o comercialista - vol. iii - março 2012

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omercialista Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco Ano 1 Volume 3 Março 2012 Um ano após a primeira condena- ção brasileira de insider trading no Caso Sadia, o Procurador da Repú- blica Rodrigo de Grandis dá entre- vista exclusiva a O Comercialista e comenta a sua atuação no caso, as perspectivas do direito penal econô- mico, a proteção do mercado de ca- pitais e a atuação do Ministério Pú- blico Federal em grandes operações. Entrevista exclusiva com o procurador Rodrigo de Grandis A responsabilidade civil dos auditores independentes no ordenamento jurídico brasileiro O Sistema Alemão de Governança Corporativa 2° Congresso Brasileiro de Direito Comercial Direito Concorrencial: como a Economia pode contribuir para sua aplicação por Ernesto G. E. Neto por Alexandre Demetrius por Guilherme S. Garcia por Paula A. Forgioni por Vítor A. Possebom

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O Comercialista - Revista de Direito Comercial e Econômico

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Page 1: O Comercialista - Vol. III - Março 2012

omercialistaRevista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

Ano 1 Volume 3 Março 2012

Um ano após a primeira condena-ção brasileira de insider trading no Caso Sadia, o Procurador da Repú-blica Rodrigo de Grandis dá entre-vista exclusiva a O Comercialista e comenta a sua atuação no caso, as perspectivas do direito penal econô-mico, a proteção do mercado de ca-pitais e a atuação do Ministério Pú-blico Federal em grandes operações.

Entrevista exclusiva com o procurador Rodrigo de Grandis

A responsabilidade civil dos auditores independentes no ordenamento jurídico brasileiro

O Sistema Alemão de Governança Corporativa

2° Congresso Brasileiro de Direito Comercial

Direito Concorrencial: como a Economia pode contribuir para sua aplicação

por Ernesto G. E. Neto

por Alexandre Demetrius

por Guilherme S. Garcia

por Paula A. Forgioni

por Vítor A. Possebom

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Editorial

Muito aconteceu em 2011.

O Brasil vivenciou instabilidades no mercado automotivo devido a ameaças relacionadas ao aumento do IPI para estes produtos, enquanto no caso da geladeira e do fogão o corte do mesmo tributo levou a uma redução de até 20% em seus preços.

O crescimento do PIB atingiu a marca de singelos 2,7% em relação a 2010, o que não impediu intensas atividades no mercado e novos recordes no campo da tributação: observou-se uma economia bastante aquecida, o que levou a um aumento de cerca de 11% da arrecadação de impostos.

O mundo também não parou. O Japão por um lado sofreu uma das maiores tragédias de sua história, com um terremoto que devastou a região nordeste, e, por outro, em menos de um ano após o evento ocorrido em 11 de março de 2011, concluiu a torre mais alta do mundo, a Tokyo Sky Tree, com 634 me-tros de altura. Um exemplo de reconstrução.

A Grécia decretou que não poderia mais acompanhar a economia mundial e, devido aos efeitos de uma crise que não evidencia indícios de término, depende da injeção de capital e incentivos privados e estrangeiros para se manter respirando em 2012. As mais recentes notícias apontam que o país con-seguiu, finalmente, finalizar a reestruturação da dívida privada, estando pronto para receber o novo pacote de ajuda externa.

A crise mundial bastante evidenciada na Grécia, também afeta o gigante asiático chinês que, embora mantenha índices astronômicos de crescimento, demonstra uma sensível desaceleração, o que preo-cupa o mercado de investimentos e repercute negativamente para empresas de commodities. Entre os mais ameaçados estão, coincidentemente ou não, empresas brasileiras, a exemplo da Vale, já que 36% de sua receita veio do mercado externo, segundo o último balanço trimestral de 2011. É inegável: o mundo está conectado. O mercado está conectado. Tudo é extremamente...

Dinâmico. Decisões políticas não geram efeitos apenas na seara política, podendo afetar de outros modos a sociedade, alterando sua postura econômica ou sua concepção de sociedade e o mesmo pode ser afirmados destes últimos. De igual modo, tais mudanças não influenciam um único ponto do globo, repercutindo de maneira positiva ou negativa em todas as outras localidades. Difícil imaginar, desta forma, algo ou alguém incólume a essas tão constantes mudanças. O Direito não corre por fora neste sentido. Influencia e é influenciado por tudo e por todos. É, igualmente, dinâmico.

Dá-se início a mais um ano de atividades de O Comercialista. Não se pode negligenciar que tudo está conectado. Não se pode fechar os olhos a esse dinamismo. Defendemos a necessidade de entender o Di-reito Comercial e Econômico sob um prisma não só jurídico, mas plural. Esta concepção está presente na seleção de textos provenientes de outras áreas do conhecimento que não a jurídica. Afinal, não seria conveniente defender que somente as leis fazem com que o mundo seja assim: dinâmico.

Saudações Comercialistas,

Os editores.

O que será de 2012?

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Corpo Editorial

ÍndiceEditores Executivos

Pedro Alves Lavacchini Ramunno

Thyago Pereira Trairi

Articulistas desta edição

Alexandre Demetrius Pereira

Guilherme Schimidt Garcia

Paula Andrea Forgioni

Vítor Augusto Possebom

Repórter desta edição

Ernesto Gomes Esteves Neto

Fale Conosco

[email protected]

4 | Perfil

12 | Doutrina

17 | Doutrina

21 | Eventos

24 | Doutrina

A Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – O Comercialista – é uma publicação mensal da Associação Civil sem fins lucrativos O Comercialista Endereço Rua Tenente Rocha, 134, Santana – São Paulo – SP – CEP 02022110 Contatos (11) 73016756 – (11) 81335813 – [email protected] – www.ocomercialista.com.br Marke-ting Thyago Pereira Trairi – [email protected] e Pedro Ramunno – [email protected] - Nota aos leitores As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam Reprodução É proi-bida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem autorização prévia.

Entrevista exclusiva com o procurador Rodrigo de Grandis

A responsabilidade civil dos auditores independen-tes no ordenamento jurídi-co brasileiro

O Sistema Alemão de Go-vernança Corporativa

2° Congresso Brasileiro de Direito Comercial

Direito Concorrencial: como a Economia pode contribuir para sua aplica-ção

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Perfil

Formação acadêmica: Graduado em Direito pela Universidade Presbite-riana Mackenzie, mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo

Profissão: Procurador da República e professor de pós-graduação da GVlaw

Livro que todo estudante de direi-to deve ler: “Princípios básicos de Di-reito Penal” - Francisco Assis de Toledo

Conselho pra vida: aproveitar a fa-culdade

Rodrigo de Grandis

O Comercialista – Qual o papel que o Ministério Público efetivamente exerce atualmente na sociedade, para além de sua função de acusação nos processos de ação penal pública?

Rodrigo de Grandis – Eu entendo o seguinte. O MP, na perspectiva da Cons-tituição de 88, passa a ganhar um papel

não só na área criminal, mas também na área de tutela coletiva, com a possibili-dade de propositura de ação civil públi-ca e etc. Na área penal eu acredito que a Constituição tenha ressalvado ao MP um papel que não existia de forma mui-to clara antes, que é o papel de fiscal da sociedade e da ordem jurídica, que é o que dispõe o Art. 127, CF. Então, mais

Rodrigo de Grandis, Procurador da República, professor de pós-graduação da GVlaw, especialista em Direito Penal nas Sociedades Modernas pela Universidade de Salamanca e pós-Graduando em Direito Penal pela FDUSP. Enquanto membro do Mi-nistério Público Federal, Grandis atuou em grandes casos como o “Sadia Insider Tra-ding” e “Operação Satiagraha”. Em entrevista exclusiva, o procurador aborda o papel do Ministério Público no contexto atual, o Direito Penal Econômico, os Crimes Finan-ceiros e os Crimes contra o Mercado de Capitais.

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do que um órgão de acusação, eu acre-dito que o ministério público é um órgão constitucionalmente vocacionado para a acusação, o que não significa que deve buscar em todos os casos a acusação e, por consequência, a condenação. Ele deve buscar o acervo probatório produzido em determinados processos penais, a partir da ampla defesa e do contraditório, e se se convencer de que alguém praticou um ato ilícito ou criminoso, aí sim ele deve postular a condenação. E com a mesma tranqüilidade, com a mesma serenidade, ele deve, caso conclua o contrário, que a pessoa não praticou crime algum ou não existem provas suficientes que embasem uma condenação, ele deve pedir a absol-vição dessa pessoa. Eu costumo dizer que não é porque nós efetivamente temos essa primordial função acusatória que a gen-te deve buscar sempre a condenação. A idéia constitucional, em especial a partir de 1988, não é essa. O MP é, repito, órgão constitucionalmente vocacionado à acu-sação, mas não é um órgão pura e sim-plesmente de acusação.

O Comercialista – O senhor se consi-dera um procurador da república comba-tivo?

Rodrigo de Grandis – É difícil respon-der isso. Falar de si próprio é tão difícil. Elogio em boca própria é vitupério, como se diz por aí. Eu não sei. Tento resolver aqui os meus processos na medida em que eles aparecem. É claro que a gente não consegue trabalhar com todos os proces-sos ao mesmo tempo com a atenção que eles merecem. Acaba que você, por força de circunstâncias, por força da complexi-dade de alguns casos você se dedica mais a eles. Tento na medida do possível divi-dir igualmente meu tempo entre todos. Sobre a combatividade, não sei se a ideia

Perfilé essa. É difícil até conceituar. O que seria um procurador combativo? Eu simples-mente tento, segundo a minha convicção, estabelecer aquilo que a ordem jurídi-ca outorga. Eu tento dentro do possível cumprir as atribuições constitucionais que são dadas ao ministério público. Nes-se sentido, não acredito que seja apenas a acusação que devemos buscar, pois o pro-cesso penal é um palco para o exercício da ampla defesa e do contraditório. Sempre busquei um equilíbrio. Em resumo, se me perguntassem se eu preferiria ser um pro-curador da república combativo ou equi-librado, ficaria com esta última opção.

