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EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO N NA AT TA AL L, , T TE ER RÇ ÇA A- -F FE EI IR RA A, , 2 29 9 D DE E N NO OV VE EM MB BR RO O D DE E 2 20 00 05 5 EDIÇÃO EXTRA DIÁRIO DE NATAL Três dias que marcaram a história A HISTÓRIA DO MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO DE 35 NO RIO GRANDE DO NORTE A IMAGEM DA REVOLUÇÃO É O QUARTEL DA POLÍCIA CRIVADO DE BALA. NO DETALHE, ANITA LEOCÁDIA E GRACILIANO RAMOS Fotos Arquivo/DN

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EDUCAÇÃOEDUCAÇÃONNAATTAALL,, TTEERRÇÇAA--FFEEIIRRAA,, 2299 DDEE NNOOVVEEMMBBRROO DDEE 22000055

EDIÇÃO EXTRADIÁRIODE NATAL

Três dias quemarcaram a história A HISTÓRIA DO MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO DE 35 NO RIO GRANDE DO NORTE

A IMAGEM DA REVOLUÇÃO É O QUARTEL DA POLÍCIA CRIVADO DE BALA. NO DETALHE, ANITA LEOCÁDIA E GRACILIANO RAMOS

Fotos Arquivo/DN

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2005DN EDUCAÇÃO2

EXPEDIENTEDIRETOR PRESIDENTE

Gladstone Vieira Belo

DIRETOR GERALAlbimar Furtado

DIRETOR DE REDAÇÃOOsair Vasconcelos

CHEFE DE REDAÇÃOCarlos Magno Araújo

PROMOÇÕES E PROJETOS ESPECIAISAfonso Laurentino Ramos

GERENTE COMERCIALJoão Maria Medeiros

GERENTE DE MARKETINGAlexandre Mulatinho

GERENTE ADMINISTRATIVO E FINANCEIROWível Castro

GERENTE DE CIRCULAÇÃOSérgio Farias

GERENTE DE ATENDIMENTOUmberto Mattos

EDIÇÃO Carlos Magno Araújo e Valéria Credídio

REVISÃOFrancisco Francerle e Adriana Amorim

FOTOS E DOCUMENTOSArquivo Diário de Natal

EDITORAÇÃO ELETRÔNICADESIGN E DIAGRAMAÇÃO

José Carlos Santos e Silvana Belkiss

AGRADECIMENTOSIvis Bezerra,Maria Conceição P.de Góis e

Brasília Carlos Ferreira

E-MAIL [email protected]

ORE

LHA

DE

LIVR

OPrestes: Lutas eAutocríticasDenis de Morais eFrancisco VianaEditora Vozes,1982

82 horas de SubversãoJoão Medeiros FilhoEditora do Senado Federal, 1980

A obra apresenta oacidentado e tempestuosopériplo político de Luís CarlosPrestes, sem, em nenhummomento, se engajar na sualinha. Através dos autores, falao homem, integrado nascircunstâncias, reconstruídasa partir de outrosdepoimentos e do noticiárioda imprensa,escrupulosamente filtrado.Este é o mérito principal destelivro, que, ao ultrapassar odepoimento, passivamentecolhido, incursiona nahistória oral, integrando oator no cenário do país.

O livro insere-se nomovimento renovador iniciadopelos estudos de Marly Viana ePaulo Sérgio Pinheiro,acrescentando a eles novasangulações e até corrigindo algumas imprecisões,dado o caráter localizado eminucioso da pesquisa.Vasculhandoos autos do Tribunal deSegurança Nacional, Homero Costaconcentrou sua atençãobasicamente na cidade de Natal,ponto nevrálgico da insurreição.Assim fazendo, pôde reconstituiras forças operantes no interiorda vida social.

O título compreende o período detempo entre 19h do dia 23 às 5h dodia 27 de novembro de 1935, começoe fim do levante, ao que se seguiramas providências de "limpeza" após afuga do grosso dos militares e civisnele comprometidos. Trata-se deuma valiosa contribuição para a ge-ração que viveu o período da cha-mada Intentona Comunista, comotambém para as gerações seguintes,trazendo à lembrança uma fase polí-tica conturbada e infundir conheci-mentos de fatos passados e à com-preensão de atos que poderiam sermal interpretados sob a inspiraçãode comentaristas apressados e mui-tas vezes tendenciosos.

O Comunismo noBrasilJohn W. F. DullesEditora NovaFronteira, 1985

As dunas vermelhas:Romance notempo de rebeliãoNei Leandro CastroAS Editores, 2003

A Intentona Comunista de1935José Campos deAragãoEditora da Biblioteca doExército, 1973

O autor potiguar NeiLeandro Castro usa ainsurreição natalense comopano de fundo para o seuromance As dunas vermelhas.Os fatos históricos sãorespeitados, personagens reaiscomparecem com seus nomesverdadeiros, mas não se tratade um romance histórico. Essaessência, tramas de amor,traição, humor e crimespassionais prevalecem sobre oque ocorreu naqueles dias denovembro de 1935.

Entrevistas exclusivas com osprincipais militantes de esquerda dadécada 1935/45 e exaustiva pesquisanos arquivos, tanto do PartidoComunista Brasileiro, quanto dapolícia brasileira, tornaram possíveleste livro. O Comunismo no Brasilconta, minuciosamente, esteviolento capítulo da história latino-americana, a luta do PartidoComunista Brasileiro parasobreviver durante a repressão,quando as mais brutais formas de tortura foram usadas paracombater a esquerda.

O livro é um repositório de fatosque marcaram profundamente aalma militar brasileira no trágicoacontecimento de 1935. É umacontribuição para a pesquisahistórica de uma época agitada e,menos ambiciosamente, umaleitura que atrai pelo tema e amaneira com quem foi tratado. Aobra está organizada em duasgrandes partes. Na primeira, o autordescreve os pádronos dainsurreição. E a segunda é dedicadaao movimento armado em si, desdeo deflagrar até a derrota final.

