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O BEM-AMADO DE DIAS GOMES PEÇA EM ATO ÚNICO E NOVE QUADROS PERSONAGENS: CHICO MOLEZA DERMEVAL MESTRE AMBRÓSIO ZELÃO ODORICO DOROTÉA JUDICÉA DULCINÉA DIRCEU BORBOLETA NECO PEDREIRA VIGÁRIO ZECA DIABO ERNESTO HILÁRIO CAJAZEIRA AÇÃO: Em Sucupira, pequena cidade do litoral baiano

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O BEM-AMADO DE DIAS GOMES

PEA EM ATO NICO E NOVE QUADROS

PERSONAGENS: CHICO MOLEZA DERMEVAL MESTRE AMBRSIO ZELO ODORICO DOROTA JUDICA DULCINA DIRCEU BORBOLETA NECO PEDREIRA VIGRIO ZECA DIABO ERNESTO HILRIO CAJAZEIRA

AO: Em Sucupira, pequena cidade do litoral baiano PRIMEIRO QUADRO Pequena venda de uma cidadezinha de veraneio do litoral baiano. H uma grande rvore, um coreto e uma venda. Sob o sol, sentado no cho, Chico Moleza dedilha molemente o violo. Em frente vendola, Seu Dermeval remenda uma rede de pescar. um mulato gordo e bonacho, de idade j avanada. Passa-se meio minuto. Entram Mestre Ambrsio e Zelo carregando um defunto numa rede. O enterro acompanhado por uma beata, velhinha, enrugada como um jenipapo, e um cachorro, um magro vira-lata, que vem amarrado rede. Mestre Ambrsio um velho pescador de tez moreno-avermelhada, curtido do sol. Musculatura batida, chapelo de palha, calas de algodo branco, sua figura infunde respeito. Zelo um negro reluzente, mais moo do que Mestre Ambrsio, pescador como ele. Traz vrios amuletos no pescoo e um bom humor constante. A velha reza baixinho enquanto os dois pescadores avanam at o centro da cena, com o passo no muito firme, e a depositam o fretro. Moleza pra de tocar e descobre-se, em sinal de respeito. O apelido o define bem: gestos lentos, descansados, fala mole, ele um retrato vivo da cidade, onde a vida passa sem pressa . MESTRE AMBRSIO Vamos molhar um pouco a goela na venda de seu Dermeval, Zelo. ZELO bom. DERMEVAL (Indicando o Defunto) Mestre Leonel? MESTRE AMBRSIO . Embarcou, coitado. DERMEVAL (Dirige-se venda) No mar? MESTRE AMBRSIO Qui-o-qu. Janana quis saber dele no. Esticou em terra mesmo. ZELO de hoje que ele no entrava num saveiro. Mal agentava com um canio. Quase cem anos no costado, sabe como . MESTRE AMBRSIO Tava que nem saveiro velho, cheio de ostra pelo casco, fazendo gua por todo o lado. Precisava mesmo ir pro estaleiro. DERMEVAL Tambm entornava um bocado. MESTRE AMBRSIO Pra esquece. Sabe o que um mestre de saveiro respeitado como ele foi ao fim da vida tendo quase que pedir esmolas? ZELO A gente sempre dava para ele as sobras da pescaria: pititinga, chicharro, peixe mido. MESTRE AMBRSIO Morreu sem ter dinheiro nem pro caixo. DERMEVAL Tinha parente no? MESTRE AMBRSIO Ter tinha. Botou um bocado de filho no mundo, o falecido, que a terra lhe seja leve. Mas tudo levantou ncora. Uns foram pra Salvador, outros pra So Paulo. Por aqui s aparecia mesmo de vez em quando, a filha mais nova. Uma que caiu na vida. ZELO E que pedao de mau caminho, seu mano! Tenho uma sede nela! MESTRE AMBRSIO Oxente, Zelo, respeita o defunto! ZELO Que o finado me desculpe, mas mesmo. E um dia eu ainda pesco um cao de trs metros, boto o dinheiro no bolso e vou me afogar naquelas guas. (Ri) MESTRE AMBRSIO D mais um porongo. (Dermeval enche os dois copos. Eles bebem de um trago. Dermeval torna a ench-los. Enquanto isso, Moleza levanta-se com a sua caracterstica lentido, aproxima-se do defunto, descobre-o) MOLEZA Coisa besta a vida; ontem tava vivo, hoje t morto. Que merda! ZELO Vem tomar um mata-bicho, Moleza. MOLEZA (Vai venda) Como foi? (Dermeval serve uma cachaa) MESTRE AMBRSIO A gente voltava da pescaria, hoje de manh, eu mais Zelo, encontramos ele estendido na praia, o cachorro lambendo a cara. MOLEZA Lambendo a cara, Mestre Ambrsio? MESTRE AMBRSIO E chorava. Chorava de correr lgrima. MOLEZA O cachorro? MESTRE AMBRSIO Oxente, gente, j viu defunto chorar? MOLEZA Nem defunto, nem cachorro. MESTRE AMBRSIO Quero que esta luz me cegue, se no verdade. ZELO Verdade sim. O bicho parecia saber que o velho tinha espichado. Chorava como gente. MESTRE AMBRSIO De cortar o corao, seu Moleza. DERMEVAL E a velha? MESTRE AMBRSIO Sei l. Ns viemos, ela veio atrs; DERMEVAL Ser que ela e o velho? (Zelo solta uma gargalhada imoral) MESTRE AMBRSIO Capaz. Quando era moo, de saia mesmo mestre Leonel s respeitava padre e santo de andor. (Todos riem) Vamos se chegando, Zelo, que ainda temos trs lguas pela proa. DERMEVAL Trs lguas. Quando chegarem l, em vez de um defunto vo ter dois para enterrar. MESTRE AMBRSIO Isto uma terra infeliz, que nem cemitrio tem. Pra se enterrar um defunto preciso ir a outra cidade. MOLEZA No era melhor jogar o corpo no mar? MESTRE AMBRSIO Pra qu? Pra vir dar na praia de manh? MOLEZA Jogava bem longe, em alto-mar. Fazia de conta que tinha morrido afogado. Mestre Leonel, que era pescador, ia se sentir at melhor acomodado. MESTRE AMBRSIO Vinha dar na praia do mesmo jeito. No v que se dona Janana no quis ele quando era moo, no ia querer agora? Janana gosta de gente nova, sadia. DERMEVAL Falar em Janana, sabe do caso do sujeito que se encontrou com a me-dgua no meio do mar. ZELO Sei no. Como ? DERMEVAL Quando ele viu aquele mulhero pela frente, toda nua, mulher do umbigo pra cima e peixe do umbigo pra cima e peixe do umbigo pra baixo, perguntou: Si dona ser que vosmic no tem uma irm que seja ao contrrio? Todos riem exageradamente. Esto j bastante bbados. Moleza dedilha o violo. MOLEZA (Canta) Dona Janana princesa que Filha das guas do Abait Dona Janana i nan MESTRE AMBRSIO, DERMEVAL E ZELO (Coro) I nan . I nan . (Odorico entra, suando por todos os poros. No propriamente um belo homem, mas no se lhe pode negar certo magnetismo pessoa. Demagogo, bem-falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende, sua figura impressiona e convence. Veste um terno branco, chapu panam) ODORICO Ah, l esto! Ainda cheguei a tempo. DERMEVAL Bom-dia, Coronel Odorico. ODORICO Bom-dia, minha gente. (Ao verem Odorico, Mestre Ambrsio e Zelo deixam o balco. Moleza pra de tocar) MESTRE AMBRSIO Bom-dia, Coronel. Fizemos uma parada rpida, pra molhar a goela. Vamos ter que gramar trs lguas. ODORICO Trs lguas. Pra se enterrar um defunto preciso andar trs lguas. DERMEVAL Um vexame! MOLEZA Vexame pro defunto: ter que viajar tanto depois de morto. ODORICO uma humilhao para a cidade, uma humilhao para todos ns, que aqui nascemos e que aqui no podemos ser enterrados. MOLEZA Muito bem dito. Entram Dorota e Judica. A primeira professora do grupo escolar, de maneiras pouco femininas, com qualidades evidentes de liderana. Paradoxalmente, Odorico exerce sobre ela terrvel fascnio. Tambm sobre Juju esse fascnio se faz sentir. E isso poderia ser explicado por diferentes tipos de frustrao. ODORICO Quem ama a sua terra deseja nela descansar. Aqui, nesta cidade infeliz, ningum pode realizar esse sonho, ningum pode dormir o sono eterno no seio da terra em que nasceu. Isso est direito, minha gente? TODOS Est no! ODORICO Merecem os nossos mortos esse tratamento? DOROTA E JUJU Merecem no. (Entram Dulcina e Dirceu Borboleta, este com uma vara de caar borboletas e uma sacola. Odorico exerce sobre ela o mesmo fascnio que sobre suas irms Judica e Dorota. Quanto a ele, um tipo fisicamente frgil, de culos, com ar desligado) ODORICO (J passando a um tom de discurso) Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui terminou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora, em estado de defuntice compulsria, obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vo sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poder ele dormir tranqilamente o sono eterno? Poder sua alma alcanar a paz? TODOS No. Claro que no. Populares so atrados pelo discurso de Odorico, que se empolga, sobe ao coreto. ODORICO Meus conterrneos: vim de branco para ser mais claro. Esta cidade precisa ter um cemitrio. TODOS Muito bem! Apoiado! DOROTA Uma cidade que no respeita seus mortos no pode ser respeitada pelos vivos! ODORICO Diz muito bem Dona Dorota Cajazeira, dedicada professora do nosso grupo escolar. incrvel que esta cidade, orgulho do nosso estado pela beleza de sua paisagem, por seu clima privilegiado, por sua gua radioativa, pelo seu azeite-de-dend, que o melhor do mundo, at hoje ainda no tenha onde enterrar seus mortos. Esse prefeito que a est... DOROTA, DULCINA E JUJU (Vaiam) Uuuuuuuu! ODORICO Esse prefeito que a est, que fez at hoje para satisfazer o maior anseio do povo desta terra? DIRCEU S pensa em construir hotis para veranistas! DULCINA Engarrafar gua para vender aos veranistas! ODORICO Tudo para veranistas, pessoas que vm aqui passar um ms ou dois e voltam para suas terras, onde, com toda certeza, no falta um cemitrio. Mas aqui tambm haver! Aqui tambm haver um cemitrio! JUJU (Grita Histericamente) Queremos o nosso cemitrio! DOROTA, JUJU, DIRCEU E DULCINA Queremos o cemitrio! Queremos o cemitrio! ODORICO E haveremos de t-los. Cidados sucupiranos! Se eleito nas prximas eleies, meu primeiro ato como prefeito ser ordenar a construo imediata do cemitrio municipal. TODOS (Aplausos) Muito bem! Muito bem! (Uma faixa surge no meio do povo) VOTE NUM HOMEM SRIO E GANHE SEU CEMITRIO ODORICO Bom governante, minha gente, aquele que governa com o p no presente e o olho no futuro. E o futuro de todos ns o campo-santo. MOLEZA O campo-santo. DULCINA Que homem! DOROTA (Repreende-a) Du, tenha modos! ODORICO preciso garantir o depois-de-amanh, para ter paz e tranqilidade no agora. Quem que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar trs lguas pra ser enterrado? MOLEZA mesmo um pecado! ODORICO Uma vergonha! Mas eu, Odorico Paraguau, vou acabar com essa vergonha. MESTRE AMBRSIO Seu doutor me disculpe, mas desde pequenininho que eu escuto falar nessa histria de cemitrio. E a coisa fica sempre na conversa. Todo mundo acha que deve fazer, mas ningum faz. ZELO L isso . (Entra Neco Pedreira. o dono do jornaleco da cidade, A Trombeta. Jovem combativo, algo esclarecido, afora uma certa dose de charlatanismo, um indivduo positivo, um pouco acima da mentalidade da cidade. E a conscincia disso lhe produz certa frustrao) ODORICO Mas eu vou fazer. Os que votaram em mim para vereador sabem que cumpro o que prometo. Prometi acabar com o futebol no largo da Igreja e acabei. Prometi acabar com o namorismo e o sem-vergonhismo atrs do Forte e acabai. Agora prometo acabar com essa humilhao para nossa cidade, que ter que pedir a outro municpio licena pra enterrar l quem morre aqui. E vou cumprir. (Neco Pedreira disfaradamente acende um espanta-moleque e atira no meio da praa. As mulheres gritam, histericamente. O povo corre) DOROTA ele! No podia ser outro! JUJU Neco Pedreira! DULCINA Cafajeste! NECO Quem morreu fedeu, Odorico. JUJU Minha Nossa Senhora, que heresia! DOROTA Com certeza vai escrever isso na sua imunda gazeta. ODORICO Eu sei que h muita gente que no respeita os mortos, nem acredita em deus. No para esses atetas despenitentes que vamos construir o nosso cemitrio. NECO Muito obrigado. Espero que voc seja o primeiro a fazer uso dele. ODORICO (Para os pescadores) Vamos seguir com o enterro. MESTRE AMBRSIO Vamos l, Zelo. Pega na proa que eu vou no leme. (Zelo e Ambrsio voltam a carregar o defunto) MESTRE AMBRSIO Tava pesado assim quando a gente veio, Zelo? ZELO Tava no. Mestre Ambrsio. MESTRE AMBRSIO Ento o finado engordou. ZELO Acho que sim. MOLEZA Diz que surra de chicote bom: a alma sai e o defunto fica mais leve. ZELO Tambm j ouvi dizer. MESTRE AMBRSIO Vamos indo. Na estrada a gente arranja um cip e d um ch de vara nele. DIRCEU Voc vai, Du? DULCINA Claro. Voc no percebe que importante, Dirceu? Minhas irms tambm vo. DIRCEU Eu vou pra casa. DULCINA Fazer o que? DIRCEU Deixei as borboletas secando na janela, tenho medo dos gatos... (Dulcina faz uma cara de fastio e une-se ao grupo que vai acompanhar o enterro. O enterro se movimenta. O defunto vai frente, ziguezagueando em sua rede, por mais esforo que faam Zelo e Ambrsio para caminhar em linha reta. O co segue, amarrado rede. E, mais atrs, a Velha, Odorico, Dorota, Juju e Moleza, que tira acordes no violo) VELHA Ave-Maria, cheia de graa, o Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, bendito o fruto do vosso ventre, Jesus. OS ACOMPANHANTES Santa Maria, me de Deus, rogai por ns, pecadores, agora e na hora da nossa morte, amm. (Saem) DERMEVAL Se ele prometer fazer o cemitrio aqui em frente da venda, meu voto dele. DIRCEU Qual seu interesse nisso? DERMEVAL Ora, seu Dirceu, gente de velrio bebe muito. Pegou muita borboleta hoje? DIRCEU S esta. (Mostra) Veja. DERMEVAL bonita. DIRCEU rara. Rarssima. uma Morpho Deidmea. (Sai) DERMEVAL Homem que vive caando borboleta, a mulher acaba virando mariposa... (Ri e volta a remendar a sua rede) NECO (Vai venda) Seu Dermeval, me bota a um engasga-gato. DERMEVAL (Larga a rede, vai servir a cachaa) Como vai a gazeta, Dr. Neco. NECO Mal, seu Dermeval, mal. Numa cidade atrasada, onde no h crimes, desastres, roubos, onde nem mesmo as mulheres corneiam os maridos, como que pode haver imprensa?