O Comercialista – Antes de ingres-sar no Ministério Público Federal atuou como advogado?

Rodrigo de Grandis – Sim, por 3 anos na área cível, antes de passar no concurso do Ministério Público.

O Comercialista – O senhor acredi-ta que o profissional de outras carreiras também tem um papel importante para o desenvolvimento do direito comercial e do mercado como um todo, ou a advoca-cia continua sendo, nessa seara, a carreira por excelência?

Rodrigo de Grandis – Não. Eu acre-dito, na verdade, que outras carreiras vão acabar precisando desse conhecimento e já estão acolhendo profissionais do direi-to comercial ou empresarial. O fato é que, enfim, várias carreiras, para além da ad-vocacia, exigem conhecimentos de direi-to comercial. Essa necessidade já existe aqui no Ministério Público Federal, bem como nas varas especializadas da justiça federal, não só pela natureza e pelas es-pecificidades dos delitos praticados, mas também porque lidamos com imputa-

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ção penal que, na verdade, visa a atribuir responsabilidade a alguém que trabalha dentro de uma sociedade empresária. Então, há necessidade de conhecimen-to do direito comercial para um melhor desenvolvimento do seu trabalho e isso, obviamente, não fica restrito à advocacia: passa pela magistratura, pelo ministério público, enfim, por todas as áreas.

O Comercialista – Em 2001 houve uma alteração legislativa que inseriu na Lei 6385/76 os crimes contra o mercado de capitais. Mais de dez anos após esta mu-dança, quais os avanços trazidos e quais os entraves ainda a serem superados?

Rodrigo de Grandis – Eu acho que na criação dos 3 tipos penais na lei 6385/76 você tem uma aproximação entre os ór-gãos que estão aí e tem a incumbência de repelir crimes contra o mercado de capi-tais. Concretamente falando, houve uma aproximação, houve uma sintonia e isso se revelou concretamente nessa ação pe-nal envolvendo Sadia-Perdigão, Minis-tério Público Federal, CVM e SEC. Esses órgãos de prevenção que têm este traba-lho de fiscalização do mercado de capi-tais trabalharam em conjunto e dialoga-ram de forma célere e isso proporcionou efetivamente a primeira condenação cri-minal pelo crime de uso de informações privilegiadas. Então, obviamente, além da criação desses três tipos penais, você tem uma aproximação ou, pelo menos, uma mudança de paradigma por parte do órgão administrativo (CVM) no sentido de reprimir os crimes contra o mercado de capitais, em parceria com o Ministério Público Federal.

O Comercialista – O primeiro caso de uso de informação privilegiada a chegar ao judiciário – conhecido na mídia como “caso Sadia Insider Trading” - foi julgado

Perfilem 2011 em primeira instância e os dois ex-executivos da Sadia foram condena-dos. Um ano após essa decisão, qual im-portância o senhor atribui a ela?

Rodrigo de Grandis – Eu acredito, na verdade, que essa condenação passou uma mensagem importante para o mercado de capitais. Ela teve esse caráter pedagógico. O mercado de capitais não é terra de nin-guém. Existe uma fiscalização, a CVM, do ponto de vista administrativo realiza uma fiscalização e a prática do insider é efeti-vamente crime. E essa condenação deixou muito claro isso. O Brasil, junto com os demais países que reprimem penalmente tal prática (os Estados Unidos, principal-mente), passa efetivamente a, dado seu mercado de capitais, reprimir essa con-duta. É um avanço porque o mercado de capitais brasileiro hoje evoluiu e com isso efetivamente o direito penal vinculado a esse bem jurídico, o mercado de capitais. Essa mensagem, esse aspecto didático, pedagógico, eu diria, é muito importante para os operadores do mercado.

O Comercialista – O senhor atuou em grandes casos e operações enquanto membro do Ministério Público, tais como o Caso Sadia de insider trading e o caso Satiagraha. Em sua opinião, qual a influ-ência que a mídia exerce sobre o desenro-lar desses casos e qual a impacto desses casos no mercado e na comunidade eco-nômica em geral?

Rodrigo de Grandis – É claro que a gente não pode desprezar o fato de que uma grande ação penal envolvendo um crime contra o sistema financeiro ou um crime contra o mercado de capitais causa um impacto econômico. Só que, no MPF, e na área penal, não se trabalha com essa perspectiva. A gente busca investigar um fato delituoso e caso se convença de que

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esse fato foi realmente praticado e é pos-sível atribuir responsabilidade de ofere-cer a denúncia, então nesse primeiro mo-mento a atuação do ministério público é na proteção do bem jurídico tutelado e na aplicação da lei penal. Agora, é difícil você estabelecer um meio termo entre a neces-sidade de, de alguma forma, prestar cons-tas à sociedade através da imprensa e, de outro lado, manter o sigilo que é neces-sário para essas persecuções penais. En-tão, na verdade, nós vivemos, me parece, numa linha que é muito tênue que é a ne-cessidade de você prestar contas à socie-dade e também ao mesmo tempo preser-var o sigilo dos procedimentos. Existem posturas que, ao mesmo que tempo se dá informação à sociedade, resguarda-se o sigilo do processo. Por exemplo: eu acre-dito que o MP só deve se manifestar via imprensa sobre aqueles casos nos quais ele efetivamente atuou, sobre o que ele já fez e não, como acontecia no passado, so-bre o que o ministério público quer ou irá fazer. Acho que esse tipo de coisa não tem sentido, mas é claro, naqueles casos em que não haja qualquer tipo de sigilo, por-que deve-se ter em mente que, em alguns casos, o sigilo envolvendo crimes contra o sistema financeiro visa a garantir uma melhor persecução penal.

O Comercialista – O senhor acredi-ta que a esfera penal seja adequada para proteger o Mercado de Capitais? Quais os fins da pena neste caso? Reformas nos âmbitos cível e administrativo não seriam mais efetivas?

Rodrigo de Grandis – Veja, essa é uma grande discussão que existe hoje no direito penal econômico e também, por consequência, no direito administrativo sancionador. Você tem hoje, na verdade, um conjunto de normas em vários ramos do direito que aparentemente tutelariam

Perfila mesma forma ou a mesma espécie de bem jurídico. Respondendo à sua primei-ra pergunta: não há, a meu ver, a possi-bilidade de se resguardar o bem jurídico protegido, falando num sentindo amplo, o mercado de capitais, a eficiência do mercado ou o preço ótimo, e obviamente que temos nos crimes contra o mercado de capitais bem jurídicos específicos, não há a possibilidade, a meu ver, de se res-guardar isso de forma efetiva senão pelo direito penal e essa é a conclusão, acre-dito, a que chegaram vários países. É cla-ro que persiste a característica do direito penal de ultima ratio, de subsidiariedade. Veja, por exemplo, que no caso mesmo do insider, hoje, ele é reprimido do pon-to de vista administrativo e do ponto de vista penal, mas a esfera administrativa é mais ampla. Por exemplo, na esfera admi-nistrativa hoje é possível sancionar o cha-mado “insider de mercado”, isto é, aquele que não compõe formalmente a sociedade ou a companhia; no âmbito penal, por sua vez, o “insider de mercado” está fora, por-que as especificações ou as elementares do tipo penal não alcançam essa moda-lidade de insider. Então, aparentemente me parece, que não há outra possibilida-de de resguardar esse bem jurídico senão através do direito penal. Inclusive existem muitos estudos estatísticos, diga-se de passagem, que revelam essa realidade. A partir do momento que se penaliza o insi-der e os demais crimes contra o mercado de capitais, você tem uma redução da prá-tica de delitos. Esse estudo ainda não foi feito no Brasil, infelizmente, mas foi feito no direito norte americano e a forma de você reprimir isso do ponto de vista pe-nal inibe a atividade do insider e, na ver-dade, já entra na segunda pergunta, quer dizer, quais os fins da pena neste caso. Parece que o direito penal econômico, e isso é pacífico, tem uma função inibidora. Você previne de forma geral no sentido

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de evitar que o crime seja praticado pelas demais pessoas do mercado. Isso é muito característico no direito penal econômico e, em especial, aqui nos crimes contra o mercado de capitais. Agora, reformas no âmbito cível e administrativo não seriam mais efetivas? Tenho minhas dúvidas, até porque, veja, em relação ao processo administrativo sancionador uma das crí-ticas que se faz é que sobre ele não recai-riam, por exemplo, todas as garantias que existem em relação ao processo penal. Do ponto de vista daquele que praticara o ilí-cito administrativo e também penal, seria mais abrangente, no que tange à ampla defesa e ao contraditório, ser processado na esfera processual penal do que na ad-ministrativa. E se você cogitar de eventual bis in idem, que é uma questão ainda em aberto, isto é, não haveria uma violação ao princípio do no bis in idem. Se houver, então deixemos a esfera administrativa em suspenso, e passemos à esfera penal, porque, dado o caráter de extrema ratio, parece que aqui, aquele que cometeu o crime de insider tem um maior número de ferramentas e garantias para se defen-der da acusação a ele imputada.

