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contemporanea Historia y problemas del siglo XX | Año 3, Volumen 3, 2012, ISSN: 1688-7638 Dossier | 133 O anticomunismo e os órgãos de informação da ditadura nas universidades brasileiras Rodrigo Patto Sá Motta 1 1 Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), Grupo de Pesquisa História Política-Culturas Políticas na História (http://www.fafich.ufmg.br/hcpcph/). Resumen A proposta do artigo é investigar a in- fluência da tradição anticomunista no golpe de 1964 e nas políticas adotadas pelo regime militar brasileiro. Na introdução se apresen- tam as bases de tal tradição, que remontam aos anos de 1930, e o modo como ela foi apropria- da nos anos 1960. A parte principal do texto é dedicada a analisar a atuação dos órgãos de in- formação criados pela ditadura, sobretudo no que tange às tentativas de controle dos espaços universitários. Nesta análise, confere-se ênfase à influência dos valores anticomunistas sobre as ações dos aparatos de informação atuantes nas Universidades, em sua luta para derrotar a esquerda. Palavras chave: Ditadura, anticomunismo, agências de informação Abstract e article aims at researching brazilian anticommunist tradition influence in the 1964 coup and also in the policies adopted by the military regime. In the first part the basis of such tradition that began in the 1930’s are explained and furthermore it is analysed the ways of it’s appropriation in the sixties. e main part of the text is dedicated to analyse the actions of the information agencies created by the dictatorship in it`s attempt to control the universities. e text emphasizes the influence of anticommunist ideas in such actions, in the context of the information apparatus struggles against the left wing enemies. Key words: Dictatorship, anticommunism, information agencies

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Page 1: O anticomunismo e os órgãos de informação da ditadura ... · O impacto da chamada Intentona Comunista foi enorme, notadamente entre as lideranças ca-tólicas e os militares

contemporanea Historia y problemas del siglo XX | Año 3, Volumen 3, 2012, ISSN: 1688-7638 Dossier | 133

O anticomunismo e os órgãos de informação da ditadura nas universidades brasileiras

Rodrigo Patto Sá Motta1

1 Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), Grupo de Pesquisa História Política-Culturas Políticas na História (http://www.fafich.ufmg.br/hcpcph/).

Resumen

A proposta do artigo é investigar a in-fluência da tradição anticomunista no golpe de 1964 e nas políticas adotadas pelo regime militar brasileiro. Na introdução se apresen-tam as bases de tal tradição, que remontam aos anos de 1930, e o modo como ela foi apropria-da nos anos 1960. A parte principal do texto é dedicada a analisar a atuação dos órgãos de in-formação criados pela ditadura, sobretudo no que tange às tentativas de controle dos espaços universitários. Nesta análise, confere-se ênfase à influência dos valores anticomunistas sobre as ações dos aparatos de informação atuantes nas Universidades, em sua luta para derrotar a esquerda.

Palavras chave: Ditadura, anticomunismo, agências de informação

Abstract

The article aims at researching brazilian anticommunist tradition influence in the 1964 coup and also in the policies adopted by the military regime. In the first part the basis of such tradition that began in the 1930’s are explained and furthermore it is analysed the ways of it’s appropriation in the sixties. The main part of the text is dedicated to analyse the actions of the information agencies created by the dictatorship in it`s attempt to control the universities. The text emphasizes the influence of anticommunist ideas in such actions, in the context of the information apparatus struggles against the left wing enemies.

Key words: Dictatorship, anticommunism, information agencies

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Quando o tema do anticomunismo vem à tona no debate político ou acadêmico, é comum associa-lo à eclosão da Guerra Fria e à influência da política externa norte-americana. Nessa vertente, os eua são vistos como responsáveis pela introdução da questão anticomunista e por manipularem os latino-americanos para obter seu apoio nas disputas da Guerra Fria.2 De fato, a entrada dos Estados Unidos no cenário mundial como potência hegemônica trouxe impactos importantes na percepção do “perigo comunista” e reforçou a matriz liberal do anticomunismo. Entretanto, antes da Guerra Fria já havia grupos militantes da luta contra o comunismo atuando em vários países, entre eles o Brasil. O objetivo deste artigo é mostrar que o anticomunismo, uma das principais motivações dos militares golpistas que derrubaram o governo de João Goulart em 1964, se inspirou em uma tradição que remontava à década de 1930.

Outro propósito é analisar a importância dos valores anticomunistas nas ações do aparato repressivo e de informações construído pelos militares no sistema universitário. O anticomu-nismo forneceu aos agentes de repressão uma razão de ser e um sentido de missão, ao apontar o alvo principal que deveriam mirar. Assim, eles atuaram na tentativa de impedir a contratação de professores marxistas, bloquear a circulação de textos e ideias socialistas e também evitar os con-tatos culturais com países do bloco soviético. Mas o trabalho desses agentes encontrava desafios e limites na própria complexidade do regime militar brasileiro, que tinha formato modernizador--autoritário. De um lado, os líderes do regime desejavam combater a esquerda, porém, de outro, queriam modernizar as instituições acadêmicas e universitárias que receberam mais investimen-tos financeiros, verbas para pesquisa e pós-graduação e tiveram suas instalações ampliadas para comportar o aumento no número de estudantes, que foram multiplicados em dez vezes durantes os vintes anos do poder militar (de 140.000 para 1.400.000 universitários entre 1964 e 1984). Assim, os agentes repressivos tinham que controlar instituições universitárias que passavam por crescimento frenético, com a entrada de massas de novos estudantes, muitos deles receptivos a ideias radicais. Por vezes, as administrações universitárias contrataram professores com valores de esquerda, implicando desafios aos projetos de “saneamento ideológico”. Outra dificuldade para os combatentes anticomunistas foi a estratégia dúbia do governo militar diante dos países socialistas, como se verá a seguir.

Anticomunismo não significa apenas um conjunto de opiniões divergentes em relação a um projeto político, mas um movimento, uma causa que mobilizou aderentes fervorosos, crentes que a salvação do país (e do mundo) dependia da repressão ao comunismo. Não se pode dizer que o anticomunismo seja uma doutrina, pois ele contém matrizes ideológicas diferentes, prin-cipalmente no caso do Brasil (catolicismo, nacionalismo e liberalismo), mas as representações nele inspiradas originaram uma tradição peculiar. Esses valores já circulavam no final do século xix, quando foram utilizados contra líderes pioneiros da revolução social, mas se tornaram mais fortes após a Revolução de 1917, que resultou na associação indelével de comunismo com o bolchevismo, tornados sinônimos a partir daí. O experimento dos soviets foi representado como a concretização dos ideais socialistas, o que permitia caracterizar o comunismo como uma uto-pia realizável. Como no mesmo ano de 1917 ocorreram greves importantes no Rio de Janeiro

2 “Criou-se uma ameaça tanto para os Estados Unidos quanto para a América Latina originária de um movi-mento político «desviante» - «a ameaça comunista». Esta, por sua vez, justificou a ajuda externa especializada em segurança nacional para combatê-la. Em outras palavras, os Estados Unidos criaram os argumentos para justificar a existência desse perigo específico e, a seguir, mostraram-se dispostos, mediante pagamento, a proteger os países ameaçados através da ajuda policial e também militar”. Cf. Huggins, Martha K. Polícia e política. Relações Estados Unidos/América Latina (São Paulo: Cortez, 1998), 232.

