o comercialista - vol. v - 3º trimestre 2012

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omercialista Revista de Direito Comercial e Econômico Ano 1 Volume 5 3° trimestre 2012 Paula Andréa Forgioni, Professora Titu- lar do Departamento de Direito Comer- cial da Faculdade de Direito da USP, em entrevista exclusiva a O Comercialista, aborda alguns dos temas mais relevantes sobre sua área de atuação, as recentes re- formas legislativas que afetaram o sistema da concorrência brasileiro e o projeto do Novo Código Comercial, além de enfren- tar questões importantes relacionadas à vida acadêmica e atuação na advocacia. Entrevista com a Professora Titular do Departamento de Direito Comercial da USP, Paula Andréa Forgioni A distribuição das sobras, oferta pública ou privada? A Lei de Responsabilidade Fiscal e a questão da seguridade social no Brasil Afinal, para que servem os Comitês nas Companhias? O antiprojeto de Código Comercial por Rafael de Oliveira Barizan por João Vicente Carvalho por Samuel Costa Filho por Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França por Denis Morelli Fonte: http://picasaweb.google.com/lh/photo/lYCUvoR3wxkaNS7VDEcvCg

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O Comercialista - Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

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omercialistaRevista de Direito Comercial e Econômico

Ano 1 Volume 5 3° trimestre 2012

Paula Andréa Forgioni, Professora Titu-lar do Departamento de Direito Comer-cial da Faculdade de Direito da USP, em entrevista exclusiva a O Comercialista, aborda alguns dos temas mais relevantes sobre sua área de atuação, as recentes re-formas legislativas que afetaram o sistema da concorrência brasileiro e o projeto do Novo Código Comercial, além de enfren-tar questões importantes relacionadas à vida acadêmica e atuação na advocacia.

Entrevista com a Professora Titular do Departamento de Direito Comercial da USP, Paula Andréa Forgioni

A distribuição das sobras, oferta pública ou privada?

A Lei de Responsabilidade Fiscal e a questão da seguridade social no Brasil

Afinal, para que servem os Comitês nas Companhias?

O antiprojeto de Código Comercial

por Rafael de Oliveira Barizan

por João Vicente Carvalho

por Samuel Costa Filho

por Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

por Denis Morelli

Fonte: http://picasaweb.google.com

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Editorial

Qualquer país que caminha em prol do seu desenvolvimento econômico enfrenta severas questões relativas ao recolhimento de investimentos. Seja na própria oferta de um mercado sólido ou na proteção de investidores, muito se tem discutido sobre a melhor forma de constituir regula-mentos capazes de organizar as relações mercadológicas. É dentro desse grande tema que são apresentados debates sobre Governança Corporativa, Ca-pitalismo de Estado, incompatibilidades regulatórias entre reformas corporativas e legislativas, en-tre outros. No limite, encontramos discussões, como as promovidas principalmente pelos expoentes da famosa escola Law and Economics, que indagam sobre a qualificação econométrica de sistemas jurídicos. Trata-se, sem dúvida, de um grande momento para todos os comercialistas: a cada dia que passa, os argumentos vão ganhando mais corpo e as discussões vão evoluindo e se multiplicando. Nas edições anteriores de O Comercialista, tivemos a oportunidade de estreitar o diálogo com alguns desses debates. Com a presente edição, pretendemos apresentar novos panamoras, não só em relação ao conteúdo, mas também com a introdução de novas críticas e, principalmente, novos questionamentos. Talvez o debate mais em voga atualmente na esfera comercialista brasileira, o projeto de Novo Código Comercial, vem sendo assunto de inúmeros seminários e congressos pelo Brasil. Em resposta à urgente necessidade de não apenas abordar, mas, sobretudo, problematizar este debate, o texto de Erasmo Valladão, professor de Direito Comercial da nossa Faculdade, compartilha conosco críticas incisivas e que precisam, sem dúvida, passar pelo crivo de todos os comercialistas. Esse tema, entre muitos aspectos que instigam todo e qualquer comercialista, é abordado em entrevista exclusiva com Paula Andréa Forgioni. Com a maestria que lhe é peculiar, a Professora Ti-tular do Departamento de Direito Comercial da Universidade de São Paulo, discorre sobre a sempre intensa relação entre direito e mercado, os paradigmas dos contratos empresariais frente ao atual cenário jurídico brasileiro. Até mesmo por conta do próprio método indutivo que pauta a evolução do Direito Comercial, acompanhar as novas posturas e iniciativas tomadas por empresários é fundamental. O considerável aumento da presença de Comitês nas companhias brasileiras traz a à tona o artigo de Denis Morelli, mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo, que destrincha com brilhante clareza tal figura. É também destaque desta edição o artigo do economista Samuel Costa Filho, que trata da Lei de Responsabilidade Fiscal e questões relativas à Seguridade Social. Com muito cuidado e precisão histórica, o trabalho aponta críticas que, em sua importância e originalidade, contribuem para um novo pensamento sobre o tema. Exatamente nessa variedade de temas que se encontra, atualmente, o Direito Comercial. Sem dúvida, vivemos em um tempo de grandes mudanças e de quebra de paradigmas. Por mais assusta-dor que tal cenário possa aparentar, a mudança permite participarmos ativamente do desenvolvi-mento que queremos gerar. Por mais imprevisíveis que são os resultados dos debates que enfrenta-mos, não é época de temer, mas sim de pensar.

Saudações Comercialistas,

Conselho Editorial

Os novos paradigmas comercialistas

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Corpo Editorial

ÍndiceConselho Editorial

Daniel Berezin Stelzer

Fábio Murta Rocha Cavalcante

João Pedro de Oliveira de Biazi

João Vicente Carvalho

Pedro Alves Lavacchini Ramunno

Rafael de Oliveira Barizan

Articulistas desta edição

Denis Morelli

Erasmo Valladão A. e Novaes França

João Vicente Carvalho

Samuel Costa Filho

Repórter desta edição

Rafael de Oliveira Barizan

Fale Conosco

[email protected]

4 | Opinião

9 | Perfil

16 | Doutrina

29 | Doutrina

34 | Doutrina

A Revista de Direito Comercial e Econômico dos Estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – O Comercialista – é uma publicação trismestral, independente, com o escopo de fomentar a produção acadêmico--científica nas Áreas de Direito Comercial e Econômico Contato (11) 981335813 – [email protected] – www.ocomercialista.com.br Editor Responsável Pedro Ramunno – [email protected] - Nota aos leitores As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as de O Comercialista nem das instituições em que atuam Reprodução É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem autorização prévia.

Entrevista com a professo-ra e advogada Paula An-dréa Forgioni

A Lei da Responsabilidade Fiscal e a questão da segu-ridade social no Brasil

Afinal, para que servem os Comitês nas Companhias?

A distribuição de sobras, oferta pública ou privada?

O antiprojeto de Código Comercial

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O antiprojeto de Código Comercial

Eu teria uma dezena de razões para justificar minha oposição a um novo Có-digo Comercial, mas prefiro ir direto ao ponto: independentemente da posição que se adote a respeito, o soi disant pro-jeto que está no Congresso é um desastre. Será uma tragédia (e uma vergonha) para o Brasil a sua aprovação.

Vou procurar condensar neste arti-go algumas críticas que já fiz em outras ocasiões, acrescentando algumas outras considerações.

Para começar, com o objetivo de aproveitar-se rapidamente de um mo-mento político, não foi o antiprojeto pre-cedido de um anteprojeto, que fosse dis-cutido por todas as classes interessadas. Nem no período mais negro da ditadura militar – onde foram aprovados o Código de Processo Civil e a Lei de S/A, ambos precedidos de anteprojetos amplamente debatidos – se viu isso. Ele já surgiu – por obra de uma ação entre amigos – direta-mente no Congresso. Fez-se um borrão e jogou-se lá. Um projeto de Código Co-mercial, não é uma leizinha qualquer!

Passo a demonstrar, primeiramen-te, os graves descasos dessa medíocre obra com conceitos, com a precisão de linguagem, etc. – essenciais em qualquer lei, quanto mais em um código.

O art. 114 preceitua: “...não poden-do ninguém ser obrigado a se tornar sócio de sociedade contratual contra a vonta-de...”. Pode-se imaginar, juridicamente, que alguém participe de um contrato con-tra a sua vontade?

O art. 125 dispõe, corretamente, que “a sociedade empresária adquire per-

sonalidade jurídica com o arquivamento de seu ato constitutivo no Registro Pú-blico de Empresas”. Mas o art. 126, logo a seguir, dispõe: “Art. 126. Termina a personalidade jurídica da sociedade em-presária com a partilha, depois de regu-larmente dissolvida e liquidada”. Perce-beram o grave equívoco conceitual capaz de gerar sérios problemas práticos? Se a sociedade adquire personalidade jurídica com o registro ela só a perde com o cance-lamento do registro e não com a partilha (cf. CCiv, arts. 51, § 3º e 1.109).

Uma lei não se presta a definições que não tenham alguma função no siste-ma. Mas o antiprojeto, além de fazê-lo, o faz erroneamente. O art. 157 assim dis-põe:

“Art. 157. Na sociedade anônima, o poder de controle pode ser: I – totalitá-rio, quando o controlador titula a totali-dade ou quase a totalidade das ações com direito a voto; II – majoritário, quando o controlador titula mais da metade das ações com direito a voto; III – minoritá-rio, ou difuso, quando o controlador titula menos da metade das ações com direito a voto; ou IV – gerencial, ou pulverizado, quando o acionista com o maior número de ações com direito a voto titula percen-tual reduzido do capital votante.”

Conforme superiormente demons-trado pelo Prof. Fábio Konder Compara-to, na sua obra seminal sobre a matéria1, o controle totalitário não se identifica com o controle quase totalitário. Basta lem-brar, a título de elementares exemplos,

Opinião

por Erasmo Valladão França

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Opiniãoque havendo um único acionista (a hipó-tese por excelência de controle totalitá-rio), seu poder é incontrastável. Havendo dois, não se pode, por exemplo, transfor-mar a sociedade (se não prevista no es-tatuto a possibilidade de transformação por maioria, cf. art. 221 LSA), realizar uma cisão desproporcional (art. 229, § 5º LSA), ou mudar a nacionalidade da com-panhia (art. 72 do D.Lei 2.627/40), sem o consentimento de ambos, ainda que um deles detenha fração absolutamente inex-pressiva do capital social.

De outra parte, a assimilação que o antiproprojeto faz entre controle ge-rencial e controle pulverizado, é tam-bém inadmissível. Uma coisa é o controle pulverizado, baseado na propriedade das ações e outra, completamente diversa, é o controle gerencial, totalmente desvincu-lado da titularidade acionária2. Além de não definir o que entende por “percentual reduzido do capital votante”.

Ademais, como se disse, o artigo ora comentado não tem função no sis-tema (no a-sistema) do antiprojeto, não serve para nada. Fosse este minimamen-te sério, teria procurado resolver proble-mas prementes na matéria de poder de controle, como a questão da positivação do controle minoritário após a revogação da Resolução 401/76 do Conselho Mone-tário Nacional. O Prof. Modesto Carva-lhosa, por exemplo, sustenta que não há mais controle minoritário3.

Repare-se na conceituação de so-ciedade limitada, constante do art. 170: “Art. 170. Na sociedade limitada, o sócio responde pelas obrigações sociais até o li-mite do capital social subscrito e não inte-gralizado”. Que clareza, não? Compare-se com a lapidar precisão do Código Civil vi-gente, em regra cuja interpretação nunca foi objeto de questionamento: “Art. 1.052

do Código Civil: Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos res-pondem solidariamente pela integraliza-ção do capital social”.

Agora, vejam que pérola. A morte do sócio acarreta, em princípio, a disso-lução parcial do vínculo societário. Mas, para o antiprojeto, o que ocorre é o con-trário: “Art. 198 (...). Parágrafo único. Com a dissolução parcial, desliga-se da sociedade o sócio falecido, expulso ou re-tirante”. Perceberam? Enquanto não há a dissolução parcial, o morto fica vagando pela sociedade... Não é esplêndido?

Vejam essoutra: “Art. 211. O contra-to social estabelecerá o critério de avalia-ção das quotas para fins de apuração de haveres e definição do valor do reembol-so. Parágrafo único. Prevalecerá o critério consciente e livremente contratado pelos sócios, ainda que de sua aplicação resulte ou possa resultar enriquecimento de qual-quer das partes, em detrimento da outra”. Consagra-se o enriquecimento sem cau-sa... E ainda mais essa: “Art. 281. É livre a pactuação dos juros moratórios entre os empresários”. Consagra-se a usura...

E, para demonstrar o nível de cuida-do e seriedade com que foi arremessado o antiprojeto no Congresso, existe o seguin-te artigo: “Art. 233. Nas omissões deste Capítulo, aplicam-se, com as adaptações cabíveis, as normas sobre dissolução de sociedade anônima fechada”. Essas nor-mas simplesmente não existem.

Passemos, agora, às platitudes.O art. 276 assim dispõe: “Art. 276.

Em caso de inadimplemento, o empre-sário credor pode exigir judicialmente o cumprimento da obrigação”. Eu sempre pensei que qualquer credor pudesse ir a Juízo pedir o adimplemento da obriga-ção. Não sabia que era uma prerrogativa

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do credor empresário...E o art. 303, inciso II: “Art. 303. São

princípios do direito contratual empresa-rial: (...) II – plena vinculação dos con-tratantes ao contrato”. Eu também não sabia que só os contratos empresariais vinculam os contratantes...

E o mais absurdo da presença dessas obviedades é que ainda existe o seguinte artigo: “Art. 298. No que não for regulado por este Código, aplica-se aos contratos empresariais o Código Civil”. Que função tem ele se é necessário repetir (de forma medíocre e infantil) o que já está no Códi-go Civil?

Passemos à questão da (in)seguran-ça jurídica, que é um dos objetivos decla-rados do antiprojeto.

Anuncia-se como um “código prin-cipiológico” – que, no entanto, tem 670 artigos de uma prolixidade irritante (se espremê-lo, não sobram 20). O art. 8º, todavia, diz o seguinte: “Nenhum princí-pio, expresso ou implícito, pode ser invo-cado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei”. Não é interessante?

Veja-se agora o art. 180: “As quotas são penhoráveis por dívida do sócio, salvo se o contrato social as gravar com a cláu-sula de impenhorabilidade”. Consagra-se a possibilidade de o indivíduo gravar os seus próprios bens (a única exceção é o bem de família). Compro um automóvel, vou ao DETRAN e coloco lá, no certifica-do de propriedade: impenhorável. É se-gurança jurídica!

