machado de assis tese - posciencialit.letras.ufrj.br · de verificar a presença de uma teoria da...

200
M A C H A D O D E A S S I S T R A D U T O R: O L A B I R I N T O D A R E P R E S E N T A Ç Ã O A N A L Ú C I A L I M A D A C O S T A T E S E D E D O U T O R A D O UFRJ 2006

Upload: vanthuan

Post on 22-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

M A C H A D O D E A S S I S T R A D U T O R:

O L A B I R I N T O D A R E P R E S E N T A Ç Ã O

A N A L Ú C I A L I M A D A C O S T A

T E S E D E D O U T O R A D O

UFRJ

2006

M A C H A D O D E A S S I S T R A D U T O R:

O L A B I R I N T O D A R E P R E S E N T A Ç Ã O

por

ANA LÚCIA LIMA DA COSTA

Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura, área de concentração Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura, área de Concentração: Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins.

UFRJ

2006

E X A M E D E T E S E

COSTA, Ana Lúcia Lima da. MACHADO DE ASSIS TRADUTOR: O LABIRINTO

DA REPRESENTAÇÃO. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Tese

de Doutorado em Literatura Comparada. Rio de Janeiro, 1º semestre de 2006, 260

páginas.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Professor Doutor Ronaldo Lima Lins (Orientador – UFRJ ) ______________________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ ______________________________________________________ Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins – UFRJ _____________________________________________________ Professora Doutora Luzia de Maria Rodrigues Reis – UFF ______________________________________________________ Professora Doutora Carmem Lúcia Negreiros Figueiredo - UERJ ______________________________________________________ Professora Doutora Marta Alkmin – suplente – UFRJ ______________________________________________________ Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemos – suplente - UFRJ

Defendida a tese: Em: ______/_____/ 2006 Conceito:

Ofereço

A Deus, pela oportunidade da renovação

diária da minha fé.

Ofereço

Ao homem que trabalha.

Ofereço

A todo aquele que sofre e impõem-se

tarefas e, mesmo esmagado pelo

sofrimento e pelas tarefas, é belo na sua

miséria porque encontra sua grandeza na

medida máxima do amor ao próximo.

Ofereço

Ao meu filho Eduardo, minha mais sublime

poesia e razão do meu amor maior.

Ofereço ainda

Ao Professor Doutor Geraldo da Costa

Matos, que nas salas pouco iluminadas da

antiga Faculdade de Filosofia de Itaperuna,

soube acender a chama da literatura em

minha vida; pela cumplicidade carinhosa

nas minhas escolhas acadêmicas e pela

constante torcida pelas minhas

realizações.

E, finalmente,

Aos meus pais, Mário e Juracy. Conforto e

proteção nas horas difíceis. Força e

incentivo em todos os instantes.

A G R A D E C I M E N T O S

À Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela importante

oportunidade de realização do Curso.

À amiga Eliana Crispim França Luquetti, pelo incentivo e apoio

para tentar o exame de seleção, pelos estímulos constantes, pelo

exemplo de coragem e determinação e pela disponibilidade em

servir.

À Lenise Ribeiro Dutra, profissional eficiente e grande amiga,

pelas advertências sempre proveitosas, pelo carinho e espírito

crítico e pelas valiosas conversas sobre estudos literários.

A todos que contribuíram, de várias maneiras e em diferentes

instâncias, para a realização deste trabalho.

A todos aqueles que passaram pela minha vida e conseguiram

despertar e incentivar o meu interesse pela pesquisa.

Agradeço igualmente,

Ao CNPQ, pela ajuda material que tornou possível este trabalho.

Aos Professores que aceitaram fazer parte da banca de defesa

desta tese.

E, finalmente, agradeço,

Ao Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, minha

eterna gratidão pelos ensinamentos

transmitidos. Meus sinceros agradecimentos

pelo convívio, pela amizade e pela confiança

que sempre demonstrou ter em meu trabalho.

Meu reconhecimento à competência e à

seriedade com que me orientou nesta

pesquisa.

SINOPSE

Este trabalho é uma reflexão sobre as relações de Machado de Assis com a

tradução. Observaremos o Machado de Assis tradutor, o crítico e o teórico, a fim

de verificar a presença de uma teoria da tradução dissimulada em sua produção.

No caminho refletiremos sobre a antecipação, por parte do autor oitocentista, de

teorias atuais de releitura da dependência cultural, da diluição de modelos

exclusivos de referência, da revisão de conceitos de cópia, imitação e plágio e a

relação entre tradução e processos criativos.

Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Machado de Assis Nos hábitos literários é todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são de um só autor, que é intemporal e é anônimo. Jorge Luis Borges

S U M Á R I O

SINOPSE............................................................................................................. 08

INTRODUÇÃO:.................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 : OS CAMINHOS DA TRADUÇÃO:

1.1 – A Tradução na História ................................................................ 20

1.2 – A tradução: de sistema lingüístico ao contexto social,

considerações................................................................................................ 27

1.3 – A “Originalidade do Original”...................................................... 31

1.4 - O que traduz o tradutor? A tradução e a subjetividade............. 33

1.5 – Laurence Venuti e o “resíduo” em tradução.............................. 40

1.6 - O canibalismo tradutório.............................................................. 42

1.7 - A tradução nos trópicos............................................................. 45

CAPÍTULO 2: LITERATURA COMPARADA: “UMA DISCIPLINA

INDISCIPLINADA”

2.1 – A Literatura Comparada e a releitura da Dependência

Cultural........................................................................................................... 54

2.2 – Tradução e Literatura Comparada, relações possíveis:.......... 61

CAPÍTULO 3 – MACHADO DE ASSIS ANTECIPA O SÉCULO XX................ 66

CAPÍTULO 4 - MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO

4.1 – Machado de Assis e o fio de Ariadne..................................... 91

4.2 – O Corvo visita o Brasil............................................................. 114

CAPÍTULO 5: A TRADUÇÃO MACHADIANA E O TEATRO NACIONAL:

5.1 – Machado de Assis parecerista do Conservatório Dramático

Brasileiro.................................................................................................. 129

CAPÍTULO 6: A TRADUÇÃO NO ROMANCE MACHADIANO:

6.1 – Dom Casmurro e o novo conceito de “plágio”.................... 141

6.2 – Esaú e Jacó no labirinto da tradução................................... 154

6.3 – Memorial de Aires e a tradução literária de Machado de Assis....

.................................................................................................................. 165

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 170

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 180

RESUMO................................................................................................. 196

ABSTRACT............................................................................................... 197

RÉSUMÉ................................................................................................... 198

ANEXOS..................................................................................................... 199

INTRODUÇÃO

Este trabalho convida o leitor a penetrar num labirinto que não é o de

Amenenhat III, o maior de todos os tempos, construído em 1.800 a. C. ou o do

Palácio de Knossos, em Creta, habitado pelo Minotauro , mas o intrincado labirinto

da representação, em cujo centro está um Machado de Assis quase

desconhecido: o realizador e o censor de traduções, o crítico e teórico desta

prática.

No século XIX, no período pós-independência, embora fosse imperiosa a

necessidade de afirmação de uma cultura nacional, a produção local ainda não

atendia a todo tipo de publicações, a tradução de textos estrangeiros, então,

ocupou essa lacuna, acarretando um conflito com a necessidade de alargamento

de uma identidade artística independente.

Nesse contexto, Machado de Assis aparece como censor de traduções para

o Conservatório Dramático Brasileiro e desenvolve uma técnica de tradução que

ainda não foi satisfatoriamente analisada, compondo um dos elementos da

originalidade deste estudo.

É com esse Machado de Assis que ambiciono dialogar, trazendo à baila

discussões acerca dos conflitos entre o global e o local, entre a tradição e a

contemporaneidade.

De outro modo, no seu trabalho ficcional, podemos entrever como a tarefa

do tradutor foi se transformando até atingir o ápice em seu último trabalho,

13

Memorial de Aires, onde podemos observar, mesmo de forma enviesada, o que

podemos chamar de “apreciações” sobre uma teoria da tradução nos moldes que

a entendemos na atualidade: a apropriação, a liberdade do tradutor/escritor, o

tradutor/autor, a relação de autoria e originalidade enquanto transformação de um

texto alheio.

Machado de Assis é sempre lembrado, quando trazemos à tona qualquer

assunto relativo à nossa formação cultural, pela força de suas idéias. Ainda muito

cedo, quando era aprendiz de tipógrafo, teve acesso aos livros e contato com

pessoas de vasta cultura, o que lhe afiançou, através de seu ofício, revelar seus

pensamentos à sociedade em formação e definir seu objetivo primordial:

transformar em matéria-prima para seu trabalho, através de um processo

antropofágico, toda a cultura ocidental.

Todo esse processo contribuiu de forma decisiva para nossa formação

cultural e intelectual, e para confirmarmos isso, escavaremos a produção

machadiana, que de maneira clara ou não, tratam do assunto.

As recentes discussões sobre o alargamento do conceito da tradução

recomendam também uma nova avaliação da obra de Machado de Assis. Esse

trabalho nos possibilita inferir na importância da função de tradutor na formação

intelectual do escritor e compreender seu valor para a construção da identidade

cultural brasileira.