ALGUMAS DICAS DE LIVROS COM ENFOQUE SOBRE O MOVIMENTO DE 1935 EDITORIAL

Para registrar os 70 anosdo Movimento Revolucio-nário de 1935, quando oPartido Comunista, sob ocomando de Luiz CarlosPrestes, tentava tomar opoder no país, o Diário deNatal traz para o leitor umcaderno especial, com umlevantamento histórico detodos os fatos importantesocorridos no Rio Grandedo Norte, única capitalbrasileira que manteve ogoverno comunista portrês dias. O levantamentofoi todo realizado pelo mé-dico e professor da UFRN,Ivis Bezerra, em um traba-lho primoroso.

O caderno é ainda en-grandecido com artigosdas professoras Maria Con-ceição Pinto de Góis e Bra-sília Carlos Ferreira, quefazem suas análises sobreo Movimento de 35, a obrade Graciliano Ramos, es-crita durante seu períodona prisão, e um pouco davida de Anita LeocádiaPrestes,filha de Olga e LuizCarlos Prestes e que hoje setornou referência comohistoriadora brasileira.

E é justamente comAnita Prestes a entrevistade abertura do caderno,fa-zendo uma análise do mo-mento político atual.

Para lembrar os 70 anos,da revolta comunista, aFundação José Augustopromove, hoje e amanhã,o Seminário “A Revolta de1935 - Setenta Anos De-pois”. O seminário aconte-ce no Palácio da Cultura,a partir das oito horas coma participação da gover-nadora Wilma de Faria.

MOVIMENTO

DE 1935A InsurreiçãoComunista de1935: Natal - Oprimeiro Ato daTragédiaHomero CostaEditora Ensaio,1995

Fotos Arquivo/DN

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE NOVEMBRO DE 2005 DN EDUCAÇÃO3

A filha da solidariedade

AN

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REST

ESAbraçando o legado histórico deixado por seus pais, AnitaLeocádia Prestes se transformou em uma das principaispesquisadoras no que diz respeito à história do Brasil. Além

de historiadora, Anita é economista e química. Toda sua experiên-

cia, compartilhada com seus alunos da UFRJ e leitores de seus li-vros, a filha de Olga e Luiz Carlos faz uma análise do movimentode 1935 e da influência de seu resultado na política atual brasilei-ra, em entrevista ao caderno especial do Diário de Natal.

Seus pais escreveram uma daspassagens mais importantes da históriapolítica brasileira. Qual o legado deixadopor eles para a senhora e para as geraçõesfuturas?

Penso que o legado principal seja o dededicação total à luta pela igualdade ejustiça social para toda a humanidade.

O fato da senhora ter vivenciado deperto momentos históricos influenciou nasua escolha profissional e no seu caminhocomo pesquisadora?

Não; até por que, na minha opinião, emqualquer profissão é possível ser útil àhumanidade.

Em um de seus livros - "Da insurreiçãoarmada (1935) à Uníão Nacional (1938 -1945)" - publicado em 2001, pela editoraPaz na Terra, a senhora aborda pontospolêmicos como o paradoxo das ações doPCB, contra e a favor de Vargas. Qual a suaanálise desses fatos?

Ser ia muito longo responder a talpergunta. O melhor é aconselhar a leiturado meu l ivro citado. Resumidamente,como resultado da pesquisa que realizei,pude mostrar que a política de "UniãoNacional" adotada pelo PCB não foi umacriação do partido ou da InternacionalComunista - organização mundial da qualos partidos comunistas faziam parte naépoca -; resultou da situação históricaconcreta existente no país e no mundo nosanos de 1938-45. A "União Nacional", noBrasil, refletiu a combinação específica deuma sér ie de fatores nacionais einternacionais presentes naquele período,fatores que terminariam por levar aspotências do Eixo à derrota.

A senhora acredita que a derrota em1935 deveu-se ao movimento não contarcom o apoio popular? Teria sido um erro deestratégia?

A derrota dos levantes antifascistas de1935 teve várias causas, conforme mostrono meu livro "Luiz Carlos Prestes e a AliançaNacional Libertadora; os caminhos da lutaantifascista no Brasil (1934/35)", Ed. Vozes,1997. A meu ver, houve um erro deavaliação da situação existente no país; em

grande parte tal erro estava relacionadocom a força das concepções golpistaspresentes na sociedade brasileira.

O jornalista Willian Waach, em seu livro"Camaradas" fala do movimento brasileirode 1935, retirando um pouco do"romantismo" que ainda existia em tornoda organização para tirar Getúlio Vargas dopoder. Como a senhora avalia a obra?

É a obra de um inimigo de classe, de umagente a serviço dos interesses do grandecapital internacionalizado, com o objetivode tentar desqualificar a luta dosrevolucionários. É um livro que não tem amenor credibilidade, pois não podem tercredibilidade documentos que ninguém viuou se sabe onde estão. O autor revela totalfalta de seriedade no tratamento dadocumentação usada.

Como a senhora observa a influência daInsurreição na política brasileira?

Embora os levantes antifascista denovembro de 1935 tenham sido derrotados,a luta encabeçada pelos comunistas criouuma consciência antiimperialista,antilatifúndio, antifascista e antiintegralistano Brasil. Tal consciência revelou-se maistarde na luta pela entrada no Brasil naGuerra, no início do anos 40.

As classes hegemônicas até hojesatanizam a Insurreição - chamadatambém de Intentona Comunista - emcerimônias militares. Por que essa visãopermanece até no movimento?

Tal visão, como muitas outras criadas edifundidas pelos donos do poder,permanecem por que são do interesse dasclasses dominantes, que controlam osmeios de comunicação e constroem achamada História Oficial.

Tanto no livro, como no filme Olga asenhora é mencionada, integrando ahistória nacional. Como foram seusprimeiros anos de vida? O PartidoComunista auxiliou, de alguma forma, emsua formação pessoal e educacional?

