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2009 LITETU NORTE-AMERICANA Anderson Soares Gomes

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2009

LITERATURANORTE-AMERICANA

Anderson Soares Gomes

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

©2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Júpiter Images

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G612L

Gomes, Anderson SoaresLiteratura norte-americana / Anderson Soares Gomes. – Curitiba, PR: IESDE

Brasil, 2009.216 p.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-387-0383-9

1. Literatura americana - História e crítica. 2. Literatura americana - Aspectos sociais. 3. Literatura e história - Estados Unidos. 4. Estados Unidos - História. 5. Cul-tura - Estados Unidos. I. Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino. II. Título.

09-2430 CDD: 810.9CDU: 821.111(73).09

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Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Ba-charel em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Anderson Soares Gomes

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Sumário

Literatura colonial e a América puritana .......................... 11

A chegada do Mayflower ........................................................................................................ 12

O estabelecimento das treze colônias ............................................................................... 14

A literatura colonial: o puritanismo e o Great Awakening ........................................... 18

O período revolucionário ...................................................... 29

Os conflitos com a Inglaterra e a luta pela independência ........................................ 29

Os “Pais Fundadores” ................................................................................................................ 33

Os textos revolucionários ....................................................................................................... 37

A prosa romântica .................................................................... 47

O ideal romântico e a construção da identidade norte-americana ........................ 47

O transcendentalismo ............................................................................................................. 52

A inspiração gótica ................................................................................................................... 59

A poesia romântica .................................................................. 69

A poesia de Edgar Allan Poe .................................................................................................. 69

Walt Whitman: a busca por uma voz norte-americana ............................................... 73

Emily Dickinson: a poesia de cunho metafísico ............................................................. 76

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A Guerra Civil e a literatura correspondente .................. 87

Diferenças entre o norte e o sul dos EUA.......................................................................... 87

A escravidão e os textos abolicionistas ............................................................................. 90

Consequências do conflito: textos literários de temática da Guerra Civil ............ 95

O Realismo norte-americano .............................................103

As mudanças socioeconômicas .........................................................................................104

Uma voz nacional: Mark Twain ...........................................................................................107

O Naturalismo ...........................................................................................................................112

Henry James: a literatura entre os Estados Unidos e a Europa ...............................116

A prosa norte-americana na 1.ª metade do século XX ................................................125

F. Scott Fitzgerald e a Jazz Age ............................................................................................126

Ernest Hemingway e a precisão da escrita .....................................................................130

William Faulkner e a tradição sulista ................................................................................133

John Steinbeck e a Grande Depressão ............................................................................136

A poesia norte-americana na 1.ª metade do século XX ................................................147

Robert Frost: a natureza como poesia .............................................................................147

T.S. Eliot & Ezra Pound: trilhando caminhos modernos .............................................151

Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil ..................................................................158

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O teatro e as vertentes da prosa norte- -americana na 2.ª metade do século XX ........................167

O teatro de Arthur Miller e Tennessee Williams............................................................168

A ascensão da literatura afro-americana ........................................................................174

Inovações na prosa: J.D. Salinger e New Journalism ...................................................178

Possibilidades de ensino de literatura norte-americana no ensino médio ..................................189

A obra literária como produto de um momento histórico .......................................190

Abordagens para o ensino da literatura norte-americana .......................................194

Gabarito .....................................................................................205

Referências ................................................................................213

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Apresentação

No mundo contemporâneo, onde a cultura norte-americana se encontra prati-camente onipresente nas formas de expressão ocidentais, é cada vez mais im-portante investigar as maneiras através das quais os Estados Unidos se desenvol-veram (historicamente, socialmente e artisticamente) de colônia inglesa à maior potência mundial.Tal desenvolvimento pode ser visto especialmente através de sua literatura. É na literatura norte-americana que podemos aquilatar a quase totalidade do proces-so histórico cultural dos Estados Unidos. A partir de seus principais textos (fic-cionais ou não) e do pensamento de seus autores mais significativos, é possível compreender como a identidade norte-americana foi sendo construída através dos séculos.Este material, portanto, se propõe como um estudo das mais relevantes obras literárias produzidas nos Estados Unidos numa perspectiva histórico-social, para assim se traçar um panorama do “homem norte-americano” – seus valores, suas formas de expressão e sua visão de mundo.Veremos neste trabalho a criação de um ideal para a América através da literatura, começando com a saída dos peregrinos da Inglaterra e seu estabelecimento nas treze colônias. Analisaremos então o processo de independência norte-america-no, suas ideologias, seus principais nomes e textos. Assim, vamos estudar como se deu a consolidação dos Estados Unidos através da literatura, passando pelo período da Guerra Civil, o Romantismo e o Realismo. Por fim, no século XX, trata-remos da ascensão de novos estilos literários que se tornaram essenciais para o reconhecimento da escrita norte-americana como uma das mais representativas da contemporaneidade.O presente trabalho também abordará como a literatura dos Estados Unidos se relaciona com outras formas de representação artísticas, como o cinema, a música e o teatro. Dessa forma, será possível estabelecer uma ampla perspectiva das mu-danças e do desenvolvimento da cultura norte-americana.Que este trabalho sirva de inspiração e estímulo para que futuros profissionais da área de Letras possam, de forma crítica e complexa, percorrer os sinuosos – porém enriquecedores – caminhos traçados pelos principais nomes da literatura produzida nos Estados Unidos.

