o debate agroecolÓgico no brasil: uma construÇÃo a

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO,

    AGRICULTURA E SOCIEDADE

    TESE DE DOUTORADO

    O DEBATE AGROECOLGICO NO BRASIL: UMA CONSTRUO A PARTIR DE DIFERENTES ATORES

    SOCIAIS

    NILSA LUZZI

    2007

  • ii

    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E

    SOCIEDADE

    O DEBATE AGROECOLGICO NO BRASIL: UMA CONSTRUO A PARTIR DE DIFERENTES ATORES SOCIAIS

    NILSA LUZZI

    Sob orientao do professor

    Nelson Giordano Delgado

    Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de Doutora em Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2007

  • iii

    631.58

    N695

    T

    Luzzi, Nilsa

    O debate agroecolgico no

    Brasil: uma construo a partir de

    diferentes atores sociais / Nilsa

    Luzzi 2007.

    182 f.

    Orientador: Nelson Giordano

    Delgado.

    Tese (doutorado) Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro,

    Instituto de Cincias Humanas e

    Sociais.

    Bibliografia: f.169- 179

    1. Agroecologia - Brasil -

    Teses. 2. Agricultura alternativa

    Brasil Teses. 4. Movimentos

    sociais Brasil Teses. 3. Rede

    PTA/FASE - Teses. I. Delgado,

    Nelson Giordano. II. Universidade

    Federal Rural do Rio de Janeiro.

    Instituto de Cincias Humanas e

    Sociais. III. Ttulo.

  • iv

    UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    CURSO DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E

    SOCIEDADE

    NILSA LUZZI

    Tese submetida como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Cincias, no curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. TESE APROVADA em 03 de dezembro de 2007 Membros da banca examinadora:

    Nelson Giordano Delgado, Dr., CPDA/UFRRJ (Orientador)

    Leonilde Servolo de Medeiros, Dra., CPDA/UFRRJ

    Jorge Osvaldo Romano, Dr., CPDA/UFRRJ

    Marcelo Mina Dias, Dr., UFV

    Manoel Baltasar Baptista da Costa, Dr., UFSCar/Araras

  • v

    Dedico:

    Aos meus pais Ivo e Terezinha Luzzi, agricultores

    familiares de Chapec, Santa Catarina, que encontraram

    na agroecologia um novo estmulo para enfrentar as

    dificuldades do meio rural e o merecido reconhecimento e

    valorizao de suas profisses.

  • vi

    AGRADECIMENTOS Felizmente foram muitas as pessoas que contriburam e me apoiaram para a realizao

    desta tese. Um caminho entrecortado por muitas e gratas interaes, contatos e encontros, os

    quais foram fundamentais na sustentao do caminhar e na superao dos obstculos.

    Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos s pessoas e instituies que

    foram, cada uma a sua maneira, muito importantes para a realizao deste trabalho, tornando,

    portanto, este percurso muito mais agradvel.

    Ao CPDA, professores e funcionrios, que me proporcionaram este rico processo de

    formao e aprimoramento intelectual e do qual me orgulho muito em fazer parte. Destaco a

    ateno e amizade de Leonilde Medeiros, Regina Bruno e Sergio Leite. Pessoas admirveis

    que tive a oportunidades de me aproximar e conviver mais intensivamente.

    Ao meu orientador Nelson Delgado que foi simplesmente brilhante e um amigo ao

    qual me orgulho. Mais que cumprir com seu papel devido, teve a sensibilidade de estimular

    minhas potencialidades, reconhecer minhas fraquezas e ajudar quando era imprescindvel.

    Aos meus entrevistados, pela ateno desprendida e pelos ricos momentos de dilogo

    e conhecimento que me proporcionaram:

    Aos pesquisadores da EPAGRI: Paulo Tagliari, Sergio Pinheiro, Eros Mussoi, Silmar

    Hemp, Marcio Melo, Leandro Wildner e Vilson Testa;

    Aos profissionais de ONGs: Afonso e Denlson (Chapec), Carlos Eduardo Arns, Charles

    Lamb, Denlson Debiasi, Hans Rinklin, Ivo Macagnan, Marcos (Caador), Natal Joo

    Magnanti, Sergio Sartori, Carlos Eduardo Souza Leite, Eugenio Ferrarti, Jean Marc von

    der Weid e Paulo Petersen;

    Aos membros da FETRAF: Volmir Santolin, Celso Ludwig, Dirceu Dresch e Gilmar

    Pastorio;

    Aos membros do MST: Dirceu e Valdomiro (Chapec), Ciro Correia e Denis Monteiro;

    Ao Wilson Schmidt, Ademir Cazzela, Carmem Munarim, Valrio Turnes, Claudia

    Schmitt, Evande Praxedes, Joo Carlos Costa Gomes, Maria Emlia Melo, Rosangela

    Cintro (Bibi).

    Aos meus entrevistados virtuais (Ciro Correa, Manoel Andrade, Manoel Baltasar

    Baptista da Costa), que ainda no tive a oportunidade de conhec-los pessoalmente, mas

    mesmo assim dividiram suas histrias e sua vivncia.

  • vii

    Aos amigos que nos do conforto, amparo, carinho e um merecido descanso: Marcia

    Pedreira, Camila Rodrigues, Sergio Orsi, Clair Coser, Solange Elias, Silvia Zimmermann,

    Fabio Ramos, Mnica Cox e Cludio Ubiratan.

    Ao Marcelo Min Dias que me apresentou ao CPDA e ao longo destes anos todos me

    proporcionou ricos momentos de bate papo, trocas intelectuais e amizade.

    Ao Paulo Roberto Alentejano, querido Paulinho Chinelo, que me recebeu nesta cidade

    maravilhosa, apresentou-me ao samba carioca e tem me ajudado em diversos momentos

    importantes.

    Ao Paulo Petersen pelas valiosas conversas e ricos momentos de aprendizado.

    Aos colegas de doutorado: Cleyton Gerard, Marcelo Leles de Oliveira e Rmulo

    Barbosa.

    Aos ntimos e, por isso mesmo, dividem no somente os momentos de felicidades, mas

    os dias difceis e estressantes, por isso merecem um agradecimento especial.

    Aos meus pais (Ivo e Terezinha), irmos (Neuza, Nilce, Olidemar e Adriano) que so a

    razo da minha existncia. Ao Juarez Rodrigues pela sua valiosa colaborao no meu

    deslocamento para a realizao das entrevistas.

    Maria Antonieta e Nelson Siffert pela pacincia, apoio e carinho.

    Aos meus cunhados pelo carinho e amizade: Vera, Jos Antnio, Nelson e Heloisa.

    Ao meu companheiro, Paulo de Abreu Siffert pelo estmulo, apoio nos momentos

    difceis e, sobretudo, pelo amor permanente em nosso convvio.

  • viii

    RESUMO

    Esta tese analisa a construo do debate agroecolgico no Brasil. O objetivo entender o surgimento e a evoluo da questo agroecolgica na agenda de diferentes atores sociais rurais e a importncia que o tema vai assumindo para cada um deles. Esta construo foi feita tendo por base: a experincia da Rede PTA/FASE; os movimentos sociais rurais, especialmente o movimento sindical rural e o MST; algumas instituies do Estado, principalmente a Poltica Nacional de ATER e o Marco Referencial da EMBRAPA. Para alm do tema em questo, procurou-se fazer um resgate histrico, para cada ator social considerado, de suas principais questes e bandeiras de luta, desde a dcada de 1980 at os dias atuais, perodo em que se concentra nossa anlise. A tese procura investigar tambm os fatores que colaboraram para o expressivo crescimento do tema agroecologia no pas e os principais entraves para que o mesmo seja efetivamente incorporado por estes atores sociais, constituindo-se em um elemento fundamental indispensvel para a formulao de uma proposta alternativa de desenvolvimento para a agricultura brasileira. A partir do material emprico coletado atravs de entrevistas com atores qualificados e da utilizao de trabalhos tcnico-cientficos, resolues de congressos e outros documentos existentes constatamos que o debate agroecolgico cresceu consideravelmente nas duas ltimas dcadas. Inicialmente restrito a um pequeno grupo de intelectuais e profissionais, especialmente das cincias agrrias, e centrado nas tecnologias alternativas, este debate foi sendo incorporado por diferentes atores sociais organizaes de base, movimentos sociais rurais, instituies de assessoria, instituies de ensino, pesquisa e extenso rural , tornando-se a preocupao com a agroecologia um elemento importante na formulao de polticas pblicas para a agricultura familiar. A incorporao dos referenciais da agroecologia e o uso de metodologias participativas alteraram significativamente as estratgias de interveno das ONGs. Ao invs de trabalhar com transferncia de tecnologias passaram a buscar uma interveno mais sistmica que leve em conta as racionalidades ecolgicas, econmicas e culturais dos agricultores. A rearticulao nacional da agroecologia, com a criao da ANA e da ABA-Agroecologia, fortaleceu o debate e aumentou a legitimidade poltica da agroecologia. A continuidade do dilogo e o estreitamento das relaes entre ambas constituem um importante desafio para o avano da agroecologia, tanto no campo poltico quanto tecnolgico. No entanto, esta temtica ainda est sendo incorporada e interpretada de forma bastante desigual entre as organizaes do campo agroecolgico. Nos movimentos sociais, assim como nas instituies de ensino, pesquisa e extenso rural, a incorporao crescente, porm as experincias e aes prticas ainda so pontuais e desenvolvidas por uma minoria. Transformar o agricultor em sujeito do processo produtivo, com o tcnico sendo um mediador entre o conhecimento popular e o cientfico, um processo bastante complexo. Exige que o tcnico reconsidere o poder que o saber cientfico, em princpio, lhe propicia e requer um repensar das formas e dos mtodos utilizados durante dcadas pelos profissionais de assistncia tcnica e extenso rural, inclusive das ONGs. Embora o debate agroecolgico tenha apresentado forte crescimento nos ltimos anos e o tema esteja ganhando cada vez mais legitimidade e reconhecimento, o principal desafio para a incorporao mais efetiva e a maior generalizao destas experincias de inovao agroecolgica poltico. A fora do agronegcio na poltica econmica e na agricultura brasileira constitui um grande entrave para o avano na formulao de um projeto democrtico e sustentvel de desenvolvimento rural para o pas, ancorado na agricultura familiar e na agroecologia. Palavras-chave: agroecologia, agricultura alternativa, Rede PTA/FASE, movimentos sociais, Estado.