Além do absurdo art. 277, que au-toriza o credor a cobrar, cumulativamen-te, “independentemente da opção... en-tre exigir o cumprimento da obrigação em juízo ou apenas demandar perdas e danos”...“I – o valor da obrigação acres-cido de correção monetária; II – juros; III

Opinião– indenização pelas perdas e danos deri-vados da mora; IV – cláusula penal; e V – honorários de advogado, quando for o caso”, o art. 289 ainda prevê: “O juiz po-derá condenar o empresário ao pagamen-to de razoável indenização punitiva, como desestímulo ao descumprimento do dever de boa fé”. É segurança jurídica!

O art. 317 dispõe: “O Ministério Público e os demais legitimados podem pleitear a anulação do negócio jurídico, provando o descumprimento da função social”. Função social é um conceito legal indeterminado, de conteúdo ainda total-mente controverso... É segurança jurídi-ca!

Deixei para o fim desse tópico mais esta monstruosidade: “Art. 657. Conclu-sos os autos para sentença, o juiz poderá nomear um facilitador, quando for com-plexa a questão discutida, de fato ou de direito, ou no caso de processo volumoso. § 1º Considera-se volumoso o processo se os autos possuírem mais de 500 (qui-nhentas) folhas com manifestações das partes, incluindo a instrução documental e demais anexos apresentados, perícia e outras provas. (...) § 3º O facilitador en-tregará ao juiz, no prazo por este assina-lado, relatório com a síntese da lide, prin-cipais argumentos aduzidos pelas partes, provas produzidas e demais elementos que permitam a completa compreensão da demanda. (...) § 5º O juiz poderá deter-minar a juntada aos autos do relatório do facilitador, hipótese em que fica dispen-sado de relatar o processo na sentença”.

A expressão facilitador não poderia ser mais expressiva do cuidado com que foi elaborado o antiprojeto. Sabem o que significa em direito? Para não ir muito a fundo, vejam a definição do Aulete digital sobre facilitação: “4. Jur. Ajuda dada por alguém que facilita a prática ou execução

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de um ato: crime de facilitação ao contra-bando”.

Mas o que se vê do teratológico dis-positivo em questão é que o juiz fica dis-pensado do dever de relatar o processo! É absolutamente assombroso.

Por que razão o art. 458, I, do CPC, arrola como um dos requisitos essenciais da sentença o relatório? Porque a lei quer que o juiz demonstre que leu o processo. Pergunto a algum dos leitores se gosta-riam de ter uma causa julgada por um juiz que não tivesse lido os autos! É um despropósito, manifestamente inconsti-tucional!

Passemos agora à (des)proteção à minoria, outro dos objetivos declarados do antiprojeto.

Em primeiro lugar, o quórum majo-ritário para todas as deliberações sociais (art. 113, V) não protege adequadamente a minoria. As alterações estruturais de-vem ter quórum qualificado, não basta conceder aos dissidentes o direito de re-cesso. Exatamente por essa razão, a LSA prevê quórum qualificado para tais deli-berações (comparem-se: arts. 129 e 136).

O antiprojeto elimina, no art. 164, o voto múltiplo obrigatório previsto no art. 141 da LSA, forma de proteção eficaz da minoria, deixando-o à previsão estatutá-ria ou assemblear (ou seja, deixando-o ao arbítrio do acionista controlador).

O art. 195 determina: “É nula a cláusula que exclua qualquer dos sócios da participação nos lucros da sociedade”. Não mais aquela que exclua a participa-ção nas perdas. Por exemplo, que exclua da participação nas perdas as quotas do sócio controlador... Na liquidação da so-ciedade, as perdas são imputadas às quo-tas dos minoritários (evidentemente, essa cláusula não poderá prevalecer perante os credores, mas internamente sim).

O antiprojeto elimina, outrossim, o contraditório na exclusão do sócio mino-ritário (art. 199 c/c 201), instituída pelo Código Civil vigente (art. 1.085, par. ún.). Tudo a bem da tutela da minoria!

Repare-se, agora, na (des)preser-vação da empresa: “Art. 226. São causas da dissolução total da sociedade limitada: I – o vencimento do prazo de duração”. Qual é a solução do Código Civil vigente? “Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quan-do ocorrer: I - o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem opo-sição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo indeterminado”.

Para ficar apenas na minha espe-cialidade, o antiprojeto ostenta uma posi-ção totalmente equivocada do direito so-cietário, partindo da sociedade anônima para os demais tipos (da periferia para o núcleo!) e determinando a aplicação das suas regras, bem como das da sociedade limitada, aos “tipos menores” (art. 236) e à sociedade em comum (que o projeto torna a chamar de irregular, cf. art. 133), o que é um verdadeiro disparate. Na so-ciedade limitada, por exemplo, prevalece o princípio da maioria, porque a respon-sabilidade do sócio é limitada ao valor das quotas ou ao montante do capital, se este não estiver integralizado. Na sociedade “irregular” – que é comuníssima – todos os sócios respondem solidária e direta-mente pelas obrigações sociais (art. 133 do antiprojeto). O princípio da maioria, aqui, deve ser a exceção e não a regra, pois se a deliberação se mostrar desastra-da faz-se cortesia com todo o patrimônio (com o “chapéu”...) do sócio que dela dis-sentiu.

Mas o mais incrível é que o antipro-jeto pretende, irresponsavelmente, alte-rar a LSA – um monumento legislativo

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brasileiro – determinando, no art. 144, parágrafo único: “no que não for regulado neste Código, sujeita-se a sociedade anô-nima à lei especial”. É muita pretensão! E enfileira uma série de dispositivos ab-solutamente inúteis, pois já existentes (e com muito melhor redação) na LSA (cf. arts. 145 a 149, v. g.).

Enquanto isso, problemas centrais do direito societário são ignorados. A questão de saber se o conflito de interes-ses é formal ou substancial (que por três vezes dividiu as opiniões dos diretores da CVM), por exemplo. Ou a do drástico en-curtamento do prazo para anulação das deliberações assembleares, que necessi-tam de estabilidade (apenas para com-parar: na Alemanha e em Portugal, esse prazo é de um mês; na Itália, Argentina, Uruguai, é de três meses; enquanto no Brasil é de dois anos, talvez um dos úni-cos pecados da LSA – art. 286). Os prin-cípios da integridade do capital social e da igualdade de tratamento para os sócios da mesma classe, de sua parte, são olvidados na esdrúxula relação do art. 113, que arro-la entre os “princípios do direito comer-cial societário” a “subsidiariedade da res-ponsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais”!

Para finalizar, o antiprojeto preten-de um retorno à Idade Média, caracteri-zando o empresário como aquele que está inscrito na corporação... (art. 9º). E, ain-da por cima, incluindo no conceito de em-presário o literato ou artista que se cerque de colaboradores (comparem-se os arts. 3º e 13 com o parágrafo único do art. 966 do Código Civil)!

Como eu disse de início, um de-sastre. O antiprojeto constitui para mim um ultraje. Cada vez que o leio sinto-me, como professor de Direito Comercial e, sobretudo, como cidadão brasileiro, como

se tivesse sido atingido por uma bofetada! Por um projétil!

Notas

1 O poder de controle na sociedade anônima, 3ª ed., Foren-

se, 1983, p. 37-39.2 Comparato, ob. cit., p. 51.3 Cf. Temas de direito societário e empresarial contempo-

râneos, Marcelo Vieira von Adamek (coord.), Malheiros

Editores, 2011, p. 516-521.

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é professor asso-ciado do Departamento de Direi-to Comercial da Faculdade de Di-reito da Universidade de São Paulo E-mail: [email protected]

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Perfil

Formação acadêmica: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cursos de especialização na Universidade de Bologna e na Universidade de Torino.

Profissão: Professora universitária e ad-vogada. Hoje em dia, mais professora.

Livro que todo estudante de direito deve ler: “Negócio Jurídico”, do Profes-sor Junqueira. “Interpretazione della leg-ge e degli atti giuridici”, do Betti e “Teoria generale del diritto”, do Bobbio

Conselho para a vida: Seja feliz. Não adianta ter sucesso e ser amargurado e chato

Frase marcante: “In the absence of a book of rules, how can we decide whether the fight is fair or foul?” [Fritz Machlup]

Paula Andréa Forgioni

O Comercialista – O que a levou a escolher a carreira jurídica? Quando a senhora se interessou pelo direito co-mercial?

Paula Andréa Forgioni – Sou a úni-ca advogada da minha família. Gostava

de escrever e pensei em fazer jornalis-mo ou mesmo psicologia. No fim, acei-tei conselhos de pessoas mais experien-tes que me queriam bem e resolvi fazer direito. Nutria apenas uma certeza [na medida em que você pode ter certezas aos 17 anos]: só me interessava a São

A professora titular de direito comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogada, Paula Andréa Forgioni conversou com O Comercialista sobre os atuais temas de maior interesse no direito comercial: os contratos empresariais, o novo Código Comercial e a nova Lei do Cade. Contou-nos como e por qual razão escolheu a profissão, suas influ-ências e destacou o papel de liderança da São Francisco no cenário jurídico brasileiro. Aconselhou ainda os futuros advogados que atuarão na intrigan-te e empolgante área do direito comercial.

por Rafael de Oliveira Barizan

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Francisco.No segundo ano, quanto tive aulas com a Profa. Raquel Stazjn, decidi que seria professora de direito comercial. Sempre fui pragmática e a lógica da matéria me encantava. No quarto ano, trabalhei com dois advogados maravilhosos, daquele que advogam de verdade, como nos ve-lhos tempos: Marcos Chiapparini e José Diogo Bastos Neto. No final do mesmo ano, comecei a estagiar com o Prof. José Alexandre Tavares Guerreiro. Aí não teve jeito: a paixão pelo Direito Comercial --- especialmente por sua história e por sua lógica --- pegou-me em cheio. Naquela época, não havia Internet e a biblioteca do Prof. Guerreiro, aliada ao seu entu-siasmo pela matéria, arrastaria qualquer um para o direito comercial.

O Comercialista – Como a senhora vê a São Francisco no atual cenário jurídico brasileiro?

Paula Andréa Forgioni – Apesar do que falam, apesar de todas as críti-cas, apesar de todos os defeitos, apesar de todo o marketing contrário, o papel de liderança da São Francisco é inegá-vel. Não entendo essa cultura de só falar mal da Faculdade e esquecer o que temos de [muito] bom. Há pessoas que sentem prazer quase mórbido nisso. Contudo, se você reparar bem, nenhum professor deixa a Casa, por mais que reclame dela. Críticas construtivas são uma coisa, re-calques são outra bem diferente.A liberdade acadêmica de que gozam os Professores do Largo é completa. Como expliquei aos calouros deste ano, isso traz vantagens e desvantagens. A liber-dade de cátedra, aqui, é levada muito a sério e, também por isso, a Faculdade mostra-se importante pólo de irradiação

de novas idéias. Não rezamos conforme a cartilha de ninguém. Somos independen-tes, inclusive dos interesses econômicos que financiam muitas pesquisas. Nossos alunos não são nossos clientes e a rela-ção que mantemos com eles é bastante especial. Não obedecemos ordens de nin-guém; nossas pesquisas e interesses são fruto, apenas, de nossa consciência e ca-pacidade.No que diz respeito à minha área, diria que somos uma das poucas instituições do País em que se trabalha o Direito Co-mercial de forma a superar o excessivo privatismo que sempre caracterizou a matéria. Não preparamos os alunos para os exames da OAB, mas para perceberem o Direito Comercial como indispensável ao desenvolvimento econômico do Bra-sil.

O Comercialista – Qual o papel da pesquisa no direito? A integração entre a prática e a academia é necessária? Em caso positivo, o ensino jurídico, tal qual podemos observar atualmente, atende a essa necessidade?

Paula Andréa Forgioni – A Faculda-de propicia ao aluno a oportunidade de estagiar durante o curso. Aqui, aprende--se a pensar. No estágio, a trabalhar. Não acredito que devamos perder nosso tem-po em sala de aula para ensinar o aluno a redigir uma petição ou a fazer um Power Point [!]. O que são cinco anos na vida de um pro-fissional, diante de uma carreira que ten-de a se estender por mais de sessenta anos? Nada! Precisamos aproveitar esse tempo para ensinar o aluno a pensar, a desenvolver sua capacidade de aprender sozinho --- porque é isso que ele fará o resto da vida e é isso que o transformará

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em um profissional de excelência.Tenho muito contato com estudantes e jovens advogados estrangeiros. Nossos [bons] alunos, quando se lançam na car-reira profissional, são realmente muito competentes, disputadíssimos no mer-cado de trabalho. A reclamação geral dos escritórios não diz respeito à formação dos nossos estudantes, muito ao contrá-rio, mas ao nosso “nariz empinado”. Não é fácil convencer um estagiário da São Francisco a tirar cópias ou a fazer traba-lhos repetitivos.

O Comercialista – O estágio é neces-sário e/ou desejável ao longo da faculda-de de direito? Qual seria a melhor opção para complementar, do ponto de vista prático, o conhecimento teórico adquiri-do na faculdade de direito?

Paula Andréa Forgioni – O estágio é indispensável, mas a partir do quarto ano. Até lá, o estudante deve cuidar da sua formação acadêmica e estudar lín-guas estrangeiras. Se possível, fazer in-tercâmbios no exterior. As oportunida-des estão se multiplicando na USP, com muitas bolsas de estudo. Costumo aconselhar meus alunos a cui-dar de sua formação, pois nenhum es-critório o fará. Escritórios de advocacia estão lá para ganhar dinheiro e, muitas vezes, há conflito entre os interesses das “law firms” e dos estudantes ou jovens profissionais. O estágio só interessa ao nosso aluno se o fizer crescer. Ninguém que debita 250 horas por mês pode estar cuidando seriamente de sua formação. Isso interessa aos escritórios, não aos nossos egressos.Não posso deixar de referir outra “len-da urbana” que assombra os estudantes: “deve-se começar a estagiar logo, caso

contrário, não haverá lugar nos bons escritórios”. Não sei de onde veio essa crença. Há grande demanda da parte dos bons escritórios por estagiários mais ve-lhos e, especialmente, por jovens profis-sionais que querem seguir a advocacia empresarial.

O Comercialista – Existe ou existiu al-guém ligado à profissão que a inspirou e que, até hoje, inspira?

