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Mônica Amim MABINOGION: o maravilhoso e o utópico na construção da identidade galesa Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós – Graduação em Ciência da Literatura: Literatura Comparada, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura: Literatura Comparada Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho Rio de Janeiro 2006

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Mônica Amim

MABINOGION: o maravilhoso e o utópico na construção da identidade galesa

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós –Graduação em Ciência da Literatura: Literatura Comparada, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura: Literatura Comparada

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Rio de Janeiro 2006

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Amim, Mônica Mabinogion: o maravilhoso e o utópico na construção da

identidade galesa / Mônica Amim. Rio de Janeiro, 2006. 231 f.: il. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada)

– Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2006.

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho 1. Imaginários Culturais. 2. Identidade. 3. Literatura Celta. 4.

Letras – Teses. I. Coutinho, Eduardo de Faria (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Título.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Mônica Amim

MABINOGION: o maravilhoso e utópico na construção da identidade galesa

__________________________________________ Professor Doutor Eduardo e Faria Coutinho (UFRJ) ________________________________________________ Professora Doutora Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos (UFRJ) ___________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ) _____________________________________________ Professora Doutora Ângela Maria Dias de Brito Gomes (UFF) ________________________________ Professora Doutora Regina Zilberman (PUC-RS) ______________________________________ Professora Doutora Angélica Maria dos Santos Soares (UFRJ) ___________________________________ Professor Doutor Roberto Ferreira da Rocha (UFRJ) Rio de Janeiro, _________de ___________________ de 2_____ Conceito: ____________________________________________

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À Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos, a Beth. Mulher-Sol, que

com sua doçura, luz e beleza irradia amor, energia e vida para todos

que a cercam.

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AGRADECIMENTOS

A Ricardo Luiz Teixeira de Almeida, amor de ontem, de hoje e de sempre, cujo o

carinho, o afeto e a dedicação foram de valor inestimável para conclusão deste trabalho.

À minha mãe, Olga Ferreira, companheira inseparável de uma vida de sonhos, lutas e

realizações.

A Eduardo de Faria Coutinho, orientador e amigo, interlocutor instigante e fonte de

inspiração intelectual e profissional.

À Marlene Soares dos Santos, querida e eterna mestra, que com olhar atento e

sugestões preciosas está sempre pronta a nos auxiliar.

Aos meus colegas Eleonora Ziller Camenietzki, Robinson Pereira da Costa Filho e

Ana Viola - do Centro de Estudos Afrânio Coutinho – pelo valioso apoio na fase final deste

trabalho.

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Iddawg – said Arthur – I am not laughing; but rather how sad I feel that men as mean as these keep this Island, after men as fine as those that kept it of yore. (In. The Dream of Rhonabwy)

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RESUMO

AMIM, Mônica. Mabinogion: o maravilhoso e o utópico na construção da identidade galesa. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

A partir de uma reflexão sobre os elementos do maravilhoso e do utópico, presentes no conjunto das onze narrativas galesas denominadas Mabinogion, este trabalho tem como objetivo discutir quatro eixos temáticos relevantes que emergem da leitura dos textos. Assim, a importância do ato de narrar, as relações entre os poderes mágicos e o poder temporal, o papel da mulher e as linhagens, e as utopias medievais recriadas no texto são as linhas mestras para nossa reflexão. Em nosso percurso para abordar esses eixos temáticos procuramos oferecer – de modo a proporcionar ao leitor uma melhor compreensão das narrativas analisadas – um breve panorama da cultura celta e da literatura galesa medieval, um resumo dos principais aspectos do contexto sócio-político e cultural da Europa e do País de Gales entre os séculos XI e XIV e uma revisão das principais teorias e formulações (apresentadas por teóricos da literatura e por historiadores) sobre os elementos do maravilhoso e do utópico. Finalmente, ao procedermos à análise do tratamento dado nessas narrativas aos quatro eixos temáticos selecionados, procuramos refletir sobre a relevância do papel da narração na construção da identidade nacional galesa.

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ABSTRACT

AMIM, Mônica. Mabinogion: o maravilhoso e o utópico na construção da identidade galesa. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

This is a study of the marvelous and utopian elements present in the eleven Welsh medieval narratives named as Mabinogion. For practical reasons, the analysis of the texts has been divided into four thematic axes, each one dealing with a major aspect of the work: the importance of the act of narrating, the relationship between magic and temporal powers, the role of women and of family lineage, and the medieval utopias recreated in the texts. In order to provide the reader with a better understanding of the narratives, we have begun by tracing a brief cadre of Celtic culture and of Welsh medieval literature, followed by a survey of the main aspects of the social, political and cultural contexts of Europe, in general, and of Wales, in particular, from the eleventh to the fourteenth century, and by a review of the main theories and critical reflections (presented by historians and theoreticians of literature) about the marvelous and the utopian elements. Finally, when we proceeded to the analysis of the four thematic axes above mentioned, we developed a reflection upon the relevance of the role of narrating for the construction of Welsh national identity.

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RÉSUMÉ

AMIM, Mônica. Mabinogion: o maravilhoso e o utópico na construção da identidade galesa. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

Cette thèse est une reflection sur les éléments du merveilleux et de l’utopique, présent dans les onze narratives galloises dénominées Mabinogion. L’analyse des textes a été divisée dans quatre axes thématiques, chacun dévoué à un des principaux aspects de l’oeuvre : l’importance de l’acte narratif, les relations entre les pouvoirs magiques et le pouvoir temporel, le rôle de la femme et de la descendance, et les utopies médiévales recréés dans le texte. À fin d’offrir au lecteur une meilleure compréhension des narratives analisées, nous avons donné un bref cadre de la culture celtique et de la littérature galloise médiévale, suivie par un résumé des aspects principaux du contexte socio-politique et culturel de l’Europe, en générale, et du Pays du Gales, en particulier, entre les siècles XI et XIV, et par une révision des principales théories (présentées par les historiens et les théoriciens de la littérature) sur le merveilleux et l’utopique. Dans l’analyse des quatre axes thématiques séléctionnés, nous avons fait une réflection sur le rôle de la narration dans la construction de l’identité nationale galloise.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

As terras do Mabinogion – Mapa 12 País de Gales – Mapa 22 The Mabinogion – Capa da 1a Edição da Tradução de Lady Charlotte Guest, 1849

40

Lady Charlotte Guest 41 Rei Artur 49 Rei Artur e o Santo Graal 74 O País da Cocanha de Peter Bruegel (o Velho) 81 O País da Cocanha de Peter Bruegel (o Velho) 103 Capa do CD de Hugin 108 Diferentes edições do Mabinogion 121 Merlin 136 Rhiannon de Alan Lee 163 Bailiff Gessler e Guilhrme Telll depois de acertar a maçã com a flecha 179 Guilherme Tell após acertar o tirano Gessler 180 Pwyll disfarçado em mendigo 202 A cabeça de Bran 205 Pryderi e o caldeirão mágico 209 Blodeuwedd 213 Lleu transformado em águia 214 Moeda de Macsen Wledig 219 Culhwch – óleo de Arthur Gaaskin (1900) 224 Artur e Owain jogando Gwydbwyll 227

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO I OS CELTAS E SUA LITERATURA: UM MUNDO DE MARAVILHAS

19

1 – Os Celtas 23 2 – A Literatura Galesa Medieval 30 3 – The Mabinogion e a Narrativa Galesa Medieval 42 CAPÍTULO II O LUGAR DO MARAVILHOSO E DO UTÓPICO: DO SÉCULO XI AO XIV

50

1 – A Europa Medieval entre os Séculos XI e XIV: A Realidade que Clama pelo Útopico e pelo Maravilhoso

54

2 – O Cotidiano Galês entre os Séculos XI e XIV: A Maravilhosa Luta por uma Utopia

68

3 – Breve Olhar Comparativo sobre o Imaginário Medieval no País de Gales e na Europa

75

CAPÍTULO III MARAVILHAS E UTOPIAS: A LITERATURA E A HISTÓRIA COMO INSTRUMENTOS PARA A COMPREENSÃO DO IMAGINÁRIO MEDIEVAL

82

1 – O Maravilhoso Literário 88 2 – O Maravilhoso Cotidiano 97 3 – O Maravilhoso como Veículo das Utopias Medievais 104 CAPÍTULO IV MABINOGION: UMA VISÃO CELTA DAS MARAVILHAS E UTOPIAS MEDIEVAIS

109

1 – A Busca das Origens: Narrar é Preciso 122 2 – Magia e Maravilha na Consolidação do Poder 137 3 – A Mulher e a Linhagem: um Pólo de Alianças 164 4 – A (Re)Construção do Utópico 181 CONCLUSÃO 189 BIBLIOGRAFIA 192 ANEXO 1: Os Quatro Ramos (resumo) 203 ANEXO 2: Os Quatro contos Nativos Independentes (resumo) 220 ANEXO 3: Lady Charlotte Guest: Breves Notas Biográficas 230

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INTRODUÇÃO

Ao iniciarmos a apresentação deste trabalho, pensamos ser primeiramente necessário

oferecer ao leitor alguns dados sobre a civilização celta, sua cultura e sua arte. Esta sucinta

explanação visa a possibilitar ao leitor uma compreensão, mesmo que breve, do universo do

corpus literário com o qual pretendemos trabalhar: os contos do Mabinogion. Esta

necessidade se coloca já que tais textos são de rara circulação em nosso meio acadêmico,

tendo em vista suas particularidades e especificidades.

Os celtas foram um povo, de origem indo-européia, que constituiu a primeira grande

nação de nome conhecido ao norte dos Alpes, sendo por isso considerado o predecessor das

nações históricas da Europa Central e do Oeste. Os celtas emergiram como povo reconhecido

por volta de 500 a.C. na Europa Central (na área em que hoje se encontram a

Tchecoslováquia, a Hungria, a Áustria, a Suíça e o sul da Alemanha).

No século III a.C. ocupavam uma vastíssima região que ia da Espanha à Ásia Menor.

Grande parte dos historiadores destaca o período Lateniano (entre os séculos V e III a.C.)

como o apogeu da expansão celta.

Devemos destacar que os celtas distinguiam-se dos outros povos não apenas pela

utilização do ferro como também pelo alto grau de habilidade técnica e artística que

desenvolveram em relação à metalurgia. Ora, o ferro que servia para a confecção de

ferramentas servia também para a fabricação de armas, o que deu aos celtas superioridade

militar e facilitou sua expansão e a conquista de novos territórios.

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Devido a estes muitos movimentos migratórios e aos inúmeros territórios ocupados

pelos celtas, nem sempre podemos falar de um povo ou de uma civilização celta stricto sensu.

Muitas vezes ao nos depararmos com algum dado (objetos, manifestações religiosas, palavras)

com características celtas deveríamos falar de uma civilização ou uma região onde eles

exerceram alguma influência. Tendo dominado um vastíssimo território ocupado por uma

variada gama de populações, a civilização celta desenvolveu-se, então, em um meio bastante

heterogêneo. Somemos a isto o fato de que a aquisição da escrita pelos celtas deu-se apenas

em torno do século V d.C., o que pode ter levado a uma certa fragmentação na transmissão

dos conhecimentos e costumes que até então eram passados pela tradição oral.

Exceto por focos de resistência, como Grã-Bretanha e Irlanda, e por efêmeros períodos

de renascimento da cultura celta em pontos isolados, podemos afirmar que o declínio da

civilização celta começou com a ascensão e a conseqüente invasão romana. Os romanos

foram paulatinamente sufocando todos os aspectos da civilização celta, a começar pela Gália,

proibindo inclusive a prática do Druidismo (a religião dos celtas), o que acelerou o

desaparecimento do gaulês como língua. O golpe final seria dado mais tarde quando em 325

d.C. Constantino declarou o Catolicismo a religião oficial do Império Romano, e a Igreja

passou a perseguir com extrema ferocidade todas as outras religiões.1

Entre os celtas a arte de contar estórias constituía a principal diversão para todas as

classes sociais. Segundo John Sharkey a função primeira do mito é explicar o inexplicável;

nesse sentido poucos foram os povos que utilizaram o mitológico, o sobrenatural, o onírico e

o imaginário como os celtas o fizeram. Assim sendo, devemos ter em mente que a chave para

compreender o mundo celta está em fundir o espiritual, o físico e o imaginativo, fusão esta

que, aliás, é prática constante na arte e na literatura celtas. Vale ainda lembrar que a falta de

1 MARKALE, Jean. La femme celte: mythe et sociologie (pp. 25 – 33).

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barreiras entre o real e o imaginário e a possível interpenetração entre os mundos são duas das

principais características da arte e da literatura celtas. 2

Devido à transmissão de seus conhecimentos através da oralidade, acentuou-se nos

celtas o gosto pela narrativa e pelo discurso artístico. A aquisição da escrita entre os celtas se

deu, como já dissemos, por volta do século V d.C. e, na Irlanda, um pouco mais tarde. Mesmo

assim, a tradição oral conservou muito bem, até aquele momento, os dados e elementos da

cultura celta. Na literatura os exemplos mais antigos de escrita são de poesias do século VI

d.C. e vêm da Irlanda.

A Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e País de Gales) não possui uma literatura tão

remota quanto a Irlanda, mas no País de Gales verificamos uma tradição oral tão fortemente

desenvolvida quanto a irlandesa, com a presença de poetas profissionalizados e temas celtas.

As estórias mitológicas irlandesas, que estão entre os registros mais antigos que possuímos,

chegaram até nós de forma coerente e acabada. Infelizmente não podemos dizer o mesmo da

mitologia galesa. O único grupo de estórias galesas coerentes está no Mabinogion, e foram

registradas apenas muitos séculos depois dos primeiros registros irlandeses. Sendo assim,

podemos dizer que as estórias irlandesas pertencem ao período heróico, enquanto as galesas,

que chegaram até nós com uma roupagem medieval, são um produto da Idade Média cristã.

Entretanto, tal é a conservação do mundo literário galês que, apesar das óbvias influências

inglesas e normandas que podemos algumas vezes detectar, estas estórias permaneceram

substancialmente celtas.3

Os manuscritos mais antigos de poesia galesa são Black Book of Camarthen (séc. XII)

e Book of Taliesin (de 1275). Em prosa encontramos White Book of Rhydderch, escrito por

volta de 1300-25, e Red Book of Hergest, produzido entre 1375- 1425. É sobre o conteúdo

2 SHARKEY, John. Celtic mysteries: the ancient religion. (pp.6 – 7) 3 CHADWWICK, Nora. The Celts. (pp. 226 – 291)

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destes dois últimos que repousa o nosso interesse, pois é justamente nestas duas coleções de

manuscritos galeses que encontramos as narrativas do Mabinogion.

O White Book of Rhydderch encontra-se preservado na National Library of Wales, em

Aberystwyth, e o Red Book of Hergest se encontra no Jesus College, em Oxford. Apesar de

conterem um rico e variado material da literatura galesa em verso e prosa, de valor

inestimável, estiveram praticamente inacessíveis ao público em geral e até mesmo aos

estudiosos até meados do século XIX. Entretanto, este quadro foi alterado em 1849 quando

Lady Charlotte Guest publicou o texto em galês e a tradução em inglês de onze contos do

Red Book, numa edição em três volumes com numerosas notas explicativas. Mais tarde, em

1877, Lady Charlotte publicou uma edição condensada contendo apenas a tradução em inglês

sem o texto galês, e com as notas originais condensadas. Além dos onze contos originais do

Red Book, ela incluiu, nas duas edições, o conto de Taliesin, pertencente a um manuscrito

posterior ao Red Book of Hergest.

Lady Charlotte Guest utilizou o termo Mabinogion como título geral para os doze

contos contidos em seu livro. Devemos ainda lembrar que todas as estórias deste volume são

mais antigas que o manuscrito no qual foram encontradas, e que os textos do Mabinogion

apresentam uma notável variedade dentro do padrão medieval. Tal diversidade, porém, não se

contrapõe à existência de uma substancial unidade entre os componentes deste corpus literário

que nos propomos discutir. Percebemos então que esta unidade se faz presente na obra

através dos temas e do meio social e literário que a forjaram.

Sendo assim, pretendemos, a partir do conceito de maravilhoso (sobrenatural)

estabelecido por Todorov, dos aspectos do maravilhoso medieval apresentados por Le Goff e

do estudo sobre as utopias medievais feito por Franco Júnior, apresentar uma leitura dos

textos do Mabinogion. Isto é, nos propomos estabelecer um diálogo entre estas narrativas

medievais de origem celta e este corpus teórico, para então buscar extrair os temas mais

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relevantes que emergem da utilização recorrente de elementos do maravilhoso e do utópico

nestes textos.

Para isso, estruturaremos o nosso trabalho em quatro partes. No primeiro capítulo

traçaremos um breve panorama da cultura celta, principalmente de sua importância para a

literatura galesa medieval com ênfase, evidentemente, nos textos do Mabinogion, de forma a

propiciar ao leitor uma melhor compreensão deste conjunto de narrativas.

No segundo capítulo tentaremos abordar os principais aspectos do contexto sócio-

político e cultural da Europa e do País de Gales entre os séculos XI e XIV, com destaque para

os elementos relacionados ao maravilhoso e ao utópico. Este capítulo se encerra com um

estudo comparativo entre o imaginário medieval do País de Gales e o do resto da Europa,

numa tentativa de comparar e contrastar seus aspectos mais significativos e estabelecer os

principais pontos de contato e as principais diferenças.

O terceiro capítulo se propõe estabelecer um diálogo entre as teorias e formulações

apresentadas por teóricos da literatura e historiadores sobre os elementos do utópico e do

maravilhoso presentes na literatura e no quotidiano da Idade Média. Nesse momento

tentaremos relacionar essas teorias e formulações aos textos do Mabinogion e ao contexto

sócio-político e cultural do País de Gales entre os séculos XI e XIV.

Finalmente, o quarto capítulo será dedicado a uma análise detalhada dos contos do

Mabinogion. Para tal, nos detivemos na discussão de quatro eixos temáticos – os que

julgamos mais relevantes – que emergiram fundamentalmente da significativa utilização de

elementos maravilhosos e utópicos presentes no imaginário e no quotidiano medieval galês.

Destacamos então a importância da palavra e do ato de narrar, das relações entre os poderes

mágicos e o poder temporal, do papel da mulher e a continuidade das linhagens e da

sobrevivência de determinadas utopias no universo diegético dessas narrativas. Pensamos que

a análise desses quatro aspectos, que se entrecruzam com muitos outros elementos ao longo

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do percurso narrativo, nos possibilitarão uma reflexão mais aprofundada sobre o papel

seminal da narração na formação da identidade nacional galesa.

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CAPÍTULO I

OS CELTAS E SUA LITERATURA: UM MUNDO DE MARAVILHAS

“ If they (the Welsh) would be inseparable, they would be insuperable”

(Geraldus Cambrensis)

Já há algumas décadas que historiadores (G.Duby, J.Le Goff, J.Markale, H. Franco Jr.

etc) e estudiosos de diversas áreas (E.Said, N.Fairclough) percebem as diferentes

manifestações culturais – dentre elas a literatura – como um campo rico em dados para uma

compreensão mais aprofundada de um dado momento histórico ou de um povo ou

grupamento social.

Temos, então, a noção dos diferentes cotidianos como verdadeiros mosaicos formados

por peças diversas, que interagem para formar o todo. Nesse sentido podemos perceber a

relação clara entre um dado momento histórico e as atitudes mentais dos indivíduos que o

vivenciaram. Acreditamos ser indiscutível o papel seminal da interação do indivíduo com o

seu meio social. O agir social atua na formação e na transformação do coletivo, da mesma

forma que esse coletivo exerce papel importante na mudança do cotidiano e do pensamento

do indivíduo.

Pensando o termo cultura em seu sentido mais amplo4, é lícito afirmar que o homem é

um ser social e culturalmente construído. Esta afirmação nos remete imediatamente a

4“ ‘Cultura’ é uma palavra imprecisa, com muitas definições concorrentes; a minha definição é a de “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”. A cultura nesta acepção faz parte de todo um modo de vida, mas não é idêntica a ele. Quanto à cultura popular, talvez seja melhor de início defini-la negativamente como uma cultura não-oficial, a cultura da não-elite, das ‘classes subalternas’, como chamou-as Gramsci.” In: BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna (p.25)

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Vygotsky5, para quem a base sócio-histórica e cultural é determinante, e mais ainda,

acreditamos serem nossos modos de pensar e agir construídos socialmente através do

discurso.

Segundo Norman Fairclough: “os discursos não só refletem ou representam as

entidades e relações sociais, eles as constroem ou as ‘constituem’ ” 6. Esta afirmação de

Fairclough nos incita a lembrarmos aqui a proposta apresentada por Edward Said em

Orientalismo e ampliada e desenvolvida em Cultura e imperialismo. Para Said, a visão ou

imagem que se tem das regiões periféricas é construída através do discurso. Indo mais além, o

autor encara o romance não só como uma forma dos povos colonizadores construírem a

imagem dos colonizados mas também, e principalmente, como uma maneira dos povos

colonizados se verem e formarem sua identidade. Para ele as nações são elas mesmas grandes

narrativas7.

Cabe, então, lembrarmos aqui que os povos celtas foram - durante praticamente cinco

séculos – expansionistas, conquistadores e colonizadores de diferentes e vastas regiões do

mundo então conhecido. Contudo, eles foram paulatinamente, por diversos motivos que

discutiremos ao longo deste trabalho, passando à condição de conquistados e colonizados.

Ora, trabalhando de forma análoga com o pensamento de Said, podemos perceber as

narrativas medievais de origem celta (como o Mabinogion) não apenas como o reflexo de um

imaginário coletivo, mas também como elemento fundamental na construção da identidade e

da unidade cultural dos povos celtas, principalmente no caso do País de Gales e da Irlanda.

No caso dos celtas galeses, a transmissão oral, século após século, de narrativas histórico-

mitológicas (e sua posterior preservação em manuscritos) foi, indubitavelmente, fator

“O desenvolvimento da humanidade está marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transformá-los, de conceber a realidade e expressá-la” in: SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. (p.7) 5 VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. (p. 8 – 11) 6 FAIRCLOUGH. N. Discurso e mudança social. (p.22) 7 SAID, Edward. Culture and imperialism. (introduction, p. xi – xiii)

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determinante para a conservação de um patrimônio cultural que serviu, de forma

inquestionável, de adubo para a formação de um sentimento de nacionalidade e identidade

cultural.

Por tudo isso, traçaremos a seguir um breve panorama da cultura celta, destacando a

importância de alguns de seus aspectos para a melhor compreensão da literatura galesa

medieval, em especial das narrativas do Mabinogion.

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1 – Os Celtas

Normalmente, grande parte dos estudiosos utiliza atualmente o termo ‘fração céltica’

referindo-se apenas à Grã-Bretanha e à Irlanda. Sabe-se, porém, que os celtas cristãos

povoavam, por volta do século V, a Irlanda, a Escócia, o País de Gales e a Bretanha

Armoricana. Eram esses grupos celtas descendentes dos antigos celtas (da Segunda Idade do

Ferro e contemporâneos da Grécia clássica).

Há indícios de que por volta do ano 1000 a.C. a Idade do Ferro chegou ao País de

Gales, com a população vivendo em assentamentos agrícolas mistos e praticando trabalho

extensivo em minas de cobre8. A partir desse período o contato com a cultura Halstatt da

Áustria (próximo a Saltzburg) possibilitou a esses grupos galeses desenvolverem um trabalho

mais apurado com a metalurgia. Do mesmo modo, desenvolveram um contato mais

prolongado com outras culturas mediterrâneas, o que propiciou entre eles a difusão e o uso de

símbolos e desenhos celtas no estilo de La Téne, já então bastante difundidos entre essas

culturas. Devemos ainda lembrar que foi durante esse mesmo período que as línguas celtas

chegaram à Bretanha, trazidas por pequenos grupos de migrantes.

Junto com os citas, os persas e os líbios, os celtas são vistos por Éforo – por volta do

século IV a.C. – como um dos quatro grandes povos ‘bárbaros’ do mundo. É interessante

notar que, para a maioria dos observadores externos, os celtas eram vistos como “um povo”

(com traços físicos, instituições sociais e políticas comuns, além de grande afinidade

lingüística). Geralmente, essas observações, calcadas em aspectos mais gerais ou superficiais,

8 WILLIAMS, Peter. A brief history of Wales. (cap.1)

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se traduziam em equívocos, principalmente no que tange ao aspecto da unidade

organizacional política, tendo em vista que os povos celtas jamais constituíram um país ou

império comum unificado. Fato é que, apesar de seu poderio por volta de 300 a.C., os celtas

eram incapazes de evitar as guerras intertribais, o que posteriormente será uma das principais

causas da dominação romana9.

Além da nova língua (não nos esqueçamos ser o galês uma sobrevivência das línguas

celtas), os celtas trouxeram para a Bretanha uma nova religião: o Druidismo – que

discutiremos mais adiante. Verificamos ainda mais um traço comum na formação dos

diversos reinos celtas na Grã-Bretanha e na Irlanda. Geralmente esses reinos se constituíam de

pequenos assentamentos para a exploração agro-pastoril, e seus membros, normalmente,

guerreavam apenas com a intenção de manter e defender o território.

Parece-nos ser importante lembrar que a cultura celta desfrutou de quase dez séculos

de florescimento e expansão (± entre o século V a.C. e o século V d.C.), resistindo a vários e

diferentes ataques e sempre mantendo suas características marcantes e bem definidas. Para

T.G.Powell, isso foi possível por ocuparem os celtas, naquele momento, regiões periféricas do

mundo antigo afastadas dos grandes interesses e das mudanças que afetavam as regiões

consideradas centrais10. A concepção de Powell nos parece procedente, principalmente se

tomarmos como exemplo a Gália e posteriormente a Bretanha. Nestas regiões, o declínio da

supremacia celta se dá justamente após estas se tornarem o centro dos interesses romanos.

Após duas incursões de César sem sucesso (em 55 e 51 a.C.), o imperador Claudius

faz em 43 a.C. a primeira expedição bem sucedida à Bretanha. Encontrando a região sem

unidade político-militar, começa então uma série de batalhas contra as tribos celtas,

inicialmente a sudoeste, pois a região era rica em grãos. Temos aí o estabelecimento de villas

e fazendas, especialmente a sudeste e sudoeste. O País de Gales e a Escócia, por serem

9 Ibidem. 10 POWELL, T.G. The Celts (p. 75)

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regiões extremamente montanhosas, não foram facilmente ocupados. Permaneceram como “a

fronteira” esparsamente ocupada, com tropas e guarnições estrategicamente colocadas de

forma a guardar as extremidades Norte e Oeste do Império.

Devemos ressaltar que o interesse romano no País de Gales se devia, principalmente, a

seus valiosos depósitos minerais (chumbo, estanho e ouro). Contudo, aqueles encontraram

resistência ferrenha das tribos celtas, tanto que, de cada três legiões romanas estacionadas na

Bretanha, duas se encontravam nas fronteiras galesas, sendo Deva (Chester) a maior fortaleza

romana na Bretanha11. Podemos afirmar que, de maneira geral, o êxito romano foi relativo.

Exerceram os romanos fraca influência nas instituições celtas da Bretanha, lembrando ainda

que as línguas celtas continuaram a ser utilizadas nas atividades diárias, enquanto o latim era

utilizado na área administrativa.

A saída das legiões romanas da Bretanha (por volta do século III) facilitou o início de

sucessivos e pesados ataques das tribos germânicas. Porém, não nos esqueçamos que a longa

dominação romana deixou na Grã-Bretanha o seu legado. Os grupos celtas passaram a

perceber a importância da unidade política e de um governo centralizado para combater os

inimigos e os invasores. Isso se traduziu numa resistência longa e feroz dos celtas contra os

saxões (quase trezentos anos de batalhas até o século VI). Encontramos aí o início da lenda do

Rei Artur – para os galeses um rei guerreiro cristão (romano-bretão) baseado no País de

Gales. A vitória de Arthur na batalha de Mont Badon (por volta de 500 d.C.) teria sido

fundamental para barrar, por quase cinqüenta anos, o avanço saxão. Com tudo isso, o final do

século VI vai encontrar a Bretanha dividida em três áreas distintas: o Leste teutônico, o Oeste

bretão e o Norte picto-bretão (que logo seria invadido pelos escotos vindos da Irlanda). É

importante destacar que essas três áreas – posteriormente Inglaterra, País de Gales e Escócia –

11 WILLIAMS, Peter. Op.cit. (cap1)

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desenvolveram-se com características culturais e lingüísticas bem diferentes, separadas e

definidas.

Como já dissemos anteriormente, podemos perceber vários pontos de contato entre os

povos celtas (línguas, sistemas institucionais...). Além disso, percebe-se também a

preocupação com a conservação de suas tradições, principalmente por parte da elite

intelectual e política, provavelmente com a intenção de manter suas instituições e costumes

entre as populações estrangeiras dos territórios conquistados. Tanto é que suas leis são as mais

antigas que sobreviveram, na Europa, sem influência romana ou mediterrânea – com os

direitos e os deveres definidos pela lei do costume e as disputas apresentadas resolvidas por

juristas profissionais e/ou druidas.

Apresentavam as sociedades celtas uma organização hierarquizada com distribuição e

distinção de classes muito bem definidas. A importância e o tamanho dos reinos variavam,

contudo notamos ser a realeza a instituição mais importante destas sociedades, principalmente

na Irlanda e no País de Gales. A realeza celta era do tipo eletiva, porém restrita aos indivíduos

oriundos de uma família real com organização matrilinear e/ou matrilocal (mas nunca

matriarcal)12. É importante lembrar que o exercício da função real estava vinculado às leis

votadas pelo povo, não sendo portanto o rei um autocrata. Nesse sentido, é bom esclarecer

que as tribos celtas, geralmente, eram auto-suficientes, encaradas como um todo

autogovernável (um dos prováveis motivos para a não unificação entre gauleses, bretões,

irlandeses, escoceses etc...).

Cabe aqui destacar que a legitimação da eleição real dava-se também pela via místico-

religiosa, pois o bem estar e a prosperidade da tribo estavam relacionados ao sucesso do rei e

a sua aceitação pelas forças sobrenaturais. Sendo assim, a perfeição moral e física do rei era

12 Matrilinear: herdando ou determinando a descendência através da linha materna Matrilocal: de ou pertencente ao local de origem da família ou tribo materna Matriarcal: forma de organização social na qual a mãe é a chefe da família e a descendência é reconhecida apenas pela linha materna, pertencendo a criança ao clã materno.

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indispensável para o bem estar geral da tribo, já que as falhas morais ou físicas dele podiam

trazer conseqüências catastróficas (esta questão pode ser observada em diversas narrativas,

inclusive nas do Ciclo Arturiano). Fica clara, então, a presença do divino, do espiritual, do

mágico e do religioso nos diversos aspectos do cotidiano celta, coordenados por uma unidade

de crença que tinha o Druidismo como expressão máxima. Temos assim, para muitos

estudiosos, o Druidismo como um sistema filosófico, jurídico, metafísico e religioso comum a

todos os celtas até a chegada do Cristianismo. A presença da religião em todas as áreas do

cotidiano celta confere ao Druidismo um caráter essencialmente social, o que para muitos

celtistas se deve à visão não-dicotômica dessa religião entre o sagrado e o profano13.

A chegada do século VII vai encontrar os celtas da Grã-Bretanha e da Irlanda já

cristianizados. Especificamente no País de Gales a população permaneceu basicamente celta,

porém, a Batalha de Chester (616) dividiu os celtas do Norte e os do Sudoeste. Segundo Peter

Williams, é a partir desse momento que os galeses começam a se pensar como uma nação,

embora diversos reinos rivais tenham se desenvolvido dentro de suas fronteiras (Morgannwg,

Powys, Brycheinion, Dyfed e Gwynedd). Também nesse momento temos já o galês como

uma língua distinta do antigo britônico. Vale aqui registrar que um poema de 633 (não

identificado) se refere ao País de Gales e a sua população como Cymry, embora fora do País

de Gales eles continuassem a ser denominados bretões. Devemos explicar que o termo Welsh

era utilizado pelos saxões para denominar estrangeiros, vizinhos ou romanizados. Sendo

assim, os galeses preferem até hoje se autodenominar Cymry, seu país Cymru e sua língua

Cymraeg14.

Para a maioria dos historiadores por nós pesquisados, além do País de Gales, os reinos

britânicos que sobreviveram a Norte e a Oeste foram Rheged, Gododdin, e Strathclyde (hoje

Escócia). Estando o País de Gales politicamente isolado a partir do século VII, Strathclyde 13 CHADWICK, Nora. The celts (p.46) MARKALE, Jean. Le druidisme (p.55) 14 WILLIAMS, Peter. Cit. (cap2)

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continuou por mais algum tempo como centro das antigas tradições poéticas, papel que

posteriormente caberia ao País de Gales. No que se refere ao quadro político-religioso,

embora a Igreja do País de Gales tenha sido forçada a se submeter às normas da Igreja de

Roma (introduzidas por Agostinho e tornadas oficiais no Sínodo de Whitby em 644), grandes

diferenças políticas continuaram a existir entre celtas e saxões. Essas diferenças foram

enfatizadas e tornadas ainda mais visíveis pela construção de um longo dique, Offa’s Dyke,

que na metade do século VIII dividiu os celtas do Oeste dos saxões do Leste. Porém, é bom

esclarecer que muitas comunidades galesas permaneceram a Leste da fronteira, nas terras

conhecidas hoje como Inglaterra (Lloegr), bem como muitas comunidades inglesas

continuaram a existir a Oeste, nas terras hoje conhecidas como País de Gales (Cymru).

Os sucessivos ataques vikings, a partir do século IX, criaram a necessidade de uma

união política mais consistente para reforçar as defesas da região. Na Inglaterra o Rei Alfred

assumiu o governo nesse período, unificando o país. Já no País de Gales esse papel coube a

Rhodri, o Grande (Rhodri Mawr) que em 855 tornou-se rei de Powys e de quase todo o resto

do País de Gales. O governo de Rhodri trouxe ao país um período de união e estabilidade,

porém esse período foi curto, já que o rei morreu em 878 lutando contra um exército inglês e

seus herdeiros tiveram, então, que se aliar a Alfred para obter proteção.

Howell, o Bom (Hywel Dda) – neto de Rhodri – implementou posteriormente uma

política de conciliação com a Inglaterra. Governou durante um longo período (904-950)

comandando praticamente todo o País de Gales, exceto Glamorgan (a Sudeste). De acordo

com A crônica dos príncipes (The Brut Y Tywysogion) – importante narrativa histórica

medieval – Howell foi “o mais importante e o mais valoroso dos bretões”. Devemos também

ressaltar ter sido ele o único rei galês a receber o epíteto de “o bom”. Seu reinado se

caracterizou pela estabilidade interna e pela luta constante contra as influências externas,

principalmente as insistentes tentativas inglesas de controle. Um dos feitos mais importantes

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do reinado de Howell foi a sistematização legal dos costumes desenvolvidos no país através

dos séculos, conhecida como A Lei de Howell (Cyfraith Hywel). Muito mais avançadas que

as leis inglesas, as leis galesas conferiam status significativo às mulheres (propriedade,

compensação e partilha igualitária de bens...) e nelas também estava incluído o Gavelkind, lei

que estabelecia a divisão igualitária de terras entre os herdeiros. Embora apresentasse um

caráter mais justo e democrático, o Gavelkind não permitiu no País de Gales a formação de

reinos grandes, poderosos e unificados, como na Inglaterra. Vale lembrar que A Lei de

Howell foi aplicada até o século XVI (quando foi substituída pelo Ato de União de 1536),

tendo inclusive sobrevivido ao Estatuto de Rhuddlan (1284, com Eduardo I), que em muitas

jurisdições substituiu procedimentos galeses pelas leis inglesas. Para John Davies, importante

professor pesquisador da história do País de Gales, este conjunto de leis atesta a unidade e o

forte sentimento de identidade existente entre o povo naquele período. Prova disso é que a

maior parte dos documentos preservados está em galês (apenas alguns se encontram em

latim), o que só reforça a legitimidade desfrutada então pela língua Cymry15.

É importante salientar que, apesar de ter sido um grande governante, Howell, o Bom

foi incapaz de criar um estado completamente unido e independente que sobrevivesse a sua

morte. Ainda durante seu governo ele foi obrigado a aceitar a posição de sub-regente,

subordinado ao Rei Athelstan, de Wessex. Assim, após sua morte o País de Gales voltou a ser

um território partido em pequenos reinos mergulhados em lutas internas. Contudo, durante o

longo governo de Howell as leis e a literatura galesa eram reconhecidas e admiradas pelo

restante da Europa. É justamente sobre essa rica e interessante produção literária que

falaremos a seguir.

15 WILLIAMS, Peter. Cit. (cap3)

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2 – A Literatura Galesa Medieval

As civilizações celtas criaram o seu estilo próprio em termos de arte, expresso na

cultura de Hallstatt e que alcançou o seu apogeu estético na Arte Lateniana. Além disso, o

contato com a cultura clássica provavelmente estimulou o gosto por armaduras, elmos,

bebidas e festejos. Nesse sentido, temos as batalhas e os banquetes como atividades essenciais

e complementares da aristocracia celta. Nesses banquetes, normalmente, os guerreiros tinham

seus feitos cantados pelos bardos, e essas composições orais muitas vezes tornavam-se parte

da tradição literária.

Como a aquisição da escrita entre os celtas deu-se apenas por volta do século V (e na

Irlanda um pouco mais tarde), houve, mesmo após a cristianização, o florescimento,

especialmente na Irlanda, das “tradicionais escolas orais” junto aos mosteiros. Verificamos

então, no século VII, a existência de uma verdadeira elite de monges irlandeses educada

segundo o tradicional ensino nativo. Tal fato propiciou a síntese de duas estruturas mentais a

princípio antagônicas (religiosa + sócio-cultural), síntese essa responsável pelo registro por

escrito de uma riquíssima literatura em língua vernácula (até então oral). Essa literatura de

origem celta é a mais antiga literatura européia de língua não latina, e ofereceu ao mundo

preciosidades como as sagas irlandesas e galesas pagãs, a lenda Arturiana e do Graal, além

dos personagens de Tristão e Isolda.

Os exemplos mais antigos de escrita, na literatura, são de poesias irlandesas (séc.VI).

Embora o material se apresente bastante fragmentado, é possível conhecer os nomes de vários

bardos, principalmente os de Munster. No País de Gales – embora a Grã-Bretanha não

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apresente uma literatura tão remota como a Irlanda – encontramos uma tradição oral tão

desenvolvida quanto a irlandesa, com a presença de poetas profissionalizados e temas celtas.

É importante notar que a matéria dessas composições galesas possivelmente sofreu algumas

mudanças ao longo das transmissões, visto que chegaram até nós com uma roupagem da

Idade Média cristã. Os manuscritos mais antigos de poesia galesa encontram-se no Black

Book of Camarthen (séc. XII) e no Book of Taliesin (1275).

Cabe aqui mencionar a importância que os bardos tinham na sociedade galesa. A Lei

de Howell (já discutida anteriormente) apresentava diferentes versões de acordo com cada

localidade, e essas diferentes versões eram comumente chamadas de Venedotian Code.

Entretanto, as diferentes versões apresentam um dado comum no que diz respeito à hierarquia

dos bardos. Segundo a lei o penkerdd (the chief of songs/o mestre da canção) tem direito à

propriedade livre de terras e senta-se, normalmente, ao lado do edling (o herdeiro do rei),

tendo também o direito de sentar-se ao lado do próprio rei. Já o bardd teulu (the household

bard/o bardo da casa) também tem direito à livre propriedade de terras (doadas pelo rei); além

disso, sua harpa e seu anel de ouro devem ser dados pela rainha, porém seu status, segundo a

lei, é inferior ao do penkerdd16. Sendo A Lei de Howell a sistematização dos costumes

desenvolvidos no país durante os séculos anteriores, cremos que o fato dos bardos serem

mencionados pela letra da lei nos comprova a sua grande importância para aqueles

grupamentos sociais.

Os remanescentes dos trabalhos em galês antigo datam do final do século VII. Assim,

os poemas em galês mais arcaico são pertencentes ao que se conhece como tradição do

período heróico, e portanto parte do mais antigo remanescente em língua vernácula na

Europa. Esses poemas foram provavelmente compostos no reino de Starthclyde ao Norte

(hoje Sudoeste da Escócia, logo invadido por oriundos da Irlanda falantes do gaélico) ou ao

16 CHADWICK, Nora. Op.cit. (p121)

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Norte do País de Gales. É importante destacar que, embora em seus primórdios a literatura

galesa tenha se desenvolvido oralmente como a irlandesa, sua preservação na forma que hoje

a conhecemos deu-se num período posterior à da Irlanda. As evidências de métrica e

linguagem mostram que alguns poemas são tão antigos quanto os irlandeses, porém, apenas

um pesquisador mais experiente pode detectar, através de um estudo mais detalhado dos

textos, a antiga língua galesa que aparece por vezes incorporada aos textos, revelando assim o

antigo original no qual foram baseados17.

A despeito dos locais e datas de origem dos poemas, Taliesin (séc.VI) e Anairin (séc.

VI) são os dois poetas mais conhecidos entre os antigos bardos das tradições celtas no País de

Gales. No que diz respeito a Taliesin, dos cinqüenta e oito poemas do manuscrito a ele

atribuído praticamente todos foram escritos entre 900 e 930, sendo que apenas doze poemas

apresentam provas textuais e lingüísticas de serem do século VI, e de assim representarem

realmente o trabalho do próprio Taliesin. No caso de Anairin, embora o poema Y Gododdin

seja a ele atribuído, esse só foi preservado na forma escrita duzentos e cinqüenta anos após o

seu período de vida (séc.VI). Essa importante composição poética galesa celebra os feitos de

um grupo de heróis guerreiros e seus aliados na Batalha de Catraeth (por volta de 600), na

qual foram derrotados pelos anglos, tendo sido todos, exceto um, mortos. A prontidão e a

disposição dos guerreiros para a morte são, no poema, encaradas como um dever, já que de

acordo com o poeta a morte lhes garante glória eterna. Voltaremos a este tema mais adiante.

Vale ainda destacar um dos aspectos mais importantes do Y Gododdin. Para muitos foi o

primeiro trabalho a mencionar o líder guerreiro galês Artur, modelo de virtude e também de

ferocidade, bem diferente da figura que nos será mostrada nos trabalhos posteriores. Devemos

ainda mencionar Llywarch Hen (também do séc. VI), lembrando, porém, que os poemas a ele

atribuídos datam de 850 a 900, sendo portanto recriações ou, como afirma Nora Chadwick,

17 WILLIAMS, Peter. Op. cit. (cap2) CHADWICK, Nora. Op.cit. (p.285)

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uma dramática tentativa de reconstrução18. Como podemos perceber, infelizmente não há

exemplares de textos de poesia galesa antiga – como há da irlandesa – para que possamos ter

uma idéia de como eram os originais. O que existe são apenas três estrofes preservadas na

margem superior do manuscrito de Juvencus (University Library of Cambridge) que datam da

primeira metade do século IX, pois como já dissemos, o manuscrito mais antigo totalmente

em galês é o Black Book of Camarthen (final do séc. XII). Finalmente, no que diz respeito à

poesia, não podemos deixar de mencionar The Prophecy of Britain (Armes Prydain), poema

em forma de lamento composto por volta de 930, provavelmente por um monge do Sul do

País de Gales. A obra trata de uma possível aliança entre os celtas da Grã-Bretanha (Britain) e

da Bretanha Armoricana (Brittany) e os normandos oriundos de Dublin, numa tentativa de

expulsar os invasores saxões e restaurar os antigos reinos. Nesse poema, o poeta expressa uma

profunda e irreversível sensação de perda por uma profecia construída em cima de falsas

esperanças. É interessante notar que Armes Prydain foi composto durante o mesmo período

que o poema inglês Answer, um elogioso relato em verso – parte da Anglo-Saxon Chronicle -,

sobre a vitória do rei Athelstan (saxão) contra a aliança celta descrita em Armes Prydain,

numa batalha em Brunamburgh (local não identificado)19.

A partir do século XI, a maior presença normanda ao Sul do País de Gales, após a

invasão, fez com que esse saísse do seu quase permanente isolamento político e geográfico e

se tornasse realmente parte mais efetiva da Europa. Esse momento apresentou as condições

favoráveis (redução das guerras e das disputas políticas) para um grande florescimento e

desenvolvimento da produção literária galesa. Tal produção além de rica e bastante variada

(literatura, história, leis, medicina, geografia, teologia e hagiografia), foi muito apreciada e

admirada pelo restante do continente europeu. São justamente desse período as duas maiores

contribuições da prosa galesa para a literatura européia: as narrativas do Mabinogion e o que

18 CHADWICK, Nora. Cit. (p.285) 19 WILLIAMS, Peter. Cit. (cap.3)

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costumamos denominar de Literatura Arturiana. Os contos do Mabinogion, para muitos a

maior contribuição galesa para a literatura européia, foram compostos por volta do século XI;

apresentam, porém, material de um período bem mais remoto envolvendo figuras da

mitologia celta e estão no White Book of Rhydderch (1300-1325) e no Red Book of Hergest

(1375-1425), como já dissemos anteriormente. Sendo o Mabinogion o objeto de estudo do

presente trabalho, será discutido e analisado mais detalhadamente nos itens seguintes. No que

diz respeito à Literatura Arturiana, a importância de sua ampla e vasta produção já foi

bastante discutida e analisada em inúmeros trabalhos por estudiosos de todo o mundo, e não

sendo o objeto de estudo do presente trabalho, não nos aprofundaremos aqui neste tema, pois

já o fizemos em dois outros trabalhos anteriores20. Existem, porém, alguns dados importantes

que devem ser brevemente lembrados aqui. A referência primitiva mais autêntica a Artur

encontra-se em uma crônica referente a 537 em uma entrada que menciona a Batalha de

Camlan, na qual Artur e Medrawd foram mortos. Lembramos ainda as menções a Artur nos

antigos poemas galeses Y Gododdin e Marwnad Cynddylan. No início do século IX, Nennius

de Mercia – em sua Historia Brittonum – descreve Artur como o líder que derrotou os saxões

doze vezes, sendo a última na batalha de Mount Badon. Segundo o Annales Cambriae (datado

de 1100 porém contendo material de 445 – 954) a batalha de Mount Badon teria ocorrido em

516, e nela Artur derrotou os saxões “após carregar a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo nos

ombros por três dias e três noites” 21.

De todas as fontes galesas para a Literatura Arturiana talvez a mais importante seja

Historia Regum Britanniae (séc. XII) de Geoffrey of Monmouth, por ter servido de base para

uma nova e importante literatura européia dos romances arturianos (ver posteriormente os

trabalhos de Chretien de Troyes). Nos textos de Geoffrey of Monmouth, Artur aparece como

um rei sábio, nobre e benevolente, que comandou uma corte de cavaleiros durante a época de 20 AMIM, Mônica. Religião e poder na busca do Graal: o desvelamento da história no jogo intertextual. Idem. O mito arturiano em seus diversos momentos. 21 WILLIAMS, Peter. Cit (cap.4)

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ouro do povo britânico, antes da chegada dos saxões. Gostaríamos de chamar atenção para o

fato de as narrativas de Geoffrey of Monmouth, mesmo sem apresentarem total precisão

histórica, terem sido vitais para a construção de um sentido de identidade nacional do povo

galês, já que estas deram de alguma maneira suporte ao clamor galês pela soberania sobre a

ilha da Bretanha. Dentre os outros contos galeses de Monmouth podemos destacar o que se

refere ao comandante romano Magnus Maximus (Macsen). Segundo a narrativa, ele teria sido

o responsável por fazer os galeses colonizarem a Bretanha Armoricana (Brittany); essa crença

circula até hoje em narrativas folclóricas como Yma o Hyd (We´re still here). Outro autor

medieval importante no sentido de reforçar a noção de identidade entre os galeses foi

Geraldus Cambrensis (Gerald of Wales). Este clérigo e estudioso foi um dos maiores

escritores galeses em latim, e em sua significativa produção os trabalhos considerados mais

importantes tratam do País de Gales e da Irlanda. Seus dois livros mais importantes sobre o

País de Gales são Itinerarium Kambriae e Descriptio Kambriae (segunda metade do séc. XII

e séc.XIII). Ele acreditava que a união de todos poderia tornar os galeses insuperáveis, pois,

segundo ele, diferentemente dos herdeiros ingleses – que lutavam por ganhos e riquezas – os

galeses eram patriotas e lutavam por seu país.