SEGUNDO QUADRO Uma sala da prefeitura. O ambiente modesto. Durante a mutao, ouve-se um dobrado e vivas a Odorico, viva o prefeito!, etc. Esto em cena Dorota, Juju, Dirceu, Dulcina, Vigrio e Odorico. Este ultimo, janela, discursa. ODORICO Povo sucupirano! Agoramente j investido no cargo de Prefeito, aqui estou para receber a confirmao, ratificao, a autenticao e por que no dizer a sagrao do povo que me elegeu. (Aplausos vm de fora.) ODORICO Eu prometi que o meu primeiro ato como prefeito seria ordenar a construo do cemitrio. (Aplausos, aos quais se incorporam as personagens em cena.) ODORICO (Continuando o discurso) Botando de lado os entretantos e partindo pros finalmente, uma alegria poder anunciar que prafrentemente vocs j podero morrer descansados, tranqilos e desconstrangidos, na certeza de que vo ser sepultados aqui mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira. E, quem votou em mim, basta dizer isso ao padre na hora da extrema-uno, que tem enterro e cova de graa, conforme o prometido. (Aplausos. Vivas. Foguetes. A banda volta a tocar. Odorico acena para o povo sorridente, depois deixa a janela e imediatamente cercado pelos presentes, que o cumprimentam.) DOROTA Parabns. Foi timo o seu discurso. JUJU Disse o que precisava dizer. ODORICO Obrigado, obrigado. DIRCEU De um homem assim que a gente precisa; vai direto questo. DULCINA Formidvel. ODORICO Obrigado, obrigado. Conto com vocs. DOROTA Pode contar. Comigo e com minhas irms. Queramos convidar o Prefeito pra tomar um licorzinho conosco l em casa esta noite. ODORICO Licor? De que? JUJU De jenipapo. ODORICO Jenipapo bom. Sou um jenipapista juramentado. DOROTA Podemos esper-lo? ODORICO Podem... vamos comemorar a posse com uma jenipapao. JUJU (Tem um risinho histrico, que corta de sbito ante o olhar severo de Dorota) DOROTA Ento, at mais logo. Voc vem, Dulcina? DULCINA Dirceu...? DIRCEU Eu vou ter que ficar. Agora sou secretrio do Prefeito... Me espere em casa, bem... no demoro. Dorota, Juju e Dulcina saem. ODORICO Seu Dirceu, o senhor viu todos aqueles processos que eu pedi? DIRCEU Esto todos separados. ODORICO Ento v buscar. Vamos trabalhar. DIRCEU Um instante s. (Sai) VIGRIO O senhor j vai comear a trabalhar? ODORICO J. No sou homem de perder tempo. E vou tratar de assunto de seu interesse: a construo do cemitrio. VIGRIO Sabia que o senhor no ia esquecer as promessas feitas no eleitorado. ODORICO Na prxima vez que o senhor vier aqui j quero lhe falar da inaugurao. Alis, a Igreja devia ajudar. uma obra crist, e que, entrementemente, vai render dividendos para a parquia. Benzimento de corpo, encomendao de alma... (O Vigrio se esquiva.) VIGRIO Sabe, coronel... o teto da igreja est ameaando de vir abaixo. Vou ter que fazer umas quermesses para arranjar dinheiro... (Entra Dirceu, com vrios processos.) DIRCEU Est tudo aqui. O senhor vai examinar agora? ODORICO Vou. Quero saber logo se h alguma verba para dar incio construo do cemitrio. DIRCEU (Coloca os processos sobre a mesa) Nem um tosto. S dficit. ODORICO (Folheia os processos) No possvel. DIRCEU A prefeitura tem um terreno... ODORICO O terreno s no resolve, preciso dinheiro para o muro, as alamedas, a capela. DIRCEU (Examinando um processo) Parece que h um restinho de verba da gua. ODORICO Da gua? DIRCEU Para concertar os canos. ODORICO Diz isso a? DIRCEU No, aqui s fala em obras pblicas de urgncia. ODORICO O cemitrio tambm uma obra pblica de urgncia. ou no ? (Irnico) De muita urgncia... DIRCEU H um restinho, pouca coisa... ODORICO (Anima-se) No tem importncia, um restinho com mais um restinho, j se faz um cemiteriozinho. DIRCEU da luz. Para aumentar a fora. ODORICO Para que aumentar a fora? VIGRIO A luz anda muito fraca, Coronel, quase no se consegue ler. ODORICO Mas para que ler de noite? Pode-se ler de dia. E depois, uma cidade de veraneio deve ter luz bem fraca, para que se possa apreciar bem o luar... A cidade muito procurada pelos namorados... o senhor Vigrio me perdoe. DIRCEU S que esse desvio de verba... ODORICO para o bem do municpio. Tenho certeza que Deus vai aprovar tudo. VIGRIO Quem sabe?... As intenes so boas... E como Deus no um burocrata... ODORICO Ento vamos escolher o terreno. DIRCEU A prefeitura s tem um, mas est ocupado. ODORICO Ocupado? Por quem? DIRCEU Pelo circo. ODORICO Ora, o circo que se mude. Chega das palhaadas de antigamente. Prafrentemente, vamos tratar de coisas srias. Pode levar isso daqui. (Dirceu sai com os processos) ODORICO Quero ver agora o que vo dizer os que me acusavam de oportunista, de demagogista. Quando virem os pedreiros levantando os muros, construindo a capela, calando as alamedas, vo ficar com cara de Sinh Mariquinha-cad-o-frade. VIGRIO Quando o senhor espera inaugurar esse cemitrio? ODORICO Dentro de trs meses, com o primeiro enterro, que ser custeado pela municipalidade. (Surge-lhe uma idia.) Podamos at... Oh, no, oferecer um prmio no ficava bem. Mas custear os funerais e dar uma certa pompa, isso era mais do que justo. Banda de msica, marcha fnebre. E uma inscrio no mausolu tambm, assinalando o pioneirismo do defunto, o primeiro a ser sepultado em terras de Sucupira. DULCINA (Entra e se assusta com a presena do Vigrio.) Desculpe... pensei que o Prefeito estivesse sozinho... VIGRIO No est, mas vai ficar. O Prefeito vai me dar licena... ODORICO Obrigado por sua presena, seu Vigrio. DULCINA Sua beno, seu Vigrio. VIGRIO Deus lhe abenoe. (Sai.) (Dulcina espera o Vigrio sair, est muito nervosa) ODORICO Voc voltou... DULCINA Onde est meu marido? ODORICO Dirceu... est l dentro... DULCINA Preciso muito falar com voc.... Eu no lhe disse nada... mas estava apavorada... ODORICO Com qu? Seu marido!... DULCINA Pior... Pensei que estivesse grvida! Mas era rebate falso... (Dirceu entra nesse momento e Odorico procura disfarar.) ODORICO Sinto muito, Dona Dulcina, mas seu Dirceu agora funcionrio da Prefeitura, tem que cumprir o expediente. DIRCEU Du... que houve? No lhe disse pra me esperar em casa? DULCINA Est bem... que eu pensei... Desculpe... (Sai.) DIRCEU Ela veio pedir pro senhor deixar eu sair mais cedo? ODORICO , veio... Mas o senhor compreende, mesmo sendo seu padrinho de casamento, tenho que botar de lado esses considerandos... DIRCEU Claro... que ela, coitadinha, se sente muito s quando no est comigo. ODORICO J percebi isso... Mas muito em breve ela no vai sentir mais essa solitude... Quando comear a nascer os filhos... (Dirceu faz uma pausas, constrangido.) DIRCEU Filhos?... ODORICO ... filhos. Alis, j est em tempo... DIRCEU Ns no vamos ter filhos. ODORICO Oxente, por que? DIRCEU Vou lhe confessar uma coisa, Coronel... Porque o senhor meu padrinho... e padrinho como um segundo pai. ODORICO Claro... DIRCEU Eu... eu sou irmo oblato... Fiz voto de castidade. ODORICO Voto de castidade?! E ela sabe disso?... Bom, tem que saber... DIRCEU Casamos com essa condio. De manter o meu voto.