Anderson Soares Gomes

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Literatura colonial e a América puritana

Refletir sobre as expressões literárias da cultura norte-americana é, mesmo que de forma subconsciente e intrínseca, refletir sobre a própria natureza do nome do país que lhe deu origem.

Os Estados Unidos da América são um país que já em seu nome, no plural, prenunciam uma natureza múltipla e variada, indicador que a for-mação de seu território, seu povo e sua identidade foi construída através da união de objetivos comuns e superação de diferenças. Uma das poucas nações do mundo reconhecida por uma sigla (EUA, ou “USA” em inglês), os Estados Unidos também têm por hábito referirem-se a si próprios como “América”, e seus cidadãos como americanos.

Se o fato de se intitular “América” acaba gerando uma insatisfação por parte de seus vizinhos da América Central e da América do Sul, não há como negar que os Estados Unidos acabaram criando um novo significa-do para o termo “América”, que ultrapassa os limites geográficos: a Amé-rica é a terra da democracia, da liberdade individual e da oportunidade. É claro, contudo, que nem sempre foi assim. Apesar de existirem evidências de que o território da América do Norte já havia sido visitado pelos vikings no século IX, é apenas com Cristóvão Colombo, em 1492, que a Europa finalmente descobre o novo continente.

A Inglaterra a princípio ocupa um papel secundário na ocupação da América, já que Portugal e Espanha tomam para si a maior parte do ter-ritório. Inicialmente, os ingleses se dedicam à pirataria, roubando ouro e prata de navios espanhóis e portugueses. Posteriormente, no entanto, a Inglaterra concentra-se na exploração e investigação do território do Novo Mundo.

Primeiramente com John Cabot e depois com Walter Raleigh (que nomeia a região a que chega de Virgínia, em homenagem à rainha Elizabeth I, a “rainha virgem”), há uma tentativa real de colonização da América do Norte por parte dos ingleses. Porém, as situações extremas a que esses primeiros colonos foram submetidos (doenças, ataques de nativos, fome) puseram fim a esse primeiro esboço de uma colônia de domínio inglês na América.

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Literatura Norte-Americana

Com outro monarca no poder (James I), a Inglaterra tenta novamente implan-tar uma colônia na América. A estratégia e a natureza desta nova empreitada, no entanto, são diferentes daquelas usadas durante o reinado de Elizabeth I. Ao invés de nobres desbravadores, esses novos colonizadores eram representantes de empresas inglesas que, num esquema pré-capitalista, tinham autorização da Coroa para explorar as terras do Novo Mundo. Assim, os ingleses finalmente al-cançam o sucesso em seu processo de colonização e uma nova fase começa para a América do Norte.

A chegada do MayflowerO primeiro povoado inglês de caráter permanente na América do Norte foi

Jamestown (assim chamado em homenagem ao rei James I), na Virgínia em 1607. Patrocinado pela Virginia Company of London, Jamestown tem outro significado muito especial: um dos colonos do povoado foi John Smith (1580-1631), um dos mais importantes personagens da história colonial norte-americana.

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púb

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John Smith.

John Smith foi um capitão inglês que, através de seus textos e sua fabulosa biografia, definiu o perfil dos primeiros colonos americanos: aventureiro, des-

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Literatura colonial e a América puritana

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temido e promotor das belezas e das promessas do Novo Mundo. Em sua pro-dução textual sobre a América (de cunho notadamente propagandista, já que havia enorme interesse em atrair mais e mais colonos ingleses para o novo con-tinente), Smith cria cenários, eventos e personagens de natureza quase mítica, que servem de fundação não só para a literatura, mas também para a identidade norte-americana. A América de John Smith é a “terra de oportunidades”, expres-são que até hoje ecoa na mente daqueles que buscam nos Estados Unidos um horizonte para um futuro de prosperidade.

O trabalho mais significativo de Smith é The General History of Virginia. Esta obra, escrita quando Smith já havia retornado à Europa, serve não só como re-gistro de sua permanência na colônia, mas também como artifício para tornar o novo continente um lugar atraente para prováveis novos exploradores. É com esse trabalho que Smith consolida a visão da América como o lugar da riqueza abundante, da vida selvagem, dos prazeres e da liberdade individual.

Também é em The General History of Virginia que John Smith conta uma das mais famosas narrativas da história norte-americana: sua aventura romântica com a índia Pocahontas. O livro relata como Smith foi capturado por índios li-derados pelo chefe índio Powhatan e feito prisioneiro. Pouco antes de ser morto pelos indígenas, a filha de Powhatan, Pocahontas, se coloca entre Smith e os índios e salva o capitão inglês da morte. A partir daí é construída uma narrativa que indica uma história de amor entre os dois, já que a princesa indígena se torna responsável por um maior contato entre sua tribo e os ingleses. Essa his-tória de amor, no entanto, não tem um final feliz: Pocahontas se casa com outro homem – um agricultor inglês – e vai para a Inglaterra, aceitando a fé cristã. Diz-se que lá viveu infeliz, alimentando um desejo de retornar à América até o momento de sua morte.