Nessa nossa breve reflexão sobre os aspectos mais relevantes da literatura galesa

medieval faz-se necessário registrar a importância da pequena nobreza (gentry). Desde o

século XII, após a morte de Dafydd ap Gruffud, a pequena nobreza passou a substituir os

príncipes no papel de patrono dos poetas. Há registros (de 1176) de um evento de grande

significado para a longa tradição poética galesa, o Eisteddfod. Tal evento consistia na reunião

nacional dos bardos do país de Gales para uma competição. Lord Rhys ap Gruffudd reuniu em

sua corte a Sudoeste do País de Gales (Cardigan) duas categorias de artistas – bardos e

músicos (harpistas, gaitistas de fole, tocadores de crowd 22) – para esse concurso nacional, na

22 Antigo instrumento musical de cordas celta, de forma retangular, tocado com um arco.

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época do Natal. A fixação de tal evento foi fundamental para a continuidade da arte dos

bardos galeses, além de ter sido uma maneira de Lord Rhys demonstrar sua força e

importância e, sobretudo, reafirmar sua independência23. Percebemos, então, nesse período,

que embora a Igreja (incentivadora contumaz da cultura literária nativa) continuasse a apoiar

os bardos galeses, a pequena nobreza nativa (the uchelwyr) tomou para si a tarefa de

mantenedora da ordem dos bardos galeses, principalmente nesse momento em que a poesia

passava a tratar de temas seculares. Nesse sentido, podemos afirmar que a produção literária

hoje denominada the poetry of the gentry (a poesia da pequena nobreza) substituiu a poesia da

corte dos príncipes. Os bardos deixaram, assim, de ter colocação permanente na corte (como

vimos que possuíam anteriormente), e, como também não a possuíam entre a pequena

nobreza, viram-se obrigados a viajar de casa em casa criando então os “circuitos de bardos”.

Essa mudança na relação entre artistas e patronos propiciou uma maior liberdade de criação,

já que os bardos não estavam mais obrigados a compor exclusivamente em honra dos

senhores e príncipes. Eram os bardos galeses altamente treinados e extremamente habilidosos,

o que os distinguia do grande número de menestréis itinerantes. Por desfrutarem de imensa

popularidade eram, além de incentivados, muito bem-vindos pelos nobres, principalmente

durante as festas religiosas e os festivais sazonais, já que sua presença elevava o status e o

prestígio social daqueles que os recebiam.

Para muitos estudiosos, a liberdade de criação trouxe não apenas a variedade de temas,

mas também, e principalmente, uma maior elaboração do sentimento poético. Vejamos o que

disse Kuno Meyer sobre as composições poéticas celtas:

To seek out and watch and love Nature, in its tiniest phenomena as in its grandest, was given to no people so early and so fully as to the Celt. Many hundreds of Gaelic and Welsh poems testify to this fact. It is a characteristic of those poems that in none of them do we get an elaborate or sustained description of any scene or scenery, but rather a succession of pictures and images which the poet, like an impressionist,

23 WILLIAMS, Peter. Cit. (cap.6)

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calls up before us by light and skilful touches. Like the Japanese, the Celts were always quick to take an artistic hint; they avoid the obvious and the commonplace; the half-said thing to them is dearest.24

Dentro dessa linha de produção literária não podemos deixar de mencionar Dafydd ap

Gwilym (1320 –1370), um dos mais importantes poetas medievais galeses. Tendo produzido

no período que segue o de Dante na Itália e tendo sido contemporâneo de Chaucer, ap

Gwilym foi capaz de unir a tradição dos bardos galeses aos novos conceitos europeus do amor

cortês, possivelmente por ter sido influenciado pelo considerável aumento do contato com a

literatura francesa ocorrido na época. É bom lembrar que mesmo durante os períodos de

Eduardo II (1307-1327) e Eduardo III (1327-1377) houve momentos de considerável

tranqüilidade e estabilidade no País de Gales, sendo esse, para muitos, um dos períodos mais

gloriosos da literatura galesa. Nesse quadro, Dafydd ap Gwilym cantou louvores à natureza,

às mulheres e à plenitude da vida. Porém, não nos esqueçamos que, após a morte de Llywelyn

e Dafydd ap Gruffudd, as mudanças nas condições sociais e econômicas (que discutiremos no

próximo capítulo), causadas pela perda de independência política, fortaleceram o que Peter

Williams chama de autoconsciência dos galeses. Nesse sentido, nos parece bastante

significativo o fato de a poesia de Dafydd ap Gwilym simplesmente não fazer nenhuma

referência ou menção à tensão racial e a uma certa amargura nacional presentes no período.

Nada em seus poemas sugere a revolta que estava prestes a eclodir sob o comando de Owain

Glyndwr, que, significativamente, era seu patrono.

Todavia, o mesmo não ocorre na poesia de outros autores contemporâneos de Dafydd

ap Gwilym, dentre os quais podemos destacar Llywelyn Goch (1350 – 1390) e Iolo Goch

24 “Buscar, observar e amar a natureza, nos pequenos e nos grandes fenômenos, foi dado desde de cedo aos celtas como a nenhum outro povo. Centenas de poemas gaélicos e galeses comprovam este fato. Uma característica desses poemas é que em nenhum deles encontramos uma descrição elaborada ou consistente de uma cena ou ambiente, mas sim uma sucessão de retratos e imagens que o poeta, como um impressionista, nos apresenta através de traços luminosos e habilidosos. Como os japoneses, os celtas eram rápidos para compreender uma alusão artística; eles evitam o óbvio e o lugar-comum; as meias palavras são para eles valiosas” MEYER, Kuno. Introduction to the ancient Irish poetry. Apud: CHADWICK, Nora. Cit. (p.257)

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(1320 – 1398). Iolo Goch, por exemplo, foi um dos primeiros poetas da pequena nobreza, e

sua poesia apresentava preocupações com a ordem social. Dentre os seus poemas mais

conhecidos estão The Laborer (Y Llafurwr) e uma trilogia dedicada a Owain Glyndwr. A

revolta subjacente ao clima de aparente estabilidade e paz social podia ser sentida não apenas

nas composições desses poetas galeses; vejamos o que disse sobre a situação um escriba da

corte de Eduardo (não identificado):

The Welsh habit of revolt against the English is a long-standing madness... and this is the reason. The Welsh, formerly called the Britons, were once noble, crowned with the whole realm of England; but they were expelled by the Saxons and lost both name and kingdom… But from the sayings of the prophet Merlin they still hope to recover England. Hence it is they frequently rebel.25

A menção a Merlin (por parte de um escriba inglês) e a produção de autores como Iolo

Goch nos mostram a força das tradições galesas mantidas, inegavelmente, por seus escritores

através dos séculos26. Devemos, contudo, mais uma vez ressaltar a importância da obra de

Geoffrey of Monmouth (séc. XII) como grande fonte de inspiração para a continuidade da luta

galesa, tendo em vista que seus escritos mantiveram vivo o orgulho das antigas tradições e,

sem dúvida, foram fundamentais para a “consciência galesa”, que posteriormente levou à

revolta.

Repensando brevemente as antigas tradições, devemos lembrar que a poesia galesa

primitiva – à qual já nos referimos anteriormente – não apresentava temas propriamente

narrativos (assim como a irlandesa). Nessas composições a narrativa se fazia presente apenas

de forma alusiva, e pode-se perceber que, normalmente, o poeta participou, presenciou ou

viveu os eventos aos quais se refere, não sendo estes – para o poeta – fatos de um passado

25 “O hábito galês de revolta contra os ingleses é uma loucura de há muito… e essa é a razão. Os galeses, outrora denominados bretões, foram nobres, senhores do reino da Inglaterra; mas eles foram expulsos pelos saxões e perderam o nome e o reino Mas de acordo com as profecias de Merlin eles ainda esperam recuperar a Inglaterra. Por isso eles freqüentemente se rebelam.” Apud WILLIAMS, Peter. Cit. (cap. 6) 26 Lembremos algumas obras já mencionadas neste trabalho: The Chronicle of the Princes, The Prophecy of Britain...

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distante, já que os bardos de então faziam parte da vida e da casa dos senhores e chefes. No

que diz respeito à prosa, acredita-se que a antiga prosa galesa tenha sido composta em um

período tão remoto quanto o da prosa irlandesa, todavia poucos são os exemplos que

sobreviveram do período anterior à Lei de Howell. Mesmo os textos mais remotos da Lei

datam de um manuscrito de 1200; existe, porém, um fragmento de prosa do século X, The

Computus Fragment, preservado na Cambridge University Library. Interessa-nos, então,

refletir, mesmo que sucintamente, sobre alguns aspectos do desenvolvimento da prosa galesa

medieval e o papel de destaque que nela ocupa o Mabinogion. São exatamente esses temas

que discutiremos a seguir.

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3 – The Mabinogion e a Narrativa Galesa Medieval

Nora Chadwick chama atenção para a prosa medieval que se desenvolveu no País de

Gales a partir do estilo dos cyfarwyddiaid (prose story-tellers/contadores de estória em

prosa)27. Os cyfarwyddiaid constituíam uma classe de narradores profissionais (como os

bardos) especializada nos tradicionais contos em prosa e, é importante lembrar, no

conhecimento e nos ensinamentos que essas narrativas continham. Embora esses contadores e

suas estórias representassem com mais exatidão as antigas tradições celtas, não são

mencionados com a mesma freqüência dos bardos, já que a maior parte de sua produção se

perdeu, provavelmente, com a chegada da literatura normanda em estilo continental

(introduzida por eles mesmos), enquanto os bardos continuavam a ocupar lugar de destaque

nas residências da nobreza galesa. Há no Mabinogion, no conto Math Son of Mathonwy (Math

filho de Mathonwy), um exemplo interessante da importância desses contadores de estórias,

quando o personagem Gwydion é apresentado como o melhor contador de estórias do mundo.

Infelizmente, diferentemente da rica tradição em prosa da Irlanda, pouco foi preservado do

repertório dos cyfarwyddiaid, e os manuscritos preservados datam do século XIV, bem

posteriores ao que se tem da tradição irlandesa. Contudo, a maioria dos pesquisadores acredita

que essas narrativas foram compostas em um período bem anterior ao dos manuscritos, tendo

sobrevivido séculos na tradição oral – tendo nesse período passado por muitas alterações –

antes de serem finalmente transcritas. A despeito de algumas diferenças no cenário e na

ambientação, algumas dessas narrativas galesas são bem semelhantes às irlandesas, e nelas os

27 CHADWICK, Nora. Cit. (p.287-288).

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antigos deuses irlandeses aparecem evemerizados28 ou com formas mortais (embora com

poderes sobrehumanos), lembrando que muitos deles tornaram-se heróis de várias dessas

estórias. É importante destacar que embora o País de Gales já tivesse sido cristianizado há

alguns séculos quando da transcrição das narrativas, conseguiu preservar e transmitir essas

estórias dos antigos deuses pagãos de forma que ainda pudessem ser reconhecidos.

Assim, podemos afirmar que, embora alterados, os temas galeses são

reconhecidamente celtas e, apesar de não serem idênticos aos temas irlandeses, guardam com

esses uma relação de identidade maior do que com qualquer outra literatura, já que ambos

pertencem à mesma família e ao mesmo antigo mundo celta. Nem mesmo as influências

inglesas e francesas conseguiram mudar fundamentalmente o padrão das narrativas galesas

que sobreviveram, embora elas possam ser sentidas em alguns detalhes (como veremos mais

adiante ao analisarmos os textos do Mabinogion). Nesse sentido, percebemos que a antiga

literatura galesa contém uma quantidade relevante de material das tradições mitológicas

celtas, sendo porém sua interpretação mais difícil no que concerne especificamente à

mitologia, não só pela transcrição tardia das narrativas como também pela forte influência do

Cristianismo, lembrando ainda que Nora Chadwick aventa a possibilidade de os antigos

galeses serem menos apegados ao seu passado pré-cristão que os antigos irlandeses29.

Pensamos ser importante discutirmos aqui alguns pontos de contato e algumas diferenças

significativas entre as estórias galesas e as irlandesas.

A falta de limites para o sobrenatural e a ausência do pecado (assim como da punição

e do feio) são traços comuns, de maneira geral, às narrativas galesas e irlandesas medievais.

Mesmo tendo claro que esse corpus literário – pelas condições de escrita e pelas concessões

28 De Evêmero, escritor grego de fins do séc. III a.C.. Segundo este estudioso as mitologias de vários deuses surgiram da deificação de heróis mortos. Também a interpretação mitológica que reduz os deuses a homens destacados e valorosos, a derivação da mitologia da história. Ver: The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory (pp.291-292) Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language (p.491) Koogan/Houaiss Enciclopédia e Dicionário Ilustrado (p.646). 29 CHADWICK, Nora. Cit. (p.141).

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feitas ao Cristianismo – não é um resumo coerente das crenças celtas, notamos que uma

leitura crítica nos permite verificar a presença constante do sobrenatural que reflete, assim, o

modelo de mundo então plantado no ideário celta. Outro tema comum relevante é o da Busca,

geralmente apresentada como uma experiência individual, jornada ou percurso individual da

alma que concorre para o aperfeiçoamento do Ser, que para realizá-la percorre caminhos

cheios de obstáculos. Nos textos não cristianizados, esses obstáculos estão relacionados à

incapacidade do Ser, já nos textos cristianizados eles dizem respeito à culpa. Porém, nos dois

tipos de texto, percebemos a ação como o agente transformador através do qual o Ser supera

as suas imperfeições, destacando-se aí a ação individual em meio à ação coletiva. Num

sentido mais amplo, a necessidade da Busca (da Demanda) se traduz na necessidade de

conhecer a perfeição do Outro Mundo para instaurá-la nesse aqui. Por isso ela deve ser

individual, pois a reunião de várias visões enriquecerá a visão do coletivo (lembrar, por

exemplo, os cavaleiros da Távola Redonda). Finalmente não podemos esquecer que a Busca,

quando se apresenta (não importa de que maneira, nem o motivo), é obrigatória, pois não

realizá-la significava cair em desonra30. Há ainda mais um elemento comum: nas estórias

galesas e irlandesas, geralmente, as mulheres têm a função de lidar com os feitos

sobrenaturais, pois na maioria delas tal função é uma especialidade feminina.

Embora exista, como já dissemos anteriormente, uma fortíssima identidade entre as

narrativas medievais galesas e irlandesas, , notamos algumas diferenças que merecem ser aqui

destacadas. A primeira delas diz respeito exatamente à transição do natural para o

sobrenatural. Nas estórias irlandesas tal transição se dá naturalmente, passa-se de um

elemento ao outro sem nenhuma preparação especial. Já nas narrativas galesas, apesar dessa

passagem dar-se de forma simples, muitas vezes encontramos o elemento da magia ou do

profissionalismo do bardo. Nesse aspecto, merece destaque a importância dada ao sonho nas

30 MARKALE, Jean. Le Druidisme.(p.272-277).

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estórias galesas, como podemos observar em dois contos do Mabinogion: The Dream of

Macsen Wledig (O sonho de Macsen Wledig) e The Dream of Rhonabwy (O sonho de

Rhonabwy) - que analisaremos posteriormente. Notamos ainda que em muitos textos

irlandeses a Bretanha é representada como importante centro de treinamento para a magia e

para a obtenção de feitos sobrenaturais, o que não é observado nos textos galeses. Finalmente,

os textos galeses não apresentam antigos ou primitivos deuses nativos, à exceção de Nodens

(ou Nodons) e Manawydan fab Llyr, ambos originários do oeste e que são, muito

provavelmente, influências irlandesas talvez trazidas diretamente por imigrantes. Todavia, as

esparsas fontes galesas tornam difícil a explicação e o entendimento dessas diferenças.

É justamente dentro dessa produção narrativa galesa medieval que vamos encontrar os

contos do Mabinogion. Vale lembrar aqui que este conjunto de narrativas está preservado em

duas coleções de manuscritos: o White Book of Rhydderch (National Library of Wales, em

Aberystwyth) escrito entre 1300 e 1325, e o Red Book of Hergest (Jesus College, em Oxford)

escrito entre 1375 e1425. Como já mencionamos na introdução a este trabalho, apesar do

importante e rico material literário que representam, esses textos só se tornaram acessíveis ao

público em geral quando, em 1849, Lady Charlotte Guest publicou a tradução em inglês de

onze contos do Red Book (lembremos que os manuscritos estão totalmente em galês

medieval). Na primeira edição Lady Charlotte Guest publicou o texto em galês e a tradução

em inglês dos contos, em três volumes, com numerosas notas explicativas. Já na segunda

edição, em 1877, o material foi condensado, apresentando apenas a tradução em inglês e as

notas originais bastante resumidas. Devemos lembrar que, nas duas edições, Lady Charlotte

publicou também a tradução do conto de Taliesin (Hanes Taliesin), narrativa pertencente a um

manuscrito posterior ao Red Book of Hergest (encontrado primeiramente em uma cópia do

século XVI)31

31 WILLIAMS, R. The Mabinogion. Edited by Charlotte Guest. Introduction (p.1-4)

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No País de Gales, em princípios da Idade Média, os bardos formavam uma classe,

dividida em níveis ou graus, que se dedicava a uma arte em especial. A fim de pertencer a este

grupo, o candidato a bardo deveria passar por um severo e bem definido treinamento literário

e provar ser um mestre das antigas tradições e conhecimentos. Segundo Lady Charlotte Guest,

este aspirante a bardo era chamado de mabinog. Os conhecimentos que ele deveria adquirir

eram, de maneira geral, representados pelo mabinogi, que era ao mesmo tempo um curso e

uma fonte de rendas, já que era costume os mabinog receberem pagamento para recitar os

contos e estórias que sabiam. Assim sendo, Lady Charlotte Guest utilizou o termo

Mabinogion (entendido como plural de mabinogi) como título geral para os doze contos

contidos em seu livro. Todas as estórias deste volume são mais antigas que o manuscrito no

qual foram encontradas.

Cabe neste ponto de nossa apresentação um esclarecimento. De acordo com Gwyn

Jones (Professora de Inglês e Literatura Inglesa da University College of Wales em Cardiff)

e Thomas Jones (Professor de Galês e Literatura Galesa da University College of Wales),

Lady Charlotte Guest atribuía, juntamente com os acadêmicos de seu tempo, um significado

errôneo ao termo mabinogion, qual seja, o de plural de mabinogi. Tal alegação se baseia no

fato de a palavra mabynnogyon aparecer somente uma vez nos manuscritos, o que pode ser

atribuído a um erro do escriba. De qualquer maneira, ainda segundo Gwyn e Thomas Jones, o

termo mabinogi se aplicaria apenas ao primeiro grupo de estórias dentre as onze existentes.

Entretanto, embora o termo escolhido por Lady Charlotte Guest apresente um duplo equívoco,

seu uso tem se mostrado conveniente, e já que está há mais de um século estabelecido, os

professores Gwyn e Thomas Jones acharam desnecessário cunhar um novo termo.32

O conjunto de onze estórias encontradas no Mabinogion é geralmente dividido em três

grupos. No primeiro grupo, também conhecido como The Four Branches of the Mabinogi (Os

32 JONES, Gwyn & JONES, Thomas. The Mabinogion. Edited by Gwyn Jones and Thomas Jones. Introduction. (pp 9 – 10).

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quatro ramos do Mabinogi), temos os contos Pwyll Prince of Dyfed (Pwyll príncipe de

Dyfed), Branwen Daughter of Llŷr (Branwen filha de Llŷr), Manawyddan Son of Llŷr

(Manawyddan filho de Llŷr) e Math Son of Mathonwy (Math filho de Mathonwy). Essas

estórias são em sua essência pré-cristãs e pré-históricas, e são, indubitavelmente,

sobrevivências da antiga mitologia celta. Em sua presente forma elas são quase-mitológicas,

todavia, a ação do tempo e as inevitáveis mudanças abrandaram em muito o elemento mítico,

sem entretanto suprimi-lo completamente. Na verdade o conteúdo destes contos é muito mais

antigo que sua forma, e apesar de neles os deuses terem deixado de ser deuses, ainda assim

não se transformaram em homens comuns, oferecendo-nos então estórias repletas de magia e

ilusão.

O segundo grupo, geralmente denominado The Four Independent Native Tales (Os

quatro contos nativos independentes), é composto por quatro estórias. As duas primeiras são

dois breves contos: The Dream of Macsen Wledig (O sonho de Macsen Wledig) e Lludd and

Llefelys (Lludd e Llefelys), que nos remetem à administração romana da Bretanha, e possuem

um substrato histórico. Logo, percebemos que, se nas estórias do primeiro grupo o narrador

luta para dar ao mito uma realidade histórica, nestas aqui, porém, sua imaginação e fantasia

têm que lidar com pessoas reais. Há alguns estudos que relacionam e comparam estes dois

contos com a Historia Regum Britannia, de Geoffrey of Mounmouth, isto porém não será

objeto de nossas atenções. O que julgamos importante mencionar, aqui, é que as estórias deste

segundo grupo pertencem a um período intermediário entre a criação das primeiras estórias e

o crescimento da lenda Arturiana na literatura galesa. Neste sentido, as duas outras estórias

que compõem este segundo grupo, Culhwch and Olwen (Culhwch e Olwen) e The Dream of

Rhonabwy (O sonho de Rhonabwy), apresentam Artur como um típico cavaleiro bretão, a

ação se desenrola na Bretanha e todo o espírito da narrativa é completamente celta. Supõe-se

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ainda que estas narrativas assumiram a forma apresentada no século XII, antes de a lenda

Arturiana sofrer influência normanda.

No terceiro grupo, normalmente intitulado The Three Romances (Os três romances),

encontramos The Lady of the Fountain (A dama da fonte), Paredur Son of Efrawg (Paredur

filho de Efrawg) e Gereint Son of Erbin (Gereint filho de Erbin). Neles Artur e seus

seguidores se tornaram cavaleiros normandos. Nestas três estórias a cavalaria e o cavaleiro

errante são componentes essenciais, enquanto que nas primeiras eram aspectos apenas

ocasionais e secundários. Neste momento a lenda Arturiana já havia permeado a literatura

européia, e este fato se refletiu na versão galesa.

Discutiremos com mais precisão o período provável de origem dessas narrativas e a

questão da composição dos manuscritos no quarto capítulo deste trabalho, quando

analisaremos os contos detalhadamente.

A seguir, refletiremos sobre os aspectos mais relevantes do quadro sócio-político e

cultural da Europa e do País de Gales, entre os séculos XI e XIV, numa tentativa de melhor

compreender o contexto de produção do Mabinogion.

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CAPÍTULO II

O LUGAR DO MARAVILHOSO E DO UTÓPICO:

DO SÉCULO XI AO SÉCULO XIV

“...os franceses são um no rei, como os cristãos são um no Cristo... Sois vós,na medida em que todos vós sois o rei, que sois a Santa Igreja..”

(Luís IX)

Já há algum tempo é consenso entre os estudiosos de Ciências Humanas que a Idade

Média não pode e não deve ser encarada como algo uno, um período uniforme. Aliás, para

muitos, este teria sido o principal equívoco de historiadores das correntes mais tradicionalistas

como Henri Pirenne33. Nesse sentido, parece-nos mais apropriado pensar estes mil anos de

história, ricos em nuances e particularidades, seguindo o caminho apontado por Marc Bloch,

Jacques Heers, George Duby e Jacques Le Goff. Ou seja, concordamos com estes

historiadores das correntes da Nova História e da História das Mentalidades, que enxergam

este longo período histórico como um prisma, um todo plural e multifacetado.

Com base na moderna historiografia francesa, Hilário Franco Júnior34 fala em

diferentes períodos da Idade Média ou, de modo mais aprofundado, em várias Idades Médias.

Então, para o autor, a Primeira Idade Média (séc. IV a meados do séc. VIII) se caracterizou

pela convivência e mescla dos três elementos históricos que formaram os fundamentos da

Idade Média – Roma, os germanos e a Igreja -, constituindo-se, assim, num período de

interpenetração e síntese. A seguir, a Alta Idade Média (meados do séc. VIII ao séc. X)

33 PIRENNE, Henri. La fin de Moyen Âge. ______________. Les villes et les institutions urbaines 34 FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente (pp. 11-15)

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apresentou, com Carlos Magno, uma certa unidade política, contudo já podemos perceber

nesta fase a presença de tendências desagregadoras que levaram, posteriormente, à

fragmentação feudal. A Idade Média Central (séc. XI ao séc XIII) trouxe o apogeu do

Feudalismo e também o aparecimento de elementos importantes para a cultura ocidental, tais

como: as universidades, a literatura laica, as monarquias nacionais e o fortalecimento das

cidades. Vale aqui destacar que, nesse período, Franco Jr. detecta o crescimento de uma

sociedade que ele denomina “feudo-burguesa”, com importantes transformações que já

apontavam para novos tempos. Por fim, a Baixa idade Média (séc. XIV a meados do séc.

XVI), com as graves crises do século XIV e os rearranjos delas decorrentes, se caracterizou

como o período de prenúncio da Idade Moderna.

Tendo em mente essa proposta de periodização, é importante lembrar que durante o

século V (1a Idade Média) as províncias ocidentais do Império Romano encontravam-se

enfraquecidas política, econômica e socialmente, passando então a sofrer seguidos e

constantes assaltos dos povos ditos bárbaros. Cabe neste momento esclarecer que, para

romanos e gregos, eram bárbaros todos os povos estrangeiros rebeldes a sua civilização e a

sua língua, povos esses geralmente nômades e de difícil adequação à civilização greco-

romana, de caráter marcadamente urbano. Gostaríamos de abrir aqui um parênteses para

refletirmos sobre um fato, para nós irônico. Atualmente, algumas grandes potências do

ocidente – como Inglaterra, França e Alemanha (outrora povos considerados bárbaros) –

voltam seu olhar de forma preconceituosa e pejorativa para grandes povos do oriente –

principalmente árabes, indianos e chineses – como se esses (que historicamente constituíram

grandes e avançadas civilizações na Antiguidade) fossem menos evoluídos social e

culturalmente (isto é, bárbaros), simplesmente por não se adequarem e não quererem se

adaptar à lógica e ao modus vivendi do ocidente. Voltemos agora ao século V.

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Os grandes embates entre as forças do Império Romano e os povos bárbaros

aceleraram, então, o que comumente chamamos de desintegração ou declínio do Império

Romano. Todavia, os vários agentes desse processo e os acontecimentos dele resultantes nos

fazem pensar não em um declínio do Império Romano, e sim numa adaptação das forças

desse às novas estruturas político-sociais e a um novo equilíbrio étnico. Nesse sentido,

podemos lembrar a importância da então superioridade militar dos povos bárbaros, traduzida

não só pela maior rapidez de sua cavalaria como também, e principalmente, pela leveza das

armas dessas tribos, dado o avançado domínio da metalurgia por parte delas.

A partir desse momento dois elementos adquiriram importância destacada: a figura do

Rei35 e uma arma em especial, a espada36. Essa arma adquiriu, naquele momento, um valor

simbólico que se traduzia na sorte e no orgulho do guerreiro. Não é sem motivo que podemos

encontrar diversos exemplos de narrativas medievais que destacam a espada como símbolo,

dentre as quais podemos citar as que se referem a Artur e sua Excalibur, a Sigfried com sua

Belmung e a Carlos Magno e sua Joyeuse.

É importante ainda destacar que as invasões bárbaras foram responsáveis por um

expressivo número de migrações no interior do Império, ficando, assim, esse período

profundamente marcado pelas oposições étnicas, pelos conflitos sociais, pelas complicações

econômicas e pela miséria camponesa. Dentre os diversos movimentos migratórios, as

grandes migrações germânicas merecem destaque, por terem acarretado duas importantes

35 “A sociedade humana concebe-se no século XI como uma imagem, como um reflexo da cidade de Deus, que é uma realeza. De facto a Europa feudal não pode dispensar o monarca...Modelo das perfeições terrestres, a figura real estabelece-se no ponto mais alto de todas as construções mentais que pretendiam então significar a ordenação do universo visível. Artur, Carlos Magno, Alexandre, Davi, todos os heróis da cultura cavaleiresca foram reis, e era ao rei que todo homem nesse tempo, quer fosse padre, guerreiro e mesmo camponês, se esforçava por assemelhar-se. Devemos ver na permanência do mito real um dos caracteres mais marcantes da civilização medieval” DUBY, Georges. O tempo das catedrais. (p.21) 36 “...a espada é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a bravura, bem como de sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância e, por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor, pois estabelece e mantém a paz e a justiça. Todos esses símbolos convêm literalmente à espada, quando ela é o emblema do rei ... símbolo guerreiro... Nas tradições cristãs, a espada é uma arma nobre que pertence aos cavaleiros e aos heróis cristãos.” CHEVALIER Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. (pp.392-393)

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conseqüências. A primeira foi o deslocamento das forças do Império, o que provocou o

abandono das regiões celtas da Bretanha, que passaram, então, a ser atacadas pelos escotos e

pelos pictos (lembramos que as conseqüências desse período nas regiões celtas e,

principalmente, no País de Gales já foram por nós discutidas no capítulo anterior). A segunda

importante conseqüência foi a revolta das populações autóctones das diversas regiões –

geralmente mal adaptadas e pouco submissas à civilização urbana romana -, fato que

propiciou a ressurreição das tradições autóctones, principalmente na Bretanha, na Gália e na

Espanha.

Finalmente, não podemos esquecer que o aspecto mais significativo das migrações

germânicas para as províncias romanas do ocidente foi, justamente, propiciar o encontro de

civilizações originais e complexas, dando vida ao que entendemos por civilização medieval. É

justamente sobre os aspectos mais relevantes desta então nova civilização – uma verdadeira

síntese que se traduzia na soma das múltiplas contribuições bárbaras às tradições romanas –

que refletiremos nesse segundo capítulo.

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1 – A Europa Medieval entre os Séculos XI e XIV:

a Realidade que Clama pelo Utópico e pelo Maravilhoso

Geralmente, as correntes mais tradicionais em História apontam a desintegração ou o

desmantelamento das cidades e do comércio como um dos principais desdobramentos das

invasões bárbaras. De fato, o estabelecimento dos povos bárbaros acarretou um certo declínio

das cidades em todo ocidente, e podemos afirmar que a conquista anglo-saxônica germanizou

praticamente quase toda a Bretanha (trazendo o abandono da língua bretã, do Cristianismo e

de quase todas as cidades e villae), lembrando ainda que na Bretanha Armoricana

(principalmente na Gália) as cidades praticamente desapareceram. Entretanto, essa visão

clássica a respeito do período deve ser relativizada, já que esse processo se deu de forma

matizada e desigual, pois algumas regiões apresentaram várias exceções. Além disso,

voltamos a insistir na idéia de que as invasões bárbaras não destruíram a civilização romana,

pois se o direito bárbaro, por exemplo, pode ser encarado como prova de uma nova

mentalidade e de práticas originais, é inegável que muitas de suas leis – como o Código de

Eurico e a Lei Sálica – foram profundamente influenciadas pelo direito romano

(principalmente nas formas provinciais)37.

Em meio a esta idéia de desintegração e dispersão, o século VIII trouxe ao mundo

medieval um fato marcante e definitivo para a história das mentalidades da civilização

medieval, a ascensão de Carlos Magno. Após a morte de seu pai (Pepino , o Breve) em 768,

ele herdou o reino merovíngio e se casou com a filha do rei lombardo. Suas características

37 HEERS, Jacques. História Medieval. (p.29)

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pessoais (caráter firme e centralizador) o transformaram, logo de início, no grande rei franco,

aliado do Papa e protetor da Igreja – atacou todos os inimigos de Roma e da Fé impondo a

“ordem e o respeito a Deus” -, e já em 774, como rei dos francos e dos lombardos, confiou o

governo da Itália a seu filho. Os feitos de Carlos Magno foram importantes para a expansão

de seu próprio reino e da Cristandade, conquistou e submeteu os pagãos do Norte e do Leste

(frisões, ávaros e saxões) e enfrentou, com ferocidade, os mulçumanos. Merece aqui destaque

o episódio do cerco a Saragoça (778), quando o exército de Carlos Magno, mal sucedido

nesse episódio, retirou-se da batalha e foi atacado nas montanhas por bandos bascos.

Morreram, então, vários condes, dentre eles Rolando (prefeito das fronteiras da Bretanha),

posteriormente personagem principal da Canção de Rolando – obra de grande destaque na

literatura medieval que se refere a esse episódio.

A política expansionista de Carlos Magno (sempre consagrando suas vitórias a Deus e

defendendo com firmeza o Papa Leão III) rendeu excelentes dividendos políticos e

ideológicos. Durante o Natal de 800 foi aclamado Imperador dos Romanos (tendo já recebido

a bandeira do Santo Sepulcro enviada pelo próprio Patriarca de Jerusalém), trazendo então à

cena a idéia de restauração imperial. É importante notarmos que, naquele momento, a

necessidade de um novo título consagrando as conquistas francas correspondia exatamente à

idéia política e ao sentimento coletivo de um novo império no Ocidente, o Imperium

Christianum, ou seja, um só reino no céu, um só chefe na terra. Nesse sentido, o Reino

Celestial de Cristo criador do universo tinha sua estrutura perfeitamente refletida no Reino de

seu lugar-tenente na terra, Carlos Magno: vigário de Cristo, todo-poderoso escolhido por

Deus e Intendente da Igreja. Segundo Alcuíno: “ele é um rei em seu poder, um sacerdote em

seus sermões” 38. Todavia, devemos ressaltar que Carlos Magno não foi um rei-sacerdote,

38 “Alcuíno: erudito inglês (York, 735 – Tours, 804), um dos mestres da escola palatina de Aix-la-Chapelle, fundada por Carlos Magno, e um dos principais colaboradores do Imperador”. Koogan/Houaiss. Enciclopédia e dicionário ilustrado. (pp.47-48)

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pois – como nos lembram muitos historiadores como H. Fichtenau39 - apesar de interferir

profundamente nos assuntos da Igreja não foi investido de poder sacerdotal. A cerimônia de

seu coroamento não incluiu a imposição das mãos, e na Capela Palatina o trono real encontra-

se na parte Oeste, enquanto o Altar de Cristo localiza-se na parte Leste (lado sagrado), numa

clara separação entre o sagrado e o profano, entre o poder espiritual e o secular40.

Mesmo assim, Carlos Magno quis governar a Igreja como governava o seu reino, e

dentro dele escolhia os bispos e os empregava como simples funcionários em várias

atividades. No que tange ao aspecto político-administrativo do Império, pretendeu estabelecer

uma administração sólida, igualitária e centralizada para todas as regiões, inclusive os países

conquistados. Porém, a sucessão dos fatos mostrou a fragilidade da estrutura administrativa

do império de Carlos Magno, mantido sobretudo por seu carisma e forte personalidade que

expressavam uma aparente solidez, visto que após sua morte (814) este praticamente

desintegrou-se. Os governos seguintes, com Luís, o Piedoso (814-840) – um de seus filhos – e

Carlos, o Calvo (843) – um de seus netos -, experimentaram dificuldades crescentes para

manter a idéia de um império cristão unificado, passando por um sem número de crises

sucessórias, partilhas, lutas e divisões internas41. Assim enfraquecido, o Império Carolíngio

sofre ataques de vários povos, tendo então início a série de invasões que marcaram os séculos

IX e X e que em muito modificaram o mapa político do Ocidente.

É interessante refletirmos brevemente sobre a natureza dessas invasões dos séculos IX

e X. Durante muito tempo a intenção principal era simplesmente a de pilhagem, prevalecendo

a idéia de espólio sobre a de dominação política. Paulatinamente, porém, esse quadro vai

sendo alterado, particularmente no que diz respeito às incursões normandas. Os vikings

39 FICHTENEAU, H. L’ empire carolingien. Paris, Payot, 1958. 40 FOLZ, R. Le couronnement de Charlemagne. 1967. 41 Sobre as crises sucessórias, a Partilha de Verdun e temas correlatos ver: FICHTENAU, H. cit. HALPHEN, I. Charlemagne et l’empire carolingien. ZUMTHOR, Paul. Charles le Chauve.

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possuíam excelentes instrumentos de combate (lanças, arcos, escudos, capacetes), além de

navios rápidos e resistentes capazes de enfrentar o alto mar, atacar todas as costas e subir rios.

Apesar disso, os muitos ataques vikings contra anglo-saxões, irlandeses e francos não estavam

subordinados a um plano de ação conjunta. Mesmo assim, os vikings estabeleceram o tráfico

de escravos, exigiam pagamento de tributos para não pilhar, e formaram alguns estados de

existência efêmera que assimilaram o Cristianismo. Torna-se, então, mais proveitoso para eles

explorar regularmente as populações, nesse momento o Danegeld (tributo regular, geralmente

anual) torna-se uma instituição, o que, podemos dizer, marca a segunda fase das invasões

escandinavas – caracterizada pela procura de terras e pelo estabelecimento de relações mais

estreitas e tréguas mais longas42. É necessário ter em mente que esta nova leva de invasões

apresentou efeitos variados nas diversas regiões afetadas. Percebe-se que a intervenção

normanda incentivou o desenvolvimento das grandes rotas marítimas do Norte, com a

construção de grandes cidades comerciais na costa irlandesa – como Dublin e Limerick – e a

transformação (na Inglaterra) de York e de algumas cidades da East Anglia em grandes

centros de comércio e de cunhagem de moedas. Entretanto, não podemos esquecer que essas

mesmas invasões, com os saques e massacres, não só arruinaram completamente várias

regiões (interrompendo o cultivo de terras e retardando os arroteamentos) como também

difundiram um clima de horror e medo.

Sendo assim, para muitos estudiosos, essas invasões dos séculos IX e X se

constituíram em um período fundamental para a formação das sociedades feudais do ocidente.

O clima de medo e a ameaça concreta de destruição fizeram com que todos – do monge ao

simples camponês – buscassem refúgio e proteção em asilos fortificados. Temos, então, a

afirmação definitiva do poder dos Castelões (que tinham como oferecer proteção), o que

arruinou o poder dos Condes e esfacelou os quadros territoriais carolíngios. Teve início assim,

42 BLOCH, Marc. A sociedade feudal.(pp.32-42)

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naquele momento, uma nova ordem baseada em laços de dependência e juramento, que se

apresentava como um obstáculo efetivo à autoridade real. Um rápido olhar sobre o que dizem

os historiadores a respeito da evolução e dos limites do Feudalismo na Europa Ocidental nos

permite algumas constatações. Inicialmente, que tivemos sob o governo de Carlos, o Calvo,

uma fase decisiva para a concentração de elementos-chave das estruturas políticas e das

instituições vassálicas. Segundo, podemos verificar que o Feudalismo clássico (sem alteração)

é apenas um conceito, e que seu domínio geográfico estava restrito à França do Norte. Por

fim, que a evolução desse sistema se deu de forma desigual nas diferentes regiões, chegando

em muitas delas a limitar-se a um vocabulário e a uma mentalidade coletiva.

Recuperando os estudos de Marc Bloch, F.L. Ganshof e Jacques Heers, podemos

resumir a evolução do sistema feudal em dois momentos. Na denominada Primeira Idade

Feudal tivemos a fixação dos laços, o estabelecimento de costumes e regras, do vocabulário

político e social e da hereditariedade dos feudos e dos encargos. Percebe-se também muito

claramente a estreita ligação entre o exercício do poder, a atividade de armas e a possessão de

terras. Já o período que os autores apresentam como Segunda Idade Feudal nos trouxe os

governos regidos pelas relações de vassalidade e as monarquias feudais do século XII.

Lembramos, mais uma vez, a evolução desigual desse processo nas diferentes regiões,

esclarecendo que em muitas delas as diferenças e variações ocorreram por não se tratarem de

sociedades organizadas em função da vida militar ou da exploração da terra. Não podemos

esquecer aqui os chamados “Feudalismos de Importação”, verificados em regiões (como a

Inglaterra, a Itália e a Terra Santa) onde as estruturas feudais – que nesse caso se tornam

superficiais e superpostas – foram introduzidas e reforçadas por conquistas43. Em relação à

Inglaterra, vale a pena ressaltar que esta apresentava significativas diferenças na evolução de

sua estrutura político-social em relação às outras regiões, por tratar-se, então, de uma 43 BLOCH, Marc. Op.cit. (pp.76-89; 145; 188; 191-203; 213; 255-259). GANSHOF, F.L. O que é o feudalismo. (pp.89-140). HEERS, Jacques. Cit. (pp.77-79).

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sociedade basicamente germânica com influências dinamarquesas em vários pontos, não

apresentando, portanto, uma herança romana ou do Império Carolíngio, verificadas em outras

regiões. Assim, apenas com a Conquista Normanda percebe-se a evolução, tardia e incerta, de

um regime vassálico. Essa evolução claudicante deveu-se também ao fato de não existir,

naquela região, uma distinção tão acentuada entre vida nobre e serviço guerreiro (atividade

dos bellatores) e o trabalho na terra (função dos laboratores) – como havia nas regiões

francas -, sendo para muitos a sociedade inglesa da época uma sociedade de agrarii milites44.

No que diz respeito às monarquias feudais de Inglaterra e França, algumas características

comuns importantes podem ser detectadas: o confisco dos principais direitos dos senhores

feudais, a hábil utilização dos poderes de suserania pelo rei e o estabelecimento de um

governo de clérigos fiéis e competentes recrutados pelo próprio rei. Merecem destaque no

período o rei Henrique II (Inglaterra) e o rei Luís VI, o Gordo (França).

Não podemos esquecer que caminhando conjuntamente com estas questões sócio-

políticas, estão importantes fatores e transformações econômicas que mudaram a mentalidade

e afetaram profundamente o imaginário do homem medieval. O grande crescimento

demográfico verificado ao final do século X, que inicialmente acarretou graves fomes – como

a de 1033 -, trouxe novos empreendimentos diversos (as Cruzadas no Oriente, a Reconquista

na Espanha e as conquistas alemãs em terras eslavas) e transformações econômicas

fundamentais, como: o desenvolvimento do grande comércio, o povoamento das cidades, o

direcionamento de numerosa mão-de-obra para a “indústria têxtil” – que alimentou tráficos

longínquos – e os arroteamentos45. Temos, a partir de então, o ano mil e a “veste branca da

44 Segundo G. Duby a sociedade feudal dividia-se então em três ordens bem definidas: a dos oratores (clero), a dos bellatores (nobreza e cavalaria) e a dos laboratores (trabalhadores). Ver: DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. (pp.297-306). 45 “Arroteamento: A terra arroteada é a terra nova, conquistada à natureza virgem por desflorestação, desbaste do mato, drenagem, etc. Arroteamento é pois sinônimo de desbravamento. O fenômeno dos grandes arroteamentos representa o aspecto mais espetacular da revolução agrícola dos séculos X a XIII, ... De início, o esforço de aproveitamento dos solos processou-se de forma mais ou menos desorganizada. È a época dos arroteamentos dispersos, freqüentemente clandestinos, realizados sem o conhecimento e muitas vezes

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Igreja com a qual se enfeita a Cristandade” 46 como importantes símbolos de reflorescimento

ou renascimento após tempos conturbados. O desenvolvimento de novas técnicas, provocado

pela evolução das estruturas sociais e pela necessidade de aumento dos rendimentos, tinha sua

aplicação restrita aos melhores solos para a produção de excedentes, lembrando aí o limitado

uso do ferro pelo seu alto custo, permanecendo, essencialmente, a civilização agrária de então

uma civilização de madeira. É importante contudo esclarecer que, apesar dos progressos

limitados e dos rendimentos fracos, estes foram suficientes para diminuir a fome durante três

séculos, destacando como principais inovações naquele momento o emprego do cavalo em

lugar do boi, o uso da charrua em lugar do arado e a rotação trienal em lugar da bienal. Nesse

conturbado percurso, notamos que dos séculos XI ao XIII a grande penetração mercantil no

ocidente propiciou novas atividades industriais, uma maior utilização da moeda e a afirmação

de novas mentalidades. Neste retorno a práticas monetárias esquecidas, o comércio do

dinheiro tornou-se uma das atividades mais importantes dos centros mercantis (quando os

cambistas transformaram-se em banqueiros), e judeus, lombardos e sieneses nele se

especializaram justamente por não serem cristãos47. Devemos nesse momento retomar

algumas considerações feitas por Henri Pirenne a respeito dos mercadores, grupo que se

impõe mais fortemente no cenário medieval mais ou menos a partir do ano mil. Segundo o

autor, eram esses mercadores “homens novos”, aventureiros e arrivistas, representantes de

uma mentalidade particular – fora dos quadros das mentalidades tradicionais da sociedade

feudal e agrária – que se agrupavam em associações juramentadas como as guildas, as

confrarias e as hansas48. Para a maioria dos estudiosos sua atuação e visão de mundo tiveram

contra a vontade das autoridades e dos senhores de terra por uma massa de camponeses esfaimados que assim procuraram uma forma de subsistência. ... Mais tarde, no fim do século XI e especialmente no século XII, chega a época da colonização sistemática. Os senhores apercebem-se de que os arroteamentos podem ser uma fonte lucrativa (e esta tomada de consciência já supõe, aliás, uma verdadeira transformação na mentalidade da classe dominante) e passam a dirigi-los.” BONNASSIE, Pierre. Dicionário de história medieval. (pp. 33-36) 46 Expressão retirada de uma célebre frase do monge Raul Glaber. HEERS, J. cit. (p.111) 47 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média.(pp.9-32) 48 PIRENNE, Henri. As cidades e a Idade Média. (pp.91-108)

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papel seminal na origem, na organização social e na mentalidade das novas cidades,

principalmente ao Norte da Europa. Cabe, neste ponto, um parênteses a respeito das cidades

ao Sul (especialmente ao Sul da França). Embora muitos autores destaquem as “repúblicas” e

as burguesias mercantis, nessa região os mercadores dos grandes centros não são burgueses, e

sim nobres e filhos de nobres autênticos – ricos em propriedades fundiárias e direitos feudais

– que residem na cidade, junto ao poder. Verifica-se aí a existência de poucos castelos nas

zonas rurais e a consagração da cidade como centro do poder feudal, onde a aristocracia

guerreira ocupava cargos políticos e, durante algum tempo, religiosos, eliminando assim a

clássica oposição entre a cidade e a zona rural, entre a sociedade urbana e a sociedade feudal.

Já mencionamos aqui o papel fundamental desempenhado pelas monarquias feudais de

Inglaterra e França, ao longo dos séculos XII e XIII, e a importância da Igreja como

sustentáculo do poder de alguns governantes durante a Idade Média. Devemos, porém,

lembrar que em alguns momentos decisivos esta relação Estado-Igreja foi fortemente abalada

por profundos conflitos de interesses: durante o século XI – com a “questão das investiduras”;

na Inglaterra – em 1170 com o assassinato de Thomas Becket durante o governo de Henrique

II; e durante os séculos XII e XIII na Alemanha e na Itália – em mais um sério conflito entre o

Papado e o Império49. Assim, o século XIV encontrou um mundo medieval bastante

fracionado por guerras e desordens de todo o tipo, trazendo à cena, então, o que se

convencionou chamar a “grande crise” ou “depressão” do século XIV. Os numerosos

conflitos deixaram as zonas rurais praticamente entregues a bandos de mercenários,

assaltantes e aventureiros de toda espécie, tornando comuns as pilhagens, os roubos, as 49“Questão das Investiduras”: disputa entre o papado e o império que se iniciou no pontificado de Nicolau II (1059-1061) quando este decretou que a escolha dos pontífices caberia apenas aos cardeais da Igreja. O conflito se agrava quando o Papa Gregório VII (1073-1085) derruba todos os prelados que conseguiram seus cargos por meios ilícitos e condena as investiduras episcopais concedidas por leigos. O Imperador Henrique IV, da Alemanha, reage com vigor dando início a uma acirrada luta pela dominação do mundo ocidental. Thomas Becket : Arcebispo da Cantuária que entrou em conflito com o rei Henrique II, ao defender as prerrogativas da Igreja, quando o rei submeteu a seu controle a Igreja da Inglaterra e tentou se descartar do controle pontificial. Seu assassinato, se não foi ordenado, foi com certeza muito desejado pelo rei. O fato provocou tremenda comoção e transformou a Cantuária, onde se encontra o túmulo do arcebispo, em lugar de peregrinação.

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destruições e o banditismo crônico que eram, então, ameaça constante às aldeias e cidades.