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e em São Paulo, a sensação de “perigo vermelho” iminente em terras brasileiras tornou-se mais verossímil.

Não obstante, somente nos anos 1930 a presença do comunismo no cenário público tornou-se mais visível, quando o pequeno Partido Comunista criado em 1922 passou a ocupar espaço mais significativo, com a adesão de intelectuais, militares (entre eles o mítico Luiz Carlos Prestes) e o aumento no recrutamento de trabalhadores. Em 1935 os comunistas, que compunham a alma da Aliança Nacional Libertadora, entidade organizada no formato das frentes populares, lideraram uma tentativa de insurreição armada, rapidamente destruída pelas forças da ordem. Tratou-se de levante essencialmente militar que envolveu quartéis em Natal (Rio Grande do Norte), Recife (Pernambuco) e Rio de Janeiro (então a capital federal), mas o plano dos revolucionários era armar brigadas populares que serviriam como forças auxiliares. A insurreição de 1935, que nas versões oficiais foi batizada pejorativamente de Intentona Comunista (intento louco, assassino) provocou importantes desdobramentos políticos. O presidente Getúlio Vargas, então enfraquecido e sob muitas críticas, aproveitou-se do evento para fortalecer seu poder e editar medidas excepcionais, como a decretação do Estado de Guerra e algumas emendas à Constituição. Formou-se uma “União Sagrada” reunindo grupos conservadores e liberais em torno de Vargas, em nome da de-fesa da ordem e do combate ao comunismo.

O novo contexto político, que abriu caminho para o golpe autoritário de novembro de 1937, quando Vargas tornou-se ditador, começou a ser desenhado sob a fumaça dos combates de 1935. O impacto da chamada Intentona Comunista foi enorme, notadamente entre as lideranças ca-tólicas e os militares. Afinal, não era rebelião comum, mas tentativa dos comunistas de tomarem o poder que, caso bem sucedida, poderia ter provocado grandes transformações na organização social brasileira. A comoção tornou-se maior quando a imprensa divulgou que estrangeiros liga-dos à Internacional Comunista participaram da frustrada tentativa revolucionária, o que serviu de confirmação ao argumento de se tratar de ameaça à integridade da pátria.

Os eventos de novembro de 1935 foram marcantes na construção da tradição anticomunista, na medida em que foram apropriados para consolidar as representações do comunismo como fe-nômeno negativo. O episódio foi mitificado e originou a formação de verdadeira legenda negra em torno da Intentona Comunista, reproduzida ao longo dos anos. O levante foi representado como exemplo de manifestação das características maléficas atribuídas aos revolucionários que, segun-do as versões anticomunistas, teriam cometido vários crimes ignóbeis durante os quatro dias da revolta (estupros, assassinatos a sangue frio, roubo), considerados uma decorrência necessária dos ensinamentos da “ideologia malsã”.

As representações anticomunistas tiveram recepção particularmente forte entre os militares, graças a argumentos peculiares desenvolvidos nas representações sobre 1935. Argumentou-se que o levante foi uma traição às Forças Armadas, já que os líderes da insurreição eram oficiais do Exército e voltaram suas armas contra companheiros de farda. Além disso, foi construída a versão que os oficiais comunistas mataram colegas enquanto eles dormiam indefesos em suas camas, uma evidência da sua vilania e covardia, tema que seria repetido pelas décadas seguintes. Por fim, os discursos anticomunistas sobre 1935 denunciaram os oficiais rebeldes por traição ao Brasil, ao acusarem-nos de agir em favor de potência estrangeira (a urss) e contrariamente ao voto sagra-do militar de defender a pátria. Para enfatizar a maldade atribuída aos comunistas, investiu-se na construção de heróis militares que lutaram e morreram nos combates, aos quais se dedicou um monumento inaugurado em 1940. O dia 27 de novembro entrou para o calendário cívico

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do Estado, mas principalmente das Forças Armadas, comemorado como episódio de vitória da pátria contra a ameaça comunista.

Portanto, o episódio de 1935 serviu como confirmação da existência do “perigo vermelho” no Brasil e prestou-se à construção de narrativa mítica ao representar os males associados ao comu-nismo.3 Quando os ventos da Guerra Fria começaram a soprar por esses lados, a partir do final dos anos 1940, eles já encontraram tradição anticomunista enraizada, que se fortaleceu e renovou sob a influência do confronto bipolar. A cultura da Guerra Fria trouxe temas novos, como a liderança dos eua na luta anticomunista (embora muitos líderes da direita fascista e católica des-confiassem dos norte-americanos), e fortaleceu a crença nos valores liberais como barreira contra a esquerda. Porém, as bases da tradição anticomunista tinham sido lançadas antes.

Pode-se dizer que no Brasil houve 3 grandes “ondas” anticomunistas: em 1935-37, em 1946-48 e em 1961-64. O primeiro contexto já foi mencionado e culminou no “Estado Novo” de Getúlio Vargas, regime ditatorial que se inspirou em elementos fascistas, mas manteve caracte-rísticas heterogêneas que, a propósito, permitiram a reciclagem de Vargas posteriormente como líder popular. A segunda “onda” ocorreu durante a redemocratização posterior à Segunda Guerra, quando o Partido Comunista foi legalizado e tornou-se força política importante nos centros urbanos, com votação expressiva e influência preponderante no movimento sindical e nos meios intelectuais. Os grupos de direita reagiram atemorizados e engendraram forte campanha anti-comunista, que tornou o pcb ilegal e levou à cassação dos mandatos parlamentares eleitos pelo partido (em 1947 e 1948). A repressão ao pcb acalmou um pouco os temores da direita, mas vários grupos anticomunistas continuaram ativos nos anos 1950, inclusive porque percebiam a ameaça como combate mundial em que o Brasil era apenas uma das frentes de batalha.

No início dos anos 1960, a nova conjuntura política atiçou mais uma vez a polarização esquer-da-direita, que desta vez culminaria em golpe militar. Assim como em outros países, notadamente da América Latina, o Brasil viu surgir uma geração radical influenciada pela Revolução Cubana e as lutas terceiro-mundistas, e também pela percepção dos problemas sociais internos, como demandas por reformas agrária e educacional. A influência da esquerda aumentou no período o que beneficiou o Partido Comunista, mas, também deu origem a novas organizações socialistas, como o grupo cristão Ação Popular (ap) e o grupo marxista Política Operária (polop). Nesse quadro, um evento aparentemente fortuito contribuiu muito para o incremento do poder dos grupos de esquerda. Com a renúncia de Jânio Quadros e a ascensão do Vice-Presidente João Goulart ao governo em setembro de 1961, a esquerda brasileira teve sua primeira oportunidade para influenciar os rumos do país.

Embora fosse um rico estancieiro gaúcho, Goulart era político trabalhista sensível aos ar-gumentos de esquerda, principalmente às demandas dos líderes sindicais. Durante seu governo as esquerdas tornaram-se mais ativas no cenário público, com aumento de greves, ocupações de terras e mobilizações estudantis, o que levou muitos a imaginar-se às portas da revolução social. No campo da direita, previsivelmente, também foi forte a sensação que a esquerda estava no poder, o que provocou nova onda de mobilizações contra o comunismo. Em parte, o recurso à tradição anticomunista era estratégia oportunista para facilitar o proselitismo da campanha contra Goulart, mas a questão não pode ser resumida à manipulação, pois os comunistas eram

3 Motta, Rodrigo Patto Sá, Em guarda contra o perigo vermelho. O anticomunismo no Brasil: 1917-1964 (São Paulo: Perspectiva-fapesp, 2002). Sobre a insurreição de 1935 cf. Vianna, Marly de Almeida Gomes, Revolucionários de 35: sonho e realidade (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).

