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Josemar Soares IESDE Brasil S.A. Curitiba 2011

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Josemar Soares

IESDE Brasil S.A.Curitiba

2011

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© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Domínio público

S 676f Soares, Josemar. / Filosofia do Direito. / Josemar Soares. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2011.

308 p.

ISBN: 978-85-387-1506-1

1. Justiça. 2. Filosofia. 3. Ética. 4. Direito. I. Título.

CDD 340.1

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Josemar Soares

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pesquisas na Alemanha, França e Itália. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. Graduado em Filosofia pelas Universidades Franciscanas – UNIFRA.É professor das disciplinas de Filosofia do Direito e Ciência Política na gra-duação, Metodologia da Pesquisa e Didática do Ensino Superior na pós- -graduação.É professor colaborador do Mestrado em Ciência Jurídica da UNIVALI. Coordena o Grupo de Pesquisa e Extensão PAIDEIA, que já possui 10 anos de existência. Con-sultor empresarial pela Vis Desenvolvimento de Liderança, prestando serviços em instituições públicas e privadas.

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Sumário

Introdução ao pensamento filosófico ............................... 13

Introdução ................................................................................................................................... 13

A filosofia grega ......................................................................................................................... 21

Origens da filosofia grega: os poetas Homero e Hesíodo .......................................... 28

Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias ........................................................................53

Introdução ................................................................................................................................... 53

Ésquilo ........................................................................................................................................... 54

Sófocles ......................................................................................................................................... 56

Eurípides ....................................................................................................................................... 62

Conclusões sobre a tragédia ................................................................................................. 64

A comédia de Aristófanes ...................................................................................................... 65

Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas ............. 75

Introdução ................................................................................................................................... 75

Escola Jônica ............................................................................................................................... 76

Os pluralistas ............................................................................................................................... 78

A Escola Atomística ................................................................................................................... 80

A Escola Pitagórica .................................................................................................................... 82

A Escola Eleata ............................................................................................................................ 84

Heráclito de Éfeso...................................................................................................................... 86

Os sofistas .................................................................................................................................... 89

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A formação do homeme da sociedade gregaem Sócrates e Platão ................................................... 99

Introdução ................................................................................................................................... 99

Sócrates e a importância do autoconhecimento .......................................................... 99

A Justiça como paideia em Platão .....................................................................................104

Justiça em Aristóteles ...........................................................123

Introdução .................................................................................................................................123

Justiça e Ética ............................................................................................................................124

Justiça na polis: a Política ......................................................................................................131

Conclusões .................................................................................................................................136

Helenismo e Idade Média ....................................................145

Introdução .................................................................................................................................145

O pensamento filosófico no período helenístico ........................................................145

Santo Agostinho ......................................................................................................................150

Tomás de Aquino .....................................................................................................................153

Duns Scott ..................................................................................................................................157

Guilherme de Ockham ..........................................................................................................159

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A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo .........................................173

Introdução .................................................................................................................................173

Francis Bacon ............................................................................................................................173

René Descartes .........................................................................................................................175

Espinoza ......................................................................................................................................178

A filosofia iluminista ...............................................................................................................181

A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas ..................................................193

Introdução .................................................................................................................................193

Thomas Hobbes .......................................................................................................................193

John Locke .................................................................................................................................198

Montesquieu .............................................................................................................................204

Rousseau ....................................................................................................................................206

Liberdade interna e externa em Kant .............................219

Introdução .................................................................................................................................219

A crítica kantiana – juízos a priori e a posteriori, analíticos e sintéticos ................220

O pensamento político e jurídico de Kant .....................................................................223

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Direito e Política na Dialética de Hegel ..........................237

O sistema hegeliano ...............................................................................................................237

As linhas fundamentais da Filosofia do Direito ............................................................242

Considerações finais sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano ............251

O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas .............................259

Introdução .................................................................................................................................259

Karl Marx .....................................................................................................................................259

Soren Kierkegaard ...................................................................................................................262

Friedrich Nietzsche .................................................................................................................264

Edmund Husserl.......................................................................................................................267

Martin Heidegger ....................................................................................................................271

Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito ...283

Max Scheler ...............................................................................................................................283

Carl Schmitt ...............................................................................................................................285

Hans Kelsen ...............................................................................................................................287

John Rawls .................................................................................................................................289

Habermas ...................................................................................................................................292

Miguel Reale ..............................................................................................................................294

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Apresentação

Que o mundo como conhecemos hoje é resultado de uma intensa evolução histórica, isso é algo que não se pode negar, mas o que pouco se sabe é o quanto o pensamento filosófico contribuiu para essa evolução.

Os grandes fatos que marcaram a história e as principais decisões que altera-ram os rumos da humanidade sempre tiveram como fundamento um determina-do modo de compreender o mundo e de agir tendo em vista esse entendimento. Ora, a busca incessante pela compreensão do mundo e o anseio por encontrar a verdade das coisas é justamente o objetivo da Filosofia. Foram essas grandes mentes da história que pensaram, idealizaram e discutiram aquilo que se torna-ria realidade após anos, décadas, ou até mesmo séculos da publicação de suas propostas.

Esse gradativo processo não pode ser ignorado na atualidade, em especial no mundo do business, onde o conhecimento das bases pelas quais está construída a sociedade e o Direito, entendido como o sistema lógico-racional de determi-nação de conduta daquela sociedade, revela-se essencial quando tratamos do desenvolvimento de uma organização e de sua responsabilidade social.

Portanto, o conhecimento dos principais entendimentos da ideia de Justiça, da ordenação da conduta humana, seja no seu aspecto individual (Ética), seja co-letivo (Direito, Política) são de suma importância, porque além de direcionar a re-lação de uma organização com a sociedade, beneficiam ao próprio businessman na construção de sua vida pessoal e de sua carreira profissional.

Tendo em vista a importância desse tema e a carência de obras nesse sentido, a proposta deste curso é apresentar de maneira simplificada, sem perder a pro-fundidade do conteúdo trabalhado, as principais concepções de Justiça, tanto em seu aspecto particular quanto geral, bem como a disciplina do agir humano, demonstrando a importância do conhecimento das ideias desses pensadores para o líder de hoje, percorrendo desde os primeiros filósofos na Grécia até os pensadores contemporâneos.

Trata-se de uma obra que interessa não somente às lideranças organizacio-nais, mas também àqueles que buscam uma compreensão mais profunda sobre a posição do homem na sociedade e sobre o papel das organizações da sociedade civil e do Estado na criação de uma sociedade livre, justa e igualitária.

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Introdução ao pensamento filosófico

IntroduçãoA Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para se entender

adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos e ideias referentes à categoria Justiça, é importante antes esboçar algumas considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.

Algumas questões são importantes: o que é Filosofia? A Filosofia é uma ciência? Qual a sua função? Qual o método que utiliza para analisar seus con-teúdos? Como a Filosofia pode contribuir com o Direito? Essas são questões que tentaremos responder neste primeiro capítulo.

O leitor verá no decorrer dos capítulos que os autores possuem visões muitas vezes até opostas em relação à mesma matéria, o que poderia ser uma desvantagem à Filosofia, sob a argumentação de que nem ela é exata e nem ela é capaz de ter unanimidade naquilo que se propõe a responder. Contudo, isso não vem a ser muito importante, como demonstraremos mais adiante.

Primeiramente, para se entender adequadamente o que seria a Filosofia, é preciso vê-la em sua totalidade de movimento, ou seja, em todo o seu per-curso, e não se atendo a este ou aquele filósofo. Talvez a melhor maneira de entender esse conceito é voltando justamente ao momento de sua criação, no tempo dos filósofos pré-socráticos na Grécia Antiga, pois, como se verá, a tônica que gerou a Filosofia será a mesma que atravessará os séculos, qual seja: a Filosofia como admiração ao saber.

O primeiro pensador a empregar o termo filosofia foi Pitágoras, que juntou as palavras philos (amor) e sophia (saber), ou seja, o amor ao saber, à sabedoria. “O termo é deveras expressivo. Os primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados sábios, por terem consciência do muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos”. (REALE, 2002, p. 5).

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Introdução ao pensamento filosófico

O historiador Diôgenes Laêrtios nos lembra ainda que para os gregos a sabedoria era considerada algo supremo, que somente os deuses eram ca-pazes de possuir. Os homens nunca conseguiriam alcançar o completo en-tendimento do mundo, das coisas, do Universo, da vida, dos deuses ou de si mesmos (LAÊRTIOS, 1987, p. 15). Contudo, isso não era desmotivador, pois a exigência de aprender, aliada à humildade de reconhecer que pouco se sabe, era a força que impulsionava aqueles pensadores ao desconhecido, a tentar chegar cada vez mais próximo da sabedoria. Por certo, Pitágoras foi um dos maiores filósofos, pois essa noção de humildade e necessidade de conhe-cer nasceu da sua incrível estupefação diante das maravilhas que a natureza punha diante de si. Não por acaso essa estupefação o conduziu a pesquisar a Matemática, a Ética, a Teologia, a Astronomia, a Música, e tantas outras maté-rias do conhecimento. O completo entendimento de todo esse universo que nos rodeia é possível somente aos deuses, de forma que buscarmos avançar cada vez mais nesse anseio é também trilhar um caminho divino.

“Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia era a admiração pelo saber, e por isso mesmo aqueles que amavam os mitos eram filósofos, porque nutriam nos mitos essa admiração pelo saber” (ARISTÓTELES, 2002). Os mitos não eram, para os gregos, apenas um conjunto de crenças, aspec-tos culturais e religiosos de um povo, eram manifestações do íntimo humano na tentativa de explicar os fenômenos naturais, sociais, o cosmos, os deuses. Portanto, os mitos também exprimiam a admiração ao saber, e por isso é imprescindível que partamos deles para depois explorarmos a história do pensamento filosófico.

Nossa pesquisa pretende apresentar a concepção de Justiça na história da Filosofia, de forma que o princípio originário da Filosofia não se torna aqui tão fundamental. Partiremos do fato de que, mesmo já tendo sido desper-tado o pensamento acerca da verdade e a busca pela explicação da estru-turação do Universo e da vida em geral anteriormente em outros povos, é somente com os gregos que ela recebe seus maiores contornos racionais, isto é, um estudo que diga como, de onde, e por que as coisas são como são. E essa forma de pensar é criação própria dos gregos (HIRSCHBERGER, 1969).Nas culturas anteriores aos gregos,1 o pensamento e a verdade não eram re-fletidos e construídos pelo indivíduo comum, membro da comunidade, mas por sentenças irrefutáveis proferidas pelos grandes sacerdotes religiosos. Os gregos, por outro lado, trouxeram o estudo da verdade para a dimensão

1 Entre elas citamos os egíp-cios, indianos e os povos da antiga Mesopotâmia.

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Introdução ao pensamento filosófico

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humana, para dentro da vida humana, e, como se verá, ainda mais além, para dentro da vida política.

Contudo, a passagem do pensamento religioso para o filosófico se dá também na passagem do mito à Filosofia. Antes da Filosofia, eram os mitos que traziam os grandes ensinamentos morais e de conhecimento, de forma que entender essa mudança é entender o nascimento da racionalidade filosófica.

A passagem do mito à FilosofiaPrecisar o limiar transitório entre o pensamento mítico e o pensamento

filosófico é uma tarefa difícil. De fato, conforme atesta Aristóteles no primei-ro livro da Metafísica, os mitos gregos já eram um modo de se identificar o mundo racionalmente.