TERCEIRO QUADRO Odorico l um exemplar de A Trombeta, o jornaleco local. Seu rosto revela profunda indignao. ODORICO (Resmunga, enquanto l.) Patife! Canalha! (Amarrota o jornal violentamente e atira-o ao cho. Pe-se a andar nervosamente de um lado para o outro, e por fim senta-se sua mesa, parecendo ponto de ter um colapso.) DOROTA (Entra quase marcialmente) Bom-dia, senhor prefeito. ODORICO Bom-dia. (Levanta-se de um salto.) A senhora j leu a gazeta? DOROTA Ainda no. ODORICO Esse patifento desse Neco Pedreira me chama de demagogo esbanjador dos dinheiros pblico... me xinga de tudo quanto nome. (Apanha o jornal.) Leia a senhora mesma, leia. DOROTA Que retrato esse que ele botou na primeira pgina? ODORICO um retrato que tiraram de mim durante a construo do cemitrio. Tem um ano, j. DOROTA (Lendo) Odorico, o pastor de urubus. ODORICO Que que eu fao com um mau-caratista como esse, Dona Dorota? Que que eu fao? J pensei em arranjar dois jagunos e mandar dar uma surra... DOROTA Isso me parece contraproducente; vai fazer dele um heri e aumentar a venda do pasquim. Alm do mais, o senhor teria que mandar surrar muita gente. A oposio est ganhando terreno dia a dia. E o que Neco escreveu nA Trombeta mais ou menos o que os nossos inimigos dizem por a. ODORICO Eu sei. um movimento subversivo procurando me intrigar com a opinio pblica e criar problemas minha administrao. Sei, sim. uma conspirao! Eles no queriam o cemitrio. Desde o princpio foram contra. E agora que o cemitrio est pronto caem de pau em cima de mim, me chamam de demagogo, de tudo, somentemente, porque aconteceu o que no devia acontecer. Ou melhor: s porque no aconteceu o que devia acontecer. Como se eu tivesse culpa! DOROTA Seja como for, uma situao horrvel, que precisa ser resolvida. ODORICO Mas resolvida como? DOROTA O senhor sabe que pode contar comigo para tudo. Apesar... apesar de minha situao pessoal no ser tambm das melhores. H seis meses que no recebo e o grupo est sem dinheiro at para comprar material escolar. ODORICO E todo mundo acha que a culpa do cemitrio. verdade que a receita municipal baixou um pouco: no obstantemente, estamos agora livres da humilhao de enterrar nossos mortos no cemitrio dos outros. DOROTA Acho que o senhor s tem uma sada: inaugurar o cemitrio. ODORICO Inaugurar como? Se h um ano no morre ningum nesta terra?! DOROTA Inaugurar sem defunto mesmo. ODORICO Era uma desmoralizao. Depois da gente ter anunciado aos quatro ventos que a inaugurao ia ser com o primeiro enterro, era passar o recibo de inutilidade do cemitrio; era dar razo oposio, que diz que dinheiro jogado fora. No, inaugurar campo-santo sem defunto o mesmo que batizar navio em terra firme. No tem graa. DOROTA Menos graa tem ainda o que a Cmara Municipal est preparando. ODORICO Que ? DOROTA Soube hoje que vo pedir esse tal de impeachment. ODORICO J me disseram. Querem votar o meu impedimento. Mas isso eles no vo conseguir. No vo conseguir. DOROTA Acho que s h um meio de evitar: arranjar um defunto qualquer e inaugurar o cemitrio. No se podia comprar um? ODORICO J pensei nisso. Mandar buscar em Salvador. L se vendem cadveres para estudo na Faculdade de Medicina. DOROTA Pois ento! a soluo! ODORICO Mas muito perigosa. A oposio ia descobrir, com toda a certeza. E nem bom imaginar o que iam dizer de ns. DOROTA No h ningum doente na cidade? ODORICO Em estado de dar esperana, parece que ningum. Em todo caso, mandei o coveiro fazer uma verificao. DOROTA Quase todo ano h sempre um veranista que morre afogado. ODORICO Esse ano o mar est que uma lagoa. Nunca vi tanto azar. DOROTA Ento, que vamos fazer? ODORICO Sei l, Dona Dorota, sei l. Passo dia e noite pensando nisso e no encontro jeito. uma situao deverasmente embaraante. (Entra Moleza) MOLEZA D licena? ODORICO Come , seu Moleza? Alguma esperana? MOLEZA Nenhuma, seu prefeito, nenhuma. Andei a cidade toda, perguntei a todo mundo. Ningum sabe de ningum que esteja pra espichar. ODORICO Ser possvel! Ningum adoece nesta cidade! MOLEZA Perguntei pro doutor... ODORICO Esse vive de receitar gua e dar remdio pra dor de barriga. MOLEZA Foi o que ele disse: que morrer aqui s se morre mesmo de velho e desarranjo. Mas custa. No ano atrasado, no sabe... ODORICO No me interessa o ano atrasado, interessa este. Precisamos inaugurar o cemitrio, o quanto antes. No possvel esperar mais. MOLEZA Est muito difcil, seu Coronel. H uma carncia muito grande de defunto. O jeito ter pacincia e f em Deus. ODORICO , pra voc muito fcil ter pacincia. Est h um ano ganhando como coveiro sem trabalhar. MOLEZA Mas no recebo... ODORICO Receba ou no receba, o senhor um parasita do municpio. Se fosse um funcionrio equipado de bom carter e amor-prprio, j tinha procurado resolver essa situao e tornar-se um cidado til comunidade. O senhor uma vergonha e um mau exemplo para o funcionalismo municipal. Tenho ou no tenho razo, Dona Dorota? DOROTA Inteira. O cidado coveiro , inclusive, um perigo para a comunidade. MOLEZA Perigo, eu? DOROTA Perigo pela sua inatividade, que alm de ser imoral mais um motivo para os nossos inimigos nos atacarem. MOLEZA Mas que culpa tenho eu, se no me do servio? DOROTA Alis, se o senhor tivesse investigado os antecedentes do cidado coveiro, antes de nome-lo, teria visto que ele nunca foi de fazer fora. Haja visto o apelido que lhe puseram: Moleza. ODORICO Bem, eu pretendi, com essa nomeao, premi-lo pelo seu trabalho na minha campanha. Esperava que isso fosse tambm um estmulo e ele se compenetrasse de que agora precisava desconfirmar o apelido. Mas de nada adiantou. um caso perdido. MOLEZA Injustia. Vosmics esto fazendo uma injustia. H um ano que todo dia de manhzinha eu preparo uma cova bem preparadinha, limpo a cruz bem limpinha... ODORICO E depois? MOLEZA Depois pego o violo e fico esperando pelo dono. No vem, eu me deito na cova e durmo. ODORICO Dorme! Dorme, enquanto que eu no durmo h meses. MOLEZA Porque vosmic no fica o dia inteiro pensando na morte, como eu, d uma moleza... JUJU (Entra muito excitada.) D licena? (Nota a presena de Moleza.) Oh, desculpe, pensei que estivesse s... DOROTA Que isso, Juju, que aconteceu? JUJU Chegou um telegrama de tia Clotilde! ODORICO particular, Dona Juju? JUJU , no. at sobre o cemitrio mesmo, mas... ODORICO Ento pode falar na frente do nosso coveiro; pessoa de confiana. JUJU O senhor se lembra daquela conversa sobre nosso primo Ernesto, primo em segundo grau? ODORICO Que tem seu primo Ernesto, primo em segundo grau? JUJU Que tem? Ele vem a. Chegou um telegrama de Salvador dizendo que ele embarca hoje. ODORICO Vem pra c? DOROTA O primo Ernesto? ODORICO Vai ficar na casa de vocs? JUJU Eu no achava muito conveniente... O senhor sabe, somos duas moas solteiras e moramos sozinhas. Mas como no vai ser por muito tempo, se Deus quiser, estou disposta a arriscar a minha reputao pela nossa causa. A menos que o senhor faa questo de hospedar o primo em nome da municipalidade. ODORICO Eu no, no fao nenhuma questo. JUJU Mas com toda a certeza o prefeito vai mandar o carro da prefeitura buscar ele na ponte, por isso eu vim depressa avisar. ODORICO Dona Juju, a senhora me desculpe, mas eu acho que no fica bem. Diga a seu primo que ele muito bem-vindo, que eu estou aqui s ordens, mas mandar o fordeco da prefeitura buscar ele eu no posso. A senhora no v que a oposio est de olho em tudo que a gente faz? Vo dizer que favoritismo, que eu estou gastando a gasolina comprada com o dinheiro do povo em passeios com os meus amigos. No, a senhora me desculpe, mas o exemplo deve vir de cima. Seu primo vai ter que ir para casa no calcanho. DOROTA Mas ele no pode! ODORICO No pode? A casa de vocs fica to perto da ponte! DOROTA Ele est doente, desenganado pelos mdicos! ODORICO Desenganado? (Dirceu entra) JUJU Nas ltimas! O senhor no se lembra? Eu lhe disse... ODORICO Ah, seu primo aquele que a senhora falou que estava muito mal, em Salvador. DOROTA Pneumonia galopante, coitado. JUJU O senhor me pediu para escreve famlia, sugerindo que ele mandassem ele para c, que a prefeitura pagava todas as despesas; mdicos, remdios, tudo que ele precisasse. ODORICO Mas claro, a prefeitura paga tudo! JUJU Eu escrevi e ele veio. Est chegando. DIRCEU Arrumaram um defunto? JUJU Defunto, no; ele ainda est vivo. ODORICO Mas morre na certa, no? JUJU o que dizem os mdicos. ODORICO Est agonizante! JUJU capaz de morrer na viagem. ODORICO Morrer na viagem?! No pode! Tem que morrer aqui! Por que a senhora no me avisou antes? JUJU Recebi o telegrama agora. ODORICO Eu teria tomado providncias, mandando um mdico para vir com ele. Morrer durante a viagem, no. Podem mandar o corpo de volta! MOLEZA Era o cmulo da urucubaca. JUJU Vamos rezar para que isso no acontea. ODORICO No, agora no h mais tempo para rezar. O vapor est chegando. (Para Dirceu) Me faa um favor, avise o Vigrio. E diga ao maestro Fil que rena o pessoal da banda e volte a ensaiar a Marcha fnebre. (Para Juju) Ns vamos receber seu primo com todas as excelncias. JUJU No carro da Prefeitura? ODORICO Oxente, um hspede importante como ele! MOLEZA E eu, seu prefeito, que fao? ODORICO Voc volta pro cemitrio e vai preparando a cova. Capricha que o inquilino vem a.

QUARTO QUADRO Em casa das solteironas. Enquanto, no quarto, o primo Ernesto agoniza, na sala Odorico decora a orao fnebre. ODORICO - ... que fique para sempre gravada nessa lpide... lpide... (Em volta do leito do moribundo, o Vigrio, Dorota, Juju e Dirceu Borboleta. Dirceu acende a vela que est na mo de Ernesto.) JUJU Que coisa, hem?... Um homem moo, inteirinho... desperdiado. Os vermes vo comer... DOROTA (Lana a Juju um olhar de repreenso.) Juju! ODORICO (Na sala.) Que fique pra sempre gravada nesta lpide... o nome desse bandeirante da morte, desse pioneiro do alm... (Dorota sai do quarto e passa sala.) ODORICO J?! DOROTA Continua agonizante. ODORICO Trs dias j?! Nunca vi tanta vocao pra agonizante. um agonizantista praticante. DOROTA Acha que vou pro meu quarto dormir um pouco. ODORICO (Chega-se a ela, insinuante) T todo mundo preocupado com o moribundo... a gente podia... DOROTA No, Odorico! Hoje, no!... pecado... O primo est morrendo... DIRCEU (Entrando na sala.) Apagou! ODORICO Quem?! O primo? DIRCEU No, a vela. No tenho mais fsforos... ODORICO (Dando sua caixa de fsforos.) Toma... Nunca vi defunto pra gastar tanta vela... (Dirceu volta ao quarto e torna a acender a vela, enquanto Dorota sai. Odorico volta a ensaiar o discurso.) ODORICO Meus concidados! Este momento h de ficar para sempre gravado nos anais e menstruais da Histria de Sucupira!

