o corpo, entre o trauma e os ideais

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    JUNHO 200528 VIVER MENTE&CREBRO

    JOHNLUND/CORBIS

    STOCKPHOTOS

    OCORPOTRANSFORMOU-SEEMOBJETODECULTO, MANIPULAO,DEVASSAMENTOEIDEALIZAES.ASIMAGENSQUEOTRADUZEMPROMETEMMISTRIOS,DESCOBERTASEPRAZERES, MASACLNICAPSICANALTICAREVELATRAOSDEDESORGANIZAO,EXPERINCIASDEVAZIOEESTADOSMELANCLICOSEDEPRESSIVOS.COMOCOMPREENDERESSESPARADOXOS?POR RUBENS MARCELO VOLICH

    OENTRETRAUMAE

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    OS IDEAIS

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    JUNHO 200530 VIVER MENTE&CREBRO

    Todos os dias, a mdia nosoferece uma legio de pes-soas sorridentes, bonitas ebem-humoradas que exibembeleza, poder, inteligncia, dinheiro.So cidados do mundo que viajam,valorizam seus dotes, cultivam seuscorpos, enaltecem seus feitos e divul-gam frmulas de sucesso. Convidam admirao, suscitam inveja, capitalizamsua marca, alimentam especulaes emtorno de sua vida, fazendo a fortuna deuma verdadeira indstria de produtos eimagens de celebridades. Parecem felizesao exibir uma satisfao aparentementesem fim. Sofreriam tambm?

    Para alguns, trata-se de vaidade.

    Para outros, de auto-estima elevadaou ainda, simplesmente, da sensaode estar de bem com a vida. Semdvida, bom sentir-se bem consigomesmo, com o corpo, com a vida sociale profissional, sonhar e fazer projetos,ter sucesso em realizaes. Mas chamaa ateno o excesso: a exuberncia ea insistncia de sorrisos que parecemnunca se desfazer, de biografias queno registram derrotas, dvidas nem

    decepes. Uma felicidade plastificada,impermevel s intempries da vida.Mais que a prpria satisfao, essas

    pessoas solicitam permanentemente oreconhecimento e a admirao do ou-tro. Porm, mesmo quando a recebem,a admirao esperada logo se revelainsuficiente, provocando uma bus-ca duradoura de superao deseus atributos.

    Vislumbramos em ce-nas como essas as tramasnas quais, desde o nas-cimento, se tecem as re-laes do humano comseu semelhante. As marcasde satisfaes e prazeres, ostraos narcsicos, as foraspulsionais no interjogo com seusobjetos de satisfao, os anseios efrustraes que forjam a subjetividade,as dinmicas identificatrias, a busca porum lugar satisfatrio no mundo e nas

    relaes sociais. A luta para existir parasi e existir para o outro.

    As caractersticas fsicas, a intelign-cia, as habilidades, o poder, o dinheiroso apenas alguns dos meios atravs dosquais o homem busca ser reconhecidopor seu semelhante e por si mesmo. Entreesses atributos, o corpo e as experinciasa ele relacionadas ocupam um lugar espe-cial como referncia para a apreenso dasrelaes com o mundo, com os outros,consigo mesmo.

    Matriz da subjetividade, o corpoguarda as marcas de nossa chegada aomundo, da acolhida e dos cuidados pelooutro, do reconhecimento, da satisfaoou da frustrao de nossos desejos. O

    corpo nosso principal capital. Nemtodos podem oferecer ao olhar do outroo poder, os sinais de status, o dinheiro.Mas em busca do reconhecimento, ofe-recemos o corpo a esse olhar. Da mesmaforma, somos solicitados pelo corpo dooutro a reconhec-lo com nosso olhar.

    O corpo nosso pri-meiro universo. Elenos concebe, abri-ga, registra as pri-

    meiras impressesque temos do mun-do: cheiros, sabores,luzes,

    sons, calor, frio. So estados e movimen-tos do corpo que estabelecem as pri-meiras formas de comunicao, muitoantes do pensamento e da linguagem.Nele se constri uma histria marcadapor sensaes, movimentos, percepese traos do encontro com o desconhe-cido do mundo. o corpo, ainda, oltimo reduto ao qual nos recolhemosnos momentos de dificuldade, tristeza,desamparo. Reconhecemos, assim, umaverdadeira dimenso hipocondraca denossa relao com o mundo, para semprepresente no humano.