O Comercialista – Acredita que a atu-ação da CVM, nas investigações de cri-mes contra o mercado de capitais, e do BACEN, em crimes praticados contra o sistema financeiro nacional tem sido a es-perada?

Rodrigo de Grandis – Eu acredito que tanto a CVM quanto o Banco Central me-lhoraram muito nos últimos anos, em es-pecial a CVM, porque, no passado, tanto ela quanto o Bacen, e a Receita Federal nos crimes tributários, a impressão que eu sempre tive é que esses órgãos tinham uma perspectiva que se restringia à área administrativa. Ninguém se preocupava com o penal. De uns anos pra cá, tanto a

PerfilCVM quanto o Bacen já analisam ilícitos administrativos com potencial penal, já imaginando que tais fatos podem chegar um dia ao Ministério Público. Isso é im-portante porque gera uma comunicação ao MP ainda que não se conclua o pro-cedimento administrativo e o Ministério Público Federal passa a atuar junto e a acompanhar os processos administrati-vos, tornando a instrução criminal muito melhor. Eu acredito, sim, que houve uma evolução; é claro que a atuação não é, di-gamos, a atuação que eu considero per-feita, mas é uma deficiência muito mais de ausência de recursos humanos do que propriamente de vontade política ou de vontade do órgão. Você tem na CVM, por exemplo, gente muito preparada, mas existem poucas pessoas para o mercado de capitais brasileiro. Se você for à CVM com certeza você vai ouvir este discurso: está faltando gente. Esse não, parece, é um problema exclusivo da CVM e do Ban-co Central.

O Comercialista – Os mesmos acusa-dos no caso Sadia fizeram acordo com a SEC (Securities and Exchange Comission, a CVM dos EUA) e desembolsaram uma grande quantia para não serem processa-dos criminalmente nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, a atuação da CVM e a re-solução do caso em âmbito administrativo obsta a propositura de uma ação penal?

Rodrigo de Grandis – De maneira al-guma. O Brasil continua, embora, repito, isso passa por uma discussão dogmática importante, mas o Brasil continua par-tindo do postulado de independência das instâncias. Então, independentemente daquilo que se resolve na esfera adminis-trativa, a esfera penal subsiste de forma absoluta. É claro que do ponto de vista da infração penal, ou do ponto de vista mate-rial, você não pode cogitar de bis in idem,

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mas no caso Sadia-Perdigão houve um aspecto interessante, e eu até concordei com o magistrado nesse sentido: na hora de aplicar a pena pecuniária, por ocasião da sentença condenatória, o magistrado considerou os acordos que foram feitos pelos órgãos administrativos. Isto é, o fato dos insiders, dos agentes terem de-sembolsado recurso e ele, o juiz, diminuiu o valor da pena pecuniária nesse sentido. Eu acho que ele utilizou uma fórmula ou uma adequação de caráter absolutamen-te razoável. Ele foi proporcional, ao que me parece. Em outras palavras, ele con-siderou que a pena pecuniária já havia sido, de alguma forma, cobrada no âmbi-to administrativo e fez aqui uma espécie de “compensação”, que me parece efeti-vamente adequada. Mas, repita-se, pre-valece o princípio da independência das esferas.

O Comercialista – Atualmente existe um convênio entre o MPF e a CVM para o desenvolvimento de atividades de coope-ração. Como ele funciona?

Rodrigo de Grandis – O convênio foi firmado à época do Procurador Ge-ral da República Antônio Fernando e ele, na verdade, estabeleceu como grande avanço a comunicação fluida entre CVM e MPF. Ou seja, nós deixamos de lado a época do formalismo, na qual você se comunicava com o outro órgão apenas e tão-somente por ofícios e aqui você passa, efetivamente, a ter um trabalho mais in-formal e mais célere que, na verdade, vai repercutir na persecução penal, no que tange à aplicação da lei. A comunicação é feita de maneira direta. Eu ligo para o Procurador Geral da CVM, ele vem aqui etc. Há também um trabalho interessante de funcionários da CVM que vem auxiliar o MPF na compreensão de determinada operação do mercado de capitais, porque,

Perfilmuitas das vezes, nós não conhecemos aquela operação e sequer temos formação econômica para conhecer uma operação com toda as suas peculiaridades. Então há esse auxílio. Outro aspecto interessan-te que surgiu a partir desse convênio e ocorreu no caso Sadia-Perdigão foi a pos-sibilidade, prevista na lei 7.492/69, é ver-dade, mas pouco lembrada, da assistên-cia da acusação. A CVM, no caso Sadia, por força de uma provocação do Ministé-rio Público Federal, ela veio a compor a ação penal na condição de assistente da acusação, então, ao que me parece, isso também decorre dessa sintonia fina que o convênio possibilitou.

O Comercialista – Chama-se de “cifra negra” a diferença entre a quantidade de crimes existentes na prática e a quantida-de dos que chegam efetivamente aos Tri-bunais. No caso do crime de uso de infor-mação privilegiada, qual seria a maneira mais efetiva de fazer com que esses crimes fossem investigados, considerando que o mercado pode estar cheio de “insiders”?

Rodrigo de Grandis – Essa questão de cifra negra não é uma questão exclu-siva de crimes contra o mercado de capi-tais. É um problema que permeia todo o direito penal econômico. Essa expressão surge, na verdade, no direito penal eco-nômico porque são crimes com várias peculiaridades e que são praticados em situações de escassa visibilidade, ao con-trário da dita “criminalidade tradicional”, como os crimes praticados com violência, como o roubo. Nos crimes que permeiam o direito penal econômico há uma gran-de expertise por parte dos autores desses ilícitos que, através das várias tecnolo-gias existentes praticam tais atos, que são muito difíceis de serem rastreados, por serem, apenas para exemplificar, prati-cados dentro de bancos e outras institui-

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ções financeiras. Para diminuir essa cifra negra, deve-se partir de uma atividade de prevenção e aqui, propriamente, vai-se utilizar de um termo que é muito caro à lavagem de dinheiro, mas que também se aplica aos crimes contra o mercado, que é o compliance. Você tem as corretoras que, na verdade operam de modo a prevenir a prática de insider, no desenvolvimento de atividades de compliance e de deveres de comunicação, a par do full disclosure e das boas práticas de governança. Parece--me que essa é a ideia propriamente de como se prevenir a prática de uso de in-formações privilegiadas. Se não houver essa, digamos, “antecipação de tutela” por parte do próprio mercado na fase ad-ministrativa, pré-crime, fica muito difícil o trabalho da CVM e do Ministério Públi-co. Em resumo, a diminuição da prática de insider pode se dar pela coibição den-tro do próprio mercado, por meio de seus vários operadores. Se você, por exemplo, trabalha com uma corretora e ela toma essas medidas inibitórias, o autor de insi-der vai, ao menos, evitar realizar o crime naquela corretora ou em alguma outra com o mesmo perfil.

O Comercialista – Muitas pessoas acreditam no jargão popular de que “so-mente pobre vai para a cadeia”. No caso dos crimes contra o mercado e contra o sistema financeiro nacional o senhor acredita ser aconselhável, quando possí-vel, uma multa mais severa e a conversão da pena privativa de liberdade em restri-tiva de direitos para esses casos de “cola-rinho branco”?

Rodrigo de Grandis – Não, eu acredito que, ao contrário do que acontece normal-mente, o chamado “criminoso de colari-nho branco”, conceito este criminológico, de Sutherland, ele é hipersocializado. En-quanto você normalmente fala que a pena

Perfiltem um caráter de socialização ou resso-cialização, no caso do criminoso de cola-rinho branco isso é desnecessário, porque ele não precisa ser ressocializado. Parece--me que o caráter preventivo, inibitório e dissuasório da pena, no aspecto penal, é a pena certa e curta. Ou seja, a pena privati-va de liberdade que o agente tem a certeza que será aplicada e que deve ser curta no sentido de dois, três, até seis meses ou um ano. Acho que tem pouca valia do ponto de vista de proteção de bem jurídico uma bela sentença de 400 páginas em que o criminoso de colarinho branco foi con-denado a 28 anos de pena privativa de li-berdade, mas você, como membro do MP sabe que, do ponto de vista da realidade, ele não vai cumprir sequer um mês desta pena porque ou o processo irá prescrever, por conta da prescrição retroativa, ou ele irá evitar, dado esse sistema recursal ca-ótico que o Brasil vivencia, que ocorra o trânsito em julgado, a par da leitura que o Supremo faz atualmente do “estado de inocência”, que a meu ver é uma leitura muito ampla. Então, na verdade, se você me perguntasse qual seria o ideal, eu res-ponderia que o ideal seria que o agente de colarinho branco tivesse a certeza de que a sentença condenatória, confirmada no Tribunal de segunda instância, ela ime-diatamente passará a ser cumprida. Isso sem falar na pena pecuniária, que tam-bém deverá acompanhar a questão. Aliás, sobre a pena pecuniária, eu discordo do que comumente dizem que o “criminoso de colarinho branco sente mais no bolso”, pois, na verdade, o maior medo de todo criminoso é a pena privativa de liberdade e, se ela for certa, já seria o suficiente para os fins de prevenção.

O Comercialista – No final das contas, o senhor a credita que o mercado de capi-tais encontra-se bem protegido e regula-do atualmente?

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Rodrigo de Grandis – O mercado de capitais é, ao menos no âmbito penal, ra-zoavelmente bem protegido. É o esperado para a nossa realidade. Poderia melho-rar? Sim, mas também é muito melhor do que era no passado não muito remoto.