Atualmente, por mais que a história de John Smith e Pocahontas seja questio-nada por historiadores, e que muito da narrativa de The General History of Virginia seja vista como ficção, não há como negar que o possível amor entre o capitão inglês e a princesa indígena representou, de forma mitológica, a possibilidade de união e prosperidade entre povos tão diferentes nesse Novo Mundo.

Os textos de John Smith sobre essa nova terra repleta de riquezas e oportu-nidades em muito serviam para criar expectativas em futuros colonos. Contudo, essa produção de literatura propagandista não foi a única razão para a ida de ingleses para a América. Na Inglaterra, o crescimento das cidades com o êxodo rural estava criando um excedente de mão de obra que não interessava à Coroa. Órfãos e pessoas muito pobres (indo trabalhar em condições de semiescravidão)

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também partiam em direção ao Novo Mundo. A ida de ingleses para a América não era apenas uma busca por melhor qualidade de vida, mas também uma fuga da situação econômico-social predatória em que se encontravam as classes menos favorecidas.

Outro fator importantíssimo para a ida de ingleses para o novo continente foi a perseguição religiosa. A Inglaterra, desde o reinado de Henrique VIII, tem o anglicanismo como sua religião oficial. A criação da igreja anglicana coloca diferentes grupos religiosos em conflito com a Coroa inglesa, em especial os pu-ritanos, assim chamados porque acreditavam numa igreja mais simples e pura, e que tinham como base os textos de Calvino escritos durante a Reforma Protes-tante. Exercer sua fé na Inglaterra se tornava cada vez mais difícil, já que aqueles que não praticavam a religião anglicana passaram a ser perseguidos, sendo pu-níveis até mesmo com a pena de morte. Depois de uma tentativa fracassada de estabelecimento na Holanda, os seguidores do puritanismo partem então para o Novo Mundo.

Em 1620 chega ao porto de Plymouth, em Massachusetts, o Mayflower – navio inglês que traz o primeiro grupo de “peregrinos” para o novo continente. Esses colonos, conhecidos historicamente como Pilgrim Fathers (Pais Peregrinos) serão responsáveis por formar a primeira fase da identidade norte-americana e seus ensinamentos permanecem no imaginário dos Estados Unidos até hoje.

Esses peregrinos chegam à America determinados a fazer da América a “Terra Prometida”, um novo começo para a história e para sua religião. Ao mesmo tempo buscando a concretização de sua fé e um despertar de um novo ideal de sociedade, esses peregrinos – assim chamados porque acentua sua natureza religiosa – são os pastores, professores e empreendedores responsáveis pelo su-cesso da colonização na América do Norte.

O estabelecimento das treze colôniasÉ preciso fazer uma importante distinção aqui no que concerne à colonização

ibérica (Portugal e Espanha) e à colonização inglesa. Portugueses e espanhóis tinham um modelo de conquista do novo território claramente mais explorató-rio, o que fazia com que as regiões sob o seu controle (a América Central, a Amé-rica do Sul e até mesmo algumas partes da América do Norte, como a Flórida) fossem vistas como grandes áreas de extração de riquezas para serem enviadas para a Europa. A colonização inglesa na América do Norte, por outro lado, tinha

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como objetivo central o povoamento daquela região, especialmente porque a partir da chegada do Mayflower, as pessoas que chegavam àquela terra pouco conhecida estavam em busca de um novo recomeço, longe das problemáticas religiosas que tanto sofriam no velho continente. A terra é conquistada para se morar nela.

No entanto, pode-se dizer que esses diferentes modelos de colonização não eram em sua totalidade apenas de exploração ou apenas de povoamento. Nas regiões controladas por portugueses e espanhóis, mesmo para extrair o ouro, a prata ou pau-brasil, existia a necessidade de criação de cidades (como o Rio de Janeiro ou a Cidade do México) e a miscigenação dos povos em muito contri-buiu para a criação de uma nova identidade nacional. Já nas colônias inglesas, o povoamento da região foi especialmente difícil, já que não havia um suporte do Estado como na colonização ibérica (a viagem era feita por companhias particu-lares) e não haviam riquezas abundantes facilmente encontráveis. Apenas anos depois, com a expansão para o oeste americano e com a descoberta de ouro e petróleo, o caráter exploratório da ocupação da terra se intensifica.

O início da colonização por parte dos peregrinos foi bastante difícil. Os inver-nos eram bem rigorosos na região e vários colonos morriam de frio e de fome. Além do mais, os variados conflitos com os nativos indígenas ainda era um fator extra de perigo que os colonos tinham de lidar.