Sobre essa questão, conforme destaca Muñoz:

[...] a fronteira entre o pensamento mítico e o pensamento racional nunca foi inteiramente clara. Muitos procuraram indicar que as explicações dos primeiros “cientistas” eram o prosseguimento, se não em termos de conteúdo, ao menos de forma, das explicações oferecidas pelos mitos. As aspas são necessárias, pois suas investigações diferem daquelas produzidas pela comunidade científica de nossos dias por um aspecto crucial: não havia uma pesquisa experimental sistemática e, em muitos casos, sequer rudimentar. Se as fronteiras entre o pensamento racional e o pensamento mítico que o precedeu não são nítidas, havendo inúmeros pontos de continuidade entre ambos, isso não significa, porém, que não haja ruptura entre eles. O pensamento racional, aplicado para oferecer explicações sobre o funcionamento da comunidade política e do cosmo, é algo totalmente novo, ainda que sob alguns aspectos avance as características do pensamento mitológico que o precedeu. A originalidade desse novo pensamento [...] é algo fundamentalmente grego, inexistente até então. (MUÑOZ, 2008, p. 57)

Entre os fatores que favoreceram os gregos a serem os protagonistas dessa importante passagem destaca-se que estes não possuíam um siste-ma religioso absolutamente definido, baseado em um livro de revelações ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe sa-cerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de Homero e Hesíodo, donde extraíram seus modelos de vida, matéria de refle-xão e estímulo à fantasia. Além disso, os sacerdotes gregos possuíam uma atuação muito mais limitada se comparados com os do Oriente.

Ademais, conforme assevera Reale (1993), existem características que di-ferenciam os poemas homéricos daqueles que estão nas origens dos vários povos; nessas obras já se manifestam algumas das características do espírito grego que criaram a Filosofia. Primeiramente, os poemas gregos não se fixam na descrição do monstruoso e do disforme, ao contrário, se estruturam se-

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Introdução ao pensamento filosófico

gundo o sentido da harmonia, eurritmia e proporção, do limite e da medida, uma constante da filosofia grega que erigirá a medida e o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes. A arte da motivação também é uma constante; não se relata somente uma cadeia de fatos, mas busca-se em nível fantástico-poético as suas razões, busca-se determinar pelo mito a relação entre causa e efeito. Terceira característica é o retrato da realidade em sua totalidade de forma mítica. A posição do homem no universo estava presente no mito e será assunto marcante do pensamento filosófico, dessa vez sob bases puramente racionais.

O contexto de liberdade em que os gregos viviam é também um dos ele-mentos que influenciaram a passagem do mito à Filosofia. Não havendo uma estrutura formal religiosa que limitasse a participação do cidadão, bem como a própria concepção do homem como essencialmente cidadão, são fatores que favoreceram a gênese do pensamento baseado na razão. Além disso, as condições socioeconômicas também foram importantes, tanto que a Fi-losofia nasce antes nas colônias, primeiramente na Ásia e depois na Magna Grécia, sul da Itália, para depois atingirem a península do Peloponeso.

Considerado todo esse contexto favorável, a passagem do mito à Filoso-fia, operada por Tales de Mileto, é marcada pela substituição da crença nas explicações dos relatos míticos pela compreensão racional do homem e do mundo que o rodeia. Os mitos já eram explicações do homem e do mundo baseadas em um profundo saber, contudo suas explicações das causas que geravam todos os efeitos no mundo baseavam-se na crença em um modelo que representava aquela situação.

A Filosofia, avançando nessa estrada já aberta, apresentou de modo nítido desde seu nascimento as seguintes características: quanto ao con-teúdo, busca explicar a totalidade das coisas, toda a realidade; quanto ao método, busca-se uma explicação puramente racional da totalidade, o que vale para a Filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos; por fim, o escopo da Filosofia, seu caráter é puramente teórico, ou seja, contem-plativo, visa simplesmente à busca da verdade por si mesma, por isso é livre, não está vinculada a qualquer utilização pragmática, apesar de que de suas conclusões influencia-se todo o mundo prático.2

Buscar as explicações de modo racional não significa que a Filosofia disso-cie-se por completo do divino, posto que, através dela, possibilita-se alcançar a dimensão do divino racionalmente. Conforme Aristóteles, “pode-se chamar

2 REALE, Miguel. História da Filosofia Antiga: das origens a Sócrates. p. 29.

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Introdução ao pensamento filosófico

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a filosofia de “divina”, pois além de levar o homem a conhecer Deus, possui as mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui, a desinteressada, livre, total contemplação da verdade”. (ARISTÓTELES, 2002)

Constata-se, portanto, que a busca da explicação do mundo através do logos é o que há de revolucionário com o nascimento da Filosofia, e quem pela primeira vez buscou conhecer a realidade desse modo, sendo, portanto, o primeiro filósofo, foi Tales de Mileto, o qual concluiu que a água é o ele-mento essencial de todas as coisas da natureza.

Após essa exposição acerca do surgimento da Filosofia, é importante agora apresentá-la de forma geral em suas principais disciplinas, que depois se aprofundam e fundamentam as grandes discussões sobre a verdade, o conhecimento, a Justiça, entre outras categorias fundamentais. Esse estudo introdutório é essencial para se compreender os pensamentos elaborados pelos filósofos que serão trazidos durante o restante do livro.

As principais disciplinas da FilosofiaA Filosofia pode ser dividida em três grandes disciplinas, partindo destas

todas as demais áreas do conhecimento filosófico e, por conseguinte, também todo o conhecimento científico, dada sua vinculação genealógica com a Filosofia. Estas três grandes áreas são a Ontologia, a Teoria do Conhe-cimento e a Ética.

A Ontologia3, estudo do ser, pode ser entendida como o estudo que busca conhecer o ser e seus modos. É a disciplina da Filosofia que busca identificar as essências dos seres e seus acidentes, aquilo que especifica qualquer coisa, individuando-a ante as demais, bem como os acidentes, os elementos que qualificam essa substância individuada. Trata-se da mais abstrata, porém mais profunda das áreas da Filosofia, pois estuda os elementos que constituem toda a realidade, estando além dela. Por tal motivo, a Ontologia ocupa-se também do estudo das causas dos fenômenos, até encontrar um princípio primeiro, de onde partem todos os demais, sendo chamada, assim, de Filosofia Perene.

Outra grande área de estudo da Filosofia é a Teoria do Conhecimento4

, também chamada de Epistemologia5 e de Gnoseologia6, que se ocupa do modo de conhecimento do homem e de como esse conhecimento poderá ou não ser considerado verdadeiro, científico (episteme), caracterizando-se nessa segunda situação meramente como uma opinião (doxa). Busca-se en-

3 Palavra composta pelas raízes gregas ontos, geniti-vo do particípio presente do verbo ser, e logos, ciên-cia, estudo.

4 Termo comumente usa- do na língua portuguesa, francesa (théorie de la connaisance) e na língua alemã (Erkennthistheorie).

5 Do grego episteme co-nhecimento, ciência) e logos. Esse termo é mais utilizado pelos filósofos ingleses.

6 Do grego gnosis (conheci-mento) e logos. Termo mais usado na língua italiana.

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Introdução ao pensamento filosófico

contrar a evidência que ateste a veracidade de um conhecimento, pressu-posto essencial para se fazer Filosofia ou ciência.

Além da compreensão de que o homem existe (Ontologia) e conhece (Teoria do Conhecimento), a Filosofia também compreende a Ética7, a qual enfrenta o problema de qual comportamento se deve adotar. A Ética é a doutrina da Filosofia que, centrada no próprio homem enquanto indivíduo e enquanto sociedade, e sua conduta, pressupondo a orientação da conduta humana a um padrão ideal, tem em vista simplesmente o agir ideal ou o al-cance de uma finalidade maior.

A Filosofia Prática, ramo onde encontra-se a Ética, compreende ainda a Filosofia Política, parte da Filosofia que orienta e organiza a vida do homem em sociedade, e a Filosofia do Direito, que toma para si a investigação sobre a Justiça, a legitimidade das normas jurídicas e a relação entre o Direito e os indivíduos e instituições.

A Filosofia do DireitoSendo o Direito uma realidade social, presente em qualquer sociedade e

cultura, não pode a Filosofia prescindir de analisar esse importante fenôme-no.8 A Filosofia do Direito não é disciplina jurídica, mas a aplicação da Filoso-fia ao campo jurídico. Miguel Reale delimita muito bem a diferença entre a pesquisa jurídica e a pesquisa filosófica do Direito:

Enquanto que o jurista constrói a sua ciência partindo de certos pressupostos, que são fornecidos pela lei e pelos códigos, o filósofo do Direito converte em problema o que para o jurista vale como resposta ou ponto assente e imperativo. Quando o advogado invoca o texto apropriado da lei, fica relativamente tranquilo, porque a lei constitui ponto de partida seguro para o seu trabalho profissional; da mesma forma, quando um juiz prolata a sua sentença e a apoia cuidadosamente em textos legais, tem a certeza de estar cumprindo sua missão de ciência e de humanidade, porquanto assenta a sua convicção em pontos ou em cânones que devem ser reconhecidos como obrigatórios. O filósofo do Direito, ao contrário, converte tais pontos de partida em problemas, perguntando: Por que o juiz deve apoiar-se na lei? Quais as razões lógicas e morais que levam o juiz a não se revoltar contra a lei, e a não criar solução sua para o caso que está apreciando, uma vez convencido da inutilidade, da inadequação ou da injustiça da lei vigente? Por que obriga a lei? Como obriga? Quais os limites lógicos da obrigatoriedade legal? (REALE, 2002)

A Filosofia do Direito, portanto, tem a missão de examinar criticamente o Direito, analisar as temáticas jurídicas não do ponto de vista legal ou ju-risprudencial, mas do universal, do próprio conhecimento. A Filosofia Jurí-dica busca encontrar a verdade no Direito, aqueles princípios primeiros que depois dão fundamento a todas as construções jurídicas. Pode-se dizer que

7 Do grego ethos, cos- tume.

8 “O Direito é realidade universal. Onde quer que exista o homem, aí existe o Direito como expressão de vida e de convivência. É exatamente por ser o Direito fenômeno univer-sal que é ele suscetível de indagação filosófica.”

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Introdução ao pensamento filosófico

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o filósofo vê o Direito de cima, de uma certa distância, ou seja, ele não está envolvido no fenômeno jurídico, não dentro do problema, é antes um atento observador externo, que racionalmente e cautelosamente percebe as incoe-rências e formula os fundamentos que são capazes de contribuir com a evo-lução da estruturação do Direito.

O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas. Mas a Filoso-fia examina esse exercício, a Filosofia busca o conceito de Direito, contextu-alizando sua função ao movimento social e cultural da humanidade. A Filo-sofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque sua crítica não parte de um dado posto, mas do universal, ela entende o Direito como um enorme processo histórico, que se adéqua de modo diferente a cada espaço e tempo. O direito positivo, o direito natural, o ordenamento jurídico, a necessidade, função, surgimento e conceito do Direito, tudo isso é temática da Filosofia do Direito.

Ademais, a ciência que dá fundamento ao Direito, a Ética, é disciplina es-sencial ao pensamento filosófico. O agir humano sempre foi objeto de dis-cussão da Filosofia. Como deve agir o homem? Quais os critérios que deter-minam um agir correto? Há leis que regulam a existência? Qual a finalidade da ação humana?

Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está acima das normas e leis jurídicas, ela é o exame das ações humanas. A Ética tem prerrogativa para analisar o Direito, porque a Ética estuda a natureza humana, e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e se realize tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve prestar atenção à Ética, pois ambos trabalham com o agir humano e todas as consequências que advêm disso para a sociedade.

Filosofia e businessSe a Filosofia pode examinar criticamente e universalmente o Direito,

dando contribuições diferenciadas através da Filosofia do Direito, é certo que ela pode realizar o mesmo em outros campos da vida humana, e aqui incluímos o mundo do business. Os filósofos, quando buscam entender a na-tureza humana, dando princípios para a sua realização existencial, em geral não se esquecem de um importante aspecto: o econômico. Da poesia ho-mérica aos contemporâneos, os pensadores colocam a questão econômica como essencial para o indivíduo conduzir bem a sua vida. Nesse sentido,

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Introdução ao pensamento filosófico

este livro pretende trazer implicações ao business de cada pensador, ou seja, quais ideias formuladas pelos filósofos podem contribuir com a atividade do empresário e do empreendedor no aspecto tanto da Ética quanto da funda-mentação do Direito, que tenha relação com as questões que envolvem o mundo dos negócios.