Seria muito longo responder a talpergunta. Posso considerar-me filha dasolidariedade internacional, pois foi umacampanha internacional liderada pelaminha avó Leocádia Prestes, que salvouminha vida das garras do nazismo. Durantetoda minha vida recebi sempresolidariedade dos comunistas e das pessoasde bem do mundo inteiro. Além disso, fuieducada por minha avó e minha tia Lygia nosentido de ser uma pessoa sensível aosgrandes problemas da humanidade,principalmente voltada para a busca desoluções para as injustiças sociais.

Anita Leocádia Prestes, ainda moça, no Rio de Janeiro, onde mora em companhia de sua tia

VALÉRIA CREDIDIODA EQUIPE DO DIÁRIO DE NATAL

Fotos Arquivo/DN

Olga, grávida de sete meses, foi deportadapara a Alemanha nazista pelo governo Ge-túlio Vargas, em setembro de 1936. Compa-

nheira dedicada de Luiz Carlos Prestes, meu pai, aquem salvara a vida quando ambos foram presos,pela polícia de Filinto Müller, em 5 de março da-quele ano, no subúrbio carioca do Méier. Na oca-sião, ela se interpusera corajosamente entre as po-liciais e o marido, impedindo o seu assassinato.

A deportação de Olga Benário Prestes e EliseEwert - ambas militantes comunistas alemãs - foi umgesto de boa vontade de Vargas em relação a Hitler,expressando a aproximação então em curso entre osdois governos. Foi também vingança e castigo cruelimpostos ao grande inimigo do regime varguista - LuizCarlos Prestes, o "Cavaleiro da Esperança" para tan-tos brasileiros. Olga e Elise viajaram ilegalmente,sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. Nacalada da noite foram embarcadas num navio car-gueiro, que partiu rumo a Hamburgo com ordens ex-pressas de não parar em nenhum outro porto estran-geiro, pois havia precedentes de os portuários fran-ceses e espanhóis resgatarem prisioneiros deporta-dos para a Alemanha. Minha mãe ficou presa inco-municável na prisão de mulheres de Barminstrasse(Berlim), onde nasci, em novembro de 1936. Comoresultado de importante e vigorosa campanha inter-nacional pela libertação de Prestes e dos presos po-líticos no Brasil, assim como de Olga e de sua filha,fui entregue pela Gestapo à minha avó paterna -Leocádia Prestes, mulher valente e decidida, que en-cabeçava a campanha. Quando me separaram deminha mãe contava apenas 14 meses de idade. Nãopude, portanto, guardar nenhuma lembrança dela.Logo depois, Olga seria transferida para outra prisão,em condições muito piores e, mais tarde, para ocampo de concentração de Ravensbrück. Em abrilde 1942, era assassinada numa câmara de gás nocampo de Bernburg. A tragédia que atingiu Olgamarcou minha vida. De que maneira? Poderia ter metornado uma pessoa amargurada e descrente da hu-manidade, convencida de sua maldade intrínseca.Ou poderia ter me levado a pensar que os homens,embora em sua maioria não sejam maus, facilmen-te se deixam arrastar pela maldade de alguns. Sendoassim, não haveria por que acreditar no progressoda humanidade, não existiriam razões para qual-quer otimismo em relação ao seu futuro.

Cresci e fui educada no seio de uma família co-munista - a família de meu pai. Minha avó Leocá-dia, minha tia Lygia, que acabou sendo minha se-gunda mãe, meu próprio pai, minhas outras tiasconduziram-me por outro caminho. Desde a maistenra idade, foi-me mostrado o exemplo de meus pais- dois revolucionários comunistas que passaram porindescritíveis sofrimentos em nome de uma causamaior, a causa da emancipação da humanidade daexploração do homem pelo homem. Ou seja, nas pa-lavras de Karl Marx, lutavam para que a humanida-de ultrapassasse sua pré-história, ingressando naverdadeira história, fase em que seriam superadasas injustiças e desigualdades sociais, em que nãomais existiria a alienação dos homens.

Desde cedo, aprendi com a vida de meus pais,com o exemplo de minha avô e, em especial, commartírio de Olga, que vale à pena lutar por um mundomelhor, mais belo e mais justo; que vale à pena teresperança num futuro melhor para toda a huma-nidade. Aprendi que não devemos compactuarcom a injustiça, que é necessário lutar contra ela eque, apesar de todas as dificuldades, das derrotas

e sofrimentos, dos erros e dos fracassos, a huma-nidade caminha para frente, e os homens encon-tram maneiras de aperfeiçoar seus modos de viver.Hoje, na qualidade de historiadora que sou, enten-do que esses ensinamentos recebidos na infânciasão verdadeiros: a história da humanidade nosmostra que o progresso é a tendência geral das so-ciedades humanas, embora se realize através demúltiplos e imprevisíveis retrocessos momentâ-neos, que por vezes podem durar muito, levandoem conta o quanto a vida humana é efêmera.

Em suas cartas enviadas do cárcere, onde perma-neceu durante nove longos anos, meu pai revelavaa preocupação de que eu soubesse que nem ele nemOlga se sentiam infelizes com a sorte que o destinolhes reservara. Pelo contrário, apesar dos sofrimen-tos, apesar da imensa tristeza de se encontrarem se-parados um do outro, longe da filha e das pessoasque mais amavam, consideravam-se felizes por teremconsciência do dever cumprido. E nisso, para eles,consistia a mais completa felicidade.

Da mesma forma, minha mãe, nas poucas car-tas que conseguiu mandar do cativeiro, expressavao desejo de que eu fosse uma criança feliz e ale-gre,orgulhosa de meus pais terem se empenhadona luta por um mundo melhor, sem queixas nem ar-rependimentos. Seu sacrifício não era maior do queo de milhões de outros seres humanos que, naque-le momento, enfrentavam os horrores da noite fas-cista que se abatera sobre a nossa civilização.