O Primeiro Capítulo desta tese começa acompanhando o percurso da

tradução e sua importância dentro da história confirmando que, assim que os

14

homens conheceram a escrita começaram a estabelecer trocas de conhecimento

desencadeando um processo de dispersão da cultura. A atuação dos tradutores

deixou marcas na história como grandes favorecedores da divulgação do

conhecimento entre nações e modificou a idéia inicial de que o papel do tradutor

era apenas o de transcodificador de línguas. Este capítulo dedica-se a esclarecer

que o conceito de “tradução” utilizado nesta tese se originou da mudança

teórica conferida ao conceito tradicional que tratava mais especificamente do

aporte lingüístico, das relações original/cópia e da fidelidade/infidelidade ao

original, por exemplo. Esse conceito fechado sofreu uma dilatação através dos

estudos de diversos teóricos como André Lefevere, Rosemary Arrojo, Jorge Luis

Borges, os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, e ainda outros.

Tendo em vista o recorte e os objetivos propostos busquei, na literatura

sobre tradução escrita a partir dos anos 60 do século XX, autores que pudessem

representar os dois pontos de vista aparentemente divergentes sobre a questão

da tradução e que tratassem dela por um dos prismas, o lingüístico ou o literário.

Este Capítulo intitulado “Os caminhos da tradução” traz subitens

importantes para definir o percurso da tradução de sistema lingüístico à

consideração da importância do contexto social; a tradução e sua relação com a

subjetividade; sua relação com a Literatura Comparada e as metáforas utilizadas

para a atualização do conceito, principalmente no Brasil.

Neste Capítulo afirmo que traduzir não é mais transpor, trasladar de uma

língua para outra buscando a equivalência lexical, mas é também ir além,

representar, interpretar, intervir.

15

Os estudos atuais concluem que a tradução é o que, de certo modo,

garante a sobrevivência do original. Neste caso, derruba-se a noção de débito

para com o original e conclui-se que o que há é um caminho de mão dupla.

O subitem que trata da tradução e a subjetividade traz considerações sobre

o importante papel do norte-americano Laurence Venuti e sua teoria sobre a

(in)visibilidade do tradutor, que vem imprimindo avanços nos estudos da tradução

na contemporaneidade negando a dicotomia tradução livre/tradução fiel, provando

que nem uma nem outra pode ocorrer de fato porque o tradutor não consegue se

despir da carga ideológica que possui. Ainda discuto o que Venuti chamou de

“resíduo”, em tradução, num estudo que oferece uma maneira de articular e

esclarecer os dilemas éticos e políticos que os tradutores enfrentam quando

trabalham em qualquer situação.

Uma outra contribuição é dada por André Lefevere através da análise de

seus artigos sobre a tradução, nos quais busca traçar um caminho alternativo que

a tire do domínio exclusivista desta ou daquela disciplina ou que a relegue a tarefa

única da busca da equivalência, o que levaria à eliminação de um farto manancial

de grande importância, que são os textos que apresentam omissões, acréscimos

ou adaptações.

Tratando do assunto abaixo da linha do Equador lembramos, ainda neste

Capítulo, da contribuição de Jorge Luis Borges e Oswald de Andrade. No caso

brasileiro, o símbolo do antropofagismo pode ser largamente utilizado na prática

tradutória da atualidade, uma vez que ao traduzir, o escritor pratica uma

devoração do texto-de-partida e o devolve modificado. Esta atitude

16

antropofágica favorece a apropriação dos textos da cultura de origem, sua

assimilação e sua devolução totalmente modificado pela interação com outros

textos originários de outras culturas que sofrem o processo simultaneamente.

No Segundo Capítulo, “Literatura Comparada: uma disciplina

indisciplinada”, pego emprestado o título de um dos capítulos do livro de Sandra

Nitrini (1997) sobre o assunto, a fim de abordar os caminhos percorridos pela

disciplina e mostrar que seus conteúdos e objetivos mudam constantemente e

que, de acordo com uma de suas tendências atuais de transcender as fronteiras

de seus próprios estudos, abarcam os estudos da tradução numa relação

amigável e possível.

Considerando que o fazer literário tornou-se um espaço propício para o

diálogo entre o influenciador e o influenciado, onde não mais se verifica as noções

de débito e dependência, porém as de acréscimo e autonomia, o enfoque da

Literatura Comparada na atualidade propõe questionamentos dialógicos que

colaborem para a descolonização cultural porque acreditam na inserção original

que o segundo texto, a tradução, pode imprimir exatamente por ser diferente do

primeiro, o “original”.