Nesse contexto de total desagregação, os anos de fome e penúria se mostraram maiores e mais

graves que os dos séculos XII e XIII, tendo em vista a produção insuficiente para suprir a

população que já havia, então, aumentado bastante. Contudo, faz-se necessário destacar que

este esquema não se aplica ao conjunto do Ocidente, já que a grande crise do século XIV não

teve a mesma amplitude nem a mesma duração em toda parte – no Mediterrâneo ela se

mostrou menos profunda e a recuperação da região foi mais rápida. Outro problema marcante

no período foi a grande epidemia de 1348-49, conhecida como a Grande Peste ou Peste

Negra. Considerada uma das catástrofes mais graves para o Ocidente cristão sua rápida

propagação, auxiliada pela fraca resistência dos indivíduos já debilitados pela subalimentação

crônica, dizimou mais de um terço da população ocidental de então. A rápida redistribuição

de bens e alimentos entre os sobreviventes da Peste trouxe, nos anos seguintes, uma pequena

elevação da taxa de natalidade, fato que acarretou a volta inesperada da epidemia

comprometendo, assim, a recuperação demográfica e criando uma psicose coletiva da peste.

Encarada como castigo de Deus, a Peste Negra desenvolveu, naquele momento, um

misticismo exacerbado entre o povo, aumentando não só as superstições como também a raiva

contra estrangeiros e não-cristãos (principalmente os judeus). Refletindo mais detidamente

sobre esses fatos que acabamos de expor, podemos afirmar que as fomes e as epidemias –

cada vez mais graves e mais freqüentes -, os abruptos cortes populacionais e os grandes

problemas econômicos marcaram definitivamente as mentalidades coletivas e o sentimento

religioso da época. Por isso, acreditamos que alguns fatos estreitamente relacionados à

religião e ao misticismo merecem aqui uma análise mais detalhada, para que posteriormente

possamos melhor compreender o papel que desempenharam no imaginário medieval,

afetando, dessa forma, a redação final dos textos que nos propusemos analisar.

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No que diz respeito às questões espirituais e religiosas, podemos inicialmente lembrar

que as migrações bárbaras do século V favoreceram o reaparecimento de antigas práticas

religiosas (pagãs) latentes nas populações rurais, não esquecendo também que o antagonismo

religioso era um dos grandes obstáculos à fusão entre germanos e romanos. Tendo a chegada

dos germanos e dos francos reforçado o paganismo que sempre resistiu aos romanos e aos

bispos, a rápida conversão de reis e chefes bárbaros mostrou-se superficial e restrita à

aristocracia. Nesse sentido, alguns elementos comprovam a forte ligação do povo às crenças

autóctones e ao paganismo, tais como: a literatura religiosa da época, as práticas rituais (fogos

purificadores; oferendas aos deuses de lagos, fontes e florestas; adoração do fogo e do sol –

cujos símbolos enfeitavam pedras e objetos familiares), o uso de amuletos (presas de javali,

dentes de urso, medalhas de âmbar...) e o mobiliário funerário. O século VI mostra o campo

ainda pouco influenciado pelo Cristianismo, com poucas e isoladas paróquias. Vemos

também, nesse momento, que as centenas de “vidas de santos” que circulavam demonstravam

o interesse dos bispos na evangelização das zonas rurais50.

O passar dos séculos e o caminhar da História deixaram expostos alguns problemas

como a incapacidade do clero (dizimado, pouco instruído ou iletrado, incapaz e

desinteressado da missão espiritual) e muitas vezes a sua indignidade (a simonia e o

nicolaísmo51). Somado a esses fatos o estabelecimento definitivo do sistema feudal fez com

que, a partir do século XI, as relações feudais penetrassem em todos os âmbitos da sociedade,

inclusive na Igreja. Temos, assim, a Igreja sob a dominação dos príncipes e senhores laicos e

a função episcopal como um benefício concedido pelo soberano, passando as relações entre

bispos, abades, monges e sacerdotes a serem determinadas pelo juramento vassálico

(principalmente na França do Norte). Esse conjunto de fatores ensejou um movimento que

pretendeu introduzir no Ocidente uma nova espiritualidade e afirmar a independência da 50 KNOWLES, David e OBOLENSKY, Dimitri. Nova história da Igreja: a Idade Média. Vol.II (pp.13-22). 51 Simonia: obtenção de um ofício divino por meio de influência ou de dinheiro. Nicolaísmo: recusa do celibato dos sacerdotes .

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Igreja diante dos poderes laicos, a Reforma Gregoriana, simbolizada então pelo Papa

Gregório VII. Para a maioria dos historiadores o reflorescimento espiritual e a libertação da

tutela leiga são aspectos fundamentais da reforma religiosa, ou seja, o intencional

fortalecimento do poder espiritual do papado para desafiar o poder político dos soberanos,

processo que atingiu o seu ápice na “questão das investiduras” (fato já explicado

anteriormente). O reflorescimento espiritual propiciado pela Reforma Gregoriana contribuiu

para a difusão de algumas grandes escolas episcopais e abadias, centros de ensino e estudo da

liturgia importantes para a elevação do nível intelectual e espiritual do clero – como a abadia

de Cluny. Contudo, não seria correto atribuir todo o mérito da Reforma Gregoriana apenas

aos monges e abades e deixar de lado o papel desempenhado pelo clero secular, apesar dos

graves problemas que este apresentava (como mencionamos acima). O clero secular teve na

época da Reforma grande influência sobre a população, e suas ações eram freqüentemente

comandadas pelo papado e seus legados, principalmente depois dos Concílios Reformadores –

entre 1072 e 1080 – de Winchester, Westminster e Gloucester que impuseram o celibato aos

cônegos e aos sacerdotes das aldeias. Nesse sentido, podemos dizer que a ação do clero

secular impôs costumes menos brutais, introduzindo uma concepção religiosa e espiritual

nova ao conseguir implantar: os Juramentos de Paz, a Paz de Deus e a Trégua de Deus (não

combater de 6a a domingo), além de impor aos cavaleiros uma nova mentalidade e um novo

gênero de vida. Assim, formavam os cavaleiros a serviço de Deus uma ordem (no sentido

religioso do termo), sendo o ritual de sagração desses cavaleiros (com vigília de armas na

capela) o exemplo mais significativo de uma nova atitude e de uma nova consciência coletiva,

já que lembrava os ritos de ordenação dos clérigos. Nesse período, a religião entre os leigos

também evoluiu, principalmente no que diz respeito aos ideais de paz e fraternidade, fato que

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pode ser atestado pela significação religiosa das muitas fraternidades e confrarias fundadas a

partir de meados do século XI52.

É importante destacar aqui o papel fundamental dos eremitas para a religião popular.

Considerados verdadeiros homens de Deus, abandonavam suas aldeias, vivendo então de

forma errante e solitária, exaltando a pobreza e o trabalho manual. Os eremitas formavam

assim uma espécie de ordem bem definida (túnica de tecido cru, barba grande, joelhos e pés

nus), atraindo com seu exemplo de vida multidões em busca de todo tipo de cura, já que para

o povo possuíam poderes sobrenaturais. Porém, devemos esclarecer que a vida de um eremita

não se constituía apenas na recusa do mundo material ou na revolta contra a hierarquia

eclesiástica. Sendo nômades, atingiam em suas peregrinações populações humildes errantes e

mal fixadas (pastores, carvoeiros, servos fugitivos...), tendo dessa maneira participado de um

verdadeiro programa de evangelização popular, muitas vezes apoiados ou mesmo enviados

pelos papas, principalmente Urbano II (1088-1099). Com suas práticas e sermões

enfraqueceram as antigas devoções autóctones, provocaram o interesse popular pela Terra

Santa, pelo Cristo Salvador e pelas idéias de peregrinação e de cruzada, introduzindo entre as

camadas populares os ideais de uma nova religião e de um novo Cristianismo. Tendo sido

conduzido principalmente por homens que foram abades ou bispos, o movimento eremítico

originou também novas ordens religiosas (com regras e organização semelhantes às das

comunidades monásticas antigas) fortemente marcadas pelo ascetismo, com destaque para

Cister – fundada em 1119 por Bernardo de Clairvaux e outros vinte e um monges – que muito

claramente se insurgia contra o poderio e a fortuna de Cluny. Tendo conquistado seus adeptos

entre os monges eremitas, é interessante notar que muitas abadias cistercenses foram

inicialmente ermidas53. Cabe aqui refletirmos brevemente sobre a importância da afirmação,

durante os séculos XII e XIII, das heresias, caracterizadas por uma atitude claramente anti-

52 KNOWLES, David e OBLENSKY, Dimitri. Cit. (pp.79-88; 179-199). 53 Ibidem.

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hierárquica e hostil à Roma, constituindo-se então numa clara ameaça à unidade espiritual do

Ocidente cristão. Vários estudiosos costumam fazer uma distinção entre as heresias orientais

(de caráter mais dogmático e filosófico, e geralmente restrita a doutores e eruditos) e as

heresias ocidentais (de caráter mais popular, atraindo indivíduos pouco instruídos ou

iletrados). Todavia, é importante ressaltar que no Ocidente muitos desses movimentos, a

princípio populares e espontâneos, se fixam posteriormente (durante o século XIII) e se

organizam em verdadeiras Igrejas Heréticas, ultrapassando muitas vezes os limites provinciais

– como os Cátaros (ou Albigenses) e os Valdenses54. Voltaremos mais tarde a esse tema.

Pelo exposto no parágrafo anterior, podemos perceber que a pregação dos eremitas

suscitou o entusiasmo popular pela idéia de peregrinação e de cruzada. Além dos aspectos

político-econômicos (expansão e conquista – militar e agrária – de novas terras devido ao

grande aumento demográfico), é necessário pensarmos sobre as cruzadas como um

movimento também religioso. Os ideais de resistência e luta contra os infiéis, do serviço a

Deus e da salvação pessoal através de obras e da peregrinação às fontes do Cristianismo se

apresentaram, então, como elementos místicos essenciais na construção da idéia popular de

cruzada. Nesse sentido, a Cruzada à Terra Santa estava relacionada ao dever cristão de

peregrinação ao túmulo de Cristo em Jerusalém, sendo assim o peregrino o cruzado do povo.

Vista, a partir do século XI, como um dos aspectos constitutivos da vida religiosa, a

peregrinação a diversos locais importantes para a Cristandade (Roma, Santo Sepulcro, Monte

Gargano, São Tiago de Compostela...) passa a fazer parte do cotidiano do homem medieval.

Não podemos esquecer aqui da multiplicação, naquele momento, das crenças populares sobre

as virtudes da peregrinação (a lenda da peregrinação de Carlos Magno) e sobre as visões de

maravilhas que ela propiciava (meteoros, demônios, chuvas de cinza e sangue), maravilhas

essas que – acreditava-se – eram prenúncio de grandes acontecimentos. Nesse aspecto,

54 FALBEL, Nachman. Heresias medievais. (pp.13-65) HEERS, Jacques. Op. Cit. (pp.147-150).

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merece destaque o Concílio de Clermont (1095), quando o Papa Urbano II anunciou o início

da primeira grande cruzada, e os cavaleiros passaram, então, a combater oficialmente por

Cristo (o grande Suserano) com a ajuda de uma corte celeste de anjos e santos (ex.: São

Miguel e São Jorge). Em todo o Ocidente os cruzados (incluindo suas famílias e seus bens)

estavam sob a proteção da Igreja, o que explica em grande parte a criação de ordens religiosas

– como a dos Hospitalários e dos Templários – que inicialmente se colocavam a serviço dos

peregrinos oferecendo proteção, abrigo e alimentação. Todavia, o rápido aumento do número

de irmãos cavaleiros e o grande afluxo de donativos fizeram com que essas ordens se

tornassem extremamente fortes e poderosas, acumulando então grandes fortunas, feudos e

territórios que agruparam em comandaturas. Foi assim que no Oriente o seu poder ultrapassou

o dos barões e o do Patriarca de Jerusalém, enquanto que no Ocidente (além de possuírem

milhares de castelos) conseguiram manter por um longo tempo a idéia de cruzada e de ordem

cavaleiresca. Entretanto, com a chegada dos séculos XIV e XV, as sociedades urbanas,

paulatinamente, se adaptaram às novas atividades econômicas: novos tipos de tráfico

mercantil, novos itinerários e novas técnicas comerciais, financeiras e bancárias. São os sinais

incontestes da chegada dos novos tempos.

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2 – O Cotidiano Galês entre os Séculos XI e XIV:

A Maravilhosa Luta por uma Utopia

O longo governo de Howell, o Bom (904-950) propiciou aos galeses a oportunidade de

experimentar um período bastante significativo de unidade política e desenvolvimento

(inclusive nas letras e nas artes), já discutido por nós no primeiro capítulo. Infelizmente, após

sua morte, o país voltou a mergulhar na fragmentação política. Um breve olhar sobre a

história do País de Gales, durante a Idade Média, nos permite perceber um movimento

constante de avanços e retrocessos na luta incessante pela unidade e pela soberania políticas.

Nesse sentido, verificou-se uma nova tentativa de unidade e independência com Gruffudd ap

Llywelyn, que subiu ao trono de Gwynedd em 1039, e após um longo período de conflitos

(1057-1063), tornou-se o soberano de todo o País de Gales (período que correspondeu ao

predomínio de Wessex na Inglaterra). O governo de Gruffudd, porém, não durou mais que

sete anos, e novamente os sentimentos de realização e alegria experimentados pelo povo galês

foram abortados com a morte do rei em uma batalha contra Haroldo de Wessex, fato que aliás

ocorreu em um momento bastante difícil, tendo em vista a ameaça normanda.

No período que se seguiu à Conquista Normanda (que teve como marco inicial a

Batalha de Hastings em 1066), Guilherme, O Conquistador estabeleceu poderosos condados

nas fronteiras (Hereford, Shrewsbury e Chester), nos quais os Senhores de Fronteira (Marcher

Lords) exerceram seu poder e influência de forma quase ilimitada – quase sempre

ultrapassando os limites das fronteiras -, governando como pequenos reis e usurpando os

poderes antes pertencentes aos governantes galeses. Assim sendo, por volta de 1087 toda a

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região de Gwent já se encontrava completamente colonizada pelos novos invasores, o mesmo

acontecendo com o Sudeste de Gales por volta de 1100. Todavia, na montanhosa região

Noroeste a influência normanda mostrava-se mais escassa, possibilitando, então, que líderes

como Owain Gwynedd e Madog ap Maredudd recuperassem a região paulatinamente para os

galeses – restabelecendo os territórios de Gwynedd e Powys como unidades políticas sob leis

galesas. O interesse dos normandos em garantir uma fronteira mais segura e pacífica fez com

que eles buscassem estabelecer laços mais estreitos com a aristocracia galesa, demonstrando,

quase sempre, maior respeito pelos galeses que pelos ingleses. Fato é que, nesse período, o

galês foi utilizado como meio efetivo de comunicação em todas as áreas e instituições,

proporcionando um maior desenvolvimento do galês como língua (o que não ocorreu com o

anglo-saxão ou Old English, oficialmente substituído pelo Normam French e pelo latim) 55.

Nesse movimento pendular, que caracterizou a busca sem fim do povo galês por

liberdade e soberania política, vale a pena lembrar Llywelyn ap Iorwerth. Neto de Owain

Gwynedd, Llywelyn tornou-se rei de Gwynedd em 1200 e rapidamente, sob sua enérgica

liderança, o País de Gales voltou a ser reconhecido como uma unidade política, inclusive pelo

rei John da Inglaterra – com cuja filha Llywelyn se casou sendo também em 1216

reconhecido como o verdadeiro Príncipe de Gales (na Conferência de Aberdyfi). Já então

conhecido como Llywelyn Fawr (Lleywelyn, the Great) foi pessoalmente prestar suas

homenagens ao rei Henrique III, após a morte de John. Todavia, a morte do próprio Llywelyn

(1240) trouxe de volta os grandes conflitos internos – fato testemunhado na literatura em

diversos lamentos dos poetas da corte pela morte de seu maior patrono que acarretou,

também, o fim da antiga ordem de bardos galeses. O mesmo Henrique III homenageado por

Llywelyn Fawr se apoderou, logo após sua morte, de Gwynedd (em 1247 com o Tratado de

Woodstock) e, posteriormente, garantiu o controle de todas as terras da coroa para o Príncipe

55 WILLIAMS, Peter. A brief history of Wales. (cap. 4).

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Eduardo (seu filho). Entretanto, após uma série de conquistas militares, Llywelyn ap Gruffud

(neto de Llywelyn Fawr) conseguiu restaurar a unidade galesa, fato reconhecido por Henrique

III em 1267, com o Tratado de Montgomery (que deu a ap Gruffud os títulos de Príncipe de

Gales e de soberano de Gwynedd, Powys e Deheubarth). O panorama político foi, mais uma

vez, totalmente alterado em 1272, quando Eduardo I ascendeu ao trono inglês e as lutas

recomeçaram.

Determinado a governar toda a Grã-Bretanha, Eduardo I partiu então para conquistar

toda a Escócia e o País de Gales. Nesse momento, traído por seu irmão Dafydd, Llywelyn ap

Gruffud perdeu praticamente tudo o que havia conquistado e foi humilhado publicamente com

o Tratado de Aberconwy (1277), ficando restrito a uma área mínima em Gwynedd. O

cercamento de grande parte do país por fortalezas inglesas e os métodos brutais de Eduardo I

produziram grande descontentamento e revolta. A rebelião foi, então, liderada pelo ex-traidor

Dafydd (arrependido), tendo em seguida Llywelyn retornado ao comando e desfrutado de um

período de sucesso. Entretanto, este tumultuado período da história galesa chegou ao fim com

a morte dos irmãos ap Gruffud (primeiro Llywelyn e depois de algum tempo Dafydd). Com o

Estatuto de Rhuddlan (1294) o País de Gales tornou-se oficialmente parte da coroa inglesa e,

logo depois (1301), Eduardo I proclamou seu filho (então Lord Eduardo, futuro Eduardo II)

Príncipe de Gales e Conde de Chester – desde então todos os primogênitos da Coroa Inglesa

receberam este título. A partir desse momento tem início um intenso programa de construção

de castelos e fortalezas e de assentamento dos ingleses, ficando o povo galês excluído e

privado de praticamente tudo. Durante um bom período os pequenos e ocasionais focos de

rebelião eram, então, fácil e rapidamente sufocados, sendo que esse quadro só foi alterado

com a morte de Eduardo III e a chegada de Owain Glyndwr 56. Dentre essas tentativas

sufocadas, duas são bastante representativas do sentimento constante de revolta e resistência

56 Ibidem (cap.5).

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do povo galês. Após uma breve tentativa de reação liderada por Madog ap Llywelyn (1294), o

nobre galês Llywelyn Bren – Lord of Senghenydd – iniciou (em 1316) uma rebelião que,

embora fracassada, contou com o apoio de alguns dos mais importantes Senhores de Fronteira

(Marcher Lords). Porém, merece destaque nesse momento Owain Lowgoch (conhecido como

Owain ap Thomas: Owain Red Hand), o último a exercer uma liderança realmente importante

nas lutas de independência antes de Owain Glyndwr. Apesar de ter sido traído e morto em

1378, Owain Lowgoch era visto pelo povo e cantado pelos poetas como um libertador.

Mesmo após sua morte, sua lenda pessoal sobreviveu no imaginário galês, principalmente

através das poesias com tons mais proféticos, que comparavam sua vida à Lenda Arturiana.

Por volta de 1400 a instabilidade social e uma forte tensão racial (alimentadas

sobretudo pelas políticas de exclusão em relação aos galeses) criaram uma conjuntura

extremamente favorável para a atuação de Owain Glyndwr. Todos esses elementos,

embalados e reforçados por uma fortíssima tradição popular profética 57, permitiram que

diversos bardos (inclusive o popular Iolo Goch) relacionassem a figura de Owain Glyndwr às

antigas profecias referentes ao destino da nação galesa 58. Descendente direto dos Príncipes de

Powys e coroado Príncipe de Gales com o apoio de um pequeno grupo, Glyndwr sentiu-se,

naquele momento, suficientemente confiante para desafiar o rei Henrique IV da Inglaterra. A

partir de 1401, as medidas repressivas adotadas por Henrique IV restringiram mais ainda os

direitos civis dos galeses; além disso uma reclamação de Owain Glyndwr sobre uma disputa

de terras foi tratada com escárnio e desdém pelo Parlamento Inglês (com referências ofensivas

aos galeses). Tais fatos deram a Glyndwr o apoio mais expressivo de que tanto necessitava,

fazendo com que os revoltosos galeses conquistassem, então, a parte Norte do país. O sucesso

inicial do grupo reacendeu e liberou (de forma quase incontrolável) os sentimentos e anseios

galeses longamente reprimidos. Owain Glyndwr já contava, naquele momento, com o apoio 57 Ver a breve reflexão que apresentamos sobre a presença desses elementos proféticos na produção literária no primeiro capítulo deste trabalho. 58 WILLIAMS, Peter. Cit (cap7).

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massivo do campesinato fazendo, assim, com que a rebelião avançasse (por volta de 1404). É

importante lembrarmos aqui alguns fatos que marcaram profundamente o imaginário popular

galês e que foram fundamentais para que Glyndwr conquistasse a adesão apaixonada do povo,

dois deles ocorridos em 1402. Primeiro a aparição, nesse ano, de um cometa – fato visto pelo

povo como uma celebração do aparecimento de Glyndwr e como um sinal da chegada da

libertação. O segundo acontecimento marcante de 1402 foi a completa destruição do exército

de Henrique IV em Pilleth, ocorrida sob fatores meteorológicos totalmente favoráveis aos

galeses – o que aumentou consideravelmente a crença em um possível auxílio de forças

sobrenaturais. A esse respeito, vale a pena verificarmos o que diz uma passagem do Annales

Henrici Quarti de 1402:

Glyndwr almost destroyed the King and his armies, by magic as it was thought, for from the time they entered Wales to the time they left, never did a gentle air breath on them, but throughout whole days and nights, rain mixed with snow and hail afflicted them with cold beyond endurance.59

Esse quadro extremamente favorável – completado com o fracasso de mais três

expedições reais contra Owain Glyndwr – fez crer aos galeses que as conquistas de seus ideais

de liberdade e soberania estavam cada vez mais próximas. Os planos de Glyndwr eram os

seguintes, naquele momento: tornar a Igreja do País de Gales independente de Canterbury

(designando para benefícios episcopais em território galês apenas aqueles que falassem o

idioma), criar duas universidades para treinar os servidores civis e os clérigos e, finalmente,

derrubar o soberano inglês. Entretanto, a extrema habilidade militar do Príncipe Henrique

(futuro Henrique V) pôs fim aos anseios galeses – já que a sexta expedição militar inglesa

sufocou de forma inquestionável a rebelião e retomou a maior parte dos territórios

conquistados por Owain Glyndwr. Com o fim da rebelião, e o inevitável recrudescimento das 59 “Glyndwr praticamente destruiu o rei e seus exércitos, acreditava-se que através de magia, pois desde a hora em que eles entraram em Gales até a hora em que partiram, em nenhum momento bons ventos sopraram em sua direção, mas durante dias e noites, chuva, neve e granizo os castigaram com um frio além do suportável” Ibidem.

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medidas punitivas por parte do governo inglês 60, a família de Glyndwr foi capturada e levada

para Londres. O fim da revolta , porém, não significou o fim dos ideais galeses e muito menos

das lendas sobre Owain Glyndwr. Nada se sabe, até hoje, sobre sua morte, constituindo-se seu

destino após a derrota num absoluto mistério, cercado de especulações: teria simplesmente

desaparecido; teria partido para as montanhas ou para um mosteiro tornando-se um fugitivo

fora-da-lei. Vejamos o que diz a citação de um escritor anônimo de 1415: “ Very many say

that he died; the seers say that he did not.” 61. Nesse sentido, podemos afirmar que

independentemente de seu real destino, Owain Glyndwr entrou definitivamente para o rol dos

heróis mítico-históricos, do qual fazem parte também figuras como o Rei Artur e Dom

Sebastião. São heróis que sustentaram as crenças e os ideais longamente gestados no

imaginário popular e que, inquestionavelmente, alimentaram uma produção literária rica e

apaixonante.

60 Numa mensagem a Carlos VI da França Glyndwr escreveu: “ My nation has been trodden underfoot by the fury of the barbarous Saxons”. Ibidem (cap. 7). 61 Annals of Owain Glyndwr. Apud: WILLIAMS, Peter. Cit. (cap.7).

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3 – Breve Olhar Comparativo sobre o Imaginário Medieval

no País de Gales e na Europa

Tudo o que foi exposto ao longo deste segundo capítulo nos permitiu perceber a gama

de fatores (históricos, econômicos, religiosos, políticos, sociológicos...) que influenciaram a

produção artística e literária durante a Idade Média na Europa e, mais especificamente, no

País de Gales. Pensamos que a produção cultural do período refletiu, de maneira bastante

razoável, o cotidiano de então (vida social, costumes, pensamento...)- servindo inclusive de

estímulo em certas áreas. Acreditamos firmemente na importância de se compreender os

sentidos que uma realidade cultural teve para aqueles que a vivenciaram, já que cada realidade

cultural tem sua lógica interna. Sendo assim, é necessário relacionar os vários procedimentos

culturais com seus respectivos contextos de produção – buscando compreender o processo

histórico que os ensejou -, principalmente no que tange às relações de poder e ao confronto de

interesses dentro da sociedade. Porém, devemos sempre ter em mente que a cultura de um

grupamento social não deve ser encarada apenas como um produto (estanque, pronto,

acabado) e sim como um processo (portanto algo dinâmico), já que nos propomos ver a

cultura como uma construção histórica – que pressupõe um processo sócio-interacional

constante entre os indivíduos que compõem o grupo social e o coletivo. Para nós, estes

processos que resultaram em produções culturais diversas são o testemunho, inquestionável,

da capacidade humana de criar e recriar constantemente a sociedade em que vive 62.

62 SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. (pp.8; 25-26; 34; 45; 47).

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Nesse sentido, vale lembrar que as manifestações de cultura popular na época dos

antigos reinos bárbaros (opostas à cultura dos letrados) eram, em grande parte, revivescências

de antigos temas celtas. Entretanto, o encontro dessa cultura bárbara com uma cultura romana

e cristã propiciou o surgimento de uma arte de síntese, reunindo elementos diferentes e

complexos de forma extremamente harmoniosa. Assim, as migrações bárbaras espalharam

pela Europa expressões artísticas “novas” , como as artes “menores” – mobiliárias ou

industriais -, fortemente relacionadas às tradições nômades (que demonstravam o desejo de

exibir riqueza através de armas, vestimentas e jóias). Além disso, deixaram também sua

marca na arquitetura e na escultura. Apresentava, então, esta nova arte de síntese motivos

abstratos, entrelaçamento geométrico e formas estilizadas. Excelentes exemplos da síntese

desses elementos diversos são as cruzes de pedra e as iluminuras irlandesas – nas quais os

escribas irlandeses adotavam motivos pagãos transformando-os em símbolos cristãos (numa

clara tentativa de respeitar as antigas crenças) 63. Posteriormente, já no século VIII, Carlos

Magno procurou deixar sua marca também através do incentivo às artes, num movimento que

ficou conhecido como “renascença carolíngia” – que se notabilizou por apresentar uma arte

oficial extremamente luxuosa (com riquíssimas miniaturas) e uma reforma da escrita

(carolina) que visou facilitar a cópia e a leitura de textos.

Todavia, merecem destaque os séculos XII e XIII e a arte gótica. Expressão das novas

estruturas sociais e de novas mentalidades coletivas, o gótico apresentou uma nova concepção

artística, uma arte mais urbana – correspondente ao grande desenvolvimento das cidades, da

vida econômica e das atividades espiritual e artística. As grandes catedrais (talvez o maior

símbolo da arte gótica) eram naquele momento não apenas um local de culto religioso, mas

um pólo em torno do qual se organizavam inúmeras atividades artísticas, festivas e culturais.

Destacada manifestação de uma arte burguesa, a catedral tornou-se um dos principais

63 CHADWICK, Nora. The celts. (pp.220-255).

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elementos de uma nova e emergente civilização urbana – permitindo às cidades afirmarem sua

influência e prestígio sobre as zonas rurais vizinhas -, traduzindo assim a mentalidade e as

aspirações do novo meio social. Nesse sentido, podemos dizer que o gótico também

expressava uma nova espiritualidade (lembremos a altura das construções, a procura da luz...),

uma tentativa de alcançar o divino através da arte, fazendo da grande catedral “a imagem

tangível de uma Jerusalém celeste” 64.

No que diz respeito especificamente à produção literária, devemos lembrar que até a

primeira metade do século XI a literatura laica era predominantemente oral (fabulae, canções

amorosas...) e, normalmente, condenada pela Igreja. Sendo a produção escrita do período

basicamente dominada pelos mosteiros, as formas de expressão (obra de copistas) que então

circulavam – narrativas hagiográficas, poemas litúrgicos e hinos – tinham geralmente

intenções didáticas e apologéticas. Entretanto, percebemos que a produção literária foi se

tornando mais diversificada, a partir da segunda metade do século XI (lapidários, bestiários,

poemas sacros, drama litúrgico, drama religioso, autos, moralidades...), não só em seus

propósitos como em termos estéticos, embora ainda fossem marcantes as intenções didáticas.

A partir de então – principalmente entre os séculos XII e XIII – verificamos também uma

produção com propósitos mais artísticos e satíricos (teatro cômico, fabliaux, poesia alegórica,

poemas goliardos), com obras como LeRoman de Renart e Le Roman de la Rose. Com relação

à literatura puramente ficcional podemos destacar a lírica trovadoresca, as baladas, a poesia

épica (sagas, canções de gesta) e a narrativa novelesca (romance cortês, romance de

aventura).

A canção de gesta – onde predominavam os elementos heróicos, feudais e guerreiros –

derivou com o tempo para o romance cortês (com influências bretã e provençal), no qual

encontramos a mescla de elementos bastante ilustrativos do ideário medieval, tais como: a 64 FOCILLON, Henri. A arte do ocidente: a Idade Média românica e gótica. (livro segundo – caps. I, II e III) HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. (vol. I – pp.313-328). HEERS, Jacques. Op. Cit. (pp.153-156).

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glória pessoal, o heroísmo guerreiro, e o gosto pelo maravilhoso e pelas aventuras fantásticas.

As narrativas do romance cortês propiciaram a formação de vários ciclos lendários na

literatura medieval, derivados – segundo Jean Bodel – de três matérias fundamentais: a da

França (relacionada a Carlos Magno), a da Bretanha (relacionada ao Rei Artur) e a de Roma

(relacionada a Alexandre, o Grande) 65. Nesse ponto vale lembrar elementos como o fundo

céltico da matéria cavaleiresca (no Ciclo Arturiano) e a influência da Igreja – enquanto

instituição – sobre a cavalaria (que propiciou a variante do Ciclo do Graal), que se

constituíram em importantes influências do romance de cavalaria. Cabe aqui, no que tange às

relações entre cavalaria e literatura, um esclarecimento. Historicamente falando, não existiu

qualquer ordem de cavaleiros nos tempos do Rei Artur (séc. VI – se é que ele existiu) e do

Imperador Carlos Magno (742-814). Logo, os Cavaleiros da Távola Redonda (ordem de

cavaleiros do Rei Artur) e os Doze Pares de França (ordem de cavaleiros ligada a Carlos

Magno) são criações literárias, surgidas pela necessidade da cavalaria – durante os séculos

XII e XIII – enobrecer seu passado e suas origens, relacionando-os aos tempos heróicos e às

figuras mítico-históricas de Artur e Carlos magno, então paradigmas de virtude e coragem a

serem seguidos. É importante também termos em mente que, no plano histórico, devemos

distinguir a cavalaria (instituição secular na qual o grau de cavaleiro podia ser conferido a

alguém por um senhor feudal) das ordens cavaleirosas de caráter religioso. Estas ordens eram

criadas pelo Papa e seus membros faziam o voto de castidade no ato da sagração – tendo

como grandes representantes as ordens dos Templários e a dos Hospitalários (sobre as quais já

falamos anteriormente)66.

De forma bastante sintética, podemos dizer que uma multiplicidade de fatores

influenciou ou condicionou o modo de ser e o ritmo das formas literárias medievais, com

destaque para: os sociológicos (como a divisão da sociedade em três ordens); os étnicos 65 Apud: WESTON, Jessie. Legendary cycles of the Middle Ages. In: The Cambridge Medieval History. (vol.VI – cap.XXV – p.185). 66 PATIER, Alberto. Introdução. In: ESCHENBACH, Wolfram. Parsifal. (pp.11-13).

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(como o fundo céltico da matéria cavaleiresca); os filosóficos (a importância do binômio

razão-fé); e os religiosos (especialmente a influência do culto Mariano sobre a poesia e da

Igreja sobre a cavalaria). Ao longo de nossas reflexões, podemos também perceber elementos

comuns na construção do imaginário medieval europeu e mais estritamente do imaginário

medieval galês, apesar do longo isolamento político e geográfico do País de Gales. Nesse

sentido, a necessidade da figura de um líder corajoso e virtuoso (rei, chefe guerreiro ou

liderança revoltosa), o sonho de um mundo com liberdade e fartura (sem servos, sem o

trabalho árduo e sem fome) e a crença na intervenção divina (Deus, deuses, deusas, milagres,

maravilhas, sinais do fantástico e do sobrenatural) perpassam a extensa e rica produção

literária do período de forma constante. Mesmo que na literatura galesa medieval – sobre a

qual já falamos no primeiro capítulo – esses elementos apareçam algumas vezes alterados,

dada a especificidade da conjuntura sócio-política do País de Gales (que já expusemos

detalhadamente), na qual o ideal de liberdade se traduzia em independência e soberania

política. Podemos, assim, compreender mais claramente os fatores que influenciaram os

elementos do maravilhoso e do utópico na literatura medieval.

Retomando a nossa idéia inicial, de que as obras literárias (bem como as diversas

manifestações culturais) devem ser pensadas como um processo de construção – e não apenas

como um produto -, entendemos que as reflexões até aqui levantadas são fundamentais para a

nossa proposta de trabalho. Acreditamos firmemente que textos como The Mabinogion

ilustram muito bem o processo sócio-interacional de construção de uma produção artística e

cultural, não só pelo longo caminho percorrido por este conjunto de narrativas até a sua forma

final no manuscrito do século XIV, como também pela sua importância na produção literária e

artística do País de Gales – já que hoje se apresenta como um valioso registro do imaginário

galês medieval, ao mesmo tempo em que é prova da luta constante do povo galês pela

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afirmação de sua identidade. Passaremos, a seguir, para uma análise mais detalhada do

maravilhoso e do utópico na literatura medieval e, mais especificamente, no Mabinogion.

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CAPÍTULO III

MARAVILHAS E UTOPIAS: A LITERATURA E A HISTÓRIA COMO

INSTRUMENTOS PARA A COMPREENSÃO DO IMAGINÁRIO MEDIEVAL

“...um homem precisa de fazer a sua própria provisão de sonhos.” (José Saramago. In: Memorial do Convento)

Há algum tempo que nós, estudiosos e pesquisadores, percebemos a dificuldade de

definir termos como ‘maravilhoso’, ‘mito’, ‘arquétipo’ e ‘utopia’, tendo em vista que a

popularização e o uso indiscriminado destes acarretaram, quase sempre, a atribuição de

sentidos muito genéricos, superficiais e por vezes equivocados.

Nesses sentido, ao propormos a nossa leitura das narrativas mítico-literárias do

Mabinogion, faz-se necessário explicitar o nosso arcabouço teórico, apontar nossas opções e

dar a conhecer o corpus crítico-teórico com o qual dialogaremos nesse percurso. Ao longo

deste capítulo aprofundaremos os conceitos de ‘maravilhoso’ e de ‘utopia’, já que se

apresentam como dois dos pilares mais relevantes de nossa análise. Antes porém gostaríamos

de refletir brevemente sobre os possíveis sentidos dos termos ‘mito’ e ‘arquétipo’.

Pierre Brunel67 propõe definir mito através das três funções que, segundo o autor, este

desempenha. Primeiramente o mito conta, é uma narrativa. Esta função foi apontada por

Mircea Eliade, para quem o mito conta uma história sagrada, narra um fato importante do

tempo primordial, do “tempo fabuloso dos começos”68. Também em Gilbert Durand temos o

67 BRUNEL, Pierre (org). Dicionário de mitos literários. (Prefácio, pp.XV- XX). 68 ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Apud: BRUNEL, Pierre. Cit. (prefácio, p.XVI).

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mito como um tema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a organizar-se em

narrativa 69Além disso, o mito explica. Nessa segunda função M. Eliade nos mostra que o

mito relata como – através dos feitos de seres sobrenaturais – uma realidade chega à

existência, portanto, é a narrativa de uma “criação”, pois conta como alguma coisa foi

produzida, como chegou a ser 70. Seguindo esta linha André Jolles aponta o Gênesis como o

mito por excelência, pois para este autor:

...o mito é o lugar onde o objeto se cria a partir de uma pergunta e de uma resposta... o mito é o lugar onde, a partir de sua natureza profunda um objeto se converte em criação 71.

Finalmente, o mito revela. Essa terceira função se dá pois, segundo M. Eliade, o mito revela o

ser e o deus e, sendo assim, pode ser apresentado como “uma história sagrada”72. Com

relação a essa função Claude Lévi-Strauss apresenta uma concepção mais cética:

Os mitos não têm autor: do momento em que são apreendidos como mitos e independentemente de sua origem real, eles só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é narrado, os ouvintes individuais recebem uma mensagem que não vem de parte alguma; por essa razão lhe é atribuída uma origem sobrenatural. 73

A linha de raciocínio proposta por C. Lévi-Strauss levará a uma posição teórica da

qual discordamos: a de que a literatura é adversária do mito porque nela o mito se desvaloriza.

O próprio C. Lévi-Strauss vê a literatura como o ponto de diluição, degradação e

deslocamento. Próximo dessa posição está também Denis de Rougemont, que aponta dois

momentos de profanação do mito: o seu nascimento para a literatura e o seu declínio na

subliteratura 74. Caminhando na direção oposta, Georges Dumézil 75 afirma que só

69 DURAND, Gilbert. Les structures antropologiques de l’imaginaire. Apud: Brunel, Pierre. Cit. (Prefácio, p. XVI). 70 ELIADE, Mircea. Cit. 71 JOLLES, André. Formas Simples. (p.90-91). 72 ELIADE, Mircea. Cit. 73 LÉVI-STRAUSS. Claude. Le cru et le cruit. Apud: BRUNEL, Pierre. Cit (Prefácio, p.XVII). 74 ROUGEMONT, Denis. História do amor no ocidente.

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conhecemos os mitos pela literatura. Nesse aspecto, concordamos plenamente com P. Brunel,

para quem a literatura é o verdadeiro conservatório dos mitos, pois se a pesquisa pré-literária

e pré-histórica é vaga e precisamos da história para conhecer a pré-história, logo, é a partir de

textos ou tradições literárias que chegaremos às hipóteses sobre o que as precedeu. Devemos

lembrar aqui que no caso específico da cultura e da literatura galesa esta concepção é bastante

pertinente. As antigas narrativas e profecias – posteriormente preservadas pelos registros dos

escribas (na maioria das vezes) anônimos – e os textos de Geoffrey of Monmouth (mesmo

sem precisão histórica) foram fundamentais para o resgate e a conservação de uma rica

tradição popular, além de terem sido vitais para a construção de uma identidade cultural

nacional no País de Gales.

Na medida em que o mito nos chega através da literatura podemos dizer que ele já é

literário (independentemente da nossa vontade). Muitas vezes o mito literário pode ilustrar um

tema, sendo assim, é possível tentarmos começar a definir o mito literário a partir do tema.

Durante muito tempo (± até meados dos anos 60), nos estudos literários, houve um tipo de

pesquisa conhecido como “estudo de tema”. Um exemplo interessante é a obra de Raymond

Trousson intitulada Études des thémes (1965). Porém, estudos mais recentes (mitánalise ou

mitocrítica) mostram que há no mito elementos bastante fecundos para a interpretação dos

textos. Tanto que, posteriormente, Raymond Trousson republica sua obra com um novo título,

Thémes et Mythes (1981). Mesmo criticando a palavra mito e a expressão mito literário, o

autor não quis desconsiderar a mudança terminológica evidente no comparatismo

contemporâneo 76.

Todavia, é preciso ressaltar que não devemos reduzir o mito literário a uma mera

sobrevivência do mito etno-religioso em literatura, pois, entre os dados estáveis

remanescentes deste último há no mito literário inúmeras variações possíveis, que são marcas

75 DUMÉZIL, Georges. Mythe et epopée. Apud: BRUNEL, Pierre. Cit (p.XVII). 76 BRUNEL, Pierre. Cit. (p. XVII – XVIII).

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incontestes da liberdade e da vida da literatura. Nesse sentido, Philippe Sellier 77 aponta

algumas transformações que geralmente ocorrem na passagem do mito (narrativa de fundação

anônima e coletiva considerada verdadeira, na qual predomina a lógica do imaginário) ao

mito literário. Dentre algumas alterações mais relevantes o autor destaca três: o mito literário

não é fundador nem instaurador, não é considerado verdadeiro e as obras resultantes são – em

sua maioria – assinadas.

Concluindo nossas reflexões iniciais sobre mito e literatura, recorremos a Max Bilen78,

para quem o mito é uma narrativa que supõe uma crença (associa narração + comportamento).

Enfatizando o aspecto subjetivo do mito, o autor aponta que o homem espera do mito uma

explicação do mundo ou de um modo de vida e também através dele concebe a possibilidade

de uma condição além da finitude. Gostaríamos de deixar claro, nesse momento, que

concebemos os textos do Mabinogion como narrativas mítico-literárias. Nelas os antigos

deuses celtas, embora evemerizados ou com formas mortais, transformaram-se nos heróis ou

protagonistas da ação (ver Cap.I, parte 3, p.20 deste trabalho). Seguindo essa linha de

raciocínio, M. Bilen afirma que o homem possui uma insatisfação básica que corresponde à

saudade de um estado que lhe é desconhecido, mas que ele percebe e apreende mesmo que de

forma “estranha”. Ora, é justamente a crença em um estado diferente do seu (e para nós em

um tempo no qual outra condição foi possível) que faz com que o homem queira tornar esse

estado e esse tempo reais por meio de narrativas míticas e produções artísticas. Dessa forma

essas narrativas e produções artísticas cumprem uma função. Elas nutrem no homem a

esperança do infinito, da liberdade absoluta, da intemporalidade, da universalidade e da

unidade. No caso dos povos celtas – e particularmente dos celtas galeses – os textos do

Mabinogion recriam justamente o que para eles se constitui no período áureo de sua história

(tanto faz se a história real ou mitológica), quando eram um povo soberano (senhores da ilha)

77 SELLIER,Philippe. “Qu’est-ce qu’un mythe littéraire?” Littérature, 1984.apud: BRUNEL, P. Cit. (p.XVIII) 78 BILEN, Max. “Comportamento mítico –poético”. In: Dicionário de mitos literários. (pp. 186-187).

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e dominador (de vários outros povos). É dessa condição perdida – que os possíveis

responsáveis pela composição oral das narrativas não conheceram – que sentem falta, visto

que paulatinamente passaram a subjugados (pelos soberanos ingleses) e dominados (pelos

anglo-saxões).

Podemos perceber, ao longo destas breves considerações, que o mito na literatura tem

a capacidade de aglutinar e resumir o espírito de uma cultura, pois assinala uma história

exemplar ou uma imagem fixada. Nesse sentido, segundo Régis Boyer 79, toda narrativa ou

imagem digna de expressão literária pode remontar a um ou a vários arquétipos, já que para o

autor o arquétipo se encontra sempre no final da investigação no que diz respeito aos mitos

literários. É interessante destacarmos aqui as três conotações básicas que Boyer aponta para o

termo arquétipo.

Na primeira, o arquétipo como protótipo, este se apresenta como o primeiro elemento

real na crítica histórica dos textos através de figuras arcaicas que incessantemente dão vida a

novas fabulações, tendo em vista que os verdadeiros mitos literários têm como característica

ser contagiosos. A segunda conotação nos aponta o arquétipo como modelo ideal, que nos

remete a uma imagem-mãe cujas versões inscritas num determinado momento nos

encaminham a um fundo arcaico, sem que o sentimento de incitação inicial se imponha no

primeiro plano de nossa consciência. Nesse sentido, o arquétipo mostra que há no homem

mais a admirar do que a desprezar, por isso o arquétipo é o primeiro, não no sentido original,

mas por ser superior. Essa concepção nos leva a refletir sobre alguns aspectos complexos dos

atributos funcionais do “rei sagrado”, pois nesse caso é necessário um modelo de perfeição

(arquétipo) que legitime nossa reverência ao chefe do momento – chefe este admirável ou

contestável de acordo com a ética escolhida (variável segundo padrões de tempo e espaço).

Finalmente, o arquétipo como tipo supremo – sua terceira possível conotação – é capaz de

79 BOYER, Régis. “Arquétipos”. In: Dicionário de mitos literários. (pp.89-90).

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ultrapassar todas as dimensões temporais ou éticas. Nessa acepção o arquétipo,

independentemente do domínio onde queiramos captá-lo (religioso, mítico, fictício), vai direto

ao essencial, escapando, assim, a todo acidental e encarnando, então, o absoluto, a

perfeição80.

Concluímos então que o arquétipo se insere no que comumente chamamos de

inconsciente coletivo 81, um tipo de reservatório espiritual comum a todos os que comungam

de uma determinada civilização, onde depositamos (mais de forma inconsciente) os sonhos,

os mitos, as imagens literárias e os símbolos de que se alimentam toda religião e toda

literatura. Por isso o arquétipo supõe uma realidade transcendente, um tipo supremo, uma

narrativa perfeita ou um arquitexto 82. Ele pressupõe um gesto (re)criador, uma identificação,

já que a palavra (o verbo) só faz sentido na comunicação que pretende (r)estabelecer.

Aprofundaremos agora nossas reflexões sobre os conceitos de ‘maravilhoso’ e ‘utopia’

– do ponto de vista literário e histórico – para que possamos apresentar de maneira mais

sólida as discussões e considerações que proporemos em nossa análise.

80 Ibidem. (pp.90-92). 81 Jung fala em “o imaginário transcendental” 82 BOYER, Régis. Cit. (p.93).

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1 – O Maravilhoso Literário

A preocupação com o uso indiscriminado do termo “maravilhoso” e a necessidade de

melhor defini-lo já eram apontados por Piere Mabille em 1930 83. Para o autor o adjetivo

maravilhoso havia perdido força e significação pela banalização do uso, criando assim a

necessidade de uma definição mais clara para o substantivo maravilhoso. Mostrava ainda o

autor a importância de se distinguir com exatidão o verdadeiro maravilhoso do fantástico, do

estranho e das reverberações ilusórias. Para tal, P. Mabille define o maravilhoso como algo

que evoca um conjunto de fenômenos extraordinários e incríveis que constituem as fontes

essenciais das narrativas fantásticas. Ao dissertar sobre os inúmeros termos que em francês

derivaram da raiz miror ele chega a uma definição de maravilhoso que nos remete a miroir

(espelho), já que o caráter virtual dos reflexos e sua fragilidade inapreensível nos lembram as

imagens sobre as quais se constrói o pensamento e as representações mentais que aparecem e

desaparecem rapidamente 84.

Nessa perspectiva, P. Mabille nos diz que o real objetivo da “viagem maravilhosa” é a

exploração total (mais profunda) da realidade universal, pois para ele esta se divide em duas

ordens: a ordem divina (onde o desejo é aniquilado) e uma dita ordem satânica (local de

domínio da vida e da paixão). É justamente nessa espécie de dialética vertiginosa – que

constitui a realidade do universo – que o espírito se perde. Assim, na tentativa de escapar das

preocupações morais, este promove uma separação arbitrária entre o domínio da realidade

tangível e o domínio das imagens e do pensamento. Reduzido ao jogo da imaginação, o

83 MABILLE, Pierre. Le miroir du merveilleux. 84 Ibidem (pp.20-23).

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maravilhoso perde então toda a sua densidade objetiva. Porém, o autor afirma que para ele –

assim como para os ‘realistas’ da Idade Média – não existe nenhuma diferença fundamental

entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, ou seja, entre o visível e o

compreensível, entre o perceptível e o imaginável. Nesse sentido, o maravilhoso estaria em

todos os lugares (em tudo), por toda parte 85. Naquele momento (1930), o autor enxergava

uma oposição definitiva entre o avanço (marcha) do maravilhoso e o das ciências, já que as

ciências exatas excluíam a emoção sensível e os fatores individuais do conhecimento em prol

de uma investigação impessoal e mecânica. Tal atitude, para Mabille, criou um paradoxo pois

quanto mais o homem aprendia sobre o mundo mais ele se sentia deslocado (estrangeiro,não

pertencente), justamente por separar as necessidades do ser dos dados da inteligência, já que

sabemos que a vida interior do indivíduo não se separa do conhecimento e do

desenvolvimento do mundo exterior.