    No surpreende, portanto, encon-trarmos o corpo na linha de frente dasformas de expresso do modo de existir

    contemporneo, e, particularmente,como porta-voz privilegiado, das difi-culdades do sujeito em lidar com o outro,com suas expectativas, com sua prpriacondio de vida.

    Insatisfeitos com a degradao daqualidade de vida, com a violnciacrescente no mundo, inseguros quan-to situao econmica, solitrios eempobrecidos por relaes pessoais esociais esgaradas e vazias, incapazes

    de considerar a importncia de valorese smbolos para nos situarmos, uma vezmais, buscamos o reconforto em nossocorpo. Porm, surpreendentemente,nesses tempos em que, como nunca, sepromove o culto, a exibio e o cuidadodo corpo, tambm ele nos decepciona. fato: estamos de mal com nosso corpo.

    Uma pesquisa realizada peloObservatoire Cidil des HabitudesAlimentaires (Ocha) na Frana,em 2003, num universo de milmulheres, revelou que 86% delasse dizem insatisfeitas com suasformas anatmicas. Apenas14% afirmaram sentir-se bem

    com seu corpo sem terempara isso utilizado qualquer

    DIVULGA

    O

    A ATRIZ AMERICANAAngelina Jolie, smbolo deseduo e dos padres atuaisde beleza

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    SEQNCIA DE FOTOS QUE ACOMPANHA as transformaes de Stephanie, participante do programa de televiso ExtremeMakeover, da rede americana ABC, em que voluntrios passam por uma bateria de procedimentos mdicos, como cirurgia plstica

    e tratamentos de beleza, para melhorar a aparncia

    procedimento de modificao. No Brasil,o quadro no diferente. Pesquisas divul-gadas pela revista Veja em 2004 revelamque somos o segundo pas do mundo emnmero de cirurgias plsticas: 400 mil em2003, metade delas puramente estticas(40% lipoaspirao, 30% mamas, 20%face), na maioria realizadas entre os 20 e

    34 anos. Dos 12.477 entrevistados peloInstituto InterScience, 90% das mulhe-res e 65% dos homens afirmam sonharcom mudanas no prprio corpo; 5%j tinham feito alguma plstica, e 90%pretendiam fazer outra. Entre os quenunca fizeram uma cirurgia plstica, 30%declararam que esperavam criar coragempara realiz-la.

    Dos simples tratamentos cosmticoss cirurgias mais radicais, ampla a gamade recursos utilizados para tentar ficarde bem com o prprio corpo. Adereos,roupas, maquiagens, tatuagens, piercings,atividades esportivas, musculao, cirur-gias plsticas buscam dar conta de ummal-estar que, mesmo que referido aocorpo, geralmente tem pouco a ver comele. Tentativas muitas vezes vs de apla-car inquietaes, angstias e experinciasmais profundas de vazio que apenas nocorpo encontram um porta-voz de men-sagens incompreensveis, de pedidos de

    socorro que no conseguem se fazer ouvirde outra forma. Diante da dificuldade deencontrar em si mesmo uma imagem quesatisfaa, busca-se no olhar do outro, nosocial a imagem que possa agradar.

    freqente a experincia de cirur-gies plsticos que vem pacienteschegar ao consultrio com um retrato

    de uma atriz pedindo para ficar igual aela. Diante deles, desfilam mulheres que

    anseiam poder encontrar no espelhoreflexos de corpos que no so o seu: osseios turbinados de Daniele Winnitss odelicado nariz de Vera Fischer, toda aexuberncia de Angelina Jolie. Muitoscirurgies plsticos consideram comnaturalidade esses pedidos, lembrandoque a beleza, hoje, um componenteessencial no competitivo mercado detrabalho, nos negcios e na sociedade.

    Para responder a expectativas e aideais de beleza, no se medem esforos,

    despesas e, menos ainda, riscos fsicos epsquicos implicados em tais transforma-es. Cada vez mais, homens e mulheresprocuram os tratamentos estticos e acirurgia plstica. Tambm adolescentese at crianas vm se preocupando comas formas e as condies de seu corpoquerendo adequ-lo a padres estticos

    e culturais, apesar de ainda estarem emtransformao: o nmero de jovens que

    colocaram prteses para turbinar seuspeitos aumentou em 300% nos ltimosdez anos, segundo reportagem publicadapelaFolha de S. Paulo.