Havia, contudo, uma diferença importante. Meuspais, distintamente de milhões de inocentes que,como Anne Frank, sofriam e morriam sem conhe-cer as causas de tamanha desgraça, tinham consciên-cia do fenômeno fascista e do seu perigo para a hu-manidade. Por isso, haviam lutado contra ele comtodas as suas energias. Derrotados arcavam com asconseqüências de seu gesto. Mantinham-se, porém,confiantes de que o fascismo e sua variante alemã -o nazismo - seriam vencidos, como de fato se veri-ficou, com a derrota dos países do Eixo, no final daSegunda Guerra Mundial.

Sua confiança decorria da profunda convic-ção científica que ambos haviam adquirido aoestudar o marxismo e ao travar conhecimentocom a experiência pioneira de construção deuma sociedade socialista na União Soviética.A teoria marxista do socialismo científico lhespermitira compreender que o fascismo nãopodia ser explicado apenas pela loucura deum homem ou pelas tradições autoritárias oumilitaristas de algumas sociedades. O fenôme-no fascista expressava basicamente a criseque o sistema capitalista atravessava nos anos

30, representava a resposta do grande capitalao avanço do movimento operário em paísescomo a Itália e a Alemanha.

A construção do socialismo na URSS lhes mos-trara a superioridade desse sistema social em com-paração com o capitalista. Apesar de imensas difi-culdades enfrentadas pelo povo soviético, sitiadopelas potências imperialistas, as grandes conquistasdo socialismo já eram visíveis através da realizaçãoconcreta dos direitos sociais alcançados pelos traba-lhadores. Nenhum país capitalista fora capaz de re-solver os problemas básicos do homem como empoucos anos o fizera o primeiro país socialista.

Naqueles anos terríveis, quando o fascismo to-mava conta da Europa e a guerra revelava toda suacrueldade, poucos acreditavam na possibilidade desua derrota. Posso orgulhar-me de que minha famí-lia - meus pais, minha avó Leocádia, minhas tias -,conhecedora da fibra do povo soviético, jamais tenhaduvidado de sua vitória final no grande conflito quesacudiu o mundo. Essa confiança, aliada à com-preensão do caráter profundamente retrógrado dofascismo, que o condenava, portanto, ao desapare-cimento, permitiram aos meus pais resistir, com fir-meza e sem perder as esperanças, às terríveis pro-vações a que foram submetidos durante aquelesanos tormentosos. Segundo os testemunhos decompanheiras do campo de concentração, Olga ja-mais se entregou ao desespero nem ao conformis-mo, lutou até o último momento de sua curta vida,infundindo coragem e confiança no futuro em todosaqueles que a rodeavam.

Inspirada no exemplo de meus pais, mantenhofirme convicção de que para impedir a repetição dogenocídio cometido pelo nazifascismo é necessárionão eludir suas causas mais profundas. Se o Holo-causto foi um crime hediondo, o fascismo não seresumiu ao Holocausto. E isso precisa ser dito, paraque as gerações atuais não se iludam com a mensa-gem, que lhes é insistentemente transmitida, de queo nazismo teria sido uma espécie de loucura coleti-va, centrada no ódio irracional aos judeus.

Sim, milhões de judeus foram sacrificados,mas por que não denunciar também o sacrifíciode tantas outras nacionalidades, como ciganos,russos, ucranianos, poloneses etc.? Como nãolembrar, junto com Anne Frank, as milhares decrianças das regiões ocupadas pelos nazistas, queforam arrastadas, com seus pais, aos campos deconcentração e às câmaras de gás? E por que nãorecordar que as primeiras vítimas do nazifascis-mo, os primeiros a serem presos, foram os comu-nistas e os social-democratas? Minha mãe foi de-portada para a Alemanha nazista porque era co-munista. A condição de judia constituiu apenas umagravante em sua situação de prisioneira.

Creio que renunciar ao exame dos determinan-tes econômicos, sociais e políticos do fascismo sópode ser prejudicial ao esforço de todos os homense mulheres de bem, que desejam ver os horrores dopassado sepultados para sempre.

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Olga Benário Prestes, esposa de Prestes

ANITA LEOCÁDIA PRESTESHISTORIADORA

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2005DN EDUCAÇÃO4

Fotos Arquivo/DN

Artigo transcrito dolivro “Não Olhe nosOlhos do Inimigo”

Anita Leocádia é nascida de dois jovensapaixonados cujo amor misturava-secom um sonho belo e generoso de

mudar o mundo, de torná-lo igualitário. Umjovem casal, cuja herança deixada foi essa de-dicação total à causa socialista, na tentativa demudar as estruturas brasileiras. Era o iníciodo século XX. O capitalismo estava em ascen-são crescente, criando uma sociedade de clas-ses e tornando as jovens Repúblicas latino -americanas dependentes das nações onde aacumulação capitalista se fizera às custas damais - valia retirada dos trabalhador, da domi-nação colonial oriunda do ocidente europeue dos Estados Unidos da América do Norte.

Luís Carlos, jovem tenente, amargava, aindaa derrota do movimento tenentista, que tenta-ra reformar as instituições brasileiras e derro-tar as oligarquias. Neste sentido, fez com ou-tros companheiros a Longa Marcha, a chama-da Coluna Prestes, percorrendo o Brasil sem con-seguir o seu intento. Exilou-se na Bolívia. Teveacesso às teorias marxistas, foi até à Rússia, ondedesde 1917 tentava-se implantar o socialismo ese organizara a União das Repúblicas SocialistasSoviéticas. Conseguiu chegar até Moscou, fezcursos de marxismo e conheceu a bela e jovemrevolucionária, Olga. Voltaram juntos para o Bra-sil. Era a década de 30. O Brasil, após a crise de1929, procurava implantar a industrialização.Vargas recém-chegado ao poder, desalojara partedas oligarquias e, com a acumulação oriunda dasexportações tenta modernizar o Estado. Mo-dernização naquele momento, era sinônimo deindustrialização. Industrialização também sig-nificava o crescimento da classe operária.

