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Ivan Krastev O FUTURO POR CONTAR Como a pandemia vai mudar o mundo Tradução de RAFAEL PERES MARQUES e MANUEL SANTOS MARQUES

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Page 1: O FUTURO POR CONTAR · que se desenrolava diante nós. 7 Suponho que já nos aconteceu a todos, num momento ou noutro. Aquele instante em que somos assaltados pela ideia de que estamos

Ivan Krastev

O FUTURO POR CONTAR

Como a pandemia vai mudar o mundo

Tradução deRAFAEL PERES MARQUES

e MANUEL SANTOS MARQUES

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Para o Boris, a Lilli e o Svetoslav Bojilov, e para a minha família — Yoto, Niya e Dessy —,

com quem passámos várias semanas inesquecíveis, a viver em conjunto uma quarentena

e a reflectir sobre a crise do coronavírus que se desenrolava diante nós.

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Suponho que já nos aconteceu a todos, num momento ou noutro. Aquele instante em que somos assaltados pela ideia de que estamos a viver o tipo de distopia corrente no imaginário popu-lar. Sentimos que uma espécie de Big Brother nos vigia, ou vivemos numa variante da Matrix.

Num dado momento de Março de 2020, por volta da segunda semana do meu confinamento por causa da COVID-19, um amigo enviou-me por e-mail um divertido diagrama de Venn. Mostrava 12 círculos que se sobrepunham parcialmente, representando cada qual uma distopia popular. Estavam lá todas as mais famosas: 1984, Admirável Mundo Novo, A História de Uma Serva, A Laranja Mecânica e O Deus das Moscas. Na pequena área em que todos os círculos se intersectavam, lia-se: «Você está aqui.» E, de facto, ali estamos: a viver

O CISNE CINZENTO

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em simultâneo todos aqueles pesadelos. «A meio do percurso da nossa vida, dei comigo numa floresta sombria, pois que se perdera o caminho a direito», escreveu Dante n’ A Divina Comédia.

«A primeira coisa que a peste trouxe à nossa cidade foi o exílio», observa o narrador d’ A Peste de Camus; e, por estes dias, temos uma percepção razoável daquilo que ele queria dizer. Uma socie-dade em quarentena é, literalmente, uma «so- ciedade fechada»: as pessoas deixam de trabalhar, deixam de se encontrar com amigos e parentes, já não conduzem os automóveis e põem as suas vidas em modo de pausa.

A única coisa que não conseguimos de todo deixar de fazer é falar acerca do vírus que ameaça transformar o nosso mundo para sempre. Estamos aprisionados nas nossas casas, assombrados por medo, tédio e paranóia. Governos benevolentes (e não tão benevolentes) vigiam de perto para onde vamos e com quem nos encontramos, determinados a proteger-nos tanto da nossa própria imprudência como da imprudência dos nossos concidadãos. Pas-seios não autorizados no parque podem dar lugar a multa ou até detenção, e o contacto com outras pessoas tornou-se uma ameaça à nossa própria

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existência. Um toque espontâneo nos outros equi-vale a traição. Como disse Camus, a peste eliminou a «singularidade da vida de cada homem», uma vez que intensificou a percepção que cada um tem da sua vulnerabilidade e impotência para planear o futuro1. Depois de uma epidemia, todos os que não morreram são sobreviventes.

Porém, por quanto tempo perdurará a memó-ria desta experiência social sem precedentes? Será que, dentro de poucos anos, a recordare-mos como uma espécie de alucinação colectiva provocada por «uma escassez de espaço com-pensada por um excesso de tempo», nas pala-vras usadas certa vez pelo poeta Joseph Brodsky para descrever a existência de um prisioneiro?

A pandemia de COVID-19 revelou-se uma ocorrência clássica de um «cisne cinzento»: extre-mamente provável e capaz de virar o nosso mundo de pernas para o ar, mas ainda assim um choque tremendo quando aparece. Em 2004, o Conselho Nacional de Informações dos EUA previu: «trata-se apenas de uma questão de tempo até que surja uma

1 Albert Camus, A Peste (tradução de Ersílio Cardoso, Livros do Brasil, 2020).

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nova pandemia, como o vírus da gripe de 1918-19, que matou o número estimado de vinte milhões de pessoas em todo o mundo», e tal ocorrência podia «fazer parar as viagens e o comércio internacio-nal durante um período prolongado, impelindo os governos a despenderem recursos avultados em sectores de saúde sobrecarregados»2. Numa pales-tra TED em 2015, Bill Gates não só vaticinou uma epidemia global de um vírus extremamente conta-gioso, mas também nos advertiu de que não está-vamos preparados para lhe responder. Hollywood também nos ofereceu as suas próprias «advertên-cias», sob a forma de êxitos de bilheteira. Não é, porém, por acaso que não existem cisnes cinzentos no Lago dos Cisnes; os «cisnes cinzentos» são um exemplo de algo previsível e, todavia, inimaginável.