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percebidos de fato como os líderes mais influentes à esquerda. Outras questões contribuíram para o golpe, como a crise econômica, que se manifestou na inflação descontrolada e na redução das taxas de crescimento, e também as denúncias de corrupção envolvendo aliados do governo. Entretanto, a crença na “ameaça comunista” foi o tema mais importante na mobilização golpista, a exemplo das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” que levaram milhares de pessoas às ruas com cartazes e slogans anticomunistas, eventos significativos para demonstrar o apoio de parte da sociedade à derrubada do governo.4

O regime militar e as agências de informação nas universidadesO anticomunismo foi particularmente importante para levar à ação em 1964 os grandes pro-

tagonistas do evento, os militares. Embora o apoio civil tenha sido fundamental, eles foram os agentes centrais do golpe, com o argumento que era seu dever preservar a pátria do perigo, tal como teriam feito em 1935. Outros conceitos foram mobilizados pelos militares no contexto do golpe, mas eles tinham como ponto comum a “ameaça vermelha”. Assim, por exemplo, quando eles falavam em defender a Segurança Nacional ou enfrentar a Guerra Revolucionária a prin-cipal ameaça respondia pelo nome de comunismo. Significativas para o sucesso da mobilização golpista, as representações contra-revolucionárias foram também inspiradoras para algumas das políticas adotadas pela ditadura. Isso se aplica não apenas ao terreno da segurança e dos expurgos, mas também ao plano cultural e educacional, que os agentes do regime militar imaginavam par-ticularmente suscetível às ações comunistas. Essa foi a principal motivação para criar a Educação Moral e Cívica, um conjunto de disciplinas escolares implantadas em todos os níveis de ensino, inclusive nas Universidades, a partir de 1969. Por razões semelhantes foi estabelecido o Projeto Rondon, em 1967, que levava estudantes universitários dos centros urbanos para atuarem em pro-jetos de extensão em áreas longínquas e fronteiriças, no Norte e no Centro-oeste. Nos dois casos, a intenção era inculcar valores patrióticos entre os jovens e afastá-los da influência da esquerda.

No campo das iniciativas repressivas, o novo regime construiu grande aparato de segurança e informações. Órgãos tradicionais de polícia política que eram vinculados aos governos estaduais (os Departamentos de Ordem Política e Social) desde os anos 1920 foram ampliados; a Polícia Federal foi reorganizada, tornando-se pela primeira vez capaz de ações nacionais; e várias agên-cias militares foram criadas, como o Serviço Nacional de Informações, o Centro de Informações do Exército, o Centro de Informações da Aeronáutica (a Marinha já tinha o seu) e o sistema doi-codi (Destacamento de Operações Internas e Centro de Operações de Defesa Interna). Além disso, em 1967 foram criadas Divisões de Segurança e Informações (dsi) nos Ministérios civis, com base em estruturas pré-existentes.5 A partir de 1970, a dsi do Ministério da Educação e Cultura começou a organizar Assessorias de Segurança e Informações (asi) nas Universidades federais (e algumas estaduais), que na época eram aproximadamente 30. Esse sistema de infor-mações, que chegou a compor uma rede enorme, com milhares de agentes, tinha o papel de vigiar os inimigos e adversários do regime militar, particularmente a esquerda e os comunistas. Vamos

4 Presot, Aline, “Celebrando a «Revolução»: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964”, in Denise Rollemberg y Samantha Quadrat (Organizadoras) A construção social dos regimes autoritá-rios Legitimidade, consenso e consentimento no século xx. Brasil e América Latina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010), 71-96.

5 Para a criação das dsi cf. Carlos Fico, Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política (Rio de Janeiro: Record, 2001).

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nos ater, neste artigo, à atuação das agências de informação no campo universitário, que passou por notável expansão durante a ditadura.

A documentação produzida por tais agências6, previsivelmente, revela a motivação anticomu-nista de muitas atividades dos órgãos de informação, quase uma obsessão. Enxergavam comunistas por toda parte e qualquer movimento de contestação era atribuído aos desígnios do “Movimento Comunista Internacional”, expressão que originou uma das siglas tão ao gosto da comunidade de informações, mci. Mesmo com os expurgos de 1964 e 1969, quando ocorreu a maior parte das demissões e aposentadorias de servidores públicos, entre eles os docentes, o ânimo vigilante dos membros da comunidade de informações não arrefeceu.

Essa insistência na “tecla” do anticomunismo pode gerar estranhamento, pois, além da repres-são ter sido forte o suficiente para desbaratar os grupos revolucionários, nos anos 1970 os Partidos Comunistas estavam em declínio, superados por novos grupos e lideranças de esquerda. Pode-se dizer que, nesse momento, como em épocas anteriores, vigorou estratégia de industrialização do anticomunismo, ou seja, de mobilização oportunista do medo ao “perigo vermelho”. Entretanto, a motivação oportunista não é suficiente como explicação, pois em muitas ações e discursos os agentes da repressão mostravam-se convictos, e alguns até hoje permanecem ativos em sua luta. Para compreender esse quadro deve se levar em conta que o anticomunismo forneceu um ethos combatente aos integrantes das agências de repressão e informação, uma razão de ser que justi-ficava sua existência e missão. Sobretudo, ele fornecia a imagem do inimigo a vigiar e reprimir.

Por outro lado, se é verdade que as organizações comunistas tradicionais estavam em declínio, notadamente o pcb que, nessa época, de maneira irônica, começou a ser chamado “partidão”, o mesmo não se pode dizer das ideias socialistas. Um arguto observador contemporâneo do ambiente cultural e acadêmico afirmou, em 1970, que a influência da esquerda era grande e ha-via aumentado depois de 1964, apesar da vitória da direita.7 A hipótese levantada por Roberto Schwarz estava correta no que toca aos jovens universitários. Os partidos comunistas tradicionais estavam em crise, mas isso não significava perda de influência dos valores socialistas, ao contrário, parte importante da juventude intelectualizada sentia-se atraída por eles, notadamente concei-tos marxistas, ainda que os apropriassem de maneira difusa. Por isso, observando a situação de acordo com a perspectiva dos militares, eles tinham alguma razão na sua ansiedade em relação à influência da esquerda nas Universidades, mesmo no contexto da repressão, não obstante sua compreensão de que tudo derivava das ações do mci fosse equivocada e, por vezes, ridícula.

Armado desse ânimo combatente, o aparato de segurança e informações manteve pressão sobre os Reitores para expurgar os subversivos,8 inundou as asi universitárias com análises sobre supos-tos planos do movimento comunista e, sobretudo, com propaganda de natureza anticomunista.

6 Desde o início dos anos 1990 o Estado brasileiro vem abrindo à consulta pública os documentos dos ór-gãos de informação e repressão, com políticas de acesso por vezes erráticas. Os acervos mais significativos encontram-se no Arquivo Nacional e em alguns Arquivos estaduais, entre eles São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para este trabalho foram usados também acervos das ASI universitárias que se encontram na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade de Brasília.