Mesmo assim, o embrião dos Estados Unidos se expande: mais e mais colo-nos chegam à América, fugindo da perseguição religiosa, buscando melhor con-dição econômica ou simplesmente em busca de um novo começo numa terra inexplorada. Na Baía de Massachusetts, em 1630, ocorre uma imensa imigração puritana que consolida de vez o protestantismo de Calvino por quase todo o território. Outras regiões, porém, eram adeptas de outras religiões: em 1633, é fundado na colônia de Maryland um povoado seguidor do catolicismo; em 1681, William Penn funda na Pennsylvania uma colônia onde a população segue os preceitos da doutrina Quaker.

Mesmo entre os protestantes calvinistas existiam diferenças que levaram à expansão do território. Roger Williams, por exemplo, era um puritano em desa-cordo com a íntima ligação entre a esfera política (o Estado) e a esfera religiosa (o puritanismo) existente na região de Massachusetts. Ele parte em exílio e funda uma nova colônia – Rhode Island.

Essa diversidade religiosa, ao contrário do que poderia imaginar, em muito contribuiu para a necessidade de tolerância entre os territórios e a aceitação das

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diferenças religiosas. Assim, cada cidadão tinha o direito de exercer sua liberdade religiosa sem correr o risco de sofrer perseguição e discriminação – exatamente a razão primordial da saída desses peregrinos da Europa, daí a necessidade de evitar o mesmo erro que os ingleses.

Com a chegada de mais e mais colonos e a criação de novos territórios, os Es-tados Unidos se expandem e então seu território se estabelece no que é chama-do de “treze colônias”. É interessante notar que, diferentemente do que aconte-ceu com outras regiões (como o Brasil, por exemplo), não há apenas uma grande colônia sob domínio de uma nação europeia. O que existe é uma extensa região que consiste em treze colônias distintas, cada uma com suas peculiaridades e características – fator que em muito vai influenciar a história e a literatura dos Estados Unidos até hoje.

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Mas nem só de colonos europeus e puritanos consistiam os Estados Unidos. Essa parte da população é o que se costumou chamar de WASP, sigla que signi-fica White-anglo-saxon-protestant (branco-anglo-saxão-protestante). Membros desse grupo acabaram constituindo a parte mais rica e representativa do país, deixando outras partes da sociedade à margem do progresso norte-americano.

Embora a chegada dos “Pais Peregrinos” tenha dado um impulso desenvol-vimentista à América do Norte, existiam outros grupos também responsáveis pela criação dos Estados Unidos – através de uma cultura, um estilo de vida e uma visão de mundo bem distinta daquela apresentada pelos puritanos vindos da Inglaterra. Talvez o mais importante desses grupos seja o dos índios norte- -americanos, atualmente chamados de Native-Americans (Nativos-Americanos). Como o próprio nome já indica, eles eram nativos da terra e já se encontravam no território da América do Norte bem antes da chegada dos primeiros coloni-zadores europeus.

O conhecimento que temos hoje da sociedade e da cultura do índio nativo norte-americano passa inevitavelmente pelo olhar que o homem branco lançou sobre ele assim que chegou à América. Portanto, é importante que a leitura de textos que tratem do encontro entre colonizadores e indígenas sempre seja feita com um olhar crítico, levando em consideração não só o período histórico, mas também os interesses envolvidos.

Em The General History of Virginia, John Smith fala dos índios utilizando termos como “bárbaros” e “selvagens”, enfatizando a natureza pagã e violenta dos nativos, enquanto descreve a si mesmo sempre envolto em termos cristãos. Esse estilo narrativo é ainda mais notório no episódio em que é salvo da morte por Pocahontas, como se Smith fosse uma espécie de “novo salvador” posto em calvário.

Essa visão do indígena como selvagem por muito perdurou no imaginário nor-te-americano. Dentre as várias razões para isso, está o fato de os colonos ingleses não terem interesse em catequizar os nativos, como ocorreu no Brasil por exem-plo. Os índios eram sempre mantidos à distância, e o contato com eles era feito apenas no que se relacionava à troca ou compra de mercadorias. Quando se deu a expansão para o oeste norte-americano, a relação entre nativos e colonizadores alcançou seu ponto mais conflituoso, com o extermínio de milhares de indígenas.

Felizmente, boa parte da cultura indígena foi preservada, especialmente atra-vés da ficção mantida inicialmente através da tradição oral (histórias passadas de geração em geração), que posteriormente serviriam como base para o sur-gimento da native-american literature (literatura nativa-americana). Várias das

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Literatura Norte-Americana

obras da literatura indígena norte-americana têm origem anônima, e misturam mitos de criação de heróis com a própria história da sociedade nativa. Diferentes tribos também possuem diferentes histórias de criação do mundo e do universo, como a Gênese da tribo Blackfeet.

Outro grupo cuja importância é crescente nesse período inicial da coloniza-ção dos Estados Unidos é o dos negros, cuja presença na América se fazia atra-vés da escravidão. Eles vinham trazidos por navios ingleses que partiam para a África, capturavam os escravos e os deixavam nas colônias americanas, para lá buscar algodão, tabaco e outros produtos. A escravidão na América durou até 1861, mas até lá os negros viviam em condições degradantes de servidão, já que não eram considerados capazes das mesmas atividades sociais e intelectuais que os brancos e, portanto, não merecedores do termo cidadão.