Luís Carlos Prestes acreditava que havia es-paço no Brasil para as idéias socialistas. O Par-tido Comunista que fora fundado em 1922, li-gado à Internacional Comunista, acolheu Pres-tes e Olga que passaram a liderar o movimen-to em busca das transformações sociais que le-variam ao socialismo. Na década de 30 cresciao autoritarismo nazifascista que encontrara naItália e na Alemanha terreno fecundo. Este, um

contraponto ao comunismo. Exatamente em 1933, o Partido Nazista vence

as eleições na Alemanha. Hitler é escolhidocomo Chanceler.

Os jovens revolucionários, Olga e Luís Car-los, não obstante a luta política, apaixonados,casaram-se.

Era a década de 30. O processo histórico es-tava em acelerada transição. A União das Re-públicas Socialista Soviética, também aumen-tava sua industrialização.

A Internacional Comunista propõe a lutaimediata pela Revolução, no mundo. No Brasilocorrem os levantes antifascistas de Natal, Re-cife e Rio de Janeiro. Então, a polícia de Vargas,desencadeia uma repressão inaudita sobre asforças políticas antifascista.

Luís Carlos e Olga são presos. O espírito daépoca é simbolizado pelas ações de Filinto Mil-ler, este, um tenente expulso da Coluna Prestespor atos ilícitos.

Com o Estado Novo, instala -se o Tribunal deExceção que inspira a expulsão de Olga. Vargase Filinto Miller entregam a revolucionária e judiaalemã, em adiantado estado de gravidez àGESTAPO de Hitler. Num Campo de Concen-tração nazista nasce Anita. Olga morre. Anitavive, graças a um movimento internacional li-derado por Leocádia Prestes, sua avó, Anita é en-tregue à família. Leocádia e Lygia sua irmã, de-dicam-se à educação de Anita.

Esta luta de Anita pela vida, e a coerênciaherdada forjaram seu caráter de profissional lú-cida e de combatente indômita.

Convivo com Anita há alguns anos. Juntastrabalhamos no Curso de História na Universi-dade Federal do Rio de Janeiro, onde ela é amadae respeitada por alunos e colegas de profissão.O traço marcante de sua personalidade é a se-riedade profissional, e também, uma certa hu-mildade estampada em seus belos olhos claros.

Maria Conceição Pinto de Góes, professora do Departamentode História da UFRJ e coordenadora do doutorado

de História Comparada

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GÓES OBRAS EDITADAS

POR ANITA PRESTES

A ColunaPrestes

Da InsurreiçãoArmada (1935) àUnião Nacional

(1938-1945)

Anos Tormentosos- Luiz

Carlos Prestes (Correspondências

da Prisão 1936-1945Volunes I, II e IIIProfessora Conceição de Góis, historiadora da UFRJ e amiga pessoal de Anita Leocádia Prestes

A carteira de identificação deAnita no Campo de

Concentração

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE NOVEMBRO DE 2005 DN EDUCAÇÃO5

DOCUMENTO

Fotos Arquivo/DN

Política e literaturaComeçamos oprimidos pela sintaxe e

acabamos às voltas com a Delegacia deOrdem Política e Social, mas, nos estreitoslimites a que nos coagem a gramática e alei, ainda nos podemos mexer.

Graciliano Ramos

Completa 70 anos a Insurreição Comunis-ta que eclodiu em Natal no dia 23 de no-vembro de 1935, tendo durado três dias.

Nos dias 24 e 27 do mesmo mês houve tenta-tivas frustradas de repetir o feito em Recife eno Rio de Janeiro. O recuo temporal favorecea rememoração do episódio: motivações, ato-res e conseqüências. E, através dele, refletirsobre os tortuosos caminhos da democraciabrasileira. Também é ocasião propícia para ce-lebrar os homens e mulheres que participa-ram daquele movimento, os conhecidos e osanônimos, que sofreram as agruras das pri-sões e das torturas e os que pagaram com avida o empenho na luta por seus ideais.

Os anos trinta são fundamentais na histó-ria política do país. Marcam a entrada dos tra-balhadores urbanos na cena pública, admitidoscomo interlocutores pelos vitoriosos da Alian-ça Liberal que levou Getúlio Vargas ao poder.Para os trabalhadores norte-rio-grandensesé um período de efervescência política, omovimento sindical está em ascenso ali-mentado pela disputa entre cafeístas e co-munistas. O Partido Comunista se voltapara a organização sindical, formando os

trabalhadores com o discurso ideologiza-do e sectário da frente única.

Era um tempo de ideais. Tempo de disputaem que tomar partido era fatal. A compreensãodos acontecimentos de 1935 e suas conseqüên-cias passa pelos contextos nacional e local ca-racterizados por práticas políticas marcadaspelo radicalismo. No plano nacional, frenteao avanço do integralismo, os comunistassubstituem a tática de frente única entãoem vigor, pela frente popular contra o fas-cismo e, em março de 1935, fundam a Alian-ça Nacional Libertadora. Formada como umafrente popular antifascista e antiimperialis-ta, a ANL seria o primeiro movimento demassas de caráter nacional, chegando a or-ganizar 1.600 núcleos em todo o país. TendoLuís Carlos Prestes como Presidente deHonra, a ANL reuniu ex-tenentes, comunis-tas, socialistas, democratas e liberais. Paraela convergiram setores da classe média, es-tudantes e trabalhadores.

No plano local, circulavam rumores de queestava em preparação um movimento lideradopelos comunistas. A explicação para este even-to está relacionada à cultura de rebelião quevinha se formando desde os anos 20, com oprotagonismo de militares, do qual a ColunaPrestes é exemplar. As rebeliões tenentistas quepontuaram os anos 20, a vitoriosa Aliança Li-beral dos anos 30, as disputas políticas locais,a acirrada disputa das eleições de 1934, soma-das à contenda entre comunistas e integralis-tas, eram o caldo de cultura que fazia germinaras idéias de sublevação que impregnavam osmilitares do 21º BC e alimentavam o grupo demilitantes comunistas.