    Nesse ponto, importante lembrara distino entre os procedimentosestticos e reparadores. inegvel queos progressos da traumatologia, damedicina esttica, da reabilitao e dacirurgia plstica propiciam para milhesde pessoas recuperaes significativas deseqelas de catstrofes, guerras, malfor-

    DIVULGA

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    HOMENS E MULHERES PERSEGUEMOS IDEAIS ESTTICOS, IGNORANDORISCOS FSICOS E PSQUICOS

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    ANABOLIZANTES E MALHAO em excesso apontam para o desejo de habitar um corpo radicalmente diferente, possvel sinal de fragilidade psquica

    RUBENS MARCELO VOLICH psicanalista. Doutor pela Universidade de Paris VIIe professor do curso de psicossomtica do Instituto Sedes Sapientiae, autor dePsicossomtica - De Hipcrates Psicanlise, Hipocondria Impasses da alma, desafiosdo corpoe co-organizador e autor dos livros da srie Psicossoma, todos editados pelaCasa do Psiclogo.

    O AUTOR

    maes congnitas e de caractersticasanatmicas nocivas. Porm, em muitoscasos, a dificuldade em compreender anatureza do sofrimento emocional queacompanha o desejo de uma plsticanubla essa distino.

    MAL-ESTAR NO CORPOCientes dessas questes, alguns pro-fissionais mais sensveis convidam seuspacientes reflexo sobre o exagero demuitas solicitaes que lhes so dirigi-das, ponderando sobre a necessidadede levar em conta a singularidade e aestrutura anatmica de cada paciente.Eles reconhecem que cirurgia plsticano faz milagres, no salva casamentos,nem sempre acaba com a angstia, tam-pouco com a depresso. Porm, dianteda insistncia dos pedidos que lhes sofeitos, muitas vezes cedem s solicitaes,inclusive por saber que no ser difcilpara o paciente encontrar um colega quese disponha a realizar a operao, mesmoque descabida.

    Os mpetos de transformao cor-poral alcanam ainda manifestaesextremas. Sintonizada com o espritodos tempos, a mdia transforma emespetculo os dramas humanos. A rede

    PETE

    RBARRETT/MASTERFILEOTHERIMAGES

    americana ABC exibe semanalmente oprograma Extreme Makeover, que mostraa transformao radical de pessoas quese submetem a cirurgias, tratamentos,dietas, ginstica, aulas de moda e cabe-leireiros para apagar todo e qualquer de-feito que viam em seu corpo. Alm das

    clssicas imagens de antes e depois,so minuciosamente exibidas tambmas etapas da transformao: a aodo bisturi sobre os tecidos, detalhes demanipulaes cirrgicas, inchaos, ex-presses de dor, lgrimas de sofrimentoe de encantamento diante dos milagresoperados, a reao de surpresa e fascniode familiares e amigos.

    Outro programa, The Swan, promoveum concurso em que as participantespassam por todos os recursos estticosexistentes, sem poder jamais se olhar noespelho durante o processo. Ao final, aganhadora pode contemplar sua novaimagem. Nesse momento, freqente

    os participantes declararem: Essa nosou eu. Do ponto de vista psicanaltico,podemos reconhecer nesse comentrioum insight.

    Descobrir-se, de sbito, num corporadicalmente diferente daquele como qual sempre se conviveu; coabitar,

    de repente, com um estranho em si:naquele programa, aparentemente, noocorre estranhamento, medo, horror,apenas prazer, alegria, espetculo. Nalegitimao coletiva das fantasias maisonipotentes, na banalizao de com-plexos desejos e da prtica mdica, noinsidioso convite despersonalizao,todos parecem encontrar satisfao: osparticipantes, o pblico, muitas clnicasde esttica e, naturalmente, as redesde televiso que ainda se comprazemcom a imagem de fada madrinha quepropicia a realizao de desejos paraquem no tinha condies de realiz-los. Nada de novo. A mdia continua

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    preenchendo os vazios, formatando atmesmo a carne das vacilantes formas desubjetivao contemporneas.

    A experincia clnica nos convida asuspeitar de mundos encantados comoesses. radicalidade de todas essas ma-nifestaes e tentativa de banalizar aviolncia de tais procedimentos, devemcorresponder, no interior de cada per-songem dos dramas da transformaocorporal, fenmenos de brutalidadee violncia comparveis aos que sonegados e que, mesmo que contidos esilenciados, fermentam seu potencialnocivo, desorganizador, e algumas vezesletal. Com efeito, longe dos palcos, dascmeras, dos holofotes, na intimidade

    dos consultrios, entre sofrimento evergonha, muitas vezes no so felizesas lgrimas que brotam ao contato comos estranhos que alguns pacientes desco-brem em seu prprio corpo.