Nessa visão de mundo defendida pelo autor – e com a qual concordamos – o “país do

maravilhoso“ está, prioritariamente, em nosso ser sensível. Por isso, para atingi-lo

profundamente é necessário liberar as imagens de suas ligações tradicionais (sempre

dominadas por julgamentos utilitários) e aprender a ver o indivíduo por trás da função social,

derrubando assim a tabela dos valores morais e substituindo-a pela dos valores sensíveis. De

acordo com essa visão ‘holística’, é necessário tudo que está em nós e tudo que nos é exterior

para constituir uma única realidade 86. Gostaríamos de chamar atenção para o fato de as

considerações e as reflexões levantadas por P. Mabille apontarem para uma visão de mundo

que – guardadas as devidas proporções – se assemelha bastante aos preceitos do Druidismo. A

visão não-dicotômica do mundo (não separação entre o sagrado e o profano e a comunhão

entre o material e o imaterial) presente na religião dos celtas está na base das narrativas

85 Ibidem (pp.24-32). 86 Ibidem (pp.32-34).

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mítico-literárias do Mabinogion, é o alicerce que sustenta o universo maravilhoso construído

pelos textos.

Aprofundando sua linha de raciocínio, P. Mabille nos diz que a história da

humanidade aparece, então, como uma longa viagem em direção à conquista de um reino

maravilhoso, de uma terra que o homem promete a si mesmo. Contudo, as necessidades da

vida cotidiana tiram do indivíduo o tempo e a liberdade necessários para o desenvolvimento

pleno de sua consciência, daí a importância de cantar e contar (atividades desenvolvidas nas

horas de lazer). As narrativas mais ou menos fabulosas exprimem a história real e a vida

social e, principalmente, refletem as necessidades permanentes do homem. Para o autor, o

inconsciente dos povos e dos indivíduos (que são equivalentes) apresenta uma dupla natureza,

isto é, carrega os desejos do ser que vive o presente em relação ao futuro acoplados às

lembranças do passado. Devido à já mencionada oposição entre o maravilhoso e a ciência,

será então no folclore – para ele uma ”ciência popular” – que encontraremos o caminho do

“reino do maravilhoso”. Sabemos que a concepção materialista da história atribui grande

importância ao meio no qual as obras literárias se formam. Assim, os contos refletiriam a

sociedade num determinado momento de sua evolução e traduziriam, de forma épica, eventos

históricos (ou quase-históricos) deixando transparecer traços das estruturas sociais. Tomando

por exemplo os contos medievais nos quais os cavaleiros são heróis, P. Mabille aponta a

capacidade que alguns elementos da narrativa têm de se adaptarem (se aburguesarem) a uma

nova hierarquia social (cavaleiro = mestre, rei, califa, senhor, patrão). Contudo, ressalta que as

possíveis mudanças de elementos não alteram o sentido profundo da história 87. No caso

específico dos textos do Mabinogion devemos ressaltar que mesmo as inúmeras interpolações

de elementos cristãos não só não foram capazes de alterar o sentido da história como também

não conseguiram esconder o substrato celta pré-cristão.

87 Ibidem (pp.35-41).

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Desde o início de nosso trabalho temos insistido no fato de que o indivíduo é social e

discursivamente constituído e construído. Isto talvez explique a necessidade do homem de

contar estórias, principalmente às crianças. Essa constatação nos parece particularmente

importante no que diz respeito à aquisição dos elementos tradicionais do maravilhoso. Frente

à possibilidade dos olhos infantis se abrirem para um mundo tão imperfeito, os contos

serviriam também para encobrir de certa forma a mediocridade da vida, já que para P. Mabille

eles constituem, acima de tudo, o testemunho da esperança dos homens. A mensagem do

maravilhoso transmitiria à criança o melhor da tradição, lembrando ainda que as primeiras

narrativas, ao forneceram a ela os elementos fundamentais do sonho, o imprimem de uma

forma indelével. É interessante notar que nas famílias mais tradicionais a tarefa de contar

estórias era, na maioria das vezes, delegada a serviçais ou aos mais idosos. Nesse sentido,

podemos dizer que a transmissão do folclore conserva a característica de ‘ciência do povo’

(apontada por Mabille), já que supera as diferenças entre as classes sociais e entre as gerações,

normalmente constatadas na sociedade. Dessa maneira, as imagens são transmitidas de um

inconsciente a outro ultrapassando as barreiras das raças, dos estados e das classes. Por isso,

acreditamos – como o autor – que a permanência de determinadas imagens, símbolos e

composições narrativas na estrutura profunda do homem está relacionada, em parte, a esse

modo de propagação do maravilhoso. Tal modo de transmissão mostra que o centro da vida

interior sensível é ao mesmo tempo a parte mais coletiva do nosso ser 88. Sendo assim, P.

Mabille nos lembra que, ainda que o maravilhoso não se confunda com o excepcional, com os

prodígios naturais e com os fenômenos extraordinários, é neles que se encontram as portas do

mistério, já que o maravilhoso não está nos equilíbrios racionais e sim no ponto extremo do

movimento, no máximo esforço de vida onde tudo se funde imediata e rapidamente.

88 Ibidem (pp.42-46).

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Entre os anos de 1964 e 1969, Tzvetan Todorov produziu uma série de textos que

posteriormente foram reunidos e publicados sob o título Pour une theorie du rècit 89. Nesses

textos Todorov propõe uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário, além

de apresentar um quadro dos possíveis literários, no qual as obras literárias existentes

aparecem como casos particulares realizados. Contudo nosso interesse se voltará

especificamente para as conceituações que apresenta sobre o estranho, o fantástico e o

maravilhoso, além das importantes observações a respeito de textos medievais, como por

exemplo A Demanda do Santo Graal. Já no Prefácio ele afirma que:

A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da “vida” (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem, ... A narrativa nunca obedece a uma ou a outra força, mas se constitui na tensão das duas...90

Esta formulação relata com fidelidade o que ocorre em grande parte das narrativas, mais

ainda, pensamos que tal descrição corresponde perfeitamente às narrativas medievais.

Para T. Todorov a literatura é concomitantemente mediadora e mediatizada, pois esta

tem a linguagem como ponto de partida e ponto de chegada. Isto nos leva a pensar

imediatamente no texto literário como um discurso, discurso este (no nosso caso) preocupado

em transmitir o desenvolvimento de uma ação (narrativa).

O próprio Todorov estabelece o que chama de narrativa mínima: o movimento entre

dois equilíbrios semelhantes mas não idênticos. Ao estabelecer este percurso da narrativa, ele

conceitua a narrativa elementar, que comportaria dois tipos de episódio: os que simplesmente

descrevem um estado de equilíbrio ou desequilíbrio, e os que descrevem a passagem de um

estado ao outro. Em qualquer dos casos existe um eu, invisível a maior parte do tempo, que se

89 No Brasil publicados sob o título As estruturas narrativas pela Editora Perspectiva. 90 TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas (pp. 21 – 22).

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refere ao narrador, que para Todorov é uma “personalidade poética” que apreendemos através

do discurso. Sendo assim, há uma dialética da pessoalidade e da impessoalidade entre o eu do

narrador (implícito) e o ele da personagem (que pode ser um eu explícito), e mais ainda, entre

o discurso do narrador e a história narrada.

Gostaríamos de assinalar que estes conceitos serão bastante valiosos para nós quando,

futuramente, discutirmos o papel do narrador (no nosso caso escriba) no estabelecimento da

versão final das narrativas do Mabinogion.

Outro aspecto que nos interessa particularmente na obra de Todorov são os conceitos

que ele propõe para termos como o fantástico e o maravilhoso. Vejamos o quadro por ele

apresentado e algumas das gradações por ele propostas.91

Estranho Fantástico Fantástico Maravilhoso

puro estranho maravilhoso puro

Para o autor, o fantástico é uma espécie de hesitação experimentada por um ser diante

de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Por isso, o fantástico pressupõe uma

integração do leitor ao mundo das personagens, ele é definido por essa percepção ambígua

que o leitor tem dos acontecimentos narrados, assim como as personagens. O fantástico seria

então o tempo desta incerteza; ao encontrarmos ou escolhermos uma explicação para os

acontecimentos narrados saímos do fantástico.

Se os acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo da narrativa recebem

finalmente uma explicação racional, teremos o que Todorov denomina de fantástico-estranho.

91 Ibidem (p. 156). Os conceitos estabelecidos por Todorov e por nós aqui apresentados, serão discutidos, em termos de sua aplicabilidade, apenas em relação à literatura medieval. A discussão de sua validade ou não para a literatura do século XX, principalmente a literatura hispano-americana, foge totalmente dos propósitos desta pesquisa, assim sendo nos absteremos desta discussão.

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Se, por outro lado, os fatos que causam estranheza ao longo da história terminam

simplesmente no sobrenatural, teremos então, segundo o autor, o fantástico-maravilhoso.

Interessa-nos, porém, o que Todorov classifica como maravilhoso puro. Neste caso, os

elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação particular, nem nas personagens nem

no leitor implícito. Diferentemente do fantástico, não é uma atitude para com os

acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, e sim a própria natureza destes

acontecimentos. Sendo assim, podemos afirmar que as narrativas contidas no Mabinogion se

enquadram no que Todorov chama de maravilhoso.

Todorov prossegue em seus estudos, estabelecendo então uma função social e uma

função literária para o sobrenatural. Segundo o autor, há um elenco de temas proibidos,

proibição esta que pode ser estabelecida por uma censura institucionalizada (na Idade Média a

Igreja cumpria este papel), ou por uma autocensura (que para Todorov reina na psique dos

autores, no nosso caso específico dos escribas, quase sempre ligados à Igreja). Ele lista então

alguns destes temas proibidos: o incesto, o amor homossexual, o amor a vários, a sensualidade

excessiva. Nós acrescentaríamos ainda, com relação à Idade Média, as referências às religiões

pré-cristãs e aos poderes de suas divindades. Todorov enxerga o sobrenatural como um meio

de combate à censura, desta forma a função social do sobrenatural seria “subtrair o texto à ação

da lei e, por esse meio, transgredi-la” 92.

Para o autor, podemos estabelecer uma relação entre o sobrenatural e o

desenvolvimento da narrativa. Se como vimos, o percurso da narrativa nos mostra a passagem

de um estado inicial a um outro, onde está implícito um desequilíbrio, uma ruptura, podemos

afirmar, que neste tipo de narrativa que nos propomos estudar, o elemento sobrenatural é

aquele que modifica o equilíbrio ou o estado inicial. Seja no interior da vida social ou da

narrativa, o elemento sobrenatural ou maravilhoso representa sempre uma ruptura no sistema

92 Ibidem (p. 161).

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de regras preestabelecidas. Sendo assim, a função social e a função literária do sobrenatural

(maravilhoso) são uma só: transgredir uma lei, romper a norma, quebrar o estabelecido.

Seguindo esta linha de raciocínio, tentaremos detectar até que ponto os elementos do

maravilhoso celta presentes nas narrativas do Mabinogion, mesmo que por vezes já mesclados

a elementos cristãos, cumprem ou não esta função de transgressão e ruptura.

Algum tempo após a publicação dos textos de Todorov, Irène Bessière também se

preocupou em estabelecer as diferenças entre o fantástico e o maravilhoso. Ela inicia sua obra

Le rècit fantastique (1974) afirmando que a ficção fantástica cria um “outro mundo” com os

elementos (palavras, pensamentos, realidades) que são deste mundo, instalando, assim, a

desrazão na medida em que transmite a ordem e a desordem. Trabalhando com imagens e

linguagens que parecem normais na área sócio-cultural, a narrativa fantástica cria o original e

o arbitrário por contraste, já que o estranho só existe pela lembrança e pela confirmação do

que é comumente aceito 93.

No que tange ao maravilhoso, esse aspecto nos contos resultou da passagem do

procedimento ao evento, fato que permite definir os quadros sócio-cognitivos como

universalmente válidos, colocando-os, assim, fora das pressões e das mudanças históricas.

Dessa maneira, a narrativa adquire uma intemporalidade (semelhante à que tentamos conferir

à ideologia) na qual o maravilhoso serve, simultaneamente, para encobrir e indicar uma ordem

que deve escapar aos reveses do mundo concreto. Ou seja, sendo não-realista, o conto

maravilhoso reflete e abole a desordem do cotidiano, ou –segundo a autora – o que é

desordem para um certo pensamento 94.

Irène Bessière define, então, o maravilhoso como sócio-cultural e também como o

meio de destruir, simbolicamente, a “nova ordem” e a “ilegalidade” do momento. Nesse

sentido, o maravilhoso resgata o universo rebelde e o adecúa às expectativas ou intenções do

93 BESSIÈRE, Irène. Le rècit fantastique (pp.11-14). 94 Ibidem (p.16).

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sujeito 95. Todavia, nos lembra a autora, o objeto dessa expectativa (satisfação de exigências

morais) não é o maravilhoso em si, porém, só pode ser atingido contra as imperfeições do

mundo cotidiano. Assim, o conto é dependente de uma atitude mágica, e para abolir o que

destrói a ordem tida por natural, ele a coloca sob o signo do prodígio. Nesse sentido,

personagens centrais das narrativas do Mabinogion (com poderes que o homem comum não

possui) representariam esta ordem natural, em contraposição à nova (des)ordem imposta pela

cristianização. Lembramos ainda que a presença simultânea destes (e de seus feitos

extraordinários) com as interpolações de elementos cristãos no texto explicitam a contradição

de um universo no qual a ordem natural foi “arruinada”.

Seguindo esta perspectiva, I. Bessière nos diz que o maravilhoso nas narrativas

(contos, apólogos, parábolas) se assemelharia “ao instrumento da distância pedagógica”, já

que recusa o presente para fundir imagem e lição, e essa recusa da realidade presente no

exotismo do maravilhoso serve justamente para melhor julgá-la. Como o maravilhoso não

sofre da ambigüidade do fantástico, ele constrói um jogo de aparências que constitui a escrita

como o lugar da verdade e o real como o lugar da ficção. Assim, para ela o maravilhoso se

impõe exatamente por ter renegado e rejeitado o presente. Finalmente, o maravilhoso aparece

como a linguagem da comunidade na qual ele se insere para mostrar que não diz, não aponta

mais o cotidiano, sendo então a emancipação da representação literária do mundo real,

significando a adesão do leitor ao representado, onde as coisas acabam sempre por terminar

(chegar) como (e onde) devem 96. Investigaremos a seguir um pouco mais das relações entre o

maravilhoso e o cotidiano.

95 Sujeito: aqui compreendido como representante do homem universal e daquele homem da comunidade. Ibidem (p.16). 96 Ibidem (pp.17-18).

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2 – O Maravilhoso Quotidiano

Segundo Jacques Le Goff todas as sociedades segregam, de alguma forma, o

maravilhoso, mesmo assim, alimentam-se de um maravilhoso anterior, de antigas maravilhas.

A atitude do homem medieval frente à herança do maravilhoso não foi diferente.

Não podemos pensar nenhum aspecto da cultura medieval sem levarmos em

consideração o papel da Igreja. No que tange ao maravilhoso, de acordo com o autor,

podemos dizer que o Cristianismo criou pouco neste campo, isto é, o maravilhoso cristão

existe mas não representa nada de essencial dentro do Cristianismo. É lícito afirmar que o

maravilhoso cristão se formou apenas em virtude da existência de um maravilhoso pré-cristão,

diante do qual o Cristianismo se viu pressionado a tomar uma posição 97. Em relação aos

textos literários do período, encontramos quase sempre um maravilhoso cujas raízes são pré-

cristãs. Os textos do Mabinogion, evidentemente, seguem este padrão.

Se adotarmos uma perspectiva histórica, ainda nas palavras de Le Goff, perceberemos

que o Cristianismo se defrontou com estas heranças pré-cristãs ao longo de toda a sua

existência. Vejamos então brevemente como se desenvolveu a relação do Cristianismo com o

maravilhoso durante a Idade Média.

Para Le Goff a trajetória desta relação pode ser dividida em três fases. Na primeira, a

Alta Idade Média (do século V ao XI), verificamos uma espécie de repressão ao maravilhoso.

Esta repressão se deu, provavelmente, pelo fato de a Igreja encarar o maravilhoso como um

dos elementos mais perigosos das culturas pré-cristãs (pagãs), devido a sua capacidade de

97 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval (p.21)

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“seduzir os espíritos”, uma de suas funções na cultura e na sociedade. Poderíamos acrescentar

aqui as palavras de Todorov: a capacidade que o maravilhoso tem de transgredir, de romper a

norma. Percebemos então uma preocupação por parte da Igreja em transformar (mudando o

significado do fenômeno), ocultar e até destruir os elementos do maravilhoso pré-cristão.

Num segundo momento, entre os séculos XII e XIII, detectamos uma verdadeira

eclosão do maravilhoso na cultura dos doutos. A literatura cortês, ligada aos interesses da

pequena e média nobreza (cavalaria), pode ser apontada como um expoente bastante

significativo deste período. Ela representa, então, o desejo desta pequena e média nobreza de

oposição à cultura eclesiástica ligada à aristocracia. Ora, esta necessidade da cavalaria de se

opor a uma cultura eclesiástica e aristocrática fez com que ela recorresse a uma reserva

cultural oral pré-cristã, da qual o maravilhoso é um elemento importante. Num certo sentido,

podemos afirmar que o maravilhoso apresenta-se menos perigoso para a Igreja neste período,

pois neste momento ela já se mostra capaz de domá-lo, recuperá-lo. Um bom exemplo da

literatura cortês do período é a Demanda do Santo Graal, onde todos os elementos de origem

celta da saga arturiana são apresentados em versão totalmente cristianizada. O desenrolar

deste processo culmina, para Le Goff, num terceiro e último momento que ele enxerga como a

“estetização” do maravilhoso simplesmente.

Utilizando-se do conceito de sobrenatural apresentado por Todorov, e por nós

discutido anteriormente, o autor afirma que durante os séculos XII e XIII vivemos no mundo

do sobrenatural. Divide ele o sobrenatural ocidental de então em três âmbitos: mirabilis,

magicus e miraculosus.

Por mirabilis entende-se o maravilhoso ocidental com suas origens pré-cristãs. O

magicus é o sobrenatural maléfico, satânico. Cabe aqui assinalar que inicialmente o termo

magicus apresentou no ocidente medieval um caráter neutro, pois se reconhecia a existência

de uma magia negra e de uma magia branca; segundo Le Goff, porém, o termo rapidamente

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resvalou para o campo do mal. O termo miraculosus relaciona-se ao sobrenatural

propriamente cristão. O autor tece, ainda, algumas considerações importantes sobre a relação

entre o maravilhoso e o milagre. Vejamos:

(...) mas o milagre, o miraculum, parece-me ser apenas um elemento... do vasto âmbito do maravilhoso (...) em que sentido o miraculosus não era mais que uma parte do maravilhoso e até como ele tendia a fazê-lo desvanecer. Em primeiro lugar porque uma das características do maravilhoso é o ser produzido, certamente, por forças ou por seres sobrenaturais, que são... inumeráveis (...) A realidade é que não apenas temos um mundo de objetos, um mundo de ações diversas, mas que por detrás deles há uma multiplicidade de forças. Ora, no maravilhoso cristão e no milagre há um autor, e um só, que é Deus, e é aqui exatamente que se põe o problema do lugar do maravilhoso não apenas numa religião, mas numa religião monoteísta (...) a aquilo que eu chamo uma tendência para racionalizar o maravilhoso e em particular para despojá-lo mais ou menos de um caráter que me parece essencial, a imprevisibilidade (...) E se o milagre se realiza através daqueles intermediários que são os santos, é preciso dizer que a situação em que estes vão encontrar-se é tal que o verificar-se do milagre por sua intercessão é previsível.(...) Temos assim todo um processo de esvaziamento do maravilhoso.98

Le Goff afirma então que, no ocidente medieval, o maravilhoso exerceu uma função

de compensação em relação ao quotidiano. Sendo assim, seus elementos tenderam a

organizar-se numa espécie de mundo às avessas, derivando alguns temas recorrentes, tais

como: a abundância alimentar, a nudez, a liberdade sexual, o ócio. No que diz respeito ao

Mabinogion, uma leitura mais atenta nos mostra a ocorrência de vários destes temas em suas

narrativas, o que detalharemos posteriormente na análise dos textos.

Ainda nesta linha de raciocínio, o autor – e aí sua análise coaduna-se perfeitamente

com as propostas de Todorov – enxerga o maravilhoso como uma forma de recusa à ideologia

oficial do Cristianismo. Frente ao humanismo cristão (que se apóia numa visão

antropomórfica de Deus e do homem feito a sua imagem e semelhança) assistimos então a

uma desumanização do universo, resvalando assim para um universo de animais, monstros,

vegetais e minerais. Le Goff afirma então que houve, na área do maravilhoso, uma certa

forma de resistência cultural.

98 Ibidem (pp. 24 – 25).

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No desenrolar de seus estudos o autor aponta também outros aspectos do maravilhoso,

dentre os quais o maravilhoso político e o maravilhoso quotidiano. No que concerne ao

maravilhoso político, ele nos lembra que vários chefes políticos da Idade Média utilizaram o

maravilhoso para fins políticos. Temos então o caso de várias dinastias reais que procuraram

forjar para si origens míticas; desta forma o maravilhoso torna-se instrumento de política e

poder. Entretanto, Le Goff aponta o maravilhoso quotidiano como o dado mais inquietante do

maravilhoso medieval, isto é, o fato de ninguém se interrogar sobre a sua presença, que

aparentemente não tem ligação com o quotidiano, mas está totalmente inserida nele.

Gostaríamos de concluir nossas observações a respeito dos conceitos propostos por Le

Goff, discordando de uma observação feita pelo autor ao final do primeiro capítulo de sua

obra por nós aqui discutida.

Segundo Le Goff, a definição de maravilhoso proposta por Todorov não pode ser

aplicada ao maravilhoso medieval, tendo em vista que ela pressupõe um leitor implícito. Para

ele, o maravilhoso medieval exclui um leitor implícito, pois é apresentado como objetivo

através de textos “impessoais”. Parece-nos haver aqui um grande equívoco por parte do autor.

De início, discordamos veementemente da afirmação de que o texto medieval exclui um leitor

implícito, nenhum texto exclui ou deixa de pressupor a existência de um leitor, nem mesmo o

texto medieval. Gostaríamos de destacar aqui algumas palavras de Terry Eagleton:

(...) textos não existem nas prateleiras das estantes: são processos de significação que só se materializam na prática da leitura. Para que a literatura aconteça, o leitor é tão vital quanto o autor.99

Podemos utilizar muitos exemplos de textos medievais literários, como os

próprios contos do Mabinogion, lendas, exemplas e os romances de cavalaria, nos quais

percebemos claramente a consciência que o autor tem da existência de um futuro leitor.

99 EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução (pp.80).

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Mesmo nos textos tidos como não-ficcionais – que estariam revestidos de um caráter mais

objetivo e “impessoal” – como as crônicas e os relatos dos historiadores do período medieval

(Georges Duby analisa vários textos de diferentes cronistas e historiadores medievais em O

Ano Mil) -, notamos a consciência, por parte do autor, da existência de um leitor.

Estas considerações nos levam à segunda parte do problema, qual seja, não

acreditamos na existência de textos “impessoais”, sejam eles literários ou não-literários.

Mesmo nos textos medievais, onde se coloca muitas vezes o problema da autoria, a pessoa

responsável pela redação do texto, pela sua forma final, deixa nele a sua marca. Prova disso,

nos textos literários, foi o processo de cristianização sofrido por várias estórias de origem

celta, dentre elas a lenda arturiana, onde os elementos do maravilhoso sofrem alterações em

seu significado, alterações estas indiscutivelmente feitas pelo autor ou redator. Mesmo os

relatos e crônicas históricas não podem ser encarados como impessoais (e isto fica claro em O

Ano Mil de Duby), pois o simples fato de o autor selecionar um acontecimento, e não outro,

para ser relatado já implica num juízo de valor, e juízos de valor não podem ser e não são

impessoais. Mais ainda, mesmo nestes textos, percebemos uma preocupação do autor com a

forma de narrar os acontecimentos, o que certamente denota a sua preocupação com um

provável leitor.

O que queremos reafirmar aqui é que toda e qualquer relação com um texto é

dialética. Seja por parte do autor ou do leitor, seja de forma consciente ou inconsciente, o

processo de interação existe sempre. Ao escrever, o autor pretende que o texto que está

produzindo comunique alguma coisa a alguém, no caso o leitor. O leitor, ao tomar contato

com um texto, projeta nele sua visão de mundo e dele depreende significados.

Por estas razões, acreditamos haver um equívoco na formulação de Le Goff,

pois, mesmo que os poucos leitores medievais encarassem de forma mais ‘natural’ os

elementos do maravilhoso (sobrenatural) presentes nos textos, já que de acordo com o próprio

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Le Goff o maravilhoso era parte do quotidiano medieval, isto não exclui a existência de um

leitor implícito, nem legitima a visão de qualquer texto como “impessoal”.

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3 - O Maravilhoso como Veículo das Utopias Medievais

Hilário Franco Júnior afirma que as utopias são o maior exercício possível de

liberdade humana, elas são a negação de um presente medíocre e sufocante 100. Nesse sentido,

exerciam função semelhante à do maravilhoso – tal como apresentada por Todorov e Le Goff

– de resistência e transgressão. Ele ainda chama a atenção para a diferença existente entre as

utopias medievais e as posteriores, tendo em vista que nas utopias medievais a presença de

componentes míticos seria bem mais acentuada.

O autor estabelece então uma relação entre mito, ideologia e utopia. O mito seria a

mediação entre o abstrato e o concreto, evidentemente expressa de acordo com a cultura da

qual faz parte. A ideologia seria uma elaboração consciente e segmentada socialmente,

expressando assim, as necessidades e expectativas daqueles que as criam, adotam e propagam.

Finalmente, a utopia seria a expressão dos desejos coletivos de perfeição, geralmente

relacionados a um retorno a um estado primordial da humanidade. Sendo assim, os materiais

utópicos apresentam quase sempre elementos míticos, mesmo que readaptados em função de

um momento histórico. Para Franco Júnior a imaginação utópica seria, então, um produto da

História, negando, porém, ser História. Desempenharia deste modo o papel de última

ideologia histórica, porém, nega ser ideologia.

Vejamos, nas palavras do autor, como se desenvolvem as intricadas relações entre

mito, ideologia e utopia:

Portanto, o mito trata de fatos e situações ocorridos em illo tempore, a ideologia de um presente a ser modificado, a utopia de um tempo por vir, futuro. Aquilo que o homem perdeu na História, narrado pelo mito, ele busca através da ideologia e

100 FRANCO JÚNIOR, Hilário. As utopias medievais (p.7).

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recupera no além-História da utopia. Esta se opõe então à ideologia, que propõe transformações dentro da História, ainda que sua consecução implique o fim da dinâmica histórica. Em outros traços ainda utopia e ideologia se afastam: uma é coletiva, outra segmentada; a primeira é muitas vezes produto inconsciente, a segunda sempre consciente; uma se fundamenta no sentimento e na esperança, outra no pensamento e na ação; uma é harmônica entre suas várias expressões, outra apresenta oposição marcada entre suas manifestações. Contudo, historicamente, é comum uma utopia ser manejada ideologicamente, e uma ideologia ser idealizada, utopizada. E dessa forma elas se reaproximam. Mas o ponto de contato por excelência é o mito, presente em ambas: de certa forma o sucesso social de uma ideologia e de uma utopia está ligado à quantidade e enraizamento do material mítico nelas contido101.

Gostaríamos neste ponto de destacar uma observação feita por Franco Júnior, pois não

só a julgamos de extrema importância, como também pensamos que ela se adecúa

perfeitamente à nossa proposta, qual seja, o estudo do maravilhoso e do utópico nos textos do

Mabinogion. Trata-se da dificuldade que o pesquisador encontra ao estudar o material relativo

a uma sociedade em grande parte iletrada como a medieval. É inegável que entre o material

pesquisado hoje e nós pesquisadores se colocam inúmeros mediadores, justamente na

passagem da cultura oral para a cultura escrita, mediadores estes que devem ter distorcido o

material original. O autor enxerga aí uma contaminação do mito pela ideologia, da cultura

popular pela cultura erudita. Pensamos que este raciocínio se aplica não só aos pensamentos

utópicos medievais estudados por Franco Júnior, mas também aos textos literários,

principalmente as narrativas de origem pré-cristãs, como as narrativas de origem celta

encontradas no Mabinogion.

Utilizando-se de conceitos desenvolvidos anteriormente por Jacques Le Goff e Peter

Burke102, o autor entende cultura popular como a cultura de todos os indivíduos de uma

determinada sociedade. Sendo assim, naquele momento, a elite participava da tradição

cultural das camadas desfavorecidas, mas estas não participavam da cultura erudita. Existia,

então, uma maioria da população com acesso a um só tipo de cultura e um só idioma, e uma

101 Ibidem (p. 13) 102 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Média. (pp.54 – 55) LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Age (p.226)

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minoria bilíngüe – latim e dialeto local – e bicultural (no nosso caso específico esta minoria é

representada pelos indivíduos responsáveis pela redação dos textos do Mabinogion,

certamente membros da igreja ou a ela relacionados de alguma forma).

Franco Júnior afirma que inicialmente a distância entre a cultura popular e a erudita

era então pequena, visto que oralmente quase todos compartilhavam os mesmos sentimentos

básicos. Ele atribui a isto o fato de os registros das manifestações utópicas, anteriores ao ano

mil, serem comparativamente menos abundantes. Entretanto, o autor enxerga o Feudalismo, a

Reforma Gregoriana, o Renascimento do século XII e o movimento universitário como alguns

dos fatores que aumentariam a distância entre as duas culturas. Nesse momento aumentam

também os registros sobre a imaginação utópica como forma de a elite repreender ou negar

aquelas expressões populares.

Aplicando o mesmo raciocínio aos textos literários, percebemos claramente que, no

caso das narrativas originadas de culturas pré-cristãs, quanto mais remoto, mais antigo o

manuscrito, menos elementos cristãos são interpolados. Já nos textos encontrados em

manuscritos posteriores aos séculos XII e XIII, notamos um substancial aumento de

elementos cristãos, numa clara tentativa de escamotear os elementos do imaginário de culturas

pagãs, como as de origem celta. Uma leitura superficial de textos como o Mabinogion e a

Demanda do Santo Graal é o bastante para que tais afirmações sejam comprovadas.

Destaca Franco Júnior, nas utopias medievais, dois traços fundamentais: o seu caráter

sagrado (mesmo que muitas vezes antieclesiástico) e a sua onipresença. Mais ainda, ele afirma

que enquanto as utopias posteriores ao século XV foram freqüentemente urbanas, com as

utopias medievais teria ocorrido justamente o inverso, fato bastante compreensível em se

tratando de uma sociedade basicamente agrária. O autor nos lembra ainda serem as utopias do

período medieval fortemente sacralizadas, enquanto as posteriores apresentariam um aspecto

mais profano.

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No desenrolar de seus estudos, Franco Júnior nos apresenta um conjunto, um elenco

de utopias medievais. Dentre estas, ele destaca um grupo, que examina em profundidade. São

elas: a utopia da abundância: a Cocanha; a utopia da justiça: o milênio; a utopia do sexo: a

androginia; a utopia matriz: o paraíso. Menciona ainda o autor outras manifestações utópicas,

sobre as quais tece apenas breves comentários: a utopia da paz: o claustro; a utopia da

alternativa: a heresia; a utopia da simplicidade: o bucolismo; a utopia da igualdade: Robin

Hood; a utopia da autonomia: Guilherme Tell.

Ao longo da história o homem tem se mostrado capaz de criar e produzir diversas

formas de representação literária e artística. De maneira breve e generalizada podemos dizer

que estas formas literárias e artísticas, quando criadas, costumam se caracterizar por

determinados gestos e orientações verbais e representacionais, que de alguma forma

cristalizam certos fatos experienciados, certos modos de vida e certa disposição mental –

elementos estes que estão evidentemente relacionados ao contexto da produção da obra. Nesse

sentido, é natural que o homem crie e recrie constantemente as formas de representação

literária e artística, promovendo com freqüência atualizações ou releituras dessas formas em

diferentes períodos de sua história103. Pensamos que, de maneira análoga, o mesmo ocorre

com as utopias, possibilitando a sua readaptação em função do momento histórico. Sendo

assim, ao longo do quarto e último capítulo de nosso estudo detalharemos as características

fundamentais de algumas dessas utopias, que pensamos estão de alguma forma representadas

em passagens dos textos que analisaremos.

103 JOLLES, André. Formas simples. (p.)

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CAPÍTULO IV

MABINOGION: UMA VISÃO CELTA DAS MARAVILHAS

E UTOPIAS MEDIEVAIS

There's a lady who's sure all that glitters is gold And she's buying a stairway to heaven. (…)

There's a sign on the wall but she wants to be sure 'Cause you know sometimes words have two meanings. In a tree by the brook, there's a songbird who sings, Sometimes all of our thoughts are misgiven. (…) And it's whispered that soon if we all call the tune Then the piper will lead us to reason. And a new day will dawn for those who stand long And the forests will echo with laughter. If there's a bustle in your hedgerow, don't be alarmed now, It's just a spring clean for the May queen. Yes, there are two paths you can go by, but in the long run There's still time to change the road you're on. (…) Your head is humming and it won't go, in case you don't know, The piper's calling you to join him, Dear lady, can you hear the wind blow, and did you know Your stairway lies on the whispering wind. And as we wind on down the road Our shadows taller than our soul. There walks a lady we all know Who shines white light and wants to show How everything still turns to gold. And if you listen very hard The tune will come to you at last. When all are one and one is all To be a rock and not to roll (…)

(Stairway to Heaven – Page and Plant)

Normalmente determinar o período, a origem e a autoria de manuscritos e obras

medievais é tarefa inglória, que não raro suscita divergências e polêmicas entre os diversos

estudiosos de uma obra, já que geralmente a datação é incerta e confusa, e a preocupação em

assinar as obras determinando a autoria era quase inexistente. No caso das narrativas do

Mabinogion a dificuldade permanece.

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Os estudiosos em geral situam a elaboração dos relatos a sudeste do País de Gales, nos

arredores de Archenfield em Herefordshire – justamente onde foram mais intensos os contatos

entre galeses e anglonormandos. O período provável da escritura teria se dado entre a segunda

metade do século XI e o final do século XIII. Como já mencionamos, a versão que chegou aos

nossos dias se encontra no White Book of Rhydderch (1300-1325, preservado na National

Library of Wales) e no Red Book of Hergest (1375-1425, preservado no Jesus College, em

Oxford). Porém, não podemos deixar de mencionar o Manuscrito Peniarth (códices 6, 7, 14 e

16- também preservado na National Library of Wales), que contém partes de várias das

estórias, algumas transcritas cem anos antes do White Book, ou seja, por volta de 1200. O

primeiro grupo de estórias, The Four Branches of the Mabinogion (Os quatro ramos do

Mabinogion), é considerado o mais antigo, provavelmente da segunda metade do século XI.

Todavia, há uma narrativa do segundo grupo, Culhwch and Olwen, que por todos os indícios

(ortografia, glosas, vocabulário, sintaxe, código social mais primitivo) data da segunda

metade do século X.

A pesquisadora Victoria Cirlot chama atenção para um fato interessante, o aspecto

desses manuscritos citados. Diferentemente de outras obras medievais, eles são pequenos,

pobres e sem ilustrações, todavia, são as únicas cópias que restaram com o que há de melhor

da prosa galesa medieval 104. Outro fator importante é o apoio dos senhores da pequena

nobreza aos poetas e bardos, patronato que começou a tomar corpo no século XII (como já

discutimos no capítulo I, segunda parte). Assim, no século XIII, temos em Gales um

produtivo mecenato que, por seus interesses bibliófilos, estimulou a produção de cópias de

antigos textos para a formação de novas bibliotecas. Nesse sentido, há indícios de que o Red

Book of Hergest teria sido encomendado por Hopcyn ap Thomas ap Einian de Ynysdawy (em

Gover), confirmando uma tendência à conservação da cultura nativa em um mundo então já

104 CIRLOT, Victoria. Mabinogion. Ed. por Victoria Cirlot. Prologo. (p.IX)

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britanizado, tendo em vista que desde 1284 o título de Príncipe de Gales foi anexado à

Coroa Inglesa por Eduardo I105. Essa tendência possibilitou a sobrevivência deste conjunto

de relatos que é o Mabinogion. Devemos contudo lembrar que são narrativas de origem

diversa, realizada por autores e redatores diferentes em épocas variadas e muitas das vezes

procedentes de tradições heterogêneas. É importante também que tenhamos em mente que

muito do conteúdo dessas estórias, devido à transmissão oral, é muito mais antigo que as datas

e períodos que conseguimos hoje rastrear, remetendo muitas vezes ao início da civilização

celta 106.

Vale nesse momento relembrar os cyfarwydd (contadores de estória em prosa) – já

mencionados anteriormente no capítulo I. De acordo com a maioria dos estudiosos, as

narrativas do Mabinogion são um exemplo de sua habilidade e trabalho que floresceu e se

desenvolveu entre os séculos VI e XVI. Autores medievais como Nennius de Mercia e

Geoffrey of Monmouth – além de obras como as Tríades 107 e outros versos – nos deixam

perceber que esses contadores de estórias galeses nada ficam a dever em termos de amplitude

do material a seus contemporâneos. Entretanto, como suas narrativas eram orais, somente

após séculos algumas foram escritas, não possuindo então uma forma fixada ou inviolável,

tomando assim forma e cor a partir de centenas de mentes, cada qual com uma disposição

diferente para a variação e a mudança. Seu vasto repertório incluía um grande número de

narrativas inteiramente em prosa e muitos ciclos de sagas bem elaboradas. Nessas sagas

encontramos geralmente a narração e a descrição em prosa, e os diálogos e os monólogos em

verso (versos do tipo englyn 108).

105 Ibidem (p.X). 106 JONES, Gwyn &JONES, Thomas. Mabinogion. Edited by Gwyn Jones & Thomas Jones. Introduction (p.IX). 107 Tríades: repertórios onde de três em três se condensam os personagens e os acontecimentos mais significativos da história lendária do País de Gales com clara função mnemotécnica. 108 Englyn: grupo de metros perfeitos galeses. O englyn monorhyme é o mais popular de todos os metros perfeitos. Por monorhyme entende-se um poema ou parte de um poema no qual todas as linhas têm a mesma rima final. Mais comum em galês, latim, italiano e árabe. Em inglês, porque o inglês não é rico em rimas fáceis,

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Como já havíamos sinalizado anteriormente, o Mabinogion como hoje o conhecemos

compõe-se de onze narrativas divididas em três grupos, embora o termo mabinogi deva ser

aplicado somente às quatro narrativas do primeiro grupo. Chamamos atenção mais uma vez

para a considerável variedade e diversidade que essas estórias apresentam dentro do padrão

medieval, embora tal diversidade não apague uma substancial unidade obtida pelos temas e

pelo meio literário e social que gestaram tais narrativas. De forma generalizada podemos dizer

que a matéria ou conteúdo das narrativas vem basicamente da mitologia em declínio e dos

contos populares, embora – muito provavelmente – os narradores e os posteriores redatores

não estivessem conscientes disso.

O primeiro grupo de estórias é denominado The Four Branches of the Mabinogion (Os

quatro ramos do Mabinogion) e é formado pelas seguintes narrativas: Pwyll Prince of Dyfed

(Pwyll príncipe de Dyfed), Branwen Daughter of Llŷr (Branwen filha de Llŷr), Manawyddan

Son of Llŷr (Manawyddan filho de Llŷr) e Math Son of Mathnwy (Math filho de Mathnwy).

Elas nos remetem a uma tradição mitológica e são as que apresentam maior relação com a

tradição irlandesa, sendo assim uma excelente demonstração da unidade cultural entre a

Irlanda e o País de Gales. Todos os estudiosos concordam que personagens como

Bendigeifran, Rhiannon, Math e Mabon são indiscutivelmente de origem divina – tanto do

ponto de vista literário quanto do mitológico. As provas para tal afirmação se encontram no

próprio Mabinogion, nas ricas e extensas narrativas irlandesas análogas e no conhecimento

existente sobre a formação e a degradação dos mitos (que já discutimos no capítulo III). Por

isso, embora evemerizados, esses personagens apresentam uma grandeza física e moral que

evidenciam largamente sua condição divina e sua natureza super-humana. Nesse primeiro

grupo de narrativas Pryderi é o único personagem que aparece nas quatro estórias e, apesar de

não podermos apontá-lo como protagonista (no sentido exato do termo), é a sua presença que o monorhyme é mais raro de ser encontrado; mas há um belo exemplo dele em Shakespeare (The Merchat of Venice, II, viii, 65-73) com “All that glisters is not gold...” Ver: The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory (p.261 e p.518).

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confere unidade aos Quatro Ramos. Atualmente os pesquisadores entendem o termo

mabinogi como derivado de mab (juventude), tendo passado por sucessivas mudanças quanto

ao significado, a saber: conto de juventude, conto de um herói, e, finalmente, apenas conto.

Assim ao falarmos de um ramo do mabinogi estamos nos referindo a uma parte da estória.

Segundo o Professor W.J. Gruffydd a princípio Pryderi teria realmente sido o

protagonista dos Quatro Ramos, já que originalmente eles relatavam o nascimento, as

aventuras, a prisão e a morte de Pryderi (esquema semelhante ao das narrativas irlandesas).

Porém, uma série de fatores (acréscimos, interpretações errôneas...) teriam alterado a

concepção inicial 109. Então, na versão que chegou a nossos dias, temos o seguinte esquema:

no primeiro ramo (Pwyll Prince of Dyfed) o relato da concepção e nascimento de Pryderi; no

segundo ramo (Branwen Daughter of Llŷr) quase nada sobre as suas aventuras da juventude

(macnímartha), apenas a menção ao fato de Pryderi ser um dos sete que escaparam da Irlanda;

e no terceiro ramo (Manawyddan Son of Llŷr) a prisão de Pryderi na fortaleza do “outro

mundo” (índarba). É importante destacar que no segundo e no terceiro ramos os filhos de

Llŷr dominam a cena, são os verdadeiros protagonistas. Além disso verificamos no segundo

ramo a adição de material irlandês, certamente por transmissão oral, com a presença de

elementos como o caldeirão, a casa feita para Brân e a narrativa da Iron House (casa de ferro).

Nesse sentido, vale lembrar que muitos relacionam os acontecimentos do terceiro ramo –

brumas, desolação, infertilidade e destruição da colheita – ao mito de Perséfone 110. O quarto

e último ramo é bastante complexo e confuso e, embora relate a morte de Pryderi, os filhos de

109 GRUFFYDD, W.J. MathvabMathonwy. Cardiff, 1928. Apud: JONES, Gwyn &JONES, Thomas. Cit (p.XII). 110 “Ceres, filha de Saturno e de Ops, ou de Cibele, ensinou aos homens a arte de cultivar a terra, de semear, de fazer a colheita do trigo, e com ele fabricar o pão, o que a fez ser vista como a deusa da agricultura. Júpiter, seu irmão, apaixonado pela sua beleza, teve com ela Perséfone ou Prosérpina. Também foi amada por Netuno, e para escapar à sua perseguição, tranformou-se em égua; o deus, que percebeu esse ardil, metamorfoseou-se em cavalo; dos amores de Netuno nasceu-lhe o cavalo Arion. Envergonhada com a violência de Netuno, ela pôs luto, e se escondeu em uma gruta, onde ficou tanto tempo que ia matando à fome o mundo pois que, durante a sua ausência, a terra ficara estéril. Enfim, Pã, estando caçando na Arcádia, descobriu o seu retiro, informou a Júpiter, o qual, por intervenção das Parcas, apaziguou e devolveu-a ao mundo privado de seus benefícios.” COMMELIN, P. Nova Mitologia Grega e Romana. (P.52-53).

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Dôn são as figuras centrais da narrativa. Devemos destacar aqui que a estória de Lleu

(concepção, aventuras de juventude, exílio para transformação) possivelmente constituía-se

em uma narrativa independente, e percebe-se também que ele protagoniza um episódio do

tipo “rei com a morte profetizada”, ainda que com alterações.

Cabe nesse momento uma breve reflexão sobre os acréscimos e as modificações. No

caso das narrativas d’Os Quatro Ramos, estes processos de acréscimos e alterações podem ser

explicados pelo fato de os cyfarwydd trabalharem matéria (em grande quantidade) originária

da tradição oral e popular e não de textos canônicos fixados. O que se sabe, atualmente, é que

o material no qual se basearam e trabalharam durante séculos (acrescentando, rejeitando,

explicando, esquecendo...) remonta e remete aos impulsos criativos iniciais do mundo celta.

Sendo assim, as mudanças e alterações são compreensíveis e esperadas. Nesses sentido,

verificamos que todos esses elementos são fortes indícios da existência de sucessivas versões

entre a saga original de Pryderi e Os Quatro Ramos como os conhecemos hoje. Por isso esse

primeiro grupo de narrativas parece recolher e amalgamar restos de lendas diversos; nas

Tríades, por exemplo, há alusão a muitos fatos narrados nos Quatro Ramos. Para muitos, o

relato diferente de um mesmo acontecimento em uma outra fonte pode ser o indício de que as

Tríades se reportam a uma versão oral do relato não conservada pela escrita. Victoria Cirlot

aponta a semelhança entre o estilo d’Os Quatro Ramos (simples, natural, espontâneo) e o da

Lei de Howell (945-950, já discutida no capítulo I) – que conhecemos graças a um

manuscrito de 1200. Ela nos explica que segundo Rachel Bromwich é a primeira vez que uma

forma em prosa passa de uma obra jurídica para a literatura 111. Por tudo isso, podemos

afirmar que o responsável pela redação final d’Os Quatro Ramos é herdeiro dessa rica

tradição, mas infelizmente as informações a seu respeito são extremamente precárias, e advêm

de algumas evidências internas da obra: era um indivíduo oriundo de Dyfed e produziu seu

111 CIRLOT, Victoria. Cit. (p. XII)

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trabalho no início da segunda metade do século XI. Contudo, todos os críticos e estudiosos

são unânimes ao reconhecer esse redator/autor como um grande artista, visto que seu estilo

traz harmonia, proporção e um grande grau de unidade para um material tão diversificado.

Além disso, os contos populares tendem normalmente a apresentar tipos; apesar disso, o autor

d’Os Quatro Ramos soube trabalhar seus personagens. Os filhos de Llŷr e Dôn, por exemplo,

eram originalmente deuses, mas o narrador foi capaz de revesti-los de humanidade explorando

também suas qualidades individuais.

O segundo conjunto de narrativas do Mabinogion, The Four Independent Native Tales

(Os Quatro Contos Nativos Independentes), é composto pelas seguintes estórias: The Dream

of Macsen Wledig (O sonho de Macsen Wledig), Lludd and Llefelys (Lludd e Llefelys),

Culhwch and Olwen (Culhwch e Olwen) e The Dream of Rhonabwy (O sonho de Rhonabwy).

Logo notamos que os relatos desse segundo grupo não apresentam entre si a unidade

percebida no primeiro. Em Lludd and Llefelys temos um atrativo representante do conto

popular com muitas características das narrativas mágicas e que, provavelmente, era de

grande apelo junto ao público ouvinte/leitor. Duas narrativas apresentam o sonho como

recurso de volta ao passado para criticar o presente, então insatisfatório: The Dream of

Macsen Wledig remete à época da dominação romana, e The Dream of Rhonabwy à época da

invasão saxônica. Nessas duas narrativas o passado histórico se apresenta de certa maneira

deformado pela ingerência de elementos lendários, e nelas se manifestam as recordações

traumáticas do que as Tríades chamam de ‘opressões’ 112. Com suas raízes inegavelmente

plantadas nas tradições nativas do período heróico da Bretanha, The Dream of Rhonabwy é

incomparável no que diz respeito à observação detalhada e à descrição. Todavia, a riqueza

excessiva das partes prejudica o todo, apresentando personagens fracos e movimentação

112 Ibidem. (p.XIII).

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deficiente, para muitos em virtude de se tratar de uma narrativa extremamente intrincada, que

não pode ser contada sem o livro, como aponta a glosa final.