As consignas Deus, Pátria e Família X Terra,

Trabalho e Liberdade, contrapunham integra-listas e comunistas em confrontos de rua, nãosendo raros os episódios marcados pela vio-lência do enfrentamento direto. A ANL defen-dia um programa nacionalista de reformas so-ciais, econômicas e políticas, que incluía a re-forma agrária. Aproveitando o apoio da socie-dade à causa antifascista, Prestes lança, emjulho de 1935, um manifesto pedindo a renún-cia de Vargas. Em represália, o governo decre-tou a ilegalidade da ANL e o conseqüente fecha-mento de suas sedes em todo o país.

A revolta começou dia 23 em Natal com a su-blevação do 21º BC. A escolha das datas perma-nece obscura em meio às versões disponíveis.Há quem afirme que a data teria sido marcadaatravés de um telegrama falso do Chefe de Po-lícia, que já estava informado da iminência domovimento. Outros dizem que houve má in-terpretação da senha: a senha era 2 e 3, para serinterpretada como 25, mas foi lida como 23.Uma terceira versão afirma que o próprio Ge-túlio Vargas estava avisado do levante e man-tinha a polícia atenta, na vigilância aos comu-nistas, desde a extinção da ANL.

Em qualquer dos casos, sobra estranhezadiante da impossibilidade de que a rebeliãofosse bem-sucedida. Ainda assim, o movi-mento pôs em fuga o governador Rafael Fer-nandes e todo o secretariado que no momen-to do ataque se encontravam no Teatro. Alémdisso, houve tentativa de expandir o movi-mento para as cidades do interior do estado,para onde seguiram caravanas dirigidas pormilitantes do Partido com a missão de desti-tuir os prefeitos locais, nomear pessoas deconfiança e implantar o socialismo, segundodepoimento de um dos participantes.

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35 O escritor Graciliano Ramos e uma de suasprincipais obras, Memórias do Cárcere, que

conta sua passagem pela prisão.A obra éanalisada pela professora Brasília Carlos

Ferreira em seu artigo, escrito especialmentepara esta edição do DN Educação

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2005DN EDUCAÇÃO6

Fotos Arquivo/DN

Tomou posse uma Junta Revolucionária assimconstituída: Sargento Quintino Clementino Bar-ros, Defesa; Lauro Lago, Interior e Justiça: José Ma-cedo, Finanças; João Galvão, Viação; José Praxe-des, Aprivisionamento. Segundo Praxedes, JoãoLopes também integrou a Junta, que permaneceuno poder durante três dias.

Fracassado o levante, o governador reassu-miu o governo do Estado e junto com as elitesproprietárias iniciou a grande revanche. Ra-fael Fernandes era proprietário de salinas emMossoró e o PCB havia organizado o sindica-to dos operários em salinas, um sindicato for-temente ideologizado e que já realizara grevesimportantes e vitoriosas. Era uma categorianumerosa e até nos confrontos com o peque-no contingente policial, os trabalhadores eramvencedores, por estarem em maioria.

Chegara a hora da desforra. Foi organiza-da uma expedição punitiva que saiu recolhen-do os trabalhadores sindicalizados, os mili-tantes do PCB, os adversários políticos. Pre-feitos que eram adversários do governadorrefugiam-se para não serem presos. Foi en-viado telegrama ao Ministro da Justiça de-nunciando a perseguição. Interrogado, o go-vernador reafirma a condição de extremistasdos seus opositores e legítima a caçada.

A repressão atingia a todos os adversários do

grupo no poder. Os cafeístas, os não cafeístas,partidários da Aliança Liberal, todos foram pre-sos sob acusação de comunistas. A fúria maiorabateu-se sobre os sindicatos, especialmente odas salinas. O fracasso do Levante ofereceu o pre-texto para a destruição dos sindicatos. As sedesforam invadidas, o mobiliário e o material exis-tente destroçado e toda a diretoria presa.

No dia 24, em Recife, rebelaram-se duas unida-des militares, recebendo a adesão de trabalhado-res. São rapidamente dominados. Gregório Bezer-ra, um dos líderes do movimento foi preso em JoãoPessoa, conduzido a Recife e torturado. Transferi-do para a ilha de Fernando de Noronha, foi con-denado pelo Tribunal de Segurança Nacional a 28anos de prisão. Três dias depois, 27 de novembro,sublevou-se o 3º Regimento de Infantaria, na praiaVermelha, e a Escola de Aviação, no Campo dosAfonsos, ambos no Rio de Janeiro. Dois batalhões,sob o comando do capitão Agildo Barata, tentaramsair às ruas, sendo rapidamente controlados.

As tentativas de rebelião deixaram marcasdecisivas na cena política brasileira. De umlado, revelou o distanciamento entre a esquer-da organizada e a população. De outro, forne-ceu pretexto para o pensamento conservadorressaltar uma pretensa vocação golpista e an-tidemocrática das esquerdas. O movimentofrustrado alimentou nas forças conservadorasseu ideário anti-mudanças e anti-povo.