No decorrer dos capítulos o leitor acompanhará que, por exemplo, nossas concepções de atitude no trabalho foram objeto de discussão por filósofos como Hegel e Marx, e mesmo de Hesíodo, um poeta que se tornou célebre quase 3 000 anos atrás. Além disso, as questões econômicas sempre foram te-máticas entendidas como essenciais para a manutenção do bem-estar social.

Por fim, destaca-se que a Filosofia trabalha a reorientação da racionalidade, de forma que entendimentos adequados permitem desenvolver intuições e raciocínios que conduzem melhor a vida cotidiana. O business também é racio-nalidade. E a Filosofia, desde seus primeiros pensadores gregos, foi criada para, acima de tudo, ajudar o homem a pensar e agir melhor. Daí a valiosa contribui-ção filosófica: “A Filosofia reflete no mais alto grau essa paixão pela verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe” (REALE, 2002).

A Filosofia como admiração ao saberA Filosofia nasce da perplexidade. Portanto, são justamente os grandes

questionamentos que suscitam o progresso filosófico, a íntima necessidade de penetrar cada vez mais a essência do problema.

A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a não se contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão última de um dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade última, do que a posse da verdade plena (REALE, 2002).

Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as causa primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os gran-des questionamentos e ainda geram todos os outros questionamentos.

A necessidade de responder com maior perfeição é aquilo que gera o caminho histórico percorrido pela Filosofia. A história nos coloca novas in-terrogações, seja por determinados eventos, por mudanças culturais, por

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avanços das ciências, por mudanças de concepções das próprias pessoas, todo esse universo influencia o exercício do pensar filosófico, exigindo do filósofo novas respostas, novas indagações. Podemos nos arriscar a dizer que enquanto o homem não conhecer com plenitude a verdade última das coisas, a Filosofia prosseguirá sua marcha histórica.

A história da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se estiolar em um sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido. Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais dúvidas, passa a ser a história acabada das suas ideias, o que não quer dizer que não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante pesquisa (REALE, 2002. p. 8-9).

E esse é o grande mérito da história da Filosofia: apresentar o panorama geral da estupefação diante do saber, da necessidade existencial, talvez até metafísica, de o homem conhecer, chegar mais próximo da verdade última das coisas, inclusive aquilo que é idêntico, útil e funcional.

Acompanhando o percurso histórico, o que nos ocupa aproximadamen-te 28 séculos de esforço intelectual em busca da verdade e do que é justo, adequado, de direito, nos ajudará ainda a pensar melhor quais são as nossas grandes questões contemporâneas, a que nível chegamos nas problemáti-cas metafísicas, e, já que esta obra também é voltada ao Direito: como é o Direito atual? E como ele deve ser no futuro?

Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele, era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES, 2002).

A filosofia gregaA admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos an-

tigos, que viviam um período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo era objeto de grandes investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investiga-dor da natureza no espírito grego. Esse momento, talvez único na história humana, surge juntamente com a figura do homem político. O fato de tanto a Filosofia como a Política terem nascido no mesmo período e no mesmo lugar merece algumas reflexões, pois ajuda a demonstrar que, no fundo, os gregos viviam uma época de liberdade de pensamento.

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Filosofia e Política na Grécia AntigaPara se compreender o percurso histórico da Filosofia do Direito, acom-

panhando a construção de conceitos como Direito, Justiça, Liberdade, Cida-dania, Ética, Igualdade, é importante partir desde o momento que lançou as bases para a formação da racionalidade ocidental: o mundo grego. Pois foi na Grécia que surgiram os primeiros filósofos do Ocidente, que influenciam inclusive os pensadores contemporâneos.

Os primeiros filósofos foram os chamados pré-socráticos, que se tornaram célebres por realizarem grandiosas argumentações sobre a ordem e o prin-cípio das coisas, pela tentativa de explicar a natureza, a existência humana, e mesmo questões divinas e transcendentais. É com os pré-socráticos que a Ontologia se origina. Esses filósofos serão estudados no Capítulo III do nosso trabalho.

Antes, é importante compreender os movimentos que influenciaram e contribuíram enormemente para a criação do pensamento filosófico. Pois os pré-socráticos não poderiam conceber seus grandes conceitos sem a influ-ência dos poetas, em especial Homero e Hesíodo. Depois haveriam outros poetas que também seriam importantes, como “Tirteu, Arquíloco, Alceu, Safo e inclusive o grande Sólon”, que também foi célebre político ateniense.9

Para se compreender a origem da filosofia grega, é preciso, além de re-correr aos poetas, buscar também entender o processo cultural e político enfrentado pelos gregos, que apresentaremos brevemente neste capítulo, juntamente com a exposição dos poetas. Não há como separar, a filosofia grega, em sua forma racional e sistemática mais bem acabada, surge jun-tamente com as cidades-Estado. O filósofo surge junto com o político. As culturas anteriores possuíam a figura do político e suas organizações polí-tico-jurídicas, mas não eram analisadas sistematicamente e racionalmente tal como faziam os gregos. A Política como ciência, que concebia as formas de organização social, de governo, do problema da validade e da imposição das leis, de quem e como deve governar, tudo isso é criação grega. Não há entre os hebreus, entre os egípcios, entre os chineses ou entre os indianos um estudo tão sistemático da Política como aquele realizado por Aristóteles, nem uma preocupação da união indissolúvel entre política e educação como faz Platão na República. Os gregos se atreveram a trazer o conceito de Justiça para o âmbito público, social, do cidadão da polis, situação essa impensável no mundo anterior, que remetia a uma divindade transcendente toda a pro-

9 Para maiores informa-ções sobre esses outros poetas, interessante obser-var o capítulo dedicado a eles na Paideia, de Jaeger, e também a obra de Do-naldo Schüler, Literatura Grega (SCHÜLER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.).

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blemática da Verdade e da Justiça, de forma que o homem, como adorador dos deuses, existia para praticá-la e aperfeiçoá-la no mundo terreno, sem contudo ter poder para contestá-la ou mesmo modificá-la. No mesmo pe-ríodo e no mesmo lugar nasceram a Filosofia e a Ciência Política. Vejamos agora como se dá esse processo e a que tal ponto o político contribui com o surgimento do pensamento filosófico.

A Justiça como questão filosóficaCom a explosão do comércio marítimo e a expansão dos domínios gregos,

a vida pública tornou-se cada vez mais importante com as discussões polí-ticas e jurídicas ocupando grandes centros de debate da polis. O novo cená-rio ampliou os horizontes dos gregos, sendo propício para o surgimento de novas ideias e discussões sobre questões éticas, jurídicas e políticas. Embora a esfera religiosa jamais tenha deixado de influenciar a sociedade grega, vi-via-se um momento em que o homem cada vez mais ousava a contrair para si diversos assuntos.

Entre essas ideias ousadas está a alta estima dada tanto pelos poetas como depois também pelos filósofos acerca dos conceitos de Direito e Jus-tiça, e a atribuição da importância dessas categorias para a organização da comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conce-ber a comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo suas concepções e determinações político-jurídicas como materialização da vontade de seus próprios cidadãos.

Ainda que nos séculos seguintes a administração do Direito permanecesse nas mãos dos nobres, que controlavam leis não escritas e aplicadas a toda a população, a nova concepção humanista de Direito permitiu aos cidadãos em geral contestarem esse abuso político por parte dos magistrados. A oposição entre nobres e cidadãos livres acabou gerando o movimento de positivação dos direitos, em que as leis passaram de não escritas a escritas, de forma que poderia valer igualmente para todos. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos” (JAEGER, 2003, p. 134). Nesse processo, os gran-des porta-vozes da violência causada pelos magistrados foram justamente os poetas, em particular Hesíodo. A luta pela diké seria então a luta pela aplicação do Direito, o que envolveria inclusive a luta de classes. “Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas na

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diké” (JAEGER, 2003, p. 134). Contudo, inclusive antes de Hesíodo, a vontade de conceber a Justiça como uma fonte indispensável para a organização social já se via nos poemas homéricos.

Homero representa ainda o início desse longo processo que é a passa-gem do Direito de sua condição essencialmente divina para uma construção humana. Em Homero, o Direito é designado com o termo themis, um “com-pêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimo-logicamente significa ‘lei’” (JAEGER, 2003, p. 134). A themis era concedida por Zeus aos reis nos tempos homéricos. Tão antigo quanto o conceito de themis é também o de diké.

O conceito de diké não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem diké”. Assim se compendiava numa só palavra a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá diké”, o que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe diké”. O juiz “reparte diké”. Assim, o significado fundamental de diké equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena. (JAEGER, 2003, p. 134-135)

Nesse sentido, enquanto a themis está relacionada à autoridade da lei, à sua validade e aplicabilidade a todos os cidadãos, a diké se refere à sua pró-pria aplicação. Na themis observa-se muito mais um princípio primeiro da fundamentação jurídica, da qual se provém a legitimidade para imposição da lei, enquanto que na diké se vê o próprio movimento de realização do Direito, e por isso abrange na mesma palavra as ideias de processo, sentença e pena. Ademais, a aproximação da diké a uma ideia de equidade, em que o Direito se reparte de forma justa a todos os cidadãos, tornou-se o fundamen-to principal para as lutas de todos em nome de seus direitos. Como cada um possui parte nessa ideia de Justiça, possuem também o direito de lutar por seu direito. Dessa forma, a diké representa também o direito de cada cidadão a lutar contra a hybris, que por sua vez equivale à ação contrária ao Direito.

Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hybris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao Direito. Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do Direito, à sua legalidade e à sua validade, diké significa o cumprimento da Justiça. Assim se compreende que a palavra diké se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do Direito a uma classe que até então o recebera apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à diké tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.10

Na diké o cidadão encontrava o fundamento para poder reclamar a Justi-ça, o que significa enfrentar o próprio Direito estabelecido naquele momen-to. O Direito dessa forma já não era algo consolidado como uma manifes-

10 JAEGER, Werner Wi-lhelm. Paideia: a Forma-ção do Homem Grego, p. 135.

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tação divina, que não podia ser contestado pelo cidadão comum, mas um movimento, em que a luta pelo Direito11 era também parte desse processo. Como síntese, o Direito entre os gregos tornou-se um processo de formação, o homem desenvolvia-se ao mesmo tempo em que desenvolvia a ideia de Direito.

A igualdade é o conteúdo principal da diké, o objetivo de se dar a cada um o que é seu, uma prerrogativa de fazer todos os cidadãos livres iguais perante o Direito. A partir daí a igualdade ocuparia sempre lugar central nas discussões jurídicas e políticas, chegando a influenciar os grandes filósofos Platão e Aristóteles: “A exigência de um Direito igualitário constitui a mais alta meta para os tempos antigos”.(JAEGER, 2003, p. 136).

Nessa nova concepção de Direito, os nobres tiveram que também se sub-meter à igualdade de todos. Essa igualdade, contudo, não poderia ser resumida numa igualdade de todos perante a lei, mas sim da própria acepção de Direito. O Direito assemelha-se a uma medida para decidir as questões entre o “‘meu’ e o ‘teu’” (JAEGER, 2003, p. 136), de tal forma que se possa fixar o Direito, atribuin-do a cada um o que é seu. Essa mudança, visando uma igualdade jurídica e po-lítica, operou-se ao mesmo tempo em que se delimitava, na esfera econômica, a fixação de medidas e pesos para o intercâmbio de mercadorias. Assim como a economia fixava a medida e o peso, o Direito fixava as normas. Logo, trata- -se de um movimento amplo no qual o que se apresenta é a própria forma-ção do povo grego, um desenvolvimento cultural sem o qual seria impensável o surgimento, por exemplo, da democracia, que para ser instituída depende do princípio de que todos são iguais perante a lei. “Procurava-se uma ‘medida’ justa para a atribuição do Direito e foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de diké, que se encontrou essa medida”. (JAEGER, 2003, p. 136).

