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Sessão de Narrativas

NOVOS VENTOS

Ana Beatriz de Paiva Costa Barroso*[email protected]

VIS, IdA/UnB

ResumoA montagem audiovisual Novos Ventos traz uma seqüência de quatro narrativas independentes sobre a temática da reinvenção do humano. A primeira apenas introduz o assunto, mostrando rapidamente imagens que mal conseguimos dis-tinguir e fazendo pausas em algumas, para que possamos senti-las. A segunda reinventa duas obras modernistas brasileiras. A terceira, mais longa, trata da reinvenção discreta e diária da paisagem cotidiana, realizada por plantas e som-bras percebidas em fotossínteses e vestígios. A quarta, finalmente, chega à pes-soa, mostrando como a arte nos reinventa.

Palavras-chave: mudança; fotossíntese; natureza; arte; fotomontagem

Abstract The audiovisual montage New Winds shows a sequence of four independent narratives on the theme of the reinvention of the human. The first one only in-troduces the subject, showing images so quickly that we can scarcely distinguish one from another, but pauses here and there, so we can feel them. The second reinvents two Brazilian modernist painting works. The third, the longest one, deals with discrete, daily reinvention of plants and shadows, visible in photosyn-thesis and traces of light. The fourth, finally, reaches the person, showing how art reinvents us.

Keywords: changing; photosynthesis; nature; arte; photomontage

Contextualização

Minha pesquisa se insere na perspectiva da montagem. Como prática, esta não é nova, mas é no apagar das luzes da modernidade, no seio das van-guardas modernistas, que a montagem eclode com força na beleza da fotografia surrealista, da pintura cubista, da poesia dada (dadaísta). Concomitantemente, alguns cineastas, em especial Lev Kulechov e Serguei Eisenstein1, inventam, ex-perimentam, teorizam e escrevem sobre um outro tipo de montagem, ligada à

* Doutora em Comunica-ção (FAC/UnB). Sua tese mostra como artistas das vanguardas européias interagiram com a força mediática e que conse-qüências isso nos traz. No mestrado em Arte e tec-nologia da imagem (IdA/UnB), trabalhou sobre a obra de Athos Bulcão. É graduada em Comu-nicação pela FAC/UnB. Atualmente, desenvolve pesquisa em arte e edu-cação. Mantém um ateliê aberto na rede, em http://abeatrizb.blogspot.com1 Cf. EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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idéia de justaposição seqüencial de quadros fotográficos em movimento. Mais do que se preocupar com os aspectos semânticos e narrativos da junção das partes de um filme, visando a criação de um sentido – o que à época vinha sendo construído na América do Norte pelas hábeis mãos de D. W. Griffith -, os russos estavam interessados nos aspectos estéticos, mais nucleares, da justaposição de fotogramas: que sensações eles causavam juntos e separados no tempo, vistos um depois do outro? De contraste, de contradição, de mascaramento, de reifica-ção? Um pequeno conjunto de fotogramas não valiam por si, mas eram alterados (em termos de sentido) por sua relação com os outros, os que lhes antecediam ou lhes seguiam, e desse todo é que se depreendia a sensação que o filme exa-lava. Na relação das partes entre si e das partes entre o todo estaria a estética, a beleza ou a força dessa nova forma de arte, o cinema, ainda que estruturado, naquele momento histórico, no encadeamento semântico das partes, capaz de assegurar a compreensão da narrativa.

Na pós-modernidade, percebemos a arte como um conjunto de chaves de abertura para novas dimensões da realidade e não apenas como um conjunto sistematizado de técnicas de representação, sejam elas idealistas, realistas, etno ou egocêntricas. Multiplicam-se a olhos vistos formas expressivas envolvendo as mais diversas modalidades artísticas, num processo irresistível de estetiza-ção do cotidiano, ou presenteísmo2. Uma dessas formas, que foi paulatinamente se instituindo e conquistou grande popularidade na cibercultura, é o slide show. Trata-se de uma seqüência de fotos que se alternam ao som de uma música. Eventualmente, frases e dizeres se mesclam ao conjunto. Não se trata de cine-ma, nem de vídeo, nem de fotografia, quanto menos de pintura, mas de algo que pode ser apreendido a partir da noção de montagem, que perpassa todas essas linguagens artísticas, sendo especialmente preciosa ao cinema, como aludimos acima, ao vídeo televisivo e às estéticas surrealistas, cubistas e dadaístas, por favorecer o livre jogo de associações de idéias, as colagens de fragmentos e ca-cos, e por quebrar a ilusão dos sentidos fechados, jogando-nos de frente para o absurdo, para a imprevisibilidade da vida.