O ponto comum aos três movimentos é a par-ticipação determinante do PC, mesmo que jamaisassumida oficialmente pelo partido. Em Natal foipublicada uma carta em um jornal chamado "A LI-BERDADE", cujo título-exortação diz bem a inspi-ração do movimento: Delenda, Fascismo! Vistocom olhos de hoje, soa incompreensível e po-liticamente voluntarista um movimento comaquelas características. Ele só pode ser com-preendido no contexto de intensa agitaçãosocial, rebeldia dos militares e presença ativa

do PCB naquele período.Malogrado o levante, foi decretado o Estado

de Sítio em todo o país. Tem início uma caçadainédita na história brasileira. Rebeldes, simpati-zantes, sindicalistas e pessoas alheias ao movi-mento são perseguidos, presos, torturados, mor-tos. As prisões recebem centenas de pessoas,muitas das quais em função de querelas locais,sem a menor ligação com a rebelião. Muitos caemna clandestinidade. Prestes é preso, permane-cendo na prisão até 1945. Sua mulher, a judiaOlga Benário é entregue à Gestapo, polícia polí-tica nazista, e viria a morrer em um campo deconcentração da Alemanha, em 1942.

Graciliano Ramos é um caso exemplar. Foipreso em Maceió sem acusação formal, somen-te viria se a filiar ao PCB em 1947. Sobre sua pri-são se expressa de forma concisa, quase telegrá-fica, enigmática como uma charada: não me acu-savam: suprimiam-me. Aquela contradança de-sorientava-me. Foi levado para Recife e de lá parao Rio de Janeiro, onde passou por várias prisões:Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, Co-lônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande),novamente Casa de Detenção e, por fim, ficou naSala da Capela de Correção.

Em todas elas, conviveu com muitos dos que ha-viam participado da rebelião de 1935, e com tantos ou-tros que, tal como ele, não tiveram qualquer vincula-ção. A amarga experiência nas prisões, junto com cen-tenas de homens e mulheres de diversos estratos so-ciais e níveis distintos de implicação com os aconte-cimentos de 1935, levaram-no a produzir uma obramemorialística, Memórias do Cárcere, que deixada in-conclusa, viria a ter publicação póstuma.

Originalmente disposto em quatro volumes,Memórias do Cárcere é um documento/monu-mento de uma época. Fala de um momento par-ticular da história de nosso país, um tempo deopressão em que homens e mulheres idealistas, par-tidários da democracia e da liberdade foram obri-gados a habitar celas de prisões. Nele, Graciliano,registra a violência do Estado Novo sobre as pes-soas acusadas de conspirar contra o governo Var-gas. Através de sua narrativa acompanhamos nãoapenas sua trajetória nas prisões, mas também ade muitos outros brasileiros e estrangeiros, militan-tes comunistas e não comunistas, homens e mu-lheres feitos prisioneiros a partir da fracassada ten-tativa de sublevação que entraria para a históriacomo o Levante Comunista de 1935.Lauro Lago,secretário de Interior e Justiça do Governo Comunista, e Mário Paiva:10 anos de prisão

O escritor Graciliano Ramos durante o processo de escrita

As tentativas de rebeliãodeixaram marcas decisivasna cena política brasileira

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE NOVEMBRO DE 2005 DN EDUCAÇÃO7

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Em Memórias do Cárcere, Gracilianodescreve sua via-sacra e de seus compa-nheiros de prisão de maneira seca, rea-lista, sem adjetivações. Como se fizesseuma autópsia. Não há emoção ou revol-ta. Apenas a constatação de que o tempovirara e que a brutalidade da prisão lan-çara seu manto escuro sobre aquelaspessoas. Não se esforça em fazer ficção, éde realidade que se faz sua escrita e nelacoisas, acontecimentos e pessoas figu-ram com suas próprias estaturas. Semadornos. O texto evoca uma certa amar-gura que é a matéria daqueles temposdifíceis. Preso, sem acusação formal, semprevisão do tempo de permanência naprisão, sua narrativa capta não apenassuas agruras, volta-se para a variadafauna humana que o cerca, os seus próxi-mos não escolhidos, e os descreve com omesmo distanciamento e desgosto comque descreve a si mesmo.

Em certo momento ele escreve: o mundo setornava fascista. Num mundo assim, que futu-ro nos reservariam? Provavelmente não havialugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamosde cárcere em cárcere, findaríamos num campode concentração. Nenhuma utilidade repre-sentávamos na ordem nova. Se nos largassem,vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados,farrapos vivos, fantasmas prematuros; deseja-ríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hos-pício ou ter coragem de amarrar uma corda aopescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias,repetidas, vexavam-me; tanto me embrenha-ra nelas que me sentia inteiramente perdido.

Graciliano fora Prefeito de Palmeira dos Índiose Secretário de Instrução Pública de Maceió, masse realizava como escritor. Através do texto fino,cortante, sem gorduras, era possível apreendernele as idéias que alimentavam a pena exigen-te. Graciliano tinha olhos de ver e era crítico doque via: uma cidade, um estado, um país, vol-tado para sua própria mediocridade. As críti-cas aos privilégios, as idéias contrastantes como pensamento em voga, levaram-no à prisão.O que eu desejava era a morte do capitalismo,o fim da exploração, diz ele, como se fosse pouco.

Trabalhadores norte-rio-grandenses quepartilharam com Graciliano as mesmas pri-

sões e a angústia de vir-a-ser, foram imortali-zados em sua obra. Entre as páginas surgem,entre outros, Lauro Lago e José Macedo, Se-cretários do Interior e da Fazenda da Junta Pro-visória de Natal em 1935. Segundo Graciliano,tinham-se agüentado 48 horas, esperando queo resto do país se rebelasse. Além deles, haviamuitos outros norte-rio-grandenses, como Epi-fânio Guilhermino, João Francisco Gregório,João Rocha, Paulo Pinto, Sebastião Félix, Eucli-des, Gastão, Domício Fernandes, Ramiro Ma-galhães, Carlindo Revoredo, Mário Paiva, Car-los Van der Linden, Horácio Valadares, JoãoAnastácio, Paulista. Também foram seus con-temporâneos na prisão, Hercolino Cascardo,Agildo Barata, José Medina, Rodolfo Ghioldi,Lourenço Moreira Lima, Álvaro Ventura, Apo-lônio de Carvalho e Antônio Maciel Bonfim, opolêmico Miranda, dirigente partidário queentraria na história como informante da polí-cia. Entre as mulheres estavam Nise da Silvei-ra, Olga Prestes, Elisa Berger, Carmem Ghiol-di, Leonila, Maria Joana, Maria Werneck, RosaMeireles, Valentina e Beatriz Bandeira.