Ainda com relação ao segundo grupo de estórias, é consenso entre os estudiosos que

Culhwch and Olwen é a que mais se destaca. Essa saga nativa de caráter singular –

inclassificável para muitos – encontra-se praticamente intocada por influências externas.

Narrativa excitante para o ouvinte/leitor, em tom evocativo, ela apresenta um verdadeiro

panorama de volumoso material folclórico e lendário. Sua importância – juntamente com Os

Quatro Ramos – reside não só no fato de ser possivelmente a mais antiga de todas, mas

também pelas referências que faz ao Rei Artur, já que é a mais antiga narrativa arturiana em

galês. Diferentemente do autor/redator d’Os Quatro Ramos, mais sutil e dissimulado em sua

arte, o autor/redator de Culhwch and Olwen não hesita em se utilizar de todos os recursos,

estilísticos e lingüísticos, para avivar as cores e nos fazer penetrar no mundo primitivo e

fantástico habitado por suas personagens. Esse mundo de caça, de luta, de transfigurações e

magia (onde pássaros, bestas e animais são tão importantes quanto os homens) se mostra

repleto de temas tradicionais das narrativas populares. Aparentemente bastante consciente de

sua virtuosidade, é claramente perceptível o prazer desse autor/redator com o seu trabalho,

embora isso não evite as oscilações em seu estilo: seco, simples e direto em alguns momentos,

e em outros rebuscado, com adjetivos compostos e trocadilhos. Talvez tenha sido justamente

esse excesso de prazer e de atenção com cada uma das partes a razão para uma certa falta de

unidade – que já havíamos percebido também em The Dream of Rhonabwy. Embora não

apresentem o resultado esperado, muitos críticos apontam duas tentativas do autor de dar

maior unidade à grande quantidade de elementos com os quais tem que lidar: a lista de

guerreiros de Artur – que Culhwch enumera ao chegar à corte do rei – e a lista de exigências

feitas por Ysbaddaden 113. Essas duas listas são, cada uma, um conjunto mítico-heróico que

113 JONES, Gwyn &JONES, Thomas. Cit. (p.XIX).

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pode ser lido como um vasto panorama de narrativas celtas perdidas. Sendo assim, os

personagens mencionados na primeira lista funcionariam como um índice de ciclos de

narrativas perdidas, enquanto as quarenta tarefas exigidas por Ysbaddaden seriam cada uma

um provável gancho para uma outra narrativa. Contudo, menos da metade das tarefas é

cumprida ao longo da estória, demonstrando que talvez a concepção original da obra tenha

sido demasiado grandiosa para um só autor ou a possibilidade de se tratar de uma versão

mutilada da obra 114. Mesmo assim devemos ressaltar a importância de Culhwch and Olwen

como fonte dos romances arturianos, a sua riqueza como depositário de narrativas primitivas e

a qualidade de sua prosa narrativa.

Para muitos estudiosos a última narrativa do segundo grupo, The Dream of Rhonabwy,

funcionaria como uma narrativa de transição para o terceiro grupo, embora muito

provavelmente sem a intenção de seu autor/redator. Temos, então, o terceiro e último grupo

de estórias, The Three Romances (Os Três Romances), que contém: The Lady of the Fountain

(A Dama da Fonte), Paredur Son of Efrawg (Paredur Filho de Efrawg) e Gereint Son of

Erbin (Gereint Filho de Erbin). Encontramos nesse grupo três romances arturianos com fortes

e abundantes marcas da influência franco-normanda; em contrapartida, podemos perceber que

as marcas de elementos mitológicos permeando os textos são aqui infinitamente menos

numerosas, apesar de tais narrativas estarem razoavelmente próximas das lendas e tradições

populares. Logo de início notamos nesses relatos que há uma significativa mudança de

interesse, de propósito e de estilo, pois – como já havíamos mencionado no primeiro capítulo

– aqui a cavalaria e o cavaleiro errante passam a ser elementos essenciais, quando nas

narrativas anteriores eram elementos ocasionais e secundários. A forte influência franco-

normanda se evidencia nos motivos, no tom, na caracterização dos personagens, no código

ético e social que emerge dos textos, e na descrição das roupas, dos ornamentos, e dos

114 Ibidem. (p.XIX-XX).

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acessórios em geral. Assim, Artur e seus seguidores tornaram-se praticamente cavaleiros

normandos. Outro ponto que merece destaque diz respeito à topografia bastante vaga,

principalmente se comparada às cenas precisas d’Os Quatro Ramos e aos caminhos e estradas

bem delimitados dos Contos Nativos.

A inevitável influência franco-normanda foi para muitos um tanto quanto ‘infeliz’, já

que além das cenas imprecisas e da topografia vaga propiciou o obscurecimento dos

cyfarwydd. Nesse sentido, a maioria dos críticos aponta que se, por um lado, os personagens

desse terceiro grupo de estórias – típicos do cancioneiro medieval – conseguem entreter com

suas aventuras, por outro, apresentam pouca força para realmente mobilizar o leitor se

comparados aos protagonistas das narrativas anteriores 115. Há também um outro aspecto

importante no que concerne às influências franco-normandas: a relação entre as três narrativas

galesas The Lady of the Fountain, Paredur Son of Efrawg e Gereint Son of Erbin, e os três

romances de Chrétien de Troyes, respectivamente Yvain ou Le Chevalier au Lion, Perceval ou

Le Conte de Graal e Erec et Enid. Durante um bom tempo a discussão entre a corrente

‘continental’ de pensamento (que considerava Os Três Romances adaptações galesas da obra

de Chrétien de Troyes) e a corrente ‘galesa’ (que defendia que o escritor francês havia

utilizado Os Três Romances como base para sua obra) movimentou os debates entre os

estudiosos do Mabinogion. Atualmente, porém, já é consenso entre a crítica que tanto a obra

de Chrétien de Troyes como Os Três Romances derivam de antigos originais galeses (com

profundas e inegáveis raízes na tradição popular oral e escrita). Tal concepção encontra

respaldo na comparação com as narrativas populares, nas comparações lingüísticas e dos

nomes próprios. Nesse sentido, acredita-se hoje que os normandos- falantes de francês –

teriam sido os responsáveis pela transmissão direta de antigas tradições galesas tanto para

Chrétien de Troyes quanto para os autores redatores galeses d’Os Três Romances.

115 Ibidem. (pp.XIV-XV).

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Cabe aqui lembrarmos que, durante o século XII, os temas celtas eram moda em

literatura, principalmente as lendas arturianas. Um olhar mais atento nos aponta diferentes

motivos para o destaque dos temas celtas. Do ponto de vista literário temos a posição

dominante de Artur nas estórias britânicas, a popularidade alcançada pela Historia Regun

Britanniae de Geoffrey of Monmouth, a habilidade dos contadores de estórias galeses e

bretões e a inquestionável excelência das estórias. No que tange ao aspecto político, o fato de

Artur ser bretão e não anglo-saxão era duplamente vantajoso para os normandos: primeiro

porque assim eliminavam qualquer conotação política ou emocional indesejável naquele

momento; segundo porque trabalhar com uma figura mítico-histórica como Artur era mais

fácil (em termos da imaginação e da criação) do que lidar com figuras como Carlos Magno ou

Guilherme, o Conquistador, que apresentavam definição histórica mais marcada e consistente.

Temos então a Matéria da Bretanha – parte permanente da imaginação européia, como a

herança artística e literária que ofereceu abrigo para todos os temas convencionais durante o

século XII, tais como: a cavalaria e o cavaleiro errante, o amor cortês, as fadas, a religião, o

misticismo, a moralidade, a sociedade e, claro, a poesia. Sendo assim, além dos méritos em

termos de narrativa e construção (que contrastam com a narração de Chrétien de Troyes), um

dos principais motivos de interesse e da importância d’Os Três Romances é que eles são a

evidência da tradição galesa subjacente à expansão continental da Matéria da Bretanha.

Vale recuperar aqui algumas reflexões sobre as relações mítico-literárias que

desenvolvemos no capítulo anterior. Segundo Northrop Frye não há diferenças claras e exatas

entre o mito, a lenda, a reminiscência histórica, a história manipulada com fins didáticos e a

história propriamente dita. Para ele o que há são diferenças de registro e de contexto, e não de

gênero116. Assim a mitologia (vista aqui como um conjunto de estórias) se relaciona pela

forma à legenda e ao conto popular, e possui características literárias. A relação entre

116 FRYE, Nothrop. Littérature et mythe. In: Poétique, n.8. (p.492).

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literatura e mitologia pode ser implícita ou explícita, porém, de acordo com Frye os mitos

heróicos forneceram as convenções romanescas 117. É importante lembrar que quanto mais

seriamente uma mitologia é encarada (como no caso dos povos celtas), maior é a

possibilidade de ela atuar como uma força conservadora, como um freio frente a mudanças

sociais. Não devemos também esquecer que em termos literários a mitologia costuma atribuir

uma ascendência divina a seus reis e heróis. Uma característica comum importante

apresentada pelas formas narrativas mencionadas é a impossibilidade de se remontar com

exatidão às suas origens, tendo em vista que elas se encontram diluídas no passado de uma

longa tradição oral. Sendo assim, para a crítica literária o sentido profundo de um mito se

revela pela fortuna literária posterior. Devemos ter claro também que o sentido profundo de

um mito, não importa qual, é aquele que ele possui no apogeu da civilização que o ensejou,

lembrando que uma narrativa ou um tema mítico é um princípio estrutural basilar ou

formativo da literatura; quanto mais estudamos os prolongamentos literários de um mito, mais

aprofundamos nosso conhecimento sobre ele 118. Percebemos então que à medida que uma

sociedade se desenvolve, seus mitos são revisados, selecionados, expurgados ou

reinterpretados para se adaptar às novas necessidades. Isso nos indica que o sentido

verdadeiro de um mito se define a partir de seu desenvolvimento histórico e não a partir de

conjecturas sobre sua forma original. Dessa maneira, a literatura – como uma das partes

centrais da estrutura mitopoética – se projeta na religião, na filosofia, na teoria política e em

muitos aspectos da história, já que ela expressa não apenas o mundo no qual o indivíduo vive,

mas principalmente o mundo que ele anseia construir 119.

117 Ibidem. (p.497). 118 Ibidem. (p.500). 119 Ibidem. (p.502).

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1 – A Busca das Origens: Narrar é Preciso

O Druidismo foi, como já dissemos, a religião comum a todos os povos celtas até a

cristianização. Seus ensinamentos eram transmitidos oralmente, já que para os druidas as

tradições assim transmitidas renovavam-se a cada geração, preservando e adaptando-se a

novas realidades. É preciso também assinalar que em muitos casos (como nos encantamentos

e na poesia cantada pelos bardos) o importante não é só “o que” se diz mas, principalmente,

“como se diz”, já que a vibração da voz transmite energia e gera a magia. Percebemos então a

importância da oralidade – a eloqüência era o objetivo a ser alcançado - para essa cultura,

pois muitas vezes a liderança estava baseada na capacidade que se tinha de impor sua

personalidade e seus feitos através da fala. Lembramos ainda que o rigor na métrica evitava a

dispersão do conteúdo e facilitava a memorização. Além disso, os druidas acreditavam ser a

escrita irreversível no sentido mágico.

Temos então a palavra (falada ou escrita) como a própria maravilha, sempre renovada,

uma fonte inesgotável. Como o conteúdo do Caldeirão de Dagdá, do saco que Rhiannon dá a

Pwyll ou do próprio Graal, o alimento que a narrativa nos fornece nunca se acaba, nunca tem

fim. Retomemos aqui algumas concepções de Todorov, quando ele afirma que a obra literária

propõe sempre, de modo mais ou menos explícito, uma concepção da palavra e da linguagem,

já que esta última é uma das constantes temáticas da obra literária (Odisséia, Demanda do

Santo Graal, Mil e Uma Noites) 120. No caso específico do discurso literário é justamente

através da palavra – matéria prima para a tessitura da trama – que se cria a realidade ou o

120 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. (p.21).

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universo diegético. Concebido então como um discurso de fundação, o texto de narrativas

recheadas de elementos maravilhosos (como as do Mabinogion) se utiliza desses próprios

elementos e do jogo verbal para criar um efeito de encantamento, que arrasta o leitor/ouvinte

para esse universo mágico de forma inquestionável, fundando assim uma nova realidade.

Mesclando com maestria o real e o imaginário, já que os povos celtas mais talvez que

qualquer outro sonharam a sua história, as narrativas de fundação galesas e irlandesas 121 se

revestem de grande importância, para a literatura e para a história, justamente por possuírem,

além de inegável qualidade literária, uma destacada função política. Compostas em um

período crucial de afirmação da identidade nacional galesa (fixação das linhagens, formação

dos reinos), as narrativas do Mabinogion auxiliam na fixação de dois elementos identitários

importantes: o território e a língua. Aqui, sem dúvida, a História se fixa pela narrativa. A

narrativa é assim o cofre que protege os elementos do maravilhoso (religiosos e mitológicos)

que de certa maneira são as marcas da identidade galesa.

Em pelo menos duas passagens percebemos a importância de preservar a língua. Em O

sonho de Macsen Wledig, a narrativa se encerra com a decisão de Kynan e seus companheiros

121 Há uma narrativa mitológica sobre a formação da Irlanda que merece ser relatada aqui: Os Túatha Dé Danann, que teriam vindo do norte para ocupar a Irlanda, eram um povo de deuses. Conta-se que a história mitológica irlandesa divide-se em duas partes. Na primeira fase, antes do Dilúvio, temos Cessair (a mulher primordial) que traça o primeiro esboço do mundo e da humanidade. Na segunda fase, após o Dilúvio, temos a primeira invasão, com Partholon, que traz a recriação e o materialismo. Na segunda invasão aparecem, trazidos por Nemed, o sagrado e a espiritualidade; a terceira invasão traz os guerreiros FirBolg e a manutenção da ordem; na quarta invasão os Túatha Dé Danann, verdadeiros deuses, trazem o druidismo, a ciência espiritual e material; finalmente na quinta invasão os Fils de Milé podem de tudo se servir. Dentro desse panorama histórico-mitológico, os Túatha Dé Danann representam a Totalidade, já que, ao dominarem os aspectos materiais e espirituais (o sagrado e o profano), compreendiam simultaneamente as três classes que formavam a sociedade celta: a sacerdotal, a guerreira e a trabalhadora. Por isso, acredita-se que eles tenham trazido consigo do norte, além da ciência e do Druidismo, os quatro talismãs sagrados. Lía Faïl, a pedra real de Tara que grita quando o legítimo rei da Irlanda senta-se sobre ela; a Lança de Lug, promessa de eterna vitória contra os inimigos, a Espada de Nuadu, uma arma invencível e o Caldeirão de Dagdá, que com seu conteúdo inesgotável é garantia de fartura e prosperidade. Estes talismãs aparecem em várias narrativas de origem celta, principalmente nas do Ciclo Arturiano, nas quais, mesmo com a cristianização dos textos, podemos ver a clara relação do Caldeirão com o Graal, e a dos outros talismãs com as relíquias que acompanham o Graal ou que, por vezes, são necessárias para a ele se chegar. Ver: MARKALE, Jean. Le druidisme. (p.77) VRIES, Jan de. La religion de celtes. (pp. 165-166) SHARKEY. John. Celtic mysteries: the ancient religion. (pp.6-7)

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de cortar a língua das mulheres daquele território para não corromper a língua de origem, o

galês:

Depois tomaram conselho e decidiram cortar a língua às mulheres, para não corromper a linguagem que elas falavam. E por causa do silêncio que as mulheres foram obrigadas a guardar, sem poderem falar uma só palavra, enquanto o mesmo não acontecia aos homens, deram àquela terra o nome de Brytaen Llydaw e os seus homens foram chamados Brytanieid. E desde esse tempo, muitas vezes vieram da Ilha da Britânia, e ainda hoje vêm, homens que falam essa linguagem. (pp.138-139).122

Já em Gereint, o filho de Erbin, um passante, ao se referir ao senhor de uma

determinada região diz a Gereint o nome do proprietário marcando bem a diferença entre o

nome dado por francos e anglos e o dado pelos galeses:

_ Queres dizer-me a quem pertence esse viçoso vale e quem é o senhor da cidade amuralhada além adiante? _ De bom grado o digo, tornou ele. Gwiffred Petit é o nome que lhe dão os Francos e os Ânglios, mas os galeses chaman-lhe Y Brenhin Bychan. (p.379)

Lembramos ainda a importância de dominar várias línguas, tanto para negociar como

para entender o que pensam e planejam os oponentes. É o caso do personagem Gwrhyr

Gwalstawt Ieithoed, um dos que Artur designa para acompanhar o protagonista, em Culhwch

e Olwen, em duas ocasiões:

Depois chamou Gwrhyr Gwalstawt Ieithoed, pois este sabia todas as línguas (p.168) E Artur disse: _ Gwrhyr Gwalstawt Ieithoed, esta demanda está para ti talhada, que conheces e falas toas as línguas, e conheces também a linguagem de muitas aves e de muitos animais. (pp.189-190)

122 Mabinogion. Trad: José Domingos Morais. Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2000. Todas as citações dos textos do Mabinogion nesta tese são retiradas dessa edição. Obs: Llydaw é derivado de lled (metade) e taw (silêncio), querendo portanto dizer “a metade silenciosa”.

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Mais de uma vez, ao longo desse trabalho, explicamos a importância dos cyfarwydd,

os contadores de estórias. Tal importância é registrada no próprio texto do Mabinogion

quando em Math, o filho de Mathonwy, Gwydion – além dos poderes mágicos que possui –

nos é apresentado como o melhor contador de estórias do mundo, conseguindo com suas

narrativas encantar a todos e alcançar o seu objetivo, que é enganar Pryderi:

Gwydion era o melhor contador de estórias de este mundo e, nessa noite, todos os da corte muito folgaram com os seus discursos de encantar e com os contos que contou. E na corte não houve um só que não estivesse encantado. E para Pryderi foi um prazer praticar com ele. (p.97)

O próprio Pryderi, o interlocutor que está encantado pelo discurso de Gwydion e

prestes a ser enganado por ele, reconhece:

Por fim, Gwydion disse a Pryderi: _ Senhor! Crês que alguém mais, além de mim, poderá dizer-te melhor do que eu o recado que trago para ti? _ Oh, não! – respondeu ele – A tua língua sabe falar e é largo o teu discurso. (p.98)

Sem dúvida a palavra é mágica e encanta, sendo as narrativas fonte de prazer e

entretenimento. Porém, é importante saber narrar e, principalmente, narrar na ordem certa. É o

que nos mostra um episódio em Paredur, o filho de Efrawg, no qual o Tirano Negro explica

ao protagonista quem é a Senhora das Proezas:

_ Quais são as suas proezas? _ A sua mesnada de guerra é composta por trezentos homens. A todo o estrangeiro que chega à sua corte, ela conta as proezas da mesnada. Os trezentos homens estão sentados logo a seguir à senhora. E não é por falta de respeito aos hóspedes, mas sim para contar as proezas pela ordem devida e certa. ... (pp.308-309)

A fonte de prazer também pode ser uma forma de expiação. Em Pwyll, príncipe de

Dyfed, Rhiannon é acusada de devorar o próprio filho, tão esperado herdeiro do príncipe.

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Além de esse episódio nos apresentar mais uma versão do tema da esposa caluniada, é

importante notar a penitência imposta a Rhiannon. Seu castigo foi justamente contar, a todos

que não soubessem, a sua estória:

Então Rhiannon mandou chamar sábios e doutores e, como preferiu sofrer a punição a entrar em disputa com as mulheres, aceitou a sua punição. E foi-lhe imposta a punição de permanecer naquele castelo de Narberth até que sete anos fossem passados. E todos os dias de esses sete anos haveria de os passar assentada ao pé do poial de montar, que estava posto à saída da porta do castelo. E teria que contar a estória a todos os que chegassem e lhe parecessem não a conhecerem: e teria que oferecer-se como montada a todos os hóspedes e estrangeiros... (p.44)

Assim a repetição da narrativa é também uma forma de purgação. Talvez a explicação

se encontre nas palavras de um anônimo, recolhidas por John Sharkey, tentando explicar a

razão dos festejos (com dança e cantos) quando da morte de um rei ou chefe de tribos celtas,

ocasião em que todos se reuniam para lembrar os feitos do morto e cremá-los (fato que

espantou César): “A vida de um homem está em estreita ligação com a morte através da

reprodução, e desta só se libera por meio de uma boa estória.” 123

Nesse sentido não devemos nos esquecer que uma das funções importantes da

narrativa é contar, lembrar, registrar os feitos dos heróis e cavaleiros. Um bom exemplo do

cavaleiro que busca acumular feitos para alcançar a fama e a glória é Gereint – o protagonista

de Gereint o filho de Erbin – tanto que foi necessário seu pai mandar buscá-lo na corte de

Artur, por onde andava em busca de glória, como nos mostra a passagem a seguir:

– Senhor! Nós vimos de Kernyw e somos mensageiros de Erbin (...) E por isso ele te roga , Senhor, que dês a Gereint, seu filho, consentimento para que vá para junto de ele, para assim defender os seus domínios e fazer reconhecer as suas fronteiras. E pede-te que lhe digas que mais vale e tem mais proveito usar a flor da sua mocidade na defesa das fronteiras das suas terras do que a gastá-la em justas e torneios, que nada valem e para nada servem, por maior que seja a fama e nomeada que lhe granjeiem. (p.357).

Mesmo tendo retornado aos domínios de sua família, ele continuou em busca da fama:

123 SHARKEY, John. Cit. (p.14)

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E, tal como fora seu uso e seu costume durante todo o tempo que na corte de Artur se atardara, freqüentou torneios e combateu contra os mais bravos, valentes e poderosos homens, até que ganhou naquelas terras a fama e o renome que conquistara outrora pelos sítios por onde andara; (...) E não teve sossego até que a sua fama se alargasse por toda a vastidão do reino. (...) (p.362)

Percebemos que para esse tipo de herói a Demanda e a aventura são os objetivos a

serem perseguidos, como podemos observar quando afirma: “- O meu único intento, disse ele,

é andar em busca de aventuras e acabar as demandas que forem de meu aprazimento.”

(p.374). Ou, nessa outra passagem, em que diz: “- Ando em busca de aventuras e sigo o

caminho que me apetece” (p.382).

O último parágrafo da estória nos mostra que esse realmente é o procedimento a ser

adotado para o herói ter seus feitos imortalizados pela narrativa:

E, de esse dia em diante, ele governou com muita prosperidade. E, de esse dia em diante, a sua valentia, o seu valor e as suas proezas não deixaram de acrescentar a sua fama e o seu nome, em sua honra e sua glória e para honra e glória de Enid (p.395)

Ainda com relação aos grandes feitos, é interessante assinalar que em muitas situações

são elementos do maravilhoso, do sobrenatural, do mágico, que desencadeiam uma aventura

que o herói tem que resolver. A Demanda do Santo Graal nos oferece muitas situações desse

tipo. No caso do Mabinogion, um bom exemplo é o personagem Pwyll, protagonista da

primeira narrativa d’Os Quatro Ramos. Logo no início ele avista, durante uma caçada, uma

excepcional matilha de cães, que o levará a travar contato com Arawn, desenvolvendo assim o

episódio das aventuras em Annwyn. E posteriormente avistará a dama que cavalga

lentamente, Rhiannon, mas que ninguém consegue alcançar – exceto o próprio Pwyll -, que

nos levará ao desenvolvimento dos outros episódios da estória. Gostaríamos nesse momento

de chamar atenção para o uso da palavra ‘aventura’, cuja ocorrência no Mabinogion se

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verifica principalmente nas narrativas do último grupo (Os Três Romances), certamente por

influência do romance cortês. Temos então Owen, personagem de A Dama da Fonte, como

exemplo de cavaleiro que conhece muitas aventuras e é libertador das damas oprimidas.

Nesse narrar sem fim há um elemento que merece destaque: em vários momentos,

principalmente nas narrativas d’Os Quatro Ramos, os períodos ou prazos de um ano são

insistentemente mencionados. Assim, Pwyll passa um ano em Annwyn, e em todo o episódio

relacionado a selar seu casamento com Rhiannon os prazos (entre idas e vindas) são sempre

de um ano. No terceiro ramo, Manawydan, Pryderi e as esposas passam um ano viajando pela

Inglaterra enquanto Dyfed se encontra estéril, e depois, após o desaparecimento de Pryderi e

Rhiannon, Manawydan e Cigfa passam mais um ano pela Inglaterra até retornarem com o

trigo. Esses são apenas os exemplos mais significativos dentre muitos outros. Porém são

suficientes para ousarmos relacionar esta relevante insistência ao significado que o prazo de

um ano apresenta. Representado pelo círculo e pelo ciclo, o ano, geralmente, simboliza um

processo cíclico completo. Ele contém fases ascendentes e descendentes, evolutivas e

involutivas, as estações, e anuncia o retorno periódico do mesmo ciclo 124. Sendo assim,

teríamos uma relação direta com a seqüência de narrativas, que ao concluírem uma aventura

sempre dão início a outra de forma cíclica. Por isso, não é sem motivo que, com o passar dos

séculos e os acréscimos feitos ao conjunto de narrativas, a necessidade de registrá-los por

escrito seja cada vez mais premente para que possam ser corretamente narrados. É o que nos

mostra a glosa final de O Sonho de Rhonabwy:

Esta estória tem o nome de O Sonho de Rhonabwy. E há uma razão pela qual não há bardo nem contador de contos e estórias que a saiba, e possa contar o sonho, sem estar a seguir um livro. E essa razão é o grande número das cores dos cavalos e a grande variedade das cores mui raras das armas, trajos e atavios, dos mantos preciosos e das pedras de mágicas virtudes. (p.229)

124 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. (pp.62-63).

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Fonte de prazer, de poder e marca de identidade, a palavra se encontra aqui revestida

de indubitável importância. Contudo ela também é perigosa e traiçoeira, capaz de criar

conflitos e guerra. Percebemos isso em Lludd e Llefelys, quando os dois irmãos tentam se

comunicar através de um corno de bronze, e suas palavras são distorcidas por um demônio

que estava no corno criando intriga entre os irmãos:

Então Llefelys mandou fazer um corno de bronze, mui longo de comprimento; e foi através de este corno que eles disputaram. Mas fossem quais fossem as palavras que um ao outro diziam através de este corno, um e outro nada mais ouviam senão palavras de ódio e de maldade. E quando Llefelys se deu conta de isto apercebeu-se de que havia um demônio escondido dentro do corno, intrometendo-se e contrariando-os. Então Llefelys mandou que se vertesse vinho para dentro do corno, para o lavar. E por virtude do vinho foi o demônio expulso e escorraçado de dentro de aquele corno. Depois puderam disputar sem intromissões. (p.144)

Cabe aqui também lembrar como é importante ter o poder sobre as palavras, as

próprias e as dos outros. É o caso dos Coranieid, ainda em Lludd e Llefelys, povo invasor que

Lludd tenta expulsar de seu reino, e que tem a capacidade de escutar tudo o que é dito, por

qualquer pessoa, em qualquer lugar:

A primeira de elas foi a chegada de um povo de uma certa raça, a que chamam os Coranieid. O seu saber era de tal sorte e tão vasto, que pela ilha toda não havia discurso nem conversa, por mais baixo que fossem falados, que o vento, se vento houvesse, não os levasse aos seus ouvidos. E por assim ser, não havia dano que se lhes pudesse causar. (p.142)

É interessante notar que Math – soberano e um dos protagonistas do quarto ramo –

também tem este poder, como assinala seu sobrinho Gilvaethwy: “- Tu sabes que Math, o

filho de Mathonwy, tem a arte de fazer que o vento lhe leve tudo o que ache no seu caminho –

disse ele – mesmo o mais leve sussurro que dois homens possam entre si trocar. E de tudo é

sabedor.” (p.96).

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O poder da palavra também pode ser percebido através dos interditos ou proibições.

Sem detalhar os vários tipos, nuances e aplicações, verificamos que o interdito tinha,

normalmente, um caráter social e quebrá-lo trazia desgraça e desonra para o indivíduo.

Contudo, devido ao profundo respeito do Druidismo pelo livre arbítrio, cabia ao indivíduo

decidir cumprir ou não um interdito 125. Veremos que esse ponto será na literatura heróica,

como a do Ciclo Arturiano, um dos principais eixos da trama, já que quase sempre o herói se

vê obrigado a quebrar o interdito devido às contingências da situação na qual se encontra. Nos

textos do Mabinogion – apesar dos acréscimos, alterações e interpolações de elementos

cristãos – a idéia do interdito permanece, e podemos destacar alguns exemplos significativos

em diferentes momentos. Em Branwen, a filha de Llŷr, Bendigeidfran diz aos sete homens

que escaparam com vida da Irlanda que, ao chegarem a um castelo em Penfro (Gwales),

encontrarão três portas, mas que a terceira não deve ser aberta:

- (...) Em Gwales, em Penfro, haveis de vos atardar durante quatro vezes vinte anos. Aí permanecereis (...) até o momento em que abrirdes a porta sobranceira a Aber Henvelen, que olha para Keryw. Mas assim que abrirdes essa porta, então não mais vos podereis atardar (...) (p.70).

Porém Heilyn não obedece, e sua curiosidade o leva a abrir a porta proibida:

Um dia, Heilyn, o filho de Gwynn, disse: _ Que a desgraça se abata sobre mim, se não hei de abrir aquela porta e saber se é verdade o que a seu respeito se diz. E assim abriu a porta e estendeu a vista sobre Kernyw e Aber Henvelen. E depois de todos haverem olhado, todos tomaram consciência de todas as penas que haviam sofrido, e de todos os amigos e companheiros que haviam perdido, e de toda a miséria que sobre eles se havia abatido, como se tudo tivesse acontecido naquele mesmo sítio e lugar. E muito especialmente lhes acudiu à memória o destino do seu senhor. E por causa de sua perturbação não mais tiveram descanso; (...) (p.72)

125 MARKALE, Jean. Cit. (pp. 209; 214-218; 236).

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É também a curiosidade que leva Pryderi a não acatar o conselho de Manawyddan

(não chega a ser um interdito) no terceiro ramo do primeiro grupo, quando resolve entrar no

castelo que apareceu de repente por encantamento. Justamente por isso, ele e sua mãe

Rhiannon desaparecerão temporariamente, num exílio forçado no “outro mundo”. Veja-se a

passagem:

- Senhor! – disse Pryderi – Vou entrar no castelo, para saber o que se passa com os cães. - Na verdade creio – replicou o outro – não ser coisa de bom aviso entrar num castelo, que até hoje nunca havias visto. Se quiseres seguir o meu conselho, não entres aí dentro. Seja quem for que deitou um encantamento sobre estas terras, foi também o mesmo que fez aparecer este castelo.

- Uma coisa é certa – respondeu Pryderi – Eu não posso abandonar os meus cães de esta maneira.

E por mais conselhos que Manawyddan lhe desse, avançou para o castelo (p.82-83).

Já em Gereint, o filho de Erbin, o interdito adquire o significado de punição, quando o

protagonista, para perdoar um cavaleiro que ultrajou uma das damas de Gwenhwyvar, obriga-

o a uma jornada inteira sem apear do cavalo: “(...) E tu não poderás apear-te do teu cavalo

durante todo o tempo que durar a tua jornada, desde de este mesmo sítio até te amostrares na

presença de Gwenhwyvar, para lhe dares a satisfação que na corte de Artur for decidida..”

(p.346-347).

Muitas vezes porém o próprio indivíduo se coloca um interdito, principalmente para

alcançar um objetivo. É o caso de Paredur, que se propõe ficar sem falar com qualquer outro

cristão até obter o amor da dama que deseja:

- Pela minha fé, irmã! – exclamou – És donzela mui gentil e graciosa, digna do meu amor. Se for do teu agrado, tu serás aquela a quem eu neste mundo mais hei de amar.

- Pela minha fé te digo – respondeu ela – que não te amo e jamais te hei de amar, agora e por toda a eternidade.

- E eu pela minha fé te juro – replicou ele – que de hoje em diante não haverá Cristão que de mim ouça uma só palavra até que tu venhas a amar-me mais que a qualquer outro homem de este mundo. (p.299)

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Ele até se vê obrigado a falar, mas, para sua sorte, aqueles a quem se dirige não são batizados:

Então entraram de novo no castelo e Paredur recebeu a saudação do homem dos cabelos de cor cinza e da mulher. E disse o homem:

- Desde de que este vale está na minha posse, não houve Cristão que de ele saísse guardando a sua vida. És tu o primeiro a fazê-lo. E nós iremos até Artur para lhe render preito e prestar homenagem e para receber a fé e a graça do baptismo.

- E eu dou graças a Deus – disse Paredur – por não haver traído a jura que fiz à mulher que neste mundo mais amo, de nem uma só palavra falar a um só Cristão. (p.302-303).

Finalmente, quando consegue seu intento, o amor da donzela, Paredur volta a falar e

imediatamente é reconhecido por todos:

(...) E de esse dia em diante, todos passaram a chamar Paredur pelo nome de o Cavaleiro Mudo. E uma vez Angarad Law Eurawc achou-se diante de Paredur e disse-lhe:

- Por mim e por Deus te digo, Senhor, que é uma pena não poderes falar. Se porventura fosses capaz de falar, serias tu o homem a quem eu mais haveria de amar, mais e muito mais que a qualquer outro de este mundo. Mas pela minha fé te digo que, mesmo assim mudo e sem fala, a ti te amo mais que a ninguém.

- Deus te pague irmã – respondeu Paredur – Pela minha fé te digo que também eu te amo a ti.

Então todos reconheceram Paredur. E passou a viver na companhia de Gwalchmei e de Owein e de todos os cavaleiros da corte de Artur, aonde ele se quedou. (p.305).

Essa passagem é bastante significativa, pois, apesar de seus feitos e de estar entre

antigos companheiros, Paredur só volta a falar por amor, pelo amor da donzela. Além disso,

só é reconhecido após falar, ou seja, é a fala que o identifica. Percebemos aí uma clara relação

entre a palavra, a expressão, a fala de um indivíduo e a sua identidade.

Um aspecto que também chama atenção nesse episódio de Paredur é a importância de

ser cristão batizado. Gostaríamos de fazer aqui algumas breves considerações sobre as

interpolações de elementos cristãos nas narrativas de origem celta do Mabinogion.

Percebemos em nosso estudo que elas aparecem distribuídas de forma um pouco irregular

entre os três grupos. No primeiro grupo, Os Quatro Ramos, notamos uma ocorrência razoável

da palavra ‘Deus’ (em todas as quatro narrativas), a menção à onipresença e à onipotência de

Deus (em Pwyll, Príncipe de Dyfed) e muitas referências ao batismo (principalmente em

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Math, o Filho de Mathonwy). Pensamos que isso se deve à necessidade de o redator/autor

reafirmar aspectos importantes do Cristianismo, já que são justamente as narrativas onde os

elementos do maravilhoso estão diretamente relacionados à mitologia celta, e os protagonistas

são – como já dissemos anteriormente – antigos deuses evemerizados. Nas narrativas do

segundo grupo – Os Quatro Contos Nativos Independentes – essas interpolações são poucas e

irrelevantes. Talvez isso se deva ao fato de três das quatro narrativas (Lludd e Llefelys, O

sonho de Macsen Wledig e O sonho de Rhonabwy) destacarem mais o aspecto político-militar,

a defesa de território e a formação dos clãs. Não é verdade que os elementos mágicos e

maravilhosos não estejam presentes, porém eles não se encontram diretamente relacionados às

antigas divindades celtas. Todavia, não devemos esquecer que tais narrativas, ao falar do

passado do povo galês, servem de comentário para a situação política que o País de Gales

atravessava quando da redação dos textos. É o que notamos em um diálogo entre Artur e

Iddawc, em O sonho de Rhonabwy:

- Que Deus vos conceda boa fortuna, – disse Artur – Iddawc aonde achaste esses teus pequenos companheiros?

- Encontrei-os mais acima no caminho, Senhor – respondeu Iddawc. O imperador sorriu com amargura.

- Senhor! – disse Iddawc – Por que te ris? - Eu não me rio, Iddawc – respondeu Artur – apenas me entristece ver que esta

ilha é hoje defendida por homens tão insignificantes, quando em outros tempos eram homens de grande valor quem a defendia. (p.214)

Há ainda um último aspecto que gostaríamos de discutir nesse momento: a passagem

dos relatos de sua forma oral para o texto escrito, e o papel da influência normanda nesse

processo. Paul Zumthor estabelece uma distinção entre tradição oral – relacionada e situada

na duração – e transmissão oral – relacionada à performance e situada no presente. Além

disso aponta a existência de dois tipos de oralidade, cujo traço comum é coexistirem com a

escritura em determinada sociedade. Na “oralidade mista” a influência do escrito permanece

externa e parcial, sendo que esta oralidade procede de uma cultura “escrita” – no sentido de

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possuidora de uma escritura. Já a “oralidade segunda” se recompõe com base na escritura, em

um meio no qual a escritura tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário; essa

oralidade segunda procede de uma cultura “letrada” – na qual toda expressão é marcada mais

ou menos pela presença da escrita. Segundo Paul Zumthor, entre os séculos VI e XVI, essas

duas oralidades coexistiram, e o prevalecimento de uma sobre a outra estava condicionado a

diversos fatores, tais como: época, região e classe social 126. Sendo assim, o autor prefere

utilizar a palavra “vocalidade” em lugar de oralidade, pois a vocalidade é para ele a

historicidade de uma voz, seu uso. Com isso chama atenção para o aspecto corporal dos textos

medievais, seus modos de existência como objetos da percepção sensorial. Zumthor assim

procede por acreditar que o conjunto de textos que herdamos dos séculos X, XI e XII e,

talvez em menor escala, dos séculos XIII e XIV passou pela voz não de modo aleatório, mas

por causa de uma situação histórica que fazia desse trânsito vocal o único modo possível de

socialização desses textos. Esta concepção do autor abrange não só as canções, mas também

as narrativas, as declamações de todo tipo e as próprias crônicas 127.

Acreditamos que em muitas regiões do País de Gales prevaleceu a oralidade mista até

a chegada dos normandos. Devemos então fazer uma breve reflexão sobre a complexa

conjunção de fatores necessária para estabelecer a ponte entre a cultura oral e a escrita.

Victoria Cirlot e outros apontam clérigos (anônimos) – a serviço de senhores também

anônimos – como os responsáveis pela fixação escrita das narrativas do Mabinogion 128. Isso

nos parece inquestionável, não só pelas interpolações de elementos cristãos (já discutidas),

mas principalmente por ser a cultura escrita, ainda naquele momento, feudo dos clérigos em

grande parte da Europa. Todavia, os fatores político-sociais são aqui relevantes para a nossa

discussão. Não podemos esquecer que desde a segunda metade do século XI os normandos se

instalaram em solo galês, iniciando assim o contato permanente entre duas culturas então 126 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. (pp. 17-19). 127 Ibidem.(p.21) 128 CIRLOT, Victoria. Cit. (p. XVII).

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bastante diversas. A cultura galesa (com seus olhos sempre voltados para os irlandeses)

despertou o interesse dos normandos, como podemos posteriormente perceber através do

grande sucesso dos temas celtas na literatura continental. Por outro lado, os galeses também

se sentiram atraídos pela cultura dos invasores normandos – imersa na civilização francesa

pós-carolíngia e feudal, buscando novos modelos políticos e sociais representados pela corte e

pela cavalaria. Assim, os galeses invadidos se interessaram não só pelo estilo normando de

construção, mas também pela literatura (há uma tradução da Chanson de Roland do início do

século XIII). As palavras da própria Victoria Cirlot sintetizam bem a conjuntura de então:

La convulsión que experimentó la sociedad galesa con el asentamiento normando en sus territorios debió inducir a fijar por medio de la escritura relatos transmitidos oralmente durante el siglo XI en los que se plasmaban las tradiciones, las costumbres y, sobre todo, la memoria de la propia cultura. Reafirmación de una identidad que se habría perdido en el silencio que las civilizaciones de la oralidad dejan como herencia. Los Mabinogion están ahí como testimonio del productivo choque de dos mundos diversos y en su austera simplicidad continúan ejerciendo la misma fascinación que los relatos semejantes produjeron en los anglonormandos129.

Seguindo o raciocínio de Victoria Cirlot, acreditamos que a palavra escrita se fez

necessária para a preservação de diversos elementos da cultura galesa. A materialidade do

texto escrito possibilita constantes leituras e releituras que, por sua vez, propiciam a

recordação. A releitura para rememorar o que aconteceu nas origens é fundamental para a

compreensão do passado. Contar o que aconteceu em illo tempore evita o esquecimento (que

em algumas culturas equivale à ignorância, à escravidão e à morte) 130. O artista responsável

pelo texto escrito se alimenta do conhecimento das origens, dos primórdios, da genealogia, e

nos revela assim um passado que não é apenas o antecedente do presente, mas é antes de tudo

129 “ A convulsão que a sociedade galesa experimentou com o assentamento normando em seus territórios deve ter induzido a fixação através da escrita de relatos transmitidos oralmente durante o século XI nos quais se plasmavam as tradições, os costumes e, sobretudo, a memória da própria cultura. Reafirmação de uma identidade que se havia perdido no silêncio que as civilizações da oralidade deixam como herança. O Mabinogion está aí como testemunho do produtivo choque de dois mundos diversos e em sua austera simplicidade continua exercendo a mesma fascinação que os relatos semelhantes produziram nos anglonormandos.” Ibidem. (p.XXI). 130 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. (p.107).

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a sua fonte 131. José Mattoso nos lembra que “nada tem sentido em si mesmo, mas em virtude

da sua relação com alguma coisa”. Assim, nossa atração pelo passado reside principalmente

naquilo que nos permite compreender e viver o presente 132. Podemos então dizer que

narrativas como o Mabinogion constituem também um resumo do conhecimento útil da

História de um povo (no caso, o galês). Todavia, não devemos esquecer que “a palavra, o

texto é que realmente fundam ... a palavra recria o mundo, tira-o do caos para o cosmos.” 133

Por tudo isso, concluímos que num momento crucial de sua história, foi na palavra

escrita que o povo galês encontrou a força e as armas para lutar pela afirmação de sua

identidade, já que, como acreditavam os druidas, a escrita é irreversível.

131 Ibidem (p.108). 132 MATTOSO, José. A escrita da história. (pp.19-21). 133 Ibidem (p.27).

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2 – Magia e Maravilha na Consolidação do Poder

No terceiro capítulo deste trabalho discutimos as muitas concepções do maravilhoso

segundo diversos autores. Vimos também que, normalmente, as narrativas mítico-literárias

apontam uma origem divina para seus heróis., o que legitima seus poderes e seus feitos.

Notamos, então, que nas narrativas do Mabinogion o maravilhoso se encontra, na maioria das

vezes, a serviço da legitimação do rei e da história. A maioria dos reis, chefes ou cavaleiros

que detêm algum tipo de poder político (ou poder de mando) possui também algum tipo de

poder maravilhoso (sobrenatural, mágico) e, quase sempre, é exatamente a origem

maravilhosa do indivíduo que justifica o seu poder.

Nesse sentido, chamamos atenção para um fato interessante: a predestinação. Há

vários exemplos nos quais o herói que soluciona uma aventura o faz por ser justamente o

único que poderia fazê-lo. Logo na narrativa do primeiro ramo, temos o episódio no qual

Pwyll é o único que consegue – embora todos tenham tentado – alcançar a dama que cavalga

lentamente (Rhiannon). Sabemos que isso ocorre porque Pwyll deve ser o pai de Pryderi,

como se evidencia no seguinte diálogo:

- Oh Donzela, por amor de aquele a quem mais amas, detém-te e aguarda-me. - De bom grado o faço – disse ela – e haveria sido muito melhor para o teu cavalo

se há muito mais tempo assim houvésseis pedido. (...). - Dir-te-ei. – disse ela – A minha maior demanda era buscar-te e ver-te. (p.34)

Da mesma forma, fica claro que só Culhwch é capaz de reunir todas as condições

(homens, armas ...) para cumprir as quarenta tarefas impostas pelo pai de Olwen. Ele é o

único capaz pois, além de ter ficado imediatamente inebriado de amor pela donzela nunca

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vista (só alguém que realmente amasse o conseguiria), era primo de Artur e este nada a ele

negaria. Na maioria das vezes, não é ele quem resolve a aventura sozinho, mas é capaz de

conseguir o auxílio da pessoa competente para fazê-lo:

- A minha madrasta jurou que não hei de conhecer mulher até haver conquistado Olwen, a filha de Yspaddaden Penkawr.

- È coisa fácil para ti. – respondeu o pai – Artur é teu primo-irmão. Vai vê-lo e ele que te corte o cabelo e o componha. Pede-lhe isso como uma prenda sua. (p.151)

Temos também, em duas narrativas do terceiro grupo, a aventura do Tirano Negro. Em

A Dama da Fonte o próprio Tirano informa a Owein que o rapaz está predestinado a vencê-lo:

“- Senhor Owein! Estava dito e destinado que tu haverias de vir e haverias de vencer-me.

Vieste e venceste-me. (...)” (p.268).

Porém, será Paredur, marcado para dar cabo de várias outras aventuras, quem irá matar

o Tirano Negro após este fornecer-lhe as informações que precisava: “-Vejo que durante

muito e longo tempo tu tens sido uma praga. Farei agora que a tua tirania chegue ao seu fim e

para o futuro ninguém mais a sofra. E Paredur matou-o.” (p.309).

Lembramos aqui que o herói predestinado costuma se apresentar em outras narrativas

de substrato céltico. Não podemos esquecer Galaaz, o cavaleiro sem pecado, marcado para

encontrar o Graal. T. Todorov nos oferece (recorrendo a Pauphilet) uma reflexão interessante

a respeito desse fato. Segundo o autor, as aventuras pelas quais esses heróis passam são

provas rituais (sempre bem sucedidas), diferentes do que ele chama de provas narrativas (que

não sabemos se serão bem sucedidas ou não). Assim, o herói não é eleito porque triunfa, mas

triunfa justamente por ser o eleito, por estar predestinado, por ser o escolhido. Logo, as provas

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ou aventuras se assemelham muito mais a ritos, já que nelas os heróis (escolhidos) parecem

estar seguindo ordens vindas do alto, seguindo o rito que lhes é prescrito 134.

Além do herói predestinado, outra figura revestida de grande importância (e na

maioria das vezes de grandes poderes mágicos) nessas narrativas é o rei. A realeza (já

comentamos a importância do rei para os celtas no primeiro capítulo), contudo, pressupõe

determinadas qualidades. Evidentemente Artur, também predestinado a ser rei, é a figura que

encarna e centraliza no imaginário celta a idéia suprema de realeza - ele é um rei acima dos

outros (supra-rei, overking, ardrí) – e não é sem razão que em inúmeras passagens do

Mabinogion ele é chamado de imperador. Ele incorpora a imponência necessária ao exercício

da realeza, como podemos ver em A Dama da Fonte: “(...) No meio de sua câmara estava o

Imperador Artur assentado num assento de junco verde e fresco forrado com um pano de

brocado de seda amarela avermelhada e com o cotovelo apoiado num coxim de brocado de

seda vermelha.” (p.233).

Math, rei de Gwynedd e protagonista do quarto ramo, é um rei cujos poderes são

insistentemente mencionados ao longo da narrativa. Todavia, apesar da alta magia que

domina, ele possui uma limitação física:

Naquele tempo, Math, o filho de Mathonwy, não podia viver sem que os seus dois pés estivessem enrodilhados nas pregas do regaço de uma virgem, salvo quando o tumulto da guerra de isso o desviava. A donzela que agora com ele estava era Goewin, a filha de Pebin, de Dôl Pebin, em Arvon; e era a donzela mais formosa do seu tempo que por aquelas terras se conhecia. (p.95).

Como muitas narrativas atestam, qualquer imperfeição física ou moral de um rei

acarreta conseqüências para o seu reino. É o que ocorre logo no início dessa estória, já que,

tomado de um amor incontrolável pela donzela que acompanha o rei, seu sobrinho

Gilvaethwy - ajudado por seu irmão Gwydion - causará um grande desentendimento entre

134 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. (p.179).