A delimitação de medidas foi essencial para a construção do Direito, não somente no sentido positivo, da produção e aplicação de normas, mas também na própria esfera moral, na delimitação e fixação de condutas que não poderiam ser praticadas. Desde os tempos primitivos encontram-se na literatura e na mitologia menções a delitos, como o assassínio, o adultério, o furto e o rapto.12 Essa delimitação de condutas, de limites às ações humanas, inclusive anteriores à fixação de normas, provém de um conceito ligado à ideia de diké, o termo díkayosine, que não possui uma tradução moderna equivalente. A dikayosine representa a medida abstrata, mas amplamente efetiva, que constituía o conteúdo essencial das primeiras leis escritas.

11 Percebe-se já entre os gregos o fundamento principal para a luta pelo Direito como condição para a existência do pró-prio Direito, antecipando em muitos séculos a con-cepção do Direito como luta de Jhering.

12 Ésquilo narra em Prometeu Acorrentado a história do furto do fogo dos deuses por Prometeu, que entregou aos mortais, assim como na Ode a De-méter vemos o relato do rapto de Perséfone por Hades, e inclusive a con-clusão do Direito como uma medida justa, em que a vítima permaneceria metade do ano na Terra e a outra metade no mundo dos mortos, gerando as quatro estações. Percebe- -se como as noções de medida e delimitação já estavam desde sempre presentes na mentalidade grega.

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O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da Justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa arete. Originariamente, as aretai eram tipos de excelência que se possuíam ou não. Nos tempos em que a arete de um homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro esse elemento ético, e todas as outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele, e deviam pôr ao seu serviço. A nova dikayosine era mais objetiva. Tornou-se a arete por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a “virtude cristã” consistiria na obediência às ordens do divino (JAEGER, 2003, p. 137-138).

A dikayosine, nesse sentido, era a expressão positiva e mesmo ética de um ideal de homem, de um elevado tipo de homem dotado de certas virtudes, tal como o guerreiro antigo deveria guiar-se pela coragem. As leis do Estado não seriam obedecidas simplesmente por sua autoridade coercitiva, mas por serem a expressão desse sentimento de Justiça, dessa fixação do justo e do injusto ao qual o homem grego se submetia. As leis escritas refletiam os costumes, que por sua vez representavam esse critério criado num processo histórico e espiritual da Justiça como uma virtude. Nessa perspectiva, o Di-reito era resultado da Justiça, da medida e do critério que delimita o justo e o injusto, e seguir o Direito significaria viver conforme esse ideal virtuoso de homem. Delineia-se aqui o essencial papel que cumpre o ideal de formação de homem na cultura grega, em que mesmo o Direito deveria ser utilizado para a formação do homem, do cidadão, do membro da polis. Com a Justi-ça sendo inserida como virtude central da polis, abandonou-se a concepção anterior da valentia como arete máxima, advinda da sociedade espartana, voltada principalmente às guerras, mas abriu a necessidade de cultivar um novo tipo de homem, aquele relacionado essencialmente às atividades pú-blicas, sejam elas jurídicas, políticas, artísticas ou intelectuais em geral. Não era mais a guerra o centro das disposições de vontade do homem grego, mas a cultura e a organização social. “O conceito de Justiça, tida como a forma de arete que engloba e satisfaz todas as exigências do perfeito cidadão, supera naturalmente todas as formas anteriores” (JAEGER, 2003, p. 139).

A Justiça como virtude cardeal, que resume todas as demais, tal como afir-mariam posteriormente Platão e Aristóteles, apresenta essa nova forma de pensar criada pelo homem grego, derivada do crescimento tanto econômico como cultural da polis. E esse desenvolvimento está ligado principalmente ao surgimento do Estado constitucional, isto é, do período antigo da forma-ção do homem grego em que as cidades passaram a ser reguladas por leis escritas, por uma constituição. A constituição garantia o princípio da igual-dade a todos os cidadãos e simbolizava o ideal de homem daquele povo; ela era regulada e aplicada conforme a arete que se desenvolvia, sua medida

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de Justiça estava na dikayosine. Desse processo advém todo o valor de o homem grego sentir-se parte de seu Estado; seu sentimento pátrio estava em viver conforme aquelas virtudes preceituadas por ele e inseridas no espí-rito da constituição. Também por esse motivo o Estado deveria promover a educação a todos os jovens, um ensino público, porque somente assim teria a certeza de que a juventude seria formada dentro do seu ideal de homem, conforme as virtudes que determinavam o conteúdo de sua constituição. O ensino público não existia simplesmente por ser uma obrigação estatal, mas por essa necessidade pedagógica (JAEGER, 2003, p. 141). É por essa razão que Platão e Aristóteles afirmam que cada Estado, pela lei, expressa e inte-rioriza nos seus cidadãos o seu ideal de homem. Para os gregos, como se vê, a legislação possuía por conteúdo sua mais elevada condição. Sua existência não estava apenas na regulamentação da sociedade, mas essencialmente na educação, no cultivo de seu tipo ideal de homem.

A herança de normas jurídicas e morais do povo grego encontrou na lei a sua forma mais universal e permanente. Platão culminou a sua obra, de Filosofia Pedagógica com a sua conversão em legislador, na última e maior das suas obras; e Aristóteles conclui a Ética com o apelo a um legislador que lhe realize o ideal. A lei é também uma introdução à Filosofia, na medida em que, entre os Gregos, a sua criação era obra de uma personalidade superior. Com razão, o legislador era considerado educador de seu povo, e é característico do pensamento grego que ele seja frequentemente colocado ao lado do poeta, e as determinações da lei junto das máximas da sabedoria poética. Ambas as atividades são estreitamente afins. (JAEGER, 2003, p. 143)

Ética e Direito entrelaçam-se a tal maneira que quase passam a entender- -se como sinônimos. Pela Ética, o Estado tinha a garantia à educação de seu Direito, de suas leis; e pelas leis, pelo Direito, o Estado garantia também a formação do seu ideal de homem, cultivado naquelas virtudes que sua Ética consagrou. Nessa comunidade ética, o cidadão vivia conforme a vida políti-ca, cívica, em que o cidadão existia no Estado e participava do bem comum, dos interesses gerais da polis. Essa existência pública e política imprimia no espírito do cidadão um dever ético de realizar e viver também para a evolu-ção do Estado, da comunidade. Como o Estado lhe concedia inúmeros direi-tos, oriundos da antiga diké e o seu princípio da igualdade, entre eles a edu-cação pública, era seu dever contribuir com o crescimento do Estado. Dessa necessidade resultou o crescimento intelectual, profissional e espiritual do homem grego. Em sentido prático, isso inclui a grande transformação na so-ciedade grega, a passagem da antiga sociedade rural dos tempos hesiódicos à uma polis urbana, voltada essencialmente aos interesses citadinos. A habi-litação profissional não era apenas dever por ser o trabalho uma atividade que desenvolve a si próprio, mas também para contribuir com a polis. Se o ci-

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dadão recebia a educação, sentia-se no dever de tornar-se cada vez mais um melhor profissional. O Estado é a essência do cidadão grego para onde diri-gem todas as suas atividades espirituais. Para esse modelo de homem, fazer parte do Estado era sentimento de felicidade, de viver conforme o ethos.

É um cosmos legal segundo esse velho modelo helênico – onde o Estado seria o próprio espírito e a cultura espiritual visaria o Estado como seu fim último – o que Platão esboça nas Leis. Ali ele define como oposta ao saber especializado dos homens de ofícios, negociantes, merceeiros, armadores, a essência de toda a verdadeira educação ou paideia, a qual é educação na arete que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o fundamento da Justiça. (JAEGER, 2003, p. 146-147)

A educação política, ou ainda a techné política, não pode ser ensinada como se faz com o ensino das profissões especializadas em uma atividade, porque nesses casos exige-se sobretudo a parte técnica, enquanto que na arte política não basta o caráter técnico, os saberes teóricos e práticos, mas a educação do ethos, da arete. Não se pode medir o cidadão pelo seu conheci-mento, mas pelo seu caráter, pelo cultivo que fez das virtudes e da educação político-humanista concedida pelo Estado.

Apresentado esse relato histórico, passaremos agora a tratar das caracte-rísticas essenciais de nossos estudos nas poesias de Homero e Hesíodo.

Origens da filosofia grega: os poetas Homero e Hesíodo

HomeroHomero é certamente o maior nome da literatura grega. As duas epo-

peias que a sua autoria são creditadas, Ilíada e Odisseia13, repercutirão na formação do espírito grego como nenhum outro autor tão longe alcançou. A Ilíada imortalizou-se como, possivelmente, a mais impressionante guerra já retratada literariamente. A força com que o autor apresenta os emocionan-tes combates, as inesperadas e precisas intervenções divinas, os dramas dos heróis envolvidos, as grandes questões que movimentam ambos os exérci-tos combatentes (gregos e troianos), tudo isso torna a Ilíada obra de caráter único na literatura universal.

A Ilíada apresenta a narração da célebre Guerra de Troia14. Páris, príncipe troiano, raptou Helena, esposa de Menelau, famoso monarca grego, levan-

13 A discussão sobre se Homero de fato escre-veu ambas as epopeias já alcança mais de um século. Entre os eruditos surgem as mais diversas opiniões, desde aqueles que afirmam que Homero sequer existiu, e que as epopeias seriam compi-lações de autores poste-riores de versos passados oralmente de geração a geração; outros afirmam que ele existiu sim ,mas que apenas escreveu ou compilou uma das poe-sias, já que ambas contêm construções e estilos literários diferentes; por fim, existem aqueles sim acreditam na real autoria de ambas as epopeias ao poeta Homero. Para este trabalho, tais questões não chegam a ser de vital importância, pois o essen-cial aqui é captar a influ-ência dessas epopeias no espírito grego, como au-xiliaram nas construções dos conceitos de Ética, Justiça, Direito etc.

14 Aqui também os estu-diosos se dividem. Seria a Guerra de Troia apenas uma construção literária, uma epopeia elaborada para enaltecer o povo grego? Ou poderia de fato ter acontecido? Algumas descobertas arqueológi-cas desde o século passa-do alimentam a discussão, abrindo a possibilidade de as famosas muralhas de Troia se localizarem no que hoje é território turco.

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do-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa, Menelau pede auxí-lio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossou de Menelau tomou conta de todo o povo grego, e os grandes chefes e guerrei-ros de todos os reinos foram convocados a participarem da guerra contra os troianos. Entre esses ilustres guerreiros estavam, além de Menelau e Agame-mnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido dos deuses Ulisses e o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho da deusa Tétis.

A Ilíada inicia-se já no nono ano de combates, no famoso episódio da dis-cussão entre Agamemnon e Aquiles, que resultou na retirada do segundo do campo de batalha. São 24 cantos, que terminam com os funerais de Heitor, o troiano que matou Pátroclo, melhor amigo de Aquiles, e morto por este por vingança. A violência final de Aquiles é a explosão de sua ira, tema central de toda a obra. Aquiles estava fora das batalhas, foi apenas quando seu amigo morreu que violentamente retornou aos campos e vingou Pátroclo.

Já a Odisseia narra as aventuras enfrentadas por Ulisses em seu retorno após a Guerra de Troia. Ulisses comete um grande erro, devido à soberba, ao declarar não necessitar da ajuda dos deuses, o que irritou profundamen-te Posêidon, o deus dos mares. Diante disso, o deus decide causar o maior número possível de problemas ao herói, atrasando seu retorno em 10 anos. Entre as aventuras enfrentadas por Ulisses e sua tripulação estão a ilha do Ciclope, gigante de um olho só, a ilha de Circe, a feiticeira que transforma a todos em animais, as belíssimas sereias, que com seus cantos irresistíveis atraem todos os marinheiros à morte, o célebre estreito dos monstros de Posêidon, Cila e Caribdes, entre outros problemas envolvendo fenômenos naturais. Ao término da saga, Ulisses ainda precisa enfrentar os pretendentes de sua esposa, Penélope, que tentavam usurpar sua mulher e o reino.