  • ix

    ABSTRACT

    This research analyses the construction of the agroecologic debate in Brazil. The aim is comprehend the emerging and the evolution of agroecologic question in several social actors agenda and the importance the theme was assuming to each of them. That construction was made with the following basis: the experience of PTA/FASE net; the rural social movements, specially the rural syndical movement and the MST; some State institutions, principally the ATER National Policy and EMBRAPA referential marc. Beyond the theme in discussion, it was intended to have a historic recuperation for each of the actors considered, about their main questions and objects of fight, since the 1980s up to nowadays, the period our analysis is about. The research also intends to investigate the aspects which collaborated for the expressive growing of the agroecology discussion in the country and the main obstacles for its effective incorporation by those social actors, which constituted a fundamental element, essential for the formulation of an alternative proposition for the Brazilian agriculture development. Starting from the empiric material collected interviews with qualified actors and the using of technical-scientific works, congress resolutions and other existent documents we verified that the agroecologic debate has grown considerably in the last two decades. Initially restricted to a small group of intellectuals and professionals, specially from agrarian sciences, and centered in alternative technologies, the debate started being incorporated by different social actors basis organizations, rural social movements, assessors institutions, educational, rural researching and extending institutions , becoming the worry about agroecology an important element for the formulation of public policies for familiar agriculture. The incorporation of agroecology referential and the use of participative methodologies have modified significantly the intervention strategies from NGOs. Instead of working with technology transference they started searching for a more systemic intervention which consider the ecological, economic and cultural agriculturists rationalities. The agroecology national re-articulation, with the creation of ANA and ABA-Agroecologia, has become the debate stronger and has grown the agroecology political legitimacy. The continuous dialogue and the narrow of relations between them constitute an important challenge for the agroecology progress, even in political or in technological fields. However, this theme is still being incorporated and interpreted in very different ways among agroecological organizations. In social movements, as in educational, research and extending institutions, the incorporation is growing, but the experiences and the practical actions are still isolated and developed by a minor number of people. Make the agriculturist have an active role in productive process, as a technician mediating the popular and the scientific knowledge, is a very complex process. It requires that the technician reconsider the power that the scientific knowledge, first of all, can give him or her, and it requires a re-thinking about the ways and the methods used during decades by technical assistants and rural extending professionals, including the NGOs. Although the agroecologic debate has presented a strong growing in the last years and the theme has gained more and more legitimacy and recognition, the main challenge for a more effective incorporation and a more generalization of these agroecological innovation experiences is a political challenge. The agrobusiness power in Brazilian economical policy and in agriculture constitutes a large obstacle for a progress in the formulation of a democratic and sustainable project of rural development for the country, based in familiar agriculture and in agroecology. Key words: agroecology, alternative agriculture, PTA/FASE net, social movements, State.

  • x

    GLOSSRIO DE SIGLAS AA Agricultura Alternativa ABA Associao Brasileira de Agroecologia AMA Articulao Mineira de Agroecologia ANA Articulao Nacional de Agroecologia ANDEF Associao Nacional dos Defensivos Agrcolas ASA Articulao do Semi-rido ASBRAER Associao Brasileira das Entidades Estaduais de Assistncia Tcnica e Extenso Rural. AS-PTA Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa. ASSESOAR Associao de Estudos, Orientao e Assistncia Rural. ATER Assistncia Tcnica e Extenso Rural CAPA Centro de Aconselhamento do Pequeno Agricultor CAPOIB Conselho de Articulao dos Povos Indgenas do Brasil CBA Congresso Brasileiro de Agroecologia CEB Comunidade Eclesial de Base CEPAGRI Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores Rurais CEPAGRO Centro de Estudos e Promoo de Agricultura em Grupo CLADES Consrcio Latino-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentvel CNS Conselho Nacional dos Seringueiros CONCUT Congresso Nacional da Central nica dos Trabalhadores CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT Comisso Pastoral da Terra CTA Centro de Tecnologias Alternativas CUT Central nica dos Trabalhadores DATER Departamento de Assistncia Tcnica e Extenso Rural DESER Departamento de Estudos Scio-Econmicos Rurais DETR Departamento Estadual de Trabalhadores Rurais DNTR Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais EBAA Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa EMATER Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EMBRATER Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural ENA Encontro Nacional de Agroecologia EPAGRI Empresa de Pesquisa Agropecuria e Extenso Rural de Santa Catarina S.A. ERAA Encontro Regional de Agricultura Alternativa ESALQ Escola Superior de Agronomia Luiz de Queirs. ESPLAR Centro de Pesquisa e Assessoria FAEAB Federao das Associaes de Engenheiros Agrnomos do Brasil FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimentao FASE Federao de rgos para a Assistncia Social e Educacional FEAB Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil FETAESC Federao dos Trabalhadores na Agricultura de Santa Catarina FETRAFESC Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Santa Catarina FETRAF-SUL Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da Regio Sul GNTA Grupo de Trabalho Agroecolgico na Amaznia IFOAM - Federao Internacional de Movimentos em Agricultura Orgnica MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MOC Movimento de Organizao Comunitria

  • xi

    MONAPE Movimento Nacional dos Pescadores Artesanais MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MSTR Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais MSTTR Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais ONG Organizao No Governamental PATAC Programa de Aplicao de Tecnologias Adaptadas PESAGRO Empresa de Pesquisa Agropecuria do Estado do Rio de Janeiro PNATER Poltica Nacional de Assistncia Tcnica e Extenso Rural PNRA Plano Nacional de Reforma Agrria. PNUD Programa das Aes Unidas para o Desenvolvimento. PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PTA Projeto Tecnologias Alternativas PT Partido dos Trabalhadores STR Sindicato de Trabalhadores Rurais SASOP Servio de Assessoria a Organizaes Populares Rurais TA Tecnologia Alternativa

  • xii

    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................................

    01

    CAPTULO 1 TRANSFORMAES DA AGRICULTURA BRASILEIRA E

    ORIGENS DO DEBATE AGROECOLGICO.............................................................

    07

    1.1. A Modernizao Conservadora da Agricultura Brasileira............................................. 07

    1.2. O Debate da Dcada de 80: os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa........

    14

    CAPTULO 2 A EXPERINCIA DO PTA/FASE E SEUS DESDOBRAMENTOS 37

    2.1. Origem da Proposta de Interveno do PTA/FASE...................................................... 37

    2.2. A Evoluo para Redes de Intercmbio......................................................................... 42

    2.3. Os Centros de Tecnologias Alternativas........................................................................ 46

    2.4. A Reestruturao do PTA/FASE e a Criao da AS-PTA............................................ 51

    2.5. Transformaes da Dcada de 90: Agroecologia, Desenvolvimento Local e

    Metodologias Participativas.................................................................................................

    62

    2.6. O Avano do Debate e a Articulao Nacional da Agroecologia................................. 72

    CAPTULO 3 O DEBATE AGROECOLGICO NOS MOVIMENTOS

    SOCIAIS RURAIS.............................................................................................................

    79

    3.1. O Movimento Sindical Rural......................................................................................... 79

    3.1.1. Origens e transformaes do sindicalismo rural brasileiro.................................. 79

    3.1.2. Rumo ao projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentvel.................... 91

    3.2. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra..................................................... 103

    3.2.1. Origem e processo de formao do MST............................................................ 103

    3.2.2. A cooperao agrcola nos assentamentos........................................................... 110

    3.2.3. A incorporao do debate agroecolgico............................................................

    118

    CAPTULO 4 AS INSTITUIES DE PESQUISA E EXTENSO RURAL.......... 133

    4.1. Trajetria Histrica da Extenso Rural no Brasil.......................................................... 133

    4.2. A Nova Poltica Nacional de ATER.............................................................................. 144

    4.3. O debate agroecolgico na EMBRAPA........................................................................

    149

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................................. 155

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................. 169

    ANEXO 1............................................................................................................................. 181

  • 1

    INTRODUO

    A temtica agroecolgica tem merecido nos ltimos anos cada vez mais legitimidade e

    reconhecimento. Inicialmente centrado nas tecnologias alternativas, o debate agroecolgico vem evoluindo e incorporando outras questes e problemticas sociais e conquistando cada vez mais adeptos e defensores. Atualmente existe uma grande diversidade de organizaes de trabalhadores, movimentos sociais rurais, instituies de ensino, pesquisa e extenso rural trabalhando na promoo da agroecologia. Embora no hegemnico, o enfoque agroecolgico vem ganhando destaque nos debates em torno do rural, principalmente entre as organizaes de agricultores familiares, tornando-se cada vez mais complexo. Alm das questes tecnolgicas, ganharam importncia os aspectos sociais, polticos e culturais do sistema produtivo.

    Meu interesse pelo tema vem desde a graduao em agronomia, realizada em Santa Maria, Rio Grande do Sul, entre 1994 e 1998. Embora tenha recebido uma formao profissional convencional voltada difuso de tecnologias, sempre busquei por via extracurricular conhecer experincias alternativas (a exemplo do Centro Ecolgico Ip, RS) e participar dos encontros regionais existentes na rea. Minha dissertao, concluda em 2001, analisou a experincia da Associao dos Agricultores Ecologistas das Encostas da Serra Geral (AGRECO), em Santa Rosa de Lima, Santa Catarina. No doutorado me propus, inicialmente, compreender a mudana de estratgia da Empresa de Pesquisa Agropecuria e Extenso Rural de Santa Catarina com a incorporao do enfoque agroecolgico. O ttulo do projeto era A agroecologia como estratgia de desenvolvimento rural em uma instituio estadual de pesquisa: a experincia da EPAGRI. Ao longo do processo de doutoramento meu interesse foi se ampliando vindo a abranger outros atores sociais do estado que trabalhavam com a temtica agroecolgica.

    O exame de qualificao refletia esta mudana A construo da proposta agroecolgica em Santa Catarina. At ento, o objetivo primordial era analisar como foi sendo construdo o debate e a proposta agroecolgica naquele estado, procurando entender as razes pelas quais os diferentes atores que trabalham com a agricultura familiar (ONGs de desenvolvimento, EPAGRI e movimentos sociais MST e FETRAF-Sul) passam a incorporar esta proposta, ampliando seu conceito e trazendo novas dimenses ao debate.

    A agroecologia, inicialmente restrita a um nmero reduzido de ONGs e grupos de agricultores de Santa Catarina, foi se ampliando continuamente e no final da dcada de 90 j existiam cerca de cinqenta grupos de agricultores trabalhando com o enfoque agroecolgico, assessorados por diversas ONGs, pela EPAGRI e pela FETRAF-Sul. Alm disso, foi criada em 1998 a Rede Ecovida de Agroecologia, uma rede que conseguiu agregar diferentes atores que trabalhavam com a produo, processamento e comercializao de produtos ecolgicos no estado e, rapidamente, passa a envolver toda a regio Sul do pas. O que influenciou esta rpida expanso da agroecologia? Por que diversos atores passam a incorporar esta proposta? Estas eram algumas questes que me acompanhavam e que me propunha a investigar.