QUINTO QUADRO Na prefeitura. Dulcina e Dorota esperam Odorico. DULCINA Voc acha que devemos dizer a ele toda a verdade? DOROTA nossa obrigao, Dudu. Se no denunciarmos, seremos cmplices. Que horas so? DULCINA Quase dez horas. DOROTA O fato que ele tambm j est encostando o corpo. No primeiro dia, chegou aqui s seis da manh. DULCINA Voc injusta, D, ele um homem, no uma mquina. (Entra Dirceu.) DULCINA (Estranhando.) Dirceu... Voc por aqui? DIRCEU Trabalho aqui. Sabia no? DULCINA Mas voc s pega s 11... DIRCEU (Um pouco ressabiado.) E voc, por que saiu to cedo? DULCINA Voc estava dormindo, e eu tinha um encontro marcado. DIRCEU Com quem? DULCINA Com Dorota. Para virmos falar com o prefeito. DIRCEU , eu vi... quer dizer, vi vocs entrarem aqui... DULCINA Deu agora pra me seguir, ? DIRCEU No, que essa histria de mulher se meter em poltica... No falo por mal... mas sabe como esse povo... DOROTA Ora, seu Dirceu, ser possvel que o senhor ainda tenha desses preconceitos? Hoje em dia, a mulher igual ao homem. DIRCEU Numa cidade grande, pode ser. Mas aqui... essa gente d de falar... d de escrever carta annima... DULCINA Carta annima? DIRCEU Quer dizer... podem escrever. H gente pra tudo... voc sabe... estou s falando... s falando... (Sai.) DOROTA Que que seu marido tem? DULCINA E eu sei? De uns dias pra c, anda esquisito, desconfiado, deu pra andar me seguindo... nem tem ido caar borboletas! DOROTA Por isso que eu no me caso: ter que dar conta da minha vida a um homem todo dia. ODORICO (Entra.) Bom-dia. DULCINA E DOROTA Bom-dia, senhor prefeito. ODORICO Novidades? DOROTA Algumas... ODORICO E o defunto? Quero dizer, o doente, coitado. Faz trs meses que chegou e est nessa agonia. A Lira j est cansada de ensaiar a Marcha fnebre. O discurso que escrevi j est fora de poca. DOROTA Senhor prefeito, prepare-se para ter um grande desgosto. ODORICO (Adivinhando.) Qu?! No me diga que... DOROTA O primo est completamente restabelecido. ODORICO No possvel! Baixou aqui desenganado pelos mdicos! DULCINA Os mdicos... ODORICO Veio agonizante. Como que de-repentemente... DOROTA O ar da cidade... DULCINA A gua da cidade... DOROTA O clima da cidade... DULCINA Est com mais sade que qualquer um de ns. ODORICO Mas isso no coisa que se faa! Tudo pronto h trs meses. Marcha fnebre ensaiada, mandei caiar de novo o muro do cemitrio, apagar os palavres, mandei at buscar um carro fnebre em Salvador, tanto sacrifcio... Eu bem que j descofiava. Dona Juju desapareceu, h um ms que sumiu. Por isso. Ficou envergonhada do papelo que o semvergonhista do primo fez. (Dorota e Dulcina trocam um olhar significativo.) DOROTA Ela deve estar escabreada, sim, mas no s por isso no. ODORICO no? DOROTA A verdade que Juju nos traiu. ODORICO Traiu como? DOROTA Claro, no foi s o ar da cidade. DULCINA A gua da cidade. DOROTA O clima da cidade. ODORICO Que foi mais? (Entra Juju. Operou-se nela uma transformao surpreendente: seu rosto tem um ar de gozo permanente, embora dissimulado por um certo sentimento de culpa; v-se logo, porm, que ela realizou-se como mulher. Nota-se tambm que est um pouco mais gorda.) DULCINA Veja o senhor mesmo. DOROTA A est ela. A traidora. ODORICO (Investe para Juju acusadoramente.) Dona Judica, eu estou deverasmente bestificado... (Interrompe a frase quando a v fazer um sinal para algum que est fora.) JUJU Entre, Netinho, pode entrar. Tenha acanhamento no. (Entra Ernesto. Alto, forte, rosado, sua aparncia escandalosamente saudvel.) ERNESTO Com licena. JUJU Coronel Odorico, eu queria apresentar... meu primo Ernesto. ERNESTO (Aperta a mo de Odorico com vigor.) Prazer. JUJU Dorota e Dulcina j devem ter dito ao senhor... Ele ficou bom. ODORICO Est-se vendo. JUJU Ningum acreditava, nem os mdicos. Mas ele foi melhorando, melhorando... ODORICO E deu nisso. JUJU Parece um milagre. ERNESTO O ar da cidade. JUJU A gua. ERNESTO O clima. Ser prefeito de uma cidade como esta deve ser uma felicidade. O senhor est de parabns. ODORICO (Est a ponto de estourar.) Muito obrigado. ERNESTO Quando chegar em Salvador, vou fazer uma propaganda danada disso aqui. E do senhor tambm. a nica maneira que eu tenho de pagar o que o senhor fez por mim. (Abraa Juju carinhosamente.) Por ns. (Juju corresponde ao olhar apaixonado de Ernesto ante a indignao de Dulcina e Dorota.) ERNESTO A verdade que ningum no mundo teria feito o que o senhor fez, assim desinteressadamente. JUJU O coronel Odorico um homem de grande corao. Quando soube do seu estado ficou to aflito! Botou logo todos os recursos do municpio disposio. ODORICO Todos. E se, por infelicidade, o senhor no se curasse, j estava tudo preparado: enterro de primeira classe, com banda de msica e carro fnebre, tudo pago pela municipalidade. ERNESTO J estava preparado? ODORICO Ns aqui somos previdentes, seu Ernesto. ERNESTO De qualquer maneira, eu lhe agradeo, embora no tenha sido preciso, felizmente. ODORICO Sim, felizmente. JUJU (Preocupada com o rumo da conversa.) Vamos pra casa, Netinho. ERNESTO Que ? Est sentindo alguma coisa? Tonturas de novo? Ela desde ontem que est com tonturas. (Dorota, Dulcina e Odorico trocam olhares significativos.) ODORICO Espero que no ponham a culpa disso tambm no ar da cidade... DULCINA Na gua da cidade. DOROTA No clima da cidade (Juju e Ernesto saem.) ODORICO E ele veio com a condio de morrer aqui! Falta de palavra!... DOROTA Isso uma indecncia. Nunca pensei que Juju viesse um dia a ter um procedimento to revoltante. ODORICO Agora at mesmo os meus correligionrios comeam a me trair. J nem sei mais com quem devo contar. DULCINA O senhor sabe que pode contar com a nossa solidariedade. ODORICO Eu no preciso de solidariedade, Dona Dulcina, preciso de um defunto. Um defunto! Tambm, uma terra onde no h crimes, no h desastres... H no sei quantos anos que no h um assassinato. DULCINA Deve ser atraso... subdesenvolvimento. ODORICO Ontem fui visitar a cadeia. Nas celas, onde devia prender criminosos, o delegado cria galinhas, at papagaio. S havia um preso: um jegue. DULCINA O jegue que deu um coice no filho do Z Peixeiro. Foi julgado e condenado a seis meses de priso. ODORICO Se ao menos o coice tivesse pegado de jeito, a gente j estava hoje com o cemitrio inaugurado. DULCINA No, s deu para aleijar. ODORICO O mal desta terra que todo mundo bom, pacato. Esse pacatismo a nossa desgraa. Talvez seja a gua... ou o azeite-de-dend... deve ter alguma substncia calmante, sei l. O fato que ningum mata, ningum morre e ns estamos Aqui h mais de um ano esperando um defunto para inaugurar o cemitrio. MESTRE AMBRSIO (Surge na porta.) Vosmics do licena? ODORICO Mestre Ambrsio. MESTRE AMBRSIO Se o doutor t ocupado, eu volto mais logo. ODORICO No, no, pode se chegar. MESTRE AMBRSIO Tou vindo do Norte. ODORICO Fez boa viagem? MESTRE AMBRSIO Peguei um temporalzinho na volta. Vim de Macei at aqui com um nordeste brabo. Mas, com a graa do Nosso Senhor, chegamos bem. O homem veio comigo. ODORICO (Vivamente interessado.) Veio? MESTRE AMBRSIO Deu um trabalho danado pra convencer o bicho. Tava desconfiado, pensando que era uma arapuca. Me disse quando cheguei l: Caio nessa patota no, sou mestre. Os macacos devem estar me esperando. Dei a minha palavra, jurei olhe que sou compadre dele , no adiantou. S quando mostrei a carta do prefeito e que ele deu a uma pessoa de confiana pra ler foi que a coisa comeou a melhorar. ODORICO (Impaciente.) Bem, mas... ele acabou vindo. MESTRE AMBRSIO T a fora. Vim saber primeiro se vosminc quer falar com ele. ODORICO Quero, sim. V buscar o homem. MESTRE AMBRSIO Volto j. (Sai.) ODORICO Agora, sim. Vamos resolver o nosso problema. Temos o homem de que precisamos. DOROTA Que homem? ODORICO O homem que vai dar a esta cidade o que est faltando a ela. Eu j estava cansado de esperar pela morte do primo Ernesto. Decidi por em prtica um outro plano, para o caso desse falhar. DULCINA Ser que o senhor mandou buscar outro doente? ODORICO Nada disso. Nem doente, nem defunto. O que mandei buscar foi um fazedor de defuntos. DOROTA Fazedor de defuntos? ODORICO Pelo menos tem fama disso. Dizem que j fez mais de trezentos. DULCINA Um bandido? DOROTA Um cangaceiro? ODORICO Zeca Diabo, o terror do Nordeste. DOROTA E DULCINA Zeca Diabo?! DULCINA Um assassino que mata velho e crianas! DOROTA Que no respeita nem moa donzela! ODORICO Fique tranqila, Dona Dorota, pela honra das donzelas juramentadas de Sucupira respondo eu. Zeca Diabo no vai tocar em nenhuma delas... no-obstantemente isso vai ser uma deceptude pra algumas... (Entra Mestre Ambrsio seguido de Zeca Diabo. Este tem o olhar desconfiado, gestos lentos, como cobra sempre preparada para dar o bote. Veste um terno de brim claro, sandlias de couro cru e chapu de vaqueiro. Mas, primeira vista, no justifica o medo que inspira. Fala macia, delicado, e sua voz adocicada est em completo contraste com a lenda.) MESTRE AMBRSIO T aqui o homem, seu prefeito. ODORICO Capito Zeca Diabo, seja bem-vindo. J conheo o senhor, de fama. Sei que nasceu aqui e foi obrigado a sair por motivos... motivos que no vm ao caso. Por isso, mandei Mestre Ambrsio convidar o senhor para voltar. Como prefeito, no posso admitir que um cidado de nossa terra esteja proibido de retornar a ela. ZECA DIABO (Lanando um olhar desconfiado a Dorota e Dulcina). Rabo-de-saia. ODORICO (Para as mulheres, constrangido.) Esperem na outra sala. (Saem Dorota e Dulcina.) ZECA Agora sim. Seu Dot-Coron-Prefeito pode dizer o que quer de mim. ODORICO Quero nada. Quero s que volte a morar aqui, na sua terra natal. Um dos principalmente de minha plataforma poltica a pacificao da famlia sucupirana. ZECA Vosminc sabe que eu sa daqui? ODORICO Sei. Parece que o senhor teve um desaguisado com o finado Coronel Lidrio... Mas o acontecido pratrasmente no conta. O que vale o que o cidado possa fazer prafrentemente. ZECA Coronel Lidrio mandou surrar um irmo meu, um menor de catorze anos. O corneta tinha roubado um cavalo. Surraram ele at matar. MESTRE AMBRSIO Seu prefeito sabe disso. Sabe que voc vingou seu irmo. ZECA Liquidei toda a raa do coronel. Ele, a mulher, trs filhos e a sogra de quebraODORICO Seis cadveres. Seis enterros. Tempos de fartura! ZECA Fugi pra no ser preso. ODORICO Mas agora pode ficar tranqilo. Ningum vai incomodar o senhor nem por esse nem por qualquer outro motivo... E, se incomodarem, reaja. No preciso exagerar, mas reaja, que disso que precisamos: algum com sangue nas veias. MESTRE AMBRSIO Seu prefeito um homem justo. Sabe que voc era um homem bom, se matou foi pra fazer justia. Mas se tudo for esquecido, como seu prefeito prometeu, voc vai voltar a ser o homem bom e pacato de antigamente. ODORICO Tambm no h necessidade de tanta pacatice. Homem que leva desaforo pra casa no homem. ZECA E honra s se lava com sangue. ODORICO Isso, sangue! ZECA No sou o que dizem por a, seu doutor. Nunca fiz mal a uma donzela. Meu Padim Pade Cio, que t l em cima acocadinho do lado direito de Deus Nosso Senh, sabe que at hoje s matei em defesa da honra ou da vida. ODORICO Dizem que foram mais de trezentos, verdade? ZECA Maledicncia, seu doutor. No chegou nem tera-parte. E a maioria morreu porque tava no caminho da bala, no que eu quisesse, que eu nunca quis matar ningum. No se falando da raa do Coronel Lidrio. Dessa, se eu soubesse que ainda restava algum, mesmo parente distante, pode crer que eu ia buscar nem que fosse no inferno, debaixo do penico de Satans. ODORICO Ser que no resta mesmo?... ZECA Resta no, tenho certeza. ODORICO Olhe aqui, Capito Zeca Diabo, eu tive uma idia. O senhor um homem com tanto esprito de justia, que eu vou lhe dar uma prova de confiana. Pra que o senhor se sinta perfeitamente tranqilo e vontade nesta terra, vou nomear o senhor para um alto posto da administrao municipal. ZECA Seu doutor t falando srio? ODORICO Nunca falei to srio em minha vida! Conheo os homens, Capito. E tenho certeza de que o senhor no vai me causar deceptude. ZECA Vou no. Se vosminc me der essa oportunidade de me reabilitar, pode crer que tem um amigo pra toda a vida. E quando Zeca Diabo amigo, amigo mesmo. ODORICO Pois muito bem. De hoje em diante, Capito Zeca Diabo, o senhor vai ser meu delegado. ZECA Delegado? Delegado de polcia? ODORICO Com carta branca pra sacudir a marreta. ZECA E vou ter que me vestir de macaco? MESTRE AMBRSIO No, homem, delegado no veste farda. ZECA Ah, bom, se no precisa vestir farda de macaco, vosminc pode contar comigo. ODORICO Vou falar com o governador pra demitir o delegado atual, que um intil, no prende ningum, e o senhor assume o posto. MESTRE AMBRSIO Tambm, prender quem? Esta uma terra que no d ladro. ODORICO D coisa pior. (Apanha um jornal.) O senhor sabe ler? ZECA De carreirinha, no, mas soletrando, vai. ODORICO Pois eu quero que depois o senhor soletre esta gazeta de ponta a ponta. Neco Pedreira o senhor conhece? ZECA Conheo no senhor. ODORICO o dono do jornal. Elemento perigoso. Sua primeira misso como delegado dar uma batida na redao dessa gazeta subversiva e sacudir a marreta em nome da lei e da democracia. Sabe onde a redao? ZECA Pode deixar por minha conta. Amanh mesmo vou tratar do causo. ODORICO Se quiser, pode levar toda a Fora Pblica. ZECA Fora Pblica? ODORICO Um cabo e dois meganhas. ZECA No, eu sozinho dou conta do recado. ODORICO (Estende a mo a Zeca Diabo.) Confio no senhor. ZECA No vou lhe dar desgosto. (Saem Zeca Diabo e Mestre Ambrsio. Entram Dorota e Dulcina logo a seguir.) ODORICO As senhoras ouviram? DULCINA Tudo. DOROTA O senhor perdeu a cabea? DULCINA Fazer de um cangaceiro um delegado! DOROTA Quando a oposio souber! DULCINA Que prato para Neco Pedreira! ODORICO E tomara que Neco se sirva bem dele. Tomara que chame Zeca Diabo de cangaceiro, assassino, quanto mais xingar, melhor. DOROTA O senhor no acha que se excedeu? ODORICO Em poltica, Dona Dorota, os finalmentes justificam os no-obstantes.