Acima expomos o resumo geral das obras. Agora apresentaremos algu-mas análises de como esses versos influenciam na Filosofia e no Direito.

Para Schüler (2004), a Ilíada é produzida numa época em que o homem ainda não havia tomado completamente consciência de si mesmo, de forma que mais lhe impressiona as façanhas de heróis e deuses, no campo externo, que os dilemas psicológicos que aterrorizam a dimensão interna do indivíduo. Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se maravi-lhava com o mundo que o rodeia, entusiasmava-se por participar dele.15

15 Sintaticamente o objeto (ira, o herói, Ílion) precede o sujeito. A aten-ção, tanto a do poeta como a do ouvinte, está presa no objeto. O objeto mantém o sujeito oculto. Vive-se num período em que o homem ainda não tomou inteira consciência de si mesmo. Entusiasma- -se pelo grande espetácu-lo do mundo. Fascinam-no as obras dos deuses e dos heróis. Sente prazer em nomear o mundo rico que se desdobra diante de seus olhos. E não se apercebe de si. Não lhe ocorrem suas dúvidas, dores ou conflitos pesso-ais. Não olha para dentro de si mesmo. O mundo o absorve inteiro. Na cultu-ra em que o homem só tem olhos e ouvidos para o mundo e para o outro, nasce a epopeia com as estupendas façanhas dos heróis e deuses.

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Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam pre-sentes na obra. Por exemplo, a epopeia inicia e termina com a ira de Aquiles, a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de Aga-memnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em seus próprios aliados, ao verem como ele enfrentou e permitiu facilmente que o valente Aquiles se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como já é frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opi- niões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no início, Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de Agamemnon em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de Apolo. Depois, vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a Aquiles. Também por várias vezes Atena é enviada ao campo de batalha, ora aconselhando um ou outro guerreiro. Logo no canto II, inclusive, vemos Zeus tendo dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente, provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.

Contudo, é somente na Odisseia que se verão sinais mais evidentes dos dilemas humanos, vestígios de aspectos psicológicos que circundam aquela obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia tão somente o fascínio do homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa em limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por inteiro esse mundo. É nesse cenário que surge a figura do herói, a clássica imagem da poesia homérica. Num primeiro momento, como o próprio Schü-ler observou, é importante notar que no proêmio, o objeto principal da nar-ração da Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e so-mente secundariamente aparece como causa a vontade de Zeus. O homem ainda não havia olhado para dentro de si completamente, de forma que seus limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de Zeus, o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a faça-nha heroica. O significado de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na ira humana, e não na vontade divina, revela que o destino, ainda que existen-te na cultura helênica, não absorvia completamente o homem, de forma que suas ações e resultados eram responsabilidades suas.

Também situa-se aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói a invadir imediatamente Troia, pois aí teria a vitória. Porém, Agamemnon, após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da mensagem, que na verdade tratar-se-ia de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon,

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e o chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses sim interferem, mas os humanos são livres para aceitar ou mudar seus destinos.

Na exaltação do herói encontramos ainda outra característica marcante da poesia homérica, em especial a Ilíada: a presença do destino. Contudo, a ideia homérica de destino não se confunde com um ciclo fechado, em que a vida do indivíduo está previamente estabelecida. Para Homero, o destino, as moiras16, se assemelha a uma ordem superior em que não somente os huma-nos, mas inclusive os deuses submetem-se. E é por isso que tanto na Ilíada como na Odisseia, nem os deuses podem criar o destino por suas próprias vontades, mas agir e criar caminhos. Na ideia de destino dos gregos está aberta a responsabilidade do indivíduo, da livre-escolha, o homem pode criar uma nova via dentro do cenário predeterminado pelo destino, não é, portanto, um roteiro inflexível. Esse destino possui relação com a ordem das coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são de fato os homens mais corajosos, heroicos e sábios.17

Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhe-cimento do homem a si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e heroico. A Homero não interessa tanto os dilemas que afetam a vida humana, embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender o domínio do homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. E é por isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino, nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la, e ali criar a história. Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode dentro do seu possí-vel atitudes heroicas. Homero “[...] louva e exalta o que no mundo é digno de elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direito, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra” (JAEGER, 2003, p. 68). Como se vê, Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. As palavras de Homero ecoaram por toda a história helêni-ca, transformando-o num educador de toda a Grécia. E a educação homérica baseava-se justamente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de espírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói passivo, que somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente. Jaeger, ao comentar a proposta pedagógica de Homero, assinala que “[...] os mitos e as lendas heroicas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e mode-

16 Na mitologia grega eram as três Parcas, di-vindades do mundo dos mortos, governado por Hades, que fiavam o des-tino dos homens, e a qual-quer momento poderiam extinguir a vida de qual-quer mortal, bastando que para isso cortassem determinado fio.

17 A preocupação com o destino e com a ordem imanente do Universo inspiraria vários fenôme-nos sociais e religiosos no mundo grego, como as fa-mosas sentenças do Orá-culo de Delfos, a religião dos Mistérios de Elêusis e a seita órfica. Era comum a compreensão de que havia uma ordem natu-ral, na qual nem homens nem deuses poderiam escapar. O espírito grego aspirava a compreender essa realidade. Relembre-mos, também, que tanto Platão como Aristóteles situavam a máxima felici-dade na contemplação da realidade, no pleno enten-dimento do mundo.

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los da nação, que neles bebe o seu pensamento, ideais e normas para a vida”

(JAEGER, 2003, p. 68)

Esse ideal de herói se tornaria, posteriormente, uma espécie de lei para o cidadão grego, pois a poesia e o mito, antes mesmo da lei, foram as primei-ras manifestações da educação. Antes mesmo de o membro da polis obe-decer o Direito, ele já havia se habituado a cultivar-se no ideal de homem difundido pela poesia homérica, que tem na ira de Aquiles sua mais alta representação.

A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. É o triunfo do herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica aristeia. (JAEGER, 2003, p. 75)

E é nessa ação ousada e deliberada, de colocar a própria vida em risco para elevar-se à glória heroica, em que consiste toda a força educadora da Ilíada. Os gregos não viam em Aquiles um herói comum, realizador de gran-des feitos mas que perece no ato de tentar mais uma ação, mas o mais nobre dos heróis, aquele que é capaz de antecipadamente saber que o maior dos feitos exige também o maior dos sacrifícios. E é essa moral, centrada essen-cialmente na figura heroica, no Aquiles da Ilíada homérica, que consolida-rá historicamente o ideal de homem da cultura grega. A moral grega não estava preocupada com o cidadão comum, desejante tão somente de uma vida prazerosa e tranquila, como teria sido a vida de Aquiles, mas a do herói, e mais do que o herói, aquele herói que é capaz de entregar a própria vida pelo ato heroico. Pátroclo não morreu devido à luta, mas à ociosidade de Aquiles; é na luta e na realização que se situa a ação heroica.

O heroísmo e o destino do herói ligado à morte18 revelam ainda outro traço marcante de Homero, que influenciaria o pensamento grego em geral: a ideia de uma lei superior e universal. Há um ritmo uniforme, permanente, em que todo o movimento se realiza por ação própria, e nisso entram as ações de homens e deuses, heróis e não heróis, trata-se de uma lei maior que governa a vida em geral, e que se situa no limiar da Moral e da Ética. Homero preenche seus poemas com temas morais e naturalistas, descreve não somente as lutas, mas também a natureza, o cenário dos episódios, e a passagem dos tempos, demonstrando que além das façanhas humanas existe um limite imposto por uma lei universal. E dentro desse limite situa-se a Ética, como ciência que estuda a conduta humana.

Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não são convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo

18 Contudo, há uma pas-sagem importante na Odisseia, de um diálogo entre Ulisses e a psykhé de Aquiles no mundo dos mortos. Nesse trecho, constante no Canto XI, a sombra de Aquiles decla-ra, quase num alento de saudade, que as honras e lembranças dos grandes feitos só possuem valida-de entre os vivos, e tudo não passaria de sombras entre os mortos. Por esse pensamento, qualquer vida, ainda que miserável, poderia ser entendida como superior à morte. Seria preferível uma vida longa e sem glórias a um reinado no mundo dos mortos. Tal interpretação modificaria a visão de um Aquiles resoluto por uma vida trágica. (ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó. Ulisses e Aquiles repensando a morte – Odisseia, XI, 478-491 v. Revista Kriterion, 44, n. 107, jun./2003.)

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sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopeia homérica. (JAEGER, 2003, p. 78)

Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homé-ricos, tanto nas inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como nas inspirações provocadas por Atena na viagem de Ulisses. Homero não está preocupado em invadir o mundo interior de suas personagens, explo-rando suas emoções, mas as ações, os movimentos do mundo exterior que constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem dois lados: um humano, a motivação psicológica da personagem, e outro divino, que em geral se baseiam em vontades dos deuses ou na causa pri-meira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios entre os deuses, que, ainda que em alguns momentos se revele conflituo-sa entre as próprias figuras divinas, demonstra como além do protagonista existe sempre uma outra ordem a julgar e decidir o futuro.

Também a Odisseia é repleta delas. Toda a saga de Ulisses é permea-da tanto pelo dilema psicológico, a sua soberba contra os deuses, como também pela vontade divina, de Posêidon, em prejudicar o herói. Contu-do, nesse limiar do humano com o divino existe uma ordem que supera inclusive tal ligação. Por exemplo, mesmo Posêidon desejando aniquilar Ulisses por sua soberba, assim não pode fazê-lo, pois o destino do herói já estava traçado, já estava determinado que ele deveria retornar à sua terra natal. Nesse contexto, Posêidon poderia apenas causar-lhe mais problemas e atrasar sua viagem.

Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para quê Posêi- don provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar? Porém, foi somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial é que Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem, mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero, que liga o humano ao divino, e inclusive apresenta consequências além dessa dimensão. Tal Justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em que a Ética se preocupa com a formação do homem.

É nesse sentido espiritual, que inclusive antecipa muitas ideias da filosofia grega em geral, que se encontra a ideia de Justiça em Homero. A justiça ho-mérica está estabelecida num patamar elevado em que se liga o humano ao divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada a expandir-

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-se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento que a ordem natural e superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação Ética não pode ser separada do movimento natural do Universo, da fluidez do mundo exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele que dentro desse cenário aparentemente limitado é capaz de, através das virtudes do herói, realizar e construir uma vida sublime. A Justiça está nesse agir ético, é uma concepção de Justiça que se define a partir de um ideal de homem formado pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem como cerne. Nesse sen-tido, a Justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às leis, mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem grego, do homem nobre.

HesíodoDepois de Homero houve outro grande poeta que influenciaria bastante

a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensa-gens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido por Homero persiste, mas agora não revelado apenas as lutas e guerras gran-diosas, mas também no árduo trabalho cotidiano.

De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. A primeira narra em forma de mitos a origem genealógica dos deuses, desde os deuses primordiais, que participaram da criação do Universo segundo a visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros. Também apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sa-grado por Prometeu e a criação de Pandora, a primeira mulher.

Já Os Trabalhos e os Dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o pró-prio poeta, falando em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade inspirados pelas Musas19, que procura dizer algumas verdades ao seu irmão Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos em su-cessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a Justi-ça e pune os injustos, de como a Justiça está pautada na medida, e a hýbris

19 Na mitologia grega, as Musas eram as nove filhas da união de Zeus com Mnemósina, que personi-fica a Memória. Nasceram logo após a grande vitó-ria dos deuses olímpicos contra os titãs, para justa-mente cantar as enormes façanhas dos vencedores. “As musas são apenas as cantoras divinas, cujos coros e hinos alegram o coração dos Imortais, já que sua função era presidir ao pensamento sob todas as suas formas: sabedoria, eloquencia, persuasão, história, mate-mática, astronomia. Para Hesíodo, são as Musas que acompanham os reis e ditam-lhes as palavras de persuasão, capazes de serenar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. (BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. 2. ed. Petró-polis: Vozes, 1997. v. II. p. 150-151.)