Embora as grandes epidemias não sejam, na verdade, ocorrências assim tão raras, o seu apareci-mento, por alguma razão, surpreende-nos sempre. Reposicionam o nosso mundo de uma maneira que se assemelha à de guerras e revoluções, mas, não obstante, estes últimos acontecimentos ficam

2 O número de vítimas da gripe espanhola varia significativamente segundo as fontes.

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gravados na nossa memória colectiva de um modo que, por qualquer razão, não se verifica com as epidemias. No seu maravilhoso livro Pale Rider [O Cavaleiro Lívido], Laura Spinney, autora britânica de divulgação científica, mostra que a gripe espa-nhola foi o acontecimento mais trágico do século xx, mas está hoje praticamente esquecido. Há um século, a pandemia infectou um terço da população mundial, uns inacreditáveis 500 milhões de pes-soas. Entre o primeiro caso registado, a 4 de Março de 1918, e o último, em Março de 1920, a pandemia ceifou entre 50 e 100 milhões de vidas humanas. Em número de baixas decorrentes de aconteci-mentos singulares, ultrapassou tanto a Primeira Guerra Mundial (17 milhões de mortos) como a Segunda (60 milhões de mortos) e pode ter matado tantas pessoas quanto as duas guerras em conjunto. Contudo, como observa Laura Spinney, «quando se pergunta qual foi a maior catástrofe do século xx, quase ninguém responde a gripe espanhola»3. O mais surpreendente é que até os historiadores parecem ter esquecido essa epidemia. Em 2017,

3 Laura Spinney, Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How It Changed the World (Londres, Random House, 2017).

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a WorldCat, a maior base bibliográfica mundial, registava aproximadamente 80 mil livros sobre a Primeira Guerra Mundial (em mais de 40 línguas), mas só 400 sobre a gripe espanhola (em cinco línguas). Como é possível que uma epidemia que matou pelo menos cinco vezes mais pessoas do que a Primeira Guerra Mundial tenha resultado em 200 vezes menos livros? Por que razão recordamos guerras e revoluções, mas esquecemos pandemias, apesar de estas afectarem as nossas economias, a nossa política, as sociedades e a arquitectura urbana com o mesmo grau de impacto?

Laura Spinney acredita que uma razão deter-minante é que é mais fácil contar os que foram mortos por balas do que os que morreram por causa de um vírus, e a presente controvérsia a res-peito da taxa de mortalidade da COVID-19 parece provar essa hipótese. A outra razão, mais funda-mental, é a de ser difícil fazer de uma pandemia uma boa história. Em 2015, os psicólogos Henry Roediger e Magdalena Abel, da Universidade de Washington no Missouri, sugeriram que as pes-soas tendem a memorizar apenas «um pequeno número de acontecimentos destacados» de qual-quer situação, nomeadamente os que se «referem

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aos momentos de início, viragem e fim»4. É muito difícil contar a história da gripe espanhola (ou, na verdade, de qualquer outra grande epidemia) usando esta estrutura narrativa; as epidemias são como órfãos, na medida em que nunca podemos ter total certeza da sua origem, e são também como séries da Netflix, em que o fim de uma temporada representa meramente uma interrupção antes da próxima. A relação entre a epidemia e a guerra assemelha-se à relação entre alguma literatura modernista e o romance clássico: falta-lhe um enredo claro.

A nossa incapacidade — ou talvez a nossa relutância — de recordar epidemias também pode ter algo que ver com a nossa aversão genérica à morte e ao sofrimento aleatórios. A falta de sen-tido da dor arbitrária é difícil de suportar. As víti-mas da actual pandemia sofrem uma morte trágica não só porque não conseguem respirar mas tam-bém porque ninguém consegue verdadeiramente explicar o significado da sua morte. A guerra traz consigo a promessa da vitória heróica. Na narrativa

4 Ibid.

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patriótica, os soldados não se limitam a morrer: sacrificam as suas vidas por outros. A história das guerras é a de gente vulgar que dá prova de uma coragem extraordinária ao sacrificar a sua vida para salvar a de outros. William James chamou à guerra «a ama sanguinolenta que incutiu coesão nas sociedades». Contudo, numa epidemia não há nada de heróico. Daí que a única maneira de recordar epidemias seja celebrá-las como guerras. Há um tipo de monumento na história da arte a que se chama «colunas da peste», como a que há na Graben de Viena. Significativamente, são muitas vezes descritas como «monumentos que celebram a vitória sobre a peste».