SEXTO QUADRO Prefeitura. Dias aps. Odorico, na janela, olha com a ajuda de um binculo. DULCINA mesmo verdade? ODORICO Verdade o qu? DULCINA Esto dizendo que o cangaceiro invadiu a redao dA Trombeta. ODORICO No se refira assim ao delegado. um homem decente, que quer impor ordem na cidade, coibir abusos. DULCINA E foi logo invadindo A Trombeta. ODORICO No mandei Maneco botar na primeira pgina: Odorico nomeia cangaceiro. (Pega um jornal e l.) Assassino sanguinrio, vergonha da espcie humana o novo delegado de Sucupira. Agora agenta o repuxo. DULCINA Dizem que faz mais de trs horas que ele entrou na redao e at agora no saiu. ODORICO , desde de manh. DULCINA Que est acontecendo? Por que aquela gente toda defronte a gazeta? ODORICO No vejo nada. Parece que encostaram a janela que d na rua. DULCINA Quem viu diz que o delegado parecia uma fera, com a gazeta na mo, espumando de raiva, dizendo que ia fazer Neco engolir a gazeta pedacinho a pedacinho. ODORICO Ento isso. Est explicado a demora. Zeca Diabo est obrigando Neco Pedreira a engolir o que escreveu. Mas isso s no resolve. DULCINA No resolve? ODORICO No, isso pode dar uma dor de barriga naquele gazetista, nada mais. (Ouvem-se dois tiros, distantes.) DULCINA Tiros! ODORICO (Assesta o binculo.) Agora sim, que comeou o fuzu. DULCINA Comeou... ou terminou? ODORICO Sim, mais provvel que tenha terminado. Zeca Diabo esperou Neco engolir a ltima letra do artigo e botou um ponto final. DULCINA Tenho medo. ODORICO Medo de qu DULCINA Muita gente gosta de Neco Pedreira. E morrendo assim vai virar mrtir. ODORICO Tem importncia no! Despacho Neco Pedreira com todas as honras. Fao at discurso na beira da cova. DULCINA Talvez no d tempo de Zeca Diabo fugir. O povo pode se enfurecer. ODORICO Melhor, assim teremos dois defuntos para inaugurar o cemitrio. Ningum mais vai dizer que coisa intil, que eu esbanjo dinheiro do povo. E a oposio perde duas vezes: perde Neco Pedreira e perde o assunto. NECO (Entrando.) Ainda no vai ser desta vez, Odorico. ODORICO (Volta-se surpreso.) Voc... ento... DULCINA Ele... ele matou Zeca Diabo! ODORICO No possvel! NECO (Ri.) Tambm servia, no , Odorico? O que voc quer, afinal, um defunto, no faz questo da qualidade. ODORICO Que brincadeira essa? Veio aqui pra mangar de mim? NECO Vim no, pelo contrrio. Vim lhe dar a honra de ser o primeiro a ler a gazeta de amanh. Trouxe a primeira prova, sada da mquina agora, fresquinha pra voc. (Entrega o jornal a Odorico.) ODORICO (L.) A Vida de Zeca Diabo contada por ele mesmo. De cangaceiro a delegado. Exclusividade de A Trombeta. Que histria essa? NECO Muito simples: Zeca Diabo agora meu colaborador. Comprei os direitos da vida dele, cada dia sair um captulo. ODORICO Voc no pode fazer isso. NECO E por que no? Sou um jornalista. E Zeca Diabo notcia. Vai ver como vou vender jornal. Graas a voc. Nunca esquecerei dessa atitude fraternal. Creio, alis, que estou prestando um servio a municipalidade, publicando a biografia de um dos seus filhos mais ilustres. ODORICO Onde est essa besta? NECO Voc se refere ao delegado? Ficou tirando fotografias para ilustrar os prximos captulos. DULCINA E os tiros? NECO que eu pedi um retrato de trabuco na mo. E ele resolveu dar uns tiros pela janela, pro retrato ficar mais realistas. Que foi que imaginaram? Que tinha havido um assassinato? (Ri.) Eu e o Capito Zeca Diabo nos entendemos muito bem. (Entra Zeca Diabo lendo um jornal.) NECO ou no , capito? ZECA O qu? NECO (Pousando o brao no ombro de Zeca Diabo.) O prefeito no acredita que a ordem e a imprensa possam ser boas amigas. ODORICO O que eu no acredito que Capito Zeca Diabo tenha consentido nessa infmia. ZECA Infmia por qu, seu prefeito? O que o moo t escrevendo da minha vida pura verdade, fui eu que contei a ele. E nunca pensei que ficasse to bonito. NECO Lamento no ser poeta, Capito, sua vida pra ser cantada em versos. ZECA Modstia parte, j foi, numa beleza de -b-c. (Declama.) Agora vou eu falar adisculpe a pretenso de um cabra que foi maior bem maior que Lampio, seu nome Zeca Diabo, o terror deste serto. ODORICO Seu Neco, se o senhor no se ofender, eu queria ter uma prosa de p-de-ouvido com o delegado. NECO Ora, vontade, Odorico. Tenho mesmo que voltar redao. ZECA Quando ficam prontos aqueles retratos? NECO Mais logo. ZECA Mais logo eu passo l. NECO Passe, passe, que assim ns aproveitamos e j escrevemos o segundo captulo. (Volta-se da porta.) Ah, uma informao somente, senhor prefeito, para satisfazer a curiosidade de centenas de leitores: quando ser inaugurado o cemitrio? ODORICO Tanto a imprensa sadia quanto a doentia sero informadas com antecedncia. NECO - Obrigado. (Sai.) ODORICO Capito Zeca Diabo, no estou entendendo. ZECA que o moo escreve meio floreado. ODORICO isso no. O que eu no entendo o seu procedimento. O senhor sai daqui pra sacudir a marreta nesse filho duma gua e volta abraado com ele? ZECA que no havia razo pra sacudir a marreta, seu doutor. ODORICO Como no havia? No leu o que ele escreveu ontem de ns? ZECA T no seu direito. ODORICO Que direito? ZECA Direito que a lei garante. E eu, como representante da lei... ODORICO Que histria essa, capito? Ento o senhor representante da lei contra mim? ZECA Seu doutor, como delegado eu tenho que ser justo. Fui l mesmo com gana de fazer o moo engolir o que disse. Mas ele me fez sentar e conversar. Me mostrou a lei que garante a ele dizer o que quiser. Lei feita pelos deputados, no sei se vosminc conhece. ODORICO Claro que conheo. A lei diz que cada um tem a liberdade de dizer e escrever o que quiser, mas diz tambm que ns temos o direito de sacudir a marreta quando algum escrever contra ns. ZECA Isto no est na lei que o moo me mostrou. ODORICO Porque o senhor no leu tudo com ateno. ZECA No li, mas fiz ele ler pra mim. ODORICO E alm do mais, capito, eu no estou precisando aqui de um doutor em leis. Estou precisando de um homem decidido, de pouca conversa, um homem de ao. Pela sua fama, pensei que esse homem fosse o senhor. Me disseram que o senhor tinha despachado trezentos, mas estou vendo que o senhor no de despachar ningum. ZECA Fui, seu doutor, agora tou regenerado. ODORICO No podia esperar um pouco? ZECA Podia no. Eu no agentava mais aquela vida, sempre fugindo dos macacos, matando pra viver, matando pra no morrer. Tava cansado, seu doutor. Ontem fui tomar a beno do Seu Vigrio e prometi a ele ser um homem de bem, como j tinha prometido a meu Padim Pade Cio. ODORICO Sabe o que eu acho? Que o senhor virou pamonha. ZECA (Sente a ofensa) No fale assim comigo, seu Dot-Coron-Prefeito. ODORICO Pra que foi que eu acoitei o senhor aqui, me arriscando, arriscando meu cargo? Foi pro senhor vir dar essa de Madalena arrependida? (Zeca se contem a custo.) ZECA Seu Dot-Coron-Prefeito no fale assim comigo que eu posso esquecer o respeito e a estima que tenho pelo senhor... ODORICO O senhor, capito, no de nada! Como matador, o senhor a vergonha da classe! (Zeca Diabo sente o sangue subir cabea, agarra Odorico pela gola do palet.) ZECA Chega, seu Coron, chega! (Saca do revlver.)(Dulcina corre para um canto, apavorada, sem fala.) ZECA Eu prometi a meu Padim contar at dez antes de matar um homem... um... dois... trs, quatro, cinco... seis, sete... me acode aqui, meu Padim!... oito, nove, dez! (Zeca Diabo se acalma, solta Odorico, que est quase desmaiado, suando frio. Zeca ergue os olhos para o alto.) ZECA brigado, meu Padim... brigado por t segurado meu brao e impedido de quebr meu juramento. (Guarda o revlver e sai.) (Dulcina corre em socorro de Odorico.) DULCINA Odorico... Voc t bem? ODORICO (Procurando se refazer do susto.) Estou... DULCINA Pensei que ele fosse matar voc! O pai do meu filho! ODORICO Filho?! DULCINA ... Vim pra te dizer isso. Desta vez tenho certeza! ODORICO Mas isso hora de dar uma notcia dessas!... DULCINA Desculpe... ODORICO J no basta a decepo que acabo de ter... Dei a mo a esse homem, perdoei os crimes que ele cometeu, fiz ele meu delegado... e ele se junta com Neco Pedreira pra me desmoralizar. DULCINA Isso de Neco escrever uma novela da vida dele... ODORICO Isso eu no posso deixar. Nem que tenha de entrar em acordo com aquele gazetista patifento. Vamos ver o quanto ele quer pra parar com isso. DULCINA Ento preciso andar depressa, antes que ele imprima os jornais. ODORICO Voc podia me fazer esse favor, ir redao e pedir a esse badernista pra vir c. Sei que ele sempre teve uma certa queda por voc... DULCINA Mas eu nunca lhe dei confiana. E s vou l por sua causa. ODORICO Ento v. Faa isso por mim. DULCINA S que Dirceu est me esperando... Marquei encontro com ele aqui. Ele anda muito desconfiado... ODORICO De que?! Do seu estado?... DULCINA No! Se ele souber disso, capaz de me matar. Ele fez voto de castidade, sabia? ODORICO Ele me disse. Depois a gente cuida disso. DULCINA Est bem. (Sai.) ODORICO (Apanha o jornal que Neco deixou e l.) Zeca Diabo j fez perto de trezentos defuntos. Odorico tem esperana que de que ele faa alguns para inaugurar o cemitrio. (Amarrota o jornal, furioso, e atira-o ao cho, no momento em que entra Dirceu.) DIRCEU Com licena, seu prefeito? ODORICO Ah, pode entrar. DIRCEU Minha mulher esteve aqui? ODORICO Mandou voc esperar. Esse Neco Pedreira um cachorro. DIRCEU Onde ela foi? ODORICO Foi atrs dele. DIRCEU Atrs de Neco? ODORICO , na redao dA Trombeta. DIRCEU Minha senhora com Neco, na redao dA Trombeta... O senhor no est enganado? ODORICO Enganado por qu? DIRCEU O senhor no est querendo insinuar... No, com certeza o senhor no disse com essa inteno... Eu que ando cismado. Essas cartas annimas... ODORICO Cartas annimas? DIRCEU ... j recebi trs. ODORICO Falando de Dona Dulcina? DIRCEU A princpio, eu no liguei. Sempre confiei nela. Mas agora... toda semana chega uma carta... Eu