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Math e Pryderi (que morre nessa narrativa) apenas para ter uma noite com a donzela. Em

contrapartida temos Macsen Wledig – protagonista da narrativa que inicia Os Quatro Contos

Nativos – que, além de Imperador de Roma, era perfeito, como nos mostra a frase que inicia o

conto: “Macsen Wledig era imperador de Ruvein, e era homem mui garboso e o melhor e

mais sábio dos homens. E ele era o mais certo para ser imperador, pois nenhum dos que antes

de ele o foram lhe sofria comparação.” (p.127).

Não é sem motivo então que Macsen será aquele que, além de conseguir a donzela

com a qual sonha, auxiliará as hostes galesas a se tornarem senhoras de toda a Ilha da

Bretanha, enquanto estas, posteriormente, ajudarão o imperador a conquistar a cidade de

Roma. Não devemos esquecer que, de acordo com a tradição popular, há uma profecia de

Merlin segundo a qual os galeses ainda voltarão a ser os senhores da Ilha, já que a qualidade

de seus homens supera a todos:

Havia já um ano que durava o cerco de Roma e a tomada da cidade estava tão distante como no primeiro dia. Mas atrás de ele vieram da Ilha da Britânia os irmãos de Helen Luyddawc e com eles uma pequena hoste; mas os homens de armas que vinham nessa hoste valiam por duas vezes o mesmo número de soldados romanos. E foram dizer ao Imperador que fora avistada uma hoste que fizera alto e desmontara; e que assentara arraial mui cerca da sua hoste e do seu arraial; e que nunca homem algum vira uma hoste de aquele tamanho de uma beleza e tão bem aparelhada e com bandeiras e estandartes tão formosos. (p.136).

- Meu Senhor – respondeu ela [Elen] – Os mancebos mais sábios de este mundo, e os mais prudentes, são os meus irmãos. Vai tu mesmo pelos teus pés; e pela tua boca reclama a cidade. E se eles a tiverem em seu poder, podes estar certo e seguro que, de bom grado e com gosto, a ti a entregarão. (p.137).

Muitas vezes as qualidades admiradas e necessárias para o exercício da realeza

aparecem divididas. É o caso dos protagonistas de Lludd e Llefelys. Lludd, o mais velho, além

de bom guerreiro é generoso: “Era também um guerreiro valoroso e homem mui generoso e

liberal, partilhando viandas e bebidas com todos os que haviam precisão.” (p.141).

E Llefelys, por sua vez, primava pela sabedoria.: “Mais que a todos os seus outros

irmãos, Lludd amava Llefelys, pois este era homem prudente e sábio.” (p.141).

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Percebemos assim, durante o desenrolar da estória, uma clara e equilibrada divisão de

papéis. Lludd, o guerreiro generoso, é aquele que executa as estratégias e os planos pensados

por Llefelys, o sábio prudente. A idéia de bipartição da soberania é uma noção presente no

ideário que norteava a estrutura dos povos indo-europeus 135. No plano místico essa idéia é

representada pelo par divino Mitra (soberano jurista, deste mundo) e Varuna (soberano

mágico, do ‘outro mundo’). Na literatura, seu maior e mais perfeito exemplo é, sem dúvida, a

relação Uther Pedragon–Merlin e Artur-Merlin, sempre presente nas inúmeras estórias do

Ciclo Arturiano 136.

Refletindo sobre essas relações entre o humano e o divino, vale aqui mencionar a

grande quantidade de personagens com poderes sobre-humanos que encontramos no

Mabinogion. Logo na primeira narrativa vemos Pwyll, após trocar de aparência com Arawn,

derrotar Hafgan a pedido dele, e tornar-se o senhor de Annwyn (o ‘outro mundo’) 137. Além

disso, ele é capaz de mudar de aparência para enganar Gwawl e casar-se com Rhiannon. É

justamente da união de Pwyll e Rhiannon que nascerá Pryderi, a criança prodígio tão

esperada. A troca de aparência, nesse caso específico, nos lembra o episódio relacionado à

concepção de Artur, quando Uther Pendragon se faz passar pelo Duque Garlois (com a ajuda

de Merlin) e entra no castelo deste para ter relações com Igraine, o que resultará no

nascimento de Artur. Aliás, percebemos que é muito comum nas narrativas d’Os Quatro

Ramos encontrarmos várias passagens onde os personagens têm o poder de mudar de

aparência, especialmente o personagem Gwydion no quarto ramo.

Nesta narrativa – Math, o filho de Mathonwy – chamam atenção os grandes poderes de

Gwydion e Math. No episódio em que engana Pryderi, Gwydion faz surgir por encanto vários

animais ricamente ornados:

135 DUMÉZIL, Georges. Les dieux de germains. (p.61). 136 MARKALE, Jean. Cit. (pp. 39-42). 137 “Annwyn significa ‘abismo’ e por extensão semântica ‘o outro mundo’, ‘o inferno’. Pwyll, a sabedoria, seria portanto e segundo alguns estudiosos (P. Mac Cana; V. Cirlot), o Deus da Sabedoria do Outro Mundo.” MORAIS, José Domingos. Mabinogion Ed. por José Domingos Morais. Prefácio. (p.24).

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Recolheu-se para praticar as suas artes e começou a tecer um encantamento. E com as suas mágicas fez que aparecessem doze garanhões e doze lebréus negros, cada um de eles com o peito de pelagem branca, cada um com uma coleira ao pescoço com uma trela presa. Eram ao todo doze coleiras e doze trelas e quem as mirasse logo dizia que eram de ouro. E os cavalos tinham no lombo doze selas e tudo aquilo que nas selas costumava ser de ferro era de ouro; e também os bridões eram feitos da mesma arte. (p.98-99).

Posteriormente, ao longo da narrativa, usará várias vezes os seus poderes para auxiliar

seu sobrinho Lleu. Math (como já mencionamos) é um rei com vários poderes mágicos, que

são usados inclusive para punir seus sobrinhos Gwydion e Gilvaethwy. Um momento

significativo é quando Math e Gwydion, ambos possuidores de varinhas mágicas 138, unem

seus poderes para conjurar uma esposa para Lleu:

- Bem – disse Math – Eu e tu acharemos a maneira, por artes de magia e de encantamento, de criar para ele uma mulher nascida das flores. (...) Então colheram a flor do roble, e a flor da giesta, e a flor da rainha dos prados, e com as flores fizeram uma donzela. E era a donzela de mais formosura e mais graciosa que homem algum jamais vira. Depois baptizaram-na e deram-lhe o nome de Blodeuwedd. (p.114).

Em Manawydan, o filho de Llŷr, merecem destaque as múltiplas e incomparáveis

habilidades do protagonista. Embora não sejam apresentadas como poderes mágicos, causa

espécie ao leitor/ouvinte o excepcional desempenho de Manawydan em tudo o que se propõe

fazer. Assim, ele se torna sucessivamente o melhor fabricante de selas, de escudos e de

sapatos. Sua excelência como artesão nos incita a relacioná-lo a Dagdá, o deus bom

(competente), senhor de profundo saber e pai de todos. Além disso, é ele que, ao voltar da

Inglaterra com Cigfa para Dyfed, traz consigo as sementes para plantar trigo 139. Além do

trigo que brota ser, evidentemente, excepcional (como nunca visto), será justamente por causa 138 Como o bastão, a vara é símbolo de poder e clarividência, vindos de Deus ou mágicos. Entre os celtas, instrumento mágico por excelência, a vara é o símbolo do poder do druida sobre os elementos. Ver: CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. (pp.930-931). 139 A significação religiosa da espiga de trigo está relacionada ao seio materno e ao seio da terra. O trigo simboliza o dom da vida, que não pode ser senão um dom dos deuses, o alimento essencial e primordial. Ver: Ibidem. (p.906-907).

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das sucessivas destruições da sua colheita que Manawydan descobrirá o motivo para o

encantamento que transformou Dyfed em terra estéril. Aqui entra então um outro personagem

com poderes mágicos: Llwyd, filho de Cil Coed – também possuidor de uma varinha mágica

– que confessa ter por vingança lançado o feitiço que devastou Dyfed. Vale porém assinalar

que, embora o feitiço tenha acabado com as plantações e as criações de animais, Manawydan

e Pryderi (com suas esposas) puderam sobreviver da caça, da pesca e dos frutos que

encontraram na natureza. Compreendemos disso tudo que a magia conseguiu apenas impedir

o crescimento do que era plantado e criado pelo homem, mas não foi capaz de encantar a

natureza.

Ainda com relação aos personagens com poderes sobre-humanos não podemos

esquecer Cai – membro da corte de Artur e importante para o desenrolar de Culhwch e Olwen.

Seu fôlego incomparável, a ferida incurável que sua espada causava e, principalmente, o calor

que emanava de seu corpo eram atributos que maravilhavam a todos:

Cai tinha o especial jeito de agüentar nove noites e nove dias debaixo de água com um só fôlego; e também de agüentar nove noites e nove dias sem dormir. E ferida feita pela espada de Cai não havia físico que a pudesse sarar. E tinha ainda um dom de maravilhar, que era o de, sempre que lhe apetecesse, tornar-se tão alto como a mais alta de todas as árvores da floresta. E outro dom ainda tinha, e era este: quando a chuva caía, por mais grossa e copiosa que fosse, tudo o que estivesse por cima ou por baixo de sua mão, à distância de um palmo, se seco estivesse seco continuaria a estar, tal era o grande calor que das suas mãos se soltava; e quando o mais intenso frio atingia os seus companheiros, as mãos de Cai serviam de brasa para acender o lume. (p.167).

Uma característica que devemos destacar – e esta certamente relacionada à origem

divina dos personagens – é o desenvolvimento físico descomunal que alguns apresentam.

N’Os Quatro Ramos temos três bons exemplos. No primeiro, o filho de Rhiannon e Pwyll

(Pryderi) – que por encantamento desaparece e é durante os seus primeiros anos criado por

Teirnyon e sua esposa – apresenta um desenvolvimento fora do comum:

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(...) E o menino foi criado na corte até chegar à idade de um ano. E ainda antes de haver passado um ano, já ele podia andar com uns passos bem firmes. E era maior que um menino de três anos, mesmo dos mais fortes e crescidos. E ao fim de dois anos já era tão grande e crescido como um menino de seis anos. E antes de chegar aos quatro anos completos, já oferecia peitas aos palafreneiros para que lhe permitissem levar os cavalos ao bebedouro. (p.46).

No quarto ramo temos Lleu Llaw Gyffes, cuja gestação e nascimento já se constituem

em um acontecimento maravilhoso. Ele, criado por seu tio Gwydion, também apresentará um

desenvolvimento físico bem acima do normal:

E ao cabo de esse ano, pelo seu tamanho o menino parecia já haver dois anos de idade. E ao cabo do segundo ano, já estava grande e capaz de se encaminhar para a corte, sem a ajuda de ninguém. E ao chegar à corte, Gwydion deu por ele e tomou-o a sua conta; (...) E assim foi o rapaz crescendo e criando-se na corte até os quatro anos de idade; e se se achasse um que com oito anos houvesse o seu tamanho, já isso seria coisa de maravilhar. (p.108).

Entretanto, o caso que mais se destaca nesse sentido é, sem dúvida, o de Bendigeifran,

um dos filhos de Llŷr, rei e senhor de toda a Ilha da Bretanha. Protagonista do segundo ramo,

seu gigantismo surpreende até a imaginação mais fértil. Para começar, não existe casa que

possa abrigá-lo 140: “(...) Não estavam dentro de uma casa, mas de baixo de tendas, pois

jamais Bendigeid Vran havia podido estar dentro de uma casa.” (p.55).

Ao longo da estória , ele precisa ir à Irlanda tentar resgatar sua irmã – Branwen. Como

não cabe em um navio, atravessa o mar a vau, carregando seus homens nas costas. Além disso

é confundido com uma montanha ao se aproximar da costa irlandesa:

(...) Oh! – disseram eles – E o que é a montanha que se via ao lado dos navios? - É Bendigeid Vran, meu irmão – replicou ela – que vem caminhando pelo vau da água. Não há veleiro onde ele possa caber. (p.64).

140 Essa característica de Bendigeifran só reforça a sua origem divina.Os santuários celtas estavam diretamente relacionados à natureza e geralmente localizavam-se em florestas, bosques, lagos ou fontes. Tal relação é parte de uma antiga crença, na qual as grandes árvores e monolitos de pedra eram a corporificação dos espíritos de ancestrais mortos e identificados com as forças naturais. A tudo isso devemos acrescentar que os celtas julgavam impiedoso fechar entre quatro paredes deuses que tinham o universo como morada. Ver: MARKALE, Jean. Cit (pp.160-161).

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Já em terras irlandesas, ele serve de ponte para que seus homens atravessem um rio, já

que a que ali existia foi propositalmente destruída pelos oponentes:

- Senhor – disseram os seus chefes mais nobres – Conheces a natureza de este rio e sabes que nada nem ninguém o pode atravessar. E também não a ponte que o cruze por cima. Qual é então teu conselho a respeito da ponte que nos falta? - Não há nenhum outro senão este: Aquele que é chefe que seja ponte. Eu serei a ponte. Foi a primeira vez que estas palavras foram pronunciadas e ainda hoje são ditas e usadas como provérbio. E depois de ele se haver estendido entre as duas margens do rio, fizeram uma armação com tábuas de madeira, que lhe puseram em cima, por onde passou a sua hoste. (p. 65).

Finalmente, o ponto alto deste relato diz respeito à cabeça de Bendigiefran. Ferido por

um dardo envenenado durante embate com seus inimigos, ele pede a seus comandados que

cortem a sua cabeça e a levem:

- Tomai a minha cabeça e levai-a para Gwynn Vrin {a Colina Branca, Dover}, cerca de Llundein. Aí a enterrai, com o rosto virado para o lado de França. (...) Mas assim que abrirdes essa porta, então não mais vos podereis atardar; abalai para Llundein, para enterrar a cabeça e segui adiante (p.70).

Ao final da narrativa entendemos que é justamente a cabeça de Bendigeifran que serve

de proteção para o território:

(...) E enterraram a cabeça em Gwynn Vrin, e a este acontecimanto foi dado o nome de Terceira Bem Fadada Ocultação; e quando a desenterraram foi a esse acontecimento dado o nome de Terceira Mal Fadada Desocultação. E na verdade, enquanto a cabeça esteve ocultada naquele esconderijo, não houve invasão, nem praga, nem mal, que do lado de lá do mar viesse a esta ilha. (p. 72-73).

Vale lembrar que o costume celta de cortar cabeças espantava a muitos, como

mostram os relatos romanos de Tito Lívio e César 141. Os santuários encontrados na foz do rio

Rhone atestam um tipo de culto à cabeça humana (verdadeiras e esculpidas em pedra). Os

comentários de alguns observadores e as interpretações equivocadas de algumas sagas

irlandesas vêem nesse costume apenas aquisição de um mero troféu de guerra. As intenções e

141 TITO LIVE. Histoire romaine. (pp.445-490).

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os motivos que levavam os celtas a esta prática – cortar e guardar cabeças – eram porém mais

complexos. Para os celtas a cabeça ou face contém a totalidade do ser, a sua personalidade,seu

maior ‘maná’. Apoderar-se então da cabeça de alguém é apoderar-se de sua alma e, o mais

importante, poder submetê-la à servidão. Assim sendo, cortavam também as cabeças de seus

amigos e entes queridos para que os inimigos delas não se apoderassem 142. Como a

recordação de um morto era antes de tudo a lembrança de sua face, acreditavam poder

relacionar-se com o morto através de sua cabeça 143. Com relação aos inimigos, os celtas

acreditavam que ao cortarem a sua cabeça estariam impedindo que fossem salvos ou

ressuscitados pela magia de alguma divindade, já que o elemento principal, a cabeça, estaria

faltando.

Ao longo desse instigante conjunto de narrativas que é o Mabinogion o maravilhoso e

o sobrenatural estão também representados por outros elementos. Nesse sentido,

desempenham papel importante as forças ‘do outro mundo’. Para os celtas o ‘outro mundo’

era denominado Sídh, e representava o estado entre um mundo e o seguinte (já que eles

concebiam a existência de três mundos místicos pós-vida), sendo os acidentes geográficos

existentes no relevo (montanhas, grutas, cachoeiras e ilhas) a morada dos seres desse ‘outro

mundo’. Além disso, há livre trânsito entre os mundos, ou seja, passa-se do mundo dos vivos

ao dos espíritos e vice-versa, por isso os seres do Sídh muitas vezes misturam-se aos vivos.

Entre os seres do Sídh estão os antigos deuses, as fadas, os espectros e almas dos mortos e os

aes sídh – seres masculinos e femininos que vivem sob e sobre a terra, sem contudo pertencer

à humanidade propriamente dita. Desta forma nota-se a coexistência dos mundos,

assinalando-se a diferença da noção de tempo entre eles, pois o ‘outro mundo’ é a realização

do mundo imaginado pelo divino, é perfeito: atemporal, sem classes, sem trabalho, sem fome

142 POWELL, T.G. The celts. (pp.103-108). 143 MARKALE, Jean. L’epopée celtique d’ I rlande. (p.183).

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e sem doenças. Temos então a manifestação de forças do ‘outro mundo’ em episódios de

várias narrativas.

Em Pwyll, Príncipe de Dyfed (e depois senhor do ‘outro mundo’) o filho que ele e

Rhiannon tanto esperam desaparece logo na noite do nascimento (e ela é injustamente

acusada), pois as mulheres que deveriam fazer vigília foram tomadas pelo sono:

(...) Mas as mulheres caíram no sono, tal como aconteceu a Rhiannon, a mãe do menino. E eram seis, essas mulheres que vieram para estarem de vigília na câmara. E de vigília se mantiveram por uma grande parte da noite; mas antes da meia-noite, uma a uma foram caindo no sono e só despertaram quando já rompia o dia. E, ao despertarem, olharam para aonde haviam posto o menino e já ali o não viram. (pp.42-43).

Posteriormente descobriremos que este fato se relaciona ao também misterioso e

recorrente desaparecimento dos potros de Teirnyon. Quando este se decide a desvendar o

mistério, encontra uma criança, que não é senão o filho de Rhiannon, como nos mostrará o

desenvolvimento da estória:

(...) Enquanto o mirava e remirava, ouviu um grande arruído e, de seguida, viu entrar uma garra mui grande pela janela, que agarrou o poldro pelas crinas. Então Teirnyon desembainhou a espada e, com um golpe, cortou pelo cotovelo o braço que terminava em garra. E esse bocado de braço, e também o poldro, ficaram dentro da casa. Então ouviu um alarido e uns gemidos de dor, tudo de uma só vez. Abriu a porta e lançou-se para o sítio de onde vinham os barulhos. Mas a noite estava mui escura e ele não pode ver a causa do alarido, mas correu direito a ele, para o seguir. Então lembrou-se que havia deixado a porta aberta e tornou a trás. E viu que ao pé da porta estava um menino de cueiros, envolto numa capa de brocado de cetim. E, tomando o menino nos braços, viu que era forte para a idade que parecia ter. (p.45).

Um outro ponto digno de nota são os estrondos, trovões e brumas que sempre

prenunciam um acontecimento maravilhoso. No terceiro ramo, um forte trovão seguido de

espesso nevoeiro anuncia a triste transformação de Dyfed em terra estéril:

(...) Quando aí chegaram, assentaram-se; e então ouviu-se o estrondo de um trovão, e uma mui grande e violenta tormenta se seguiu, e um nevoeiro mui cerrado se abateu sobre eles; e tão espesso era que de maneira nenhuma se podiam ver uns aos outros. Depois o nevoeiro foi-se dissipando e tudo ao redor de eles começou a clarear. (...) Tudo se havia sumido, as casas e as cabanas, os homens e os animais, o fumo e o fogo. Só restavam as casas da corte aonde eles estavam, desertas, vazias e

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desoladas (...) Só eles quatro ali se achavam [Manawydan, Pryderi e suas esposas]. (p.78).

Mais adiante, quando Rhiannon entra no castelo – que surgiu por encantamento – para

procurar seu filho Pryderi (que lá já estava preso também por encantamento), trovão e

nevoeiro também antecedem o desaparecimento de ambos. Aliás, aqui toda a atmosfera do

interior desse castelo merece destaque. Vejamos a seqüência da entrada de Pryderi e depois de

Rhiannon no castelo:

Quando entrou no castelo nada viu. (...) Mas no meio do pátio do castelo viu uma fonte com um parapeito de mármore mui bem trabalhado em seu redor. E em cima do parapeito estava uma laje de mármore com uma taça de ouro pousada e suspensa por quatro cadeias que vinham do ar e cujas pontas não se lobrigavam. E sentiu-se tão agradado com a beleza e o resplendor daquele ouro e com a riqueza do lavrado da taça, que se acercou para a tocar e agarrar. E quando a tocou e agarrou com as suas mãos, as mãos quedaram-se grudadas à taça e os pés grudados à laje de mármore, aonde a taça estava pousada. E todo o seu contentamento se desvaneceu; e perdeu a voz e não pode mais dizer uma só palavra. E assim se quedou e permaneceu. (...) E achou-o E estavam abertas as portas do castelo. Não sentiu medo nem temor. E entrou. E, ao entrar, logo viu Pryderi agarrado à taça de ouro. E foi para ele. - Oh, Senhor meu! – disse ela – Que fazes aqui? E pôs as suas mãos na taça, ajuntando-as às de ele; e logo que assim fez, as suas mãos quedaram agarradas à taça de ouro, e os seus pés agarrados à laje de mármore, e não mais pôde dizer uma só palavra. E logo de seguida a noite caiu, e ouviu-se o estrondo de um trovão , e o nevoeiro envolveu-os. Depois o castelo desvaneceu-se e o mesmo lhes aconteceu. (pp.83-84).

Em Gereint, o filho de Erbin, o nevoeiro esconde o local de jogos encantados, como se

pode depreender do diálogo entre Gereint e um passante:

- Diz-me – disse Gereint – qual de estes dois é o melhor caminho e aquele que devemos tomar?

- É melhor seguires por esse aí – respondeu – Se tomares o outro, nunca mais terás regresso. Lá em baixo há uma sebe de nevoeiro e esta sebe encerra jogos encantados. Muitos foram os homens que por aí se aventuraram e de todos eles não houve um só que houvesse regressado. É aí que está a corte do Conde Ywein. A ninguém ele consente que se albergue na cidade, salvo aqueles que à sua própria corte se acolhem e aí tomam pousada. (p.391).

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Tais exemplos reforçam o nevoeiro como símbolo da indistinção, do período

transitório entre dois mundos, sinal que precede as revelações importantes, o prelúdio da

manifestação 144. Lembramos também que muitas vezes a magia e a maravilha se manifestam

de forma generalizada, criando uma supra-realidade, como em Culhwch e Olwen – onde toda

a narrativa é uma realidade maravilhosa e os animais têm importância equivalente à dos

homens. Ainda com relação à interpenetração dos mundos, chamam atenção alguns episódios

de supra-temporalidade, nos quais o tempo não passa, ou pelo menos não da maneira como

deveria ser no mundo real. É o que acontece em Branwen, a filha de Llŷr com os sete homens

que estão em Penfro (Gwales) com a cabeça de Bendigeifran:

(...) E ali se quedaram quatro vezez vinte anos, sem se darem conta que o tempo passava, porque o passavam da mais alegre e jovial maneira. E nunca sentiram mais fadiga do que sentiram quando ali haviam chegado e nunca nenhum de eles , nem sequer um só, soube fazer a conta ao tempo que ali passou. (p.72)

O poder da magia também se manifesta e é representado ao longo das narrativas por

inúmeros objetos maravilhosos. Sem dúvida o caldeirão é o mais importante deles. Em

Branwen, a filha de Llŷr, Bendigeifran oferece como presente ao rei da Irlanda um caldeirão

que tem o poder de ressuscitar os mortos, que, porém, perdem o dom da fala: “(...) – E dar-te-

ei um caldeirão que tem a seguinte virtude: se hoje te matarem um dos teus homens, só tens

de o meter dentro do caldeirão para amanhã estar tão bom e tão são como sempre esteve

menos a fala, que perdeu e não tornará a ganhar.” (p.58-59).

Pelo desenrolar da conversa entre os dois reis, sabemos que esse caldeirão havia sido

trazido da Irlanda, por um casal que escapara da Casa de Ferro 145, e que havia sido retirado

do fundo de um lago. Na mitologia celta o caldeirão é o equivalente da cornucópia, do vaso

ou da jarra, símbolo da abundância e também do conhecimento ilimitado, e nesse sentido está

144 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Cit. (p.634-635). 145

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relacionado ao deus Dagdá. Além disso encontramos o citado caldeirão da ressurreição e

menções a um caldeirão sacrificial, no qual os reis depostos eram afogados. A maioria dos

caldeirões míticos e mágicos das tradições celtas foi encontrada no fundo do oceano ou de

lagos, logo a força mágica reside na água, e os caldeirões, as panelas e os cálices são

recipientes dessa força mágica. Geralmente concedem a imortalidade ou a eterna juventude, e

transformam aquele que os possui (ou que neles mergulha) em herói ou em deus. É um

talismã divino, antecessor e protótipo do Santo Graal 146.

Outro objeto importante na simbologia das tradições celtas é o manto (também capa

ou pano). Em O sonho de Rhonabwy, temos o anúncio da chegada de Eiryn Wych Amheibyn,

cavaleiro que traz consigo uma trouxa com vários objetos, inclusive um manto da

invisibilidade. A descrição detalhada de sua chegada é repleta de elementos bastante

significativos:

(...) homem rude e de cabelos ruivos, de fartos bigodes também ruivos e de barba e cabelos hirsutos e eriçados. Chegou amontado num grande cavalo vermelho (...) Apeou-se aquele enorme lacaio de cabelos ruivos diante de Artur e de dentro da trouxa fez sair um enorme caldeirão de ouro e um pano de brocado de seda canelada. Diante de Artur estendeu o pano, que tinha uma maçã de ouro vermelho em cada um dos quatro cantos e, no meio do pano, pôs o caldeirão; e este era tão grande que nele poderiam tomar assento três cavaleiros armados. Gwen era o nome de aquele pano de muitas virtudes. E uma de essas virtudes consistia em que homem que nele se envolvesse ninguém o poderia ver, enquanto este, ao invés, a todo o mundo continuava a ver. E não havia cor que no pano se mantivesse senão a sua própria cor. (p.219).

Chama atenção, de imediato, a predominância dos tons vermelhos no cavaleiro

(cabelos), em seu cavalo e roupas. De forma generalizada o vermelho está relacionado ao

símbolo do princípio da vida (por seu poder e brilho), ao fogo e ao sangue. Além disso ele

carrega em sua trouxa um caldeirão de ouro e um pano. O pano, de brocado de seda, tem até

nome – Gwen (branco em galês) – e várias virtudes, dentre elas a da invisibilidade. Para os

celtas, o manto faz parte dos atributos reais dos deuses da Irlanda, e há várias narrativas que

146 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Cit. (p.166-167).

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mencionam o manto de invisibilidade – geralmente relacionado ao deus do ‘outro mundo’

Midir (ou Mannan). Também o deus Lug possui um manto semelhante. A tradição ainda nos

conta que ‘os homens do grande mundo do leste’ teriam dito ao deus Dagdá que aquele que se

veste com o manto toma o aspecto, a forma e o rosto que quer, pelo tempo que o leva sobre si.

Temos então o manto como símbolo das metamorfoses 147. Para completar, o pano trazido por

Eiryn tinha uma maçã bordada em cada uma das quatro pontas. Nas tradições celtas, a maçã é

um fruto de ciência, de magia e de revelação. Ela serve também como alimento prodígio. Em

alguns contos bretões o consumo de uma maçã serve de prólogo a uma profecia. Sendo a

maçã um fruto maravilhoso, a macieira é também a árvore do ‘outro mundo’. Emain Ablach

(em irlandês), Ynis Apallach (em galês), Ilha de Avalon (pomar das macieiras) é o nome da

morada mítica onde repousam os reis e os heróis defuntos. Na tradição britânica, é lá que o rei

Artur se refugia enquanto espera para ir libertar seus companheiros gálicos e bretões do jugo

estrangeiro. Lembremo-nos que Merlin, segundo os textos, ensina sob uma macieira 148.

O manto porém não é o único objeto capaz de proporcionar a invisibilidade. Em A

Dama da fonte, uma donzela de cabelos loiros dá a Owein um anel capaz de torná-lo invisível

– o que facilitará a fuga do cavaleiro:

(...) Toma este anel e põe-o no dedo, com a pedra do anel virada para a cova da mão. Mantém a pedra bem encerrada na cova da mão, com o punho bem fechado, de sorte que ninguém possa ver a pedra do anel. E por todo o tempo que mantiveres escondida a pedra do anel, também a pedra do anel te há de manter a ti escondido. (...) E eles não poderão ver-te e serão tomados de grande fúria. (pp. 245-246).

O anel também está presente em uma passagem de Paredur, o filho de Efrawg, na qual

o protagonista mata a serpente que guarda um anel de ouro e toma o anel par si:

(...) Por fim chegou a uma pobre e pequena cabana e aí ouviu dizer que uma serpente, que tinha por costume jazer em cima de um anel de ouro, não consentia

147 Ibidem. (pp.588-589). 148 Ibidem (pp.572-573).

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que uma só choupana ou outra morada por ali se erguesse, sete milhas em redor. Paredur foi para aonde lhe haviam dito que estava a serpente, e contra ela se combateu com fúria e paixão, valor e desespero. Por fim matou a serpente e tomou o anel par si. (p.303).

Ainda em Paredur, uma donzela dá ao herói – em troca do amor dele – uma pedra

para que ele mate o Addanc do Lago:

- (...) Todavia, se empenhares a tua palavra e me jurares que hás de amar-me mais e melhor que a qualquer outra mulher de este mundo, eu te darei uma pedra. E com essa pedra na mão, ao entrares na caverna tu o hás de ver e ele a ti não poderá ver. (p.310).

Anel e pedra, aliás, são objetos que aparecem constantemente interligados, pois muitas

vezes o anel apresenta uma pedra. É o que ocorre com o anel que Artur usa em O Sonho de

Rhonabwy, e para o qual Iddawc chama a atenção de Rhonabwy:

- Vês na mão do imperador aquele anel com a pedra engastada? - Vejo sim. - Uma das virtudes de aquela pedra é permitir-te recordar para sempre tudo o que

esta noite tu aqui viste. Se não hoveras visto a pedra, nunca mais recordarias a mais pequena coisa de esta aventura. (p. 215).

Lembramos que o anel serve essencialmente para indicar um elo, para vincular. É o

signo de uma aliança, de um voto, de uma comunidade, de um destino associado. O anel

portador de pedra ou sinete é símbolo de poder, de domínio material ou espiritual (como o

usado por Artur). No plano esotérico, o anel possui poderes mágicos – como o que Owein

recebe. É uma redução do cinto, protetor de locais que guardam um tesouro ou um segredo.

Apoderar-se de um anel é, de certo modo, abrir uma porta, entrar num castelo, numa caverna,

no Paraíso (é o caso de Paredur). Em numerosos contos, romances, canções e lendas

irlandesas o anel serve também como meio de reconhecimento: símbolo de uma força ou de

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um laço que nada pode romper, mesmo que o anel se perca ou seja esquecido à beira de um

caminho 149.

Há também um objeto que aparece com alguma constância nas narrativas do

Mabinogion: a lança. Em Paredur, quando o protagonista se encontra no castelo de seu tio,

vemos um estranho cortejo com uma lança que jorrava sangue:

(...) E dois mancebos levavam uma lança de um comprimento enorme. Da ponta da lança jorravam três rios de sangue que corriam pelo chão. (...) Depois de um momento de silêncio, entraram duas donzelas que traziam uma bandeja e na bandeja a cabeça de um homem banhada em sangue. (...). (p.284).

Temos ainda em Gereint, o filho de Erbin, uma lança inquebrável, dada ao

protagonista por um homem de cabeça branca:

- Senhor! Esta é a lança que a minha mão segurava no dia em que fui armado e ordenado cavaleiro. Desde esse dia até ao dia de hoje, jamais eu a quebrei; e a lança tem uma ponta de ferro como outra não há. Toma esta lança, já que nenhuma das outras te serviu. (p. 345).

A lança aparece, universalmente, como símbolo axial, fálico, ígneo ou solar.

Identificada com o pilar e o eixo, é ainda o raio solar que simboliza a ação da Essência sobre a

substância indiferenciada. Nas lendas relativas ao cortejo do Graal, as gotas de sangue que

escorrem da lança vertical e são recolhidas na taça exprimem essa idéia. Esta lança é a do

centurião Longino, que varou o flanco de Cristo: teria tido, diz-se, a virtude de curar as feridas

que havia causado (em Paredur nossa citação retrata o cortejo do Graal, representado pela

cabeça). Segundo as tradições célticas, a lança de Lug foi trazida do Norte pelo Tuatha Dé

Dannan (ver nota 18 deste capítulo), e é essencialmente uma lança de fogo, cujos ferimentos

são mortais. Vários textos irlandeses apresentam este elemento (em Gereint ajudará o herói a

ganhar fama). Seu simbolismo é complementar ao do Caldeirão de Dagdá (já mencionado),

149 Ibidem. (p.53-56).

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porque o caldeirão é necessário para aplacar a lança que, ao contrário, emite centelhas e mata

sozinha príncipes e filhos de reis. A simbologia sexual é aqui explicita, e o fato de que a

lança, empunhada pelos heróis irlandeses, seja freqüentemente comparada a um castiçal ou a

um pilar não faz mais que reforçá-lo 150.

Como podemos perceber, os objetos maravilhosos desempenham importante papel na

tradição celta. Todavia gostaríamos aqui de destacar também a importância do significado de

determinados animais – que aparecem ao longo das narrativas – para o ideário celta. Além de

serem parte fundamental do universo diegético de Culhwch e Olwen (como já explicamos),

em vários outros momentos eles atuam como elementos bastante significativos. Em Pwyll, no

primeiro ramo, logo no início o protagonista se depara, durante uma caçada, com uma

extraordinária matilha de cães:

(...) Então Pwyll olhou para a cor de aqueles cães sem mais cuidar do veado, pois de todos os cães que ele jamais vira no mundo, nem um só era como aqueles. A pelagem era de um branco reluzente e lustroso e as orelhas vermelhas; e tal como luzia a brancura resplandecente do pêlo dos cães, assim também reluzia o vermelho das orelhas. (...) (p.23)

O símbolo complexo do cão está ligado à tipologia dos elementos terra, água e lua. A

primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo (guia do homem

na noite da morte após ter sido seu companheiro no dia da vida). As variantes culturais desse

significado apenas o enriquecem e acrescentam. O cão, contudo, não é apenas o guia dos

mortos. Serve também como intercessor entre este mundo e o outro e de ligação entre os vivos

e os mortos (lembremo-nos que esta matilha extraordinária pertence ao rei do ‘outro mundo’).

No domínio céltico, o cão é associado ao mundo dos guerreiros e é objeto de comparações e

metáforas elogiosas. O maior dos heróis, Cuchulainn, tem o apodo de cão de Cullann. Sabe-se

ainda que todos os celtas, insulares e continentais, tiveram cães treinados para o combate e a

150 Ibidem (p.535-536).

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caça. Comparar um herói a um cão era algo honroso, era render homenagem a sua bravura

guerreira. O cão maléfico aparece somente no folclore e provavelmente sob a influência do

Cristianismo 151. Por isso notamos que em algumas das narrativas do Mabinogion,

personagens como Manawydan e Pryderi estão sempre em suas andanças acompanhados por

seus cães.

O javali é um animal que também aparece bastante nos textos do Mabinogion,

geralmente sendo caçado. Seu simbolismo além da origem bastante antiga, cobre a maior

parte do mundo indo-europeu. É possível que ele tenha relação com o retiro solitário do

druida na floresta. A ele se opõe o urso, emblema do poder temporal. Na Gália o javali é

perseguido e morto, é a imagem do espiritual perseguido pelo temporal. Simboliza a classe

sacerdotal e tem uma estreita relação com a floresta (como os druidas): alimenta-se do

carvalho – árvore sagrada. Geralmente confundido com o porco, o javali é o alimento

sacrificial da festa de Samain (uma das quatro grandes festas celtas), animal consagrado a

Lug. Lembramos ainda que em nenhum caso, nem mesmo em textos irlandeses de inspiração

cristã, o simbolismo do javali é depreciativo, mostrando assim uma contradição entre o

mundo celta e as tendências gerais do Cristianismo 152.

As narrativas do terceiro grupo – Os três romances – também apresentam episódios

onde os animais têm significado importante. Em A dama da fonte, Owein liberta um leão, que

se encontra em uma caverna, cativo de uma serpente:

Na rocha havia uma fenda; e na fenda estava uma serpente e ao lado da serpente um leão, um leão branco da cor do branco puro. Sempre que o leão intentava fugir, a serpente lançava-lhe o dardo de sua língua e o leão soltava um rugido. Owein desembainhou a sua espada e avançou para a rocha. A serpente virou-se para Owein e, no momento em que começava a sair da fenda que havia na rocha, Owein desfechou um golpe com a sua espada que cortou a serpente em dois, deixando-a em duas metades e cada metade para seu lado. Depois enxugou a espada e seguiu pelo seu caminho adiante. Então apercebeu-se que o leão o acompanhava, correndo e

151 Ibidem. (pp.176-182). 152 Ibidem. (pp.516-517).

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saltando em seu redor, como era costume fazer um galgo lebreiro que em tempos ele próprio criara e ensinara. (pp.261-262).

A partir desse momento o animal passa a acompanhá-lo em todas as aventuras, sendo

na prática o verdadeiro responsável pelas vitórias do herói. Rei dos animais, o leão é

poderoso, símbolo solar e luminoso ao extremo, por isso mesmo está imbuído das qualidades

e dos defeitos inerentes a sua categoria. Como encarnação do Poder, da sabedoria e da justiça,

seu excesso de orgulho e confiança faz dele o símbolo do Pai e do Mestre. Pode ser, portanto,

admirável bem como insuportável. Não é sem motivo que percebemos, então, que ele impõe a

Owein sua ajuda mesmo quando o herói não a quer. Mais precisamente na iconografia

medieval, a cabeça e a parte anterior do leão correspondem à natureza divina de Cristo,

enquanto a parte posterior – que contrasta por sua relativa fraqueza – corresponde à natureza

humana 153.

Nesse sentido, nos parece bastante significativo que o leão libertado por Owein

estivesse cativo de uma serpente. O simbolismo da serpente durante a Idade Média cristã

dispensa maiores análises e explicações. Vale porém assinalar que, como elemento a ser

exterminado, a serpente ainda aparece em mais dois momentos significativos em Paredur. Há

a serpente que ele mata para obter o anel (como já vimos) e o Addanc do Lago (que também é

uma serpente em várias interpretações), também morto pelo herói.

Em sentido oposto à serpente há o veado ou cervo. Encontramos em Gereint, o filho

de Erbin, um episódio onde Madawc comunica ao rei Artur ter encontrado um cervo

extraordinário:

- Um veado eu vi na floresta; e nunca eu vi um veado como aquele. - Que tem esse veado de especial – perguntou Artur – para dizeres que nunca

viste outro como ele? - É todo branco, Senhor, de um branco puro. E anda só, longe da companhia de

qualquer outro animal, certamente por orgulho e presunção, tão majestoso é o

153 Ibidem. (pp.538-539).

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seu porte e sobranceiro o seu estar. Foi por isso que eu vim, Senhor, para te pedir conselho e me dizeres o que hei eu de fazer. (pp.334-335).

Muitas vezes comparado à árvore da vida, por sua alta galhada (que se renova

periodicamente), o cervo simboliza a fecundidade, é uma imagem arcaica da renovação

cíclica. É também o símbolo do nascer do sol e o mensageiro do divino. A importância do

cervo para o mundo celta pode ser atestada pela sua freqüência na iconografia e na lenda.

Lembramos que o deus Cernunnos é representado sobre o caldeirão de prata de Gundestrip.

Na Irlanda, o filho de Find (herói do ciclo Ossiânico) chama-se Oisin (filhote de corça). Além

disso, São Patrício se metamorfoseava em cervo. Na Bretanha Armoricana Santo Edern é

representado cavalgando um cervo. Para a maioria dos estudiosos, o simbolismo do cervo no

mundo céltico é muito vasto e relaciona-se com os estados primordiais 154.

Vale ainda lembrar, no que concerne à importância dos animais para a simbologia

celta, que em vários momentos, ser transformado em animal é a punição para aqueles que

cometem um delito grave. Isso é particularmente significativo em Math, o filho de Mathonwy.

Gwydion e Gilvaethwy, sobrinhos de Math, são punidos por terem enganado Pryderi (e com

isso levado a uma batalha que causou a morte dele); forçado a uma noite de amor a donzela

que acompanhava o rei; e enganado em última instância o próprio rei. Assim, são

transformados pelo poderoso Math, de forma sucessiva, em casais de animais (cervos, suínos

e lobos), sempre com intervalos de um ano entre uma punição e outra para que fossem, como

animais, obrigados a acasalar e a procriar entre si. Nessa mesma estória, Math e Gwydion

punirão Blodeuwedd (a esposa de flores que criaram para Lleu) transformando-a em uma

coruja, já que sua traição quase levou à morte de Lleu.

Uma leitura mais atenta nos mostra que há algo em comum entre a matilha de cães

avistada por Pwyll, o javali caçado por Manawyddan e Pryderi (no terceiro ramo), o cervo

excepcional que querem caçar em Gereint, o manto de invisibilidade trazido por Eiryn e os

154 Ibidem. (pp.223-226).

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trajes da donzela que acompanha Gereint: a cor branca. Em todos esses exemplos, o animal ou

o traje são de um branco excepcional, nunca visto, a própria representação da maravilha. O

branco é a contra-cor do negro, e pode situar-se nas duas extremidades da gama cromática,

sendo portanto uma cor de passagem. Representa um valor limite, e portanto, a maioria dos

povos fez do branco a cor do Leste e do Oeste. O branco do Leste é o do retorno, da alvorada,

carregado de intensidade luminosa (brilho). O branco do Oeste é o branco fosco da morte, que

absorve o ser e o introduz ao mundo lunar. Em todo pensamento simbólico a morte precede a

vida, pois todo nascimento é um renascimento: assim o branco é a cor das almas do ‘outro

mundo’. Nem sempre é um valor positivo. Mas, entre os celtas, o branco positivo é a cor

reservada à classe sacerdotal: os druidas vestiam-se de branco. À exceção dos sacerdotes,

somente o rei tem direito à vestimenta branca. O metal simbólico do rei Nuada é a prata, cor

real. Na epopéia celta, a menos que sejam reis, todos os personagens vestidos de branco são

druidas ou poetas, membros da classe sacerdotal. Em irlandês medieval, find significa ao

mesmo tempo branco e santo, tanto que a expressão in drong find – o bando branco – serve na

hagiografia para designar os anjos. Em britônico (galês:gwyn; bretão:gwen) a palavra

significa ao mesmo tempo branco e bem-aventurado 155. Percebemos então que o branco

nestes animais os relaciona ao maravilhoso e ao ‘outro mundo’, enquanto que nas donzelas,

além do sentido positivo de pureza, representa a possibilidade de relacionar o herói a uma boa

passagem – no sentido ritual.

Em contra- partida, no terceiro grupo, temos o Tirano Negro, que aparece (como já

mencionamos) em duas narrativas: A dama da fonte e Paredur. O negro (preto) é, com mais

freqüência, simbolicamente compreendido sob o seu aspecto frio, negativo. Oposto a todas as

cores, é associado às trevas primordiais, ao indiferenciamento original. Na linguagem

heráldica, a cor preta se relaciona à terra estéril. Além de sua relação com a morte e o luto, a

155 Ibidem. (pp.141-144).

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aparição de animais ou personagens negros nos sonhos mostra que entramos em contato com

nosso próprio universo instintivo primitivo que precisamos esclarecer, domesticar, e cujas

forças devemos canalizar para objetivos mais elevados 156. Nesse sentido, nos parece bastante

compreensível que o negro seja a cor utilizada para identificar o tirano, já que ele é

identificado com o demônio (A dama da fonte, p.267), como um homem de traição e maldade

para com todos (Paredur, p.306). Fica claro, então, que primeiro a vitória de Owein sobre ele

(A dama da fonte, p.268)e, posteriormente, a morte do Tirano pelas mãos de Paredur (p.309)

simbolizam a derrota do opressor, prenúncio do fim da noite e início de um novo dia.

Gostaríamos agora de destacar um outro elemento que também nos parece bastante

significativo em termos simbólicos: os números. Assim como vimos anteriormente que o

prazo de um ano era bastante recorrente e relevante ao longo das narrativas do Mabinogion,

percebemos que, particularmente, os números 3 (três) e 7 (sete) também estão revestidos de

significado especial no desenrolar dos textos.

Branwen – personagem que dá título ao segundo ramo – é uma das três matriarcas da

Ilha, e, nessa mesma narrativa, são três as portas que os homens encontram em Penfro (uma

das quais não deve ser aberta). Em Manawyddan são três as atividades nas quais o

protagonista se destaca – fabricante de selas, de escudos e de sapatos -, sendo ainda ele um

dos Três Príncipes Deserdados e um dos Três Sapateiros dos Sapatos de Ouro. Em Math, são

três os interditos que a mão lança sobre Lleu Llaw. Em Lludd e Llefelys são três as pragas que

assolam o reino de Lludd. Enfim, poderíamos citar vários outros exemplos. O três é um

número fundamental universalmente pois, para começar, o tempo é triplo (passado, presente e

futuro). Ele designa também os três níveis da vida humana (material, racional e espiritual) e as

três fases da evolução mística (purgativa, iluminativa e unitiva). Exprime ainda a totalidade da

ordem social, notadamente a composição tripartida das sociedades indo-européias, lembrando

156 Ibidem. (pp.740-744).

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também a divisão em três ordens da sociedade medieval (oratores, belatores e laboratores) 157.

No panteão de divindades celtas a triplicidade – aspecto dos mais importantes – relaciona-se

ao poder do número três, sagrado para eles. Isso se devia a verem no número três a expressão

da grandeza, da força e da totalidade, visto que ele compreende o começo, o meio e o fim e,

sendo a soma de 1+2 consegue resumi-los numa unidade. Por fim, não podemos esquecer a

relevância da Santíssima Trindade, tendo em vista as interpolações de elementos cristãos (que

já discutimos).

O número sete também aparece com muita freqüência. Em Branwen são sete os

homens que Bendigeifran deixa governando os territórios em seu lugar quando parte para

resgatar sua irmã na Irlanda. Também são sete os que sobrevivem no embate final em terras

irlandesas, e que partem para Penfro com a cabeça de Bendigeifran. Em Gereint, Glewlwyd

(porteiro do castelo de Artur) tem sob suas ordens sete homens para repartir o serviço. O sete

corresponde aos sete dias da semana, aos sete planetas, às sete esferas ou graus celestes. Por

isso designa a totalidade das ordens planetárias e angélicas, a totalidade da ordem moral e das

energias (pricipalmente na ordem espiritual). Simboliza um ciclo completo, a perfeição

dinâmica: cada período lunar dura sete dias e os quatro períodos do ciclo lunar (7x4=28)

fecham o ciclo. Sendo assim, o sete representa a totalidade do espaço e a totalidade do tempo.

Pode simbolizar também a passagem do conhecido ao desconhecido, pois após um ciclo

concluído coloca uma interrogação sobre qual será o próximo 158. Assim, dentro do universo

d’Os Quatro Ramos, caberia a pergunta: qual será o destino da Ilha da Bretanha após os

homens de Bendigeifran (gauleses) terem sido destituídos do poder?