O Comercialista – Para terminar, qual o maior conselho que o senhor daria para um estudante de direito?

Rodrigo de Grandis – Acho que o es-tudante deve aproveitar a época da Fa-culdade, porque ele vai sentir falta disso tudo depois. Aproveitar também no sen-tido de conhecer a maior gama de maté-rias, de tentar conhecer dentro de uma atividade profissional as várias e várias possibilidades de atuação no direito para que ele possa, no momento oportuno, es-tabelecer aquilo que ele efetivamente vai ser para o resto da vida. Seja como mem-bro do MP, como magistrado, como advo-gado, como diplomata, enfim. Acho que é isso... conhecer o maior número possível de atividades, de matérias, não ficar res-trito a uma determinada área e ter um co-nhecimento universal, que me parece ser a grande finalidade da Universidade.

Perfil

Ernesto Gomes Esteves Neto é estudante do 4° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e estagiário na área de Direito Penal da Procuradoria Regional da República - MPF.E-mail: [email protected]

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Podemos entender auditoria in-dependente de demonstrações con-tábeis, na forma que conceitua a Ameri-can Accounting Association, como “Um processo sistemático de obtenção objeti-va e avaliação de evidências concernentes a afirmações sobre ações econômicas e eventos, para verificar o grau de corres-pondência entre essas assertivas e os cri-térios estabelecidos, bem como os aspec-tos de comunicação dos resultados aos usuários interessados.”(1)

Cuida-se de atividade essencial ao investimento em mercado de capitais, na medida em que, ao fornecer ao investidor e demais usuários da informação contá-bil opinião isenta de terceiro não alinha-do com os interesses da administração da entidade empresarial auditada, auxilia na redução das assimetrias informacionais, na diminuição dos conflitos de agência e, por consequência, no decréscimo dos cus-tos das transações no mercado em geral.

O grande problema passa a existir quando a atividade de auditoria indepen-dente não venha a cumprir o papel que dela seja esperado, principalmente no tocante a informar o usuário, com segu-rança, que as demonstrações contábeis analisadas estejam livres de distorções relevantes (2) e que, portanto, possam ser utilizadas para fundamentar a tomada de decisões econômicas. Tem-se, então, a questão de saber “quando” e “como” res-ponsabilizar civilmente os auditores in-dependentes.

O tema ainda é pouco discutido em nosso ordenamento jurídico e jurispru-dência, embora de muita repercussão no direito comparado. No entanto, tudo in-

Doutrina

dica que, diante do desenvolvimento de nosso mercado de capitais e do aumento dos casos envolvendo erros e fraudes con-tábeis, o assunto venha cada vez mais a ser enfrentado em nossos tribunais.

Discutiremos a seguir apenas dois aspectos que envolvem os pressupostos jurídicos para a efetivação dessa respon-sabilidade, quais sejam: (1) a natureza da responsabilidade do auditor (objeti-va ou subjetiva); (2) o regime adotado, a esse respeito, pela legislação brasileira. Maiores detalhes poderão ser encontra-dos pelo leitor em nossa obra Audito-ria das Demonstrações Contábeis: uma abordagem jurídica e contábil (Ed. Atlas, 2011).

Uma das maiores controvérsias envolvendo a responsabilidade civil dos profissionais de auditoria é a exigência ou não do requisito culpa para configuração da responsabilidade.

A doutrina majoritária costuma ba-sear a ideia de responsabilidade subjetiva no descumprimento de um dever de cui-dado, enquanto a responsabilidade obje-tiva encontraria fundamento no conceito de criação de risco, mais precisamente na contrapartida econômica suportada pelo beneficiário da situação de perigo, que deveria também carregar os ônus corres-pondentes ao ganho auferido (ubi emolu-mentum ibi onus).

Qualquer que seja o fundamento adotado para legitimar os sistemas men-cionados, é fato que o regime de responsa-bilidade subjetiva (negligence liability), baseando sua incidência na consideração de culpa ou negligência, tem como ele-mento fulcral a ineficiência da conduta em

A responsabilidade civil dos auditores independentes no ordenamento jurídico brasileiro

por Alexandre Demetrius Pereira

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comparação com padrões exigidos, en-quanto o regime de responsabilidade ob-jetiva (chamado por alguns de regime de responsabilidade incondicional ou strict liability) preconiza a responsabilidade do causador do dano independentemente de qualquer consideração sobre a natureza ou forma de sua atuação externa.

Obviamente, entre os extremos da responsabilidade objetiva e subjetiva existe um grande número de hipóteses in-termediárias, várias delas marcadas por inversões do ônus de prova de culpa, ou mesmo pela possibilidade de atenuações ao rigor da responsabilização do causador diante de causas específicas que contribu-íram para o evento (causas de exclusão de responsabilidade).

Passemos inicialmente à análise das vantagens e desvantagens, sob o ponto de vista da Análise Econômica do Direi-to (law and economics), dos sistemas de responsabilidade baseados na negligência ou na responsabilização objetiva.

Por um primeiro ponto de vista, podemos confirmar que os danos causa-dos pela atividade de auditoria podem ter como causa a conduta ou omissão de mais de uma das partes envolvidas na ati-vidade em análise (auditor, contratante ou usuário). De fato, o prejuízo decorren-te da utilização do resultado da audito-ria (parecer ou relatório) pode derivar de um defeito inerente à auditoria em si, ou mesmo, e.g., à falta de cuidado do usuá-rio em relação aos limites das conclusões da auditoria (o que configuraria eventual negligência contributiva da vítima ao re-sultado danoso).

Nessa linha, o sistema de respon-sabilidade subjetiva, em se tratando de infortúnios cuja causa possa residir na conduta de ambas as partes (infortú-nios bilaterais), tende a gerar melhores incentivos econômicos para que todos os envolvidos tomem as devidas precau-

Doutrinações, ao contrário da regra de responsa-bilidade objetiva incondicional, atribuída unicamente a uma das partes (no caso, o auditor), que não incentivaria a vítima a também atuar com o devido cuidado em evitar o dano.

Outro ponto a ser analisado no co-tejo dos dois sistemas de responsabiliza-ção é a possibilidade de erros nas decisões judiciais.

A esse respeito, não há uma pre-ferência clara por um dos sistemas; isso porque cada qual apresenta pontos em que o erro judicial se apresenta mais ou menos provável. A responsabilidade sub-jetiva pode favorecer a impunidade do auditor, mesmo quando este seja culpa-do, se a vítima, diante das dificuldades de prova da culpa, não conseguir evidenciar esse requisito em juízo. Por seu turno, a responsabilidade objetiva pode levar à punição do auditor que tenha tomado to-dos os cuidados devidos e esperados, o que também se afigura como uma situa-ção injusta, em princípio.

Finalmente, há de se analisar os custos judiciais que ambos os sistemas acarretam. Nesse aspecto, o sistema de responsabilidade subjetiva, tende a gerar maiores custos probatórios, uma vez que exigirá maior atividade das partes e do juízo na produção da prova da culpa, ao contrário do sistema de responsabilidade objetiva, em que tal produção probatória não será, em regra, necessária.

No entanto, o sistema de respon-sabilidade objetiva, ao tornar mais fácil a responsabilização do auditor, tende a incentivar o ingresso de demandas con-tra esse profissional perante o Poder Ju-diciário, estimulando, em alguns casos, a litigância oportunista, o que acarreta, da mesma forma, incremento nos custos ju-diciais.

Dentre as duas alternativas su-pracitadas, portanto, entendemos que a

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melhor solução é a adoção de sistema in-termediário, qual seja, responsabilidade civil subjetiva, com presunção de culpa do auditor, quando se evidenciar a exis-tência de dano derivado da conduta deste.

A vantagem da adoção de regra de presunção de culpa parece-nos evidente.

Primeiramente, mantém o siste-ma de incentivo à realização dos esforços de ambas as partes envolvidas: auditor e vítima do dano, na vigência dessa regra, continuam a ter incentivos para não ope-rar de forma negligente.

A presunção de culpa, por outro lado, evita um dos maiores problemas do sistema de responsabilidade subjetiva pura, em que o ônus da prova fica a cargo da vítima, qual seja, o de dificultar em de-masia a prova, correndo o risco de deixar impune o autor do dano.

Como se sabe, a atividade de audi-toria envolve ampla gama de trabalhos, de natureza técnica, frequentemente re-alizados por diversas pessoas de modo difuso e complementar. Isso dificulta em demasia a tarefa da vítima em provar a culpa do auditor, uma vez que, para de-sincumbir-se de seu ônus, necessitará ter conhecimento minucioso dos trabalhos realizados, além de conhecer os aspectos técnicos envolvidos. Deixando-se a cargo do auditor a prova de que sua conduta foi adequada, este tem todas as condições técnicas de fazê-lo com muito menor es-forço, proporcionando situação superior em termos de equilíbrio na distribuição do ônus probatório.

A presunção de culpa evita igual-mente o problema antes mencionado no sistema de responsabilidade objetiva incondicional, qual seja, o de responsa-bilizar o suposto autor do dano, mesmo que sua conduta seja eficiente e cautelo-sa, dentro do devido e esperado. Poden-do provar, com efeitos positivos, que sua conduta não foi culpável, o auditor tem

Doutrinacondições de evitar eventual erro judicial ou decisão injusta.

Por fim, num sistema com culpa presumida, fica reduzida a litigiosidade judicial, evitando estímulos ao ingresso de processos por causas temerárias, dian-te da maior dificuldade de se obter a res-ponsabilização do auditor, ao contrário do que ocorre num sistema de responsa-bilidade objetiva incondicional.