A luta global contra a COVID-19 não é um combate de vida ou morte. Nas palavras do cien-tista italiano Carlo Rovelli: «A morte acaba sem-pre por vencer: somos mortais. O que acontece é o enorme esforço de todos nós para concedermos uns aos outros um pouco mais de tempo, porque esta vida breve, não obstante o sofrimento e as adversidades, parece-nos mais bela do que nunca.»5

5 Carlo Rovelli, «Coronavirus, a lezione di umiltà: siamo fragili ne usci-remo uniti», Corriere della Sera, 1 de Abril de 2020, disponível em: https://

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Não se trata somente de a COVID-19 trazer uma morte sem sentido. É que traz também uma morte sem dignidade. Em todos os testemunhos de epidemias passadas, o que agravou a tragédia, aos olhos de quem conta a história, foi as pessoas mor-rerem sem lhes serem proporcionadas as exéquias apropriadas. Desta vez não é diferente. O receio de infecção levou a que muitas pessoas ficassem relu-tantes em comparecer ao funeral dos seus parentes; e, em várias ocasiões, nem sequer houve funeral.

Dispomos de muito poucas pistas relati-vamente a quando terminará a pandemia da COVID-19 e também não sabemos como termi-nará. Se usarmos como modelo a gripe espanhola, a pandemia ainda nem chegou. Estaríamos então no começo do Verão de 1918 e a gripe atravessaria ainda a sua primeira fase mais branda. As grandes mortandades e choques sociais residem ainda no futuro.

De momento, não podemos senão especular a respeito do impacto político e económico a longo

www.corriere.it/esteri/20_aprile_01/coronavirus-lezione-umilta-siamo- fragili-ne-usciremo-uniti-6a285592-7448-11ea-b181-d5820c4838fa.shtml

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prazo. Os historiadores mostram claramente que «uma verdadeira epidemia é um acontecimento, não uma tendência»6. Nas palavras do historia-dor da medicina Charles Rosenberg, «as epide-mias iniciam-se num ponto do tempo, progridem por uma etapa limitada no espaço e na duração, seguem uma linha de evolução de crescente tensão reveladora, avançam para uma crise de carácter individual e colectivo, e depois seguem à deriva até ao seu término»7. Dito isto, este livrinho afirma que a COVID-19 mudará o nosso mundo de formas profundas, independentemente de virmos ou não a recordar os dias da pandemia. O mundo sofrerá uma mudança profunda, não porque as sociedades assim o desejem ou por haver consenso quanto à direcção da mudança, mas porque não será pos-sível voltar atrás.

Há um século, a gripe espanhola chegou a um mundo que tinha sido dilacerado, esgotado e desmoralizado pela Grande Guerra. Também matou como uma guerra, pois os adultos sau-dáveis entre as idades de 20 e 40 anos foram

6 Charles Rosenberg, Explaining Epidemics (Cambridge University Press, 1992), p. 279.7 Ibid.

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os mais susceptíveis de soçobrar. A epidemia foi um acontecimento global, mas as pessoas não se recordam dela como tal, porque a ideia de um mundo comum desabou durante os longos anos da guerra. A pandemia da COVID-19 promete pôr fim à globalização tal como a conhecemos. Ninguém sabe se se verificarão as normais consequências das guerras, mas, independentemente do que acontecer a seguir, podemos estar confiantes de que, quando o vírus for derrotado, o mundo será varrido por uma «pandemia de nostalgia».

No século xvii, pensava-se que a nostalgia era uma maleita curável, mas contagiosa. O seu principal sintoma era a melancolia, que se julgava derivar de um anseio de regressar à terra natal ou a um tempo diferente. Os que dela padeciam queixavam-se muitas vezes de ouvir vozes e ver fantasmas. Os pacientes adquiriam «‘um sem-blante inânime e fatigado’ e uma ‘indiferença para com tudo’, confundindo acontecimentos passa dos e presentes, reais e imaginários»8. Quando a pande-mia terminar, as pessoas sentirão nostalgia de uma

8 Svetlana Boym, The Svetlana Boym Reader, eds. Cristina Vatulescu, Tamar Abramov, Nicole G. Burgoyne, Julia Chadaga, Jacob Emery, Julia Vaingurt (Bloomsbury Publishing USA, 2018), p. 217.