    Como as lgrimas de repulsa de umamulher que, aps uma plstica mamriaconsiderada perfeita pelo mdico, impe-dia qualquer aproximao do marido; asde solido e de arrependimento daquela

    adolescente que, depois de muita insistn-cia junto aos pais, realizou uma plsticano nariz e passou a se sentir uma intrusana famlia, na qual muitos parentes, degerao em gerao, possuam o formatocaracterstico do nariz que operara; ouainda as lgrimas que acompanhavam asintensas crises de angstia e alguns epi-sdios delirantes que mantinham reclusaem sua casa uma bela mulher submetidaa uma cirurgia de reduo de estmago.Apesar de desaconselhada por duas equi-pes de gastroenterologia, ela encontrouuma terceira que aceitou oper-la. Perdeuos 20 quilos que desejava, mas passou a

    no conseguir mais se olhar no espelhopara ver o corpo que tanto imaginara.

    CORPOS SOS?Na busca pela perfeio do corpo,

    tambm a atividade esportiva se vmarcada por dinmicas semelhantes.Para alcanar formas socialmente va-lorizadas, freqentemente o esporte esvaziado de sua dimenso ldica, deprazer e de vivncia coletiva tornando-seum imperativo social e esttico: malharhoras a fio na academia, praticar esportesradicais, submeter-se a regimes draco-nianos, tudo isso complementado coma utilizao de anabolizantes, esteridese outras substncias para a modelagem

    da massa muscular e para o aumento dasperformances esportivas. Uma legio desarados e bombados vem cada vezmais povoando as cenas do cotidiano.Impulsionadas por doses crescentes datestosterona natural da juventude e pelaadrenalina no to natural mas intensa-mente secretada pela vida urbana essalegio muitas vezes se aglutina em torci-das organizadas, gangues como skinheads

    epitboys, e faces criminosas, sempre embusca de objetos para a descarga da pooexplosiva que combinaram em si.

    Porm, ao lado de corpos olmpicos,com habilidades e conquistas invejveis,observamos tambm leses, ligamen-tos que se rompem, articulaes quese desgastam, repetidas cirurgias paracorrigi-las, desrespeito pelo tempo derecuperao, noites mal dormidas antese depois das competies. Os corpos-m-quina acabam por revelar sua verdadeiranatureza: limitada e frgil, nem sempreconfivel. Constatao insuportvelpara muitos que, no anseio por mais uma

    partida, vitria ou recorde cedem ten-tao de produtos dopantes para tentarsuperar tais fragilidades, com mais riscose sacrifcios do prprio corpo.

    Diferentemente da anatomia imagi-nria revelada pela histeria, que mostraum corpo marcado por fantasias, prazerese dores, muitas vezes aqueles belos cor-pos esculpidos por frmacos e exercciosextenuantes carecem de sonhos, defantasias, encontrando-se anestesiadospara tais afetos: pura massa, puro volume,fora bruta, sem essncia, sem alma. Paraalm das miragens de corpos esculturais

    revelam-se paisagens desrticas.Marcada pelo excesso, essa nsia

    pela busca do corpo ideal e as formas dealcan-lo constitui apenas uma das pon-tas de um imenso iceberg que pode sercaracterizado como uma psicopatologiado corpo na vida cotidiana, como sugereMaria Helena Fernandes no livro Corpo.Ou seja, manifestaes que evidenciama precariedade de organizaes subje-tivas com dificuldade para manifestaro sofrimento em termos psquicos, quedesafiam no apenas a clnica psicanalti-ca ou psicoteraputica, mas, sobretudo, aclnica mdica escuta e compreenso

    O BRASIL O SEGUNDO PAS DOMUNDO EM NMERO DE PLSTICAS,QUASE SEMPRE COM FINS ESTTICOS

    STOCK.X

    CHNG

    PACIENTE NA MESA DE OPERAO.Intervenes cirrgicas no solucionam

    insatisfao de ordem psicolgica

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    de fenmenos primitivos, aqum da pa-lavra, impelindo terapeutas e pacientes aatuaes sem fim.