    Desde o primeiro ano que entrei no doutorado, aproveitando o fato de meus pais morarem em Chapec, fiz entrevistas exploratrias buscando mapear os principais atores que faziam parte do debate agroecolgico em Santa Catarina. Em 2003 e 2004 fiz oito entrevistas exploratrias (cinco em Chapec e trs em Florianpolis) com membros de ONGs, FEFRAF-Sul e EPAGRI1. A pesquisa de campo foi realizada efetivamente em 2005, depois da qualificao, e constou de dezessete entrevistas, realizadas em vrias cidades do estado. Foram entrevistados membros das principais ONGs, da EPAGRI, da FETRAF-Sul, do MST e

    1 O nome das pessoas entrevistadas para a tese e suas respectivas instituies constam em anexo.

  • 2

    do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Procurou-se entrevistar, sempre que possvel, os pioneiros e as pessoas que estavam trabalhando efetivamente com a temtica agroecolgica no estado.

    Em 2006, instigada pelo resultado das entrevistas, fui em busca das origens do debate agroecolgico no Brasil, que se encontravam nos Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa e no Projeto Tecnologias Alternativas/FASE. A idia era buscar a evoluo do debate nacional e entender a influncia que o mesmo teve em Santa Catarina. Os EBAAs foram muito citados nas entrevistas, mas existiam poucas referncias sobre os mesmos, alm dos anais dos encontros, fato que me instigou a buscar mais informaes sobre os mesmos.

    Depois de um grande investimento no debate nacional me deparei com um dilema: como retornar ao debate de Santa Catarina? Percebi a incompatibilidade em entender a evoluo da agroecologia nos diferentes atores sociais, com o estudo que tinha me proposto para Santa Catarina, que era apenas um local onde a agroecologia se expressava. Em maro de 2007, quando na verdade deveria estar defendendo a tese, decidi junto com meu orientador ampliar o objeto de estudo para o pas. Esta opo suscitou, em conseqncia, a necessidade de realizao de novos investimentos em pesquisa (bibliogrfica e entrevistas) e impossibilitou que vrias entrevistas realizadas em Santa Catarina fossem utilizadas para a tese.

    Um agravante deste processo foi a inexistncia de estudos e a escassez de bibliografia e documentos que tratassem da temtica agroecolgica nos movimentos sociais rurais (movimento sindical e MST) e nas instituies de pesquisa e extenso rural. Na tentativa de suprir esta lacuna comecei a fazer um levantamento do material bibliogrfico existente e de algumas pessoas chaves para entrevistar. Diante da impossibilidade, tanto de tempo como de recursos financeiros, de viajar para diversos lugares do pas haja visto que teria mais seis meses para terminar a tese concentrei as entrevistas no Rio de Janeiro. Foram realizadas, ento, mais quatorze entrevista.

    O acaso me foi favorvel, pois neste perodo aconteceu no Rio de Janeiro uma reunio da Coordenao Nacional da Articulao Nacional de Agroecologia (ANA) na qual estiveram presentes diversas lideranas nacionais de ONGs e movimentos sociais que trabalhavam com a temtica agroecolgica. Ocasio que consegui realizar algumas entrevistas importantes. Outra particularidade foi a realizao de entrevistas via Skype: com dois pioneiros do movimento agroecolgico, que participaram tambm da organizao dos EBAAs (So Paulo e Portugal), e com um membro do MST, que fazia mestrado na Espanha, cuja temtica de estudo era o resgate do debate agroecolgico no MST. Esta experincia foi bastante positiva e mesmo sem conhecer pessoalmente meus entrevistados tive excelente receptividade.

    A tese tem por objetivo analisar a construo do debate agroecolgico no Brasil. O que pretendo entender o surgimento e a evoluo do debate agroecolgico em diferentes atores sociais rurais e a importncia que a agroecologia vai assumindo em cada um deles. Este resgate ser realizado no PTA/FASE, nos movimentos sociais rurais (CUT, CONTAG e MST) e nas instituies de pesquisa e extenso rural, atravs principalmente da Poltica Nacional de ATER e do Marco Referencial da EMBRAPA.

    Quais os fatores que colaboraram para este grande crescimento da agroecologia no pas? Por que a agroecologia se tornou uma questo importante para as organizaes representativas da agricultura familiar? Quais os principais entraves para que a agroecologia seja efetivamente incorporada por estes agentes sociais e se constitua num elemento fundamental na formulao de uma proposta alternativa de desenvolvimento para a agricultura brasileira? Estas so questes que pretendo aprofundar na construo desta tese.

    Certamente poderia ter feito a tese resgatando o debate agroecolgico apenas nas ONGs do campo agroecolgico, ator prioritrio e com influncia indiscutvel desde o princpio. Contudo, em razo mesmo desta importncia, a grande maioria dos trabalhos que

  • 3

    trata da temtica agroecolgica se concentra nas ONGs e nas experincias desenvolvidas ou apoiadas pelas mesmas. Praticamente inexistem estudos que discutem como os movimentos sociais e as instituies do Estado comeam a participar deste debate e as caractersticas que o mesmo vai assumindo para estes atores.

    Alm das entrevistas, fiz um levantamento dos trabalhos e documentos existentes que envolviam a temtica agroecolgica, buscando resgatar as principais questes e bandeiras de luta de cada ator social trabalhado na tese, desde a dcada de 80 at os dias atuais, perodo em que se concentra nossa anlise da tese. O objetivo entender como cada ator social comea a incorporar o debate agroecolgico e como este vai avanando at os dias atuais. As principais fontes bibliogrficas para este resgate foram as resolues de encontros e congressos, cadernos de formao e planos de trabalho, alm de livros, teses, dissertaes e artigos existentes sobre o tema2.

    Devido grande diversidade de atores sociais que exercem influncia no debate agroecolgico e da impossibilidade de incorpor-los na anlise, optamos por selecionar os que consideramos mais relevantes e que so atores prioritrios tambm do debate no campo da agricultura familiar. Dentre os diversos movimentos que fazem parte deste debate destacamos: mulheres camponesas, que possui uma campanha nacional pela produo de alimentos saudveis Produzir alimentos saudveis, cuidar da vida e da natureza, atingidos por barragens, pequenos agricultores, seringueiros, quebradeiras de coco babau, indgenas, agroextrativistas, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores urbanos, dentre outros. So movimentos com identidades scio-culturais especficas, mas que possuem bastante proximidade com a temtica agroecolgica e vm progressivamente se inserindo no debate.

    O debate agroecolgico inicialmente se restringiu a um pequeno grupo de profissionais, principalmente das cincias agrrias, e se concentrou nas crticas ao padro tecnolgico moderno e na busca de tecnologias alternativas. O tema agroecologia foi evoluindo de um conjunto isolado, para um conjunto articulado de experincias produtivas (Rede PTA) na dcada de 90 e passa a ser incorporado progressivamente por organizaes de trabalhadores, movimentos sociais rurais e instituies estatais. Mais recentemente vem se configurando como um projeto em construo, ainda bastante incipiente, de modelo alternativo de desenvolvimento rural em que articula diversos agentes sociais do campo da agricultura familiar.

    Nos ltimos anos vem ganhando fora, tambm, a defesa da agroecologia enquanto movimento social. PETERSEN & ALMEIDA (2004) defendem que apesar da diversidade dos atores sociais envolvidos e dos contextos ambientais nos quais estas experincias vm sendo gestadas, elas apresentam entre si identidades no plano nacional, o que poderia configurar a existncia de um movimento agroecolgico brasileiro. Contudo, (...) no se trata de um movimento institucionalizado, pois no se organiza em torno a estruturas formais, sendo a autonomia dos grupos de base uma condio inarredvel para a continuidade de sua existncia e de sua vitalidade (p.6).

    Para PETERSEN & ALMEIDA (2004), a agroecologia um movimento que possui expresso nacional e que articula em redes os processos sociais locais e regionais autnomos voltados para a inovao agroecolgica. Estas redes so formadas por diferentes movimentos sociais, organizaes de base, instituies de assessoria e organizao da agricultura familiar, em suas mltiplas formas de expresso, e tambm por profissionais de instituies de ensino, pesquisa e extenso rural que atuam na rea do desenvolvimento rural.

    2 Foram utilizadas as resolues dos EBAAs, dos encontros do PTA/FASE, dos congressos da CONTAG, CUT, DNTR e MST, os Cadernos de Formao do MST, os planos de trabalho da AS-PTA (planos trienais), diversos documentos primrios do PTA/FASE (atas de reunies, relatrios de naturezas diversas, textos de circulao interna), bem como revistas e textos para discusso do PTA/FASE.

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    Alm de assegurar a autonomia e as identidades de cada organizao, a articulao em redes vem favorecendo a interao horizontal entre as diferentes dinmicas sociais locais envolvidas com a promoo da agroecologia, promovendo efeitos sinrgicos no que se refere construo tcnica, metodolgica, conceitual e poltica do movimento agroecolgico (PETERSEN & ALMEIDA, 2004: 06).

    Contudo, existem divergncias em relao ao uso da terminologia movimento social

    para tratar do tema agroecologia. ALMEIDA (2002) argumenta que, sobretudo, pela heterogeneidade que a caracteriza, a agroecologia no constitui ainda um movimento social stricto sensu, ou seja, uma ao social organizada contra o poder de adversrios que tm as rdeas do modo de desenvolvimento agrcola. A agroecologia a expresso de iniciativas de grupos ou agentes sociais mais ou menos isolados, ainda pouco orgnicos, com resultados tcnicos e sociais em diferentes amplitudes, agentes estes que podero vir a integrar um movimento social, mas que, atualmente, no constituem e no representam um movimento social (p.15).

    Porm, apesar destas divergncias, acreditamos que este avano e legitimao do tema agroecologia, por diferentes agentes sociais, nos permitem olhar estas iniciativas pelas lentes dos movimentos sociais. O uso da expresso movimento poderia ser uma forma til para pensar a questo da agroecologia, pois contribui para uma maior compreenso dos processos de mudana social que a agroecologia vem promovendo. Contudo, movimento social entendido no como categoria emprica, mas segundo a perspectiva de MELUCCI (1994) em que os movimentos sociais (...) no constituem um simples objeto social e sim uma lente atravs da qual problemas mais gerais podem ser abordados (p.155).