Muitos dos nomes citados já eram pessoasconhecidas, fizeram história, seus nomes figu-ram em livros, são estudados nas universida-des. Outros, tornaram-se profissionais de des-taque, nas suas áreas de atuação, como Nise daSilveira, notável psiquiatra que viria a fundar oMuseu do Inconsciente. Mas, entre os prisio-neiros e prisioneiras, também havia homens emulheres simples, estivadores, trabalhadoresem salinas, sindicalistas. A referência a eles,mesmo aos desconhecidos, é uma espécie de re-conhecimento de sua existência, finalmente,foram atores importantes num certo momen-to da história, ousaram desafiar o conservado-rismo reinante, e propor alterações na socieda-de. Isso lhes dá o direito à imortalidade.

Mas, naquele momento, eram apenas seres hu-manos ordinários, tragados pelo braço forte doautoritarismo, sem grandes chances de sobrevi-vência. Haviam deixado para trás, família, traba-lho, a comunidade de pertencimento. Levavamconsigo apenas os ideais. O próprio Graciliano, jáum escritor reconhecido e admirado, expressa a fra-gilidade de suas vidas, ao afirmar o quanto eramvulneráveis: éramos insignificâncias, miudezas su-pressas do organismo social, e podíamos ser arras-tados para cima e para baixo, sem que isto signi-ficasse inconveniência. Informações vagas e dis-tantes, aleivosias, o rancor de um inimigo, detur-pações de fatos de repente nos causariam choquee mudanças. Dependíamos disso.

Mas, a convivência com militares traz surpre-sas para Graciliano. Ele descobre que a solidarie-dade não é atributo de classe, de raça, de cate-goria profissional, dos militares ou dos paisanos.Ele descobre o ser humano, em sua condição deser humano. Sem rótulos. Antes de embarcar deRecife para o Rio de Janeiro, o capitão Lobo osurpreende com a oferta de empréstimo, paraprover necessidades futuras nas próximas ca-deias. Diante de fato surpreendente, reage comhumildade: realmente a desgraça nos ensinamuito; sem ela eu continuaria a julgar a huma-nidade incapaz de verdadeira nobreza.

Deportado para o Rio de Janeiro, com umabreve passagem por Recife, permaneceu preso até1937. Sem culpa formada. Ele próprio admite suahesitação em traduzir em texto a experiência. Tantoassim que demorou quase 10 anos a fazê-lo. Jus-

tifica o ato de escrever as memórias de um temposombrio: resolvo-me a contar, depois de muita he-sitação, casos passados há dez anos. Escreverei tal-vez asperezas, mas é delas que a vida é feita. Elefora preso por culpa de pensamento, por escreverlivros perigosos. Minhas armas fracas e de papelsomente podiam ser manejadas no isolamento.

A memória daqueles episódios, além de pos-sibilitar a reflexão sobre evento singular de nossahistória política, nos oferece a oportunidade delançar um olhar crítico sobre o Século XX do qualeste conflito é apenas um dos episódios. Ele tevecomo marca central a disputa entre comunistas eanticomunistas. No Brasil, como lá fora, a dispu-ta capitalismo X socialismo dividiram corações ementes. A disputa entre os dois projetos de socie-dade trouxe a guerra fria e a reforma do capita-lismo produziu o estado de bem estear social.A rememoração dos eventos de 1935, traz devolta um tempo em que as disputas políticaseram balizadas por utopias.

O episódio de 35 forneceu as bases polí-ticas e sociais para a forte tradição antico-munista na sociedade brasileira. Tradição quese alimentou da difusão de versões apócrifassobre 1935, divulgadas pelo Estado e pelopensamento conservador. O conjunto de re-presentações sobre o evento produziu um vi-goroso imaginário anticomunista, que desdeentão, pontua negativamente o espaço da po-lítica. As construções em torno da Insurrei-ção Comunista, forjaram os pilares do agres-sivo anticomunismo brasileiro, respaldandoatitudes repressivas contra ações e práticasde esquerda em nosso país.

Hoje, 70 anos depois, vivemos em umoutro mundo. A ausência de utopia atingiufortemente as instituições tradicionais de re-presentação como Partidos e Sindicatos. Acrise da esquerda ampliou-se. O século XXdestruiu as certezas ao evidenciar a crise doprojeto civilizatório. Crise dos paradigmas,fim das grande narrativas, emergência damídia como criadora de uma nova historici-dade. Esses acontecimentos vão alterar pro-fundamente a vida política das sociedades. Nocontexto da crise da modernidade, fez-se tá-bula rasa das conquistas sociais e econômi-cas resultantes de mais de cem anos de lutassociais, vistas agora como arcaísmos e entra-ves à nova ordem neo-liberal. As idéias detradição, memória, passado, experiênciacedem lugar à efemeridade dos saberes e àfragmentação do social.

Tudo isso conduz ao estranhamento daInsurreição de 1935, um evento da épocaem que a luta pelo socialismo enchia omundo de esperança. Mas, para além deavaliações e julgamentos, erros e acertos,vale a pena lembrar um tempo em que a ca-pacidade de sonhar e de lutar pela utopiade um outro Brasil mobilizava homens emulheres, letrados, e trabalhadores bra-çais. Afinal, apesar de todas as mudançaspermanece a certeza de que é a partir daação dos homens e mulheres, que se dáforma à sociedade. Portanto, sempre serátempo de mudar o mundo mudado.

Brasília Carlos Ferreira é Professora do Depto

de Ciências Sociais da UFRNEliezer, Macedo e Galvão, secretários de Estado, foram presos e condenados há 10 anos

NATAL, TERÇA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO DE 2005DN EDUCAÇÃO8

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