7 Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in O Pai de Família e outros estudos (São Paulo: Companhia das Letras, [1978] 2008), 71.

8 Às vezes até ser filho de comunista era proibido. Em 15/02/78, a dsi/mec comunicou à Universidade de Brasília (unb) que um aluno da Universidade Federal do Paraná, “filho do comunista Oto Bracarense Costa”, havia pedido transferência para aquela Universidade. Em resposta, a asi/unb comunicou que a transferência foi indeferida pela Universidade. sb 10.1.1–07. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.

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De acordo com os textos produzidos pela “comunidade de informações” era preciso manter-se alerta, pois os comunistas seguiam ameaçando a civilização cristã e o país. Em meio a esse copioso material, constituído por brochuras, panfletos, livros e cartazes foram selecionados alguns exem-plos, notadamente textos que têm a singularidade de abordar a “infiltração” comunista nos meios estudantis pelo prisma dos militares.

O primeiro caso é um texto do Coronel Rubens Resstel publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo e enviado às asi para divulgação nas Universidades, como estratégia de con-trapropaganda. Sob o título “A infiltração comunista nos meios educacionais”, o texto de Resstel denuncia as estratégias dos subversivos para “corromper” a juventude. Corrupção é termo adequa-do para entender o ponto de vista do Coronel, pois ele afirma que os comunistas lançavam mão de meios imorais como drogas e mulheres sedutoras para atrair jovens ingênuos para seu lado. De acordo com Resstel, os comunistas teriam mudado o eixo de suas ações do operariado para os meios estudantis, por entender que nesse segmento o proselitismo revolucionário encontraria terreno mais favorável. Além disso, eles procurariam concentrar seus recursos preferencialmente nas Faculdades de Filosofia, devido ao potencial disseminador dessas instituições, responsáveis por formar os futuros professores.9

O segundo texto é particularmente interessante porque seu autor era influente dirigente uni-versitário: Zeferino Vaz. Ele integrava o grupo de intelectuais que apoiou o golpe de 1964 e, nessa condição, foi nomeado Reitor da UnB e depois da Universidade de Campinas (Unicamp), instituição que ele ajudou a fundar em 1966 e que dirigiu por muitos anos. O próprio Vaz, como dirigente máximo da Unicamp enviou o texto aos colegas Reitores, em janeiro de 1971.10 A dsi/mec gostou tanto da colaboração que distribuiu nova versão para os dirigentes universitários em julho de 1972, além de solicitar ao Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (crub) que Vaz fosse convidado a expor suas reflexões na reunião seguinte do órgão.11

Intitulado “Contribuição ao conhecimento da Guerra Revolucionária”, o texto de Zeferino Vaz utiliza linguagem pretensamente científica para análise inusitada. Pode-se dizer tudo do trabalho, menos que falte originalidade a sua abordagem do tradicional trote dos estudantes, a “calourada”.12 Ele diz, entre outras coisas, que os comunistas usavam técnicas pavlovianas para condicionar os estudantes, e isso “explica a facilidade e a rapidez com que se mobilizam mi-lhares de estudantes para passeatas de protesto”. De acordo com Vaz, os dirigentes da Guerra Revolucionária se utilizavam do trote para recrutar novos militantes, além de arrecadar dinheiro para financiar a guerrilha. Eis a conclusão do “estudo”: “Verifica-se, pois, que o trote não é mo-mento na vida universitária; transformou-se em um processo, calculadamente desenvolvido, com fins definidos, dentro do esquema global da ação subversiva”.

Outro exemplo: em outubro de 1972, a dsi/mec enviou para as asi universitárias um texto intitulado Movimento Comunista Internacional. Tratava-se de documento analítico para uso interno dos agentes de informação, classificado na categoria “secreto”, e seu propósito era infor-mar sobre as ações do inimigo. Baseado, supostamente, em investigação de debates realizados

9 Caixa 15, maço 14. Arquivo aesi/ufmg. (Artigo publicado em O Estado de São Paulo, 19/11/70).10 Caixa 16, maço s/n, 20/01/1971. Arquivo aesi/ufmg.11 Caixa 18, maço 13, 13/07/72. Arquivo aesi/ufmg.12 A calourada é tradicional entre estudantes universitários brasileiros e consiste em uma espécie de ritual de

iniciação para os novos universitários, que são submetidos a brincadeiras (raspagem de cabelo, pintura do corpo) ou obrigados a se submeter a situações ridículas (andar com cartazes pendurados ao pescoço).

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em Congresso do Partido Comunista da União Soviética, o texto aponta as estratégias dos re-volucionários na América Latina, que tiveram vitória importante com a ascensão de Allende no Chile. No caso do Brasil, que seria uma das prioridades do mci, o texto denunciava a estratégia soviética de atrapalhar o sucesso dos governos originados do movimento de 31 de março de 1964. Curiosamente, apesar de apontar perigos e estimular o medo, a conclusão é otimista ao dizer que os comunistas estavam muito divididos no Brasil (linhas russa, comunista e cubana), e que as ações repressivas e o sucesso econômico do governo militar vinham minando suas possibilidades de sucesso. Nota-se aspecto paradoxal, quase contraditório: afirmavam a unidade das ações comu-nistas, daí insistirem na sigla mci, porém, ao mesmo tempo, percebiam as divisões entre os grupos de esquerda, cada um deles se imaginando capaz de liderar a revolução. Entretanto, na ótica dos órgãos de informação, as divergências entre as diferentes facções comunistas eram superficiais e conjunturais, relacionadas às diversas estratégias de chegada ao poder. No fundo, acreditavam, to-dos os grupos comunistas acalentavam o mesmo projeto, inspirado no modelo soviético de 1917, e convergiriam no caso da vitória de algum deles.13

No mesmo ano de 1972, os órgãos de informação começaram a divulgar que o mci estava orientando o Movimento Comunista Brasileiro (outra sigla, o mcb) a reorganizar o movimento estudantil, desorganizado desde 1969. Como os órgãos de informação monitoravam os Diretórios estudantis permitidos pelas leis do regime militar, e estava proibida a volta de entidades banidas, como a União Nacional dos Estudantes, a nova estratégia seria burlar a vigilância usando encon-tros estudantis das diferentes áreas de saber para fazer subversão e distribuir publicações ilegais. Os agentes de informação das Universidades deveriam estar atentos, sobretudo, porque fazia parte da estratégia do mci usar meios moralmente condenáveis que “subjugam e condicionam os jovens”. Os comunistas disseminariam o uso de entorpecentes, a licenciosidade moral e o des-prezo pelos valores tradicionais e pela História, tudo para destruir as estruturas morais da ordem social e conseguir levar os jovens à subversão. Contra esse inimigo “insidioso”, cujas ações tinham escala global, a dsi/mec recomendava: “somos compelidos a aplicar um tratamento total”.14