    O desenvolvimento humano visa asuperao de dimenses automticas eprogramadas da ordem biolgica paraalcanar funcionamentos mais abstratose complexos da ordem psquica. Esseprocesso ocorre segundo movimentosde organizao progressiva de estruturas,

    funes e comportamentos, das mais sim-ples s mais complexas, simultaneamentea movimentos de desorganizao, desentido oposto. Todas as etapas e todos osnveis de funcionamento anatmicos,fisiolgicos, sensoriais, motores, afetivose psquicos so marcados por essasdinmicas.

    A anatomia, a fisiologia, as funessensrio-motoras e psquicas obede-cem a esses princpios, marcados pelas

    dinmicas organizadoras e desorgani-zadoras das pulses de vida e de morte.A partir do nascimento, por exemplo,observamos no beb a integrao pro-gressiva de movimentos e funes antes

    desorganizados: a convergncia ocular,a coordenao motora, a discriminaoauditiva, o reconhecimento e a distin-o entre seres familiares e estranhos,o desenvolvimento da linguagem e dopensamento, entre outros mecanismos.Experincias traumticas podem pro-vocar a perda da especificidade e dacomplexidade dessas mesmas funes(desorganizao psquica, regresses

    psquicas e motoras, perturbao dosistema imunolgico etc.).

    PROTEO MATERNANos primeiros tempos de vida, a

    sobrevivncia e o desenvolvimento dacriana dependem da presena de outroser humano, bem como da qualidadedessa presena. A me (ou aqueles queexercem essa funo) busca propiciarno apenas a satisfao das necessidades

    vitais do beb, mas tambm estimularseu desenvolvimento. Ela tambm fun-ciona como uma espcie de pelcula deproteo contra os estmulos internose externos que a criana ainda no

    capaz de assimilar. Denominado porFreud de para-excitaes, esse recursotem um papel essencial nos processosde organizao e desenvolvimento dacriana. A qualidade dessa presenamaterna determina a possibilidade deaquisio e a qualidade de competn-cias especficas, da autonomia e dosrecursos mais evoludos e harmnicosde funcionamento.

    tambm a qualidade dessas re-laes que determina a passagem davivncia biolgica para a experinciado corpo ergeno: do instinto para apulso, da necessidade para o desejo, daexcitao para a angstia, do sono fisio-lgico para o sonho. As relaes objetais

    primitivas marcam tambm a qualidadedo desenvolvimento do narcisismo e detodas as instncias e funes do aparelhopsquico, bem como do equilbrio entreas pulses de vida (organizadoras) e demorte (desorganizadoras).

    Nesse contexto, forjam-se tambmas representaes do prprio corpo e aspossibilidades de experiment-lo comofonte de prazer para si e para o outro. Paraalm de critrios estticos e de atributos

    anatmicos, a representao da belezado corpo tambm construda pelasexperincias de satisfao e frustrao,prazer e desprazer, de acolhimento e derejeio que, no encontro com o seme-lhante e com o ambiente, o corpo pdeexperimentar. A partir dessas experin-cias, configura-se um corpo imaginrio,caixa de ressonncia privilegiada dasrelaes com o outro e com o mundo.

    Desde a experincia do desamparo,prototpica do nascimento, somos per-manentemente solicitados por estmulose excitaes internos (fisiolgicas, instin-tivas e pulsionais) e externos (realidade,outras pessoas), fonte de desprazer, detraumas e conflitos. As manifestaesorgnicas, da motricidade e psquicas(normais ou patolgicas) so recursos

    O CULTO AO CORPO INDICADIFICULDADES NA PASSAGEM DAORDEM BIOLGICA PARA A PSQUICA

    AULA DE MASSAGEM FACIAL promovidapela marca de cosmticos HelenaRubinstein na dcada de 50

    COND

    NASTARCHIVE/CORBISSTOCKPHOTOS

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    WILLIAM

    WHITEHURST/CORBISSTOCKPHOTOS

    para alcanar um equilbrio entre tais so-licitaes. Segundo P. Marty, os recursospsquicos, mais evoludos e complexos,so aqueles que, economicamente,melhor se prestam para lidar com solicita-es s quais o ser humano submetido.Porm, diante da impossibilidade deutilizao das funes mais organizadase hierarquizadas, muitas vezes esseequilbrio s alcanado por meio defuncionamentos anacrnicos, primitivose insatisfatrios.