j no sei o que pensar... ODORICO E... essas cartas falam tambm... de outra pessoa? DIRCEU No. E foi por isso que quando o senhor disse que ela estava atrs de Neco Pedreira... A maneira como o senhor falou... ODORICO (Calculadamente, resolve reforar a desconfiana de Dirceu.) Bem, voc me desculpe, eu falei sem pensar. No quero mesmo me meter nessa histria. DIRCEU Que histria, seu prefeito? ODORICO Sei no. Da minha boca voc no arranca uma palavra. Pergunte a outra pessoa qualquer. A cidade inteira sabe. DIRCEU A cidade inteira?! ODORICO , me admira at que voc... Bem, eu no disse nada. DIRCEU No disse, mas vai fazer o favor de dizer. ODORICO Voc compreende, muito desagradvel. Dona Dulcina minha correligionria... Isto, alis, que torna a questo ainda mais delicada. Sabe, Neco nosso inimigo poltico, uma dupla traio. DIRCEU Dupla traio. ODORICO Mas no pense que ela a culpada. No, ele, ele que a persegue. Ela bem que resistiu, a princpio, mas... DIRCEU Mas? ODORICO Eu s estou lhe dizendo isso porque j um caso pblico. Mais cedo ou mais tarde voc ia saber. DIRCEU Caso pblico. Por isso me mandaram esta carta anteontem. (Tira uma carta do bolso, l.) Seu pamonha, mulher s se mete em poltica quando tem falta de homem na cama. Veja se contenta a sua, antes que outros tratem disso. No tem assinatura. ODORICO Eu no estou dizendo? Caiu na boca do povo. DIRCEU E o pior no isso... (Tira do bolso outro envelope.) ODORICO Outra carta annima. DIRCEU No... um teste de gravidez. ODORICO Eu imagino seu sofrimento. duro um golpe desses, duro. Mas voc no tem que ficar assim nesse desconsolo. Tem que reagir, como homem. DIRCEU O senhor disse que ela est com ele agora, na redao dA Trombeta? ODORICO Est, tenho certeza. DIRCEU Vou l. ODORICO Espere. Tenha calma. Eu sei que numa hora dessa no adianta dar conselhos. Se eu estivesse no seu lugar tambm perdia a cabea e passava fogo nesse destruidor de lares. Mas que a coisa talvez pudesse ser resolvida sem morte. J sei o que o senhor vai dizer, que uma questo de honra. E honra s se lava com sangue. Est bem. V e resolva. O que puder fazer depois para lhe dar fuga, pode ficar certo de que farei. (Estende a mo a Dirceu.) Voc est armado? DIRCEU Estou no. ODORICO (Apanha um revlver.) Tome. S lhe peo que devolva depois de usar, porque uma arma de estimao. DIRCEU Est bem... eu... de qualquer maneira... Minha Nossa Senhora... (Sai bruscamente, atordoado, e esbarra em Dorota, que entra.) DOROTA Caando borboletas com revlver? ODORICO No, a mulher. DOROTA Dulcina?! ODORICO Andaram enchendo a cabea do coitado... DOROTA Contra o senhor? ODORICO No, ele sabe que eu no misturo poltica com safadagem. Veio se aconselhar. Eu procurei botar uns panos quentes. Mas o homenzinho t zor. capaz de fazer uma besteira. DOROTA No entendo com quem minha irm... ODORICO A senhora vai ficar de queixo cado quando souber. DOROTA Quem? ODORICO Neco Pedreira. DOROTA No pode ser! ODORICO Tambm acho que a suspeita desprocedente. Mas ele diz que tem provas. DOROTA Espantoso! ODORICO Mas bem feito. Homem que passa a vida caando borboletas, a mulher acaba caando homem. DOROTA Coronel! ODORICO Desculpe. (Ouvem-se seis tiros.) ODORICO (Contando os tiros) Trs... quatro... cinco... seis. Que exagero! DOROTA Ser que foi ele?! ODORICO (Corre at a janela.) Foi ele sim. Veja quanta gente est correndo para a redao do jornal. DOROTA E l vem ele correndo como um louco. Parece que vem pra c! ODORICO Ele deve ter boa pontaria, a senhora no acha? caador... DOROTA Caador de borboleta. ODORICO Sim, verdade. Mas seis tiros, no possvel que tenha errado todos. Um ao menos deve ter acertado. DIRCEU (Entra, correndo, transtornado, sem culos, com o revlver.) Me escondam! Querem me linchar! ODORICO Espere, conte primeiro, que aconteceu? DIRCEU No sei... os culos caram na hora... a vista escureceu... no vi nada... mas acho que matei! DOROTA - Matou quem? ODORICO Neco Pedreira? Aquele ativista dos maus costumes? DIRCEU Sei no... Me esconda! Eles querem me pegar! ODORICO V por aqui e saia pelos fundos. Pule o muro que d pro quintal da igreja. Fale com o Vigrio que fui eu que mandei. Que ele esconda voc l. DIRCEU E se ele no quiser? ODORICO Diga que voc acaba de prestar um grande servio municipalidade. Espere, o revlver... (Toma o revlver.) (Ouvem-se vozes: Pega! Ele entrou na prefeitura! Matou a mulher!) DIRCEU (Sai correndo, volta.) Olha, se alguma coisa me acontecer, a minha coleo de borboletas fica para a prefeitura. (Sai correndo.) ODORICO Agradeo, em nome do municpio. (As vozes aumentam em quantidade e volume.) ZECA DIABO (Entra.) Entrou aqui um cabra espavorido?... ODORICO Por qu? ZECA Ele deu seis tiros numa dona. DOROTA Minha irm! ODORICO Matou? ZECA Se matou? A dona ficou que nem paliteiro. ODORICO E o senhor, como delegado, que faz que no prende o assassino? ZECA Tou no piso dele. Diz que entrou aqui. ODORICO Vi no. Mas se entrou, s pode ter sado por ali, pulado o muro do quintal e se escondido na igreja. ZECA Deixe ele comigo. (Sai de revlver em punho.) DOROTA O senhor fez bem em delatar. monstruoso o que ele fez! ODORICO E ela, afinal de contas, alm de sua irm era nossa companheira de lutas. (Arruma-se para sair. Tem um ar triunfante.) Vamos, quero ver o cadver.

STIMO QUADRO No dia seguinte, tarde. V-se uma parte do caixo que se acha exposto visitao na sala ao lado. Vigrio, Juju, Ernesto, Moleza, Dermeval, a Velha Beata, entre outros populares fazem a sentinela. MOLEZA Seis tiros mesmo? DERMEVAL Seis. MOLEZA Oxente, nunca pensei que Dirceu Borboleta fosse capaz de dar um tiro, quanto mais meia dzia. JUJU Um rapaz to delicado. MOLEZA Vivia caando borboletas... DERMEVAL Deve ter endoidecido. ERNESTO Juju, voc no devia ficar tanto tempo aqui. Pode lhe fazer mal. JUJU No, quero ficar. VELHA (Ergue um pouco a voz, em meio a uma orao.) ... pelas chagas de Cristo ... (Continua, sussurrando.) (Entra Neco Pedreira, vai at a beira do caixo, olha demoradamente. Ao v-lo, Juju cutuca Ernesto. Todos se entreolham, como se a presena de Neco junto defunta fosse algo pornogrfico.) JUJU muita coragem vir aqui, depois de tudo. ERNESTO Cala a boca. JUJU A cidade inteira sabe que Dirceu encontrou ela nos braos dele! NECO Onde est Odorico? VIGRIO Por a, tratando dos preparativos do enterro. NECO Hoje dia de festa para ele. Vai, enfim, inaugurar o seu cemitrio. VIGRIO Graas ao senhor. NECO Isso que d mais raiva: eu fui uma das pedras do jogo. Justia seja feita, Odorico um grande jogador. VIGRIO Que est insinuando? NECO Fui cadeia falar com Dirceu, mas no me deixaram. Est incomunicvel. Essa a nunca mais vai falar... VIGRIO Que que voc queria falar com Dirceu? NECO Odorico sabe. Pode ser que eu me engane, mas tenho um pressentimento de que ele sabe. Tanto que ele deu ordem para no deixarem. (Entra Dorota. Ao passar por Neco tem um olhar de extrema curiosidade, como se o visse pela primeira vez, e vai reunir-se ao grupo que vela a defunta.) NECO As mulheres devem estar me achando hoje o homem mais fascinante da cidade. VIGRIO Pelo menos no h nenhum outro que desperte idias to obscenas. NECO Por isso mesmo. DOROTA (Junto ao caixo.) incrvel esse homem!... JUJU (Idem.) Tio Hilrio. DOROTA Mandei um portador fazenda dele. Deve estar chegando. VELHA (Elevando a voz, no meio de uma orao, como uma censura.) ... rogai por ns, pecadores ... (Continua num sussurro.) (Entram Mestre Ambrsio e Zelo, descobrem-se, respeitosamente, e acercam-se do caixo.) NECO H cinco anos que fao jornal e a primeira vez que acontece alguma coisa que merece ser noticiada. VIGRIO Voc vai noticiar? NECO No noticiar uma confisso de culpa. MESTRE AMBRSIO (Junto ao caixo.) Tenho sessenta anos, com a graa de Deus, e posso garantir que aqui nunca houve coisa igual. A no ser quando Zeca Diabo liquidou com a raa do Coronel Lidrio. Assim mesmo deu s um tiro em cada um. ZELO (Idem.) Isso crime de cidade grande. MOLEZA (Idem.) Prova de que ns tamos crescendo. Tamos virando metrpole. (Ouve-se a banda de msica ensaiando a Marcha Fnebre de Chopin.) MOLEZA A banda j t a. NECO A banda e toda a populao da cidade. At o comrcio fechou. Odorico decretou feriado municipal. E se fosse verdade o que dizem por a, seria o nico feriado no mundo que comemora um adultrio. (Sai.) (Dermeval e Mestre Ambrsio se afastam do caixo.) MESTRE AMBRSIO Veio prevenido, meu camarada? DERMEVAL Ora... (Passa a Mestre Ambrsio uma pequena garrafa. Mestre Ambrsio, disfaradamente, toma um trago.) (Entra Odorico. Veste um terno preto bastante apropriado ocasio.) ODORICO incrvel essa banda, h quase dois anos que ensaia a Marcha fnebre e ainda desafina. MOLEZA (Vem ao encontro de Odorico.) Seu prefeito... ODORICO Que que voc est fazendo aqui, seu Moleza? O enterro est pra sair, seu lugar no cemitrio. MOLEZA Vim s fazer um pouco de sentinela. ODORICO V fazer uma sentinela junto da cova. V ver se est tudo em ordem. A semana passada passei por l e vi um jegue pastando. MOLEZA Era o jegue do Melchior. Ele pediu, no sabe? ODORICO Nem Melchior, nem meio Melchior. Aquilo um cemitrio, um campo-santo. MOLEZA que at agora estava sem serventia. ODORICO Sem serventia! Me admira o senhor, o coveiro, dizer uma coisa dessas. E justamente quando vai ficar provado que o cemitrio era a obra mais urgente desta cidade. DOROTA Apesar das ms lnguas da oposio dizerem o contrrio. ODORICO Quero ver agora, se no tivssemos o cemitrio, toda essa gente pernear seis lguas atrs do caixo. MOLEZA L isso verdade, ia ser uma dureza. DOROTA - Certas pessoas deviam ser obrigadas a isso, como castigo pelos danos morais que causaram nossa cidade. ODORICO Ande, v para o seu posto. E fique de olho, que a oposio capaz de sabotar o enterro. MOLEZA Tenha cuidado no, que pelo meu lado vai correr tudo bem, seu prefeito. S quando eu penso em jogar aquele monte de terra em cima da pobrezinha me d um frio na barriga. DOROTA Oxente! MOLEZA Acho que falta de costume. ODORICO Claro. Mais alguns defuntos e o frio passa. V, v para o seu posto. MOLEZA J tou indo.