Paula Andréa Forgioni – Dois que-ridos professores das Arcadas: José Ale-xandre Tavares Guerreiro e Eros Roberto Grau. Minha vida não seria a mesma se não tivesse tido a oportunidade de con-viver, trabalhar e apreender muito com esses dois grandes advogados e juristas. Além deles, sempre confiei na experiên-cia e bom senso do Prof. Marcelo Huck. Dei-me mal todas as vezes em que não ouvi seus conselhos.

O Comercialista – Qual a sua opinião sobre o Novo Código Comercial e sua es-trutura de caráter mais principiológico que normativo, conforme defendido pelo Profº Fabio Ulhoa Coelho?

Paula Andréa Forgioni – Meu que-rido amigo Fabio Ulhoa Coelho, profes-sor titular da PUC, tem feito um traba-lho impagável para o direito comercial: após décadas, o mundo jurídico voltou a se preocupar com os vetores de funciona-mento da ordem jurídica do mercado. Há muito não se falava dos princípios orien-tadores da matéria.Ao contrário de muitos colegas, acredi-to que deveríamos ter um novo Código Comercial; muito poderia ser feito, espe-cialmente em relação aos contratos en-tre empresas e à repressão ao abuso da

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dependência econômica. Seria preciso, ainda, desfazer a confusão perpetrada no âmbito das sociedades limitadas pelo Có-digo de 2002.Contudo, os fatos atropelaram as boas in-tenções. Há problemas sérios na propos-ta que está no Congresso, que não podem ser supridos por emendas. A aprovação do projeto será prejudicial ao desenvolvi-mento do direito comercial e ao bom flu-xo de relações econômicas. Mas, minha amizade, estima e respeito intelectual pelo Professor Fabio seguem inabaláveis.

O Comercialista – A evolução dos contratos empresariais é notável em nos-so país. A senhora acha que se está dando a devida atenção a esse fenômeno?

Paula Andréa Forgioni – Não. Nem aqui, nem no estrangeiro. Impressiona a falta de estudos nesse campo. Pretendemos [Prof. Satiro, Prof. Rodrigo Mendes, Prof. Zanetti e Prof. Marino --- estes dois últimos do Departamento de Direito Civil] constituir linha de pesquisa e grupo de estudos para debruçarmo-nos, juntos, sobre os contratos empresariais, especialmente os de colaboração e os de rede. O Brasil deixou de ser apenas um “consumidor de teses” estrangeiras. É preciso produzir doutrina de direito que considere a realidade brasileira numa economia globalizada. É o que pretende-mos fazer.

O Comercialista – O mercado acio-nário brasileiro despertou na última dé-cada. Esse é um fenômeno determinado pelo direito ou posteriormente regulado por ele? Nessa perspectiva, como a se-nhora percebe a relação entre direito e mercado?

PerfilPaula Andréa Forgioni – Não se cria mercado [no sentido de fomento de ne-gócios] apenas com regras jurídicas. As condições econômicas são fundamentais. Ao mesmo tempo, a crise de 2008 com-provou o que há muito se sabia: não exis-te mercado sem direito.

O Comercialista – A senhora vê o di-reito como uma ferramenta capaz de mo-dificar a realidade, em prol do desenvol-vimento social ou seria esta uma visão utópica?

Paula Andréa Forgioni – Não tenho dúvidas de que o direito é uma ferramen-ta capaz de modificar a realidade e de fo-mentar o desenvolvimento econômico e social do País, ou não seria professora de direito comercial. Hoje, o exemplo mais eloquente talvez seja a disciplina jurídi-ca dos exclusivos [“propriedade intelec-tual”] como instrumento de fomento da concorrência e da solidificação de um mercado competitivo.

O Comercialista – A influência de ou-tras ciências sobre o direito, como a Eco-nomia, é um fato de difícil contestação. Na sua opinião, está influência é desejá-vel? Atualmente há uma assimetria da importância dada a outras ciências em detrimento do direito no papel de regu-ladores das relações sociais?

Paula Andréa Forgioni – Às vezes, parece-me que as pessoas confundem as coisas de propósito. É preciso separar (i) os instrumentos de análise e de compre-ensão da realidade que nos são trazidos pela economia da (ii) idéia de que as so-luções econômicas [ditas mais “eficien-tes”] são as que levam ao maior nível de bem estar social.

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Nenhum professor sério de direito co-mercial pode discordar da primeira as-sertiva. Já a segunda transforma a cha-mada “eficiência econômica” no norte da sociedade, no escopo máximo do Direito, no resultado necessário da interpretação das regras e dos princípios jurídicos. O problema é que isso tudo traz ilusão de segurança e de previsibilidade. Discuti essa problemática em um artigo denomi-nado “Análise econômica do direito: pa-ranóia ou mistificação?” que me permito referir aqui.

O Comercialista – Em entrevista para a edição de abril de O Comercialista, Ola-vo Chinaglia, então Presidente Interino do CADE ao tratar da Lei 12.539/2011, afirmou que “A lei representa um avan-ço em relação ao sistema anterior, pois racionaliza procedimentos, aumenta a estrutura e confere instrumentos para uma atuação mais efetiva dos órgãos de defesa da concorrência, notadamente no que diz respeito à análise prévia dos atos de concentração econômica”? Em sua opinião esta nova estruturação é, de fato, suficiente para regular a concorrência no país e coibir abusos?

Paula Andréa Forgioni – Essa lei não alterou quase nada no que tange ao direito material, apenas reestruturou o chamado “Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência” e instituiu o controle prévio dos atos de concentração. Sempre fui contrária ao controle prévio no Bra-sil, por acreditar que transfere excessivo poder ao Executivo. Agora, Inês é morta. Vamos ver os resultados práticos que se-rão apresentados à Sociedade.Volto a bater na mesma tecla: no atual momento da economia brasileira, é pre-ciso cuidar das práticas capazes de fos-

Perfilsilizar nosso mercado. Tenho a esperan-ça de que o CADE volte seus olhos para o abuso de poder econômico e para os acordos verticais que permitem o contro-le dos canais de escoamento da produ-ção. O Brasil precisa definir sua política de concorrência de acordo com suas ne-cessidades econômicas e históricas. Es-tou otimista com a nova composição do CADE.

O Comercialista – Um ponto bastante em voga atualmente diz respeito à arbi-tragem no Direito Societário. Tomando como base a atual configuração brasilei-ra, a arbitragem já aparece como forma viável de solução de conflitos societários?

Paula Andrea Forgioni – A arbitra-gem tem funcionado muito bem no Bra-sil. Contudo, na área do direito societário, ela se mostra mais problemática. As ques-tões são muitas: nos casos de compa-nhias abertas, é possível manter o sigilo da arbitragem? Como tratar os impactos da sentença arbitral perante terceiros, especialmente os outros sócios/acionis-tas que não figuram como parte na arbi-tragem? A cláusula arbitral estatutária pode vincular futuros acionistas? Como fica a consideração do interesse público e da supremacia dos interesses empre-sariais na arbitragem, que tende a con-siderar apenas os interesses das partes envolvidas?São todas questões ainda em aberto e que geram muita preocupação ao teórico do direito.

O Comercialista – Qual a influência dos institutos do Common Law no Di-reito Empresarial brasileiro? Diante da constante importação de conceitos, deci-

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sões e princípios, ainda é adequado afir-mar que o sistema de direito empresarial brasileiro é de Civil Law?

Paula Andréa Forgioni – Também nesse aspecto há muitas “lendas urba-nas”. Autores mais liberais costumam di-zer que o sistema da Common Law seria mais “eficiente”. Isso é mero “achismo”, sem qualquer comprovação fática.Sinto-me autorizada a falar, apenas, da minha área. No campo do direito concorrencial, as leis [i.e., os textos normativos] são bas-tante semelhantes no mundo todo. As autoridades antitruste preocupam-se com os precedentes, tanto aqui, quanto alhures. Não vejo tantas diferenças entre “Civil Law” e “Common Law”. O mesmo diria em relação aos contratos empresariais. Esquece-se que os norte--americanos possuem o “Uniform Com-mercial Code” e que os contratos entre empresas são plasmados por princípios semelhantes em vários direitos. Com todo o respeito, sugeriria a mui-tos autores que, antes de externar ideias açodadas sobre o sistema brasileiro de direito comercial, debruçassem-se sobre a jurisprudência dos nossos Tribunais, especialmente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Teriam muito a apreender. Há leis e há nítida preocupação com os precedentes. É inegável que as decisões, vistas com a distância do tempo, não ape-nas guardam entre si certo sentido, mas também apontam o caminho da evolução da disciplina jurídica do mercado.No Brasil, a prática mercantil vai muito além do papel que lhe é tradicionalmen-te reservado pela manualística, invocada, quando muito, como resquício histórico relacionado ao nascimento medieval do direito comercial. Elas ligam-se não ape-

Perfilnas ao poder criador das empresas, que constantemente fazem surgir novas so-luções para problemas econômicos, mas também à resposta dada a essa atividade pelos tribunais. O direito comercial não existe sem os julgados e, por sua vez, o resultado dessa corrente de decisões con-diciona a atuação dos agentes econômi-cos, fechando um ciclo que não pode ser ignorado pelo intérprete do direito bra-sileiro. O texto legal inicialmente interpretado pelos empresários [e por seus assesso-res], as práticas que estes implementam nos limites deixados à autonomia pri-vada pelo direito objetivo, a reação dos Tribunais a esses comportamentos e a interpretação que os juízes dão aos mes-mos textos normativos trazem como re-sultado a formatação da ordem jurídica do mercado. Assim, os usos e costumes não surgem apenas da atuação livre dos comerciantes, mas de seu comportamen-to condicionado pelas características do ambiente em que desempenham seus negócios, pelos textos normativos e, em grande medida, pelas decisões dos tribu-nais. As decisões jurisprudenciais, entre nós, ligam-se à dinâmica do direito comercial moderno mais do que se costuma supor. Em várias matérias, longe de serem jul-gados desconectados, mostram-se im-portante força que auxilia a modelagem das regras seguidas e criadas pelos co-merciantes. Por isso, ao menos no direito empresa-rial, não reconheço uma diferença tão marcada entre “Civil Law” e “Common Law”.

O Comercialista – O que se exige de um bom advogado e como ele deve se preparar para exercer a profissão? Qual

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as boas oportunidades que a vida lhe ofe-recerá de improviso. Tenha calma. Es-tude. Seja humilde, mas não seja bobo. Goste de seus amigos. De verdade. Como sempre disse meu Orientador: não parta do pressuposto que todos pensam como você e enxergam o que você vê. Não tenha medo, mas seja cauteloso. Cuide muito bem da vida pessoal, até mesmo para não acabar um velho chato, sozinho e amar-gurado. Estude. Tenha amigos no traba-lho. Viaje. Controle a vaidade. Cuide-se, sempre, em todos os sentidos. Respeite--se. Mantenha as rédeas de sua formação e de sua carreira em suas próprias mãos. Estude. E entenda, de uma vez por todas: o que pode arruinar sua carreira não são azares ou decisões isoladas, mas suas posturas perante a vida.

Rafael de Oliveira Barizan é graduando do segundo ano da Faculdade de Direito da Universidade de São PauloE-mail: [email protected]

tipo de profissional a senhora gosta de ter na sua equipe ou acha importante ter no escritório? Quais conselhos daria a um jovem advogado empresarial?

Paula Andréa Forgioni – Estude. Te-nha curiosidade intelectual. Bons amigos. Bons estágios. Estude línguas estrangei-ras. Observe profissionais experientes. Saiba criar e cultivar relações profissio-nais e pessoais. Entenda que, no mundo de hoje, ninguém faz sucesso sozinho e valorize a equipe na qual se insere, seja como membro, seja como líder. Lembre--se que ninguém gosta de aguentar louco. Fuja deles! Ser temperamental não é ba-cana. Treine sua inteligência emocional. Não tenha medo de assumir responsabi-lidades. Estude. Não veja todos os cole-gas como concorrentes, mas como mem-bros da mesma equipe. Não perca tempo com bobagens e com inveja. Sempre ha-verá pessoas mais inteligentes e menos inteligentes do que você. Controle a an-siedade dos primeiros anos de profissão. Saiba cultivar as amizades da Faculdade para a vida toda. Elas não tem preço e se-rão valiosíssimas para o seu futuro, em todos os aspectos. Não queira ganhar o primeiro milhão de Euros nos dois pri-meiros anos de carreira. Estude. Invista em si próprio, sempre. Invista nos ou-tros. Seja esperto, mas não desconfie da própria sombra. Entenda que você não é a reencarnação do Pontes de Miranda, apesar de ter feito São Francisco. Fuja de psicopatas sociais, daqueles que passam por cima de tudo e de todos para alcançar seus objetivos; a ciência demonstra que esses não têm cura. Não se transforme em um psicopata social. Estude. Colabo-re. Adicione. Acrescente. Estude. Saiba gastar o dinheiro que você ganha. Ajude. Planeje, planeje e planeje, mas aproveite

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Doutrina

1 INTRODUÇÃO

Ante uma grande recessão nos anos 1930, uma concepção doutri-nária da ação intervencionista do Estado capitalista passou a dominar o debate, sinalizando e viabilizando diversas reformas que deram mar-gem e criação ao Welfare State (ao Estado do Bem-Estar Social) nos países desenvolvidos, decorrente da necessidade do momento, aliada à pressão popular. Na América Lati-na, surgiu o Estado intervencionista e desenvolvimentista - um compro-misso com um crescimento econô-mico fez parte do modelo brasileiro, que teve um produto interno bru-to (PIB) que cresceu, entre 1948 a 1980, à taxa anual de 7,5%. No B rasil, quando do processo de redemocratização nos anos 1980, as forças sociais pressionaram pela igualdade de oportunidades e mobi-lidade social a todos os cidadãos. No processo de elaboração da Constitui-ção, assistiu-se, pela primeira vez, uma intensa mobilização que levou à aprovação da “constituição cida-dã”. Logo os liberais brasileiros ale-garam que a crise econômica e social por que se passava era fruto de um suposto gigantismo e ineficiência do Estado. Em tais condições, o Brasil, ao aprovar a nova constituição, ele-vando o gasto público social, ficou impedido de retomar o crescimen-to econômico. Assim, no início dos anos 1990, os arautos do neolibera-

lismo advogaram medidas via Con-senso de Washington e pregaram a defesa intransigente e incondicional da ideologia ultraliberal1. Uma das últimas reformas ul-traliberais no País foi a implemen-tação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 4 de maio de 2000, que foi apresentada à sociedade bra-sileira como um grande avanço em termos de administração pública e divulgada como uma modernização na administração e nos gastos públi-cos, com ênfase no combate à cor-rupção e à roubalheira no Estado, zelando pela austeridade e eficiência no setor público. Na nova realidade globalizada, o Estado deveria ser ge-rido como se fosse uma empresa; e essa ideia de administração foi repe-tida de modo a se tornar uma verda-de irrefutável. Assim, não é surpresa que o PIB do Brasil apresente nos últimos 30 anos uma taxa média de apenas 2,8% de crescimento (PAU-LANI, 2008). O presente artigo objetiva ana-lisar as consequências da LRF, dian-te da tentativa de avanço na segu-ridade social e de criar um Welfare State no Brasil. Para este fim, a seção seguinte trata do desenvolvimento do Welfare State e da construção da seguridade social na Constituição de 1988. Na sequência, aborda o avan-ço do consenso ultraliberal no Brasil e discorre sobre a LRF e a institucio-nalização do Estado brasileiro com o lema “direita para o social e esquerda

A Lei de Responsabilidade Fiscal e a questão daseguridade social no Brasil

por Samuel Costa Filho

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Doutrinapara o capital” (NEVES, 2010), com a direita significando transparên-cia e honestidade para com os gas-tos públicos e a esquerda aplicando uma política de gastos em favor do capital, capital financeiro em parti-cular. Finalizando, o artigo defende o ponto de vista de que o Brasil pre-cisa mudar.