Esses grupos, todavia, permanecem sempre à margem da sociedade branca e protestante, que espalha por todas as treze colônias seu estilo de vida e seus ideais de sociedade. Sociedade esta cuja mais importante característica é a pre-sença da crença religiosa puritana em todas as esferas, da política ao lazer. É o puritanismo que molda a vivência dos cidadãos dos Estados Unidos e serve de impulso para os primeiros textos escritos em solo norte-americano.

A literatura colonial: o puritanismo e o Great Awakening

O puritanismo é a força motriz da sociedade norte-americana. É através dos ideais norte-americanos que os primeiros peregrinos constroem não só escolas, igrejas e universidades: eles constroem também uma ideia da América. Os Esta-dos Unidos são mais do que um novo lar para esses colonos – são uma região onde eles finalmente poderão construir a “nova Canaã” bíblica, já que eles acre-ditam ser as pessoas escolhidas por Deus para concretizar um reino de prosperi-dade na terra seguindo fielmente às leis cristãs.

Na Europa, os puritanos muito sofreram com a perseguição religiosa, já que como adeptos do protestantismo calvinista, renegavam a doutrina do catolicis-mo e do anglicanismo, as duas religiões predominantes da Inglaterra. Vários pu-ritanos chegaram a ser torturados e até mesmo enforcados por exercer a sua fé.

Mesmo dentro de sua própria religião, existiam diferenças nas formas com que as pessoas deveriam seguir os ensinamentos da Bíblia. Isso se dava porque, diferen-

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temente do catolicismo (em que predomina uma interpretação dos textos bíblicos e se deve respeitar a palavra do Papa), o puritanismo admite leituras pessoais e individuais da Bíblia, fazendo com que formas de entendimento distintas surjam de mesmos textos religiosos. Assim, dentro do movimento puritano surgem dife-rentes segmentos como os amish e os quakers, que possuem uma outra visão de como as lições das parábolas da Bíblia devem ser incorporadas no seu cotidiano.

Alguns preceitos religiosos estabelecidos por Calvino, entretanto, estavam presentes na maior parte da sociedade puritana, dentre eles, a ideia de que o pecado original manchou toda a existência humana, e por isso o homem era na-turalmente corrupto e sujeito à maldade. Os puritanos também acreditavam que o sacrifício de Jesus acabou por garantir o perdão de Deus, mas esse perdão não é estendido a todos os homens – só alguns eleitos o ganhariam. Além disso, é clara no puritanismo a ideia de que Deus escolhe, desde o princípio dos tempos, aqueles que vão para o céu e aqueles que vão para o inferno.

É interessante comparar e contrastar os dogmas puritanos e católicos, espe-cialmente ao considerarmos como a influência religiosa se fez tão presente no período colonial das Américas. De forma geral, o catolicismo se volta mais para o mundo após a morte, em que Deus julga-nos pelos atos que tivemos em vida. Já a vida puritana se concentra nas provas terrenas da benção de Deus, através do trabalho e da prosperidade.

O puritanismo também acredita que o bom cristão é aquele que vive bem com os frutos do trabalho, produzindo, através de seu esforço e seus méritos, seus meios de subsistência e conforto. Para o catolicismo, existe uma visão subjacente de que o trabalho é punição, e de que a riqueza carrega em si um estigma negativo, uma culpa.

Essas crenças calvinistas estiveram presentes em diversos estágios da coloni-zação dos Estados Unidos. Os puritanos construíram seus vilarejos e depois suas cidades acreditando que assim estariam realizando, através de seu trabalho, o desejo de Deus de criar um novo paraíso, onde os homens viveriam seguindo as leis bíblicas. Assim sendo, o próprio governo tinha o dever de fazer as pessoas obedecerem à vontade divina. Existiam leis, por exemplo, que obrigavam as pes-soas a irem à igreja, ou que puniam adúlteros.

Tal comunhão entre religião e governo foi crucial para que um episódio como o dos julgamentos das bruxas no vilarejo de Salem fosse permitido. Um dos mais vergonhosos momentos da história dos Estados Unidos, a série de julgamentos e execuções de dezenas de colonos por bruxaria ocorridos em

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Literatura Norte-Americana

Salem, Massachusetts, hoje é visto como consequência dos excessos da presença puritana na administração das colônias.

Por outro lado, esse sentido de autodeterminação e trabalho recompensado ajudou a estabelecer ideais de independência e liberdade que os norte-america-nos consideram seus principais legados para o mundo ocidental. É através da ex-periência puritana, com sua promessa de felicidade e recomeço, que os Estados Unidos se formam sob a égide (amparo) do american dream (sonho americano) – em linhas gerais, a ideia de que qualquer pessoa, não importa o seu passado ou condição social, pode ser bem-sucedida.