Devido à percepção do comunismo como ameaça internacional, uma das obsessões era mo-nitorar a influência dos países do bloco socialista nas universidades. Desde 1964, o novo regime vinha reduzindo os laços com os países socialistas que haviam sido estabelecidos no governo de João Goulart. Nos anos anteriores à intervenção militar foram criados órgãos culturais bilate-rais, como o Instituto Cultural Brasil-urss (icbus), e firmados acordos para envio de estudantes brasileiros à União Soviética. Entretanto, para desagrado dos militares radicais e seus aliados, os governos saídos do movimento de 1964 preferiram não romper totalmente os laços diplomáti-cos e culturais com a urss. O primeiro governo militar, chefiado pelo General Castelo Branco rompeu relações diplomáticas com Cuba, entrou em choque com a China ao prender e julgar os membros de missão comercial que estava no Brasil no momento do golpe15 e enviou tropas para participar da intervenção norte-americana na República Dominicana. Porém, a orientação diplomática frente aos países socialistas combinou convicção anticomunista e pragmatismo, em

13 Cf. sb 5.2.1-16. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.14 Cf. sb 8.3.2-15. Arquivo asi/unb, cedoc/unb. É interessante notar que alguns grupos de esquerda realmente

utilizaram encontros de área para se reorganizar, mas a leitura de que o mci inspirava tais ações é puro exagero.15 O argumento é que Cuba vinha interferindo nos assuntos internos do Brasil e outros países latino-america-

nos, notadamente a Venezuela, ao fomentar a ação de grupos armados. Sobre a crise relacionada à prisão da missão chinesa cf. Rodrigo Patto Sá Motta, “O perigo é vermelho e vem de fora: o Brasil e a urss”, Locus, 13 (2007); Juiz de Fora, ufjf (2007), 227-247.

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arranjo complexo e por vezes tenso. Atitudes baseadas apenas no anticomunismo marcaram as relações com Cuba e a China, mas, no que toca à Europa oriental e à urss os compromissos ide-ológicos foram atenuados por interesses comerciais e diplomáticos.

Em 1965, o Brasil exportou cerca de 90 milhões de dólares para a Europa oriental, com um superávit de aproximadamente 20% desse valor. Os países socialistas estavam longe de constituir--se nos maiores parceiros comerciais do Brasil, mas também não era montante a ser desprezado. Por isso a decisão de Castelo Branco de enviar o Ministro Roberto Campos a Moscou, em setembro de 1965,16 demonstração que seu governo desejava manter laços econômicos normais com a área de influência soviética. A influência da União Soviética em certas regiões do mundo, notadamente entre os países “não alinhados”, era tão ou mais importante que os mercados da Europa oriental. Manter relações corretas com os soviéticos era estratégico em vista da inserção internacional do Brasil e o contrário, ou seja, o rompimento com a urss poderia trazer dificulda-des diplomáticas e comerciais com alguns países do terceiro mundo.

Daí uma situação curiosa, e desagradável para os setores mais intransigentes da direita: as atividades culturais dos soviéticos eram monitoradas e desaconselhadas, mas não inteiramente proibidas. Mostras de cultura (cinema, literatura etc.) dos países socialistas continuaram a ocor-rer esporadicamente, assim como permaneceram funcionando algumas entidades bilaterais de natureza cultural. Embora sempre vigiados pelo Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e os órgãos de informação, estudantes brasileiros continuaram seguindo para países do bloco so-cialista. Segundo estimativas do Itamaraty, em 1966 havia cerca de 200 brasileiros estudando em países socialistas, 80 deles na urss, e outros seguiriam o mesmo caminho nos anos seguintes.17 Posteriormente, parte deles começou a voltar ao Brasil, trazendo diplomas soviéticos e dos outros países, tornando-se fonte de dor de cabeça para os órgãos de informação.

As agências de repressão percebiam as razões pragmáticas que fundamentavam a ambigui-dade em relação à urss e a atitude de low profile da diplomacia brasileira em direção ao leste, embora alguns mais imaginativos enxergassem aí também o dedo da “infiltração comunista”. Ainda assim, pressionaram o governo para, pelo menos, restringir os contatos na área cultu-ral. Passo importante nessa direção foi dado em 1970, por meio de estudo da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (csn) que, encaminhado ao Presidente Emílio G. Médici tornou-se política oficial do governo. Em março de 1970, a exposição de motivos No8 foi enviada ao Presidente da República, assinada pelo General João Batista Figueiredo, Secretário-Geral do csn e Chefe do Gabinete Militar.

Provocada por notícias da imprensa sobre a partida de estudantes brasileiros para a urss, a Secretaria Geral do csn resolveu estudar o assunto, com ajuda do sni e do Itamaraty. Incomodava o fato de tantos estudantes estarem se dirigindo para o bloco socialista quando o entendimento oficial, inclusive no Itamaraty, era que o aumento de laços culturais com tais países não interessava ao Brasil. Além do envio de estudantes por meio do icbus, que poderiam voltar como agentes do “comunismo internacional” preocupava também o fato de algumas universidades estarem fazendo

16 Naturalmente, a decisão de enviar missão oficial à urss sofreu oposição da “linha-dura”. Cf. Roberto Campos, A lanterna na popa: memórias 2 (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994), 765-773.

17 Dados retirados de relatório da Embaixada dos eua no Brasil. RG 59, caixa 1944, pasta 4. National Archives and Records Administration, College Park, md. Em relatório elaborado em 1970, com auxílio da Embaixada brasileira em Moscou, o sni estimou em 100 o total de estudantes brasileiros na urss. Caixa 21/A, Fundo csn, an-coreg (Arquivo Nacional, Coordenação Regional de Brasília).

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convênios por iniciativa própria, na ausência de proibição oficial. Um desses casos foi menciona-do na exposição de motivos do csn: a coppe/ufrj havia contratado professores da Universidade de Moscou e pretendia ampliar o convênio para trazer mais cientistas russos. Preocupado, o Secretário-Geral do csn propôs medidas para evitar que os governos comunistas utilizassem “acordos e manifestações culturais como instrumentos de exportação e penetração ideológica”. Ele sugeriu proibir o funcionamento de entidades como o icbus, mesmo que fossem de natureza privada; impedir, ou pelo menos reduzir a ida de brasileiros para estudarem na urss e países do bloco; proibir convênios entre universidades e escolas brasileiras com similares do exterior, sem prévia autorização do mec. Em decorrência da última medida, o General Figueiredo recomendou que se proibisse a coppe/ufrj de renovar o acordo com a Universidade de Moscou, após o térmi-no dos contratos em vigor com os professores russos.18

A exposição de motivos do csn tornou-se política oficial ou oficiosa do governo e algumas das medidas sugeridas por Figueiredo foram implantadas. No caso da coppe, o acordo que man-tinha quatro professores soviéticos nos seus quadros expirou em 1971 e não foi renovado, apesar dos esforços do líder da instituição, professor Alberto Coimbra, para convencer as autoridades da inexistência de riscos políticos e das vantagens acadêmicas, pois se tratava de pesquisadores de primeira linha. Ele apelou ao Secretário-Geral do Ministério da Educação, um Coronel do Exército, mas foi informado que a determinação contrária vinha de instâncias superiores e nada poderia ser feito.19

