esse nome provavelmente se
origina da grande mata em que correm os rios Jauru e
Guapor, e que depois aplicou-se cidade ali edificada
e finalmente toda capitania. 77
O distrito de Mato Grosso, no vale do Guapor, surge assim pontilhado pela
seqncia de achados aurferos que proporcionaram pequenos aglomerados humanos
formando os arraiais de So Francisco, Santana, So Vicente, Nossa Senhora do Pilar,
Brumado, Ouro Fino, Boa Vista e Lavrinhas 78. Foi o conjunto desses achados que
proporcionou em 1737, o envio de 80 arrobas de ouro extrado dos sertes mato-
grossenses.79
Entende-se que o interesse da Coroa lusa em desmembrar e criar uma sede
administrativa para a nova Capitania obedeceu s necessidades estratgicas de defesa,
portanto, um ato poltico. Assi