É através da literatura que os homens e mulheres recém-chegados a essa nova terra de oportunidades, mas também de perigos, iriam definir a América. As colônias seriam o local onde não só a fé puritana seria testada, mas também a língua inglesa e suas narrativas. Com seus textos, os primeiros escritores dos Estados Unidos procuravam compreender e descobrir a natureza e os propósitos desse novo mundo que se apresentava a eles.

Uma das figuras mais proeminentes deste período inicial foi William Bradford (1590-1657). Eleito governador da colônia de Massachusetts por várias vezes, Bradford também tem uma enorme importância histórica por ser um dos ideali-zadores do chamado Mayflower Compact, o primeiro documento oficial compos-to pelos peregrinos da colônia de Plymouth.

A mais importante obra de William Bradford, contudo, foi Of Plymouth Plan-tation, um diário pessoal escrito entre 1620 e 1647, narrando a permanência dos colonos na região de Massachusetts. O diário de Bradford conta a história da partida do Mayflower, a difícil viagem, sua chegada na América e o posterior povoamento e desenvolvimento da colônia.

Of Plymouth Plantation é uma obra extremamente rica por dois motivos fun-damentais. Primeiramente, porque é o mais vívido e detalhado documento des-crevendo o cotidiano, os problemas e o progresso em uma das mais importantes das treze colônias no século XVII; a outra razão para a natureza complexa dos escritos de Bradford é a mescla desse aspecto factual com os comentários e as interpretações do autor, o que leva a um entendimento mais completo do perío-do. Dessa forma, enquanto do ponto vista histórico, Of Plymouth Plantation pode ser considerada como anais do período colonial; do ponto de vista literário os diários de William Bradford são um material que atestam o estilo e a linguagem de formação da literatura norte-americana.

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O subtexto dos escritos dos diários indica uma forte influência dos ideais do protestantismo calvinista, especialmente no que concernem aos objetivos puri-tanos para a América. A narrativa de Bradford em muito lembra as grandes nar-rativas bíblicas, com a busca da Terra Prometida pelo povo eleito, sendo guiado pela mão divina em sua longa jornada.

O estilo e a linguagem dos escritos de Of Plymouth Plantation é aquele ca-racterístico de todas as expressões artísticas realizadas por puritanos: simples e livre de adornos. Bradford afirma que seus relatos vão atestar apenas a “simples verdade”. Essa crença na unicidade dos fatos e no que é naturalmente verdadeiro é um reflexo da presença dos ensinamentos da Bíblia no raciocínio do puritanis-mo, em que é bem clara a distinção do que é certo e errado.

Como o próprio William Bradford pôde ver posteriormente, contudo, a verda-de não se mostrou de forma tão simples assim. À medida que os colonos se es-tabelecem de forma mais bem sucedida na América e novas gerações sucedem os “Pais Peregrinos”, a criação de uma estrutura comercial e lucrativa, o acúmulo de terras e a busca pelo sucesso econômico são para o autor um distanciamento do sonho de uma comunidade perfeita sob as leis de Deus.

Assim, ao final de Of Plymouth Plantation, a escrita de Bradford adquire um tom de lamento e decepção, já que mais e mais as ações das novas gerações se afastam dos ideais dos primeiros puritanos que desembarcaram do Mayflower. Sobre essa nova perspectiva da vivência puritana nas treze colônias, o escritor Malcolm Bradbury afirma:

The puritans persist in writing for themselves a central role in the sacred drama God had designed for man to enact on the American stage, the stage of true history. In that recurrent conflict between the ideal and the real, the utopian and the actual, the intentional and the accidental, the mythic and the diurnal, can be read […] an essential legacy of the puritan imagination to the American mind. (BRADBURY; ROLAND, 1992, p. 13-14)

A Nova Inglaterra (região nordeste da América do Norte) vinha então crescen-do e, neste processo, procurava conciliar os preceitos bíblicos com o surgimento de novas formas de relacionamento em sociedade. Se William Bradford tratou dessa tensão através de entradas em seu diário, outros autores viram a situação como uma grande oportunidade para expressar sua subjetividade e imaginação poética.

A mais bem sucedida nesta tarefa foi Anne Bradstreet (1612-1672), reconhecida até hoje como um dos maiores nomes da poesia, não só norte-americana, mas de toda a língua inglesa. Nascida na Inglaterra, Bradstreet chega acompanhada

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de seu marido ao novo continente em 1630. Embora seu pai e seu marido tives-sem fortes ligações políticas na América (ambos foram governadores da Baía de Massachusetts), esse não é um aspecto particularmente importante nos textos de Anne Bradstreet. Grande parte da riqueza de seus trabalhos poéticos encon-tra-se na forma que ela escreveu sobre a atmosfera doméstica da vida puritana. Com extrema sensibilidade ao tratar das adversidades presentes no cotidiano do novo continente e com um tom metafísico que a permite ultrapassar a mera descrição de eventos, Bradstreet desperta interesse não só pela importância his-tórica, mas também pela qualidade de sua escrita.