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(excesso) é aquilo que os deuses não aceitam. O poeta também fala a seu irmão do valor do trabalho, que representa a vitória pessoal dentro de um caminho honesto. Tudo isso traz o poeta através de relatos míticos: as duas lutas, Prometeu e Pandora, e o mito das cinco raças.

É, portanto, em Os Trabalhos e os Dias que concentraremos os nossos es-tudos, sobretudo na importância que o poeta dedicou às categorias justiça e trabalho, e como elas se entrelaçam numa conotação pedagógica para seu povo.

Em Hesíodo revela-se a segunda fonte de cultura: o valor do trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias dado pela posterioridade ao poema rústico didático de Hesíodo, exprime isso perfeita, mente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre os cavaleiros nobres e seus adversários. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos tem o seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço de uma humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo trabalho. A vida despreocupada da classe senhorial em Homero não deve induzir-nos em erro: a Grécia exige dos seus habitantes uma vida de trabalho. (JAEGER, 2003, p. 85)

Hesíodo centra seus esforços na formação do cidadão comum, o cida-dão de seu tempo, ligado a uma época ainda agrária da história helênica. A região grega não possui um solo rico, os benefícios que se podem tirar dele somente surgem se arrancados mediante o trabalho árduo, uma verdadeira luta do homem com a natureza. Hesíodo narra a “idade do ferro”, um período distante dos tempos dourados, e que em sua passagem cronológica teve como resultado a “subversão do direito, da moral e da felicidade humana nos duros tempos atuais” (JAEGER, 2003, p. 87). A passagem da história das cinco idades do mundo, que Hesíodo narra em Os Trabalhos e os Dias, revela esse sentimento pessimista que tem na idade do ferro seu ápice.20 Existiram cinco raças de humanos: a raça de ouro, a raça de prata, a raça de bronze, a raça dos heróis e a raça de ferro. Cada raça possui uma vida mais breve e mais sofrida, mais abalada pelas misérias do mundo do que a raça anterior.

Ainda assim, esses camponeses a quem Hesíodo se dirigia de modo algum devem ser confundidos com sujeitos incultos. Na Grécia hesiódica, em particu-lar a Beócia, região onde vivia o poeta, ainda não existiam as grandes metrópo-les. As cidades eram ainda bastante rurais, o que não impediu que a população já cultivasse o espírito político, ético e jurídico. Na região da Beócia os cidadãos reuniam-se em grande número nas cidades para discutir as questões políticas, e impedir a opressão das classes mais elevadas da sociedade. Exemplo disso está no poema de Hesíodo, em que o autor critica severamente o seu irmão Perses, que entregava a vida à preguiça, à inveja e às reclamações.21

20 Um rápido resumo das cinco raças é importante também para compreen-der a diferença de “eras” que Hesíodo via na sua era, em comparação àquela narrada por Homero. A primeira raça é a de ouro, nela os homens viviam com os deuses, e por isso não conheciam miséria nem dor. A segunda raça é a de prata, bastante inferior à primeira, pois aqui os homens vivem 100 anos como crianças junto às mães, e logo quando alcançam a ado-lescência morrem porque não conseguem conter a louca hýbris dentro de si, o excesso provocado pelas paixões arrebatado-ras. A terceira raça é a de bronze, dedicada às prá-ticas de guerra e à violên-cia; trabalham o bronze na confecção de armas, e vivem e morrem lutan-do; a quarta raça é a dos heróis, dos semideuses, que perecem como heróis mas depois suas almas habitam tranquilas a Ilha dos Bem-Aventurados; aqui se situam os heróis da Ilíada, por exemplo, e por isso a poesia homérica situa-se nessa era; por fim, a quinta raça é a do ferro, aquela em que vive Hesío- do, quando os homens são obrigados a trabalhar durante toda a vida para não morrerem de fome e miséria. (LAFER, Mary de Camargo Neves. Co-mentários. In: HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução de: LAFER, Mary de Camargo Neves. São Paulo: Iluminuras, 1996. p. 79-80.)

21 Vejamos um trecho de Hesíodo: “trabalha, ó Perses, divina progênie, para que a fome te de-teste e te queira a bem coroada e veneranda De-méter, enchendo-te de alimentos o celeiro; pois a fome é sempre do ocioso companheira; deuses e homens se irritam com quem ocioso vive”. (HESÍ-ODO. Os Trabalhos e os Dias, p. 45.)

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Em outra passagem, não menos incisiva, o poeta denuncia os corruptos juízes de seu tempo, utilizando-se de uma fábula, a do gavião e do rouxinol. Essa fábula abre a seção de seu texto intitulada “A Justiça”:

Agora uma fábula falo aos reis mesmo que isso saibam. Assim disse o gavião ao rouxinol de colorido colo no muito alto das nuvens levando-o cravado nas garras; ele miserável varado todo por recurvadas garras gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo: “Desafortunado, o que gritas? Tem a ti um bem mais forte; tu irás por onde eu te levar, mesmo sendo bom cantor; alimento, se quiser, de ti farei ou até te soltarei. Insensato quem com mais fortes queira medir-se, de vitória é privado e sofre, além de penas, vexame. (HESÍODO, 2002, 9. 39-40)

É uma crítica feroz de Hesíodo, que tornando-se porta-voz de seu tempo denuncia a opressão que vivia grande parte da população diante daqueles que mantinham os poderes políticos e econômicos. A denúncia é pontual, direta aos corruptos. Tal crítica não pode ser resumida a uma classe da comuni-dade, mas a todos aqueles indivíduos que detêm mais poder e representação, sejam posições sociais, jurídicas, econômicas, políticas, e por essa vantagem se aproveitam e brincam com as vidas dos demais indivíduos tal como o gavião brinca com o rouxinol. Outra mensagem importante nessa citação é que Hesí-odo aconselha a não medir-se com aqueles considerados mais fortes, pois se assim como o rouxinol nada pode fazer com o gavião, um homem comum só tem a perder se decidir enfrentar alguém de maior poder e influência social. Hesíodo reprova o caminho dos conflitos e das intrigas, e aconselha a todos a percorrerem o caminho do trabalho, que é mais digno, honesto, e os frutos são merecidos, pois são conquistados pelo próprio esforço e mérito, e não exige a necessidade de se medir com indivíduos mais poderosos.

O leitor percebe então como a Ética de Hesíodo distancia-se da ética ho-mérica por tentar situá-la num plano mais terreno, material, diferente da gran-diosidade da Ilíada e da Odisseia, que buscam um ideal elevado de homem, talvez difícil de ser alcançado. O ideal de Hesíodo relaciona-se diretamente à situação histórica de seu povo, tem efeitos práticos imediatos, é a luta co-tidiana contra o solo, contra a natureza, contra a opressão, é a luta dos cida-dãos comuns pela aplicação do Direito. Nesse sentido, Hesíodo diferencia-se ainda mais de Homero, sua poesia abandona a objetividade da epopeia e encarna o ideal de seu povo, passando a defender o Direito e atacar a injusti-ça em primeira pessoa.“Em Hesíodo introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalização a todos esses elementos e adquire uma elaboração poética em forma de epopeia: a ideia do Direito. A propósito da luta pelos próprios Direitos, contra as usurpações do seu irmão e a venalida-de dos nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, “Os Erga”, uma

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fé apaixonada pelo Direito. A grande novidade dessa obra está em o poeta falar na primeira pessoa. Abandona a tradicional objetividade da epopeia e torna-se porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direi-to. É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica sustentada contra o seu irmão Perses, que justifica essa ousada inovação. Fala com Perses e dirige a ele admoestações. Procura convencê-lo de mil maneiras de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juízes da Terra a espezinhem, e de que os bens mal adquiridos nunca prosperam”. (JAEGER, p. 91)

Tal como o poeta da Ilíada e da Odisseia, Hesíodo também concebe o Direito e a Justiça como bens divinos, relacionados a Zeus, e as injustiças terrenas como meros fatos existenciais humanos. Hesíodo se põe como in-terlocutor das Musas, e não o autor propriamente dito, de forma que em várias partes de seu poema acompanha-se prodigiosas preces a Zeus e ar-gumentos tentando convencer Perses da condição divina da justiça, por ser esta obra do senhor do Olimpo.

O fato de se pôr ainda em primeira pessoa revela esse caráter apelativo, de compreender os Os Trabalhos e os Dias não somente como poema didático, mas também como clamores de todo um povo por Justiça. A veemência com que Hesíodo maldiz a injustiça e as condutas de Perses corroboram essa ideia.

Àqueles que a forasteiros e nativos dão sentenças retas, em nada se apartando do que é justo, para eles a cidade cresce e nela floresce o povo; sobre esta terra está a paz nutriz de jovens e a eles não destina penosa guerra o longevidente Zeus: nem a homens equânimes a fome acompanha nem a desgraça: em festins desfrutam dos campos cultivados; a terra lhes traz muito alimento; nos montes, o carvalho no topo traz bálanos e em seu meio, abelhas; [...] Àqueles que se ocupam do mau excesso, de obras más, a eles a Justiça destina o Cronida, Zeus longevidente. Amiúde pega a cidade toda por um único homem mau que se extravia e que maquina desatinos. Para eles do céu envia o Cronida grande pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos [...]. (HESÍODO, 2002, p. 39-41)

Um governante corrupto, portanto, atrai sozinho toda a desgraça para o seu povo, pois pratica atos injustos que são odiados por Zeus. Hesíodo pontua aqui a responsabilidade maior dos líderes, que por representarem in-teresses de toda uma população não devem pensar somente em si mesmos, mas na coletividade, pois o fracasso dele é também fracasso de muitas outras pessoas. Hesíodo lamenta ter nascido em um momento histórico em que vigora unicamente o direito do mais forte, e não a justiça em seu sentido pleno e divino.

Essa passagem também pode ser transportada para a esfera jurídica da contemporaneidade, como crítica aos juízes que não exercem suas profis-sões com a devida ética que deles se espera. Em muitos casos impera o di-

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reito do mais forte, dos juízes que, comandando o Direito, fazem da Justiça um instrumento para alcançar seus interesses e satisfações. O gavião não está preocupado com a vida e destino do rouxinol, assim como muitos juízes não se interessam pela vida das partes as quais chegam até ele querendo resolver um conflito. Essa atitude autoritária reduz o Direito a um simples ins-trumento, longe de sua antiga acepção divina e nobre que tanto sustentou Homero ao enaltecer as virtudes do herói. Salienta-se, porém, que o objetivo de Hesíodo é pedagógico, é demonstrar a fraqueza do Direito de seu tempo, ensinando aos indivíduos comuns como interagir no processo judicial, e ten-tando romper com o autoritarismo dos juízes e senhores do poder.

Ainda na temática Justiça, Hesíodo trabalha a questão do Direito na ideia de um processo. Nesse sentido, a luta divina dos heróis em Homero converte- -se na luta pelo Direito em Hesíodo, representada na forma do processo. Porém, a luta divina em Hesíodo é diferente daquela em Homero, no que con-cerne à participação dos deuses nos grandes eventos. Pois se na Ilíada e na Odisseia os deuses faziam intervenções no decorrer da história, favorecendo esse ou aquele personagem, Hesíodo se limita a rogar a Zeus para que se faça a justiça, pois sua condição humana, pertencente à raça de ferro, não lhe ga-rante acesso a esse nível de conhecimento, o das ações e intenções divinas. Os heróis podiam recorrer e pedir auxílio aos deuses, os homens da raça de ferro não, por se situarem numa posição inferior, se comparada às raças anteriores.