    Nos ltimos tempos, o debate agroecolgico ultrapassou seu foco na questo estritamente tecnolgica e passou a incorporar outros temas e problemticas sociais num arranjo prximo ao de um movimento social. O tema agroecologia, que inicialmente defendia a diversificao de culturas, o uso racional dos recursos naturais, a otimizao dos recursos locais, uma produo mais saudvel e respeitosa do meio ambiente, foi incorporando outras questes importantes que tambm fazem parte da agenda de outros movimentos e organizaes sociais. Como exemplos tm-se: valorizao do conhecimento popular; rural como modo de vida; preservao da cultura e da biodiversidade; questo de gnero e gerao; educao rural; construo de novas relaes com o mercado com bases ticas e solidrias e a segurana e soberania alimentar (resgate de sementes crioulas, contra os transgnicos, democratizao do acesso aos recursos naturais, valorizao da qualidade do alimento e da produo para o auto-consumo).

    Vrias pessoas e grupos sociais passam a identificar na agroecologia um caminho para fortalecer suas reivindicaes e alcanar seus prprios objetivos. Trata-se, ao mesmo tempo, de um projeto concreto e tambm de uma proposta de transformao simblica e cultural (MAFRA, 2004: 8). A agroecologia, da forma como se desenvolve no pas, prope-se no apenas identificar e difundir tcnicas agrcolas chamadas de alternativas, mas tambm a promover uma discusso sobre as condies de sustentabilidade da agricultura e do meio rural e suas implicaes para a sociedade. Para a agroecologia no interessa apenas mudar a forma de alguns grupos fazerem agricultura (inovando as tcnicas e processos), mas, principalmente, a forma de se pensar o prprio papel da agricultura familiar, as relaes dos agricultores e suas famlias com a natureza e com o restante da sociedade (p.8).

    Para SILVA (1997), a principal contribuio da agroecologia no est na criao de novas tecnologias ditas alternativas ou sustentveis, (...) mas na criao de uma nova conscincia social a respeito da relao homem-natureza; na produo de novos valores

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    filosficos, morais e at mesmos religiosos; e na gesto de novos conceitos jurdicos, enfim na produo de novas formas polticas e ideolgicas (p.106).

    O tema agroecologia, ao ser incorporado e interpretado pelas organizaes e movimentos sociais, promove ao mesmo tempo uma mudana profunda nas formas de produo, comparativamente ao modelo hegemnico de desenvolvimento, e prope-se a mudanas mais substanciais nas relaes sociais, econmicas, polticas e culturais da produo. A agroecologia, mais que uma transformao tcnica se constitui numa proposta de transformao poltica. Contudo, estas duas dimenses esto intrinsecamente interligadas, pois exatamente a partir destes processos locais de inovao agroecolgica que se vem construindo novos referenciais tcnicos, metodolgicos e conceituais que, pouco a pouco, vm sendo traduzidos em proposies de polticas pblicas e em fora social transformadora.

    Um nmero cada vez mais significativo de trabalhadores e trabalhadoras e suas organizaes em todo o pas tem compreendido que a agroecologia s ter capacidade poltica de transformao se for efetivamente desenvolvida atravs de prticas concretas que garantam o atendimento de suas necessidades e do conjunto da sociedade. Ao mesmo tempo em que so experimentadas e disseminadas localmente, as prticas inovadoras do campo agroecolgico constituem j embries do novo modelo que est em construo e que j inspira a formulao de um projeto coletivo de mbito nacional (Carta Poltica do II ENA, 2006).

    No entendimento de MELUCCI (1994), os movimentos sociais so movidos por paixes. Eles constituem formas quentes de ao e voc no pode explic-los simplesmente reduzindo-os ao social ou marginalizando o resto como irracional. Eles no so irracionais mas so uma forma apaixonada de ao que bastante significativa para a mudana social. Afinal se no houvesse paixo, por que algum se importaria em transformar? (p.160).

    Para ALEXANDER (1998), embora os movimentos sociais constituam apenas grupos especficos, alegam representar os interesses da sociedade como um todo (defesa do meio ambiente ou da cidadania) ou falar sociedade em nome de um interesse particular (defesa das mulheres ou dos agricultores familiares). Contudo, os movimentos sociais no podem ser considerados como simples respostas aos problemas existentes. Ao contrrio, devem ser entendidos como respostas possibilidade de construir problemas convincentes e transmitir essa realidade ao conjunto da sociedade. Antes de formar-se um movimento social (...) poucos atores reconhecem a existncia do problema que colocado pelo movimento, muito menos que haja uma soluo para ele (p.25). A agroecologia surgiu e vem avanando ao longo do tempo na contracorrente do prprio modelo hegemnico de desenvolvimento que vem se reproduzindo continuamente com o apoio decisivo do Estado. Polticas pblicas foram e continuam sendo implementadas em defesa da reiterao deste padro tecnolgico de desenvolvimento. Contudo, apesar disso, o enfoque agroecolgico se ampliou e est sendo incorporado por vrias instncias do Estado e se tornando um elemento importante na formulao de polticas pblicas para a agricultura familiar.

    O enfoque agroecolgico figura como eixo orientador da nova poltica de ATER, se tornou uma linha de pesquisa oficial dentro da EMBRAPA, est sendo incorporado em alguns programas de crdito rural, de capacitao, de comercializao e de educao rural voltados para a agricultura familiar. O debate agroecolgico evoluiu de um conjunto isolado de experincias e vem sendo incorporado por um conjunto de organizaes e movimentos, em

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    suas mltiplas formas de expresso, que se organizam em redes e lutam para a construo de um novo modelo de desenvolvimento rural.

    A tese est estruturada em quatro captulos, alm das consideraes finais. O Captulo 1 composto de duas partes principais. A primeira faz uma breve caracterizao do processo de modernizao da agricultura brasileira, destacando as principais transformaes e conseqncias advindas deste modelo. A segunda parte destaca a origem do movimento de agricultura alternativa e analisa os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa, destacando os principais atores e as principais questes que faziam parte do debate.

    O Capitulo 2 faz um resgate da experincia do PTA/FASE destacando as principais transformaes no debates, desde o surgimento do Projeto at os dias atuais. A anlise parte dos primeiros passos da experincia onde seus pioneiros procuraram identificar e resgatar as principais tecnologias alternativas existentes no pas e vai incorporando sua evoluo para a formao de redes de intercmbio e centros de tecnologias alternativas. No final da dcada de 80, com a reestruturao do PTA/FASE, as ONGs membros se tornam autnomas e se voltam para o desenvolvimento de programas locais de desenvolvimento. Paralelamente, a incorporao dos referencias da agroecologia e o uso de metodologias participativas trazem um grande avano ao trabalho que vinha sendo desenvolvido pelas ONGs. Mais recentemente, procura-se apreender as transformaes que vm ocorrendo com a criao de redes e articulaes (estaduais e nacional) de promoo da agroecologia, que incorporam uma diversidade grande de agentes sociais e vem promovendo mudanas de diversas ordens e dimenses.

    O terceiro captulo aborda a construo do debate agroecolgico nos movimentos sociais rurais. A primeira parte faz um resgate das transformaes ocorridas no movimento sindical rural, principalmente em termos de mudanas na organizao sindical e nas questes de poltica agrcola. Este resgate foi construdo tendo por base, principalmente, as informaes contidas nas resolues dos congressos nacionais promovidos por estas entidades. O que pretendo entender quando o movimento sindical comea a perceber o esgotamento do modelo de desenvolvimento e como este vai alterando suas estratgias em direo discusso de um modelo alternativo de desenvolvimento com base na agricultura familiar. Qual a importncia que a agroecologia assume neste novo modelo? Podemos dizer que o movimento sindical incorporou realmente o tema agroecologia? A segunda parte do captulo faz um resgate do debate agroecolgico no MST. A anlise parte das diferentes fases do Movimento buscando apontar as principais questes e bandeiras de luta de cada fase para, a partir de ento, procurar entender quando o MST deixa de lutar pela democratizao do modelo dominante como uma possibilidade para a viabilizao econmica e social dos assentamentos rurais. Num segundo momento procuramos entender a implantao do sistema cooperativo dos assentamentos, a percepo de seu esgotamento enquanto proposta de viabilizao econmica dos assentados e como a questo agroecolgica vai sendo incorporada como uma possibilidade de mudana de modelo de desenvolvimento rural.

    No Captulo 4 tratamos da evoluo do debate agroecolgico dentro das instituies de pesquisa e extenso rural. A primeira parte faz um resgate histrico da trajetria da extenso rural, buscando destacar as mudanas que ocorreram em cada fase. A anlise parte do comprometimento das instituies do Estado com o modelo hegemnico de desenvolvimento e procura destacar as principais propostas alternativas que foram sendo desenvolvidas desde a dcada de 80 na extenso rural e incorpora as mudanas advindas da construo da nova Poltica Nacional de ATER, na qual o enfoque agroecolgico figura como eixo orientador da nova poltica. A segunda parte do captulo destaca a incorporao da agroecologia pelas instituies de pesquisa, mais especificamente na EMBRAPA. Inicialmente restrito a um grupo pequeno de pesquisadores, com proposta inclusive de mudana de orientao da pesquisa dentro da empresa, o tema agroecologia foi ganhando destaque e se constituiu numa linha especfica de pesquisa dentro da EMBRAPA, orientada pelo Marco Referencial de Agroecologia.

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    CAPTULO 1

    TRANSFORMAES DA AGRICULTURA BRASILEIRA E ORIGENS DO DEBATE AGROECOLGICO

    Este captulo composto de duas partes principais. A primeira tem por objetivo

    abordar, em linhas gerais, o processo de modernizao da agricultura brasileira, destacando as principais transformaes ocorridas na agricultura e as conseqncias sociais e ambientais advindas deste modelo. A segunda parte destaca o surgimento do movimento de agricultura alternativa e analisa os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa, principal frum de discusso da agricultura alternativa na dcada de 80, ressaltando as principais questes e os principais atores que faziam parte deste debate. 1.1. A Modernizao Conservadora da Agricultura Brasileira

    A agricultura brasileira passou por transformaes profundas no padro tecnolgico e nas relaes sociais a partir da dcada de 60. Estas transformaes, conduzidas e patrocinadas pelo Estado, tiveram por objetivo modernizar o setor agrcola de forma a aumentar a oferta de alimentos e de produtos exportveis, liberar recursos humanos e fornecer capital para o setor urbano-industrial. Este processo, que se convencionou chamar de modernizao conservadora (GRAZIANO NETO, 1982) ou modernizao dolorosa (GRAZIANO DA SILVA, 1982), alterou a base tecnolgica produtiva sem, contudo, mudar a estrutura agrria vigente, conservando e agravando o padro injusto de distribuio da posse da terra. Por isso foi chamado apropriadamente de modernizao conservadora.