(Sai.) ODORICO E a senhora, providenciou tudo? DOROTA Tudo que me competia. Os meus alunos j esto a fora, vo acompanhar o enterro. Tive de ir casa de um por um, porque h um ms a escola est fechada por falta de verba, como o senhor sabe. ODORICO (Alegre.) Sei, sei. Mas agora, tudo vai mudar. Vamos esquecer os anteontem e pensar nos depois-de-amanh. Com a inaugurao do cemitrio, a oposio sofreu uma derrota tremenda. Amanh eu volto a ter maioria na Cmara dos Vereadores. O povo que est envenenado por Neco Pedreiro e outros volta a me apoiar. Basta olhar pela janela: a rua est repleta, no ficou uma s pessoa em casa. A inaugurao do cemitrio vai ser uma apoteose. DOROTA Quanto a isso, no h dvida. A inaugurao do cemitrio uma grande vitria, ainda que tenha custado a vida a um dos nossos. ODORICO As obras que vendem o tempo so sempre construdas com lgrimas e sangue... Assim comea o meu discurso. (Apalpa o bolso.) O discurso, onde est o discurso? Ser que perdi? Levei a noite inteira escrevendo. (Encontra o manuscrito.) Ah, est aqui; Vai ser uma bomba. (Entra Zeca Diabo.) ODORICO Tudo em ordem, delegado? ZECA Tudo, seu doutor. O cabra t trancafiado, com dois macacos de tocaia. ODORICO Deu ordem pra no deixar ningum falar com o preso? ZECA Dei. S que o cabo, no sabe, pediu pra acompanhar o enterro. ODORICO O senhor deixou? ZECA Deixei. Ele alegou que nesta cidade quase no tem diverso. ODORICO Est bem. A Fora Pblica precisa mesmo estar representada. (O Coronel Hilrio Cajazeira entra. um velho fazendeiro, j de idade avanada, mas ainda rijo, como bom sertanejo. Ao verem-no, Dorota e Judica vo ao seu encontro.) JUJU tio Hilrio, D! DOROTA Estava com medo que no chegasse pro enterro. (Elas abraam o Coronel, emocionadas.) HILRIO Como foi isso?... DOROTA Uma desgraa, tio Hilrio, uma desgraa. (Odorico vai ao encontro do Coronel Cajazeira.) ODORICO Coronel Cajazeira.... meus psames... sinto tanto quanto o senhor... HILRIO Quando recebi a notcia da tragdia, me lembrei de uma carta que meu finado irmo deixo pra mim... No sei se vocs esto lembradas dessa carta... DOROTA No me lembro... HILRIO A carta contm as derradeiras vontades do pai de vocs... (Ele tira uma carta do bolso.) ...Eu queria que vocs lessem... O prefeito d licena... uma reunio de famlia... ODORICO Pois no... DOROTA Vamos pra outra sala... (Dorota, Juju e o Coronel Cajazeira saem. Odorico consulta o relgio.) ODORICO Isso hora de fazer reunio de famlia? Em cima da hora do enterro. VIGRIO , j devamos estar saindo... ODORICO Acho que enquanto eles conversam, a gente j podia partir pros finalmentes, no, seu Vigrio? VIGRIO O senhor quem manda. ODORICO Ajudem aqui... (Mestre Ambrsio e Dermeval ajudam Odorico a colocar a tampa no caixo e fech-lo. Neco Pedreira entra com uma mquina fotogrfica.) ODORICO A primeira ala minha, fao questo. (Odorico empurra Ernesto e pega na primeira ala.) ODORICO Capito Zeca Diabo, pega na outra. ZECA Eu tambm? ODORICO Claro, o senhor autoridade. NECO Posso bater uma chapa? ODORICO Excelente idia. Este um momento histrico. (Faz pose, sorridente.) VIGRIO No acha que no fica bem sorrir? Afinal de contas, um enterro. ODORICO , de fato, no fica bem. (Posa, triste, compungido.) (A banda ataca a Marcha Fnebre.) NECO Ateno. (Bate a chapa.) ODORICO Vamos. Desta vez, vamos. (Entram Dorota, Juju e o Coronel Cajazeira.) HILRIO Esperem! Um momento! ODORICO Estamos esperando vocs... HILRIO Esse enterro no pode ser realizado. ODORICO Como ?! O senhor t querendo fazer humor preto numa hora dessas?! HILRIO O corpo tem que seguir pro mausolu da famlia, no Cemitrio de Jaguatirica, conforme a vontade do meu finado irmo, pai da falecida. DOROTA Mostre a carta ao Coronel Odorico, tio Hilrio.(Hilrio mostra a carta a Odorico.) HILRIO Foi uma carta que ele ditou e assinou, pouco antes de entregar a alma ao Criador. Leia este pedao. ODORICO (L) ...desejo ser enterrado com minha mulher no mausolu da famlia, em Jaguatirica. Desejo tambm que minhas trs filhas, quando o Senhor as chamar, sejam sepultadas no mesmo lugar, a fim de que de novo possamos estar reunidos na vida eterna. JUJU O senhor entende?... DOROTA Era vontade dele... (Odorico reage violentamente.) ODORICO Uma ova! Vai ser enterrada aqui e agora! (Odorico atira a carta em cima de Hilrio e pega na ala do caixo.) ODORICO Essa, no! Essa eu enterro de qualquer jeito! HILRIO De qualquer jeito, no! Voc no o dono da defunta! Voc no nem parente! VIGRIO Coronel, esse um assunto que cabe aos parentes mais prximos da falecida decidirem. As irms. (Odorico olha pattico, para Dorota e Judica.) ODORICO Dona Dorota, Dona Judica... as senhoras no vo fazer isso comigo! (Juju abaixa os olhos.) DOROTA Sinto muito, Coronel... JUJU Nosso pai quis assim... (Odorico, num desespero crescente, vai se distanciando da realidade.) ODORICO Eu nunca podia esperar isso de vocs! Uma traio! Mas no pensem que me entrego facilmente. Vou para as ruas, vou fazer comcios, vou lutar de armas na mo, mas esse defunto ningum me tira! (Desatinando, Odorico vai at a janela e fala ao povo.) ODORICO Meus convidados! Querem roubar nossa terra o direito de enterrar seus prprios mortos! Mas eu, Odorico Paraguau, filho de Eleutrio e neto de Firmino Paraguau, no permitirei que o corpo desta infeliz concidad saia desta casa seno pra fertilizar com suas virtudes a terra morna e cheirosa que a viu nascer! (Ouvem-se vozes fora: Viva o Coronel Odorico!... Viva!... Muito bem!) ODORICO o Direito, a Liberdade, a Civilizao crist que esto em jogo! Ou enterramos Dona Dulcina, ou nos enterramos!

OITAVO QUADRO No dia seguinte. Amanhece. Odorico cochila numa cadeira. O defunto continua no mesmo lugar, velado pela Velha Beata e Moleza, que dorme a sono solto. Moleza acorda, dirige-se janela, e, ao passar por Odorico, este desperta, sobressaltado. ODORICO Quem foi? O caixo?!... MOLEZA T no mesmo lugar. ODORICO J amanheceu... MOLEZA (Olhando pela janela.) A redao dA Trombeta esteve de luz acesa a noite toda... Neco anda trabalhando muito. ODORICO A noite toda, ?... MOLEZA ... ODORICO Cad as irms Cajazeira? Dona Dorota, Dona Juju?... MOLEZA Foram embora h muito tempo. ODORICO Mas o povo... (Chega at a janela, olha.) Muita gente passou a noite l fora, solidria comigo. Afinal, isto como uma guerra. Precisamos resistir todos juntos. (Entra o Vigrio.) ODORICO Falou com eles? VIGRIO Passei a noite tentando convenc-los. ODORICO Conseguiu? VIGRIO Nada. Fincaram p. Vo levar o cadver pra Jaguatirica mesmo. ODORICO S se levarem o meu tambm. VIGRIO Infelizmente, eles tm meios de nos obrigar a ceder. ODORICO Que meios? VIGRIO Os Cajazeira requereram ao juiz autorizao para levar o corpo. ODORICO O juiz um homem de bem, justo, honesto, honrado, cristo, no vai dar... VIGRIO J deu. ODORICO Juiz patifento. Safado! Sempre desconfiei desse juiz. VIGRIO H outra coisa tambm contra ns... ODORICO Todas as coisas esto contra ns. Tudo est contra ns! VIGRIO Temo que o defunto tambm fique. ODORICO Como? VIGRIO Fedendo. Com esse calor, daqui a pouco vai comear a exalar mau cheiro. MOLEZA Alis j est. VIGRIO Ningum vai agentar. ODORICO Temos ento de embalsamar o corpo. VIGRIO Aqui no h ningum que faa isso. ODORICO Mas poderia-se arranjar um pouco de perfume... para quando comeasse a feder muito. VIGRIO Isso no vai impedir a decomposio do corpo. ODORICO Mas que diabo, o senhor s inventa dificuldades! VIGRIO Eu no invento nada, so leis dos homens e leis da natureza. ODORICO Ser possvel que todas as leis tenham se voltado contra mim, que sou o prefeito? (Zeca Diabo entra seguido de Dorota, Juju e Hilrio.) ZECA Seu prefeito? ODORICO Que que h? Vocs... ZECA Trago aqui uma ordem. (Mostra um papel.) ODORICO De quem? ZECA Do juiz. VIGRIO No disse? ODORICO O senhor recebe ordens minhas, no do juiz. ZECA no. ODORICO No? ZECA Fui falar com o juiz e ele me explicou: esta ordem anula a sua. lei. HILRIO Leia pra ele ouvir. ZECA (Comea a ler com dificuldade.) Ex... ce... lentssimo se... nhor... VIGRIO Quer que eu leia? ZECA - melhor... leitura no o meu forte... VIGRIO (Toma o papel e l) ...considerando que o marido da falecida est preso; considerando que as senhoritas Dorota e Judica Cajazeiras so as parentes mais prximas da defunta em condies em opinar; considerando... ODORICO Seu Vigrio, vamos botar de lado os considerandos e partir pros finalmentes. Quem o Meritssimo acha que est com a razo? VIGRIO Eles. ODORICO Pois se essa a deciso da Justia, data vnia, digam ao meritssimo juiz que no aceito. JUJU Mas o Juiz! HILRIO Voc no pode se recusar a cumprir uma deciso da Justia! ODORICO Tambm tenho jurisprudncia firmada sobre o assunto. O defunto meu e ningum me tira! HILRIO Delegado, a Polcia tem que garantir o cumprimento da ordem judicial. ZECA Pode deixar. ODORICO Quem vai garantir? ZECA Eu mesmo. ODORICO E quem voc? ZECA O delegado, oxente! ODORICO (Apanha um papel sobre a mesa.) Est demitido. (Espera uma reao violenta de Zeca Diabo.) ZECA (Muito chocado, sua reao infantil, como menino que foi expulso do brinquedo.) Demitido... mas eu no fiz nada... eu s queria cumprir a lei... meu Padim Pade Cio testemunha... Vosminc no est satisfeito comigo? ODORICO Com voc, muito; no estou satisfeito com a lei. ZECA E agora o que que eu vou fazer? ODORICO Acho bom sair da cidade, se no quer ser preso. ZECA Preso? Mas vosminc deu a sua palavra... ODORICO Minha palavra no vale nada, o que vale a lei. E voc agora est fora da lei. ZECA (Extremamente confuso e aborrecido.) A lei... fora da lei... Seu Doutor Prefeito no podia fazer