O sistema também traz vantagens em relação aos custos de demonstração de culpa (ou de sua ausência). Efetiva-mente, é de se considerar que a atribuição do ônus da prova ao auditor é menos cus-tosa do que deixar essa tarefa à vítima do dano, já que o auditor dispõe de conhe-cimento e provas técnicas que podem ser produzidas e/ou apresentadas em juízo com menores custos.

Cabe agora verificar qual regime foi adotado na legislação brasileira.

Para o caso de responsabilidade contratual do auditor, a regra primordial a incidir sobre a matéria é a existente no art. 389 do Código Civil, segundo a qual não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e ho-norários de advogado.

No caso de responsabilidade con-tratual, provado o inadimplemento da obrigação, a doutrina é pacífica em admi-tir que a culpa do devedor será presumi-da, bastando ao contratante que sofreu o prejuízo provar o inadimplemento e o dano derivados da conduta do devedor.

Em termos de responsabilidade ex-tracontratual, entretanto, podem surgir dúvidas sobre o regime adotado.

A regra do art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 estabelece que as empresas de auditoria contábil ou auditores contábeis independentes responderão, civilmente, pelos prejuízos que causarem a terceiros

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em virtude de culpa ou dolo, adotando claramente uma regra de responsabilida-de civil subjetiva.

No entanto, a relação que se esta-belece entre terceiro (usuário externo) e auditor tem natureza de consumo, uma vez que o terceiro prejudicado pela ativi-dade do auditor se equipararia ao consu-midor, em razão de ser vítima de acidente de consumo.

O Código de Defesa do Consumi-dor, por sua vez, estabelece em seu art. 14 uma regra de responsabilidade objetiva, estatuindo que o fornecedor de serviços responde, independentemente da exis-tência de culpa, pela reparação dos da-nos causados aos consumidores por de-feitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e ris-cos. Essa regra poderia ser excepcionada apenas no caso de auditor pessoa física, uma vez que no art. 14, § 4o, do CDC, ressalta-se que a responsabilidade pesso-al dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Esse conflito de normas pode gerar várias interpretações, dentre as quais ci-tamos: (1) a regra do art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 está revogada pelas normas do CDC, dado que este é legislação pos-terior; (2) o sistema de responsabilidade subjetiva aplica-se somente aos auditores que não atuem no mercado financeiro ou de capitais e aos auditores pessoas físi-cas, uma vez que o art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 só incide sobre a atividade dos auditores registrados na CVM que atuem nesses mercados, e o próprio CDC deter-mina a aplicação das regras de responsa-bilidade subjetiva aos profissionais libe-rais. Aos demais auditores aplicar-se-ia a regra de responsabilidade objetiva; (3) por se tratar de lei especial, o art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 afasta a aplicação dos dispositivos do CDC em relação ao regime

Doutrinade responsabilidade do auditor indepen-dente.

Dessas interpretações citadas, pre-ferimos claramente a terceira.

Isso, porque a primeira não pode ser aceita em virtude de que, sendo legis-lação especial que regula a responsabili-dade do auditor, o art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 não pode ter sido revogado pelo CDC, ainda que este seja posterior. Pre-valece aqui o princípio da especialidade sobre o da anterioridade no conflito de normas.

A segunda interpretação também nos parece inviável, dado que aplicaria regra mais severa de responsabilidade justamente aos profissionais de auditoria que teriam menor porte econômico (au-ditores não registrados na CVM), para fa-zer frente às vultosas indenizações a que estariam sujeitos, deixando regra mais favorável aos de maior porte econômico (auditores registrados na CVM).

Assim, a única interpretação viável nos parece aquela segundo a qual a regra do art. 26, § 2o, da Lei n. 6.385/76 afasta a aplicação do CDC, por se tratar de nor-ma especial que regula a responsabilida-de do auditor.

É bem verdade que este art. 26, § 2º, não faz menção ao ônus da prova, que, como regra, permaneceria a cargo da víti-ma.

No entanto, entendemos que, pos-suindo o auditor uma obrigação de re-sultado (assegurar que as demonstrações não contenham distorções relevantes), à vítima ficará apenas a incumbência de provar que este mesmo resultado não foi atingido, evidenciando unicamente o dano e o nexo de causalidade com a ação ou omissão do auditor, cabendo a este provar que não obteve o resultado por circunstância alheia a sua conduta. O re-sultado prático é, da mesma forma, a in-versão do ônus probatório.

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Concluímos, portanto, que o siste-ma mais adequado para a responsabili-zação do auditor, sob o ponto de vista da Análise Econômica do Direito é o de pre-sunção de culpa. Na mesma linha, enten-demos que é este o sistema adotado pela legislação brasileira nesta matéria.(3)

Notas (1) AMERICAN ACCOUNTING ASSOCIATION.

A statement on basic auditing concepts. Accounting Re-

view, v. 47, 1972.

(2) Lembramos que, ao contrário do que se possa

esperar do trabalho de auditoria independente, tal ativi-

dade não tem como função firmar declarações de certeza

quanto aos lançamentos que fizeram parte das demonstra-

ções contábeis, mas meramente aferir se delas não cons-

tam distorções relevantes, ou seja, que poderiam, em tese,

influenciar na tomada de decisões do usuário da informa-

ção contábil. Veja-se, por exemplo, o item 5 da Resolução

CFC n. 1.203/09, que aprova a NBC TA n. 200 (objetivos

gerais do auditor independente e a condução da auditoria

em conformidade com normas de auditoria), cuja transcri-

ção ora se faz necessária, com grifos nossos: “Como base

para a opinião do auditor, as NBC TAs exigem que ele ob-

tenha segurança razoável de que as demonstrações con-

tábeis como um todo estão livres de distorção relevante,

independentemente se causadas por fraude ou erro. As-

seguração razoável é um nível elevado de segurança. Esse

nível é conseguido quando o auditor obtém evidência de

auditoria apropriada e suficiente para reduzir a um nível

aceitavelmente baixo o risco de auditoria (isto é, o risco de

que o auditor expresse uma opinião inadequada quando as

demonstrações contábeis contiverem distorção relevante).

Contudo, asseguração razoável não é um nível absoluto de

segurança porque há limitações inerentes em uma audito-

ria, as quais resultam do fato de que a maioria das evidên-

cias de auditoria em que o auditor baseia suas conclusões

e sua opinião, é persuasiva e não conclusiva.”

(3) Muito embora não trate do tema relativo ao

ônus da prova da culpa, o extinto Primeiro Tribunal de Al-

çada Civil de São Paulo, nos autos da apelação n. 1218741-

6, bem retratou que a responsabilidade do auditor exter-

no, em nossa legislação, é subjetiva, não havendo o que se

falar em responsabilidade objetiva na hipótese.

DoutrinaAlexandre Demetrius Pereira é doutor em Direito Comercial pela Universida-de de São Paulo (USP), graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP e es-pecialista em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP (POLI-USP) e em Gestão de Negócios pela Funda-ção Getúlio Vargas. Profissionalmente atua como promotor de justiça (MPSP) e professor de pós-graduação da POLI--USP.

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O Sistema Alemão de Governança Corporativa

Doutrina

Um Modelo de Renovação

por Guilherme Schimidt Garcia

INTRODUÇÃO

Por 400 anos, o direito societário tentou resolver o problema nuclear da governança corporativa: a separação en-tre propriedade e administração da com-panhia. A análise do funcionamento dos órgãos de administração das companhias é um dos campos mais importantes no es-tudo comparado e interdisciplinar, cons-tando nas agendas internacionais de re-formas e modernizações legislativas. Na Europa, a governança corporativa só se tornou uma disciplina autônoma aos fins do último milênio.

Entre os países europeus, a Ale-manha e o Reino Unido são paradigmas dos sistemas dualista e monista de ad-ministração corporativa. O modelo mo-nista, com administradores executivos e não executivos, encontra no Reino Unido sua expressão mais tradicional. De outro lado, a Alemanha emprega o dualismo na administração, composta pela Diretoria e pelo Conselho Supervisor. Essa separa-ção estrutural é obrigatória para todas as sociedades anônimas alemãs. Enquanto a diretoria tem a clara atribuição de ge-rir os negócios da sociedade, o papel do Conselho Supervisor não é tão fácil de de-linear. No presente artigo, vamos tratar separadamente de cada órgão, com maior ênfase ao Conselho. Antes, porém, um breve retrospecto ajudará a entender o surgimento e o funcionamento da gover-nança corporativa alemã.

BREVE RETROSPECTO

A Alemanha terminou seu proces-so de unificação apenas em 1871. Apesar disso, suas companhias foram capazes de, em escassos 40 anos, tomar o lugar do Reino Unido como a maior força indus-trial da Europa. A Alemanha incorporou um tipo diferente de capitalismo: enfati-zou a cooperação no lugar da competição (estimulada no mundo anglo-saxão) e ou-torgou ao Estado o papel de liderança no desenvolvimento industrial.

Por volta de 1900, havia 4 diferen-ças estruturais notáveis entre o modelo de companhia alemão e o modelo anglo-sa-xão, a saber: (i) presença e influência dos bancos nas companhias, (ii) permissão de acordos entre as empresas (a legisla-ção antimonopólio não só era inexistente, como os acordos entre as empresas para regular preços e fatias do mercado rece-biam acolhida nos tribunais e eram vistos como positivos para o desenvolvimento do país), (iii) dualismo dos órgãos de ad-ministração, e (iv) ênfase na responsabi-lidade social das companhias (no início, a responsabilidade social era voluntária e alguns empresários concediam seguro de vida, seguro saúde e pensão aos em-pregados; mais tarde, algumas leis sociais foram promulgadas e, em 1891, Bismar-ck introduziu o sistema de “co-determi-nação”, garantindo formalmente voz aos empregados na administração das com-panhias).