Outro efeito imediato da iniciativa do csn: no início de 1971, as Universidades foram avisadas pela dsi/mec, por ordem do Ministro da Educação, e em caráter secreto, que estava proibido o funcionamento de “entidades que objetivam o estreitamento de laços culturais com países de re-gime socialista totalitário”. O texto reproduzia praticamente na íntegra a linguagem da Secretaria Geral do csn, avisando ainda que estava proibido o “aliciamento” de estudantes brasileiros para estudarem na urss. No mesmo documento, outra determinação teria maiores efeitos práticos nas Universidades. Os acordos com instituições estrangeiras só seriam permitidos mediante consulta prévia ao Ministério da Educação.20 O objetivo era dificultar os contatos com a área socialista, po-rém, os termos foram genéricos para evitar problemas diplomáticos, como a acusação de práticas discriminatórias contra países com quem o Brasil mantinha relações normais. Seja por concorda-rem com a medida ou por desejarem evitar problemas, as autoridades universitárias obedeceram. Alguns Reitores avisaram os Diretores de Faculdades e Institutos sobre as novas determinações, advertindo que deveriam dificultar contatos acadêmicos com países socialistas e a urss, por or-dens superiores.21

Por causa dos melindres diplomáticos também não houve medidas explícitas de proibição do icbus, que era entidade privada sem vínculos oficiais com a urss, e tampouco se proibiu o envio de estudantes brasileiros para países socialistas. O número pode ter diminuído por causa das pressões dos órgãos de informação, mas o fluxo não foi interrompido. Em compensação, as agências repressivas aumentaram a pressão sobre toda atividade considerada suscetível de facilitar

18 Caixas 74/B e 21/A, Fundo csn, an-coreg a coppe/ufrj (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro) foi criada em 1964 como centro de pesquisa e pós-graduação na área de engenharia e tecnologia.

19 Giulio Massarani et al, Alberto Coimbra e a coppe. (Brasília: Editora Paralelo 15, 2002), 33.20 Cf. sb 1.1.1-02. Arquivo asi/unb, cedoc/unb.21 Cf. Caixa 21, maço 11. Arquivo aesi/ufmg.

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o aumento da influência dos países comunistas. Por exemplo, monitoraram publicações doadas às universidades por países socialistas, em busca de livros suspeitos, e solicitaram que pedidos de professores para afastamento no exterior, sobretudo quando o destino era a urss fossem encami-nhados com bastante antecedência, para dar tempo às agências de informação para investigarem.22

Os órgãos de informação se empenharam bastante para vigiar os estudantes egressos da Universidade Para a Amizade dos Povos Patrice Lumumba (uappl), destino da maioria dos que se dirigiram à urss em busca de oportunidade de estudos. Essa Universidade, cujo nome ho-menageava o líder congolês assassinado em 1961, foi concebida para atender jovens do mundo subdesenvolvido. Como a suposição era que se tratava de pessoas com menor nível de escolari-dade, os estudos oferecidos na uappl não eram de primeira linha, e ela não gozava do mesmo prestígio de outras Universidades soviéticas, embora faltem elementos para saber se era pior ou melhor que as instituições brasileiras da época. De qualquer modo, era oportunidade interessante para jovens pobres, pois o curso era gratuito e eles recebiam ajuda para viver na urss, 80 rublos mensais, além de auxílio para compra de roupas de inverno. No Brasil, o processo seletivo era organizado pelo icbus, que aplicava os testes e escolhia os vencedores. A revista Veja publicou matéria em dezembro de 1969 sobre a próxima seleção para a uappl, provavelmente a reporta-gem que motivou o estudo do csn citado há pouco.23 De acordo com a revista, 115 candidatos se apresentaram para as 50 vagas existentes, e as informações sobre alojamentos, bolsas e outras facilidades (1 ano de bolsa extra para aprender o idioma russo), bem como sobre a possibilidade de revalidar o diploma no retorno ao Brasil, irritaram os militares por soarem como propaganda favorável.

A Universidade Patrice Lumumba também oferecia cursos de pós-graduação em várias áreas, com condições e auxílios semelhantes. Em 1972, a asi/ufsm (Universidade Federal de Santa Maria) enviou ao sni um convite remetido pelo icbus, com informações sobre a seleção para pós--graduação. Os candidatos deveriam ter até 35 anos e, além dos documentos de praxe (diploma etc.) precisavam enviar ensaio contendo a proposta de pesquisa, ou cópias de trabalhos publica-dos. As inscrições poderiam ser feitas em uma das três sedes do icbus (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre).24

Visando obter dados sobre os diplomados pela uappl espalhados pelo Brasil, em novembro de 1972 a Agência Central do sni difundiu documento entre os vários órgãos de informação. O texto advertia que a Universidade soviética era controlada pela kgb e, durante seus cursos alegava o sni, os alunos seriam submetidos à pregação marxista-leninista.25 Como alguns ex-alunos já haviam retornado e lecionavam em instituições brasileiras, colocando em risco a “segurança na-cional”, a ac/sni solicitava levantamento dos nomes de todos os egressos, principalmente aqueles cujos diplomas haviam sido revalidados no Brasil. O sni ainda não sabia como funcionava o sistema de revalidação de diplomas estrangeiros e pedia aos membros da “comunidade de infor-mações” mais dados sobre o assunto.

A partir daí, diversas agências de segurança começaram a rastrear pessoas e diplomas. Foram localizadas situações de norte a sul do país, mas os resultados das gestões dos órgãos de informação

22 sb 3.3.1-01. Arquivo asi/unb, cedoc/unb e caixa 18, maço 22, Arquivo aesi/ufmg23 Veja 69 (31/12/69), 29. O jornal O Globo publicou nota semelhante em 7/01/1970.24 ace 10805/85, Fundo sni, ani-coreg.25 ace 3675/83, Fundo sni, ani-coreg.

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variaram, pois nem sempre conseguiram impedir que os egressos da uappl trabalhassem. Em Goiás foi identificado casal suspeito trabalhando para a Prefeitura de Anápolis. Wilson tinha sido militante comunista antes de 1964 e, pouco depois, foi para a uappl fazer graduação e mestrado. Lá se casou com a colombiana Laura e, após sete anos na urss, ele voltou com a companheira e um filho para sua terra natal, onde ambos foram contratados pelo poder municipal. Após o casal ter sido “descoberto” pelos órgãos de informação, em 1972, ambos foram demitidos.26 Outro casal com história semelhante foi localizado em Minas Gerais, só que nesse caso a esposa era russa e ambos obtiveram diplomas em Física na urss. Em 1974, João Lenine conseguiu emprego em uma subsidiária da empresa estatal usiminas e sua companheira russa tentou o mesmo, sem sucesso.27

Entre 1972 e 1975, as agências de informação rastrearam diplomas soviéticos revalidados por várias Universidades brasileiras, como Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Minas Gerais, em áreas como Química, Física, Engenharia, Geologia e até Medicina. Além disso, a colônia de estudantes brasileiros na urss foi vigiada, com ajuda da dsi do Ministério das Relações Exteriores e da Embaixada Brasileira em Moscou, inclusive por meio de violação de correspondência. Uma carta dirigida ao irmão por estudante gaúcho que vivia em Moscou foi interceptada no início de 1971, e o conteúdo não agra-dou aos agentes de informação. Entusiasmado, ele elogiou a qualidade do ensino (“inigualável em qualquer parte do mundo”) e a sociedade soviética, prometendo fazer esforços para que mais brasileiros fossem estudar lá.28 Em 1978, outra ação contra os universitários brasileiros na urss: um grupo de seis ex-estudantes da uappl desejava voltar ao Brasil, mas encontrava dificuldade para obter passaporte junto à Embaixada. Eles ameaçaram denunciar o caso à imprensa e acio-nar a Justiça caso seus passaportes fossem negados e, por isso, a dsi do Ministério das Relações Exteriores montou pequeno dossiê sobre o grupo. O sni, que era a agência central do sistema de informações instruiu que eles fossem interrogados e vigiados quando de sua chegada ao Brasil.29