    Este novo modelo de agricultura, gerado e difundido nos pases centrais ainda nas dcadas de 20 e 30 do sculo XX, teve sua ampliao em escala global, incluindo o Brasil, a partir dos anos 60 deste mesmo sculo. Estas transformaes tecnolgicas nasceram como uma verdadeira panacia que solucionaria o problema da fome baseada nas previses malthusianas de escassez de alimentos frente ao crescimento acelerado das populaes mundiais e do subdesenvolvimento do mundo. Para a grande maioria dos pases perifricos a adoo deste padro tecnolgico moderno representava mais do que a sua auto-suficincia alimentar, mas tambm a oportunidade de sanar a lacuna tecnolgica que os separava dos pases centrais, auxiliando-os no processo de superao do seu atraso e direcionando-os para o crescimento econmico. No caso brasileiro, em que a estrutura agrria era considerada arcaica e ineficiente, o objetivo era tornar a agricultura forte e competitiva transformando o pas num grande celeiro, obtendo a auto-suficincia alimentar e consolidando o pas como grande exportador de matrias-primas agrcolas.

    O processo de modernizao da agricultura brasileira teve incio num momento de intensa mobilizao poltica e de disputa de interesses entre as classes trabalhadoras e as foras dominantes, que inclusive ameaavam os interesses da oligarquia rural. Este perodo que antecedeu ao Golpe Militar de 1964 foi de efervescncia das lutas no campo, de grandes mobilizaes pela reforma agrria e de intensificao da disputa pelo direito de falar pelos trabalhadores3. Tanto os movimentos das massas urbanas (operrios e estudantes) como rurais

    3 Na realidade, no era um s o movimento campons no Brasil, mas sim vrios, que se diferenciavam em termos da origem scio-econmica de seus membros rurais e pelos lideres que deram voz s suas reivindicaes. A Confederao Nacional dos Trabalhadores Rurais era composta pelos mais variados grupos, tais como sindicatos rurais apoiados pela Igreja, ligas camponesas, a radical frente agrria catlica do Paran e Rio Grande do Sul, pelo Sindicato dos Agricultores e dos Trabalhadores Rurais de So Paulo e pela federao dos associados dos agricultores e dos trabalhadores rurais do Estado do Cear. Alm disso, de 1960 a 1963, as associaes

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    (camponeses e pequenos proprietrios) se manifestaram contra os rumos tomados pelo processo econmico, reivindicando medidas que atendessem aos seus interesses imediatos, tais como: a reforma agrria, melhores salrios, melhores condies de trabalho, pelos sindicatos livres (FONSECA, 1985).

    Segundo MEDEIROS (2005), o debate sobre o tema desenvolvimento ocorrido neste perodo havia gerado um consenso social sobre a necessidade de combater o atraso no campo, identificado com a permanncia do latifndio. Contudo, existiam divergncias entre as foras em disputa sobre o que poderia ser considerado latifndio e as formas de super-lo. O crescimento da agricultura e os baixos ndices de produtividade registrados pelo setor se constituram em alvo de opinies controvertidas, dando origem a diversas correntes que buscavam uma explicao e solues para os problemas de atraso existente na agricultura. Neste contexto, predominou a disputa entre duas propostas: uma defendia a alterao da estrutura fundiria, exigindo a realizao de um amplo programa de reforma agrria, representada pelos trabalhadores rurais; a outra representada pelo Governo e elites agrrias priorizava a modernizao do setor atravs da introduo de novos mtodos e tcnicas produtivas.

    A proposta defendida pelos trabalhadores foi derrotada e a ruptura institucional que se seguiu com o Golpe Militar abafou as demandas emergentes, tanto dos trabalhadores do campo como da cidade, e seguiu-se pelo caminho da modernizao conservadora, mantendo inalterada a estrutura fundiria e as relaes polticas de dominao. As foras opositoras foram duramente reprimidas e seus lderes perseguidos, muitos deles foram presos ou mortos. O governo federal visando administrar os conflitos existentes no campo aprovou, ainda em 1964, o Estatuto da Terra trazendo para o controle do Estado a problemtica fundiria e a bandeira da reforma agrria.

    Contudo, o Estatuto da Terra, uma lei que regulamentava a estrutura fundiria, tinha um texto ambguo: ao mesmo tempo que fixava normas para a desapropriao de latifndios e regulamentava contratos de trabalho (parceria e arrendamento), reivindicaes antigas dos trabalhadores, criava uma poltica de modernizao agrcola baseada em grandes e mdias propriedades. Esta proposta de modernizao prevaleceu como poltica de desenvolvimento rural nos governos militares e a proposta de reforma agrria foi deixada de lado pelo governo.

    Aliado alterao da base tcnica da agricultura brasileira, o final dos anos 60 considerado, tambm, um marco da constituio do chamado complexo agroindustrial (SORJ, 1980; DELGADO, 1985) ou da industrializao da agricultura (GRAZIANO da SILVA, 1987; MULLER, 1989). Esse processo caracteriza-se pela implantao de um setor industrial produtor de bens de produo para a agricultura. Este perodo representou um grande crescimento da produo de bens de consumo durveis, com a abertura de um extenso mercado de mquinas, implementos, sementes e insumos agroqumicos4.

    Para MULLER (1989), a industrializao do campo foi parcial segundo produtos, regies e extratos de produtores, beneficiando apenas uma parcela dos agricultores, contudo seus impactos foram sentidos em todas as organizaes de produo e no apenas naquelas que se modernizaram5. Alm disso, o autor destaca que a industrializao do campo tambm

    camponesas se multiplicaram nos Estados de Gois, Bahia, Santa Catarina e Minas Gerais (Formam, Shepard apud FONSECA, 1985: 164). 4 Para aprofundamento ver MARTINE & BESKOW (1987). 5 A racionalizao das produes de caf no s demandaram volumes crescentes de insumos industriais como expulsaram milhares de famlias moradoras das fazendas que tinham na produo de alimentos parcela pondervel de seu abastecimento. O avano ciclpico da soja no s produziu ondas de xodo rural como substituiu a produo de alimentos. A cana-de-acar no Sul-Sudeste e no Nordeste produziu efeitos idnticos. Dos pequenos produtores destas regies, com solos exaustos em sua fertilidade natural, no dispondo de crdito,

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    no atingiu todas as fases do ciclo produtivo das atividades agrcolas, gerando a sazonalidade no emprego da mo-de-obra e a precarizao das relaes de trabalho, com destaque para a colheita da cana-de-acar e do feijo.

    DELGADO (1985) destaca que, do ponto de vista econmico, o perodo de maior dinamismo da modernizao da agricultura que se inicia em meados da dcada de 60 e atinge seu auge no final na dcada de 70 coincidiu com a combinao de um conjunto de circunstncias favorveis: boom de produtos agrcolas, capacidade ociosa na indstria, expectativas positivas para os investimentos internos e externos e, ainda, uma poltica do Estado ostensivamente desenvolvimentista a partir de 1967 (p.52). Esta conjuntura favorvel propiciou o desempenho de um novo ciclo expansivo industrial, ainda mais vigoroso que aquele experimentado durante o Plano de Metas (1956-1960), chamado de milagre brasileiro (1967-1973).

    Este ciclo expansivo ganhou sobrevida com as polticas governamentais postas em prticas a partir de 1974, sob a gide do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), mas entrou em refluxo ainda em 1976, sob presso dos dficits do balano de pagamentos e das mudanas de prioridade na poltica interna. Em 1979 o segundo choque dos preos de petrleo dificultou a captao de recursos para investimento e deteriorou de maneira crescente a situao das contas externas do Brasil. As polticas de desenvolvimento cedem lugar s de estabilizao da economia. Este foi um perodo de crescimento vertiginoso da dvida externa brasileira.

    O servio da dvida, onerado principalmente pelas altas taxas de juros, passa a comandar toda a poltica econmica, que desde ento se debate numa crise infindvel para rolar a dvida. A culminncia desse processo de perda de autonomia na poltica econmica interna o pedido de emprstimos compensatrios ao FMI, no final de 1982, e todas as conseqncias contencionistas que tal recurso implica (DELGADO, 1985: 55).

    Segundo DELGADO (1985), com a mudana na base tcnica a reproduo ampliada

    da agricultura passou a depender menos da dotao de recursos naturais e dos meios de produo produzidos em escala de manufatura e, cada vez mais, dos meios de produo gerados, por um lado, pela indstria produtora de insumos e bens de capital para a agricultura e, por outro, com a indstria processadora de produtos naturais. Paralelamente, desenvolve-se ou moderniza-se, em escala nacional, um mercado para produtos industrializados de origem agropecuria, dando origem formao simultnea de um sistema de agroindstrias, em parte dirigido para o mercado interno e em parte voltado para a exportao (DELGADO, 1985: 34).

    Neste sentido, a agricultura tinha um papel importante na consolidao do modelo de desenvolvimento, mas subordinado indstria. Ela no poderia representar um obstculo ao desenvolvimento industrial e, por isso, deveria desempenhar algumas funes importantes, tais como: produzir alimentos e matrias-primas a preos baixos para atender o crescimento da demanda; produzir excedentes exportveis para evitar desequilbrios na balana de

    nem de sementes apropriadas e nem de meios para combater as pragas, vale dizer, sem condies de mudar o patamar tecnoeconmico mas que tinham na propriedade ou posse da terra a condio de sobrevivncia passaram a viver em situao de pobreza. Situao essa criada pelo estilo de industrializao posto em marcha nos ltimos vinte anos (1960-80). Por conseguinte, a industrializao do campo foi parcial, sem dvida, mas suas determinaes foram gerais. A pobreza e a desnutrio no campo so seus efeitos visveis (MULLER, 1989: 75).

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    pagamentos; liberao de mo-de-obra para o setor urbano-industrial e se tornar consumidora dos produtos industriais. Ou seja, a agricultura perde sua autonomia e se torna intermediria entre dois setores industriais, um a montante (mquinas, sementes e insumos agrcolas) e outro a jusante (grandes compradores e processadores de produtos agrcolas).

    GOODMAN, SORJ & WILKINSON (1990) para caracterizar este processo de transformao entre agricultura e indstria introduziram os conceitos apropriacionismo e substitucionismo. A lgica do apropriacionismo estava em reduzir a importncia da natureza na produo rural, superando os fatores limitantes e simplificando os sistemas agrcolas para se atingir o objetivo da maximizao da produo.