2 A CONSTRUÇÃO DO WEL-FARE STATE E DOS DIREITOS SOCIAIS E A SEGURIDADE SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 NO BRASIL

O século XX apresentou a emer-gência e o desenvolvimento de dife-rentes padrões de políticas sociais nos países capitalistas avançados - o Welfare State. No plano social, esta experiência de sociedade garantia a manutenção de renda aos indivíduos independentemente de possuírem propriedade ou de estarem ligados ao mercado de trabalho. O objetivo era fornecer segurança em relação aos riscos e às contingências sociais frutos da sociedade capitalista. O Welfare State faz parte de um processo histórico no desenvol-vimento do sistema capitalista. Con-trapondo-se à via revolucionária, os reformistas conceberam instituições que viabilizaram a atuação do Esta-do com políticas autônomas de de-fesa do status quo do sistema capi-talista, mas permitindo a melhoria e defesa das diferentes classes sociais e do cidadão em particular. Seu sur-gimento teve início ao longo do sé-culo XIX, através das lutas dos mo-vimentos operários e dos esforços de grupos organizados, bem como de-

vido ao crescimento vertiginoso das cidades (AGUIAR, 1990). No sécu-lo XX, outros fatores contribuíram para o desenvolvimento do Welfare State, como, por exemplo, a Revolu-ção Russa; a Grande Depressão dos anos 1930; o surgimento do fascis-mo; o keynesianismo. Neste con-texto, além do capitalismo liberal e do comunismo soviético, uma nova realidade se tornou hegemônica, a social-democracia keynesiana. A explicação da origem do Wel-fare State não é consensual. Segun-do Arretche (1995), Silva (1999a, 1999b) e Aguiar (1990), existem di-ferentes explicações que podem ser divididas em (a) condicionantes de ordem econômica (o Welfare Sta-te é um desdobramento necessário das mudanças postas em marcha pela industrialização da sociedade; e é uma resposta às necessidades de acumulação e legitimação do siste-ma capitalista) e (b) condicionantes de ordem política (o Welfare State é resultado de uma ampliação pro-gressiva de direitos - dos civis aos políticos, dos políticos aos sociais); de um acordo entre o capital e o tra-balho organizado dentro do capita-lismo; e há diferentes Welfare State, que são resultado da capacidade de mobilização de poder da classe tra-balhadora no interior de diferentes matrizes de poder. Ao longo dos anos 1970, uma crise do capitalismo atingiu as finan-ças do Estado do Bem-Estar Social e levou ao fim do consenso keynesiano, surgindo, com elevado vigor, novas ideias ultraconservadoras, que apre-goavam como causa dessa crise do capital os efeitos perversos das po-líticas sociais e de financiamento do

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DoutrinaEstado do Bem-Estar Social, dado o quadro de mudanças demográficas, onde o envelhecimento e a mudança no padrão familiar representavam um maior custo para o Estado assis-tencial (MARQUES, 1997). O domínio das correntes que defendem e divulgam virtudes de uma nova ordem denominada de globalização da economia e as con-sequentes mudanças no funciona-mento do mercado de trabalho de-bilitaram a legitimação e causaram perda de lealdade da classe trabalha-dora ao Estado do Bem-Estar Social. Todavia, este havia se transformado em um elemento essencial para a or-dem, as estruturas e as rotinas das democracias industriais avançadas. Combinavam-se mercado e Estado para viabilizar um melhor ritmo da atividade econômica. Mesmo com o avanço das ideias e práticas ultrali-berais, da crise dos projetos do so-cialismo real e das muitas críticas à política e ao padrão intervencionista do Estado, da nova matriz tecnoló-gica de produção flexível, do desen-volvimento da informática, da bio-tecnologia, da engenharia genética, e com a formulação do Consenso de Washington, da sua aplicação nos países da América Latina, o Welfare State contou com o apoio de grupos organizados e órgãos que impedi-ram a sua extinção (KING, 1988). O processo de globalização da economia mudou a lógica princi-pal de funcionamento do capital, que passou a ser comandada pela abertura comercial e financeira, es-timulando um processo de finan-ceirização da economia. Ocorreu o favorecimento de políticas de priva-tização de empresas sob o controle

do Estado; estimulando o processo de acumulação de capital na linha da concentração de capital e, principal-mente, da centralização de capital; processo que foi sustentado pela ide-ologia teórica do ultraliberalismo, que pregava a modificação do Esta-do para o Estado Mínimo, a libera-lização no mundo do trabalho, que levou à precarização e declínio do emprego, rebaixamento da renda do trabalho e redução dos direitos so-ciais. O processo de fragilização das organizações que defendem a classe trabalhadora estimulou a volta do barbarismo na vida social, difundiu a ascensão do egoísmo, do individu-alismo, do consumismo, do racismo e da xenofobia (BELLUZZO, 2004). Diferentes países da periferia passaram a executar reformas exigi-das pelos principais órgãos interna-cionais - o Fundo Monetário Inter-nacional (FMI), Banco Mundial (via Banco Internacional para Recons-trução e Desenvolvimento - BIRD) e Organização Mundial do Comércio (OMC). As exigências compreen-diam, entre outras, ajustes estrutu-rais com políticas de estabilização da inflação, liberalização comercial, abertura ao investimento estran-geiro, procura de melhoria na com-petitividade via maior inserção no processo de globalização (CHANG, 2009). No lado das políticas sociais, as recomendações foram de políti-cas focalizadas nas camadas mais pobres, transferência de renda su-jeita a diversas condicionalidades e reforma no amplo aspecto que pro-curou criar uma política de proteção social intervencionista do Estado, com uma intolerância deste fren-te ao pauperismo existente nessas

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Doutrinasociedades e um forte combate ao sistema de segurança e previdência social de cunho universalista. A ação do Estado deveria voltar à velha polí-tica assistencial e à filantropia priva-da como papel compensatório para a sociedade. Foi e é constante na mídia o discurso de que

O mercado ”pensa”, o mercado ”avalia”, o mer-cado ”propõe”, o mercado ”desconfia”, o mer-cado “sugere”, o mercado ”reage” [e] o merca-do ”exige”! [Com essa atitude], aos poucos, o que era antes um sujeito, o indivíduo ”merca-do” também foi ganhando ares de divindade (KLIASS, 2011, n.p.).

Essa construção simbólica pode também ser sintetizada na tentativa do convencimento político e ideoló-gico dos caminhos escolhidos para a solução da atual crise do capitalis-mo: “O mercado ‘alertou’, o mercado ‘ponderou’, o mercado ‘pressionou’, o mercado ‘exigiu’ [...] O mercado ‘conseguiu’.” (KLIASS, 2011, n.p.). Todas essas afirmações revelam que os mercados também têm agenda política. A propagação da crise do capital iniciada em 2007/2008 obteve uma pronta intervenção do Estado para evitar a propagação da quebradeira e das falências, evitando uma grave depressão. No primeiro momento, estabilizado o problema e já supon-do uma recuperação no crescimento dos países desenvolvidos, passou--se a afirmar que a crise econômica e suas consequências tinham como culpados o Estado do Bem-Estar So-cial e suas políticas keynesianas po-pulistas. A sociedade brasileira vivia,

durante a década de 1980, um pro-cesso virtuoso de redemocratização, com a sociedade e os movimentos sociais apresentando um alto índice de mobilização, lutando pelo desen-volvimento de políticas públicas de corte social no Brasil, em direção à universalização e ampliação de direi-tos sociais, baseados em princípios sociais democratas (SILVA, 1999b). Neste contexto, a hegemonia do pro-jeto ultraliberal na América Latina ainda não se fazia presente no Bra-sil. Assim, os constituintes de 1988 conseguiram construir uma ideia de proteção social que estava longe das propostas liberais e do que é divul-gado hoje pela imprensa e pelo Go-verno. Os constituintes pensaram no indivíduo de forma holística: ide-alizaram um sistema de proteção so-cial para cobrir os principais riscos a que uma pessoa estivesse submetida ao longo de sua vida; e que essa po-lítica coordenasse tanto as receitas como as despesas, de maneira que os diferentes ramos da proteção fos-sem complementares. Essa proteção tem o nome de seguridade social e compreende a previdência e a assis-tência sociais, a saúde (Sistema Úni-co de Saúde) e o seguro-desemprego (MARQUES, 2003). Entretanto, o avanço e a forma-ção pela grande mídia de um con-senso ultraliberal permitiram modi-ficações na Constituição Cidadã e na atuação do Estado desenvolvimen-tista; este passou a atuar em favor do capital financeiro. A LRF e sua irmã congênita, a Desvinculação de Receita da União (DRU), apresen-tadas como institucionalização do Estado para melhoria da sua gestão, representam uma atitude de contro-

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Doutrinalar o gasto social do Estado no Bra-sil, contra o sistema de seguridade social e impedindo o investimento do setor público.

3 O AVANÇO DO CONSENSO ULTRALIBERAL NA SOCIEDA-DE BRASILEIRA E O DOMÍNIO DO PARADIGMA “NOVO LIBE-RAL”

Com o presidente Fernando Collor de Mello, teve início um tí-mido projeto neoliberal no Brasil. Mas foi a partir dos efeitos positivos advindos do processo que debelou a inflação que o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), respal-dado pelo sucesso do Plano Real, conseguiu da sociedade e do empre-sariado o apoio para aprofundar o projeto ultraliberal no Brasil. FHC prometeu acabar com a herança de Getúlio Vargas; e, com o apoio da grande imprensa, deu forma para o grande público a uma agenda ultra-liberal no Brasil (FONSECA, 2005). O diagnostico do mainstream economics apontou como causa da crise dos países latino-americanos o populismo econômico, a indiscipli-na fiscal e o excesso de intervenção do Estado; e como remédio, discipli-na fiscal e monetária, privatização, liberalização e desregulamentação da economia. Esse receituário da nova direita ultraliberal recebeu o nome de Consenso de Washington e foi recomendado para os países da periferia do capitalismo que se ha-bilitassem a receber o investimento estrangeiro (NASSIF, 2007). Segundo Petrella (1997), o pro-jeto ultraliberal exigia que todos

fossem mais eficientes, produtivos, econômicos e gananciosos, no qual os ricos ficam mais ricos e o con-tingente de pobres aumenta. Nesse projeto, o Estado atua como fonte de valorização do capital, na busca da eficiência e competitividade; pre-sencia-se transformações do capita-lismo e acomodação dos interesses do capital em favor do capital finan-ceiro e contra os setores produtivos. No novo discurso dominante, não há mais um domínio reservado ao Esta-do e um domínio reservado ao mer-cado; a política deixa de intervir em todas as atividades. A liberalização dos mercados possibilitou a ampliação de novos instrumentos financeiros (derivati-vos), aumentou a possibilidade de especulações e favoreceu o cresci-mento da instabilidade e das crises, mostrando a insuficiência e inefici-ência do mercado. O perigo da des-centralização foi percebido pelo FMI e pelo BIRD, dado que a fragilização institucional teria ido longe demais (AFFONSO, 2003). Os governos sociais democratas e socialistas eu-ropeus foram levados a aceitar as mesmas tarefas que foram encomen-dadas aos governos conservadores neoliberais; promoveram um afasta-mento da política de uma parte cada vez maior dos seus cidadãos comuns e abdicaram de promover políticas públicas de coesão social mínima, em um processo que impulsionou a degradação da democracia (BOR-DIEU, 2001). Entretanto, a crise do capitalis-mo financeiro que se iniciou nos Es-tados Unidos da América (EUA) pôs em xeque a propalada eficiência dos mercados. A crise global, que pode-

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Doutrinaria modificar o domínio do ultrali-beralismo, foi apresentada ao gran-de público como crise fiscal, fruto de má administração de recursos públi-cos pelo Estado. Na Europa, o con-senso ultraliberal levou os partidos progressistas a perderem o senso da própria missão e de suas diferenças em relação a seus adversários. O ci-dadão ficou com a convicção de que os partidos são todos iguais. O resul-tado foi que a classe média e os se-tores populares iniciaram uma série de movimentos (como a revolta dos “indignados”, o “Ocupar Wall Stre-et” ou o “Outono Americano”), mos-trando que parte relevante da po-pulação não aceita esta justificativa. Esses movimentos, segundo Bau-man (2010), estavam a afirmar que a solução paliativa do problema real estava longe de resolver a crise. O problema não está sendo enfrentado e não foi somente a política ultralibe-ral, o salvamento do sistema bancá-rio e o acobertamento das operações financeiras fraudulentas que de fato provocaram a crise; e todos os mo-vimentos tinham um ponto em co-mum: sentimento crescente de que a classe política não conseguiu resistir às depredações da plutocracia. A realidade mostra que o Esta-do capitalista tem papel a desempe-nhar dependendo da determinação histórica. Nos momentos em que o mercado se torna incapaz e ine-ficiente, o Estado busca regular os conflitos entre classes e suas frações, apresentando relativa autonomia em relação às classes, atuando no “fio da navalha”, no papel de assegu-rar a valorização do capital, realizar Investimentos de capital fixo e social para elevar a produtividade do sis-

tema. Porém, na democracia, esse mesmo Estado necessita do voto - surge o papel de legitimação, que é a necessidade de se obter consenso e apoio das classes sociais e suas fra-ções (OLIVEIRA, 2009). Os governos concederam aos bancos mais do que aos cidadãos de seus próprios países, por intermé-dio de empréstimos junto aos mes-mos bancos falidos, que se trans-formaram em credores do Estado. Os governos dos países ricos (EUA e União Europeia) consideraram que os bancos privados eram gran-des demais para quebrar e decidi-ram salvá-los (CARNEIRO, 2011). As principais medidas para o salva-mento das maiores instituições fi-nanceiras provocaram a explosão da dívida pública no mundo rico. Nos EUA, uma auditoria realizada pelo departamento de contabilidade go-vernamental sobre operações reali-zadas pelo Federal Reserve System (FED) revelou que já ocorreu um repasse de US$ 16 trilhões para sal-var os mais importantes bancos do planeta. As autoridades da União Europeia e os ministros de finanças também decidiram pela política de salvar os bancos, mesmo sabendo que tal decisão empurraria a União Europeia para uma crise (CARNEI-RO, 2012). Além de injetar recursos públi-cos nos bancos, os governos permi-tiram a criação dos Bad Banks, ou seja, de instituições bancárias des-tinadas a absorver parte dos papéis “podres” à espera de uma destina-ção. A consequência do salvamento bancário foi que os PIIGS (acrônimo para Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) tiveram que recorrer às

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Doutrinapolíticas do FMI, Banco Central Eu-ropeu e Comissão Europeia, o que somente fez aprofundar a crise da dívida, levando a graves danos so-ciais, como, entre outros, a elevação do desemprego e cortes de salários, nas aposentadorias, nos serviços de assistência, saúde e educação; e, por fim, praticaram a velha política de privatização do patrimônio público.