Até 1975, as Universidades brasileiras credenciadas tinham autonomia para revalidar diplo-mas estrangeiros, por delegação do Conselho Federal de Educação. No entanto, graças à pressão dos órgãos de informação e segurança, preocupados em desestimular o estudo na urss, essas nor-mas foram alteradas. O primeiro sinal foi um Aviso Circular Reservado (No122, de 26/02/1975) do Ministério da Educação às Universidades, determinando que processos de revalidação de diplomas obtidos em países sem acordo cultural com o Brasil fossem enviados primeiro ao Ministério.30 Os processos ficaram suspensos por alguns meses e a Secretaria Geral do csn voltou à carga, para reforçar a política iniciada em 1970. O csn, por essa época (1975) secretariado pelo General Hugo Abreu montou Grupo de Trabalho para reestudar a questão das relações culturais com o bloco socialista, com o objetivo de desestimular a ida de estudantes e bloquear os diplomas. De acordo com texto assinado por Abreu:

26 ace 115626/77, Fundo sni, an-coreg.27 Não há como ter certeza se o contrato dela foi barrado por razões políticas, pois, anos depois, quando os

órgãos de informação conseguiram controlar a revalidação de diplomas soviéticos, o sni liberou a revalidação do diploma da mulher, de nome Nina. ace 2903/82, Fundo sni, an-coreg.

28 ace 11453/85, Fundo sni, an-coreg.29 Pastas op 1172 e op 1403. Fundo deops, Delegacia de Ordem Política, Arquivo do Estado de São Paulo.30 sb 7.2.1-34. Arquivo asi/unb, cedoc/unb e ace 4171/80, Fundo sni, an-coreg.

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Acontece que já ficou evidenciada a inconveniência da regulamentação vigente que permite, sem nenhuma dificuldade, o reconhecimento e o registro, com vista ao exercício profissional, de di-plomas obtidos em países comunistas, particularmente na Universidade PATRICE LUMUMBA, em Moscou, onde, além do baixo nível de ensino há uma intensa doutrinação ideológica a que são submetidos os estudantes e que chega a atingir a preparação de guerrilheiros.

Os diplomados nessa situação regressam ao Brasil e, uma vez reconhecidos os seus títulos, co-mumente de nível “pós-graduação” ou “doutorado”, passam a lecionar em universidades brasileiras onde, apesar de sua fraca formação profissional, atuam como eficientes agentes do comunismo.31

A menção a treinamento guerrilheiro deve ser imputada a arroubo retórico do General Abreu, pois seria improvável sua existência quando se sabe que a política soviética não favorecia ações armadas, pelo menos no Brasil. De qualquer forma, o aparato de segurança conseguiu o desejado, ao menos em parte. A situação era delicada porque setores do governo não desejavam melindrar os soviéticos ou dar-lhes motivos para reclamações em foros internacionais. Por isso, foi aprovada uma linha de ação que, ainda nas palavras do General Abreu em outro estudo sobre o mesmo assunto, permitia atender “os interesses imediatos do relacionamento bilateral comercial e finan-ceiro e as cautelas de Segurança Nacional, assegurar flexibilidade e satisfazer às peculiaridades das relações políticas”.32 A flexibilidade mencionada se refletiu nas decisões de não fechar os icbus, mas criar mecanismos legais para controlá-los, e determinar que as Universidades perdessem autonomia para revalidar diplomas dos países socialistas, mas, sem expressá-lo claramente.

Embora isso não tenha sido mencionado nos documentos do csn e dos órgãos de informa-ção é factível supor que a “flexibilidade” tinha por objetivo, também, evitar problemas com os elementos liberais no Conselho Federal de Educação (cfe) e nas Universidades. Por isso, o texto submetido como resolução ao cfe, e aprovado em dezembro de 1975 (resolução Nº43/75 do cfe) não mencionava os países socialistas, apenas a preocupação com as centenas de diplomas obtidos por brasileiros no exterior, sem verificação da qualidade das instituições frequentadas. A preo-cupação de preservar a qualidade dos profissionais com títulos superiores em atuação no país foi a justificativa apresentada para aprovação da nova resolução, que determinou que a decisão final nos processos de revalidação caberia ao Ministério da Educação (mec). Entretanto, as razões de ordem política não ficaram ausentes do texto, talvez para deixar claro, e assim evitar reclamações, que, em alguns casos, motivos de “segurança nacional” determinariam as decisões. O texto aprova-do pelo cfe dizia: “a universidade, antes de iniciar a instrução do processo, encaminhará os autos ao Departamento de Assuntos Universitários (do mec), que examinará o pedido, tendo em vista as necessidades do País e a segurança nacional, e proferirá a decisão”.33

A partir daí, os órgãos de informação puderam bloquear processos de revalidação de diplo-mas. Encontramos documentação sobre um caso, envolvendo agrônomo formado na uappl que submeteu seu diploma à Universidade Federal Rural de Pernambuco, em 1977. O Ministério da Educação respondeu que o pedido não poderia ter andamento, nos termos do artigo 8 da reso-lução 43/75 do cfe, o mesmo que se referia “às necessidades do País e a segurança nacional”.34 Quanto aos profissionais que já haviam conseguido legalizar seus diplomas no Brasil, sua vida

31 Exposição de Motivos No88 (29/11/75). Caixa 74/B, Fundo csn, an-coreg.32 Exposição de Motivos No99 (26/12/75). Caixa 74/B, Fundo csn, an-coreg.33 Revista Documenta 181 (1975), 187-189.34 ace 2034/81, Fundo sni, an-coreg.

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continuou sob vigilância estrita, às vezes com prejuízos marcantes. Por exemplo, em 1977 um uruguaio de nacionalidade brasileira e formado em Matemática pela uappl tentou ser contra-tado como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas, foi barrado, graças à recomendação negativa da asi/ufrgs.35 Na Universidade Federal da Bahia (ufba), o professor de Física Paulo Miranda, contratado em 1972, foi demitido em 1977 devido à resolução sobre os diplomas. Ele estudara na uappl entre 1964 e 1970 e, embora alegasse ter diploma revalidado pela usp, não apresentou comprovação quando os órgãos superiores da ufba, pressionados pelo aparato de repressão, fizeram essa exigência. De nada adiantou a solidariedade do Diretor do Instituto e os protestos de estudantes e colegas, seu contrato foi rescindido.36

No entanto, houve casos em que os “alvos” escaparam de perseguições, apesar do passado comprometedor aos olhos das agências de repressão. A mesma asi/ufrgs que vetou a contratação do professor de Matemática uruguaio, elaborou informação tranquilizadora sobre uma professora de Física da Universidade com diploma obtido na mesma uappl. Inquirida por órgãos interes-sados no passado político da professora, que tinha registros como comunista no início dos anos 1960, a asi/ufrgs respondeu que o conceito dela era bom na Universidade, onde nunca havia se envolvido em atividades políticas. Mesma situação aconteceu no Rio de Janeiro, envolvendo pro-fessora de Letras que voltara da uappl em 1966 e fora contratada pela ufrj em 1970. Segundo a Agência Central do sni, o próprio Presidente da República estava interessado no caso, embora as razões não tenham sido explicadas. Podemos imaginar a reação do agente de informação na outra ponta do sistema, que deve ter ficado em dúvida se o interesse do Presidente era no sentido de maior severidade ou o contrário. Seja como for, em sua resposta a asi/dr-3 registrou que a pro-fessora não tinha atividades políticas conhecidas e tanto o Reitor como o Diretor da Faculdade tinham bom conceito dela.37