    Para atingir tal objetivo foi introduzido um conjunto de tcnicas modernas, que ficou conhecido como pacote tecnolgico da Revoluo Verde. Este pacote consistia, principalmente, dos seguintes itens: uso de mecanizao (tratores e colheitadeiras) que possibilitaria reduzir drasticamente a necessidade de mo-de-obra, tanto no preparo do solo, como na semeadura e na colheita; utilizao de sementes hbridas com o objetivo de obter alto rendimento das culturas (aumento da produo e produtividade), especialmente as monoculturas de exportao; uso de adubos e fertilizantes qumicos para garantir a alta produtividade das culturas; uso de agrotxicos para o controle de pragas e invasoras. Ou seja, so tecnologias produzidas pelo setor industrial, portanto, fora do domnio dos agricultores, que se diferenciam radicalmente das tecnologias utilizadas at ento pelos mesmos desenvolvidas com base na otimizao dos recursos locais, na diversificao dos sistemas produtivos e no entendimento dos ciclos ecolgicos da natureza.

    O pacote tecnolgico, criado com o objetivo de controlar os fatores naturais e superar os fatores restritivos da produo (naturais e humanos), forneceu as condies para sua adoo em larga escala, podendo ser utilizado em ecossistemas bastante diferenciados. As prticas agrcolas desenvolvidas pelos agricultores consideradas atrasadas e de baixa produtividade seriam substitudas por tecnologias modernas de alto rendimento, desenvolvidas pelo setor industrial, apoiadas e financiadas pelo Estado6. Porm, o uso do pacote tecnolgico provocou, em conseqncia, um aumento da dependncia de recursos externos e a simplificao do sistema produtivo, alterando a estabilidade do sistema produtivo.

    (...) esses processos mudaram, fundamentalmente, as bases da economia agrcola. Com a emergncia de culturas de retorno imediato e a crescente presso em itens particulares para exportao, as estratgias de uso da terra que foram desenvolvidas em milnios para reduzir os riscos na agricultura e manter a base de recursos foram desestabilizadas (HECHT, 1989: 27).

    Ao contrrio do apropriacionismo cujo objetivo era sujeitar os fatores da natureza ao

    setor industrial, no substitucionismo a tendncia era a sua eliminao via transformao do produto e o desenvolvimento de produtos sintticos. Segundo GOODMAN, SORJ & WILKINSON (1990), entre os principais avanos no processo de substituio destacam-se as tcnicas de moagem de farinha, produo de laticnios, enlatados, refrigerao e

    6 A trao animal foi substituda pelos tratores; a semente crioula pela hbrida de alto rendimento; a capina pelo herbicida; a diversificao de cultura pela monocultura; o adubo orgnico pelos adubos qumicos e a uria; a colheita manual pela colheita mecanizada; os problemas de pragas e doenas, decorrentes da simplificao e artificializao do sistema, seriam resolvidos com o uso de agrotxicos. Enfim, passou a ser utilizado um pacote tecnolgico inadequado para a realidade brasileira (regio tropical) excludente, poluidor do meio ambiente e de alto custo financeiro.

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    congelamento, processamento de carne, produo de margarina (primeiro produto genuinamente industrial), adoantes artificiais, corantes e vitaminas.

    GRAZIANO NETO (1982), chamou ateno para outro aspecto do processo de modernizao. Ele destacou a existncia no Brasil de uma ideologia modernizadora que orientava as pessoas que trabalhavam no setor rural e, no raro, desprezavam o que no era rotulado como moderno, provocando uma substituio das tcnicas tradicionais consideradas por estas como obsoletas7. Por outro lado, as pessoas que questionavam o pacote tecnolgico e a inadequao destas tecnologias para um amplo setor de pequenos produtores eram marginalizadas, chamadas de retrgradas ou de defensoras do passado8.

    Este processo foi to intenso que os prprios agricultores, instigados pela propaganda oficial e iludidos pela ideologia modernizadora, passam a assumir uma percepo negativa de si mesmos, desqualificando-se como portadores de conhecimentos tradicionais e valorizando as inovaes tecnolgicas introduzidas com a modernizao da agricultura.

    A desqualificao social das formas tradicionais de produo concorreu para que culturas que evoluram em estreita sintonia com as condies socioambientais locais fossem desorganizadas e mesmo desbaratadas, retirando das comunidades de produtores familiares suas j limitadas capacidades de gesto autnoma de seu prprio desenvolvimento. De par com o progressivo abandono das tecnologias e processos tradicionais de manejo dos ecossistemas, o corpo de conhecimentos desenvolvido localmente para a otimizao dos recursos locais no processo produtivo foi aos poucos sendo dilapidado, assim como os prprios recursos locais, sobretudo os da biodiversidade (PETERSEN & ALMEIDA, 2004: 12).

    Para garantir a implementao e a consolidao desta estratgia modernizadora, o

    Estado brasileiro implementou um conjunto de polticas e programas orientado para este fim. Para isso foram criadas e fortalecidas diversas instituies de ensino, pesquisa e extenso rural, alm do estabelecimento de um sistema de crdito rural subsidiado. Estas instituies foram fundamentais na gerao, adaptao e difuso desta tecnologia. Segundo CAPORAL (1998), o crdito rural, que era incipiente at os anos 60, aumentou consideravelmente com a criao do Sistema Nacional de Crdito Rural, em 1965. Ele cresceu de forma sustentada durante toda a dcada de 70, passando de 5,5 bilhes de dlares em 1970 para 23 bilhes em 1979, mantendo quantidades semelhantes at 1982, quando comeou a diminuir.

    O crdito rural se tornou o principal instrumento de viabilizao do padro tecnolgico moderno e sua concesso estava vinculada adoo do pacote tecnolgico, que era amplamente estimulado pelas instituies de assistncia tcnica e extenso rural. Segundo DELGADO (1985), o consumo de fertilizantes base de NPK (Nitrognio, Fsforo e Potssio) cresceu de 198 mil toneladas anuais, em 1960, para 4 milhes em 1980; o consumo

    7 No se admite hoje que se criem sunos alimentados com abboras ou mandioca, ou que as raas no sejam as importadas, tipo carne, de alto rendimento, e tampouco que a produo de ovos ou frangos no seja em grandes fbricas. As aves devem ser de linhagens puras e estar confinadas em gaiolas, devorando raes balanceadas. O plantio de culturas que no seja feito com sementes selecionada e padronizadas ou que no seja realizado mecanicamente com semeadeiras multilinhas, em reas extensas, abominado (GRAZIANO NETO, 1982: 43). 8 A denominao pequeno produtor ou pequena produo era amplamente utilizada na literatura, sobretudo na dcada de 80. Segundo WEID (1985a: 03), o conceito de pequeno produtor recobre, certamente, situaes distintas, tratando-se portanto de um conceito relativo e de uma categoria heterognea. O trao-de-unio que percorre esta diversidade a posio subordinada do pequeno produtor ao sistema agropecurio nacional em que est em maior ou menor grau inserido.

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    de agrotxicos aumentou de 27,7 mil toneladas anuais, em 1970, para 80,9 mil em 1980; o nmero de tratores por estabelecimentos aumentou de 1/256 em 1950 para 1/9 em 1980.

    Contudo, MARTINE & BESKOW (1987) destacam que o crdito rural se concentrou prioritariamente na regio Sudeste e Sul, em produtos destinados exportao ou ligados aos complexos agroindustriais. Destacam, ainda que o crdito favoreceu uma parcela pequena de agricultores, especialmente os mdios e grandes produtores, considerados os mais aptos para a adoo desta tecnologia9.

    Aliado ao crdito subsidiado, a reformulao do sistema de pesquisa, assistncia tcnica e extenso rural se constituiu em importante instrumento de difuso e consolidao deste modelo. A atuao da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EMBRAPA, criada em 1973, e da Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural EMBRATER, criada em 1975 em substituio Associao Brasileira de Crdito e Assistncia Tcnica ABCAR, foram exemplares neste sentido.

    A EMBRAPA veio dar suporte a uma estrutura de pesquisa e experimentao que respaldasse a gerao de conhecimentos tcnico-cientficos com objetivo de aumentar significativamente a produo e a produtividade agrcola. Ela concentrou esforos na gerao de inovaes tecnolgicas, com nfase na pesquisa por produto, atravs dos estudos de introduo de novas cultivares e novas tcnicas de produo, do controle de pragas e doenas, do melhoramento gentico, entre outros10.

    A extenso rural assumiu um papel determinante na introduo e difuso da agricultura moderna e priorizou os produtos de resposta comercial mais imediata e os agricultores que dessem respostas em termos de aumento de produo e produtividade. Desta forma, o Estado se tornou pea fundamental na implantao da modernizao agrcola, com uma poltica explcita de favorecimento aos mdios e grandes proprietrios, que se tornaram os maiores beneficiados da poltica de crdito, dos incentivos fiscais, do acesso tecnolgico e da assistncia tcnica.

    Este modelo comeou a mostrar sinais de esgotamento no Brasil ainda no final da dcada de 70 e incio dos anos 80, juntamente com uma crise mais geral que afetou a economia mundial e, em particular, a economia brasileira. Com a reduo drstica do crdito subsidiado no incio dos anos 80 ocorreu uma queda substantiva no consumo (e tambm na produo interna) destes insumos modernos que fazem parte do pacote tecnolgico. Ademais, a crise econmica contribuiu para o questionamento do modelo de desenvolvimento, que comeava a apresentar problemas sociais e ambientais cada vez mais evidentes, favorecendo a discusso de propostas alternativas.

    O modelo tecnolgico mundial entra em crise e, pelo menos no Brasil, o custo social das mudanas ocorridas agudiza o questionamento das suas

    9 De acordo com PAULUS (1999), em uma srie de dez anos (1966-76) ocorreu uma inverso entre o volume relativo de recursos concedidos aos pequenos produtores (que diminuiu de 33,70 para 11,75 %) e o volume destinado aos grandes produtores (que aumentou de 16,33 para 50,22 %). Alm disso, no mesmo perodo, a grande concentrao dos recursos ficou na regio Centro-Sul do Brasil, em comparao com a regio Centro-Norte. Em 1969 e 1971 o volume de recursos destinado ao Norte-Nordeste foi de somente 7 e 5%, respectivamente, enquanto o Centro-Sul recebeu, respectivamente, 93 e 95% do total do crdito agrcola concedido nestes dois anos. 10 Modernos laboratrios de anlises de solos, sementes, fitossanidade, fitopatologia, entomologia, nutrio e fisiologia vegetal, nutrio e parasitologia animal, bem como casas de vegetao, unidades de beneficiamento de sementes, estaes meteorolgicas, cmaras frias para conservao de frutas, todos estes equipamentos foram colocados, no correr dos anos, disposio da equipe de pesquisadores para apoiar o trabalho cientfico que resultou em inmeras tecnologias e servios" (TAGLIARI, 1995: 34).