4 O DISCURSO CONSERVA-DOR E O PROBLEMA DA SE-GURIDADE SOCIAL NO BRA-SIL: a direita para o social e a esquerda para o capital

O sistema previdenciário é apresentado pelos economistas ul-traliberais como o mais sério pro-blema estrutural das contas públicas no Brasil, devido a questões como a estrutura demográfica, as mudanças no mercado de trabalho e os efeitos da Constituição de 1988, que ins-tituiu o sistema de seguridade so-cial e outro sistema destinado aos servidores públicos. A constituição brasileira de 1988, conforme Bos-chetti (2005, 2006), procurou criar um sistema universal, com unifor-midade e equivalência, seletividade e distributividade, diversidade do fi-nanciamento e gestão democrática e descentralizada. Ocorre que os prin-cípios constitucionais da seguridade social no Brasil, desde o início, estão sob constante ataque dos conserva-dores; e os direitos nunca foram uni-formizados e universalizados pelo governo brasileiro. A Constituição de 1988 esfor-çou-se para superar imensos atrasos herdados. Todavia, a nova propos-

ta de Estado e o novo projeto para o País não vingaram. O Estado per-maneceu subalterno às tradicionais classes dominantes. Somente no go-verno do presidente Luís Inácio Lula da Silva (Lula), criou-se um mercado interno significativo e promoveu-se o crescimento de uma nova classe de consumidores, embora sua política econômica tenha premiado os mais ricos. O processo desencadeado por Lula abriu uma dinâmica socioe-conômica de baixo para cima. Des-de então, fala-se e escreve-se muito no Brasil sobre classe média; termo ainda inadequado, se focalizado em um debate amplo e de maior con-teúdo. Apresenta-se esta nova rea-lidade de maneira distorcida: para exaltá-la em tom de propaganda ou para atraí-la em perspectiva eleito-ral (BERNABUCCI. 2012; POCH-MANN, 2012). A desigualdade é apontada como o fracasso da esquerda na América Latina e no Brasil, em par-ticular. Segundo o relatório “Estado de las ciudades de América latina y Caribe 2012”, do Programa de las Naciones Unidas para los Asenta-mientos Humano (ONU-HABITAT, 2012), o Brasil é o quarto país mais desigual da região mais desigual do mundo. A sociedade brasileira só é menos desigual que dois Estados se-mifalidos, Guatemala e Honduras, e que a Colômbia, em virtual guerra civil há mais de meio século - mui-to diferente, portanto, do ufanismo do Governo Lula e de determinados analistas ortodoxos, que afirmam ter havido uma redução na desigual-dade brasileira. As evidências são perceptíveis:

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Doutrinaos gastos com juros e amortizações da dívida e previdência e assistência sociais foram imensamente maiores que os gastos com educação e cultura e saúde e saneamento (OLIVEIRA, 2009). A política econômica e social representa uma política de domina-ção burguesa, para dar conta e legi-timar a velha dominação das elites conservadoras: “a direita para o so-cial e a esquerda para o capital”; as práticas políticas e culturais, surpre-endentemente convergentes de uma direita cheia de sensibilidade social e de uma esquerda comprometida com a ordem do capital (LEHER, 2010) - foi assim que surgiu a LRF.

5 A LEI DE RESPONSABILIDA-DE FISCAL E A ATUAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO: a direi-ta para o social e a esquerda para o capital

São evidentes as históricas de-ficiências institucionais e organiza-cionais na gestão das contas públi-cas no Brasil. A adoção de iniciativas nesse processo institucional ocorreu em um lento avanço na promoção e no aperfeiçoamento dos mecanis-mos e na melhoria organizacional e no financiamento do Estado brasi-leiro. Acontece que, historicamente, na grande maioria das vezes, sempre se buscou atender a interesses espe-cíficos em detrimento dos interesses gerais da nação. Dessa forma, lenta-mente, ocorreram avanços institu-cionais, introduzidos com a criação de órgãos como os tribunais de con-ta e, em 1964, iniciou-se, no gover-no militar, uma reforma ampla que criou um ordenamento das finanças

brasileiras com a criação do Minis-tério da Fazenda, do Banco Central, dentre muitas outras medidas, obje-tivando promover a estabilização e o desenvolvimento da economia. Mes-mo após os diversos avanços e refor-mas, não existia ainda um adequado gerenciamento das contas públicas. Os principais problemas encontra-dos estavam relacionados às poucas informações disponíveis, ao nível de detalhamento inadequado das con-tas, à multiplicidade das peças orça-mentárias (União, previdência social e orçamento monetário) e à existên-cia de uma defasagem temporal na prestação de contas (LEITE, 2011). A partir dos anos 1980, ocorreu um avanço nos instrumentos e cri-térios de racionalidade; e a adoção de novas instituições buscou forne-cer transparência e participação no setor público brasileiro na tentativa de superar a situação de desconhe-cimento e descontrole na gestão das contas públicas no País. Entretanto, as regras de controle de gastos e de endividamento de estados e muni-cípios, assim como meios legais de punição para quem as infringissem, não eram aplicadas (LEITE, 2011). Durante a década de 1990, a situação financeira dos entes fede-rativos nacionais apresentava-se in-sustentável e, em abril de 1994, foi criado o projeto de lei complemen-tar n. 8, que deu origem à LRF, ob-jetivando comprometimento com a austeridade fiscal, com grande apoio da mídia conservadora que havia forjado um consenso em favor do livre mercado, contra o gasto públi-co, a carga tributária, e em favor do equilíbrio nas contas públicas (FON-SECA, 2006).

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Doutrina A LRF é considerada o último e grande instrumento institucional desse processo que proporcionou ao governo brasileiro tomar conheci-mento da situação fiscal, garantindo um grau de sofisticação no gerencia-mento das contas públicas; desfazia e abria a “caixa preta”, no que diz respeito às contas públicas, ao criar mecanismos de gestão que norteiam as normas e os procedimentos das finanças (planejamento, orçamento, execução e controle interno e exter-no do gasto social). O grande público foi catequi-zado via pregação dos economistas do mainstream que apresentaram a LRF como um grande marco insti-tucional na gestão das finanças pú-blicas no Brasil. Porém, a LRF e as principais análises dessa reforma institucional encobriam que o prin-cipal objetivo da referida lei era pos-sibilitar e construir um tipo de po-lítica macroeconômica que criava e viabilizava um conceito criado e exi-gido pelo FMI - o superávit primário - para o controle das contas públicas em prol do capital financeiro. Embora essa lei possa ter trazi-do alguns benefícios à administração e utilização dos recursos públicos, mormente nas esferas subnacionais de governo, na realidade, a LRF co-locou acima de quaisquer outros interesses o interesse da classe ren-tista e dos credores do Estado, prio-rizando o interesse do capital em geral, contra a sociedade, e da classe capitalista rentista, contra a nação. A suposta austeridade e responsa-bilidade fiscal do Estado brasileiro - União, estados e municípios - exigiu um elevado aperto fiscal e redução de gastos nas áreas de pessoal, social

e até investimento, mas deixaram li-vres os gastos financeiros. Conforme exposto por Gon-çalves e Quintela (2011), a dívida fi-nanceira é priorizada em detrimen-to das políticas e das ações sociais. A histórica dívida social para com a nação é jogada para debaixo do ta-pete. A intenção da LRF foi atrelar o superávit primário ao pagamento da dívida pública da União, que têm apresentado um peso médio de 7% no orçamento dos gastos com juros na esfera federal, levando o governo de FHC a elevar a carga tributária de 28% para 36%, mesmo percentual do gasto com juros. É comum, diariamente, a gran-de mídia divulgar dados de que o problema do déficit público decorre dos elevados gastos na área social, mormente na previdência social. Os economistas que respaldam e defen-dem essa tese são Fábio Giambiagi (2007, 2010) e Raul Velloso (2009), este, também consultor. Dessa for-ma, todo o esforço fiscal do Estado brasileiro serve ao rentismo; tem-se um gasto público improdutivo, que não gera emprego e nem contribui para elevar a capacidade produti-va da economia nem elevar a renda dos trabalhadores e dos excluídos, aumentando apenas a escandalosa apropriação da renda nacional pe-los mais favorecidos (GONÇALVES, 2008).

6 A LEI DE RESPONSABILIDA-DE FISCAL E A POLÍTICA SO-CIAL NO BRASIL: entre a polí-tica pública e o mercado

No momento em que Lula to-

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Doutrinamou posse como presidente do País, deparou-se com esse modelo ultrali-beral; e estava diante de um dilema: ruptura ou continuidade? Continuar a política do segundo mandato de FHC, sob os auspícios do FMI e do BIRD, ou romper com essa trajetó-ria e reorientar a política macroeco-nômica com um novo projeto com objetivos e propósitos alicerçados nas ideias progressistas históricas do Partido dos Trabalhadores (PT)? A alternativa escolhida foi, cla-ramente, a de dar continuidade e aprofundamento ao modelo ante-riormente adotado, não somente no campo da política de gerenciamen-to macroeconômico de curto prazo, mas também na implementação e aprofundamento do desastroso mo-delo liberal dos anos 1990, haja vis-ta a prioridade dada e a forma como foram implementadas as reformas previdenciária e tributária pelo Con-gresso. Naquele momento, porém, o PT já sabia que a implantação desse modelo na América Latina provocou uma grave crise na região, decorren-te, fundamentalmente, da utilização das políticas neoliberais. A América Latina tornou-se a região mais instá-vel, em termos econômicos, sociais e políticos do mundo. Em diferentes países latino-americanos verificou--se uma crise, ou melhor, a mesma crise sobre formas diferenciadas, sendo que a Argentina, por ter sido o país que mais seguiu à risca o recei-tuário neoliberal, teve a crise mais grave e foi a maior vítima (SADER, 2005). No Brasil, a LRF e a DRU con-tinuam a defender um orçamento equilibrado como princípios funda-mentais dos ultraliberais na defesa

da eficiência e zelo na administração pública. A imprudência e a falácia desses intelectuais procuram enco-brir a luta pela apropriação privada dos recursos públicos; suas críticas contra o gasto público resumem--se aos gastos governamentais es-senciais para as funções sociais do governo. Assim, a LRF representa apenas a absoluta subordinação do espaço público ao setor privado. Essa interpretação deformada é repetida nos diversos tipos de mídia; e também é corrente até em muitos currículos universitários (graduação e pós-graduação). Trata-se de um movimento coordenado, persisten-te e volumoso dos conservadores, que atuam em diversas frentes para influir junto à opinião de cidadãos desinformados e até em meio à in-telectualidade. O principal método é a repetição. As ideias mais absurdas são repetidas de forma incessante para dominar o coração e a mente do grande público (SICSÚ, 2007). Em meio à crise que se abateu sobre a outrora eficiente economia de mercado, os postulados contra a gastança pública e defesa intransi-gente da responsabilidade fiscal fo-ram eficazes e imediatamente esque-cidos. Os recursos que não deviam e nem podiam ser gastos na área social para atender à saúde e à educação da grande maioria da população jor-raram para salvar os ricos e bem de vida, onde foi preciso e quanto fosse necessário (POCHMANN, 2008). O debate sobre alternativas são relegados apenas a aspecto técnico de um modelo que privilegia o gran-de capital, em especial o financeiro. O tratamento da mídia aos temas considerados relevantes demonstra

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Doutrinaexistir uma orientação das direções dos órgãos da imprensa sempre di-rigida na defesa dos interesses de grandes grupos econômicos e de po-der (KLIASS, 2012). A LRF, entretanto, levava o go-verno do Brasil a ficar comprome-tido com a política de austeridade fiscal voltada para medidas de curto prazo, com uma política de soluções parciais e provisórias suficientes para honrar os juros da dívida públi-ca. Visando a superávits primários, essa política impede políticas sociais redistributivas e ataca os direitos dos trabalhadores sob o pretexto de saldar deficits da previdência social. Sob uma capa pós-moderna de neu-tralidade axiológica, os economistas ortodoxos encobrem que desenvol-vimento é expressão da liberdade e da igualdade (OLIVEIRA, 2009). A economia não vinha crescen-do por melhoria salarial, de empre-go e programas de investimento pú-blico. A redução salarial entre 1994 a 2004 não criou demanda nem base na renda permanente, investimen-to. O Brasil, ao aderir incondicional-mente ao processo de globalização financeira, passou a dispor de re-duzida capacidade de crescimento, desvinculado da dinâmica da eco-nomia mundial; recebeu os benefí-cios do boom do recente processo de crescimento mundial e sofrerá bas-tante os impactos da recessão glo-bal. O povo é enganado com o cres-cimento econômico de 2004-2010 e fica deslumbrado com a possibilida-de de consumir; os sindicatos sofre-ram um processo de cooptação dos principais lideres pelo Governo; o movimento dos sem terra foi para-lisado e a reforma agrária agoniza;

e os problemas ficaram esquecidos pela ilusão do consumismo, do au-mento do crédito, do emprego e do salário real. Por outro lado, a dívida pública, o gasto para com os bens de vida, continua a crescer. É bom esclarecer que as polí-ticas assistencialistas implementa-das no Governo Lula, embora não tenham mudado em nada as estru-turas arcaicas da sociedade brasi-leira, não pode ser desprezada nem abandonada. Como constatou Qua-dros (2007): “A miséria não está ex-plodindo porque as políticas sociais têm dado conta.” Só que o assisten-cialismo na área social representa a continuação da política focalizada herdada do governo de FHC e me-lhorada na administração de Lula. Essa política vem redistribuindo renda intraclasse trabalhadora. Nes-se quadro, Pochmann (2008) cons-tatou que a classe média está em vias de extinção: nos últimos anos, desapareceram 10 milhões de brasi-leiros da classe média, sendo que 3 milhões foram promovidos a ricos e 7 milhões caíram na malha do bolsa--família. Como o Governo Lula con-tinuou implementando a política macroeconômica liberal, Antunes (2007) afirmou que “Nunca antes na história desse país um governo de esquerda fora tão generoso com os lucros dos bancos e dos grandes capitais, tão camaradas com os usi-neiros e por demais cordial com o agronegócio.” Nesse ciclo econômi-co, o Brasil regrediu novamente ao papel de fornecedor mundial de ma-térias-primas, sem qualquer preo-cupação com uma política industrial e de desenvolvimento econômico,

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Doutrinaexportando produtos primários que agregam pouco ou nenhum valor, exportando os melhores empregos, perdendo negócios na área dos ma-nufaturados e reforçando a sua de-pendência histórica.