    Falhas do desenvolvimento, deter-minadas por elementos congnitos, pelaprecariedade das relaes parentais pri-mitivas e do ambiente, por experinciastraumticas e desorganizadoras compro-

    metem a estrutura e o funcionamentopsicossomtico, de forma duradouraou temporria. Diante de deficinciasestruturais ou funcionais dos recursos ps-quicos podem ser mobilizadas tentativasde reorganizao atravs de descargasmotoras e comportamentais, ou ainda,no extremo, de manifestaes e desor-ganizaes orgnicas, como as doenas.

    no contexto de tais deficincias queas manifestaes corporais marcadas por

    excesso, repetio, fragilidades narcsicase identificatrias e pelo vazio representa-tivo fazem sua apario.

    OS GALS VOLUNTRIOSHouve um tempo em que as galeras

    eram outras. Na Antigidade, as galeraseram embarcaes de guerra impulsiona-das por cerca de 15 a 30 grandes remospor bordo, cada um manejado por trs acinco homens. Os remadores eram emgeral escravos ou pessoas sentenciadas atrabalhos forados. Acorrentados a seuspostos, os gals remavam de 12 a 16 horaspor dia, s vezes mais.

    Em nossos dias, uma multido dehomens e mulheres, apesar de livres esem grilhes, parece condenada a umapermanente repetio para alm doprincpio do prazer. Como aponta G.Szwec, essas pessoas, gals voluntrios,parecem fascinadas por uma espcie derobotizao de seus corpos e de suas vidas

    que tm tudo de operatria. Apresentammodos de funcionamento que carecemde sentido e de prazer, freqentementebuscando utiliz-los como anteparos asituaes de perigo e de desamparo.

    A atividade esportiva, a msicaestridente e ritmada, os esportes derisco, os filmes de adrenalina e mesmocomportamentos cotidianos como baterportas, dirigir bruscamente no trnsitoou o tabagismo podem exercer a funode descargas automticas do nvel detenso, mesmo que, paradoxalmente,promovam tambm aumento da tenso.Essas atividades geralmente se realizamem um clima imperativo de urgncia,exigindo constante repetio.

    Esses procedimentos, denominadosautocalmantes, so fruto da precarie-dade da organizao subjetiva, carentede recursos psquicos para lidar com asexigncias da vida. Eles curto-circuitama via representativa e de fantasia, utilizan-do a realidade de forma especfica, bruta,factual, operatria, sem carga simblica.Eles se caracterizam por comportamen-tos motores ou perceptivos que, passandopela dor, podem inclusive chegar a

    automutilaes. Manifestam-se tambmem pessoas que procuram e se excitamcom situaes de perigo que colocamem risco sua integridade fsica e mesmosuas vidas.

    Os procedimentos autocalmantesso tentativas de trazer a calma aoaparelho psquico empreendidas porum ego fragilizado e carente de umrecurso de para-excitaes autnomo.Ocorrem quando o ego ameaadopelo potencial traumtico do excessode excitaes. Eles se assemelham atentativas da me que procura acalmarseu beb a qualquer custo, sem no en-tanto propiciar-lhe experincias de sa-tisfao que poderiam verdadeiramentetranqiliz-lo, abrindo caminho para aautonomia psquica e subjetiva.

    Carncias nas relaes primitivaspodem promover na criana a interna-lizao da excitao de apaziguamentodo embalo calmante-no gratificante

    da me, como forma de evitar as expe-rincias depressivas do vazio, vividas apartir do prprio desamparo da criana,mas tambm, muitas vezes, no contatocom a depresso e o vazio maternos.A aproximao ou o contato com osncleos primitivos de desamparo ou comexperincias de vida desorganizadoraspodem desencadear tentativas de reduzira tenso resultante pela exacerbao daexcitao materna internalizada. Essastentativas so, entretanto, frustradas pelaincapacidade de prescindir da presenareal do corpo materno, ou de seus suce-dneos, como objeto calmante. Tantonas experincias da me com o beb,como nos procedimentos autocalmantes,os comportamentos so esvaziados defantasia e de prazer.

    COMO GALS VOLUNTRIAS, hoje aspessoas parecem apreciar a padronizao

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    La nuit, le jour - Essai psychanalytique sur le fonctionnement mental. D. Brauns-chweig e M. Fain. PUF, 1975.Lanatomie dans la psychanalyse. P. Fdida, em Nouvelle Revue de Psychanalyse, 3:109,1971.Corpo. M. H. Fernandes. Casa do Psiclogo, 2003.