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    vantagens econmicas. Sem dvida, a produo e a produtividade aumentaram, mas no ao ritmo esperado. A agroindstria se expandiu rapidamente, mas a produo per capita de alimentos bsicos menor do que no incio da modernizao. O nmero de postos de trabalho no campo aparentemente aumentou, mas grande parte deles so de natureza instvel e mal remunerados. O campo se industrializou, se eletrificou e se urbanizou parcialmente, entretanto, o xodo rural tambm se multiplicou, levando ao inchamento das cidades. Em suma, as transformaes rpidas e complexas da produo agrcola provocaram resultados sociais igualmente intrincados e abrangentes (MARTINE & BESKOW, 1987: 10).

    As conseqncias ambientais do modelo comeam a ser colocadas para a sociedade, fruto de um debate internacional mais amplo sobre os danos causados pelos agrotxicos. Esta homogeneizao e artificializao do meio ambiente causaram profundas implicaes ecolgicas, tais como: perda da biodiversidade, substituio de variedades locais adaptadas por hbridos comerciais, inadequao tecnolgica aos pequenos produtores, contaminao por agrotxicos (agricultores, produtos agrcolas e meio ambiente), descontrole das pragas e doenas, degradao dos solos e dos recursos hdricos11.

    Os impactos scio-culturais so verificados atravs do intenso xodo rural e conseqente inchao do meio urbano, da manuteno do padro de distribuio da posse da terra, da precarizao das relaes trabalhistas, da desqualificao ideolgica do conhecimento tradicional dos agricultores, do empobrecimento da populao rural, da dependncia tecnolgica e de produtos externos propriedade, entre outras. Alm disso, exerceu grande influncia nos modos de vida e nas formas de sociabilidade existentes em comunidades de produtores familiares12 (ALMEIDA, PETERSEN & CORDEIRO, 2001).

    A criao da Comisso Pastoral da Terra (CPT) e a implantao das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na dcada de 70, perodo de feroz represso do regime militar, tambm favoreceu o estabelecimento em meio s comunidades rurais de discusses contnuas e sistemticas acerca das dificuldades sociais impostas pelos rumos das dinmicas de transformao no campo. Segundo PETERSEN & ALMEIDA (2004), foi a partir da valorizao desses ambientes locais de organizao scio-poltica criados pelas CEBs que o movimento de agricultura alternativa deu seus primeiros passos.

    As CEBs, segundo PETERSEN & ALMEIDA, utilizavam trs princpios de ao que vieram a orientar, posteriormente, as prticas metodolgicas adotas pelas organizaes no governamentais: as CEBs organizavam suas aes a partir das questes colocadas pelo cotidiano das famlias; as iniciativas inovadoras das famlias (adubao orgnica, adubao verde, plantas medicinais, controle natural de pragas) e as formas de cooperao local (casas de farinha, roas coletivas, bancos de sementes, mutires) estimuladas pela Igreja eram 11 PETERSEN & ALMEIDA (2004) chamam a ateno que a degradao ambiental, associada s desigualdades sociais, sempre esteve presente na nossa histria como um elemento constitutivo do desenvolvimento agrcola. O padro perdulrio de utilizao dos recursos da Natureza, presente desde os primrdios da agricultura brasileira, se reafirma na Revoluo Verde com o fortalecimento da lgica econmica imediatista orientada para a maximizao dos rendimentos fsicos das atividades produtivas em detrimento de quaisquer preocupaes com a restaurao e com a manuteno dos equilbrios ecolgicos que sustentam a fertilidade dos ecossistemas. Apesar da roupagem de modernidade cientfica atribuda pelos defensores desse modelo, o que se assiste na paisagem rural brasileira a continuidade de um padro de ocupao dos ecossistemas caracterizado pelo nomadismo predatrio que deita suas razes no Brasil colonial (p.09). 12 Existem diversos estudos que retratam o processo de modernizao da agricultura, abordando com diferentes olhares suas conseqncias. Para aprofundamento ver, entre outros: GRAZIANO NETO (1982), GRAZIANO da SILVA (1982), MARTINE & BESKOW (1987), MULLER (1989), HOBBELINK (1990), BONILLA (1992), EHLERS (1996), ALMEIDA, PETERSEN & CORDEIRO (2001).

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    voltadas para otimizar o uso dos recursos locais e proporcionar maior autonomia s comunidades rurais; as CEBs enraizavam suas aes nas prticas de convvio social pr-existentes nas comunidades atravs da (...) revitalizao das prticas culturais locais, atualizando-as a partir da incorporao de novos conceitos para a leitura da realidade e de novas metodologias de ao (p.16). 1.2. O Debate da Dcada de 80: os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa

    As crticas ao processo de modernizao da agricultura comeam a ganhar fora no Brasil no final da dcada de 70 e incio da dcada de 80, influenciadas por discusses e movimentos de oposio ao padro tecnolgico moderno que estavam ocorrendo, desde a dcada de 60, em diferentes partes do mundo13. As primeiras crticas brasileiras foram tecidas por intelectuais que atravs de suas publicaes passaram a denunciar os impactos da agricultura moderna e por categorias profissionais, especialmente os engenheiros agrnomos que contriburam significativamente na luta contra os agrotxicos e para o avano do debate da agricultura alternativa no pas.

    Estas publicaes se tornaram referncia, despertando o interesse da opinio pblica pelas questes ambientais e fazendo crescer o interesse pelas propostas alternativas. Destacam-se as publicaes de Jos Lutzenberger, Manifesto ecolgico brasileiro: fim do futuro? (1976), um dos primeiros ativistas ambientais do Brasil, reconhecido internacionalmente por sua militncia na rea ambiental. Neste livro Lutzenberger fazia crticas severas ao modelo produtivo vigente e, como alternativa, propunha uma agricultura de bases mais ecolgica. Lutzenberger exerceu grande influncia no movimento de agricultura alternativa e difundiu entre os agrnomos a preocupao com os agrotxicos, uma das principais bandeiras da FAEAB na dcada de 80.

    Outro pioneiro foi Adilson Paschoal, que publicou Pragas, praguicidas e crise ambiental (1979), que logo se tornou uma das principais referncias para os simpatizantes da agricultura alternativa. Pascoal, ao voltar dos Estados Unidos, iniciou na Escola Superior de Agronomia Luiz de Queirs (ESALQ), So Paulo, uma discusso praticamente indita dos efeitos dos agrotxicos sobre os agroecossistemas14. Em seus estudos Adilson Pascoal demonstrou que o aumento do consumo de agrotxicos vinha provocando tambm o aumento do nmero de pragas nas lavouras, pois os agrotxicos eliminavam junto com as pragas grande parte dos inimigos naturais, facilitando a proliferao das pragas resistentes s aplicaes qumicas (ELHERS, 1996).

    13 A publicao de Primavera Silenciosa, em 1964, de Rachel Carson iniciou a contestao ao padro tecnolgico dominante e conseguiu sensibilizar a opinio pblica mundial sobre os impactos ambientais provocados pelos agrotxicos. Destacam-se, tambm, os modelos de sociedades alternativas como o Blueprint for survival publicado pela revista The Ecologist, em 1972, que defendia a descentralizao, a diminuio de escala de produo, a nfase em atividades humanas voltadas para a auto-suficincia e sustentabilidade; a publicao de Ernest F. Schumacher com a de O negcio ser pequeno, em 1973, que criticava o culto obsessivo do crescimento econmico ilimitado e introduziu o conceito de tecnologia apropriada, importante referencial terico para a agricultura alternativa. A fundao da Interntional Federation on Organic Agriculture Movement (IFOAM) na Frana, em 1972, tambm foi um marco importante e, logo de incio, reuniu cerca de quatrocentas entidades agroambientalistas, tornando-se a primeira organizao internacional criada para fortalecer a agricultura alternativa (EHLERS, 1996; CAPORAL & COSTABEBER, 2004c; GLIESSMAN, 2000). 14 Adilson Paschoal graduou-se PhD pela Universidade de Ohio, Estados Unidos, onde desenvolveu seus estudos de ecologia e conservao dos recursos naturais, sendo influenciado pelas idias de Rachel Carson.

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    Ana Maria Primavesi15 publicou em 1980 o livro O manejo ecolgico do solo (1980), no qual criticava a utilizao de tecnologias importadas (desenvolvidas para pases de clima temperado) completamente inadequadas realidade brasileira16. Para Ana Primavesi o solo considerado um organismo vivo que precisa ser alimentado e protegido adequadamente para manter sua estrutura e quantidades de nutrientes, condio indispensveis ao bom desenvolvimento das culturas. Na agricultura convencional, ao contrrio, o solo visto como um substrato mecnico que serve para a sustentao fsica das plantas e como veculo para adio de nutrientes solveis.

    Destacam-se, tambm, como pioneiros do movimento de agricultura alternativa Luiz Carlos Pinheiro Machado, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), consultor do Mtodo Voisin de manejo de pastagens; Sebastio Pinheiro, agrnomo formado pela UFRGS, participou da elaborao da Lei Estadual 7.747/82, importante marco na regulamentao da venda e uso de agrotxico17. Sebastio Pinheiro tambm denunciou e comprovou vrios casos de contaminao por agrotxicos no Brasil, dentre eles o uso de desfolhante no Reservatrio Tucuru, Par. Em 1985 publicou o livro Agropecuria sem veneno, conjuntamente com ngela Aurvalle e Maria Jos Guazzelli.

    De acordo com EHLERS (1996), estas publicaes no foram bem recebidas nas escolas de agronomia e nos rgos pblicos de pesquisa e extenso. Ao contrrio, chegavam a ser hostilizadas ou mesmo ridicularizadas, principalmente por acadmicos convictos do sucesso do padro convencional ou por entidades representativas do setor qumico, como a Associao Nacional de Defensivos Agrcolas ANDEF (p.83).

    Por outro lado, estas idias foram acolhidas por um segmento da Associao dos Engenheiros Agrnomos do Estado de So Paulo AEASP, levando formao em 1978 de um grupo de agricultura alternativa, coordenado por Manoel Baltasar Baptista da Costa outro pioneiro do movimento. Este grupo fazia reunies peridicas para discutir os problemas provocados pela modernizao da agricultura e comeou a contatar os agricultores simpatizantes da agricultura alternativa. Nesta poca passou a fazer parte da equipe a pesquisadora Ana Maria Primavesi e o agrnomo Yoshio Tsuzuki, pioneiro da produo orgnica no Brasil. Em 1978 a AEASP escolheu como engenheiro agrnomo do ano o ecologista Jos Lutzenberger, causando polmica dentro da associao, mas chamando a ateno para os problemas ambientais.