Notas

1 É comum o uso dos termos neoliberal e neoliberalismo,

que, no fundo, são muito mais velhos. Desse modo, o con-

ceito mais adequado é o de ultraliberal, dado o radicalismo

dos liberais do século XX. Suas ideias são as de que o Es-

tado é sempre ruim e de que a empresa privada é sempre

competente. E, mais importante ainda, o ultraliberalismo

não valoriza a democracia política. A democracia liberal

significa transparência e honestidade (FONSECA 2006).

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DoutrinaAfinal, para que servem

os Comitês nas Companhias?1

por Denis Morelli

É cada vez mais comum ouvir-mos falar na presença de Comitês va-riados nas companhias brasileiras. Mas será que sabemos, realmente, para que servem esses órgãos? Bem, a resposta não é simples. Antes de tudo, e como já estamos acostumados, especialmente nos es-tudos de Direito Comercial, é preciso recorrer à história para compreender a adoção de certas práticas. Ao que se sabe, o Comitê de Au-ditoria – a estrela desse movimento percebido nas companhias – é mes-mo o irmão mais velho dos demais Comitês. Ele começou a se fazer pre-sente nas companhias norte-ameri-canas provavelmente no início dos anos 30 e, mais certamente, a partir de 1940, quando a Securities and Ex-change Commission (órgão regula-dor do mercado de capitais dos Esta-dos Unidos) publicou recomendações generalizadas para que Comitês de Auditoria fossem criados. A ideia era que tais Comitês ti-vessem a função de averiguar as con-tas que seriam divulgadas aos acionis-tas pela administração da companhia. Por isso mesmo, e evidentemente, era imprescindível que os membros dos Comitês fossem independentes em re-lação aos membros da administração. Caso contrário, não se poderia confiar ao órgão o seu objetivo mediato: de evitar a concretização de fraudes e de desvios por parte da administração, em desfavor dos acionistas e da pró-pria companhia.

Aqui, é importante abrir um pa-rêntese para retomar a ideia de que as companhias norte-americanas – ao contrário do que ocorre na maioria das companhias brasileiras, adiante--se – não são controladas por um acionista ou grupo de acionistas bem definidos. Via de regra, nos Estados Unidos, o capital das companhias é composto por acionistas detentores de parcelas menores, ou seja, sem que haja destaque a um acionista ou a um grupo com posição majoritária. Diz-se, assim, que o controle é disper-so. Em termos práticos, os acionistas, verdadeiramente anônimos uns aos outros, possuem dificuldade para se reunir e exercer ingerência na admi-nistração das “suas” companhias, as quais acabam sendo dominadas pe-los próprios administradores. Fecha o parêntese. O Comitê de Auditoria foi, as-sim, sendo progressivamente reco-mendado, ou mesmo exigido, nas companhias norte-americanas. Pa-recia um bom mecanismo para mo-nitorar os administradores e os seus eventuais abusos. E o clamor pelo ór-gão só aumentava após a ocorrência de fraudes corporativas notórias e de grandes crises. Paralelamente a isso, foi se per-cebendo a necessidade de monitorar outras formas de abuso dos adminis-tradores das companhias de capital disperso, que não necessariamente seriam detectadas nos trabalhos dos Comitês de Auditoria. Isso ocorria,

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Doutrinapor exemplo, nos casos em que os ad-ministradores estabeleciam para si próprios salários desmedidos, estra-tosféricos, sem a necessária relação com o resultado dos seus trabalhos e, principalmente, com o desempenho da companhia. Apuravam-se preju-ízos, acionistas recebiam menos ou nenhum dividendo, e os salários e os benefícios dos executivos, não obs-tante, não se alteravam. Ou, pior, au-mentavam. Para esse tipo de problema, sur-giram os já também famosos Comitês de Remuneração. Tão óbvia quanto a função desses órgãos é a necessidade de que sejam compostos exclusiva-mente por membros independentes, sem relacionamento com os demais membros da administração. Aliás, é coerente que os debates acerca dos Comitês tenham evoluído juntamente com discussões mais am-plas, concernentes à necessidade de membros independentes na compo-sição do board of directors2 das com-panhias norte-americanas de capital disperso. Em todos os casos, busca-se que as decisões mais importantes na companhia não sejam (tão) influen-ciadas pelos interesses egoísticos de seus próprios executivos. Foi quando se passou a reco-mendar que as companhias criassem Comitês de Nomeação, os quais, mais do que serem compostos por mem-bros independentes, deveriam asse-gurar que houvesse independência na composição dos demais Comitês com funções de monitoramento (como os de Auditoria e de Remuneração), bem como em parcela do próprio board of directors – por conta desse mesmo processo evolutivo, não mais se per-mite que o board of directors seja composto apenas pelos executivos da

companhia, tal como ocorria antiga-mente. Foi assim que esses três Comi-tês – de Auditoria, de Remuneração e de Nomeação – passaram a ser con-siderados o tripé necessário para o monitoramento dos administradores nas companhias de capital disperso. Nos Estados Unidos, levantamentos indicam que virtualmente todas as companhias listadas já possuem, no mínimo, esses três Comitês em suas estruturas3. Ao redor do mundo, os números também crescem e, cada vez mais, esse trio ganha lugar de desta-que nas variadas Cartilhas de Reco-mendações de Governança Corpora-tiva4. Mas, como ocorre com várias ou-tras práticas importadas, temos que pensar na real utilidade dos Comi-tês para as companhias brasileiras. É preciso, antes de tudo, ponderar se os problemas que afetam a administra-ção das nossas companhias asseme-lham-se àqueles existentes nas com-panhias norte-americanas, nas quais o conflito de interesses predominante está na relação entre administradores e a base acionária dispersa. Até por-que, pelo menos originalmente, foi esse problema que motivou a criação dos Comitês. Nessa linha de raciocínio, ao considerarmos o grupo, hoje em dia não desprezível, de companhias na-cionais com controle disperso5, temos que os Comitês, nestes casos, podem servir ao mesmo propósito a que ser-vem nas companhias norte-america-nas. Para isso, indispensável que os Comitês tenham a sua independência assegurada – em relação ao restante da administração da companhia – e, também, que divulguem amplamente os seus trabalhos para toda a massa

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Doutrinaacionária. Somente assim agirão em defesa dos acionistas, em relação a eventuais abusos. Porém, como já se adiantou, o controle disperso é exceção no Bra-sil, sendo que as companhias, em sua maioria, possuem controle concen-trado, bem definido. Por essa mes-ma razão, os administradores das companhias nacionais não têm, nor-malmente, a mesma liberdade ou po-der que detêm os administradores das companhias de capital disperso. Aqui, o controlador consegue exer-cer influência na condução dos negó-cios da companhia e, assim, tem mais ferramentas para evitar que ocorram desvios por parte da administração. Em especial, o controlador tem po-deres para, direta ou indiretamente, eleger a maior parte dos membros Conselho de Administração. Por isso, se os administradores não fizerem jus à expectativa do controlador, é de se esperar que percam seus empregos rapidamente – ou, ao menos, muito mais rapidamente do que ocorreria em uma companhia de capital disper-so6. Dada essa característica da maioria das companhias brasileiras, alguém dirá que os Comitês devem focar o monitoramento de eventuais abusos dos acionistas controladores em relação aos minoritários – este sim seria o conflito de interesses com o qual deveríamos nos preocupar, correto? Em tese, sim, ao menos para que pudéssemos fazer um paralelo com os objetivos originais dos Comi-tês. Em termos práticos, contudo, a questão não é tão simples. Primeiro, porque não seria lógico esperar esfor-ços do acionista controlador para ins-talar, dentro da “sua” companhia, um órgão para controlar os seus próprios

atos (abusivos ou não). Segundo, em relação aos minoritários, dir-se-á que a lei nacional já cuidou desse proble-ma, com a previsão do Conselho Fis-cal, órgão com competência para fis-calizar não só a administração, mas também eventuais abusos do contro-lador. Dentro desse quadro, forço-so assumir que, tal como ocorreu no caso norte-americano, a implemen-tação de órgãos para se contrapor ao núcleo de controle nas companhias é algo que nunca partirá desse próprio núcleo. Tampouco será medida que advirá do grupo mais fraco, domina-do (justamente porque lhe falta poder para tanto). Dessa forma, tanto lá, quanto aqui, espera-se que medidas dessa natureza só sejam implemen-tadas mediante uma força externa7, como, por exemplo, por exigência de órgãos reguladores e entidades de au-torregulação. Nesse aspecto, é possível verifi-car uma série de medidas que procu-ram incentivar a adoção de Comitês nas companhias nacionais. Por parte do xerife do mercado (a Comissão de Valores Mobiliários), isso se verifica, por exemplo, nas “Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa”, bem como na recente Instrução CVM nº 509/11, que oferece um “prêmio” para as companhias que criarem um “Comitê de Auditoria Estatutário” – existindo este órgão, o prazo para ro-dízio dos auditores externos aumenta de cinco para dez anos. Há, também, a Resolução CMN nº 3.198/04, que obriga (e não só recomenda) que al-gumas instituições financeiras man-tenham o Comitê de Auditoria em suas estruturas. Em todos esses casos, porém, as normas sobre os Comitês não são

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Doutrinaexatamente voltadas ao combate do problema do conflito de interesses. Notadamente, não se exige que os membros dos Comitês sejam inde-pendentes do controlador (e, em al-guns casos, nem mesmo da adminis-tração da companhia). E, via de regra, não se costuma exigir que os traba-lhos dos Comitês sejam amplamente divulgados para a base acionária da companhia. O que ocorre, na maioria dos ca-sos nacionais, é que os Comitês são designados para a função de asses-soramento do Conselho de Adminis-tração. São órgãos meramente opi-nativos, técnicos, que não costumam assumir a função de mitigar os confli-tos de interesses predominantes nas companhias8. Quanto a esse ponto, observa-se que a função de assessoramento é a que mais combina com a previsão le-gal que abarca os Comitês na Lei das S.A., qual seja, aquela contida no ar-tigo 160, que estende as normas rela-tivas aos deveres e responsabilidade dos administradores das companhias aos “membros de quaisquer órgãos, criados pelo estatuto, com funções técnicas ou destinados a aconselhar os administradores”.Além disso, tem-se o disposto no arti-go 139 da Lei das S.A., segundo o qual “as atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatu-to.” Assim, se a lei já prevê a função de fiscalização/monitoramento para alguns órgãos, alguns dirão que não será possível aos Comitês fazer o mes-mo. A leitura do texto legal, destarte, permite uma série de indagações: Qual é a utilidade de se importar o modelo

internacional de Comitês – concebi-dos para o monitoramento dos admi-nistradores – se retiramos deles a sua função precípua e restringimos suas atividades ao assessoramento técni-co e consultivo? Não podem, de fato, os Comitês desempenhar funções de monitoramento também nas compa-nhias Brasileiras? Ou será que esse trabalho de monitoramento de even-tuais abusos praticados por adminis-tradores e por controladores deve fi-car restrito ao Conselho Fiscal? E, em caso positivo, como ficam as compa-nhias nacionais com capital disper-so? Devem elas fazer uma espécie de adaptação inversa, e criar Conselhos Fiscais para trabalhar como se fos-sem os Comitês norte-americanos? Essas questões não merecem respostas simples. O que se pode afirmar, por ora, é que os Comitês, no Brasil podem não estar exercen-do funções de monitoramento e de combate aos conflitos de interesses, já que, em muitos casos, ficam restri-tos a funções de assessoramento téc-nico e consultivo. E isso é o suficiente para que se relativize a importância na adoção generalizada desses órgãos nas companhias.

Notas

1 Esse artigo resume algumas das pesquisas e opiniões con-

tidas na dissertação de mestrado do autor, intitulada “Os

Órgãos Técnicos e Consultivos da Sociedade Anônima”,

defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, neste ano de 2012.2 O Board of directors é o órgão máximo da administração

das companhias norte-americanas. Ao menos para os fins

deste artigo, ele pode ser comparado ao Conselho de Ad-

ministração das companhias brasileiras.3 Conforme levantamento da consultoria Spencer Stuart,

constatou-se que a partir de 2001, nos Estados Unidos,

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Doutrina100% das companhias que compõem o índice Standards

and Poors 500 (ou S&P 500) já contavam com Comitês

de Auditoria e de Remuneração. E, a partir de 2006, 99%

dessas companhias também já contavam com Comitês de

Nomeação ou de Governança. Disponível em http://con-

tent.spencerstuart.com/sswebsite/pdf/lib/SSBI_2011_fi-

nal.pdf.4 Na Europa, a presença destes Comitês é reforçada, em

especial, por influência do Código de Governança Corpo-

rativa divulgado no Reino Unido. Os três comitês mencio-

nados estão previstos desde primeira edição do Cadbury

Code, de 1992, até a última revisão do “The UK Corporate

Governance”, de junho de 2010. Disponível em http://

www.frc.org.uk.5 Ao que se atribui, em grande parte, à criação do Novo

Mercado e dos demais segmentos especiais de listagem

pela antiga Bovespa e hoje mantidos pela BM&FBovespa.6 Esclareça-se que não se está, aqui, ignorando o risco de

uma administração ludibriar o controlador. Há casos em

que isso, de fato, ocorre. Só se está dizendo que o proble-

ma, no Brasil, ganha outra dimensão. Aqui, o grande tipo

de conflito societário ainda é aquele entre o acionista con-

trolador e os minoritários. E isso não é de hoje. Basta uma

breve leitura da Exposição de Motivos da Lei das S.A. para

se confirmar essa ideia.7 A primeira grande força que exigiu das companhias nacio-

nais adotassem Comitês não surgiu no país. Isso ocorreu

com as companhias nacionais emissoras de ADRs (Ameri-

can Depositary Receipt), que, por exigência da lei norte-

-americana Sarbanes-Oxley Act, tiveram que implantar

Comitês de Auditoria ou, então, adaptar seus Conselhos

Fiscais para exercerem as funções daquele órgão. 8 Talvez a grande exceção a essa afirmação – de que os Co-

mitês no Brasil não costumam exercer funções de fiscali-

zação/monitoramento – seja o chamado “Comitê Especial

Independente”, recomendado pela CVM no seu Parecer

de Orientação nº 35. Em breve resumo, neste Parecer de

Orientação, a CVM sugere a criação de um “Comitê Espe-

cial Independente” para atuar em operações entre partes

relacionadas, ou seja, em operações que, potencialmente,

o acionista controlador pode se beneficiar desproporcio-

nalmente, em relação aos acionistas minoritários (preju-

dicando-os, consequentemente).