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DIRETORIA

A Diretoria é responsável pela ad-ministração autônoma da companhia, ou seja, possui a responsabilidade executiva direta da corporação, levando em conta os interesses dos acionistas, seus emprega-dos e outros stakeholders. Seus membros devem, portanto, exercer a máxima dili-gência na administração da companhia e devem guardar sigilo sobre informações confidenciais. Em caso de quebra de de-ver, serão responsabilizados pelos danos causados à companhia.

A Diretoria deve desenvolver a es-tratégia com que a empresa atuará no mercado e se assegurar de que a estratégia traçada seja cumprida em conformidade com a lei e com o estatuto. É também seu papel controlar o risco das operações e contratar profissionais para cargos vagos de gerência, devendo levar em especial consideração profissionais do sexo femi-nino.

Os membros da Diretoria não po-dem favorecer outros interesses que não os da companhia em que atuam e devem total transparência, sem atraso na di-vulgação de informações. Ademais, cada membro só pode exercer cargos em ou-tras empresas mediante autorização do Conselho.

CONSELHO SUPERVISOR

Suas funções legais são, essencial-mente, a nomeação, supervisão e afas-tamento dos membros da Diretoria. Re-centemente, funções mais ‘leves’ lhe têm sido atribuídas (inclusive na jurispru-dência), tais como intermediação com os ‘stakeholders’ e equilíbrio de interesses dentro da companhia, principalmente em situações delicadas.

O Conselho Supervisor controla a gestão da companhia, a observância das

Doutrinaatividades sociais à lei a ao estatuto e mo-nitora, ainda, as estratégias de negócio. Não pode envolver-se diretamente na gestão da companhia, o que não impede a sujeição de algumas transações específi-cas à sua aprovação.

É também responsável por promo-ver as ações judiciais cabíveis contra os membros da diretoria. (Obs.: a aborda-gem dos tribunais alemães a respeito da responsabilidade da quebra do dever de diligência é a mesma da business judg-ment rule, isto é, os diretores agiram cor-retamente se restar comprovada conduta no interesse da companhia e em confor-midade com as informações disponíveis ao tempo das ações investigadas).

O Conselho tem direitos específi-cos para inspecionar e examinar os livros sociais, registros e bens da sociedade. A função de supervisão é, por um lado, re-lacionada ao passado, pois controla a di-ligência das condutas já praticadas pelos diretores. Por outro lado, preventivamen-te supervisiona a Diretoria e as operações correntes, mas não as atividades ligadas ao dia-a-dia.

O Conselho Supervisor é presidido pelo presidente, que controla suas ativi-dades, preside suas reuniões e lhe repre-senta os interesses frente à Diretoria. A base normativa para a realização das ta-refas do Conselho tem sido densificada por reformas recentes na Lei das Socieda-des Anônimas, na Lei de Supervisão das Companhias e Transparência, na Lei de Transparência Corporativa e Notificação e na Lei de Integridade Corporativa. Al-gumas das mais importantes alterações foram:

- aprimoramento dos relatórios da Diretoria destinados ao Conselho Super-visor;

- comunicação obrigatória de um catálogo de ações que requeiram aprova-ção do Conselho;

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- aprimoramento dos direitos à in-formação de cada membro do Conselho;

- aprimoramento e intensificação da cooperação entre Conselho e auditor fiscal.

Além de mudanças legislativas, foi criado em 2002 o Código Alemão de Go-vernança Corporativa, de caráter auto re-gulatório e com o objetivo de tornar a go-vernança corporativa mais transparente e compreensível. O Conselho é obrigado a declarar anualmente se seguiu ou seguirá as recomendações desse Código, ou então quais seguiu e quais não seguiu, respon-sabilizando-se por não ter seguido o que declarou seguir.

REGIME DE CO-DETERMINAÇÃO

O número de membros do Conse-lho varia de acordo com o número de em-pregados da empresa. Com a exceção de regulações especiais aplicáveis às indús-trias do carvão, ferro e aço, os emprega-dos podem eleger um terço ou metade dos membros do Conselho. De acordo com a legislação alemã, as companhias com pelo menos 500 empregados (e menos de 2.000) terão um terço dos membros do Conselho eleito pelos empregados. Quando houver mais de 2 mil emprega-dos, estes elegerão metade dos membros. Em grandes empresas, isso equivale a 10 membros do total de 20.

O objetivo da co-determinação é promover confiança, cooperação e har-monia. Do ponto de vista da companhia, a co-determinação permite que desconten-tamentos ou conflitos sociais sejam desde logo verificados e que greves sejam de-sestimuladas. Ademais, permite o conta-to e o balanceamento de interesses entre os representantes dos empregados e dos acionistas.

Essa participação dos represen-tantes dos empregados no Conselho já

Doutrinalevantou mais críticas que elogios, pois esse modelo causa inúmeras implicações para a governança da corporação. Entre os principais pontos tratados, está o fato de que os representantes dos empregados frequentemente não são tratados como colaboradores substanciais no processo deliberativo. Na verdade, a co-determi-nação não é vista nem como positiva nem como negativa pelos acionistas, o que leva à suspeita de sua irrelevância. Mesmo nas companhias com total paridade na elei-ção dos membros do Conselho, é o voto de minerva do presidente da empresa que resolve um possível empate, sendo que o presidente, por lei, é sempre escolhido pelos acionistas.

Outra questão apontada pelos críti-cos desse sistema é a suposta não obser-vância do dever de sigilo pelos membros representantes dos empregados. Além disso, também já se levantou a falta de conhecimento de contabilidade e finan-ças entre esses membros do Conselho, o que diminui significativamente a partici-pação dos empregados nas deliberações da companhia, uma vez que tais conheci-mentos são de fundamental importância para a correta compreensão e análise das atividades sociais.

Junto com as críticas ao sistema de co-determinação, aponta-se o excessivo número de membros do Conselho Super-visor e a rígida obrigatoriedade de dois órgãos na administração das companhias. Um Conselho um pouco mais enxuto e a possiblidade de optar entre os sistemas monista ou dualista seria um avanço na governança corporativa alemã.

Nos últimos anos, houve diversas tentativas legislativas de limitar o tama-nho do Conselho e alterar a estrutura da co-determinação, mas todas falharam de-vido aos grupos de interesse ligados aos empregados que temem perda de influên-cia nos negócios sociais.

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Para contornar esse problema, fo-ram feitas recentes alterações na lei e no Código Alemão de Governança Corpo-rativa de recomendações, estabelecen-do comitês no conselho. Os comitês, em contraste com grandes Conselhos em co--determinação, podem deliberar mais rapidamente, facilitar o intercâmbio de ideias, atuar com mais agilidade no mo-nitoramento das atividades da diretoria e reunir-se com mais facilidade e com mais frequência.

CONCLUSÃO

Os padrões alemães de governan-ça corporativa estão mudando. Não ape-nas esforços legislativos têm sido feitos, mas também auto regulatórios, a fim de aumentar a eficiência da gestão das com-panhias. As novas regras têm contribuído para a cooperação entre auditoria e Con-selho e têm aumentado o fluxo de infor-mação entre os órgãos corporativos.

Visando sempre aprimorar a admi-nistração, o sistema alemão parece estar conseguindo lidar com suas fraquezas e driblar os obstáculos que se apresentam. A exemplo, destacamos a criação de pe-quenos comitês com maior habilidade de lidar com questões rápidas sem quebrar a estrutura já consolidada do Conselho Supervisor. Abandonar o sistema da co--determinação não parece ser uma opção, mas diminuir o número total de membros do Conselho e torná-lo mais ágil poderá ser uma das alterações que estão por vir.

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Guilherme Schimidt Garcia é estudante do 4° ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.E-mail:[email protected]

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2° Congresso Brasileiro de Direito ComercialEventos

por Paula A. Forgioni

O que é o Direito Comercial e quais são seus vetores de funcionamento? Qual o seu papel no Brasil de hoje?

Apenas nos últimos anos está sen-do possível responder a essas questões. O objeto do Direito Comercial não é o mes-mo ao longo de sua história --- e isso di-ficulta a compreensão de sua função na sociedade moderna. Somente a partir da consolidação do direito do consumidor, o “núcleo duro” do Direito Comercial con-temporâneo veio à tona, expondo uma sé-rie de problemas cuja solução ainda não é dada pela dogmática tradicional.

1. Primeiro, a empresa não é algo estático, mas dinâmico. Não gravita em torno do empresário, mas das relações que mantém com outros agentes econô-micos. O objeto do Direito Comercial tem a ver não com a empresa isolada, como se acreditava nos anos 50, mas com a disci-plina jurídica do mercado.

A releitura dos principais autores do século passado demonstra que a com-preensão da empresa aponta-a “para den-tro”, sempre em torno daquela pessoa físi-ca que organizava os fatores de produção. Contudo, debruçar-se sobre a interação da empresa com outros agentes econômi-cos, sobre suas relações, sobre os condi-cionamentos que sofre durante sua ação – i.e., considerá-la no mercado – volta-a “para fora”, em direção à realidade. Re-pise-se: o exame centrado no empresário “fecha” o espectro de análise, dobrando a empresa sobre si mesma; o deslocamento do estudo para o mercado “abre” o campo de investigação.