    Memria corporal e transferncia. Fundamentos para uma psicanlise do sensvel.I. Fontes. Via Lettera, 2002.Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Edio Standard Brasileira dasObras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.) VII, Imago, 1981. Sobre o narci-sismo: uma introduo (1914), E.S.B. XIV,. Alm do princpio do prazer (1920),E.S.B. XVII.Narcisismo de vida, narcisismo de morte. A. Green. Escuta, 1988.A nova criana da desordem psicossomtica (1992). L. Kreisler. Casa do Psiclogo,1999.A psicossomtica do adulto. P. Marty. Artes Mdicas, 1994.Les procds autocalmants par la recherche de lexcitation: les galriens volon-taires. G. Szwec, em Revue Franaise de Psychosomatique, 4:27-52, 1983.

    PARA CONHECER MAIS

    Percebemos a intimidade dessaconstelao com as que encontramosem alguns estados-limite, em condutasaditivas (toxicomanias, transtornos ali-mentares, etc.) e nas neonecessidades,descritas por D. Braunschweig e M.Fain. Estas se caracterizam como umatentativa persistente da me de propiciarsatisfaes ao beb independentemente daexistncia de uma necessidade a ser satisfeita, evi-denciando muito mais o desejo da mede acalmar seu filho a qualquer preo do

    que de realmente satisfaz-lo. Cria-seassim na criana uma falsa necessidade,imperativa como as que caracterizam osinstintos de autoconservao, marcadapor uma dependncia acentuada dosujeito ao objeto real de satisfao, emdetrimento da experincia alucinatria.Ficam perturbados a formao de umobjeto interno satisfatrio, o desenvol-vimento do auto-erotismo e dos recursosrepresentativos.

    A precariedade do mundo internoe das representaes resulta na hiper-valorizao da realidade e a grandedependncia do sujeito dos objetosexternos de satisfao. Agradar os ou-tros, satisfaz-los, corresponder a suasexpectativas e a seus ideais vividomuitas vezes como uma questo desobrevivncia.

    perturbadora, impensvel, a possi-bilidade de desafi-los ou contradiz-los.O sujeito torna-se refm de pessoas, oumesmo de instituies, investidas de umpoder que beira a onipotncia. Comfacilidade, ele se torna refm dos ideaisde tais pessoas e instituies, refmdos ideais sociais de beleza, de modas,

    comportamentos, valores culturais do-minantes, consumo etc.

    LUTA INGLRIAA fragilidade narcsica, a precarie-

    dade de recursos internos e a extremadependncia formam uma combinaoexplosiva que torna o sujeito presa fcilde qualquer pessoa, imagem ou produ-to que lhe prometa a possibilidade deafastar-se da proximidade perigosa de

    seus terrores, de suas dores, de seu sofri-mento. Presa fcil de qualquer um quelhe oferea uma identidade, um corpo,uma vida que mascare seu desamparo e

    suas dolorosas feridas narcsicas.A criao, a aquisio e a ostenta-

    o de sinais socialmente valorizadosque favoream o reconhecimento e aaceitao do sujeito pelo outro torna-seimperativa. A manuteno a todo custode uma aparncia que corresponda aosideais do grupo, excluindo qualquer coi-sa que possa sugerir o vazio existencialou a castrao, vira uma questo de so-brevivncia. A possibilidade de que umafalha se revele nessa complexa mas frgilmontagem torna-se insuportvel.

    Vive assim o sujeito uma luta ingl-ria, sem fim, na qual por melhor queseja a aparncia sempre insatisfatriae qualquer nova conquista, insuficiente.

    Uma escalada na qual, a cada vez, algomais deve ser acrescentado, apresentado,consumido, sacrificado: um novo carro,um novo milho, uma nova mulher, umnovo corpo, um novo recorde.

    Em meio excitao e angstiainesgotveis, acelera-se cada vez maisesse circuito infernal, impossvel deser interrompido pelo prprio sujeito.Como o jogador que, para bancar suasapostas, nada mais tem a oferecer a seus

    parceiros, esses escravos da excitaooferecem a seus tiranos, que no podemafrontar, sua liberdade, sua alma, suacarne, sua vida. VMC

    STOCKPHOTOS

    O IMPERATIVO da urgncia comanda aobsesso com a forma fsica