Em que pese a adequação do “Comitê Especial Indepen-

dente” ao problema de conflito de interesses intrínseco à

maioria das companhias brasileiras, é certo que tal órgão

é alvo de severas críticas (assim como próprio Parecer de

Orientação CVM nº 35, como um todo). E essas críticas já

foram objeto, entre outros estudos, de ótimo artigo de au-

toria de João Vicente Carvalho, publicado aqui mesmo, no

2º Volume de “O Comercialista”, no ano de 2011.

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Denis Morelli é mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ad-vogado do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados.E-mail: [email protected]

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A distribuição de sobras, oferta pública ou privada?

O presente artigo vale-se do regime jurídico aplicável às sobras, nos casos de um aumento de capital realizado mediante subscrição pri-vada, para discutir, nos planos teó-rico e prático, a difícil questão acer-ca da qualificação de determinada oferta de valores mobiliários como pública ou privada. Mais especifi-camente, o presente artigo procura se posicionar quanto à necessidade ou não de que a venda das sobras em bolsa, conforme determina a lei acionária, dê-se por meio de uma oferta pública, como atualmente quer a Comissão de Valores Mobili-ários, ou se existe, para a adminis-tração das companhias, uma discri-cionariedade que as permite colocar essas ações no mercado mediante uma oferta privada. O tema se justifica, a meu ver, seja por suas significativas repercus-sões práticas – refiro-me à obrigato-riedade, nas hipóteses de ofertas pú-blicas, do registro da própria oferta, do emissor dos valores mobiliários e do intermediário da operação –, seja pela reflexão teórica que promove, abrangendo um conceito que, à se-melhança do conceito de valor mo-biliário, delimita em alguma medida a esfera de competência da CVM. O texto está estruturado da se-guinte forma: após estes parágrafos introdutórios, apresenta-se breve-mente a disciplina jurídica das so-bras; logo em seguida, inicia-se o estudo dos conceitos de oferta pú-

blica e privada, dando-se ênfase às normas que tratam do tema e, na se-quência, ao entendimento atual do regulador; por fim, procura-se ofe-recer uma conclusão que, para além de resolver os casos concretos de distribuição de sobras, contribua de alguma maneira para as discussões sobre os conceitos de oferta pública e privada. Pode-se definir as sobras de um aumento de capital mediante subs-crição privada, pelo menos para os fins deste artigo, como a diferença entre a quantidade de ações emiti-das e a quantidade de ações efetiva-mente subscritas. E, a despeito da existência de procedimentos tendentes à elimina-ção (ou à redução do número) das sobras1, o fato é que, nos aumentos de capital mediante subscrição pri-vada, eventuais sobras deverão ser vendidas em bolsa2. O racional sub-jacente a este expediente é o de que se deve buscar atingir integralmen-te, inclusive mediante esforços pú-blicos, o valor aprovado pelo órgão competente. Afinal, se se deliberou aumentar capital em um dado valor, é de se pressupor, pelo menos em li-nha de princípio, que esta aprovação foi tomada após um juízo da oportu-nidade e da conveniência da capta-ção daquele volume específico. Feitas essas observações, pode--se voltar à pergunta central deste artigo, qual seja, a venda das sobras em bolsa representa uma oferta pú-

Doutrina

por João Vicente Carvalho

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Doutrinablica ou uma oferta privada? Deve-se destacar, de início, que a complexidade do problema está, também, relacionada à forma como o legislador e o regulador trataram desses conceitos. A definição de ofer-ta privada, por exemplo, só pode ser feita por exclusão, isto é, pela prévia definição da oferta pública, cuja nor-ma de regência é o art. 19, § 3º da Lei n.º 6.385/1976:

“Art. 19. (...) § 3º - Caracterizam a emissão pú-blica: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios destinados ao público; II - a procura de subscritores ou adquirentes para os títulos por meio de empregados, agen-tes ou corretores; III - a negociação feita em loja, escritório ou es-tabelecimento aberto ao público, ou com a uti-lização dos serviços públicos de comunicação.”

Como se vê, a lei não define propriamente o que é uma oferta pública, limitando-se a enumerar al-guns atos que implicariam a caracte-rização de tal modalidade de oferta. De toda forma, a partir da análise desses atos, parece possível inferir que uma oferta é pública ou priva-da conforme exista apelo ao públi-co. Vale dizer, é a forma pela qual a oferta chega ao seu destinatário que a define como pública ou privada. Entretanto, e embora a lei si-lencie a respeito, é preciso apontar que aquela primeira constatação, no sentido de que não há um conceito legal (expresso) de oferta pública, levou a doutrina a afirmar que tam-bém os critérios aptos a qualificar uma oferta como pública seriam exemplificativos. Assim, conside-

rando-se que a principal consequ-ência da natureza pública de uma oferta é a sua submissão ao sistema de registros da Lei n.º 6.385/1976, e que este sistema tem a função ins-trumental de assegurar ao mercado o acesso às informações necessárias a uma tomada de decisão, impor-se--ia, para a qualificação da oferta, a verificação de determinadas carac-terísticas pessoais dos destinatários da oferta. Os aspectos subjetivos elenca-dos pela doutrina, escorada também na evolução jurisprudencial norte--americana, são os seguintes: (i) grau de sofisticação dos investido-res, e (ii) acesso por outros meios às informações sobre a oferta e sobre o emissor que usualmente são dispo-nibilizadas por meio do sistema de registros. Quanto ao primeiro pon-to, trata-se de verificar se a oferta é colocada exclusivamente junto a investidores que ostentam “conhe-cimentos e experiência em ques-tões financeiras e empresariais e se são capazes de avaliar os riscos e o mérito do investimento ”. Se assim o for, entende-se que a oferta terá natureza privada, pois os seus desti-natários prescindiriam da proteção estatal conferida pelo sistema de re-gistros. De forma semelhante, e ago-ra no que diz respeito ao segundo ponto, alega-se que “se os investido-res já estão de posse de informações que lhes permitem uma tomada de decisão consciente, não há porque se obrigar a companhia emissora a proceder ao registro perante a auto-ridade governamental, com custos desnecessários”4. Mais do que indicar novos ele-mentos a serem considerados, a

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Doutrinadoutrina também declara a superio-ridade destes sobre aqueles que têm base legal, afirmando que, nas hipó-teses de conflito, deve-se privilegiar os referidos elementos subjetivos5. O regime legal, contudo, não parece acolher tal interpretação. E isto definitivamente não significa um desprezo pelas características pessoais dos destinatários da oferta; ao revés, entende-se que estes ele-mentos não fazem parte do suporte fático qualificador da oferta públi-ca, mas, antes, são dados a serem ponderados pelo órgão regulador na formação de seu juízo a respeito da dispensa da obrigatoriedade do re-gistro ou da admissão de um proce-dimento diferenciado6. A defesa feita até aqui se fun-damentou na enunciação dos atos típicos de oferta pública contida no § 3º do art. 19 da Lei n.º 6.385/1976 e, principalmente, no racional que deles de extrai. Porém, deve-se ter em conta que a parte inicial do § 5º deste mesmo dispositivo7, ao dele-gar competência à CVM para definir outros suportes fáticos que caracte-rizem uma oferta pública, exige que se considere, também, as outras nor-mas da autarquia que versam sobre o tema. Ao se analisar aquela que cons-titui, hoje, o centro da disciplina re-gulatória das ofertas públicas – a Instrução CVM n.º 400/2003 –, observa-se desde logo, no caput e no § 1ºart. 38, inserido no capítulo “Exi-gência de registro de ofertas públicas de distribuição”, que o critério legal dos “esforços públicos” foi replicado e aperfeiçoado, de modo que o uso de meios de comunicação só carac-terizará a natureza pública da oferta

quando forem dirigidos ao “público em geral”. Prosseguindo na leitura da norma, no entanto, e agora já no ca-pítulo “Dispensa do registro ou de requisitos”, percebe-se que as carac-terísticas pessoais dos destinatários aventadas pela doutrina aparecem listadas no inciso I do § 4º do art. 4º, onde se encontram outros elemen-tos aptos a “dispensar o registro ou alguns dos requisitos, inclusive pu-blicações, prazos e procedimentos previstos nesta Instrução”. A quali-ficação da oferta como pública, por-tanto, também no sistema da Instru-ção CVM n.º 400/2003, independe da sofisticação dos investidores e de seu poder de barganha. De lá para cá, a autarquia pro-nunciou-se sobre a matéria por meio dos Pareceres de Orientação CVM n.º 32 e n.º 33, de 30.9.2005, e edi-tou a Instrução CVM n.º 476/2009, sempre se mantendo fiel ao entendi-mento de que é a utilização de meios de comunicação voltados ao público em geral que determina a natureza da oferta de distribuição9. Não obs-tante, é digno de nota o esclareci-mento feito pelo Parecer CVM n.º 32 no sentido de que medidas preventi-vas, voltadas a não permitir o acesso do “público em geral” à oferta, po-dem evitar a caracterização de uma oferta como pública mesmo quando são empregados meios de comuni-cação públicos, como a Internet10. Analisadas as regras relativas à matéria, pode-se passar ao enten-dimento atual da autarquia quanto à natureza da venda em bolsa das sobras de determinado aumento de capital realizado mediante subs-crição particular. Para tanto, faz-se

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Doutrinareferência ao julgamento do Pro-cesso Administrativo CVM n.º RJ 2012/4172, de 10.7.2012, seja por ser o mais recente entre os precedentes, seja porque parece ser o mais taxa-tivo. Nesta ocasião, o Colegiado da CVM sistematizou o regime legal da distribuição de sobras de ações de tal forma que se acabou reconhe-cendo a existência de “um regime de gradação, dentro do qual se assume que quanto maior o volume da ofer-ta, mais requisitos deverão ser ob-servados pela companhia emissora para a distribuição das sobras”11. Em sintonia com tudo o que já se defendeu neste artigo, há ao me-nos três observações a serem feitas. Inicialmente, destaco que esta abor-dagem parece pressupor que a colo-cação das sobras dar-se-á, sempre, por meio de uma distribuição públi-ca, indiscutivelmente sujeita a regis-tro, cabendo apenas, em situações excepcionais, a dispensa do registro pela CVM. Esse enfoque, todavia, é no mínimo discutível, pois o art. 171, §7º da Lei 6.404/1976 exige apenas que eventuais sobras de um aumen-to de capital sejam vendidas na bol-sa. Nada mais que isso. O segundo problema que en-xergo é que não há, na Instrução CVM n.º 400/2003, nenhum dispo-sitivo capaz de dar suporte à inter-pretação feita pelo Colegiado. Muito pelo contrário: a questão do registro da venda de sobras de aumentos de capital, quando abordada na Instru-ção CVM n.º 400/2003, remete sim-plesmente à possibilidade (o verbo utilizado na instrução é “admitir”12) de se utilizar um procedimento sim-plificado para o registro de distribui-ções de sobras em volume superior

a 5% da emissão e inferior a 33,33% das ações em circulação. E, frise-se, como este dispositivo se encontra no capítulo denominado “Dispensa do registro ou de requisitos”, a sua inci-dência em um caso concreto pressu-põe a obrigatoriedade do registro13, não sendo, consequentemente, apta a operar, por si mesma, a qualifica-ção da oferta como pública. Deve-se levantar objeção, ain-da, ao fato de que a referida deci-são do Colegiado erige como critério para a caracterização de uma dis-tribuição como pública ou privada apenas o volume (relativo) da oferta, desconsiderando o critério expressa-mente contido no art. 3 da Instrução CVM n.º 400/2003 e no art. 19, §3º da Lei 6.385/1976. Conforme se de-monstrou ao longo do presente arti-go, a CVM nunca se afastou, em seus normativos, do critério implícito nas referidas regras, que é o da utiliza-ção de meios de comunicação com a capacidade de se atingir o público em geral. Resta verificar, para que se pos-sa responder a pergunta contida no título deste artigo, se o procedimen-to para a venda de sobras em bolsa previsto pelo art. 8º, §1º, I, “d”, da Instrução CVM n.º 168/1991 pode ser enquadrado como um ato de distribuição pública. Cumpre lem-brar que esta instrução, que “Dis-põe sobre operações sujeitas a pro-cedimentos especiais nas Bolsas de Valores”, tem respaldo legal dos ar-tigos 8º, inciso I e 18, inciso II, alí-nea “a” da Lei n.º 6.385/1976, sendo aplicável a diversas operações cursa-das em bolsa que reclamam, por sua atipicidade, a observância de alguns cuidados especiais.