O direito mercantil rumou “do ato à atividade”. Agora, compreendemos que

essa atividade conforma e é conformada pelo mercado – dele tirando sua unicida-de e sentido. No passado, os comercia-listas dedicaram-se à edificação da teo-ria jurídica da empresa; hoje, revela-se o momento de construir a teoria jurídica do mercado.

2. Outro problema é que o Direito Comercial marca-se por forte tra-dição liberal. Seu cerne seria constituído quase que exclusivamente por regras e princípios bordados pela praxe dos agen-tes econômicos. A visão tradicional carre-ga consigo a idéia de que se deve evitar a intervenção sobre o mercado, entregan-do a disciplina das empresas a elas pró-prias: maior o espaço deixado à autono-mia privada, mais azeitado seria o fluxo de relações econômicas. Porém, no atual momento, é preciso reconhecer a impor-tância das normas exógenas ao mercado para sua existência e disciplina. Há de se superar o viés excessivamente privatista do Direito Comercial, inclusive em seu ensino.

Essa perspectiva permite concluir que o Direito Comercial longe está de ser apenas servo do mercado ou da raciona-lidade econômica. Sua missão não é a de mero abençoador do comportamento dos agentes, como se o mercado independes-se de balizamentos. Em uma frase: assim como toda a ordem jurídica, o Direito Co-mercial, especialmente em sua dimensão exógena, aí está para subjugar os deter-minismos econômicos e implementar políticas públicas – outras além do mero apoio ao desempenho das atividades eco-nômicas privadas.

Repita-se: a função do Direito Co-

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mercial ata-se à implementação de polí-ticas públicas; não se esgota na busca do incremento do tráfico, desdobrando-se também na determinação do papel que o mercado desempenhará na alocação dos recursos em sociedade.

3. O terceiro problema liga-se ao ensino do Direito Comercial. Muitas escolas estão preocupadas apenas que seus alunos passem no exame da Or-dem dos Advogados do Brasil --- que tra-dicionalmente se mostra um desastre na parte referente ao Direito Comercial, per-guntando coisas de menor importância ou que exigem apenas memorização. Isso nada tem a ver com o Direito Comercial Brasileiro e muito menos com os estudos que desenvolvemos aqui na Faculdade.

É preciso preservar a liberdade para estudar o Direito Comercial não como um servo do mercado, mas como fator de transformação e formatação desse pró-prio mercado.

4. Por conta de tudo isso, a im-pressão que se tem é que simplesmente se parou de pensar o Direito Comercial como um todo, dando-se muito mais im-portância a seus institutos isolados. As conseqüências disso foram principalmen-te duas, ambas nefastas: o total despres-tígio do Direito Comercial como matéria e uma confusão infinita sobre seus prin-cípios peculiares --- ou vetores de funcio-namento, como prefiro chamá-los.

É preciso compreender que o di-reito mercantil é regido por princípios próprios, desvelando especificidade in-trínseca – “lógica autônoma e princípios orgânicos”, na súmula de IRTI. Ou, como prefere OSCAR BARRETO FILHO, “a existência de princípios próprios, impos-tos pelas exigências econômicas, que lhe atribuem a almejada dignidade científi-ca”. Um direito especial nasce e se man-tém em virtude da singularidade de seus princípios jurídicos.

EventosGravitando cada ramo do direito ao

redor de sua lógica própria, a identifica-ção de seus vetores de funcionamento é necessária para a calibração das várias disciplinas jurídicas. Não se trata de lote-ar o direito à força, dividindo-o em áreas artificialmente estanques, nem de isolar o Direito Comercial da realidade em um estéril positivismo, mas de reconhecer, como apontado por TEIXEIRA DE FREI-TAS, que “coisas diversas, e distintas, dis-tintamente se devem tratar”. Deveras, “a regulamentação jurídica não pode trans-curar a realidade econômica e social e não pode, portanto, sujeitar a idêntica disci-plina fenômenos essencialmente diver-sos” [FERRI]. A relação entre empresas aparta-se daquela estabelecida entre as empresas e os consumidores, ou entre a empresa e os trabalhadores.

5. A idéia de um Congresso Bra-sileiro de Direito Comercial surge obser-vando o verdadeiro ostracismo ao qual havia sido condenada a matéria. Dizía-mos, jocosamente, que “comercialistas são uma raça em extinção” e um Congres-so, reunindo Academia e profissionais ligados à prática, em muito contribuiria para a “redescoberta” desse ramo do di-reito absolutamente indispensável ao progresso econômico.

A primeira edição coroou-se de su-cesso e muito fez para o reposicionamento do Direito Comercial no cenário jurídico nacional. Por toda a parte, inclusive nos tribunais superiores, pululam seminários cujos temas discutem os princípios do Di-reito Comercial. Isso seria impensável há apenas alguns anos!

O Direito Comercial surge da rea-lidade. É fruto da interação entre regras positivas, práxis e atividade dos tribu-nais. A vida econômica não para. O Con-gresso de Direito Comercial é uma grande oportunidade de destrinçar juridicamen-te esse ambiente institucional, debatendo

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idéias e aprofundando nossa compreen-são do cenário brasileiro e das diretrizes que regem a atividade empresarial, neste momento de acentuado desenvolvimen-to econômico do nosso País. Se o mundo volta os olhos para o nosso mercado, é preciso que nós mesmos compreendamos e aperfeiçoemos os mecanismos jurídicos que lhe dão sustentação.

Paula Andrea Forgioni é Pro-fessora Titular e Chefe do Departa-mento de Direito Comercial da Fa-culdade de Direito da Universidade de São Paulo.E-mail: [email protected]

Eventos

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O tema Direito e Economia tem sido bastante frequente na revista “O Comer-cialista”, marcando presença no editorial da primeira edição (Ramunno; Trairi, 2011) e em um artigo do segundo número (Nimer, 2011). A importância do tema é clara: apesar de, ao longo da evolução da sociedade, ter prevalecido uma tendência de especialização e separação das ciên-cias, a atual complexidade das relações humanas exige que abordagens diferen-tes dialoguem entre si e busquem solu-ções conjuntas para os problemas con-temporâneos. Certamente, esse é o caso de Direito e Economia. Ambas as ciências buscam explicar as relações humanas por meio de ferramentas bastante diferentes, porém complementares. Por essa razão, é importante que economistas e juristas troquem conhecimentos com uma frequ-ência maior do que a atual. Essa é uma das propostas da revista “O Comercialis-ta” e é objetivo deste artigo, haja vista que este é um texto escrito por um estudante de Economia para leitores cujo foco é o Direito.

Para ilustrar as variadas formas de diálogo entre a aplicação do Direito e as técnicas da Economia, discute-se, neste artigo, a Defesa da Concorrência, espe-cificamente a análise de concentrações horizontais. Para tanto, o texto se divide em três seções. A primeira fornece uma breve explicação sobre como se estrutura, tradicionalmente, a Defesa da Concorrên-cia e quais são seus principais desafios. A segunda mostra ferramentas econômicas que podem ajudar na aplicação do Direi-to Concorrencial. Por fim, a última seção busca estabelecer um diálogo entre o es-

Doutrina

tudo do Direito e o da Economia.

Defesa da Concorrência

Concorrência é uma palavra mui-to apreciada no meio econômico. Caso haja concorrência perfeita (compradores e vendedores são tomadores de preço e há livre entrada e saída), agentes autoin-teressados alcançarão um equilíbrio efi-ciente, maximizando o bem-estar social. Quando economistas defendem o livre mercado, eles fazem uso desse modelo. Todavia, modelos são baseados em hipó-teses simplificadas e estas podem ser boas em algumas situações e não razoáveis em outras. O pressuposto de concorrência perfeita se encaixa, com frequência, no segundo caso.

Essa é a razão de ser da Defesa da Concorrência. Com o intuito de proteger a competição e seus resultados econômi-cos de maximização do bem-estar social, surge um ramo do Direito cuja importân-cia é crescente. Órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrên-cia (CADE) tornaram-se mais relevantes e suas decisões passaram a ser acompanha-das pela imprensa, principalmente quan-do estas envolvem concentrações hori-zontais, popularmente conhecidas como fusões1.

Quando duas grandes empresas anunciam uma fusão, como ocorreu no caso Sadia & Perdigão e ocorre no caso Gol & Webjet, o CADE deve analisar os potenciais impactos que essa maior con-centração terá sobre a concorrência, so-bre o bem-estar do consumidor e sobre os preços do setor afetado. Para tanto, costu-

Direito Concorrencial: como a Economia pode contribuir para sua aplicação

por Vítor Augusto Possebom

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ma-se definir o mercado relevante e ana-lisar o índice de Herfindahl-Hirschman , que é a soma dos quadrados da parcela de mercado de cada uma das empresas.

Essa abordagem tradicional apre-senta três problemas: (i) a definição do mercado relevante pode ser tênue, como argumenta Forgioni (2008), (ii) o índice Herfindahl-Hirschman2 supõe que o mer-cado relevante seja composto de um bem homogêneo, isto é, um bem cujas diferen-ças qualitativas não são importantes para os consumidores e (iii) a análise não con-sidera o comportamento das firmas no mercado, ou seja, se elas se posicionam de forma agressiva, cortando custos e re-duzindo preços.

A Economia oferece possíveis solu-ções para esses três problemas e essas se-rão o tópico da próxima seção.