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era passada em que podíamos facilmente voar para quase qualquer parte do mundo, em que os res-taurantes estavam sobrelotados e em que a morte era tão anormal que, quando falecia uma pessoa idosa, nos interrogávamos se a sua morte fora pro-vocada por um erro médico. Contudo, no mesmo momento em que as pessoas sentirem anseio de regressar à normalidade, aperceber-se-ão de que será impossível fazê-lo. Também há algo pertur-bador no mundo de ontem. A diferença entre o passado e o presente é que nunca podemos conhe-cer o futuro do presente, mas já vivemos o futuro do passado. E sabemos que o futuro de ontem é a pandemia da COVID-19 por que hoje passamos.

Outra vez o déjà-vu

Ouvimos repetidamente na última década que o mundo vai alterar-se para sempre; não só depois do 11 de Setembro mas também depois da Grande Recessão de 2008-09 e, na Europa, na sequência da crise de refugiados de 2015. A afirmação de que o mundo «nunca mais voltará a ser o mesmo» é, num certo sentido, apenas uma previsão de que

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muitas coisas estão prestes a mudar, mas, como sabemos, as coisas mudam constantemente. A afirmação, porém, remete para algo muito mais concreto: o fim do mundo liberal nascido da queda do Muro de Berlim, um mundo caracteri-zado pela disseminação global da democracia e do capitalismo, e enformado pelo poder e a vontade dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus. Durante todas as crises anteriores, vários profetas declararam o fim da ordem liberal. Em determi-nados momentos, ela poderá ter parecido estar nos cuidados intensivos, mas conservou sempre a capacidade de recuperação; porque havia esta vez de ser diferente?

A meio de Março de 2020, profundamente perturbado com a disseminação da pandemia e abrigado em segurança na casa de um amigo numa zona rural da Bulgária, foi-me atormentando a questão de como a COVID-19 mudaria o mundo. Vi o mundo pós-coronavírus como aquele em que se intensificariam certas tendências e con-flitos presentes antes da chegada do vírus; neste sentido, vejo que o vírus é um amplificador e não um desregulador. Considerei que a COVID-19 poria fim a uma década de ruptura marcada pelo

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clarificar da globalização e que provocaria mudan-ças profundas na nossa política, economia e modos de vida. Antecipei o regresso do Estado, apoiado por uma confiança redobrada no conhecimento especializado e científico. Também pressenti a ascensão do nacionalismo e o esbatimento das fronteiras entre a democracia e o autoritarismo dos big data. Como muitos outros, esperava o declínio da ascendência global norte-americana (embora não tivesse necessariamente previsto uma ascensão concomitante da influência global da China). Pareceu-me que o coronavírus cons- tituiria um desafio a algumas das principais concepções sobre as quais se fundou a União Europeia, o que poderia ser um prelúdio de uma importante transformação do projecto europeu. Se as coisas corressem mal, a COVID-19 podia desencadear a desintegração da União Europeia9. Porém, qual o grau de precisão das minhas pri-meiras conjecturas?

Alexander Herzen, grande pensador russo do século xix, observou celebremente que «a História

9 Ivan Krastev, «Seven early lessons from the coronavirus», ECFR, 18 de Março de 2020, disponível em: https://www.ecfr.eu/article/commentary _seven_early_lessons_from_the_coronavirus

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não tem libreto», e eu sempre tive a mesma sensa-ção. Enquanto reflectia sobre as mudanças que a COVID-19 podia inspirar, veio-me à memória uma deixa de Nonsense Novels, de Stephen Leacock: «Lorde Ronald não disse nada; saiu lançado da sala, saltou para a garupa do cavalo e afastou-se em galope furioso em todas as direcções.» Era minha convicção que o mundo ia mudar, mas não considerei que a direcção da mudança estivesse predeterminada e já adivinhava que as nossas pre-visões eram ainda menos fiáveis do que os testes do coronavírus disponíveis nos primeiros dias da pandemia.