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Doutrina As características do leilão em bolsa já foram examinadas pela área técnica da CVM à luz dos “esforços públicos” ao menos duas vezes. No Processo Administrativo CVM n.º 2007/14893, julgado em 29.1.2008, o Colegiado acompanhou o entendi-mento da Superintendência de Re-gistros no sentido de que: “pode-se constatar que o procedimento a ser utilizado para a colocação das so-bras do aumento de capital da Com-panhia será o de um leilão padrão, tal como previsto no art. 8º, §1º, I, “d”, da Instrução CVM n.º 168/91, sem esforço de venda adicional al-gum, nos termos do disposto no art. 3º, da Instrução CVM 400”14. Um pouco depois, no âmbito do Pro-cesso Administrativo CVM n.º RJ 2009/12551, julgado em 22.12.2009, a área técnica voltou a reconhecer a inexistência de apelo ao público em geral nos procedimentos de leilão em bolsa. Ainda assim, a ata da decisão informa que “o Colegiado ressaltou que, de acordo com os precedentes e à luz da regulamentação em vigor, o presente leilão de sobras de ações caracteriza oferta pública de dis-tribuição de valores mobiliários”. Não obstante a falta de clareza das manifestações da autarquia, pare-ce possível sustentar a tese de que a venda em bolsa por meio dos referi-dos leilões, como regra geral, confi-gura uma oferta privada, não sujeita a registro prévio na CVM. A exceção estaria nos casos em que, ao lado daquele procedimento, se realizasse esforços de colocação adicionais aos usualmente presentes na interme-diação de negócios em bolsa. Diante de tudo o que se expôs, a conclusão do presente artigo é a de

que cabe à administração da compa-nhia, frente à exigência legal de ven-da em bolsa das sobras de seu au-mento de capital, optar entre as duas modalidades distintas de oferta, de acordo com as vantagens e desvan-tagens de cada uma delas. De um lado, quando a administração en-tender conveniente e oportuna a re-alização de um esforço de venda am-plo e prolongado, com o propósito de se alcançar a participação de um número substancial de investido-res, a melhor saída sem dúvida será a realização de uma oferta pública, talvez até valendo-se de um procedi-mento simplificado. Por outro lado, nas hipóteses em que os custos as-sociados a uma oferta pública forem considerados desproporcionais às suas vantagens, a companhia deverá proceder à venda em bolsa por meio de oferta privada, seguindo as regras enunciadas pela Instrução CVM n.º 168/1991. Por fim, quanto à problemática da conceituação das ofertas priva-das, entende-se que a natureza pú-blica de determinada oferta depende exclusivamente da forma de sua vei-culação e do fato de se procurar ou não atingir o público em geral. Além de se assegurar maior aderência ao texto legal, a interpretação pautada no critério dos “meios de colocação” milita a favor da segurança jurídica por oferecer maior previsibilidade aos agentes do mercado. A pergun-ta que fica é: poderia (ou deveria) a CVM, por meio de Instrução, criar novos parâmetros, totalmente dis-sociados aos da lei, para definir o que é uma oferta pública e o que é uma oferta privada?

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DoutrinaNotas

1 Refiro-me, exemplificativamente, ao rateio previsto no

art. 171, §7º, “b” da lei acionária e à possibilidade de o au-

mento de capital ser feito com um limite mínimo. Neste

particular, a administração das companhias usualmente

utiliza, como parâmetro para o aumento de capital míni-

mo, o valor correspondente ao aporte que será feito pelo

acionista controlador, de sorte que a participação dos acio-

nistas minoritários na operação, sempre incerta, se torna

irrelevante para os fins de existência ou não de sobras. E,

embora a questão fuja ao escopo deste trabalho, vale ad-

vertir que os aumentos de capital feitos com um intervalo

não estão livres de questionamentos, especialmente se o

piso do aumento for significativamente inferior ao teto.2 Vale lembrar, aqui, de uma exceção a esta regra. O Co-

legiado da CVM, em decisão tomada no âmbito do Pro-

cesso Administrativo CVM n.º RJ 2012/4172 (julgado em

10.7.2012), entendeu que o procedimento de venda em bol-

sa poderia não ser realizado nos casos em que o expediente

“é incapaz de atingir seu fim, que é o de distribuição das

“sobras de valores mobiliários não subscritos”. Afinal, se

é impossível atingir aqueles fins, os procedimentos para

a venda em bolsa tornam-se um custo descabido para a

companhia, não havendo porque exigir a sua realização

senão por apego à forma”. Vale ressaltar que, no mais das

vezes, o insucesso deste expediente estará relacionado ao

fato de o preço de emissão ser significativamente superior

ao valor de mercado das ações, afastando o interesse dos

investidores em geral. De toda forma, poderá haver casos

em que tal análise não será tão simples, exigindo da admi-

nistração da companhia, antes de tomar a decisão de dis-

pensar ou não a venda em bolsa, uma ponderação acerca

dos mais diversos aspectos. Pode-se mencionar, nesse sen-

tido e a título de exemplo, a distribuição pública de sobras

de ações da Lupatech S.A., que ocorre concomitantemen-

te à redação deste artigo. Embora o preço de emissão das

ações seja superior à cotação de mercado, seria equivoca-

do considerar de antemão que a oferta está fadada ao fra-

casso, pois, devido ao tamanho das sobras, pode-se dizer

que o controle da companhia está em jogo, justificando-se

plenamente o pagamento de algum sobrepreço.3 EIZIRIK, Nelson, et al. Mercado de Capitais - Regime Ju-

rídico. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Renovar,

2011. pp. 152-153.4 EIZIRIK, Nelson, et al. Op cit., p. 154.5 Cf., exemplificativamente, a opinião de Nelson Eizirik:

“Pode ocorrer, na prática, uma situação de conflitos de

critérios. Por exemplo, uma emissão que seria conside-

rada pública pelo critério “meios de colocação”, pode ser

considerada privada pelo critério “qualificação dos ofer-

tados”. Dado o caráter instrumental das normas rela-

tivas ao registro de emissão pública, entendemos que o

critério prevalecente é que diz respeito à qualificação dos

destinatários da oferta” (Aspectos Modernos do Direito

Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 20). 6 A distinção que se pretende fazer é muito semelhante às

considerações feitas pelo diretor Otavio Yazbek em proces-

so administrativo que cuidava da exigibilidade das ofertas

públicas de aquisição tidas pela lei societária como obri-

gatórias. O que se assentou no âmbito do Processo Admi-

nistrativo CVM n.º SP 2009/4470, julgado em 17.11.2009,

embora possa parecer óbvio, é que só é possível dispensar

algo que seja, antes da análise de sua dispensa, obrigató-

rio. E, mais importante, a análise a ser feita nos dois mo-

mentos – obrigatoriedade e dispensa - é distinta. A obri-

gatoriedade, tanto das OPAs como do registro das ofertas

públicas de distribuição, dependeria exclusivamente da

presença dos requisitos legais. No presente caso, a exigi-

bilidade do registro dependeria da existência de esforços

públicos de colocação, a demonstrarem ser a oferta desti-

nada ao público em geral. A possibilidade de dispensa do

registro ou da adoção de procedimento mais simples, por

outro lado, aproximar-se-ia dos critérios subjetivos aludi-

dos pela doutrina.7 Art. 19 (...) § 5º - Compete à Comissão expedir normas

para a execução do disposto neste artigo, podendo: I - de-

finir outras situações que configurem emissão pública,

para fins de registro, assim como os casos em que este

poderá ser dispensado, tendo em vista o interesse do pú-

blico investidor. É oportuno salientar que a parte final do

preceito em questão, ao que parece, confirma a tese que

ora se defende ao situar a sofisticação e o poder de barga-

nha do investidor meramente entre os critérios hábeis a

justificar a dispensa do registro.8 Art. 3º São atos de distribuição pública a venda, pro-

messa de venda, oferta à venda ou subscrição, assim

como a aceitação de pedido de venda ou subscrição de

valores mobiliários, de que conste qualquer um dos se-

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Doutrinaguintes elementos: I - a utilização de listas ou boletins de

venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios,

destinados ao público, por qualquer meio ou forma; II - a

procura, no todo ou em parte, de subscritores ou adqui-

rentes indeterminados para os valores mobiliários, mes-

mo que realizada através de comunicações padronizadas

endereçadas a destinatários individualmente identifica-

dos, por meio de empregados, representantes, agentes ou

quaisquer pessoas naturais ou jurídicas, integrantes ou

não do sistema de distribuição de valores mobiliários, ou,

ainda, se em desconformidade com o previsto nesta Ins-

trução, a consulta sobre a viabilidade da oferta ou a co-

leta de intenções de investimento junto a subscritores ou

adquirentes indeterminados; III - a negociação feita em

loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público des-

tinada, no todo ou em parte, a subscritores ou adquiren-

tes indeterminados; ou IV - a utilização de publicidade,

oral ou escrita, cartas, anúncios, avisos, especialmente

através de meios de comunicação de massa ou eletrônicos

(páginas ou documentos na rede mundial ou outras redes

abertas de computadores e correio eletrônico), entenden-

do-se como tal qualquer forma de comunicação dirigida

ao público em geral com o fim de promover, diretamente

ou através de terceiros que atuem por conta do ofertan-

te ou da emissora, a subscrição ou alienação de valores

mobiliários. §1º Para efeito desta Instrução, considera-se

como público em geral uma classe, categoria ou grupo de

pessoas, ainda que individualizadas nesta qualidade, res-

salvados aqueles que tenham prévia relação comercial,

creditícia, societária ou trabalhista, estreita e habitual,

com a emissora.9 No que toca à Instrução CVM n.º 476/2009, consideran-

do que aparentemente estarão sempre presentes aquelas

características pessoais delineadoras de ofertas privadas,

poder-se-ia indagar por que motivo as ofertas que seguem

tal modelo são consideradas públicas? A resposta está, no-

vamente, no critério dos “meios de colocação”. Com efeito,

o parágrafo único do art. 2º da instrução proíbe a utiliza-

ção de apenas alguns atos de ofertas públicas, admitindo,

a contrario sensu, a prática de outros, aptos transformar a

natureza da oferta. Veja-se, para que não restem dúvidas,

o relatório da audiência pública referente à instrução em

comento, onde, ao ser confrontada por questões acerca da

distinção entre ofertas públicas e privadas, a Superinten-

dência de Desenvolvimento de Mercado asseverou que, no

seu entendimento, “dado o disposto no art. 19, § 3º, da Lei

6.385, de 1976, resta evidente a vontade do legislador no

sentido de caracterizar uma oferta de distribuição de va-

lores mobiliários como pública ou não pela forma de pro-

cura dos investidores, e não pelo número de investidores

procurados ou que venham a subscrever ou adquiri-la”.10 Vale destacar a opinião de José Eduardo Carneiro de

Queiroz: “sempre que houver contato com um grupo de-

terminado de pessoas, sem acesso aos investidores em ge-

ral e com os cuidados necessários para que a informação

não seja disseminada a terceiros fora desse grupo, estará

caracterizada uma oferta privada sobre a qual não há

aplicação da regulamentação do mercado de capitais”.

Cf. QUEIROZ, José Eduardo Carneiro de, “Valor mobi-

liário, oferta priva e oferta pública: conceitos para o de-

senvolvimento do mercado de capitais”, Revista de Direito

Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo, Revista dos

Tribunais, n.º 41, jun/set. 2008:11 O seguinte trecho do voto condutor sintetiza o entendi-

mento do Colegiado: “(i) para ofertas de sobras cujos vo-

lumes sejam inferiores a 5% da emissão, aplicam-se os

procedimentos especiais previstos na Instrução CVM nº

168, de 1991, sem a necessidade de registro na CVM; (ii)

para ofertas de sobras cujos volumes sejam superiores a

5% da emissão e inferiores a 1/3 das ações em circulação,

aplica-se a Instrução CVM nº 400, de 2003, com possibi-

lidade de adoção do procedimento de análise simplificada

previsto no art. 6º, §1º, da referida instrução, aplicando-

-se subsidiariamente, quando cabíveis, os procedimentos

especiais previstos na Instrução CVM nº 168, de 1991; e

(iii) para ofertas de sobras cujos volumes sejam superio-

res a 1/3 das ações em circulação, aplica-se a Instrução

CVM nº 400, de 2003, devendo-se observar o rito ordiná-

rio de registro de ofertas públicas estabelecido pela refe-

rida Instrução”. A bem da verdade, esta sistematização foi

originalmente formulada por ocasião do Processo Admi-

nistrativo CVM n.º RJ 2010/16753, julgado em 29.11.2011,

que versava sobre a distribuição de sobras de uma emissão

de debêntures obrigatoriamente conversíveis em ações. 12 Art. 6º (...) §1º Admite-se a utilização do procedimen-

to previsto no presente artigo para a distribuição primá-

ria de ações, quando se tratar de colocação de sobras, em

volume superior a 5% (cinco por cento) da emissão e infe-

rior a 1/3 (um terço) das ações em circulação no merca-

do, considerando as novas ações ofertadas para o cálculo

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Doutrinadas ações em circulação, desde que os valores mobiliários

já estejam admitidos à negociação em mercado organi-

zado. (os destaque gráficos são meus)

13 Vale referir, uma vez mais, às considerações feitas pelo

voto do diretor Otavio Yazbek no âmbito do Processo Ad-

ministrativo CVM n.º SP 2009/4470.14 Vale destacar do memorando da SRE o seguinte trecho:

“entendemos que a utilização do procedimento de análise

simplificada, previsto no art. 6º, §1º, da Instrução CVM

400, para a colocação de sobras em volume superior a

5% da emissão e inferior a 1/3 das ações em circulação

no mercado, pressupõe que tal colocação terá caracte-

rísticas de uma oferta pública. (...) Desta maneira, nos-

so entendimento é de que, ao contrário do que alega a

Requerente, o aspecto relevante a ser determinado para

caracterizar a presente colocação de sobras como sendo

ou não uma oferta pública, bem como para se justificar

a eventual concessão de dispensa de registro, nos termos

do disposto no art. 4º, da Instrução CVM 400, é a análise

procedimentos a serem utilizados no leilão a ser realiza-

do em bolsa de valores, tendo em vista o disposto no art.

3º, da Instrução CVM 400”. A despeito da clara indicação

de que o leilão previsto na Instrução CVM n.º 168/1991

não caracterizaria uma distribuição pública, e que, portan-

to, o mais adequado, de um ponto de vista técnico, seria

reconhecer a inexigibilidade do registro, a SRE concluiu

“que pode-se (sic) conceder, no presente caso, a solicitada

dispensa de registro de oferta pública para o leilão das

sobras de ações ordinárias e preferenciais do aumento de

capital da Companhia, aprovado em 14/5/2007”. Trata-

-se, inequivocamente, de um caso em que ocorre aquela

confusão conceitual sublinhada e elucidada pelo diretor

Otavio Yazbek no âmbito de processo administrativo ao

qual se aludiu duas vezes anteriormente.

João Vicente Carvalho é gradu-ando do quarto ano da Faculdade de Direito da USP e estagiário do Cole-giado da Comissão de Valores Mobi-liáriosE-mail: [email protected]

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