Ferramentas econômicas úteis na análise de concentrações horizon-tais

O primeiro problema, a definição do mercado relevante, é usualmente re-solvido de forma subjetiva. Pode-se per-guntar aos produtores se existe alguma forma de substituição pelo lado da ofer-ta entre o bem A e o bem B; ou indagar os consumidores sobre a possiblidade de eles pararem de consumir o bem X para consumirem o bem Y; ou ir ao supermer-cado e ver se a disposição dos produtos na gôndola sugere que os consumidores podem substituir o bem W pelo bem Z; ou, como ilustra Forgioni (2008), pode--se ir a restaurantes, tirar fotos das mesas e argumentar que o mercado relevante da fusão entre duas marcas de refrigerante é o mercado de bebidas alcóolicas e não--alcóolicas, pois é possível encontrar, na mesma mesa, pessoas consumindo vinho e refrigerantes. (Esse argumento foi le-

Doutrinavantado em uma análise de concentração horizontal na Itália.)

Para tentar trazer objetividade, a Economia oferece a estimativa empírica da demanda. Por meio da estatística, é possível estimar a elasticidade cruzada da demanda, cujo valor é a resposta para a seguinte pergunta: “Se o preço do produto A aumenta 1%, qual será o impacto sobre a quantidade consumida do produto B?”. Se a elasticidade cruzada da demanda for elevada, há grande substituição, aos olhos do consumidor, entre os produtos A e B e estes devem integrar o mesmo mercado relevante. Se for baixa, o consumidor não substitui esses dois produtos e eles de-vem ser considerados como pertencentes a mercados diferentes.

Essa técnica já foi empregada pelo CADE na análise da compra da Matte Leão pela Coca-Cola, detentora da marca Nestea (AC nº 08012-001383/2007-91). Na discussão do mercado relevante, os advogados tentaram argumentar que o mercado relevante de chá mate é diferen-te do mercado de chá preto e, depois, que o mercado relevante de chá mate é todo o mercado de bebidas alcóolicas e não-al-cóolicas. Porém, provavelmente, o verda-deiro mercado relevante deveria se situar entre esses dois extremos sugeridos pelos advogados.

Para lidar com essa questão, o rela-tor Azevedo utilizou estimativas da elas-ticidade cruzada entre as marcas de chá Lipton, Nestea e Matte Leão e a totalidade dos guaranás não-gaseificados. Por meio dessa estimativa, construiu-se uma argu-mentação mais elaborada sobre o merca-do relevante e concluiu-se que existe al-guma substituição entre chás e guaranás não-gaseificados, devendo estes dois bens serem considerados no mesmo mercado.

O segundo problema, a hipótese de que os produtos do mercado são ho-

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mogêneos, pode ser resolvido por meio de uma técnica proposta em Hausman e Leonard (1997). De acordo com estes au-tores, é possível, fazendo uso das elasti-cidades própria e cruzada da demanda e da participação de mercado de cada em-presa3, estimar o impacto que a fusão terá sobre o mark-up (preço menos custo de produção sobre preço) de cada produto. A vantagem dessa técnica é que ela con-sidera a opinião do consumidor sobre o quão substituíveis, semelhantes ou hete-rogêneos são os produtos, uma vez que apresenta a elasticidade cruzada em sua formulação.

Esta abordagem também já foi usada com sucesso pelo CADE ao ana-lisar o caso Sadia & Perdigão (AC nº 08012.004423/2009-18). A complexi-dade desta fusão, envolvendo múltiplos mercados e produtos (embutidos, mar-garinas, pizzas prontas etc.), fez neces-sário um estudo mais aprofundado sobre o impacto da fusão sobre os preços dos produtos não apenas das marcas Sadia e Perdigão, mas também das outras marcas pertencentes ao portfólio dessas empre-sas e das marcas rivais. A técnica propos-ta por Hausman e Leonard (1997) é ideal para se alcançar esse objetivo.

Por fim, o terceiro problema, a des-consideração do comportamento da em-presa no mercado, também pode ser ava-liado por técnicas econômicas. Para saber se uma empresa é maverick, isto é, se ela tem como objetivo cortar custos e reduzir preços para tomar mercado, pode-se tan-to analisar suas propagandas ou mensu-rar o efeito que sua entrada no mercado teve sobre os preços. No primeiro caso, a análise será necessariamente subjetiva, pois, se a empresa for maverick, suas pro-pagandas destacarão seus baixos preços e, se não for, destacarão a qualidade supe-rior de seus produtos, por exemplo. Toda-via, interpretar uma propaganda pode ser

Doutrinacomplicado. Por sua vez, ao estimar o im-pacto sobre os preços da entrada de uma empresa ou da adoção de uma nova estra-tégia por parte da companhia, é possível estimar quantitativamente o comporta-mento da firma e dizer se ela adota uma postura agressiva no mercado ou não. As implicações desse tipo de estudo para a defesa da concorrência são claras. A com-pra de uma empresa maverick por uma empresa líder trará danos muito maiores à concorrência e ao consumidor do que as análises convencionais sugerem, pois a redução da competitividade no mercado será expressiva.

Um exemplo da aplicação desta abordagem à aplicação do Direito Concor-rencial é o caso Gol & Webjet. A Webjet é uma empresa que se autodeclara low cost, low fare. A Gol, por outro lado, é uma das duas maiores empresas da aviação civil brasileira e pode ter visto, na compra da Webjet, uma forma de reduzir a compe-titividade e, assim, aumentar seus lucros via aumento de preços, prejudicando o consumidor. Dessa forma, se a Webjet for uma empresa maverick, sua compra pela Gol trará, potencialmente, severos danos ao consumidor. Uma tentativa de se ava-liar o comportamento da Webjet pode ser encontrada em Alves, Fagundes, Klein, Paiva e Possebom (2011), que estimaram que a entrada da Webjet no mercado de aviação civil brasileiro reduziu o preço médio das tarifas em 4%. Por essa razão, a Webjet pode ser considerada uma em-presa maverick e sua compra pode resul-tar em severos danos à concorrência e sig-nificativos aumentos de preço.

Após considerar três possíveis solu-ções econômicas a problemas enfrentados na aplicação do Direito Concorrencial, é necessário discutir como estas podem ser mais facilmente empregadas por meio de um melhor diálogo entre economistas e juristas.

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Construção do diálogo

Certamente, a análise tradicional de concentrações horizontais é adequada a muitos casos relevantes para a aplica-ção do Direito Concorrencial e possui a vantagem de ser simples, compreensí-vel e pouco custosa. Todavia, ela ignora alguns aspectos relevantes de mercados mais complexos. Por essa razão, existem técnicas econômicas mais abrangentes que podem auxiliar o aplicador do Direi-to a tomar uma decisão mais detalhada e cujo custo é compensado pelos benefícios ao consumidor existentes nos casos mais relevantes de concentração horizontal. Ainda assim, a adoção dessas técnicas é lenta.

A lentidão no uso do ferramental econômico pelas autoridades de Defesa da Concorrência se deve a erros no com-portamento tanto de economistas quanto de juristas. De um lado, estes parecem re-cear a matemática por trás dos modelos econômicos e os interesses que esta pode ocultar e, por outro lado, aqueles parecem não aceitar traduzir para o Português o que a linguagem matemática diz. É neces-sário entender que a matemática é uma forma de comunicação como outra qual-quer e sua capacidade de ocultar interes-ses é equivalente a qualquer argumento construído por um operador do Direito, sendo necessária apenas a compreensão dos princípios básicos e do contexto do problema para perceber o que pode ser verdadeiro ou falacioso. Ademais, tam-bém é essencial que os economistas sai-bam se expressar sem o uso de jargões e deem transparência às suas opiniões e pa-receres, sendo claros em suas hipóteses.

A construção de um melhor diá-logo entre economistas e juristas é fun-damental para que os atuais problemas

Doutrinada sociedade sejam resolvidos da forma mais adequada possível. Contribuir para a aproximação entre essas duas ciências é o objetivo que este artigo espera ter atingido por meio da descrição de como técnicas econômicas podem fundamen-tar decisões jurídicas ligadas à Defesa da Concorrência.

Notas

1Apesar de os termos “concentração horizontal” e “fusão” não serem juridicamente intercambiá-veis, o autor optou por considera-los sinônimos no decorrer do texto para tornar a leitura mais fluída.2 Apesar de existirem outras formas de se anali-sar os mercados relevantes, o índice Herfindahl--Hirschman é a abordagem mais comum e, por essa razão, será a perspectiva analisada neste artigo.3 Elasticidade própria é o valor que responde à seguinte pergunta: “Se o preço do produto A au-menta 1%, qual será o impacto sobre a quantida-de consumida do produto A?”.

Bibliografia

ALVES, N.; FAGUNDES, M.; KLEIN, F.; PAIVA, V.; POSSEBOM, V. (2011) Análise da fusão entre Gol Linhas Aéreas S.A. e Webjet Linhas Aéreas S.A. Working Paper.

CADE. (2007) AC nº 08012-001383/2007-91.

CADE. (2009) AC nº 08012.004423/2009-18.

FORGIONI, P. (2008) Os fundamentos do anti-truste. São Paulo: Revista dos Tribunais.

HAUSMAN, J.; LEONARD, G. (1997) “Econo-mic Analysis of Differentiated Products Mergers Using Real World Data”. George Mason Law Re-view, 5 (3), 321-346.

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NIMER, F. (2011) Direito e Economia: porque estudar Direito e Economia. O Comercialista, 1 (2), 16-19.

RAMUNNO, P.; TRAIRI, T. (2011) Editorial. O Comercialista, 1 (1), 1.

Doutrina

Vítor Augusto Possebom é es-tudante de Economia da Escola de Economia de São Paulo - Fundação Getúlio Vargas e intercambista na Northwestern University.E-mail: [email protected]

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