Para muitos a resposta talvez esteja no sonho. Há duas narrativas - O sonho de Macsen

Wledig e O Sonho de Rhonabwy – nas quais o sonho tem papel de destaque. Já discutimos

anteriormente que o recurso de volta ao passado através do sonho serve, em passagens dessas

157 Ibidem. (pp.899-902). 158 Ibidem. (p.826-831).

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narrativas, como meio para criticar a situação em que se encontrava o País de Gales no

momento da redação dos textos. No campo do imaginário e do maravilhoso (sobrenatural),

percebemos que, para os celtas, os estados considerados de anormalidade (êxtase ou transe)

podiam ser alcançados com o auxílio de alucinógenos (técnica considerada inferior) ou

através de ‘forças inconscientes’ (técnica superior). Nesse sentido, nota-se a extrema

importância do sonho, pois ele – além de reequilibrar o mundo e regenerar o indivíduo – era

uma das pontes entre os dois mundos. Ao recusarem a distinção aristotélica entre o real e o

imaginário, o sonho se transforma para os celtas no método mais seguro de se chegar, via

imaginário, ao novo, às novas invenções. Essas seriam a prova irrefutável de que o não-real

poderia tornar-se real em determinadas condições 159. Na literatura, encontramos em textos

como A Demanda do Santo Graal, por exemplo, várias situações onde um indivíduo,

geralmente um dos cavaleiros, descobre através do sonho a solução para o seu problema. Por

outro lado, vale registrar que, algumas vezes, a solução se encontra na vigília. Após enumerar

para Culhwch todas as quarenta tarefas que ele teria que cumprir para casar com Olwen, o

gigante Ysbaddaden comunica ao herói que ele não poderia dormir: “-Ainda que o consigas,

há uma coisa de que não és capaz. Na tua demanda por todas essas coisas terás de estar

sempre vigilante e nem uma só noite poderás dormir. Isto é coisa que não hás de conseguir e a

minha filha não será tua.” (p.185).

Da mesma maneira, para acabar com a terceira praga que se abate sobre o seu reino (o

desaparecimento da comida), Lludd também não pode dormir, ao contrário, deve montar

vigília para acabar com aquele que faz a comida desaparecer. É o que lhe aconselha seu irmão

Llefelys:

- A causa da terceira praga – disse ele – é um poderoso feiticeiro, homem de muitas mágicas e encantos, que toma as tuas viandas e bebidas e tudo o que mais é tua poupança. E, pelas suas artes de magia e encantamentos, põe todo

159 MARKALE, Jean. Le Druidisme. (pp.232; 236-237).

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mundo a dormir. Por isso é de grande necessidade que tu próprio estejas de vela e de guarda aos manjares e iguarias que queres servir nas tuas festas e banquetes. E para não seres vencido pelo sono, que é obra da magia de ele, haverás de ter sempre a teu lado uma celha bem cheia de água mui fria; e quando o sono te atormentar, mergulha no caldeirão. (pp.146-147).

Tentamos aqui refletir brevemente sobre alguns elementos relacionados à magia e ao

poder que se destacam no imaginário celta, e analisar de que maneira eles se apresentam nos

textos. É evidente que um tema tão variado e complexo não se esgota – tal como o conteúdo

do caldeirão de Dagdá.

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3 – A Mulher e a Linhagem: um Pólo de Alianças

Na introdução a este trabalho mencionamos que, devido a vários movimentos

migratórios, os povos celtas (entre o século V a.C. e o século V d.C.) se espalharam por

diversos territórios do mundo então conhecido, tendo assim dominado várias regiões e muitos

outros povos.

As dominações eram sem dúvida de natureza político-militar, porém não podemos

precisar se possuíam superioridade numérica ou não, e há muitas divergências sobre isso entre

os estudiosos. O que nos parece importante ressaltar é que se, a princípio, os vencedores

celtas se constituíam como uma classe dominante que mantinha intacta suas características

fundamentais, inclusive étnica, com o passar dos séculos é certo que se miscigenavam às

populações autóctones, absorvendo-as. Essas, por sua vez, adquiriam rapidamente os

costumes e a língua dos conquistadores, mesclando-os aos seus próprios hábitos. Essa

constante integração com outros povos pode ser um dos motivos para algumas diferenças

importantes entre as estruturas das civilizações de origem celta e as de outros povos indo-

europeus.

Essas diferenças se refletem na organização sócio-política, nas estruturas familiares e

nas instituições jurídicas. Porém, para nós, seu reflexo mais forte pode ser notado

sobremaneira nos códigos de conduta e costume, estejam esses expressos ou não em leis, e na

posição da mulher nas sociedades celtas. No caso específico do País de Gales, a Lei de

Howell – ainda preservada em um manuscrito do século XII – nos fornece um bom material

para reflexão sobre a situação das mulheres naquela sociedade.

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Notamos que há um diferencial importante entre as sociedades celtas e as outras de

origem indo-européia: o conjunto de normas relativas ao casamento. As mulheres eram livres

para escolherem seus maridos e as famílias não podiam casá-las contra sua vontade, sendo

necessário, porém, haver acordância entre as famílias dos futuros cônjuges. Cada indivíduo

levava seus bens pessoais para o casamento, sendo que o pai da mulher (e na falta desse o

irmão) recebia um tipo de dote e a própria mulher recebia, na ocasião, presentes de família

(Tinnsera). Após o casamento, a mulher continuava a ter bens próprios e não perdia sua

origem familiar, isto é, não entrava para a família do marido. Devido a esta independência

financeira das partes, em caso de separação ou morte de um dos cônjuges, uma parte nada

herdava da outra, levando consigo apenas o que trouxera para o casamento e dividindo entre

si, ou com a família do morto, o montante adquirido após a união. Assim, os direitos

adquiridos pelo marido após o casamento limitavam-se aos filhos e ao corpo da mulher. Neste

particular, encontramos algumas regiões onde o pai da mulher recebia uma quantia

compensatória como Preço da Virgindade (Cowyll). Entenda-se, todavia, que o Preço da

Virgindade não dizia respeito a uma reparação decorrente de uma visão pecaminosa do sexo;

estava, sim, relacionado a um profundo respeito pelo corpo e pela pessoa feminina,

considerada então um ser moralmente superior. Achava-se então relacionado à honra, mas não

no sentido moralista e sexual das civilizações judaico-romano-cristãs. Para os celtas a honra

encontrava-se na face e no nome de cada um, daí a difusão do uso de máscaras e do

sobrenome, visto que ao conhecer a face e o verdadeiro nome de uma pessoa pode-se dominá-

la, já que neles estão contidos a essência do ser e sua honra 160.

Nos textos do Mabinogion alguns episódios que envolvem o casamento merecem

destaque. Em primeiro lugar notamos que o casamento não se realiza através de nenhuma

cerimônia especial. Feito o acordo, há sim grandes festas e banquetes (que geralmente duram

160 MARKALE, Jean. La famme celte. (pp. 50-51).

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vários dias) após os quais os noivos simplesmente se retiram e passam a dormir juntos.

Verificamos esse procedimento na união entre Pwyll e Rhiannon (Pwyll, o prícipe de Dyfed,

p.41), entre Branwen e Matholwch, o rei da Irlanda (Branwen, a filha de Llŷr, p.55), e entre

Gereint e Enid (Gereint, o filho de Erbin, p.355). Parece-nos então que a importância do

casamento não está relacionada ao aspecto religioso. A importância do casamento está

relacionada às alianças políticas entre as diferentes famílias e clãs. Assim, o casamento

constitui a aliança entre duas linhagens: a do pai da esposa e a do seu marido. A mulher passa

então de uma linhagem à outra, dando filhos à linhagem do marido. Ao contrário do homem,

ela está presa a duas linhagens, e deve zelar para não lesar nenhuma delas, dando filhos ao

marido e honrando o nome do pai. Por isso, muitas vezes quando viúva ela é cobiçada pela

antiga linhagem (a do pai); quando órfã solteira é alvo da cobiça dos cavaleiros sem herança.

Concluímos então ser o casamento apenas um contrato sem caráter sagrado ou

obrigatório: rompida umas das cláusulas, rompia-se o casamento. Isso talvez explique a

grande ocorrência de divórcios, já que para os celtas o divórcio não tinha a idéia de repúdio,

como em outras sociedades. Assim, o marido que quisesse o divórcio, sem motivos

justificados, deveria pagar uma recompensa à esposa, e esta, em caso semelhante, perdia o

direito à parte conjunta dos bens.

Vários outros aspectos da relação de um casal atestam o status das mulheres na

sociedade celta. Se o homem era o chefe da família, a chefia do casal cabia a quem tivesse

mais dinheiro, e, em caso de igualdade, verificava-se a total independência das partes para

realizar todo tipo de negócios, havendo intervenção da outra parte apenas se a transação se

mostrasse desfavorável. O marido que não era chefe do casal, portanto sem autoridade, era

denominado homem de serviço (fer fognama) e, na Bretanha e no País de Gales, algumas

mulheres foram até chefes de família - e tiveram o direito de reinar, quando em linha

sucessória e eleitas. Verifica-se ainda a sucessão matrilinear e, em vários textos, inclusive

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literários, a adoção do nome da mãe pelos filhos, fatos dos quais deriva o direito avuncular,

pelo qual o filho herdava do tio materno, em total igualdade com os próprios filhos deste, não

só os bens como também o direito à sucessão real 161. As relações entre tios e sobrinhos

também são retratadas no Mabinogion, mais especificamente as relações entre Math,

Gwydion e Lle Llaw – em Math, o filho de Llŷr -, e entre Paredur e seu tio (não nomeado na

estória) dono do castelo no qual ele testemunha o cortejo do Graal.

Para uma melhor compreensão do papel da mulher nas diversas sociedades, torna-se

necessária uma discussão mais aprofundada da relação entre homens e mulheres e da

comprovada influência em cadeia desta relação no casal, na família e, por conseguinte, na

sociedade. Observamos que as mudanças ocorridas através dos tempos nas estruturas político-

jurídicas são, via de regra, superficiais, dado que é importante mudar, primeiro, a estrutura

mental (mentalidade) transmitida de geração para geração.

A sociedade é o modo operacional lógico e necessário onde vivem os homens, já que a

sociabilidade é um dos fatores componentes da humanidade, sendo esse modo operacional

baseado em convenções e postulados fundamentais. A partir do Neolítico o desenvolvimento

de técnicas para o aumento da produção agrícola, como a irrigação e a charrua, traduzia as

tentativas do homem de dominar a natureza. Na divisão de tarefas então surgida coube ao

homem as atividades consideradas mais perigosas e nobres - que eram exercidas fora de casa;

à mulher destinaram-se as tarefas tidas por menos nobres e perigosas - como cuidar dos filhos

e da casa. O motivo usualmente alegado para tal divisão é a força física, que constitui uma

falácia facilmente constatada se lembrarmos das tarefas pesadas exercidas na agricultura pelas

mulheres, ainda hoje, em várias sociedades.

Dessa forma, o homem apropriou-se, então, da agricultura por ser supostamente

superior à mulher fisicamente, acarretando o desprestígio desta no campo social. Essa

161 Ibidem. (p.58).

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desigualdade, advinda da divisão do trabalho, tornou-se um postulado fundamental e foi

sendo paulatinamente introjetada nas estruturas mentais, tendo na educação das crianças um

dos veículos fundamentais para a sua difusão. Os avanços técnicos, e o conseqüente progresso

material e econômico, criaram um tipo de sociedade baseada no rendimento, que encara a

mulher como aquela que diminui o rendimento já que desvia a energia produtiva masculina

para a sexualidade. Essa idéia encontra-se representada em Gereint, o filho de Erbin. A

narrativa nos mostra o desinteresse do personagem pelas suas habituais atividades após o

casamento, o que logo foi motivo de comentários desabonadores:

(...) Dedicou-se ao amor pela sua mulher e à paz na sua corte, à música e aos folguedos; e muito tempo passava em sua casa. E foi assim que a sua preferência passou a ser o recolher-se na sua câmara com a sua mulher e nada lhe dava mais prazer que o tempo assim passado. E foi também assim que perdeu o coração dos nobres, o gosto pela caça e por outras distrações; e perdeu o coração da gente da sua corte e, por entre todos, murmúrios começaram a correr e, muito em segredo, se sussurravam chacotas e zombarias. E tudo isso acontecia porque mui aberta e completamente ele abandonava a sua gente e trocava a sua companhia pelo amor de uma mulher. (pp. 362-363).

Essa visão negativa do feminino, relacionada também ao pecado em algumas

sociedades (como a judaico-romano-cristã), colocou a mulher fora do sistema produtivo como

mera reprodutora e impingiu-lhe tarefas que, de alguma forma, lhe restringiam a liberdade.

Ainda hoje à maior parte das mulheres que exercem atividades remuneradas fora de casa é

imputada, apesar da dita emancipação feminina, uma culpa e/ou uma dupla jornada de

trabalho. A origem destes problemas reside numa “moral masculina” dominante a partir de

Moisés e existente, de alguma maneira, em todas as religiões, principalmente nas de

influência judaico-romano-cristã.

Ao ser primitivo eram apresentadas três necessidades fundamentais: a alimentação, a

proteção e a procriação. Nas sociedades mais primitivas, que julgavam que só a mulher tinha

poder sobre a procriação, ela era vista como um ser mágico que se relacionava com as

divindades. Em tais sociedades havia então uma maior importância do feminino no plano

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social. Verificamos aí a ocorrência de cultos à Deusa, ou divindade com características

femininas, notadamente o culto à Deusa-Mãe, responsável também pela nutrição (e sua

conseqüente relação com a terra). Vendo a terra como aquela que, além de dar vida, acolhe

também o defunto, várias sociedades atribuem às mulheres a responsabilidade pelos funerais,

numa clara alusão à idéia de ressurreição ligada ao ciclo de morrer e brotar das plantas e

vegetais162.

Nesse sentido, a importância da procriação é tema presente nas narrativas do

Mabinogion. Devemos aqui ter em mente que não dar filhos ao marido (mostrar-se incapaz de

procriar, de dar continuidade à linhagem) era motivo mais que suficiente para ele divorciar-se.

Em Pwyll, há grande preocupação, por parte dos que cercam o protagonista, pelo fato de após

algum tempo de casamento Rhiannon ainda não ter dado filhos ao príncipe:

E ao terceiro ano os nobres da terra começaram a sentir grande pesar por verem que um homem a quem tanto amavam, e que para mais era seu senhor e seu irmão de leite, era um homem sem herdeiro. (...) E eles disseram: - Senhor! Nós bem sabemos que não és moço como muitos dos homens de essa

terra, e estamos receosos de que não possas haver herdeiro da mulher que tomaste. Toma pois outra mulher de quem possas haver herdeiros. Não viverás para sempre e um dia terás de nos deixar e ainda que quisesses permanecer como estás, nós nunca o haveríamos de consentir

- Na verdade – disse Pwyll – não há ainda um longo tempo que eu e ela estamos juntos, e muitas coisas podem acontecer. Concedei-me um ano a contar do dia de hoje. Por todo esse ano eu e ela viveremos sempre juntos; e depois farei de acordo com o que for do vosso desejo. (p.42).

Após o nascimento da criança, vimos que – acusada de devorar o filho – Rhiannon foi

punida, já que seu suposto crime (além de horrendo) colocava em risco a continuidade da

linhagem. Realmente a possibilidade de perder a prole era ameaça grave. Em Culhwch e

Olwen, o protagonista ameaça com esta possibilidade o porteiro do castelo de Artur, que

insiste em não deixá-lo entrar devido ao adiantado da hora:

162 D’EUABONNE, Françoise. AS mulheres antes do patriarcado. (pp.29-40).

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- (...) Mas, se não abrires, farei que sobre o teu senhor caia a desgraça e a vergonha, e de ti para sempre se há de falar com desdém e desprezo. E ao pé de esta porta, três brados hei de soltar; e serão de tal sorte que se hão de ouvir, como os mais terríveis que jamais se ouviram, (...) . E todas as mulheres prenhas que nesta corte estiverem, nesse mesmo instante hão de perder os seus meninos; e aquelas que não levarem filho sofrerão tal aflição, que de este dia em diante para sempre há de durar e jamais o seu ventre dará fruto. (p.154).

Principalmente nas narrativas d’Os Quatro Ramos, o casamento e a linhagem são

fatores que se destacam. Tanto é que Victoria Cirlot aponta dois temas principais nesse

primeiro grupo: as relações de parentesco e alianças matrimoniais e a atividade guerreira.

Sendo assim, percebemos que os quatro relatos se encontram sutilmente entrelaçados por

matrimônios que unem as diferentes casas 163. Justamente por tudo isso, a negação da

maternidade é caso grave, e traz conseqüências para todos. É o que percebemos na complexa

narrativa Math, o filho de Mathonwy, quando Aranrod (sobrinha de Math e filha de Don)

recusa-se a reconhecer o filho que teve (possivelmente de uma relação com seu irmão

Gwydion). Ela lança então sobre a criança uma tríplice maldição: ele só terá nome se for dado

por ela; ele nunca terá armas, a não ser que sejam fornecidas por ela; e finalmente ele não terá

jamais uma esposa da raça humana. As conseqüências, no plano social, são muitas. Sem a

mãe a criança não tem qualquer existência legal, equivale ao nada, pois só a intervenção da

mãe pode fazer da criança um membro da comunidade 164. Não é então sem motivo que

Gwydion (o tio) utiliza seus poderes mágicos para iludir a irmã em dois momentos diferentes,

e consegue que ela dê nome e armas ao rapaz. Isso mostra a relevância da mãe no sistema

social retratado pela estória. Gwydion ainda luta pelo fim da terceira maldição, e – juntamente

com Math – conjura uma mulher com flores e vegetais para ser a esposa de Lleu (nome dado

ao rapaz), ela se chamará Blodeuwedd (nascida das flores).

Todavia, Blodeuwedd tenta escapar à autoridade masculina. Trai o marido, manda

matá-lo e foge com o amante. Evidentemente, fracassa, já que Gwydion - com seus poderes –

163 CIRLOT, Victoria. Cit. (p.XI). 164 MARKALE, Jean. As três faces da mulher celta. In: Correio da Unesco. (p.22).

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dedica todo o restante da narrativa a vingar-se de sua criação rebelada. Consegue fazer o

sobrinho Lleu renascer e matar o amante da mulher e, para vingar-se de Blodeuwedd,

transforma-a em coruja. A interpretação de Jean Markale para esse episódio do quarto ramo

merece atenção:

Mas Blodeuwedd é uma criatura de Gwyddyon, é produto de seu pensamento. Portanto, ele não pode destruí-la sem se destruir a si mesmo. Na verdade, sua criação lhe escapou. A revolta da Moça-Flor é uma afronta intolerável à autoridade masculina, e Gwyddyon deve castigar a culpada. Então, não podendo fazê-la desaparecer completamente, ele a transforma em coruja e a relega à noite. Simbolicamente, essa vingança masculina consiste em ocultar a mulher, a escondê-la na escuridão, com tudo que isto comporta de culpabilidade e rejeição. A lenda de Blodeuwedd, a Moça-Flor que esperou escapar à autoridade paterna, que se recusou a ser mulher objeto, que pretendeu ter direito à liberdade e à livre escolha consentida do homem amado, esta lenda termina em fracasso. 165

Esse episódio é bastante significativo no tocante às reflexões que estamos tentando

desenvolver aqui sobre as relações entre homens e mulheres, especialmente nas sociedades

celtas, e nos remete ao estabelecimento do patriarcado. Ao se dar conta de sua função na

procriação, como fecundador da mulher - e por extensão da própria terra (apropriação da

agricultura) - o homem assume de vez uma posição de superioridade em relação à mulher,

observando-se então no plano místico-religioso o aparecimento do Deus-Esposo. Podemos, a

partir daí, falar em sociedades de tendências patriarcais ou matriarcais e - para não entrar na

infindável discussão sobre patriarcado e matriarcado - lembramos que Jean Markale prefere o

termo “paternalista”. Ainda segundo Markale, verificamos essa tendência paternalista em

todas as sociedades após o Neolítico 166.

Como sempre as mudanças podem ser sentidas através do mitológico com a

transformação da Mulher Sol (principal e irradiadora) em Mulher Lua (aquela que apenas

reflete, secundária), caso típico de Eva e Lilith. Assim, dessa nova estrutura mental deriva

uma nova ordem que deve ser mantida a qualquer custo, tal como o fizeram os romanos e a

165 Ibidem. (p.31). 166 MARKALE, Jean. La famme celte. (p.16).

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Igreja. Aí está a razão pela qual o Druidismo ameaçava o Estado Romano e a Igreja, sua

herdeira, visto que os valores druídicos celtas não eram do tipo paternalista ideal e colocavam

em risco as instituições temporais destes, devendo portanto ser combatidos energicamente,

como aliás o foram. Algo porém deve ficar claro: as sociedades celtas, como todas de origem

indo-européia, eram patriarcais.

Assim, em várias passagens do Mabinogion esse patriarcado se revelará de maneira

inequívoca. Além disso, não devemos esquecer que, quando da redação dos textos (séculos

XIII e XIV), as influências do Cristianismo e do contato mais estreito com os povos do

continente já há muito se faziam sentir no País de Gales. Nesse sentido, nos parece bastante

significativa a descrição que dá início à primeira narrativa do terceiro grupo, A dama da fonte:

Achava-se o Imperador Artur em Caer Lion, em riba do Wysc. Um dia estava assentado em sua câmara e em sua companhia achavam-se Owein, o filho de Urien, e Kynon, o filho de Clydno, e Cai, o filho de Kynyr, e Gwenhwyvar e suas donzelas fazendo trabalhos de costura junto à janela. (p.233).

Essa divisão do espaço físico, descrita acima – de um lado os cavaleiros de Artur e do

outro as damas de Gwenhwyvar –, nos parece bastante simbólica. De um lado o masculino – o

mundo da espada – e do outro o feminino – o mundo da roca. Essa divisão se encontra

também representada na evocação que Culhwch faz do nome dos guerreiros e das damas

ilustres ao chegar ao castelo de Artur e saudá-lo (p.157-166). Em sua evocação, Culhwch

destaca sempre a valentia e as características maravilhosas dos homens e a beleza

incomparável das mulheres. Além disso, devemos lembrar que o que desencadeia toda a ação

de Culhwch e Olwen é o amor súbito do protagonista por Olwen. Este amor súbito é explicado

apenas pela jura que a madrasta de Culhwch lança sobre ele, já que até aquele momento ele

não havia sequer escutado o nome da dama. Temos, então, um exemplo claro de amor

idealizado por uma donzela, também idealizada e desconhecida:

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- O teu destino eu sei! E juro que é este: não hás de sentir corpo de mulher encostado ao teu até que hajas conquistado Olwen, a filha de Yspaddaden Penkawr.

As cores alastraram nas faces do mancebo e o amor pela donzela invadiu todos os seus membros, embora jamais a houvesse visto. (...). (p.151).

Embora amada e idealizada em alguns episódios, em outros percebemos uma gradual

desvalorização da mulher. Em Gereint, o filho de Erbin, fica claro que uma dama agredida

seriamente não vale a vida de um cavaleiro. É o que Artur diz a Gwenhwyvar quando devem

decidir sobre a punição a ser dada ao cavaleiro agressor:

- A melhor justiça nesse assunto – disse Artur – é consentir que este homem sare primeiro as suas feridas e sabermos se vive ou não vive. E, se viver, que sejam os nobres da corte a decidir; e tu cuidarás que assim seja feito e serás a garantia de que assim será. Mas, se morrer, a morte de um jovem de tanta excelência como Edern será expiação demasiado alta para um ultraje feito a uma donzela. (p.353).

A agressão física também é aplicada como castigo para as mulheres. É o que

aconteceu com Branwen, no segundo ramo, após casar com Matholwch, rei da Irlanda para

selar a aliança entre irlandeses e galeses. Após já estar casada há dois anos, e seu marido ter

sido regiamente recompensado pelas possíveis ofensas que teria sofrido em solo galês,

aqueles que acompanham o rei decidem que ela deve ser punida e humilhada pelo que

aconteceu antes do casamento:

(...) E a vingança que eles tomaram foi banir Branwen da mesma câmara aonde com ele dormia e pô-la a cozinhar para toda a corte; e mandaram também que o marchante, depois de haver talhado a carne do dia, se chegasse a ela e lhe assestasse um sopapo nas orelhas, sem falhar um só dia. E foi esta a punição que lhe impuseram. (p.62).

Enid, em Gereint, também é agredida por um conde, já que recusa todas as ofertas que

ele lhe faz, preferindo aguardar o restabelecimento de Gereint, que estava quase morto:

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- Na verdade bem vejo – disse ele – que tanto tenho a ganhar em ser cortês e gentil para contigo como em tratar-te com descortesia e falta de gentileza.

E deu-lhe um sopapo na orelha; e ela soltou um grito mui agudo e penetrante. E continuou com grandes e lancinantes lamentações; e a sua dor era tanto maior quanto mais pensava que, se Gereint estivesse vivo, nunca ninguém lhe haveria dado um sopapo na orelha. (p.389).

Nesta mesma narrativa Gereint, por um equívoco, pensa estar Enid apaixonada por

outro. Decide então sair em viagem com a esposa para humilhá-la, mantendo sempre uma boa

distância entre os dois e proibindo-a de falar:

(...) Depois deu ordem a Enid para se amontar no seu cavalo e disse-lhe para seguir adiante e guardar sempre uma boa distância à sua frente. - E por mais que vejas e por muito que ouças a meu respeito – disse ele – não

tornes atrás sobre os teus passos. E a menos que seja eu a falar-te, também não quero que digas sequer uma só palavra. (p.364-365).

Enid porém não o obedece, e justamente porque não se cala ela sempre o salva, em

diferentes situações durante o percurso, demonstrando, assim, que é preciso falar, usar a

palavra, pois ela é redentora. Verificamos, então, que mesmo desprestigiadas em alguns

momentos, em outros a importância das mulheres é retratada nos textos. Ainda em Gereint, no

episódio em que Madawc relata a Artur a existência de um cervo extraordinário na Floresta de

Dean, fica decidido que, após ser caçado, a cabeça do cervo deve ser ofertada a uma dama:

Foi então a vez de Gwalchmei dizer a Artur: - Senhor! Não pensas que seria de boa conduta e digna de ti, dares o teu

consentimento para que aquele junto de quem, durante a caçada, o veado venha a cair, seja ele cavaleiro ou homem apeado, lhe possa cortar a cabeça e dá-la de oferta a quem ele mais desejar, seja senhora dos seus amores ou a senhora dos amores de seu amigo e companheiro? (p.335).

Mais adiante, em outra situação, é dito a Gereint que para participar do Torneio do

Gavião o cavaleiro deve estar acompanhado pela dama que mais ama: “(...) E cada homem há

de fazer-se acompanhar pela dama que neste mundo ele mais ama; e se não estiver

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acompanhado por esta dama, que é a senhora do seu amor, não lhe será consentida a

participação no torneio. (...)” (p.343).

Percebemos nesses dois últimos episódios destacados a influência da literatura

continental e do romance cortês. Ainda com relação aos Três Romances, lembramos que em

Paredur a Senhora das Proezas possui uma mesnada de guerra composta por trezentos

homens (pp.308-309).

Podemos verificar por meio dos diferentes episódios que, vistos como um todo, os

textos do Mabinogion apresentam visões contraditórias do status das mulheres nas sociedades

celtas. Provavelmente tal se deva à mescla de grupos celtas com as populações autóctones dos

territórios que conquistaram (como já discutimos anteriormente). Essa mescla de culturas

propiciou a assimilação de sistemas e estruturas (inclusive do ponto de vista legal) que, por

sua vez, possibilitaram às mulheres celtas condições melhores (de igualdade e liberdade) que

as das mulheres de outros grupos – principalmente se pensarmos nos povos com forte

influência das leis romanas. Teríamos, ainda assim, uma sociedade de tendências patriarcais

ou ‘paternalistas’ (como prefere Markale), porém mais flexível.

Deve-se também a esse “paternalismo” mais flexível a ocorrência de algumas

exceções; embora coubesse ao homem o papel de chefe ou rei da tribo (túath), temos

devidamente atestado em várias fontes o caso de Bodicea, mulher que governou seu povo e

liderou a revolta bretã de 61d.C. Percebemos ainda, apesar do caráter masculino da realeza, a

importância da rainha, que tinha a ela destinada parte do espólio referente ao tributo de

guerra. O homem era o chefe da família e da casa (cenn-fine, tiern ou machtiern) o que, em

algumas regiões, correspondia ao status de conde, mas há notícias de que algumas mulheres

exerceram as funções de machtiern.

Enfim, casadas ou não, as mulheres celtas podiam exercer várias funções, inclusive

religiosas, valendo destacar seu importante papel na educação dos jovens guerreiros como

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mestras de armas, das artes, da magia e como iniciadoras sexuais. Paredur, o filho de Efrawg

é, nesse sentido, uma narrativa bem interessante. Apesar das influências normandas e do

romance cortês, alguns episódios relatam a possibilidade de as mulheres desempenharem

diferentes funções. Inicialmente temos a mãe do protagonista – embora ela não quisesse que

ele tomasse armas – ditando a ele as regras de conduta e cortesia antes de sua partida para a

corte de Artur:

- Vai então! – disse ela – Mas vai para a corte de Artur. É aí que estão e acharás os melhores dos homens, os mais bravos e mais generosos. E sempre que vires uma igreja, seja aonde for, detém-te e recita um Pater. E sempre que houveres necessidade de comer e de beber, seja aonde for que vires viandas para comer e bebidas para beber e não te fizerem a oferta por falta de cortesia e de boa-vontade, toma as viandas e come, toma as bebidas e bebe. E sempre que ouvires grito de desespero ou aflição, vai ao seu encontro; e não esqueças que ao grito de uma mulher há de sempre acudir-se antes e primeiro que a qualquer outro. Se vires e achares uma jóia de preço e beleza, toma-a e dá-a a um outro; e assim granjearás boa fama. Se vires uma mulher bela e formosa, faz-lhe a corte, mesmo que ela não te queira nem deseje. Assim hás de ser homem melhor, mais nobre e de mais cortesia do que serás se de outra sorte te comportares. (pp.273-274).

Posteriormente, serão as bruxas de Caer Loyw (Gloucester) – as quais ele está

predestinado a matar como veremos ao final – as responsáveis pelo treinamento de Paredur

como cavaleiro:

- Com sabes tu, feiticeira, que eu sou Paredur? - Estava escrito e destinado que pelas tuas mãos eu haveria de sofrer dores e

aflições e haverias de tomar o meu cavalo e as minhas armas. E também está escrito que comigo hás de permanecer para que te seja ensinado a montar o teu cavalo e a manejar as tuas armas.

(...) Paredur ouviu e guardou o seu juramento e, na companhia da bruxa e com o consentimento da condessa, abalou para o Palácio das Bruxas. Ali se demorou três semanas e, ao cabo de esse tempo, escolheu armas e cavalo e seguiu o seu caminho. (p.294).

Devemos ainda frisar a forte relação das mulheres com a magia, sejam estas retratadas

como feiticeiras ou não. Ainda em Paredur, é uma dama que dá ao herói a pedra que o tornará

invisível para matar o Addanc do Lago (p.310), como já mencionamos anteriormente. Do

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mesmo modo, em A dama da fonte (p.245) é uma donzela loira que dá a Owein um anel que

também torna o herói invisível (também já discutido anteriormente). Esta recorrência de

personagens femininas, na maioria das vezes não nomeadas, relacionadas a acontecimentos ou

objetos mágicos, é um elemento comum nas estórias galesas e irlandesas. Em um grande

número de narrativas as mulheres têm a função de lidar com os feitos mágicos, já que na

maioria das vezes tal função é uma especialidade feminina.

Para finalizar, pensamos que a mitologia celta nos ajuda a esclarecer muitas das

questões aqui levantadas. Considerando que o mito nos transmite, simbolicamente, realidades

passadas (e que, ao transcender essas realidades, expressa as estruturas ideais do pensamento

de um povo), será também pela mitologia – e não somente através de dados históricos

concretos – que chegaremos ao cerne do pensamento de um povo. Esse é o caso dos povos

celtas, pois eles não narraram simplesmente a sua história: sonharam-na, sobretudo. Assim,

sua mitologia, devidamente dela descartadas as deturpações introduzidas pela cristianização

dos textos, é um elemento bastante esclarecedor de seu pensamento. O mito só resiste se é

fecundo, caso contrário é esquecido, visto que constitui uma realidade do pensamento. Como

ensina Markale:

Se pretende-se retomar um raciocínio marxista, o Homem deve conhecer a História, interpretá-la e projetá-la no futuro, considerando as modificações cabíveis. De fato, dentro do domínio celta, a História é o Mito ... a realidade de pensamento constituída pelo mito adquire um valor operacional indubitável, já que ela permite influir sobre a realidade da vida ... a dialética História - torna-se – Mito é ambivalente e pode facilmente transformar-se em Mito – torna-se – História ... o Mito sempre exerceu uma ação sobre a História: caso contrário os grandes personagens da História não teriam agido como agiram (..) 167.(MARKALE, 1989, pp.20-21)

Não pretendemos agora aprofundar a questão mitológica, porém vemos que, de forma

generalizada, as transformações econômicas e sociais então ocorridas influenciaram as

estruturas mentais, que traduziam no mitológico a progressiva secundarização do papel da

167 MARKALE, Jean. La famme celte. (pp.20-21).

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mulher no social. Recuperando rapidamente esta progressão, temos a transformação da

Mulher Sol em Mulher Lua e dos aspectos positivos em negativos e a substituição da Deusa

Mãe/Deusa Terra, que tudo dá, pela Mãe de Deus/Terra Fecundada, secundarizando assim

suas funções, como bem nos mostra o exemplo da Virgem Maria dado pela Igreja, modelo de

submissão a ser seguido. Lembramos, porém, que todas as religiões apresentam deusas e que

estas, apesar das deturpações e progressivo desprestígio, são – como figuras mitológicas –

reveladoras da mulher, pois relacionam-se à posição por ela ocupada nas antigas sociedades

primitivas. Concluímos, então, que as sociedades celtas – onde a sobrevivência de certos

arcaísmos adquiridos das populações autóctones conferia às mulheres um status considerável

– estão no meio termo entre estas sociedades primitivas e as de formação judaico-romano-

cristã.

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4 – A (Re)Construção do Utópico

Ao propor um novo olhar sobre a Idade Média, Jacques Le Goff nos mostra ser

necessário pensar o período de forma mais profunda, considerando diversos aspectos. Dedica

ele atenção especial ao tempo e ao trabalho, já que segundo o autor estes dois seriam aspectos

essenciais das estruturas e do funcionamento das sociedades. Porém, Le Goff destaca a

importância do imaginário: “Para tentar compreender como funciona uma sociedade e... como

ela muda e se transforma, é necessário encarar o aspecto do imaginário” 168.

Nesse sentido, vale recuperarmos aqui algumas observações de Hilário Franco Júnior

sobre as utopias medievais, que já havíamos discutido ao final do terceiro capítulo.

Funcionando – assim como o maravilhoso – como elemento de resistência e transgressão

frente a um presente insatisfatório, as utopias podem ser encaradas como as armas da

imaginação na luta contra a opressão da realidade. Assim, já que entendemos os relatos do

Mabinogion como peças de resistência cultural e elementos relevantes na construção da

identidade do povo galês, vale aqui tentar brevemente discutir de que maneira as principais

manifestações utópicas da Idade Média se encontram refletidas nessas narrativas.

Uma das utopias que Franco Júnior analisa mais detalhadamente é a Utopia da

Abundância, representada pela terra da Cocanha. Inicialmente, Franco Júnior nos chama

atenção para a idéia de Pecado Original presente no ideário cristão, pecado que acarretou um

castigo em dois níveis: o espiritual e o material. No que tange ao aspecto material, o homem,

expulso do Paraíso, passa a ter que conseguir o seu alimento (e o seu sustento) com o “suor do

168 LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. (p.16).

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próprio rosto” 169. Considerando a realidade então enfrentada pelo homem medieval, esse

castigo divino era algo concreto e presente em seu árduo cotidiano. Os parcos recursos

tecnológicos deixavam as populações constantemente à mercê das intempéries, aumentando,

assim, as dificuldades para obtenção de alimentos em quantidade suficiente. Mesmo os

avanços tecnológicos de então não bastaram para evitar os racionamentos, as privações e os

ciclos de grandes fomes em diferentes fases do período medieval. Devemos ainda acrescentar

a esta dura realidade as diferentes pragas e epidemias, contra as quais o homem medieval

lutava quase sem armas. Para nós, um dos momentos mais críticos foi o século XIV com

grandes fomes e a Peste Negra.

Dentro desse contexto, fica fácil compreender o surgimento e o sucesso de uma Utopia

da Abundância, principalmente se a encararmos como uma forma de escapar daquele

cotidiano. Nesse sentido, as diferentes representações dessa utopia são provas incontestes de

sua popularidade. Dentre essas inúmeras representações podemos citar: o Carnaval (seguido

pelo jejum da quaresma), o Graal, a Ilha de Avalon, o Império de Preste João e o País da

Cocanha. Interessa-nos nesse momento examinar a Utopia da Abundância, representada pelo

País da Cocanha, porém devemos ressaltar que todas as diferentes representações têm em

comum um claro e forte aspecto transgressor – numa evidente tentativa de negação e

resistência à conjuntura em que surgiram. Vale ainda lembrar as palavras de Franco Júnior em

relação às diferentes representações dessa utopia:

De fato, mais do que um presente efêmero (festas), e um futuro indeterminado (Milênio) ou em um objeto inencontrável pelo homem comum (Graal), a abundância sonhada parecia estar ao alcance em certos lugares entendidos como concretos, ainda que de localização imprecisa: o Império de Preste João, a Ilha de Avalon, o País da Cocanha. 170

169 FRANCO JÚNIOR, Hilário. As utopias medievais. (p.23) 170 Ibidem (p.41).

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Verificamos, então, que as benesses encontradas nesse utópico País da Cocanha vão

muito além da abundância alimentar. É claro que a fartura de alimentos, principalmente

aqueles aos quais só a elite tinha acesso, é a que mais se destaca a princípio. Contudo, é

importante lembrar que, juntamente com essa orgia gastronômica, também era oferecido aos

que lá chegassem o amor livre (com a vantagem de todas as mulheres serem belas), o acesso a

todo tipo de roupa e calçado e- importantíssimo para o homem comum de então – o ócio, pois,

como se pode ver em Le Fabliaux de Cocagne “O país tem nome de Cocanha / quem ali mais

dorme, mais ganha” 171. Nesse sentido, notamos que as benesses oferecidas pela utópica

Cocanha nos possibilitam perceber as reais necessidades e anseios do homem medieval.

No imaginário celta temos, em diferentes textos, esta idéia de abundância representada

de várias formas; o caldeirão de Dagdá, o Graal, a Ilha de Avalon. No caso específico das

narrativas do Mabinogion essa idéia se encontra geralmente representada por um local. N’Os

Quatro Ramos, Pwyll (no primeiro ramo) é o príncipe de Dyfed, cujos sete cantrevs (cem

comunidades de exploração e cultivo) se notabilizam por sua prosperidade, fartura e

abundância. Além disso, quando troca de aparência com Arawn e passa a ser o senhor de

Annwyn, o lugar também se destaca por sua riqueza e fartura: “(...) E, de todas as cortes que

nesse mundo houvesse, por certo aquela era a mais bem provida de beberes e de manjares, e

também de baixelas de ouro e jóias reais.” (p.26).

É importante notar a insistência na generosidade de Pwyll (ao longo do texto), que

está sempre pronto a repartir com seus súditos a riqueza de seus domínios. No quarto ramo, a

mesma próspera Dyfed passará a ser governada por Manawyddan, após o casamento dele com

Rhiannon (então viúva de Pwyll):

Acabaram a festa e o banquete e depois começaram a andar pelas terras de Dyfed, caçando e folgando. E, ao andarem por aquelas terras, puderam ver que para viver e

171 Le fabliau de Cocagne. Ed.V.Vãnãnen, 1947. apud: Franco Júnior, H. Cit.(p.48).

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morar outras mais aprazíveis não havia, nem melhores para caçadas e montarias, nem outras com tanta cópia de mel e de peixes. (...) (p.77).

Parece-nos bastante significativa aqui a descrição de Dyfed como a terra da

abundância, já que logo a seguir se transformará – através do feitiço lançado por Llwyd – em

terra estéril e deserta. Como já vimos, Manawyddan passará toda a narrativa tentando resolver

este problema (inclusive trazendo o trigo), e só será bem sucedido ao final. Aliás, as

oposições fertilidade x esterilidade, fartura x escassez, abundância x fome parecem ser uma

preocupação constante. É o que percebemos em Lludd e Llefelys, narrativa do segundo grupo.

Tendo seu reino assolado por três pragas, Lludd tenta delas se livrar com a ajuda de seu

irmão. Particularmente a segunda e a terceira pragas estão relacionadas às oposições

mencionadas:

A segunda praga foi um brado que na noite de cada Primeiro de Maio se fez ouvir em todos os lares da Ilha da Britânia. Era um grito que trespassava o coração das gentes e as enchia de pavor. E era de tal sorte que os homens perdiam a cor e a força, as mulheres perdiam o fruto de seu ventre, os mancebos e as donzelas perdiam o tino e o siso, e os animais e as árvores, as terras e as águas se tornavam estéreis. A terceira praga foi assim: por mais provisões que se poupassem, e por mais comida que se preparasse nas cortes e nos paços do rei, e ainda que o arrecadado bastasse para haver de comer e de beber por todo um ano inteiro, nem uma só migalha e nem uma só gota em bom estado se arrecadavam e para alguma coisa serviam, salvo aquilo que na primeira noite se havia comido e havia bebido. (p.142).

Vale ainda relembrar que, na solução apresentada por Llefelys para dar cabo da

terceira praga (que já transcrevemos anteriormente), percebemos a importância de velar e

combater, que pode muito bem ser interpretada como a importância de vigiar o território e

combater os invasores para ter, enfim, restabelecida a normalidade na terra da utópica fartura,

fartura que também está presente em A dama da fonte, estória do terceiro grupo. Ao longo

desta narrativa percebemos a abundância em diversos níveis: nos manjares oferecidos, na

riqueza das locações e também na beleza feminina. É o que nos mostra o relato que Kynon faz

a Cai sobre o castelo que havia visitado em uma de suas demandas:

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- (...) Vinte e quatro donzelas costuravam panos de brocado de seda ao pé de uma janela. E posso dizer-te, Cai, (...) que a menos bela de todas elas era mais bela que a donzela mais bela que jamais viste nesta Ilha da Britânia, e que a menos gentil de todas elas era mais gentil que Gwenhwyvar, a mulher de Artur, quando esta se mostra mais gentil e mais formosa (...). O terceiro grupo de seis donzelas estendeu toalhas por de cima das mesas e nelas dispuseram ricas e variadas iguarias. O último grupo de seis donzelas despiu-me das minhas roupas (...) e vestiu-me com outras novas: camisa, calção e faixa de pano fino; túnica, gibão e manto de brocado de seda amarela, ricamente guarnecidos com galões dourados. (...) De seguida trouxeram-nos bacias de prata com água (...) A mesa era de prata e as toalhas de mesa de pano mui fino. E todas as taças que se viam naquela mesa não havia uma só que não fosse de ouro ou de prata (...) Depois trouxeram-nos manjares (...) que não havia uma só de todas as iguarias e de todas as bebidas de mim conhecidas (...) que ali não estivesse à minha vista (...) (pp.235-236).

Há ainda o festim, que teve lugar no castelo da Dama da Fonte, que levou três anos

para ser preparado e três meses para ser consumido (p.257). Vemos, então, as variadas

manifestações da Utopia da Abundância, em diferentes textos do Mabinogion, refletindo a

constante preocupação do homem medieval a este respeito.

A Utopia da Justiça, representada pela chegada de um novo milênio, também é

analisada por H. Franco Júnior. Segundo o autor, era presente na sociedade medieval uma

preocupação com a prática da justiça 172. Realmente, ao longo das estórias, percebemos

muitas situações nas quais o senhor, príncipe ou rei deve tomar decisões difíceis ou arbitrar

alguma disputa. Também verificamos diversas menções ao fato de um senhor ser sábio e justo

(algumas já exemplificadas anteriormente). Todavia, Franco Júnior assinala que a utopia era o

grande recurso contra a injustiça. Assim, sonhar com a chegada da justiça constituía uma

forma de resistência contra a situação de então. Normalmente, um elemento importante para

alcançar a pretendida justiça era a intervenção de um santo (nos textos mais fortemente

cristianizados). No caso do Mabinogion, temos sempre um herói predestinado, um escolhido,

um eleito (fato que também já discutimos). Esta espera pela chegada de um tempo de justiça

nos apresenta não só a idéia da chegada do milênio mas, principalmente, a reflexão sobre o

sentido de tempo para o homem medieval. Para o autor, convivem no imaginário do homem

172 FRANCO JÚNIOR, H. Cit. (p.53).

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medieval duas concepções aparentemente opostas de tempo. O tempo cíclico – presente nas

sociedades arcaicas, relacionado ao Eterno Retorno e baseado na observação do ciclo vital da

natureza – e o tempo linear – relacionado a uma visão mais clerical que popular, que

pressupõe o momento da Criação, o aparecimento do Messias e o Fim dos Tempos 173. A

mescla dessas duas concepções se apresenta na Utopia da Justiça: o milênio, que implica a

percepção da decadência desse mundo e o encaminhamento para seu conseqüente fim,

pressupondo porém a inauguração, o surgimento de uma nova era. A garantia de que este

novo tempo se constituirá num futuro de justiça para todos se dá também pela presença de um

salvador, um messias, um rei oculto ou herói.

No ideário celta, temos a eterna promessa do retorno de Artur; além disso, geralmente,

há um herói – cujo nascimento é cercado por fatos incomuns – e que na maioria das vezes é

criado por outros que não os próprios pais. Nesse sentido, percebemos no Mabinogion que

alguns personagens cumprem este papel. Pwyll, no primeiro ramo, é aquele que trará justiça

ao derrotar Havgan e tornar-se o senhor de Annwyn. Pryderi, o filho de Pwyll e Rhiannon,

após o conturbado episódio de seu nascimento e desaparecimento (que já discutimos), será

finalmente entregue pelos próprios pais a Pendaran Dyfed, para ser por este criado e educado.

Além de Pryderi ser a criança prodígio que teve sua concepção e nascimento traçados pelas

forças do ‘outro mundo’, veremos que seu governo, após a morte do pai, trouxe ao final

justiça e grande prosperidade para seu povo. Finalmente devemos relembrar Paredur, que

também traz paz e justiça ao matar o Tirano Negro, opressor implacável que estava destinado

a morrer pelas mãos deste herói (episódio que aliás já analisamos).

Dentre as utopias medievais que H. Franco Júnior menciona brevemente temos a

utopia da autonomia, representada por Guilerme Tell. A lenda a respeito deste personagem só

foi fixada literariamente no século XV, embora sua origem se localize em finais do século

173 Ibidem (p.54-56).

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XIII e início do século XIV. Segundo Bergier, Tell é símbolo de seu povo ameaçado em sua

autonomia 174. Teria o personagem se insurgido (entre 1220-1230) contra um burgomestre,

representante do Santo Império Romano Germânico, que através da introdução de novas

normas fiscais e judiciárias acabava com a total autonomia até então desfrutada por essa

comunidade pastoril da região alpina (então produtiva e próspera). Temos então, segundo

Franco Júnior, o caso não da implantação e sim da conservação de uma sociedade considerada

utópica. A relação, em sentido lato, com a situação política do País de Gales nos parece – por

tudo que temos discutido ao longo deste trabalho – clara. A idéia de que é necessário evitar a

invasão por povos estrangeiros ou, em outros momentos, expulsar os estrangeiros invasores

perpassa a maioria das narrativas.

Nesse sentido, nos parece bastante significativo o fato de, em muitos dos contos

analisados, haver sempre personagens jogando xadrez. Chevalier e Gheerbrant chamam a

atenção para a necessidade de, ao analisarmos o simbolismo de xadrez, considerarmos não

apenas o jogo em si mas também o tabuleiro sobre o qual este se desenrola. O simbolismo

desse jogo está claramente relacionado à estratégia guerreira. Seu desenrolar nos apresenta o

combate entre peças brancas e negras, ou seja, entre a luz e a sombra, e o que está em jogo é a

supremacia sobre o mundo. Significando “inteligência da madeira” em todas as línguas

célticas, o xadrez é praticado pelos reis celtas – dizem certos textos – durante um terço de seu

dia. E nesses casos o parceiro é sempre um príncipe ou um alto dignitário, jamais uma

personagem de condição humilde, pois o jogo de xadrez simboliza entre os celtas a parte

intelectual da atividade do rei. Considerado um jogo de reis e também o rei dos jogos, o

tabuleiro de xadrez simboliza, assim, a tomada de controle sobre os adversários e sobre um

território, e também sobre si mesmo, sobre o próprio eu. 175.