Os poemas de Anne Bradstreet atestam de forma clara a complexidade da realidade puritana. Sua escrita revela um pensamento livre, dotado de conside-rável conhecimento poético (era admiradora de grandes poetas ingleses como Philip Sidney e Edmund Spenser), mas que contrasta com a rigidez das regras puritanas, especialmente quando se considera o papel de submissão a que as mulheres eram relegadas. As regras rigorosas do puritanismo, pelo contrário, não ofuscam o talento de Bradstreet. Seus poemas sobre o cotidiano e acontecimen-tos marcantes do período são sempre tocantes porque, através deles, a autora reforça sua fé nos ideais divinos em busca de consolo, proteção ou coragem.

Os trabalhos mais reconhecidos de Bradstreet, no entanto, são aqueles em que a autora celebra o matrimônio como instituição, reafirmando o profundo amor que tinha por seu marido, Simon. Como o marido costumava ficar longe em via-gens de trabalho, a autora dedicava-lhe grande parte de seus poemas para aplacar a dor da distância. Um dos mais famosos, To My Dear and Loving Husband, aborda o relacionamento do casal ligado a elementos da natureza, como se o próprio amor de marido e mulher fosse necessário a um equilíbrio natural das coisas:

If ever two were one, then surely we.If ever man were loved by wife, then thee;If ever wife was happy in a man,Compare with me, ye women, if you can.I prize thy love more than whole mines of goldOr all the riches that East doth hold.My love is such that rivers cannot quench,Nor ought but love from thee, give recompense.Thy love is such I can no way repay,The heavens reward thee manifold, I pray.Then while we live, in love let’s so persevereThat when we live no more, we may live ever.

Anne Bradstreet.

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Curiosamente, não foi por vontade própria que Anne Bradstreet se tornou a primeira poetisa do novo continente a ter seus trabalhos publicados. Na verda-de, foi seu cunhado que levou os manuscritos de seus poemas para a Inglaterra e lá os teve publicados sob o título de The Tenth Muse Lately Sprung Up in America, em 1650. Seus trabalhos desde então permaneceram cruciais para um maior en-tendimento do período colonial e para o despertar de uma sensibilidade metafí-sica que tanto influenciaria outros poetas americanos nos séculos seguintes.

A mais popular produção literária do período puritano, no entanto, não foi nem o relato em forma de diário e nem a poesia – foi o sermão. Considerando a presença das crenças e do estilo de vida puritano em todas as esferas da socie-dade, nada mais natural que a forma de expressão máxima da América colonial fosse a produção de textos religiosos para serem lidos nas pregações.

O centro da vida puritana era a igreja, e era lá que um dos atos mais essenciais para o homem cristão acontecia: ouvir os sermões. Dada a natureza do puritanis-mo, toda a atenção da cerimônia religiosa se voltava não para um altar, mas para o púlpito; a força da fé se revelava não por imagens, mas pela palavra.

O sermão atinge o ápice de sua popularidade durante o movimento chamado de Great Awakening (Grande Despertar). Fenômeno sociorreligioso ocorrido no século XVIII, o Great Awakening foi uma reação por parte de pastores e homens religiosos contra o formalismo a que o puritanismo estava sendo submetido, com seus principais ideais sendo esquecidos ou adquirindo pouca importância. Assim, pastores itinerantes iam de cidade em cidade pregando, de forma caris-mática, sermões que em muito exaltavam os fiéis e renovavam sua fé. Apesar de vários historiadores afirmarem que o Great Awakening não foi um movimento organizado, não há como negar que a necessidade por parte de uma nova gera-ção de pregadores foi essencial para revitalizar o puritanismo.

Uma das mais importantes figuras não só do Great Awakening mas de toda a América Colonial foi Jonathan Edwards (1703-1758). Pastor, intelectual e teólo-go, ele é considerado um dos símbolos do puritanismo na América. Uma análi-se artificial pode classificar Edwards como um estereótipo do rígido pregador puritano que, do alto de seu púlpito, incutia o medo e a culpa nos fiéis através de exagerados sermões. Um olhar mais atencioso, todavia, indica que os textos de Edwards (apesar de ratificarem a doutrina puritana do homem pecador e de um Deus punitivo) também partilham muito da herança de John Locke e Isaac Newton, dois nomes cruciais do racionalismo inglês que, entre outros pressu-postos, acreditavam que o homem poderia trilhar o caminho da bondade.

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É importante lembrar que os sermões são, essencialmente, textos para serem lidos em público. Jonathan Edwards talvez tenha sido o pastor que melhor enten-deu esse propósito da pregação, já que seus textos imediatamente estabelecem com quem os ouve uma ligação emocional pouco comum em outros sermões do período. Esses escritos de Edwards seguem, em sua maior parte, o formato clássico do sermão puritano: primeiramente há o texto, (i.e.)isto é, a passagem da Bíblia que vai servir de tópico central do trabalho escrito; a seguir, aparece a doutrina, i.e. a lição que deve ser apreendida do texto; a terceira parte é a das razões, i.e. provas ou fatos que confirmam a doutrina; finalmente, aparecem os usos, i.e. a aplicação da doutrina por parte dos fiéis.