Considerações finaisAs convicções anticomunistas foram elemento significativo para a construção de laços de

identidade entre os grupos favoráveis ao golpe de 1964, em especial os militares, a quem forne-ceram um sentido de missão. E também inspiraram algumas ações da ditadura, tanto na esfera repressiva quanto no terreno educativo e cultural. No entanto, análise mais atenta do impacto das políticas anticomunistas nos meios acadêmicos e intelectuais revela que tiveram efeitos limita-dos. Nem todos os docentes com perfil esquerdista foram afastados das instituições de ensino, e as agências de repressão não conseguiram impedir que alguns jovens professores com ideias socialistas fossem contratados. Tampouco os militares da direita radical conseguiram bloquear totalmente os contatos culturais com os países socialistas, assim como não foram capazes de im-pedir a circulação de ideias e textos de esquerda, inclusive o marxismo, cuja influência aumentou

35 ace 3084/81, Fundo sni, an-coreg.36 O caso gerou reportagem em Veja 474 (5/10/1977), 64, que mencionou a asi como a responsável pela

demissão. Cf. também Clemente, José Eduardo Ferraz. Ciência e política durante o regime militar: o caso da comunidade brasileira de físicos. (Salvador; ufba, 2005), 216-224. Dissertação de Mestrado, Instituto de Física, ufba.

37 O caso da ufrgs está em ace 10663/85 e o da ufrj em ace 5218/77, Fundo sni, an-coreg. asi/dr-3 era a agência de informações vinculada à Delegacia do mec no Estado do Rio de Janeiro.

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ao longo da ditadura.38 Na visão angustiada da extrema direita, a “limpeza” do inimigo ideológico ficara incompleta.

Essa percepção comum entre os “duros” foi aguçada com o início do processo de distensão po-lítica no governo do General Ernesto Geisel, a partir de 1974. O quarto presidente militar adotou a estratégia de “liberalizar” e reduzir a escala repressiva, com vistas a institucionalizar o regime autoritário e atenuar os choques com as forças de oposição. Essa política desagradou à direita radical dominante nos aparatos repressivos, que temia o recrudescimento das ações da esquerda tanto quanto desejava evitar a perda de seu poder e prestígio no aparelho do Estado. A resposta de tais grupos à “distensão” foi aumentar as ações repressivas e, de fato, ocorreram muitas mortes e desaparecimentos entre 1974 e 1976, principalmente de líderes dos dois Partidos Comunistas mais influentes.39 O ânimo anticomunista tornou-se o ponto de união para os militares radicais insatisfeitos com a postura moderada defendida por Geisel, que ficaram enraivecidos quando o presidente adotou posições diplomáticas pragmáticas também em relação à China e aos jovens governos marxistas que surgiram ao fim do império português na África. Entre 1974 e 1975, o governo brasileiro reconheceu o governo de Angola, estabeleceu laços diplomáticos com a China popular e votou a favor de resolução da onu condenando o sionismo, para agrado dos países árabes. Para os mais radicais da direita, tais ações eram indício que a “infiltração comunista” atin-gira o próprio núcleo do poder militar, e suas acusações dirigiam-se principalmente ao General reformado Golbery do Couto e Silva, conselheiro político de Geisel.

Os choques entre o grupo de Geisel e a direita militar levaram ao fortalecimento da liderança do Ministro do Exército, General Sylvio Frota, que se tornou virtual candidato do grupo à su-cessão presidencial. Frota passou a representar a opinião mais à direita no Estado e na sociedade, indignada contra a distensão e a nova orientação diplomática. Também irritava aos “frotistas” a tolerância dos segmentos do Estado que permitiam a contratação de pessoas com passado de esquerda. Em 1977, Frota fez divulgar lista com nomes de 97 “comunistas” que ocupavam cargos públicos no Brasil. Entre eles havia alguns efetivamente comunistas, mas muitos já haviam aban-donado qualquer militância esquerdista.40 Vendo ameaçada sua estratégia política e querendo a todo custo evitar a ascensão de Frota à presidência, Geisel montou uma operação militar para demitir o Ministro da Guerra, episódio que gerou o risco de choque armado entre as facções mi-litares. Esta derrota da extrema direita militar, em 1977, destruiu as chances do grupo de chegar ao poder, e contribuiu para lançar em descrédito o discurso anticomunista, associado à imagem de fanatismo e oportunismo. Incapaz de almejar sonhos mais audaciosos, a extrema direita recolheu--se às suas posições na estrutura repressiva, mas continuou em luta contra o inimigo comunista.

No governo seguinte, o último do ciclo militar, o presidente João Figueiredo deu continuidade à política de Geisel e anunciou a “abertura”. Os pilares da abertura de Figueiredo, que assumiu o poder em 1979, consistiram na anistia aos presos políticos – também uma autoanistia para

38 Essa análise está sendo mais bem desenvolvida em livro ainda inédito, intitulado O Regime Militar nas Universidades: cultura política e modernização autoritária.

39 O Partido Comunista Brasileiro (pcb) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sendo o último o resultado de uma cisão no início dos anos 1960. Aproximadamente três dezenas de membros do Comitê Central dos dois partidos foram mortos entre 1974 e 1976, e mais alguns militantes de base.

40 A tal lista trouxe prejuízo para algumas pessoas, como o professor Hélio Pontes, que deixou de ser nomeado Reitor da ufmg por causa da repercussão do episódio. A lista de Frota pode ser encontrada em O Estado de São Paulo (24/11/1977), 22. Para conhecer a opinião da direita radical sobre Geisel uma fonte interessante são as memórias do General Frota. Sylvio Frota, Ideais traídos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006).

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os assassinos e torturadores a serviço da ditadura –, no retorno dos exilados e na revogação da principal lei de exceção, o Ato Institucional 5. Cada vez mais isolada, a extrema direita militar respondeu com ações terroristas contra alvos “comunistas”: bancas de revista que vendiam publi-cações de esquerda, parlamentares de esquerda e shows organizados por artistas de esquerda.41 Ações desesperadas, reveladoras que as políticas anticomunistas já não encontravam o mesmo apoio do Estado autoritário, cujos principais líderes não consideravam mais tão grave o perigo vermelho, embora continuassem repudiando-o.

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Vianna, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Recibido 17/04/12 – Aceptado 06/08/12

41 Esses atentados à bomba mataram uma pessoa e deixaram vários feridos. Em abril de 1981, no Rio de Janeiro, militares à paisana tentaram colocar bombas em um centro de convenções (Riocentro) onde iria ocorrer show com a presença de artistas de oposição. Por falha técnica dos terroristas uma das bombas explodiu em seu carro, matando um Sargento do Exército e ferindo um Capitão. A repercussão do caso levou ao fim das ações terroristas de direita, embora os responsáveis não tenham sido punidos pelo Estado.

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