174 BERGIER, J-F. Guillaume Tell. Apud: FRANCO JÙNIOR, H. Cit. (p.19). 175 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Cit. (pp.966-967). Cabe aqui uma observação. Em muitas outras passagens os personagens aparecem jogando Gwyddbwyll. Este jogo, embora equivocadamente apareça freqüentemente traduzido como xadrez, não é um jogo de batalha, mas sim um jogo de caça. Como o xadrez, é

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Finalmente, ainda no que tange à questão da autonomia, não podemos esquecer a

tríade de pragas que se abate sobre o reino de Lludd – em Lludd e Llefelys. Refletindo a idéia

do território invadido por sucessivos inimigos, a necessidade de dar fim às pragas simboliza a

urgência de livrar o território dos invasores.Assim, o embate final – entre Lludd e o feiticeiro

culpado pela terceira praga – é emblemático:

- Basta, basta! Já fizeste até hoje mal que sobeje e muitos danos me causaste. Mas agora basta e nada mais hás de fazer, a menos que sejas mais destro que eu no manejo das armas e a tua coragem maior que a minha. Então o outro, sem mais demoras, pousou o cesto no chão e pôs-se em guarda. E logo começou um terrível combate entre os dois. Era de tal maneira que das armas de ambos saltavam chispas de fogo. Por fim Lludd levou a melhor e quis a fortuna que a vitória lhe coubesse, derribando aquele opressor que quedou à sua mercê, entre o seu corpo e o chão. Vencido pela força e pelo valor de Lludd, implorou clemência. (...) E foi assim que Lludd livrou a Ilha da Britânia das três pragas. E desde aquele dia até o fim da sua vida, Lludd, o filho de Belli, governou a Ilha da Britânia na paz e na prosperidade.

O basta definitivo – dado pelo rei – aos sofrimentos impostos pelo invasor é na

realidade um basta ao medo. Ao dar fim às três pragas, Lludd na verdade livra seu povo do

medo da palavra (primeira praga), do medo do inimigo estrangeiro (segunda praga) e do medo

da fome (terceira praga). Como vimos na lenda de Guilherme Tell, é preciso não ter medo, ou

dele livrar-se, para expulsar qualquer tipo de invasor/opressor, pois a principal arma deste é o

medo – que paralisa.

Assim, mesmo readaptadas ao momento histórico e às especificidades do País de

Gales, entendemos que as narrativas do Mabinogion recriam a essência das utopias medievais

aqui discutidas, tendo em vista que fica evidenciada a necessidade da autonomia de um povo

para que a justiça e a paz social tragam a prosperidade almejada.

jogado com peças sobre um tabuleiro, de cujo centro o rei tenta escapar em segurança, já que o grupo que caça (e que não possui um rei) tenta cercá-lo e capturá-lo. Ele é o alvo da caça.

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CONCLUSÃO

Ao longo de nossa pesquisa nos propusemos estabelecer um diálogo com as narrativas

do Mabinogion no sentido de perceber quais os temas mais importantes que delas emergiam,

tendo em vista a relevância das tradições celtas e a recorrente utilização de elementos do

maravilhoso e do utópico.

Com esse objetivo, estruturamos o nosso trabalho em quatro capítulos que nos

possibilitaram traçar um breve panorama da cultura celta (no capítulo I) e do contexto sócio-

político-cultural da Europa e do País de Gales entre os séculos XI e XIV (capítulo II), o que

foi extremamente importante para nossa reflexão sobre o contexto de produção – oral e

posteriormente dos manuscritos que sobreviveram – desses textos. Tentamos ainda traçar um

breve panorama a respeito das diferentes formulações sobre o maravilhoso e o utópico

(capítulo III) para, finalmente, apontarmos nos textos os quatro eixos temáticos que

emergiram com mais destaque (capítulo IV) de nossa leitura: a importância da narração, as

relações entre os poderes mágicos e o poder temporal, o status da mulher e a importância das

linhagens, e as utopias medievais recriadas pelas narrativas.

Pudemos, então, perceber a relevância dada à palavra e ao ato de narrar, não apenas no

universo diegético das estórias analisadas, mas também em relação à História do povo galês,

tendo em vista constituir-se o Mabinogion em um elemento fundamental na construção da

identidade nacional do país de Gales.

Nesse sentido, verificamos a importância dos elementos do maravilhoso (relacionados

à magia e aos poderes sobrenaturais) no imaginário celta, já que são bastante significativas as

relações entre o poder temporal e os poderes mágicos ao longo dos textos.

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Esses dois tipos de poder necessitam sempre – para sua continuidade – de herdeiros,

daí a preocupação com a linhagem e o conseqüente destaque das mulheres nas sociedades

celtas. Vale porém frisar que, vistos como um conjunto, os textos nos apresentam uma visão

do feminino por vezes contraditória, oscilando entre a Mulher-Sol (principal e irradiadora) e a

Mãe de Deus (secundária e simplesmente refletora), o que detectamos ser conseqüência da

mescla de fatores sócio-culturais presentes nos textos.

Finalmente, a presença de determinados elementos utópicos recriados nessas

narrativas nos aponta a relevância – para o imaginário galês de então – de temas como a

abundância, a justiça e a autonomia, evidentemente relacionados às utopias da Cocanha, do

Milênio e de Guilherme Tell (discutidas nesse trabalho a partir do estudo feito por H. Franco

Júnior).

Retomando a importância do imaginário apontada por Le Goff, percebemos que este

se constitui, especialmente no Mabinogion, em elemento importante para a análise e

compreensão de dois outros fatores igualmente fundamentais: o espaço e o tempo. Esses dois,

socialmente falando, nunca são dados a priori, nem tampouco são neutros. São, isto sim,

socialmente construídos como quadros de referência fundamentais das crenças e das ações.

Nesse sentido, os tempos e os espaços são investidos dos valores das sociedades que os

pensam (e que deles se servem).

Vemos então, nas narrativas do Mabinogion, que as ocorrências maravilhosas que se

teatralizam nos espaços (castelos, florestas, montes, planícies...) e o tempo marcado por

indicações mágicas (três, sete, doze, treze) são propositalmente usados para determinar a ação

extraordinária do herói, no sentido de transformá-lo em agente civilizador (aquele capaz de

dar cabo das aventuras e demandas).

O tempo e o espaço são, assim, investidos de valores maravilhosos para configurar

uma geografia excepcional que sinaliza o aparecimento de uma raça/nação superior. Nesse

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sentido, na cadeia de aventuras percorrida pelos heróis circulam personagens maravilhosas

que confirmam a excepcionalidade do evento.

Em recente entrevista ao jornal O Globo (em 27/05/2006 no caderno Prosa e Verso), o

pesquisador venezuelano Fernando Báez – autor de História universal da destruição dos

livros - afirma que: “o livro não é destruído como objeto físico, e sim como vínculo da

memória (...) O livro é destruído com a intenção de aniquilar ... o patrimônio de idéias de uma

cultura inteira.”. As palavras de Báez imediatamente nos fizeram pensar sobre a importância

da preservação de textos como os do Mabinogion, e da relevância da releitura dessas

narrativas hoje – dentro e fora do País de Gales. Hoje e sempre o homem luta por abundância,

justiça, autonomia e soberania. Nesse sentido entendemos que a leitura desses contos, além de

nos reconduzir ao passado, nos reconduz também às mesmas indagações sobre o nosso

presente.

Concluindo, acreditamos que nessas narrativas do Mabinogion os narradores

(anônimos) estão em busca de um texto, ou melhor, da palavra que os recoloque - como

galeses – num lugar, utópico, já que o lugar histórico e geográfico que ocupam ainda não

possui (ou não possui mais) a identidade almejada. Sempre atentos à herança celta-irlandesa,

os onze relatos (que se entrecruzam) reclamam a adesão do ouvinte/leitor ao universo

representado e buscam desenhar um país desejável, o país galês.

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B I B L I O G RA FIA

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ANEXO 1 Os Quatro Ramos do Mabinogion

Resumo

1 – Pwyll Príncipe de Dyfed

• Pwyll é o senhor dos sete reinos de Dyfed.

• Sai para caçar cervos com sua matilha

• Encontra uma outra matilha extraordinária

• Pequeno incidente entre ele e o dono da outra matilha, que é Arawn, rei de Annwn.

• Após breve diálogo Arawn exige que Pwyll, como reparação pelo incidente, tome seu

lugar e dirija seu reino por um ano e derrote seu inimigo Hafgan, e lhe dá instruções

de como fazê-lo.

• A empreitada é bem sucedida e Pwyll passa a ser conhecido também como Pwyll

Head of Annwn.

• Retorna a seu reino e num passeio com seus homens a uma pequena colina avista uma

misteriosa Dama a cavalo. Embora cavalgue lentamente ninguém consegue alcançá-la,

exceto Pwyll - o escolhido. A dama é Rhiannon filha de Hefeydd the Old.

• Rhiannon diz que será dada em casamento, contra a sua vontade, a Gwawl Son of

Clud – porém ela deseja realmente se casar com Pwyll. ,

• Pwyll concorda em encontrar novamente a Dama, dentro de um ano, numa grande

festa no reino do pai desta.

• Usando a Lei do Costume, Gwawl consegue fazer com que Pwyll lhe dê Rhiannon em

casamento – marcam novamente o prazo de um ano para novo festejo.

• Nesse festejo, através de um truque com uma sacola mágica, conseguem reverter a

situação. Pwyll e Rhiannon finalmente se unem.

• Passam três felizes anos de casamento, porém sem que nasça um herdeiro. Os homens

mais próximos a Pwyll se preocupam e sugerem que ele se case com outra. Pwyll pede

um ano de prazo.

• No prazo combinado Rhiannon dá a luz um menino. Na primeira noite de vida do

menino este desaparece misteriosamente, embora sei mulheres, além da mãe,

estivessem no quarto com o bebê.

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• Para não serem culpadas pelo desaparecimento da criança fazem todos acreditarem,

inclusive a própria Rhiannon, que esta devorou o menino. È dada a Rhiannon uma

penitência que ela deverá cumprir o resto da vida.

• Enquanto isso nos domínios de Teyrnon Twryf Liant, senhor de Iscoed, havia uma

égua que dava cria todo mês de maio, porém nunca se viam os potros.

• Certa noite de maio, Teyrnon decide fazer vigília para descobrir o mistério.

• Nasce um potro belo e forte e imediatamente, após um grande estrondo, uma enorme

garra atravessa a janela e leva o potro. No mesmo momento, Teyrnon encontra na

porta o bebê.

• Sem saberem quem é o menino, Teyrnon e sua esposa decidem criá-lo e o batizam

com o nome de Gwri Golden-hair. Todos notam que o menino apresenta um

desenvolvimento físico fora do normal. Aos dois anos de idade já aparentava seis.

• Após quatro anos o casal presenteia o menino com o cavalo nascido no dia de seu

aparecimento. Nesse período eles tomam conhecimento do que sucedeu a Rhiannon e

de sua penitência.

• Teyrnon se dirige ao reino de Pwyll, desfaz o mal entendido, devolve o menino e livra

Rhiannon de seu suplício.

• O menino passa a ser chamado Pryderi (care, thoughth) filho de Pwyll (sense) Head of

Annwn.

• Após muitos anos e a morte de Pwyll, Pryderi passa a reinar com grande sucesso,

sempre amado por todos e aumentando seus domínios, até o dia em que se casa com

Cigfa.

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2 – Branwen, a Filha de Llŷr

• Bendigeidfran, filho de Llŷr, governava toda a Grã-bretanha. Tinha como irmãos:

Manawydan e dois outros por parte de mãe – Nisien (sempre conciliador) e Efnisien

(sempre maledicente).

• Estava uma tarde com seus irmãos, sentados sobre uma rocha observando o mar,

quando avistaram treze navios que vinham do sul da Irlanda. Os navios

acompanhavam Matholwch, o rei da Irlanda.

• Matholwch estava vindo pedir Branwen, filha de Llŷr e irmã de Bendigeidfran, para

selar a união da Grã-Bretanha (The Island of the Mighty) e da Irlanda.

• Branwen, a mais bela donzela do mundo, foi concedida a Matholwch. Ela foi uma das

três matriarcas da ilha.

• Foi acertado que a união aconteceria em Aberffraw, para onde todos se dirigiram.

Acomodaram-se em tendas, pois Bendigeidfran nunca se abrigava entre quatro

paredes. Após as comemorações a união foi consumada.

• Efnisien, após descobrir que Branwen foi concedida a Matholwch sem a sua

acordância, sente-se insultado e decide insultar também o rei da Irlanda, causando a

este grande prejuízo.

• Ofendido, o rei da Irlanda decide partir imediatamente. Ao tomar ciência do ocorrido

Bendigeidfran propõe uma reparação. Após algumas conversas chegam a um acordo e,

além de outras coisas, Matholwch recebe um caldeirão com poderes mágicos. O

caldeirão era capaz de salvar alguém gravemente ferido, porém a pessoa ficava muda,

perdia o poder da fala.

• Bendigeidfran explica a Matholwch que o caldeirão veio da Irlanda. Matholwch por

sua vez explica o episódio da Iron House.

• Matholwch parte com Branwen para a Irlanda. Ela é muito bem recebida e agrada a

todos que a visitam distribuindo jóias e riquezas. Após um ano ela engravida e dá a luz

um menino, Gwern son of Matholwch.

• No segundo ano da união, as pessoas próximas ao rei cobram dele uma vingança

contra os galeses que o ofenderam.

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• A vingança dos irlandeses: Branwen foi expulsa do quarto do marido, obrigada a

cozinhar diariamente para toda a corte e ao final do dia levar um soco (bofetada) na

orelha dado pelo açougueiro. Além disso, todas as embarcações foram proibidas de ir

ao País de Gales, e todos os galeses que lá aportavam eram imediatamente

aprisionados.

• Esses fatos ocorreram durante três anos. Durante esse tempo Branwen criou um

pássaro (estorninho ou zorral) que voou para Gales levando sob a asa uma carta, na

qual Branwen contava tudo o que estava acontecendo.

• Ao lerem a carta os galeses decidem partir para a Irlanda e deixam sete cavaleiros

dirigindo a Grã-Bretanha e Cradawg son of Brân como líder. Os sete homens eram:

Hefeydd the Tall, Unig Strong-Shoulder, Iddig son of Anarawd Round-Hair, Ffodor

son of Erfyll, Wlen Bonelip, Llashar son of Llaesar Llaesgyngwyd e Pendaran Dyfed.

• Os criadores de porcos de Matholwch avistam da praia um conjunto estranho e

maravilhoso: uma montanha cercada por uma floresta com um lago de cada lado da

montanha – tudo se move.

• Branwen, ao decifrar a visão, diz que é Bendigeidfran, seu irmão, atravessando a vau

as águas, já que ele não cabe em nenhum navio.

• Os irlandeses decidem atravessar o rio Llenon e destruir a ponte para que os galeses

não os alcancem depois de aportar na praia. Porém Bendigeidfran serve de ponte para

todos os seus fazerem a travessia.

• Após a travessia são aparentemente bem recebidos pelos irlandeses. Estes se propõem

a construir uma casa para Bendigeidfran e passar o trono para o filho de Branwen,

sobrinho dele. Porém tudo não passa de um ardil para encurralar os galeses.

• Quando a casa fica pronta e todos nela se reúnem, Efnisien lança o filho de Branwen e

do rei da Irlanda ao fogo. Há uma grande batalha, o caldeirão é destruído por Efniesen.

• Bendigeifran é ferido por uma lança envenenada, apenas sete homens escapam:

Pryderi, Manawydan, Glifeu son of Taran, Taliesin, Ynawg, Gruddieu son of Muriel,

Heilyn son of Gwyn the Old.

• Bendigeifran ordena que eles cortem sua cabeça e a levem a White Mountain em

Londres, e lá a enterrem com a face voltada para a França.

• No trajeto, que durará sete anos segundo o próprio Bendigeifran, os pássaros de

Rhiannon cantarão sobre eles, e eles passarão quatro anos em Gwales sem que o

tempo afete a eles ou a cabeça, até o momento que abrirem a porta em direção a Aber

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Henfelen. Aí, terão que abandonar o local e partir rapidamente para Londres e enterrar

a cabeça.

• Branwen os acompanha, mas morre de desgosto em Aber Alaw e é enterrada.

Descobrem no caminho que os sete cavaleiros e Cradawg, que ficaram como

guardiões da Grã-Bretanha, tinham sido derrotados por Caswallawn, com um manto

mágico que o tornava invisível.

• Tudo acontece como previsto por Bendigeifran durante sete anos. Porém, após os

quatro anos em Gwales – durante os quais o tempo não os castigou e durante os quais

não sofreram com as tristes lembranças – Heilyn decide abrir a única das 3 portas que

não deveria.

• Tiveram que partir com a cabeça para Londres onde esta foi enterrada no White

Mountain.

• A narrativa se encerra com uma explicação mitológica para uma suposta divisão da

Irlanda em cinco partes.

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3 – Manawydan, o Filho de Llŷr

• Após enterrar a cabeça de seu irmão Bendigeifran em Londres (na White Mountain),

faro ocorrido no final da narrativa anterior, Manawydan se dá conta de sua incomoda

situação: encontra-se despossuído de tudo.

• Pryderi oferece como solução ao amigo o seguinte: que ele se case com Rhiannon (sua

mãe viúva) e assim se torne senhor dos sete reinos de Dyfed. Manawydan aceita e eles

vão ao encontro de Rhiannon em Dyfed.

• Rhiannon também aprova a idéia, a união é consumada e todos aproveitam a

abundância, beleza e fartura da região.

• Pryderi e Manawydan vão a Oxford se avistar com Caswallawn. Quando retornam

dirigem-se a Gorsedd Arberth acompanhados de suas esposas, respectivamente Cigfa e

Rhiannon. Quando todos lá estão sentados em meio a mais um convescote, ouve-se

um trovão.

• A magnitude do estrondo traz consigo uma espessa bruma, que impede

momentaneamente as pessoas de se verem. Após a bruma todo o local se enche de luz.

Os dois casais então percebem que o trovão trouxe ao local total desolação. Tudo se

torna deserto e desabitado (sem homem ou criação).

• Os quatro passam então um ano vivendo da pesca e da caça de animais selvagens, e

completamente isolados.

• Decidem partir para Lloegyr (England), e dirigem-se a cidade de Hereford. Lá

Manawydan transforma-se num exímio fabricante de selas, fazendo com que todos os

outros percam a freguesia, o que desperta a ira de todos os outros fabricantes. Sabendo

que os outros artesãos pretendem matá-los, Manawydan – querendo evitar confronto –

decide que os quatro devem se mudar para outra cidade.

• Estando já em uma segunda cidade, decidem fabricar escudos. Mais uma vez

Manawydan torna-se o melhor de todos, tirando a freguesia dos outros artesãos.

Novamente, para não serem mortos e evitar confronto, mudam-se para outra cidade.

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• Nesta terceira cidade decidem fabricar sapatos. Manawydan torna-se, mais uma vez, o

melhor da cidade ficando conhecido como um dos Three Gold Shoemakers. Obrigados

novamente a sair decidem voltar a Dyfed.

• Em Dyfed, completamente deserta, passam mais um ano vivendo da pesca e da caça.

• Certa manhã, ao sair para caçar com seus cães, Pryderi e Manawydan percebem que

estes se assustam com algo escondido em um matagal. Surge então, repentinamente

saído do matagal, um javali selvagem, brilhante e branco.

• Após o impacto inicial, perseguem o javali até uma fortificação (Caer), o javali e os

cães entram na fortificação – que se encontra em um local onde antes nada havia -, a

partir de então não são mais ouvidos.

• Contrariando as orientações de Manawydan, Pryderi decide entrar na fortificação. Lá

dentro vê uma fonte cercada de mármore, ao pé da fonte um vaso atrelado a quatro

correntes que ascendiam ao ar e das quais não se avistava o final. Impressionado com

a locação e atraído pela beleza do vaso, Pryderi aproxima-se dele e, ao tocá-lo, fica

imediatamente imobilizado e sem fala, assim permanecendo dali em diante.

• Após esperar por Pryderi do lado de fora da fortificação por quase todo o dia,

Manawydan desiste e volta para casa sozinho. Ao saber do ocorrido, Rhiannon decide

ir atrás de Pryderi. Ao entrar e vê-lo, Rhiannon também toca o vaso e, igualmente a

Pryderi, fica imobilizada e muda. Assim permanecem até que, ao chegar a noite, ouve-

se novamente um outro trovão, que traz outra espessa bruma fazendo desaparecer a

fortificação e com ela Rhiannon e Pryderi.

• Sozinhos, Manawydan e Cigfa decidem partir para Lloegyr (England). Lá

permanecem durante um ano, depois do qual são obrigados a partir devido ao sucesso

de Manawydan como sapateiro. Ao retornarem a Dyfed, Manawydan leva consigo

trigo, e decide estabelecer-se em Arberth.

• Sempre pensando no amigo e na esposa, planta três campos de trigo e aguarda a

passagem do tempo para a colheita. Quando chega a época, os campos de trigo de

Manawydan haviam crescido como nenhum outro, eram um espetáculo nunca visto.

• Porém, sempre que planejava a colheita de um dos campos de trigo para o dia

seguinte, ele os encontrava completamente devorados, destruídos. Isso aconteceu com

os dois primeiros campos. Então, Manawydan resolveu vigiar o terceiro campo

durante toda a noite anterior a colheita.

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• A meia-noite, em meio a um terrível estrondo, surge um poderoso bando de ratos,

enormes e numerosos, para devorar o trigo. Atordoado, Manawydan pouco pôde fazer,

porém conseguiu capturar um rato enorme, aquele que julgou mais gordo e mais lento.

Colocou-o dentro de sua luva e amarrou-a bem. Voltou para casa e resolveu enforcar o

rato, por ser este um ladrão que merecia tal castigo.

• Quando já tinha preparado praticamente tudo para enforcar o grande rato, aconteceu o

que havia sete anos não acontecia em seus domínios: ele avistou um clérigo vindo em

sua direção. Após breve troca de palavras o homem tenta demovê-lo da idéia de

enforcar o rato, oferecendo-lhe uma libra, mas Manawydan mantém-se firme.

• Quando prosseguia nos preparativos para o enforcamento, surge a cavalo um padre

que tenta impedi-lo oferecendo-lhe três libras. Sem sucesso.

• Finalmente, quando já havia colocado a corda no pescoço do rato para enforcá-lo,

apareceu um bispo oferecendo-lhe sete libras para evitar o enforcamento, recusadas. A

oferta vai aumentando sucessivamente para vinte e quatro libras, todos os cavalos que

ele pudesse avistar além do carregamento que estes traziam.

• Após as recusas Manawydan exige a volta de Rhiannon e Pryderi, o fim do

encantamento maldito e saber a verdadeira identidade do rato para libertá-lo. Descobre

então que o homem com o qual conversa é Llwyd son of Cil Coed, e o rato sua esposa.

O homem ainda revela que foi ele quem lançou o encantamento sobre Dyfed para

vingar Gwawl, o filho de Clud. A vingança recaiu sobre Pryderi por tudo que o pai

deste, Pwyll, fez Gwal sofrer quando da celebração de sua união com Rhiannon (mãe

de Pryderi).

• Todo o encantamento é desfeito, os domínios voltam ao normal, Rhiannon e Pryderi

retornam, e Manawydan devolve a esposa de Llwyd que, com uma varinha mágica,

devolve a ela a forma humana.

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4 – Math, o Filho de Mathonwy

• Math son of Mathonwy governava Gwynedd e Pryderi son of Pwyll governava vinte e

um reinos ao sul.

• Math vivia com uma limitação: a não ser que estivesse em período de guerra, deveria

viver com os pés repousados sobre o colo de uma donzela. No início da narrativa a

donzela que o acompanhava era Goewin daughter of Pebin of Dôl Bebin.

• Estava então Math em Arfon. Com ele estavam seus sobrinhos: Gilfaethwy e Gwydion

sons of Dôn e seus guerreiros que circulavam pelos domínios, substituindo Math.

• Gilfaethwy ficou profundamente apaixonado pela donzela, Goewin. Questionado pelo

irmão, relutou em admitir a verdade pois Math tinha o poder de escutar qualquer coisa

que as pessoas falassem, não importa onde estivessem, de acordo com a direção do

vento.

• Gwydion traça um plano para reunir as tropas de Gwynedd, Powys e Deheubarth,

fazendo com que assim o irmão possa encontrar e ter a donzela amada.

• Plano de Gwydion: conta a Math que Pryderi recebeu uns animais extraordinários,

chamados Hobeu (porcos). Propõe a Math ir até Pryderi, em meio a grupo de doze

pessoas disfarçado de bardo, e assim pedir os animais de presente.

• Gwydion coloca o plano em ação, vai até o sul, é bem recebido como o principal

bardo do grupo, encanta a todos com suas estórias e pede os animais de presente.

• Pryderi explica o acordo que fez com seu povo: não pode dar os animais até que eles

tenham dobrado em número. Gwydion propõe na manhã seguinte uma troca. Oferece

pelos animais uma partida valiosa de garanhões e galgos, além de vários artefatos

(selas, bridões, etc...) de ouro. Tudo porém é ilusório, criado através de magia. Sem

saber, Pryderi aceita, e Gwydion e seu grupo partem rapidamente com os animais, já

que o encantamento dura somente um dia.

• O grupo chega com os animais aos domínios de Math, constroem em uma das

localidades um chiqueiro para abrigar os suínos e vão ao encontro de Math. Tomam

conhecimento que Pryderi reuniu suas tropas e vem atrás dos animais, se equipam e

partem para Pennard em Arfon.

• Nessa mesma noite, Gilfaethwy tem relações forçadas com a donzela Goewin na cama

de Math.

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• Há uma batalha entre os homens de Math e os de Pryderi. Há posteriormente uma

trégua, durante a qual fica decidido que a luta deve se dar apenas entre Gwydion e

Pryderi.

• O duelo entre os dois ocorre e, por sua força e seu valor, mas também através de

magia e encantamento, Gwydion vence a luta e Pryderi morre. Os homens do sul

retornam a suas terras tristes e lamentosos.

• Math descobre o que aconteceu a Goewin decide punir seus sobrinhos Gwydion e

Gilfaethwy, utilizando-se para isso de um encantamento.

• Primeira parte da punição: transforma os dois sobrinhos em um cervo e uma corsa,

respectivamente, para que tenham relações entre si. Retornam após um ano com uma

cria que é entregue a Math, que o batiza com o nome de Hyddwn.

• Segunda parte da punição: transforma os irmãos em um casal de suínos para que

tenham relações. Retornam após um ano com uma cria que é entregue a Math, que o

batiza com o nome de Hychdwn.

• Terceira parte da punição: transforma os irmãos em um casal de lobos para que

tenham relações. Retornam após um ano com uma cria que é entregue a Math que o

batiza com o nome de Bleiddwn. Fim do castigo.

• Os irmãos sugerem a Math que ele busque outra donzela e apontam Aranrhod,

sobrinha de Math e irmã deles, como candidata.

• Math pede a Aranrhod que pise sobre uma varinha mágica para provar sua castidade.

Assim que ela o faz, imediatamente dá a luz um menino de fartos cabelos louros.

Desmascarada, foge e ao passar pela porta deixa cair de seu corpo algo muito

pequeno, quase imperceptível. Gwydion vê e discretamente o recolhe e o embrulha em

um pedaço de seda, depois o guarda em um pequeno cesto ao pé de sua cama.

• Math acolhe o menino de fartos cabelos louros e o batiza de Dylan.

• Daquele algo pequeno e misterioso guardado por Gwydion nasceu um outro menino.

Este foi sendo por ele criado e seu crescimento descomunal impressionava a todos.

• Gwydion leva o menino até Aranrhod, o que muito a aborrece, ela lança então um

encantamento sobre o menino: que ele não teria um nome até que ela pessoalmente o

nomeasse.

• Através de um truque de magia Gwydion consegue que Aranrhod dê um nome ao

menino: Lleu Llaw Gyffes. Ao perceber que foi ludibriada, ela lança outro

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encantamento sobre o menino: que ele não teria armas até que ela as desse a ele

pessoalmente.

• Novamente Gwydion usa seus poderes e consegue que Aranrhod dê armas ao rapaz.

Percebendo que foi enganada mais uma vez, ela lança outro encantamento: que ele

nunca teria uma esposa da raça humana.

• Gwydion vai com o rapaz até Math e conta todo o ocorrido. Math propõe, então, que

os dois juntos, utilizando os grandes poderes mágicos que possuem, conjurem uma

esposa para o rapaz a partir de flores. Eles então o fazem e batizam a moça de

Blodeuedd. Além disso, Math doa ao rapaz um território.

• Lleu Llaw Gyffes passou então a viver com Blodeuedd muito feliz no território que

recebeu e Math, era um bom governante e bem quisto por todos.

• Então, certa vez, deixa sua esposa em sua corte e faz uma viagem para ter com Math.

Nesse mesmo dia, sem o marido na corte, Blodeuedd – por gentileza e obedecendo ao

costume local – permite que Gronw Bebyr, Lord of Penllyn, pernoite em seu castelo

após este ter passado o dia caçando nas redondezas.

• Blodeuedd e Gronw Bebyr imediatamente se apaixonam e dormem juntos, Na segunda

noite em que passam juntos Gronw Bebyr traça um plano: sugere a amada que

descubra exatamente como deveria se dar a morte do marido – já que existia uma

predição sobre isso -, usando como desculpa o excesso de amor e zelo.

• Após passarem três noites juntos o casal de amantes se separa e, no mesmo dia da

partida de Gronw Bebyr, Lleu Llaw retorna a seus domínios.

• Logo na primeira noite da volta do marido, Blodeuedd coloca o plano em ação.

Fingindo preocupação, questiona o marido sobre as condições de sua possível morte.

Lleu Llaw, confiando na esposa, descreve com todos os detalhes a situação e todos os

elementos necessários para que alguém conseguisse matá-lo.

• Evidentemente, apesar da dificuldade em fazer coincidir todos os detalhes, Blodeuedd

e Gronw armam uma cilada para Lleu Llaw. Este, embora ferido, não morre.

Transforma-se em uma águia, solta um grito temível e desaparece. Após o

desaparecimento do marido, Blodeuedd e o amante retornam a corte. No dia seguinte

Gronw passa a ser o governante dos domínios que pertenciam a Lleu Llaw.

• Math e Gwydion tomam conhecimento do ocorrido e ficam extremamente tristes e

magoados. Gwydion resolve sair a procura de Lleu Llaw, e sem descanso vasculha os

territórios de Gwynedd, Powys até chegar a Arfon.

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• Chegando a Arfon, Gwydion utiliza sua astúcia, sua magia e sua grande habilidade

como bardo para encontrar o sobrinho. Ao encontrá-lo, utiliza sua varinha mágica para

trazê-lo de volta a forma humana.

• Muito debilitado, Lleu llaw é levado para a fortaleza de Math, onde se recupera e

deixa claro que quer vingança.

• Gwydion reúne as tropas de Gwynedd e parte para o castelo onde está Blodeuedd. Está

tenta escapar porém Gwydion consegue capturá-la e, como castigo, ao invés de matá-

la a transforma em uma coruja.

• Gronw Bebyr foge para Penllyn e tenta negociar, oferecendo a Lleu Llaw vários bens

(territórios, ouro, prata) como reparação pelo mal causado. A oferta é obviamente

recusada. Lleu Llaw exige que eles retornem ao local da cilada e que Gronw assuma a

posição em que ele – Lleu – se encontrava na hora em que foi ferido, para que Lleu

pudesse alvejá-lo com a seta.

• Gronw Bebyr ainda tenta que um de seus homens fique em seu lugar para ser ferido,

porém todos se recusam. Por isso passaram a ser conhecidos como um dos Three

Disloyal War-Bands.

• Sem outra alternativa, dirigem-se para o local da cilada e, evidentemente Gronw é

morto. Lleu Llaw Gyffes volta a governar seus domínios com equilíbrio e

prosperidade tornando-se, posteriormente, também governante de Gwynedd.

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ANEXO 2 Os Quatro Contos Nativos Independentes

Resumo

1 – O Sonho de Macsen Wledig

• Macsen Wledig era imperador de Roma.

• Ele estava caçando em um vale acompanhado por trinta e dois reis que eram seus

vassalos. Sentiu sono e foi repousar sob uma proteção feita por seus homens com

escudos e lanças.

• Macsen teve um sonho. Neste sonho viu todo o trajeto (longo e complicado) que o

levava até um castelo onde encontrava a donzela mais linda que já se viu. Eles se

abraçavam e se beijavam e ele, então acordava.

• A partir de então, sempre que acordado, o imperador torna-se triste por não ter a

donzela dos seus sonhos. A única atividade que o interessa é dormir, pois dormindo

sonha com a donzela.

• Questionado sobre sua permanente tristeza, ele reúne vários de seus homens. Conta a

eles o motivo e decidem enviar mensageiros, durante três anos, à três diferentes partes

do mundo, para procurarem o sonho do imperador. Porém nada encontram.

• Numa segunda tentativa retornam ao local da caçada, onde o imperador teve o sonho

pela primeira vez, para que ele se recorde da direção a seguir. O imperador consegue

se recordar da direção.

• Os mensageiros então seguem o caminho do sonho e, finalmente, encontram o castelo

e nele a donzela. Os mensageiros relatam à donzela todo o sofrimento do imperador.

Embora relutante a princípio, ela acredita no que ouve e aceita o amor do imperador.

Contudo exige que Macsen Wledig vá pessoalmente ter com ela no castelo.

• Ao saber da exigência, o imperador parte imediatamente em direção ao castelo,

aproveitando para no caminho atravessar o oceano e conquistar a Ilha da Britânia.

Chega ao castelo e une-se à donzela. Na manhã seguinte ela cobra o seu dote de

donzela.

• Os pedidos da donzela foram os seguintes: a Ilha da Britânia para seu pai (do Mar do

Norte até o Mar da Irlanda); para si queria três castelos maiores (três fortalezas), a

serem erguidos em três pontos diferentes, por ela escolhidos, da Ilha da Britânia.

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• O maior e mais forte (erguido em Arvon), foi todo construído em cima de terra

mandada trazer de Roma, para que o imperador pudesse dormir, acordar e caminhar

em solo romano.

• Elen, a donzela, mandou também construir diversas estradas reais que ligassem os

castelos a diferentes pontos da ilha. As estradas ficaram conhecidas como as estradas

de Elen Luyddawc (Elen, a condutora de exércitos).

• O imperador passou sete anos na ilha. Pelo costume romano de então, se um

imperador passasse sete anos fora de Roma, em um dos territórios conquistados,

perdia o posto e o direito de retornar à Roma, devendo permanecer no território para

sempre.

• O novo imperador, empossado no lugar de Macsen, enviou a ele uma carta

ameaçadora. Macsen decidiu então partir com suas hostes para Roma. Durante o

percurso conquista a França, a Borgonha e todas as terras que encontrou pelo caminho.

Finalmente acampa diante da cidade de Roma.

• Após um ano de cerco à cidade, a conquista desta pelas hostes de Macsen parecia

distante e impossível. Porém os irmãos de Elen vieram, da Ilha da Britânia, em seu

auxílio. As hostes que trouxeram eram tão corajosas que cada homem valia por dois

soldados romanos.

• Em virtude de uma inteligente estratégia dos irmãos de Elen, a cidade de Roma é

conquistada e entregue a Macsen. A partir daquele momento, Macsen colocou seus

exércitos à disposição dos irmãos de Elen (Kynan e Aedon), para que estes

conquistassem para si os territórios que quisessem.

• Após muitos anos de conquistas, e já com os cabelos grisalhos, os irmãos decidiram

estabelecer-se. Aedon retornou para o local onde nasceram, e Kynan e seus homens

resolveram ficar nas terras que haviam agora conquistado totalmente. Decidiram então

cortar a língua das mulheres para que elas não corrompessem o idioma que falavam, e

deram àquela tera o nome de Brytaen Llydaw (metade silenciosa), e seus homens

foram chamados Brytanieid.

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2 – Lludd e Llevelys

• Beli, o Grande tinha quatro filhos, dentre eles Lludd e Llevelys. Lludd, o mais velho,

após a morte do pai, torna-se rei da Ilha da Britânia. Era um bom guerreiro e muito

generoso. Llevelys, após casar-se, torna-se rei da França. Era sábio e prudente.

• Após algum tempo, três pragas se abateram sobre a Ilha da Britânia:

1. Um povo, denominado Coranieid, veio viver no território. Tinham a capacidade de

escutar tudo o que fosse dito por qualquer pessoa e em qualquer lugar do território.

Logo, nada se podia fazer contra eles.

2. Um grito apavorante que se escutava em toda a noite do 1o de maio. Tal grito

atravessava o coração das pessoas, enchendo-as de pavor e tornando todos (homens,

mulheres e animais) e tudo (solo, vegetação) estéreis.

3. Todas as provisões preparadas na corte e nos castelos do rei desapareciam na manhã

seguinte, independente da quantidade.

• Lludd então resolve pedir ajuda ao irmão, Llevelys. Encontram-se em pleno mar para

conversar. Mesmo assim Llevelys sugere que conversem através de um corno de

bronze, para que o vento não leve as palavras e os outros as escutem. Llevelys diz

então ao irmão o que deve fazer para dar fim a cada uma das pragas.

• Solução para a primeira praga: Llevelys dá ao irmão um punhado de estranhos insetos.

Diz a ele que deve guardar uma parte dos insetos para fazer uma criação (caso haja

necessidade de utilizá-los novamente. A outra parte deve ser moída e misturada à

água. Ao chegar ao seu reino, Lludd deve convocar uma assembléia, com os dois

povos (o seu e os Coranieid). Quando todos estiverem reunidos, ele deve derramar a

água mágica em cima de todos, só os Coranieid morrerão.

• Solução para a segunda praga: o grito pavoroso que se ouve é de um dragão, do

próprio território, que está lutando com um outro dragão estrangeiro que tenta vencê-

lo, por isso grita. Sugere uma série de procedimentos para capturar o dois dragões e

enterrá-los, dentro de uma arca de pedra, no mais fundo da terra no ponto central da

Ilha. Enquanto se acharem enterrados não haverá praga que se abata sobre a Ilha da

Britânia.

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• Solução para a terceira praga: as provisões desaparecem pois um poderoso feiticeiro as

rouba. Consegue sempre roubar pois seus encantamentos põem todos a dormir. Sugere

uma série de medidas para que Lludd consiga manter-se em vigília e, finalmente,

duele e vença definitivamente o feiticeiro.

• Após livrar a Ilha da Britânia das três pragas, Lludd governou com paz e prosperidade.

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3 – Culhwch e Olwen

• Kilydd, filho do príncipe Kyleddon Wledig, casou-se com Goleuddydd, filha do

príncipe Anlawd Wledig. O povo rezava para que tivessem herdeiros. Ao engravidar,

Goleuddydd enlouquece e passa a vagar por locais desabitados.

• Ao chegar a hora do parto, ela recobra a lucidez e se aproxima de um porqueiro – que

tocava um rebanho de suínos – e dá à luz. Assim, em meio aos porcos, nasce Culhwch

(esconderijo de porcos). Após o parto ela adoece e morre.

• Killydd casa-se novamente. Após algum tempo Killydd e a nova esposa mandam

trazer para junto de si o filho que ele tinha do primeiro casamento, Culhwch.

• A madrasta faz então uma predição com relação ao futuro do rapaz: que ele só teria

uma mulher se conquistasse Olwen, a filha do gigante Yspaddaden Penkawr.

• Ao ouvir as palavras da madrasta, o rapaz é imediatamente tomado por um amor

incontrolável pela donzela mencionada, embora jamais a houvesse visto.

• Ao explicar ao pai o motivo de sua aflição e o vaticínio da madrasta, Culhwch recebe

dele as orientações para a solução de seus problemas. Killydd diz ao filho que ele deve

procurar Artur, que é primo irmão do rapaz, para que este proceda ao ritual de seu

primeiro corte de cabelo. Após o ritual, ele deve pedir ao rei auxílio para a conquista

da desconhecida amada, como uma prenda.

• Culhwch parte ricamente equipado para a corte de Artur. Após longas saudações o

rapaz apresenta ao rei seus pedidos, que são prontamente atendidos por Artur. O rei

designa então alguns de seus homens, muitos com poderes excepcionais, para

auxiliarem o rapaz na empreitada.

• Culhwch, com a ajuda dos homens de Artur, chega ao local onde está o castelo do

Gigante. Fica então sabendo, por um casal de pastores, que seu intento é tarefa

impossível, pois todos que tentaram se aproximar de Olwen haviam sido mortos por

Yspaddaen Penkawr.

• Depois de três tentativas conseguem que o Gigante finalmente imponha suas

condições para conceder a mão de Olwen a Culhwch. Yspaddaden então diz que

concorda, desde de que o rapaz cumpra as exigências que fará. Culhwch concorda, e o

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Gigante lista quarenta feitos que o rapaz deveria alcançar (todas tarefas fantásticas,

impossíveis de serem realizadas). Lembra ainda que tudo deve ser realizado sem que o

rapaz durma uma noite sequer.

• Depois de longas e intermináveis aventuras, Culhwch retorna ao castelo de

Yspaddaden. Com as tarefas cumpridas (a narrativa não mostra a execução de todas),

o Gigante se vê obrigado a conceder a mão de sua filha ao rapaz, não sem antes frisar

que ele deve a conquista da donzela a Artur. Yspaddaden, então, tem a cabeça cortada

e pendurada junto às muralhas.

• Culhwch e Olwen finalmente se unem e vivem juntos para sempre.

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4 – O Sonho de Rhonabwy

• Madawc e Iorwerth eram irmãos, filhos de Maredudd. Madawc era rei de Powys, por

isso Iorwerth se ressentia de não ter o poder e as honras do irmão.

• Iorwerth decide reclamar melhor tratamento e condição ao irmão. Madawc oferece a

ele o comando de todos os seus exércitos e tratamento igual ao seu no tocante a

cavalos, armas e honrarias. Contudo, Iorwerth não aceita a oferta, marcha para

Lloegyr e destrói tudo o que encontra pelo caminho.

• Madawc e seus homens decidem defender Powys, colocando cem homens em cada um

dos três pontos principais do reino, além de fortalecerem também Rhychdir Powys,

por ser um território muito fértil e próspero.

• Em meio aos homens que estavam no último grupo encontrava-se Rhonabwy. Em

certo momento, ele e mais alguns companheiros chegam à casa de Heilyn Goch, para

se albergarem. O ambiente é lúgubre, sombrio e sujo.

• Rhonabwy deita-se em cima de uma pele de bezerra amarela que havia no chão e

adormece. Tem um sonho: via a si e aos seus companheiros atravessando uma

planície. Encontram Iddawc Cordd Prydein (Iddawc, o intrigante da Britânia), um dos

mensageiros que na batalha de Camlan semeou a discórdia entre Artur e seu sobrinho

Medrawd, pois por ser jovem e fogoso ansiava por entrar em guerras e batalhas.

• O sonho nos mostra Rhonabwy - então já acompanhado por Iddawc – encontrando,

vendo ou conhecendo diversos cavaleiros importantes, de diferentes clãs (toda a

narrativa é recheada de descrições minuciosas dos brasões, das cores das armaduras,

das roupas e etc... de cada grupo).

• Seguindo a jornada, ainda em sonho, com Iddawc, Rhonabwy encontra o próprio rei

Artur. Este, inclusive, fala a Iddawc de sua tristeza de ver a Ilha defendida então por

homens insignificantes, diferentemente dos homens de grande valor que a defendiam

outrora (quando provavelmente os galeses eram os senhores).

• Nesse episódio, Iddawc aconselha Rhonabwy a mirar a pedra do anel de Artur, pois

assim ele poderia se recordar de tudo o que estava vendo. A narrativa prossegue assim

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com Rhonabwy vendo e conhecendo, em sonho, inúmeros outros cavaleiros dos mais

variados clãs e linhagens (sempre com ricas descrições da indumentária dos mesmos).

• Ao final, ainda em sonho, Cai – um dos homens de Artur – anuncia que todos aqueles

que desejarem seguir o rei devem encontrá-lo, em Kernyw, naquela mesma noite.

• O anúncio desencadeia um grande alarido e, assim, Rhonabwy acorda de seu longo

sonho. Percebe que se encontra deitado sobre aquela mesma pele de bezerra amarela, e

que havia dormido três noites e três dias.

• O parágrafo final lembra ao leitor/ouvinte que, tendo em vista a riqueza de detalhes

das descrições (particularmente as incalculáveis variações e combinações de cores),

não há bardo nem contador de estórias que possa contar o sonho de Rhonabwy sem o

auxílio de um livro.

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ANEXO 3

Lady Charlotte Guest: Breves Notas Biográficas

Lady Charlotte Guest foi uma das mulheres mais notáveis da Grã-Bretanha durante o

século XIX. Nascida em 1812, foi batizada como Lady Charlotte Elizabeth Bertie, e era filha

do nono Conde de Lindsay. Foi educada por tutores e desde a infância mostrou grande

interesse por literatura. Aos dezesseis anos o estudo de literatura tornou-se mais que um

grande interesse. Estudou história e lendas medievais, aprofundou suas leituras sobre temas

orientais e aprendeu persa. Aos vinte e um anos, mudou-se para Londres e conheceu Sir John

Guest (seu futuro marido), um galês da cidade de Merthyr Tydfil que estava em Londres

como o primeiro representante desta região no Parlamento. John Guest era o próspero

proprietário de uma siderúrgica, e eles se casaram em 1833 indo residir em uma mansão

próxima á Dowlais Iron Company, que rapidamente se transformou em uma das maiores

siderúrgicas do mundo.

Lady Guest demonstrou verdadeiro interesse pela siderurgia e logo se envolveu com

trabalhos sociais direcionados aos empregados da empresa e à população local. Ela também

ajudou a modernizar escolas e promover a educação de adultos. Visitava as escolas

regularmente, introduziu novos métodos de ensino e as vezes lecionava. As Escolas Guest

foram consideradas “as mais progressistas não só na história industrial do sul de Gales, mas

de toda a Grã-Bretanha durante o século XIX.” 176. Além do grande interesse por questões

políticas, sociais e pela rotina da administração siderúrgica, Lady Charlotte Guest aprendeu

galês e teve dez filhos.

O permanente interesse de Lady Guest pela literatura medieval e seu amor pelo País de

Gales realmente se fizeram notar em um período no qual a nacionalidade, a história e os

176 www.data-wales.co.uk/guest.htm acessado em 21 de setembro de 2006.

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contos do passado eram temas que mereciam destaque. Assim os Guest foram menbros

fundadores da Society of Welsh Scholars of Abergavenny. A valorização do passado

promovida então pelo Romantismo retratava as glórias do período medieval e trouxe um novo

interesse pela história celta.

Em sua tradução dos contos do Mabinogion Charlotte Guest produziu um trabalho da

mais alta qualidade e suas edições permaneceram como o padrão durante noventa anos. O

primeiro volume foi publicado em 1838. Na edição de 1877, Lady Guest chama atenção para

o fato de Tennyson ter baseado seu Geraint e Enid ( em The Idylls of the King) em sua

tradução de um dos contos do Mabinogion. The Idylls of the King foi uma das obras poéticas

mias populares do período vitoriano, e com o tempo percebeu-se que Charlotte Guest

conseguiu realizar seu intento de despertar o interesse de um grande público pela literatura

galesa medieval, tanto que Gwyn e Thomas Jones – na tradução do Mabinogion que

publicaram em 1948 – rendem homenagens ao esplêndido trabalho realizado por ela.

Após a morte de Sir John Guest (1852) Charlotte passou a dirigir o império

siderúrgico que era então a Dowlais Iron Works (algo realmente notável para a época),

ampliando inclusive os negócios de forma bastante sólida, tanto que as empresas existem

ainda hoje.

Em 1855 casa-se com Charles Schreiber, um acadêmico de Cambirdge. Juntos

montaram uma das maiores coleções particulares de cerâmica e louças, tendo para tal viajado

para diversas partes do mundo. Atualmente, a parte inglesa da coleção encontra-se no Victoria

and Albert Museum em Londres, sob o título de Schreiber Collection. Charlotte tornou-se

também uma grande autoridade neste campo.

Até a sua morte em 1895 (aos 83 anos). Lady Guest desenvolveu diversas atividades,

em seus últimos anos de vida dedicou-se também a diferentes campanhas, principalmente em

prol dos refugiados turcos.