Entretanto, a ação judicial também pode ser compreendida como um con-flito divino. Ainda que de fato um processo não receba dos deuses a mesma atenção que merece uma epopeia, a ação judicial envolve a aplicação humana da Justiça, ou seja, a aplicação daquilo que deseja Zeus para os humanos. A poesia desenvolve-se na história de um processo resultante de uma herança, em que Perses, após subornar o juiz, consegue contrair para si mais da metade dos bens a que tinha direito. Hesíodo desfere severas críticas a Perses, devido à sua cobiça, assinalando ainda que o único caminho aceitável para a obtenção de riquezas é pelo trabalho. “O trabalho é, de fato, uma necessidade dura para o Homem, mas uma necessidade. E quem por meio dele provê sua modesta subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injustamente os bens alheios” (JAEGER, 2003, p. 93). O trabalho não constitui por si só uma benção, mas seus resultados consentem realização e paz. Ainda que árduos e cansativos, é somente pelo trabalho que o homem pode conquistar seus bens sem ferir a justiça divina implementada por Zeus. Esse caráter aparentemente contraditório, de sofrimento de um lado e tranquilidade de outro, revela-se em Hesíodo também de forma religiosa e mítica, através do mito de Prome-teu. Para Hesíodo, o sofrimento advindo do labor não pode ser algo natural ao

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homem, pois a dor e o sofrimento não condizem com a natureza divina, nem com a ordem das coisas. Sendo assim, o trabalho e o sofrimento só podem ter surgido em algum dado momento da história da humanidade.

Hesíodo aplica a forma “causal” de pensar, própria da Teogonia, à história de Prometeu, nos Erga, e aos problemas éticos e sociais do trabalho. O trabalho e os sofrimentos devem ter aparecido algum dia no mundo. Não podem ter feito parte, desde a origem, da ordem divina e perfeita das coisas. Hesíodo assinala-lhes que encara do ponto de vista moral. Como castigo, Zeus criou a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os demônios da doença, da velhice, e outros males mil que hoje povoam a Terra e mar. (JAEGER, 2003, p. 85)

Como se percebe, o sofrimento provocado pelo trabalho advém desse fato anterior cometido, que possui também relação com o mundo jurídico – o roubo do fogo sagrado cometido por Prometeu. É devido a esse espírito religioso que o trabalho recebe a conotação de ser exaltado; para o homem comum trabalhar não significa somente o árduo esforço de se livrar de uma vida preguiçosa e desviante, mas também vivenciar a humildade dos mor-tais perante os deuses do Olimpo. Aqui clareia-se ainda mais o ideal peda-gógico da poesia hesiódica. O primeiro mito narrado nos Erga, a narração das cinco idades do mundo, com suas cinco raças, demonstra o processo de degeneração do homem através dos tempos, passando de uma raça feliz e sem a necessidade de recorrer ao trabalho até a raça de ferro, a humanidade do período em que vive Hesíodo. Esse mito depois é seguido pelo mito de Prometeu, que narra o início do trabalho e do sofrimento do homem.

Como síntese, então, Hesíodo vê o trabalho como uma condição sofrida e árdua aos humanos, mas que é a única via aberta pelos deuses à rique-za justa. Aquele que enriquece pelo próprio esforço é agraciado por Zeus, aquele que procura enriquecer com base na injustiça é desgraçado pelo senhor dos deuses. Concluindo essa análise, final da primeira parte da obra:

Não faças maus ganhos, maus ganhos granjeiam desgraça.

Ama a quem te ama e frequenta quem te frequenta;

Dá a quem te dá e a quem não te dá, não dês.

Ao que dá se dá e ao que não dá, não se dá.

Doar é bom, roubar é mau e doador de morte;

Pois o homem que dá de bom grado, mesmo doando muito,

Alegra-se com o que tem e em seu ânimo se compraz.

Confiando na impudência, quem para si próprio furta,

Mesmo sendo pouco, deste se enrijece o coração,

Pois se um pouco sobre um pouco puseres

E repetidamente o fizeres logo grande ficará.

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Quem acrescenta ao que já tem ardente fome afastará;

O armazenado em caso desassossego ao homem não traz;

Melhor é o de casa, o de fora danoso é.

Bom é pegar do que se tem; para o ânimo é provação

Precisar do que não há; convido-te a nisto pensar!

[...]

Facilmente imensa fortuna forneceria Zeus a muitos:

Quanto maior for o cuidado de muitos, maior o ganho.

Se nas entranhas riqueza desejar teu ânimo,

Assim faze: trabalho sobre trabalho trabalha. (HESÍODO, 2002, p. 49-51)

Implicações de Homero e Hesíodo para o mundo do business

Nos poemas homéricos pode-se encontrar diversos exemplos de pers-pectivas de conhecimentos, habilidades e atitudes que possam implicar con-tribuições para o mundo empresarial. Os personagens da Ilíada e da Odisseia são ricas fontes para análises nesse sentido. Já foi comentado como Homero louva o heroísmo de seus personagens, como enaltece a coragem e as ações grandiosas, a capacidade de realizar grandes empreendimentos. Agamem-non, por exemplo, na Ilíada incorpora a figura do verdadeiro líder, aquele que é capaz de unir os vários lados de uma equipe, que é capaz de aprovei-tar ideias dos companheiros e estimulá-los a darem o melhor de si mesmos. Quando os gregos encontravam-se divididos entre a vontade de lutar de Ulisses e a retirada de Aquiles, acometeu-se o temor a todos os guerreiros de que não poderiam vencer os troianos sem a ajuda de Aquiles. Agamemnon é a racionalidade que não se deixa abater pelos maus momentos, é ele quem reúne os guerreiros e encoraja-os a seguirem lutando. Todo líder empresarial deve ter essa postura de Agamemnon, pois as crises e os momentos difíceis para a empresa vez ou outra aparecerão, e caberá ao líder não se permitir abater e enfraquecer a coragem dos demais colaboradores. O empresário, ainda, deve estar atento às intrigas dentro da organização, perceber quando um grande diretor não está querendo render aquilo que tem potencial para oferecer, como é o caso de Aquiles, e perceber como tudo isso pode influen-ciar nos desempenhos gerais da empresa. O empresário deve saber estimu-lar a todos os seus colaboradores e permanecer sempre desperto, para ante-cipar ou resolver possíveis intrigas que dividam o grande grupo.

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Mas o grande personagem da Ilíada é certamente Aquiles. O protagonista inicia a história dividido em um grande dilema – não lutar e levar uma vida medíocre como imortal por toda a eternidade, ou avançar à batalha e nela morrer como herói. Após várias pressões de Agamemnon ele dirige-se a Troia junto aos demais, mas a princípio não participa dos combates. É somente quando o seu melhor amigo, Pátroclo, é morto em batalha por Heitor, que Aquiles abandona a inércia e enfrenta os inimigos. Mais tarde morrerá, atin-gido em seu ponto fraco, o calcanhar, contudo, sua morte sucede da forma como esperava, como o maior herói da Ilíada. Aquiles é o ponto mais alto da coragem heroica na Ilíada; embora todos os personagens sejam corajosos, é ele quem a conduz a seu ponto mais sublime. A eleição de morrer por uma causa heroica é certamente uma atitude corajosa, mas também demonstra intemperança, o vício de não medir as consequências de cada ação.

Como também foi comentado anteriormente, na Odisseia, Aquiles, já entre os mortos, trava um memorável diálogo com Ulisses, no qual afirma estar arre-pendido de ter morrido, pois as lembranças heroicas e as grandes façanhas só possuem validade entre os vivos, não no mundo dos mortos, e que uma vida miserável e longa vale mais que uma breve e heroica. Aquiles é paradoxal, um personagem complexo, capaz de passar de um extremo a outro sem grandes dificuldades. Da inércia completa à luta extrema, da imobilidade ao heroísmo, e deste para o arrependimento desolador. Aquiles possui grandes virtudes que podem ser aproveitadas pelo empresário, como sua elevada coragem, a audá-cia de querer ser um gigante eterno, mas também possui pontos fracos que precisam ser superados, em especial a sua intemperança, que lhe causa trans-tornos a ponto de retirar-lhe a racionalidade na maior parte das vezes. Aquiles não se guia pela razão, mas pelo impulso, pela emoção, e isso também foi sua ruína. O empreendedor precisa basear-se na racionalidade medida, propor-cional aos acontecimentos, deve entender cada momento, e decidir pela ação que melhor cabe naquele problema. O empresário não pode ser inerte, se re-cusando a lutar, mas também não pode se dedicar a um grande feito heroico, se isso depois significa sua ruína ou uma tragédia para sua organização. Não, o business exige racionalidade, medida, cálculo, saber pontuar o que é mais exato para cada momento.

Do lado dos troianos encontramos a figura de Príamo, pai de Heitor, que após ver o corpo de seu filho ser castigado durante 10 dias por Aquiles, desce de sua fortaleza e aceita a humilhação de suplicar ao inimigo para que lhe entregue o corpo de Heitor. Na cultura dos povos antigos, não ser sepultado

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era considerado como uma maldição, e este era o grande temor de Príamo. Aquiles concedeu ao imploro de seu adversário, significando em seguida um período de trégua entre os combatentes. Isso demonstra um grande mérito na atitude de Príamo: a humildade. Homero nos revela aqui como mesmo em uma das mais sangrentas batalhas é possível haver o respeito e as regras entre os exércitos inimigos. Apresenta, ainda, como é necessário também saber negociar e por vezes até se humilhar a outrem, quando isso for preciso para se obter algo conveniente naquela situação. A humildade também é um ponto característico de Ulisses, na Odisseia.

A Odisseia é a saga de Ulisses, a narração de seu retorno a Ítaca depois dos perigos atravessados em Troia. Ulisses em várias passagens demonstra hu-mildade, pois ao reconhecer não ter muitas ideias sobre que decisões tomar em determinadas situações, ouve seus companheiros. Ulisses não é o líder rígido e autoritário, mas um líder que sabe usar o conhecimento dos demais. O conhecimento, aliás, é ponto fundamental nessa história. Em várias oca- siões, por falta de conhecimento, Ulisses tem sua viagem atrasada, causando diversos problemas à tripulação, como ao não saber das dificuldades envol-vendo o canal no qual se encontravam os monstros Cila e Caribdes. Também sua falta de conhecimento em relação às ilhas que se situavam entre Troia e Ítaca lhe causaram estorvo, como ao parar no palácio de Circe. A falta de co-nhecimento, aliada à falta de estratégia, são situações idênticas àquelas vivi-das pelos empresários que possuem domínio técnico de algumas atividades, ou não elaboram planejamentos consistentes a médio ou longo prazos. Não basta vontade, coragem, atitude, é preciso ter inteligência também. Embora Ulisses fosse homem bastante corajoso, lhe faltavam demasiados aspectos técnicos, que se fossem diferentes certamente resultariam numa viagem de volta muito mais rápida e tranquila.

Junto às atitudes e conhecimentos temos o terceiro termo do nosso con-ceito de competências: a habilidade. Ulisses possuía vários saberes práticos, quase intuitivos, que lhe possibilitavam tomar decisões urgentes de modo funcional e exato. Um exemplo disso é a passagem pelo estreito guardado pelas sereias. Ulisses sabia que todo homem a ouvir os lindos cantos das sereias instantaneamente se permitem seduzir e se entregam a elas, aban-donando a missão, e por vezes resultando na própria morte. Ainda assim, o canto das sereias precisaria ser ouvido, sabia Ulisses, porque é nele que elas entoariam também as palavras que descreveriam o caminho de volta para casa. Ulisses armou um plano, ordenando que todos os homens tampassem seus ouvidos, e somente ele pudesse ouvir. Para não se lançar junto a elas,

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mandou também que lhe amarrassem com várias e pesadas cordas junto ao mastro. Por fim, Ulisses ouviu os cantos e permaneceu no navio, conseguin-do as informações que necessitava. Esse é um saber prático, que chega in-tuitivamente na hora da necessidade. O empresário precisa ter esse tirocínio intuitivo, que ao ver o problema prontamente descobre a melhor saída para da dificuldade obter proveitos.