Utilizando essa estrutura clássica, o autor enfatiza o caráter irado de Deus e o pecado inerente a todos os homens, que já nascem culpados. Essa atitude cal-vinista conservadora, no entanto, é aliada ao pensamento mais racionalista de Locke. Assim, Edwards também acredita, em seus sermões, que o homem pode se aperfeiçoar e melhorar seus traços de caráter.

O sermão mais marcante de Jonathan Edwards é Sinners in the Hands of an Angry God. Nesse texto, dirigido a uma congregação em Massachusetts, Edwards se utiliza de todo um arsenal imagístico para traduzir para os fiéis o poder e a ira de Deus que, por um mero capricho, pode lançar todos os pecadores às fornalhas do inferno. A presença dos homens no plano terreno, afirma Edwards, se dá apenas pelo prazer de Deus, porque nada o impede de fazer com que os homens impuros tenham o chão aberto sobre eles para que caiam nas chamas eternas infernais.

Sinners in the Hands of an Angry God ilustra um dos pontos centrais do purita-nismo (levado ao extremo pelos pastores do Great Awakening): o poder de Deus está sempre em eterno contraste com a devassidão e a maldade humana. Essa tensão é consequência do pecado original, mas também é a grande causadora da culpa que atormenta o homem. Por outro lado, é essa mesma culpa que leva o homem a buscar a redenção, o trabalho e o recomeço.

Assim os Estados Unidos, em seu começo, constroem toda uma organização social em que a religião é ao mesmo tempo uma força motriz, mas também um agente regulador de seu desenvolvimento. As lições da era puritana permane-cem até hoje no imaginário norte-americano, promovendo um material vastíssi-mo para que a literatura do país se tornasse uma das mais ricas e complexas do mundo.

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Texto complementar

Sinners in the hands of an angry God(EDWARDS, 1989)

The wrath of God is like great waters that are dammed for the present; they increase more and more, and rise higher and higher, till an outlet is given; and the longer the stream is stopped, the more rapid and mighty is its course, when once it is let loose. It is true, that judgment against your evil works has not been executed hitherto; the floods of God’s vengeance have been withheld; but your guilt in the mean time is constantly increasing, and you are every day treasuring up more wrath; the waters are constantly rising, and waxing more and more mighty; and there is nothing but the mere pleasure of God, that holds the waters back, that are unwilling to be stopped, and press hard to go forward. If God should only withdraw his hand from the flood-gate, it would immediately fly open, and the fiery floods of the fierceness and wrath of God, would rush forth with inconceivable fury, and would come upon you with omnipotent power; and if your strength were ten thousand times greater than it is, yea, ten thousand times greater than the strength of the stoutest, sturdiest devil in hell, it would be nothing to withstand or endure it.

The bow of God’s wrath is bent, and the arrow made ready on the string, and justice bends the arrow at your heart, and strains the bow, and it is nothing but the mere pleasure of God, and that of an angry God, without any promise or obligation at all, that keeps the arrow one moment from being made drunk with your blood. Thus all you that never passed under a great change of heart, by the mighty power of the Spirit of God upon your souls; all you that were never born again, and made new creatures, and raised from being dead in sin, to a state of new, and before altogether unexperienced light and life, are in the hands of an angry God. However you may have reformed your life in many things, and may have had religious affections, and may keep up a form of religion in your families and closets, and in the house of God, it is nothing but his mere pleasure that keeps you from being this

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moment swallowed up in everlasting destruction. However unconvinced you may now be of the truth of what you hear, by and by you will be fully convinced of it. Those that are gone from being in the like circumstances with you, see that it was so with them; for destruction came suddenly upon most of them; when they expected nothing of it, and while they were saying, Peace and safety: now they see, that those things on which they depended for peace and safety, were nothing but thin air and empty shadows.

Dicas de estudoO site da Biblioteca do Congresso Norte-Americano tem análises bem com-

pletas e interessantes sobre o período colonial dos Estados Unidos, incluindo textos de fundação do país e biografias dos Founding Fathers. Disponível em: <http://www.americaslibrary.gov/cgi-bin/page.cgi/jb/colonial>

HYTNER, Nicholas. As Bruxas de Salem. 1992. Baseado na peça do dramaturgo Arthur Miller, este filme concentra-se no julgamento e execução de vários colo-nos na colônia de Salem no fim do século XVII, acusados de bruxaria. Exemplo mais famoso dos excessos do puritanismo, esse triste episódio da história dos Estados Unidos é sempre lembrado quando o país encontra-se envolto em uma atmosfera de perseguição e intolerância.

Atividades1. Como os escritos de John Smith serviram para construir uma visão particular

da América no imaginário europeu?

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2. Qual a importância do puritanismo para o desenvolvimento da literatura dos EUA?

3. Como a passagem do sermão Sinners in the Hands of an Angry God (texto complementar) ilustra a relação de Deus com os pecadores de acordo com o puritanismo?

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