Ao tentar conjecturar a direcção da mudança, preocupou-me, como a tantos outros comenta-dores, se serão as democracias ou os regimes autoritários a lidar melhor com a pandemia, não obstante ser claro que a natureza do regime polí-tico não é o factor crítico para explicar o sucesso ou o fracasso na contenção da pandemia. Como concluiu a académica norte-americana Rachel Kleinfeld, «apesar das tentativas dos políticos para usar a crise como meio de angariar apoio para o modelo político da sua preferência, até agora os dados não mostram uma correlação forte entre

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a eficácia e o tipo de regime»10. Embora algumas autocracias — por exemplo Singapura — tenham tido inicialmente bons resultados, outras, como o Irão, saíram-se muito mal. Do mesmo modo, algumas democracias, como a Itália e os Estados Unidos, foram tropeçando, ao passo que outras, incluindo a Coreia do Sul, a Alemanha e Taiwan tiveram um desempenho admirável. Na análise de Rachel Kleinfeld, os principais factores que deter-minam o êxito de uma nação na contenção da pan-demia de COVID-19 são as experiências anteriores do governo a lidar com crises semelhantes, o nível de confiança social numa sociedade e a capacidade do Estado. Segundo a mesma estudiosa, Taiwan, a Coreia do Sul, Hong Kong e Singapura, ainda que politicamente diversas, aprenderam as lições adequadas com a epidemia de SARS em 2002-03 e desenvolveram testes rápidos logo depois de o coronavírus ter começado a disseminar-se, a fim de lhe travar o passo. Os três países dispunham de legislação para situações de emergência que

10 Rachel Kleinfeld, «Do Authoritarian or Democratic Countries Handle Pandemics Better?», CEIP, 31 de Março de 2020, disponível em: https://carnegieendowment.org/2020/03/31/do-authoritarian-or-democratic- countries-handle-pandemics-better-pub-81404

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permitiu o direito extraordinário de rastrear onde haviam estado os indivíduos infectados e afrouxa-ram a regulamentação relativa a defesa da priva-cidade, para divulgar amplamente essa informação e alertar as pessoas de que tinham sido expostas ao vírus e deviam submeter-se a teste. Por fim, recorreram intensivamente a quarentenas obri-gatórias, para abrandar a propagação do surto.

Todos os países que repeliram com eficácia a COVID-19 têm elevados níveis de confiança pública nas suas instituições; o sucesso do controlo social governamental depende mais da aquiescência voluntária do que da imposição. Embora tenham regimes políticos muito diferentes, a China, Sin-gapura e a Coreia do Sul estão entre os primeiros dez do mundo no que respeita a confiança pública no governo. E só governos que contam com a con-fiança dos seus cidadãos podem de facto sustentar um confinamento oneroso.

Reciprocamente, no autoritário Irão e na democrática Itália, a fraca confiança das pessoas nas suas instituições tornou a implementação do distanciamento social mais problemática. A polari-zação política e a baixa confiança nas instituições, segundo Rachel Kleinfeld, também explicam,

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pelo menos parcialmente, as dificuldades que os Estados Unidos têm tido no confronto com a crise.

A capacidade de um governo — a sua aptidão para intervir com êxito em domínios que vão da comunicação e prestação de cuidados de saúde à manutenção da quarentena e ao fabrico de equi-pamentos — é o terceiro factor crítico que Rachel Kleinfeld julga ter vindo a determinar as melhores respostas à crise. Esta capacidade tem vaga relação com o PIB de um país ou com o carácter do seu regime político. É a qualidade da burocracia que é decisiva e não a grandeza do orçamento ou até o montante despendido com a saúde.

A investigação de Rachel Kleinfeld demons-tra que, embora a pandemia do coronavírus tenha intensificado a propaganda competitiva entre os sistemas democrático e autoritário, a resposta glo-bal ao coronavírus esbateu as fronteiras entre dife-rentes tipos de regimes. Os regimes democráticos mostraram-se tão propensos a violar a privacidade dos seus cidadãos como os autoritários. Ao mesmo tempo, ficou claro que os governantes autoritá-rios estavam tão interessados nas reacções do seu povo como os políticos democráticos que receiam as próximas eleições. Nas palavras do filósofo

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político britânico David Runciman, «num estado de confinamento, as democracias revelam o que têm em comum com outros regimes políticos: tam-bém aqui a política tem, em última análise, que ver com o poder e a ordem»11. Por outras palavras, a mudança que a COVID-19 traz não é uma nova versão — seja autoritária ou democrática — do «fim da História»; o que é mais provável que traga é um mundo menos ideológico, mas mais instável.

Ser realista: exigir o impossível

Há momentos em que as nossas certezas se esboroam e a nossa noção colectiva do possível se altera drasticamente. Começamos a ignorar o presente e a pensar antes no futuro, seja naquilo em que podemos ter esperança ou no que devemos recear.

Foi preciso um vírus para virar o mundo de per-nas para o ar: no momento em que escrevo, a União

11 David Runciman, «Coronavirus has not suspended politics — it has revealed the nature of power», Guardian, 27 de Março de 2020, dispo-nível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/27/coronavirus-politics-lockdown-hobbes