Essa noção de montagem conhece pelo menos duas variações no âm-bito técnico. Uma a liga à idéia de composição e reincide no plano do quadro, da imagem estática, e da articulação de seus elementos; podemos chamá-la de montagem visual. Outra a liga à idéia de composição musical, que se dá na linha do tempo e na sucessão dos acontecimentos (filmados, tocados ou gravados) – podemos chamá-la de montagem audiovisual. O trabalho que aqui apresento,

2 Cf. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

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Novos Ventos, explora ambas vertentes da noção de montagem, a visual e a au-diovisual, ora fundindo fotos, ora entrando em pinturas, ora propondo narrativas abertas, de sentido fluido e quase fugidio.

Sobre Novos Ventos

No primeiro movimento, procurei sublinhar o problema da velocidade e do ritmo frenético da sucessão de imagens, corriqueiro na cultura contemporâ-nea. Em meio a essa superabundância do visual, parece-me necessário reinven-tar nossa capacidade de ver e sentir imagens, parar para pensá-las, tomá-las nas mãos, apreciá-las. Sei que a própria idéia de contemplação está aparentemente fora de moda, mas ela me parece essencial. Essa capacidade de ver e de entrar em sintonia com o que vemos, ou seja, de contemplar, suspende a ordem linear do tempo moderno, aflito e objetivo, permite-nos entrar no instante, comunicar-mo-nos ou dialogar em silêncio com pessoas, coisas, formas, sons. Pretendi criar pausas desse tipo no meio da exposição rápida, quadro a quadro, de imagens que mal conseguimos perceber.

O segundo movimento é composto por duas intervenções digitais, uma na obra Pipas, de Cândido Portinari, outra no quadro Paisagem de Santo Ama-ro, de Anita Malfatti. Na primeira, quis acentuar a sensação de leveza (tão boa) que aquela pintura me traz. Multipliquei as pipas, rebati-as horizontal e verti-calmente, para que o chão se fizesse também céu, e alterei a chave cromática original, puxando tudo para o rosa. Já na Paisagem de Santo Amaro, imaginei um crescimento populacional e urbano. Acrescentei várias casinhas e uma ár-vore à cena originalmente retratada, procurando mostrar no plano simbólico a mudança, nem sempre inventiva, que operamos nas paisagens naturais. Não se trata aqui de releitura, mas de interpretação ou leitura poética3 de dois clássicos do modernismo brasileiro.

A terceira narrativa, inspirada em Jorge Luis Borges4, gira em torno dos duplos, das dualidades, da sombra e da luz, das plantas e das coisas. A idéia não é realçar dicotomias, mas sim o caráter pacífico das convivências amorosas, do estar junto, dos pares e múltiplos que não se misturam, guardam suas individu-alidades e idiossincrasias, mas ao mesmo tempo se dissolvem no espaço e no tempo comuns, compartilhando suas vivências anódinas, participantes de algo maior e incompreensível.

3 Cf. BACHELARD, Gaston. La poétique de la rêverie. 4. ed. Paris: Quadrige / PUF, 1993.4 Cf. BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Finalmente, o quarto movimento se apresenta como o mais explicitamente narrativo. A história de Seu Atanázio é contada, verbalmente, em poucas linhas, antes do filme começar. O leitor, já de posse do sentido assim revelado, pode se entregar à fruição estética das fotomontagens ao som do berimbau, criando or-dens de significação mais soltas e despojadas. Junto a isso, a própria história de Seu Atanázio nos faz pensar nessa potência de transformação de realidades que é arte, capaz de reinventar histórias e vidas, humanizando-nos renovadamente a cada dia, em imaginações e gestos.

Bibliografia

BACHELARD, Gaston. La poétique de la rêverie. Paris: Quadrige / PUF, 1993.

BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.