isso comigo... no podia... (Sai.) HILRIO Isso um absurdo! Vou falar com o juiz! DOROTA O senhor vai e ns ficamos velando o corpo. (Hilrio sai. Dorota e Juju vo para junto do caixo.) VIGRIO O senhor fez bem em demiti-lo; o passado desse homem no o recomendava para o posto. ODORICO H dois dias que estou com a demisso dele na gaveta. VIGRIO E a ordem do juiz? ODORICO Que tem? VIGRIO O senhor mediu bem as conseqncias de seu gesto? ODORICO Padre, eu levei quase dois anos para arranjar um defunto, dois anos a oposio malhando nas minhas costas. e agora que o defunto est aqui, preparado, prontinho para ser despachado, o senhor acha que vou entreg-lo assim de mo beijada? Nunca. Pode o juiz mandar trinta ordens. Daqui o defunto s sai comigo. VIGRIO O juiz pode requisitar fora estadual para fazer cumprir a ordem. ODORICO Que mande, que mande um batalho. Melhor at, porque isso vai ferir os brios da populao. E a, com o povo do meu lado, eu vou enterrar o defunto na marra. VIGRIO Bem, eu fiz o que pude para solucionar a questo pacificamente. J que h intransigncia de parte a parte, eu me retiro para a minha igreja. Aguardarei l a soluo. ODORICO Julguei que o senhor estava comigo. VIGRIO Eu continuo, intimamente, com o senhor. Para efeitos exteriores, porm, acho melhor aparentar uma certa neutralidade. Compreende, quando dois poderes se digladiam, o Executivo e o Judicirio, prudente que a Igreja no tome partido. ODORICO Muito sbia a sua posio. VIGRIO Obrigado. Com licena. (Sai.) ODORICO Claro, assim, vena quem vencer, ele est sempre por cima. NECO (Entrando.) Odorico, preciso falar com voc. ODORICO Pode falar. (Dorota e Juju ficam atentas ao dilogo entre Neco e Odorico.) NECO Estive na cadeia, Odorico. ODORICO Devia ter ficado l, um bom lugar pra voc. NECO Talvez voc no responda com tanto esprito quando souber que eu entrevistei Dirceu Borboleta. ODORICO Subornou os soldados, com certeza. NECO Foi preciso no. Mas ainda que fosse, meu crime era bem menor que o seu. ODORICO Que foi que aquele borboletista lhe disse? NECO Tudo. Tudo como se passou. Voc vai ler na minha gazeta. (Neco mostra um exemplar do jornal.) ODORICO (Arrebata o jornal das mos de Neco.) Isso uma gazeta que se lava e enxgua no calunismo. Que foi que voc escreveu a? NECO A mais pura verdade. Que foi voc que mandou Dona Dulcina redao do jornal; foi voc quem inventou que ela era minha amante; foi voc quem emprestou o revlver, foi voc quem delatou Dirceu, depois de ter mandado ele se esconder na igreja. (Dorota, Moleza e Juju ouvem tudo, perplexos.) ODORICO No acreditem; tudo isso mentira. (Amarrota o jornal e atira-o ao cho.) Essa imprensa marronzista... (Juju apanha o jornal e pe-se a ler com Dorota. Ernesto entra e rene-se a elas.) ODORICO Dirceu Borboleta est meio gira. O que ele fez j uma prova de desmiolamento. Matar a mulher, que era uma santa, com seis tiros, s um louco faz isso. Alm do mais, vocs sabem, ele tinha a mania de caar borboletas. Era um borboletista juramentado. passava o dia todo com aquela rede, pelos matos, borboletando, nem ligava pra mulher. De-repentemente... vocs no acham que tudo isso so sintomas de loucura? Vou chamar um especialista da capital e vocs vo ver. DOROTA Especialista pra quem? Voc ou Dirceu? NECO Vamos ver quem o especialista vai achar mais louco: o caador de borboletas ou o caador de defuntos. (Inicia a sada.) ODORICO Vou mandar apreender toda a edio desse pasquim! (Ouve-se um jornaleiro, fora, apregoando: A Trombeta! Vai ler A Trombeta!) NECO (Detm-se na porta, sorri.) Agora, tarde... (Sai.) DOROTA Nem consigo acreditar! JUJU monstruoso! (Zelo e Mestre Ambrsio entram, lendo o jornal; tm para Odorico um olhar de acusao e espanto.) ODORICO Por que me olham assim? No era ela o defunto que eu queria, era Neco Pedreira! JUJU Tudo mentira! No havia nada entre eles! ERNESTO E ainda delatou Dirceu! JUJU (Com horror.) E era padrinho deles, de casamento! DOROTA Como pode um homem s enganar tantos, durante tanto tempo! MOLEZA Coitadinha! Que judiao! (Juju e Ernesto iniciam a sada, horrorizados.) ODORICO Aonde vocs vo? Esperem! O enterro vai sair. Tudo ser explicado depois. preciso que vocs confiem em mim. Tudo ser explicado. O importante fazer o enterro, inaugurar o cemitrio. ERNESTO Nos preferimos esperar l fora. (Sai com Juju.) ODORICO (Volta-se para Dorota.) Ser possvel que ningum mais confie em mim! At as pessoas que... (Dermeval e Moleza aproveitam a fala de Odorico para sair. Odorico pressente, volta-se e no mais os v.) ODORICO Todos... todos! (Vai at a janela. Ouve-se o jornaleiro: Vai ler A Trombeta! Odorico matou Dulcina para inaugurar o cemitrio! Vai ler A Trombeta!) Todos... (Grita para a rua.) No leiam essa gazeta demagogista! No leiam! Tudo isso mentira! Caluniamento! (Desamparado.) Parece que agora esto todos contra mim! Todos fogem de mim! (Zelo, Ambrsio e a Velha saem sorrateiramente.) DOROTA Eu ainda estou aqui. ODORICO Desculpe... com voc eu sei que posso contar at o fim. (Segura-a pelo braos, num gesto fraternal.) Sempre soube, Dorota. (Num impulso repentino, aperta-a de encontro no peito.) Voc sempre me compreendeu. DOROTA (Afasta-o, lentamente, com leve repulsa.) Acho que no. E no acredito que voc consiga sair dessa enrascada. ODORICO Voc no acredita que eu ainda possa me recuperar? DOROTA Acredito no. Com essa, voc est liquidado. ODORICO ... era preciso que alguma coisa acontecesse... DOROTA O qu? ODORICO Sei no... alguma coisa que colocasse o povo do meu lado novamente. DOROTA Por exemplo? ODORICO Por exemplo... um atentado. DOROTA Contra quem? ODORICO Contra mim. DOROTA , podia ser que desse resultado. Principalmente se voc morresse. ODORICO Oxente, espera l! Morrendo, no adiantava nada. DOROTA E creio que a gente ia saber que eles no iam lhe matar? ODORICO Eles quem? DOROTA Quem praticasse o atentado. ODORICO Mas ns que vamos praticar o atentado. Ns mesmos. E depois vamos dizer que foi a oposio. Assim, eu passo de ru a vtima. (Entra Zeca Diabo. Pra na porta, olhos cravados em Odorico.) ODORICO Est a o homem de que eu preciso! Capito Zeca Diabo! Dou minha palavra que o senhor vai ter um fim de vida tranqilo, como deseja, com a minha proteo e a minha ajuda. Lhe dou at uma fazendinha pro senhor criar suas galinhas. ZECA E pra qu, seu Dot-Coron-Prefeito? ODORICO Pro senhor me ajudar. Esto querendo acabar comigo, Capito. Esses badernistas conseguiram botar o povo contra mim. E preciso que acontea alguma coisa que vire o jogo, o senhor est entendendo? Um atentado, por exemplo. Um atentado covarde, brutal, que revoltasse todo mundo! Um atentado simulado, claro... E quem melhor pra isso que Zeca Diabo? Vamos imaginar que o senhor entrasse aqui agora, de trabuco em punho, mandando bala pra tudo quanto lado. Eu finjo que me defendo, fao uma laza pra tudo quanto lado, o senhor foge no seu cavalo e a gente bota a culpa na oposio quer contratou o senhor pra fazer isso! ZECA Quando vai ser isso? ODORICO Agora! Agora mesmo... Dona Dorota, telefone pros jornais de Salvador, exagere, diga que morri, que estou crivado de balas... e acuse logo a Oposio! Vamos virar umas cadeiras, quebrar umas coisas... pra dar uma aparncia de luta... (Odorico fala e vai virando as cadeiras, espalhando papis pelo cho. Zeca Diabo continua imvel, impassvel olhar duro cravado nele.) ZECA Era bom vosminc pegar tambm o revlver... ODORICO Ah sim... Eu tambm tenho que dar uns tiros... pra fingi que resisti. (Odorico abre a gaveta da escrivaninha e apanha o revlver.) ODORICO Bem, agora o senhor d uns tiros pra cima e sai correndo. (Zeca Diabo puxa o revlver, lento.) ZECA Seu Dot-Coron-Prefeito, eu mandei vosminc pegar no revlver no foi pra dar tiro pra cima, foi pra se defender, porque eu vou lhe matar. (Odorico sente que ele est falando srio. Apavora-se.) ODORICO Oxente... que brincadeira essa?! ZECA No brincadeira no, seu Dot-Coron-Prefeito. Traidor no merece viver, tanto mais traidor de moa donzela. Se tem bala nesse revlver, atire em mim, que mim, que meu Padim Pade Cio testemunha que eu nunca matei ningum que antes no quisesse me matar. Afora a raa do Coronel Lidrio que isso no conta. Vamos, atire! (Odorico sua frio.) ODORICO No vou fazer isso contra o senhor... no tenho nada contra o senhor... ZECA Mas eu tenho contra vosminc. Vou contar at trs. Ou vosminc atira, ou morre assim mesmo. ODORICO E o seu juramento? ZECA um... ODORICO O senhor jurou no matar mais ningum! ZECA dois... ODORICO Padre Ccero vai lhe castigar! ZECA trs! (Apagam-se os refletores. Ouvem-se vrios tiros, dos dois revlveres. A seguir, durante a mutao, a Marcha Fnebre de Chopin, executada pela lira de Sucupira.)

NONO QUADRONa boca de cena, o porto do cemitrio, encimado pela inscrio: Revertere ad locum tuum. De costas para o pblico, cercando o tmulo oculto pelas coroas, o Vigrio, Dorota, Judica, Ernesto, Hilrio Cajazeira, Dermeval, Mestre Ambrsio, Zelo, a Velha Beata e populares. De frente para a platia, em plano mais elevado, Neco Pedreira. A seu lado, Moleza com a sua p de coveiro. Neco discursa. NECO Odorico Paraguau, aqui estamos para o ltimo adeus a ti que foste um exemplo para todos ns. Exemplo de probidade e carter, de perseverana e lealdade, de justia e amor ao prximo. (Uma garrafa de cachaa corre de mo em mo, disfaradamente. Dermeval, Zelo, Ambrsio, cada um toma um gole, sob o olhar de reprovao de Dorota e Juju.) DOROTA - Devia haver mais respeito apesar de tudo. JUJU Afinal, ele era uma autoridade. NECO S tu, Odorico, mais ningum, podias merecer a subida honra de inaugurar este campo-santo, que foi a grande obra do seu governo, o grande sonho de sua vida, afinal realizado! Adeus, Odorico, o Grande, o Pacificador, o Desbravador, o Honesto, o Bravo, o Leal, o Magnfico, o Bem-Amado...

FIM