    A categoria profissional dos engenheiros agrnomos foi precursora na elaborao de um ponto de vista crtico sobre a modernizao da agricultura. J no I Congresso Paulista de Agronomia realizado em 1977 a categoria manifestou a necessidade de repensar o modelo tecnolgico devido, principalmente, ao agravamento da excluso social e preocupao com

    15 Ana Primavesi austraca filha de agricultores do sul da ustria, formou-se em agronomia na Universidade Rural de Viena nos anos 40 e casou-se com Artur Primavesi seu colega de turma mudando-se para o Brasil com o marido em 1946 a convite de amigos austracos estabelecidos no pas. Implantou com o marido o primeiro curso de ps-graduao que enfocava o manejo ecolgico dos solos, na Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, onde fundou e dirigiu o laboratrio de qumica do solo. No final da dcada de 1970 comeou a participar do grupo de agricultura alternativa da AEASP e em meados de 1980 adquire uma propriedade que denominou de Fazenda Ecolgica, em Ita, So Paulo, onde colocou seus conhecimentos em prtica para a produo de gros, frutas e gado de corte (KISS, 2003). 16 As regies de clima temperado apresentam ciclos biogeoqumicos (crescimento e decomposio da vegetao) lentos e baixa biodiversidade necessitando, portanto, revolver o solo e queimar os restos de cultura para captar calor e permitir o desenvolvimento das culturas. No Brasil, clima tropical, onde a biodiversidade alta deve-se fazer justamente o contrrio revolver o mnimo possvel o solo e deixar os restos de cultura sobre o solo para proteg-lo do calor excessivo e das chuvas fortes evitando assim a eroso (PRIMAVESI, 1980). 17 O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado brasileiro a aprovar uma lei estadual de agrotxico, influenciando outros estados e contribuindo para a criao da Lei Federal 7.802 de 01/07/1989.

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    os impactos ambientais (PETERSEN & ALMEIDA, 2004). Em 1979, por ocasio da realizao do XI Congresso Brasileiro de Agronomia, promovido pela Federao das Associaes de Engenheiros Agrnomos do Brasil (FAEAB), a categoria assume definitivamente a nova postura a ser seguida: a crtica firme modernizao da agricultura brasileira e a proposta de um novo modelo agrcola, mais justo socialmente e baseado em processos de produo ecologicamente mais equilibrados (GRAZIANO NETO, 1982: 11).

    A FAEAB foi criada em 1963 e, inicialmente, se caracterizou por um alinhamento da categoria com as foras polticas da poca. A luta pela redemocratizao do pas influenciou a luta pela autonomia poltica da categoria, desatrelando-a do regime em vigor e possibilitando que temas sociais e ecolgicos ganhassem fora (CAVALLET, 1999). Os engenheiros agrnomos conseguiram manter durante o regime militar uma ampla rede de articulao, que envolvia tanto os profissionais quanto os estudantes de agronomia, enquanto muitas outras redes se desfizeram (CINTRO, 1996).

    De acordo com Manoel Baltasar Baptista da Costa (entrevista 2007), a FAEAB historicamente sempre foi muito conservadora. Entretanto, em meados da dcada de 70 a associao dos engenheiros agrnomos de So Paulo foi assumida por um grupo progressista, crtico do modelo tecnolgico vigente. Este movimento de oposio, formado principalmente por pessoas com orientao poltica de esquerda, se expandiu para outras associaes de engenheiros agrnomos, em outros estados, e em 1981 toma conta da FAEAB no plano nacional, com Walter Lazzarini (presidente da AEASP em 1978) assumindo a presidncia da Federao.

    Em meados da dcada de 70 a gente ganhou a AEASP. A FAEAB era ultra conservadora. Ento ganhou um pessoal progressista em So Paulo. No Rio Grande do Sul tambm ganhou um pessoal progressista, era o Isolan18, o Pinheiro Machado uns a progressistas entre aspas, mas era um pessoal que vinha nesta discusso da tecnologia. Depois no Esprito Santo tambm se ganhou a associao, no Rio de Janeiro j tinha um pessoal tambm mais avanado. Da se ganhou no Paran tambm, isso foi j no comeo da dcada de 80. Ento, a gente ganhou a FAEAB e a FAEAB teve umas trs ou quatro gestes mais progressistas. A primeira foi do Lazzarini, ele foi o primeiro presidente de oposio. Quando a gente fundou nosso grupo em 1978 o Lazzarini era presidente da AEASP. Ele foi eleito para a FAEAB em 1980 ou 1981 e ficou duas gestes e depois foi o Pinheiro Machado [1984] e depois o Valdo Cavalet [1987]. Depois do Valdo teve mais uma gesto progressista com o Nivaldo da Bahia, mas uma gesto muito enfraquecida, ento a gente perdeu a FAEAB. No comeo da dcada de 90 as multinacionais retomam a FAEAB, jogam muita grana em cima. Retomam e volta a ser aquilo que sempre foi (Manoel Baltasar Baptista da Costa, entrevista 2007).

    A luta da FAEAB neste perodo, segundo Manoel Baltasar Baptista da Costa (entrevista 2007), era fortemente classista contra o pacote modernizador e, principalmente, contra os agrotxicos: a grande discusso era a questo do agrotxico mesmo. Os participantes do movimento de agricultura alternativa eram um pessoal muito estranho pra classe agronmica: o cara cabeludo, barbudo.... Walter Lazzarini no tinha inicialmente muita vinculao com a agricultura alternativa depois ele assumiu esta bandeira a

    18 Floriano B. Isolan, presidente da Sociedade de Agronomia do Rio Grande do Sul (SARGS), gesto 1981/1983.

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    questo dele era agrotxicos no (lema utilizado na campanha para se eleger deputado estadual pelo PMDB-SP em 1987). Na opinio de Jean Marc von der Weid (entrevista 2007), a maioria dos membros da FAEAB no tinha muito claro o que era a agricultura alternativa. A FAEAB dava guarida ao discurso da agricultura alternativa porque era um discurso anti-capitalista, um discurso de esquerda, era visto como um discurso contra o sistema. Existia dentro da FAEAB um embate entre a esquerda e a direita (tcnicos mais ligados s empresas de agrotxicos) e a agricultura alternativa virou uma resposta de esquerda. No entanto, algumas lideranas tinham esta clareza e arrastaram a FAEAB por este discurso da agricultura alternativa.

    Havia uma disputa poltica na FAEAB que tem a ver com questes corporativas, que eles puxaram bem, e algumas questes polticas. Lembra que isso era o fim da ditadura, incio da abertura e tinha um sentimento, uma poca de renascer do movimento estudantil e muita desta gente que entra na FAEAB so recm sadas do movimento estudantil, com ideologia de esquerda e resolve dar continuidade a sua militncia neste campo, acho que tem a ver com isso tambm. Eu acho que, por que a agricultura alternativa? Primeiro no era a nica coisa no programa deles o que a gente est pegando aqui tinha outros pontos, tinha as questes coorporativas que eles lutavam muito nas mobilizaes. Mas eu acho que a identidade da agricultura alternativa foi assumida por eles por estas caractersticas: ser de esquerda, ser anti-empresarial, uma certa identidade com a questo da pequena produo, que estava comeando a renascer o debate da reforma agrria. Agora, o peso da FAEAB que consegue dar densidade ao I e ao II EBAA, talvez at no III, mas a os estudantes j comearam a pegar fundo (Jean Marc von der Weid, entrevista 2007).

    A articulao do I Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAA) foi realizada, segundo Manoel Baltasar Baptista da Costa (entrevista 2007), pela AEASP. Foi uma idia do Jos Lutzenberger e o encontro foi pensado inicialmente para ser realizado em So Paulo. Contudo, a prefeitura de Paulo Maluf no apoiou e o encontro foi realizado em Curitiba, com o apoio do prefeito Jaime Lerner19. O depoimento de Walter Lazzarini na abertura do EBAA aponta as primeiras crticas ao modelo dominante e a necessidade de buscar alternativas ao mesmo.

    Mais interessante, e preciso que se diga, que este movimento que hora surge fruto da inconformidade que existe hoje nas cabeas dos engenheiros agrnomos, que no mais aceitam a agricultura tradicional como a forma nica do desenvolvimento do setor primrio deste pas. So estes agrnomos, esses tcnicos, esses agricultores, que tem procurado, com todos os obstculos que se antepem, solues alternativas, num emaranhado de leis, de obstculos, que praticamente no deixam opo ao desenvolvimento de uma agricultura que no seja aquela da utilizao indiscriminada dos

    19 Foram realizados quatro EBAAs na dcada de 80. O I EBAA foi realizado em Curitiba (1981), reunindo cerca de 400 participantes. O II EBAA foi realizado em Petrpolis, Rio de Janeiro, (1984) e reuniu cerca de 1800 pessoas. O III EBAA foi realizado em Cuiab (1987) e contou com a participao de mais de 3000 pessoas. O IV EBAA foi realizado em Porto Alegre (1989) e reuniu cerca de 4000 pessoas. Estes encontros foram realizados principalmente por iniciativa da Federao das Associaes de Engenheiros Agrnomos do Brasil FAEAB, das associaes estaduais de engenheiros agrnomos e da Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil FEAB (FAEAB, 1981; FAEAB, 1985; FAEAB, 1987).

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    fatores de produo, representados pelos insumos modernos. E bom que fique claro tambm que isto se deve fundamentalmente prpria opo brasileira de desenvolvimento da agricultura, a de elevar o uso do capital privilegiando a utilizao de certos insumos de produo, quando este pas tem em abundancia fundamentalmente a terra e a mo-de-obra. Esta opo que se apresentou e que foi imposta, se deveu fundamentalmente necessidade da continuidade do poder como ele hoje est concentrado, mantendo a estrutura fundiria intacta, e garantindo mais do que isso, o mercado cativo para as indstrias, fundamentalmente as multinacionais (FAEAB, 1981: 06).

    O pblico participante do I EBAA era formado basicamente por engenheiros

    agrnomos. Os palestrantes foram, em especial, os pioneiros do movimento (Ana Primavesi, Jos Lutzenberger, Luiz Carlos Pinheiro Machado, Adilson Pascoal); Claude Aubert pesquisador francs, membro da Associao Europia de Agricultura Biolgica, especialista de renome internacional em agricultura biolgica20; profissionais de instituies de ensino, pesquisa e extenso rural que trabalhavam com tecnologias poupadoras de insumos e dos recursos naturais21. Alm das palestras, os Encontros tinham a preocupao de apresentar tambm relatos de experincias produtivas existentes no Brasil.

    Neste perodo praticamente inexistiam experincias produtivas em agricultura alternativa. As duas experincias pioneiras no Brasil foram: a Estncia Demtria, Botucatu-SP, criada em 1972 por um grupo de jovens predominantemente europeus, seguidores da agricultura biodinmica22; Yoshi