Por fim, outro ponto importante e que merece ser destacado em Homero é seu respeito pelo direito positivo e pelos critérios convencionais. Ulisses implementou instituições de direito positivo para sua ilha, de forma que ele sabia que ao retornar poderia encontrar pretendentes para sua esposa Pené-lope. Ulisses enfrentou esse problema com inteligência, utilizando primeiro de disfarces, para melhor conhecer seus inimigos. Também seu filho Telê-maco precisou conhecer as regras para evitar que os pretendentes se apro-ximassem de sua mãe. Igualmente o empresário é obrigado a conhecer as regras da sociedade, tanto as convencionais como aquelas próprias do direi-to positivo, ou então terão problemas em várias questões. Não conhecer as regras da sociedade pode significar erros tanto de aspectos morais, como ir contra os costumes daquele povo, até problemas mais graves, como alguns de ordem tributária ou trabalhista. Diversos empresários sofrem sérios abalos financeiros simplesmente por desconhecerem as nuances das leis trabalhis-tas, que possuem inúmeros casos específicos, e em geral defendem a figura do empregado contra o empregador.

Ulisses representa também uma ideia de justiça ligada ao herói. Ulisses coloca a própria vida em risco constantemente, mas porque sabe que suas vitórias sempre conduzirão a proveitos para si e para os demais.

Assim como o desconhecimento é um problema, a desatenção por pos-suir considerável conhecimento ou domínio técnico de algo também pode criar situações adversas. Como exemplos temos a tripulação de Ulisses, em que uma relativa parcela dos guerreiros morrem naquilo que fazem melhor, por não estarem concentrados o suficiente fracassam.

Também Hesíodo oferece uma série de análises que podem contribuir com o mundo empresarial. Já foi dito nas análises ao longo do texto que o trabalho, para Hesíodo, era também uma forma de realizar o contato entre o homem e o mundo, que nos tempos hesiódicos significa dizer, “fazer com que os indivíduos de seu tempo transformassem o solo em riqueza”. Não era a época da fartura, mas do sofrimento, da pobreza. E Hesíodo tentou incutir-

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-lhes essa nova mentalidade, esse novo estilo de vida – que é pelo traba-lho que se transforma o mundo e a si mesmo. E essa transformação não é somente na condição econômica, mas também existencial; o indivíduo, ao trabalhar a natureza, trabalha também o seu interior. Nesse sentido, o tra-balho recebe uma dimensão pedagógica. Essa perspectiva revela contornos mais evidentes ainda nos dias atuais, em que as empresas, mais até do que as famílias, realizam a função social de educar a pessoa. Por exemplo, é na orga-nização que o colaborador participa de diversos cursos, desde atualizações técnicas sobre as áreas em que trabalha até de temáticas envolvendo recur-sos humanos ou de etiqueta profissional. Ou seja, no trabalho, o indivíduo aprende a lidar com seus dilemas, desejos, vontades, virtudes e defeitos. A paideia hoje se faz na empresa, com as organizações ensinando seus cola-boradores a viver melhor, a criarem hábitos mais refinados, novos estilos de vida, e atitudes mais adequadas para o cotidiano.

E se o trabalho ajuda as pessoas a melhorarem de vida, certamente também pode ajudar a sociedade como um todo, o mundo, a se desenvolver mais. Re-tomando aquela ideia pedagógica de Hesíodo como o poeta de seu povo e seu período histórico, deve-se considerar também a função social do traba-lho, aquela de tentar criar um mundo mais equânime. No Direito se fala em igualdade formal, aquela igualdade proveniente da Constituição Federal, que afirma serem todos iguais perante a lei, e uma igualdade material, que seria aquela igualdade existente na prática. Ou seja, ainda que sejamos todos iguais perante a lei, concretamente falando isso nem sempre ocorre, tendo em vista as enormes diferenças econômicas nas sociedades contemporâneas. A única forma de tentar reparar essa disparidade é pelo trabalho, não pelo assisten-cialismo. É no trabalho que a pessoa transforma a si mesma e ainda cresce fi-nanceiramente. Os empresários precisam cultivar também essa preocupação, concebendo suas organizações como instrumentos de desenvolvimento em-presarial, político e social, auxiliando o comunidade a dar um salto de vida.

Interessante também comparar alguns aspectos envolvendo Homero e Hesíodo. Em Homero está mais forte o Direito ligado às questões urbanas, como aquelas que surgem para Ulisses no retorno a Ítaca, enquanto que em Hesíodo é mais evidente o direito rural, com a condição dos camponeses que precisavam enfrentar problemas de corrupção e abuso de poder por parte dos grandes proprietários de terra. Também Hesíodo se liga mais ao direito natural, pois torna explícito a corrupção implícita que existe em vários atos legais mas eticamente incorretos, praticados por proprietários. Tal situação, como já dissemos, está simbolizada na parábola do gavião e do rouxinol.

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Os deuses da religião pública e sua relação com a Filosofia

(REALE, 1993)

Estudiosos afirmaram em várias ocasiões que entre religião e Filosofia exis-tem laços estruturais (Hegel dirá até mesmo que a religião exprime pela via representativa a mesma verdade que a Filosofia exprime pela via conceitual): e isso é verdade, seja quando a Filosofia subsume determinados conteúdos da religião, seja, também, quando a Filosofia tenta contestar a religião (nesse último caso, a função contestatária permanece sempre alimentada e, por-tanto, condicionada, pelo termo contestado). Pois bem, se isso é verdade em geral, o foi de modo paradigmático entre os gregos.

Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e reli-gião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há uma divisão claríssima: em mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da Filosofia que se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a compreensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, portanto, fatalmente a perspectiva de conjunto. E isso aconteceu justamente com Zeller e com o nu-meroso grupo dos seus seguidores ( e, portanto, com o grosso da manualísti-ca que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).

O estudioso alemão soube indicar bem exatamente os nexos entre religião pública grega e filosofia grega (e sobre esse ponto nós reproduziremos as suas preciosas observações, que continuam paradigmáticas), mas depois caiu numa visão totalmente unilateral, desconhecendo a incidência dos mistérios, e em particular do orfismo, com as absurdas consequências que apontaremos.

Mas, por enquanto, vejamos a natureza e a importância da religião pública dos gregos e em que sentido e medida ela influiu sobre a Filosofia. Pode-se dizer que, para o homem homérico e para o homem grego filho da tradição homérica, tudo é divino, no sentido de que tudo o que acontece é obra dos deuses. Todos os fenômenos naturais são promovidos por numes: os trovões e

Ampliando seus conhecimentos

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os raios são lançados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são levan-tadas pelo tridente de Posêidon, o sol é carregado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante. Mas também os fenômenos da vida interior do homem grego individual assim como a sua vida social, os destinos da sua cidade e das suas guerras são concebidos como essencialmente ligados aos deuses e condicionados por eles.

Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconhece acertada-mente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos dos homem sublimados, hipostasiados; são forças do homem cristalizadas em belíssimas figuras. Em suma: os deuses da religião natural grega são homens amplificados e idealizados; são, portanto, quantitativamente superiores a nós, mas não qualitativamente diferentes. Por isso a religião pública grega é cer-tamente uma forma de religião naturalista. É tão naturalista que, como jus-tamente observou Walter Otto, “a santidade aí não pode encontrar lugar”1, uma vez que pela sua própria essência os deuses não querem, nem poderiam, elevar o homem acima de si mesmo. De fato, se a natureza dos deuses e dos homens, como dissemos, é idêntica e se diferencia somente por grau, o homem vê a si mesmo nos deuses, e, para elevar-se a eles, não deve de modo algum entrar em conflito com ele mesmo, não deve em nenhum sentido morrer em parte a si mesmo; deve simplesmente ser si mesmo.

Portanto, como bem diz Zeller, o que a divindade exige do homem “não é de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não uma luta contra as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vi-goroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso con-siste essencialmente nisso: que o homem fala, em honra da divindade, o que é conforme com a sua natureza”2.

Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais antiga Filosofia foi naturalista; e mesmo quando a Ética conquistou a preemi-nência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”3.

Isso é indubitavelmente verdadeiro e bem estabelecido, mas ilumina apenas uma face da verdade.

Quanto Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses de-

1 W. F. Otto. Die Götter Griechenlands, Frankfurt AM Main 1956; trad. Ital. Florença 1941 (Milão 1968), p.9.

2 Zeller-Mondolfo, I, 1, P. 105.

3 Zeller-Mondolfo, I, p. 106.

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rivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras falar de transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das almas, e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será profundamente lesionado, e tal lesão não será compreensível senão remeten-do-se à religião dos mistérios, particularmente ao orfismo.

Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica.

Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina re-velação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesí-odo). Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacer-dotal que custodiasse os dogmas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclu-sividade de oficiar os sacrifícios).

Ora, a falta de um dogma e de guardiões dele deixou a mais ampla liber-dade à especulação filosófica, a qual não encontrou obstáculos de caráter religioso semelhantes aos que se encontrariam entre os povos orientais, difi-cilmente superáveis. Justamente por isso os estudiosos destacam essa fortu-nosa circunstancia na qual se encontraram os gregos, única na antiguidade e cujo alcance é de valor verdadeiramente inestimável.

Atividades de aplicação1. Em Homero todos os personagens recebem contornos heroicos, no

sentido de que uma vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a vida passiva. Relacione essa questão às problemáticas atuais, refletin-do sobre o papel do cidadão de hoje na sociedade.

2. Para Homero, ainda que os personagens sejam em geral heróis, ca-pazes de realizações sobre-humanas, é notável a presença do destino como limite divino às ações em batalha. Reflita sobre a existência em geral: existe um limite no potencial de cada um dado por uma condi-ção natural?

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3. Hesíodo trabalha outro período da história grega, a qual caracteriza- -se pela difícil luta diária dos trabalhadores com a terra dura. Analise o papel pedagógico da poesia hesiódica.

4. Aborde a problemática jurídica em Hesíodo, principalmente no ponto em que ele apresenta o juiz como um tirano que se diverte com a vida das partes envolvidas no processo. Aproveite para refletir sobre o pa-pel do juiz como educador e protagonista social.

Gabarito1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações

políticas e sociais, preferindo a passividade. Comparando com o herói Aquiles, em geral as pessoas se recusariam a entrar na batalha quando soubessem dos riscos. Essa passividade gera redução de criatividade, e por consequência do desenvolvimento do potencial.

2. Não há um limite para realizações humanas, depende da vontade pos-ta e do desenvolvimento do potencial de cada indivíduo. Contudo, a natureza, ou os deuses, na visão homérica, deu potencial diferente a cada um. O potencial heroico em Homero é justamente desenvolver e realizar o máximo possível dentro desse limite imposto pelos deuses. Nesse sentido, cada pessoa deve buscar realizar o máximo que pode tirar de si mesma.

3. Hesíodo como mestre educador de seu povo se revela justamente nessa decisão de tratar não dos heróis e das eras douradas distantes, mas do aqui e agora, da realidade social e cultural de seu tempo. Todo educador deve saber se reportar aos clássicos, aos grandes mestres da cultura, mas ao mesmo tempo compreender a passagem que é neces-sária para a realidade de seus alunos. Hesíodo não é menos importante que Homero por ter trabalhado temáticas de menor grandiosidade.

4. Hesíodo apresenta o juiz como tirano, utilizando-se inclusive da pa-rábola do gavião e do rouxinol, quando o primeiro brinca com a vida do segundo. Percebe-se como a atividade judiciária sem preocupa-ção com o social já existia na Grécia Antiga. O juiz é protagonista so-cial, por carregar o poder das leis tem o dever de promover a justiça sempre em função do desenvolvimento do humano. Na atualidade, percebe-se cada vez mais a necessidade de se preparar eticamente os juízes, para que se conscientizem da enorme missão que carregam. O

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operador jurídico na Grécia era sobretudo um educador de seu povo, e assim deveria sê-lo também hoje.

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