O Terceiro Capítulo, “Machado de Assis antecipa o século XX”, traz o

trabalho de alguns tradutores com os quais Machado de Assis dialoga,

antecipando questões atuais em quase um século. Destaco a presença de Walter

Benjamin e a tarefa do tradutor, reitero a presença de Oswald de Andrade para

mostrar o quanto Machado de Assis sugere em seus textos uma devoração nos

moldes do antropofagismo, alargando as fronteiras da imitação e da adaptação,

17

busco Haroldo de Campos e a transculturação e a plagiotropia na proposição de

transformar o passado em algo novo, defendendo que quanto mais dificuldades

um texto apresenta, mais recriável ele é, e por fim, Rosemary Arrojo e sua

proposta do tradutor como autor da diferença, discutindo que nenhuma tradução

será neutra, posto que é uma leitura e acreditando que existe um “outro” autor que

atravessa e é atravessado pelo texto traduzido, desmentindo qualquer hipótese de

um tradução bem-intencionada.

O Quarto Capítulo “Machado de Assis e a tradução”, vai apresentar um

Machado de Assis que exerceu tanto a tarefa de um tradutor tradicional quanto

aquele que transborda as convenções lingüísticas. Trato do percurso da tradução

no decorrer de sua carreira percorrendo o “Fio de Ariadne” para mostrar as

mudanças em seu pensamento e ações com relação à prática tradutória.

Deste modo, este trabalho propõe um retorno ao século XIX a fim de

verificar a contribuição de Machado de Assis para os Estudos da Tradução. Em

seu tempo, o escritor tanto exerceu a tarefa de um tradutor que buscava a

equivalência lexical, como a de um interventor cultural, ao “deglutir” o “patrimônio

cultural” através de uma “tradução” criativa, contribuindo, sobretudo, para o

engrandecimento do acervo nacional.

Machado de Assis, em sua obra, desde sua atuação como tradutor lexical e

literário, como teórico e crítico desta prática, iniciou o uso de um termo operatório

da crítica atual: a intertextualidade. Este conceito, como o define Julia Kristeva,

passou desde então a ser amplamente utilizado. Os críticos de literatura

mostraram o engano de se acreditar em uma leitura singular e categórica. Fez-se

18

mister desvendar o texto e sua carga interpretativa. É imperioso concluir que todas

as obras mantêm relações intertextuais, seja com outras obras, seja com o

contexto cultural de onde brotam. No caso machadiano, ressalto que o escritor

utiliza-se do diálogo intertextual ao se amparar, mas sem ser submisso, nos

numerosos modelos textuais que aproveitava para preparar os seus próprios.

Machado de Assis assim, pode ser acatado como um dos praticantes deste

conceito operatório da crítica literária, desde as traduções e reflexões que fez

sobre a tradução até os estudos de suas fontes e influências.

Num subitem deste capítulo, intitulado “O Corvo visita o Brasil”, faço um

cotejo entre o texto poético de Edgar Allan Poe e a tradução mais famosa de

Machado de Assis com o propósito de mostrar as diferenças que o nosso autor

impetrou no texto inglês tornando-o seu.

O Quinto Capítulo, “ A tradução machadiana e o teatro nacional”,

compreende alguns textos teatrais traduzidos por Machado de Assis bem como

alguns de seus textos como parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro

que funcionam como exemplo do que chamamos de tradução lexical e a

contribuição de alguns estudiosos desta prática machadiana. Retomo alguns

trabalhos que analisam sua participação como censor teatral a fim de avaliar a

mudança de seus procedimentos em tradução.

O Sexto Capítulo “ A tradução no romance machadiano” mostra Machado

de Assis funcionando como um interventor cultural. Escavo alguns de seus

19

romances da chamada segunda fase : Dom Casmurro, Esaú e Jacó e

Memorial de Aires , com a intenção de mostrar que o autor, através de suas

“traduções”, reconstitui e atualiza textos universais imprimindo diferenças

consubstanciais, que pesam como consolidadoras de uma identidade brasileira e

periférica, mostrando que atua como aquele que ficcionaliza a própria crítica.

Identifico, através do percurso machadiano, o quanto sua proposta difere da

de seus contemporâneos com relação à noção de “cor local.”

Em outro momento, confirmo que o pensamento machadiano, expresso por

meio de metáforas, elaborou conceitos essenciais para uma ampliação das fontes

teóricas do traduzir.

A presente tese estimula uma análise do desenvolvimento dos Estudos da

Tradução, dos Estudos Pós-coloniais e da Literatura Comparada porque incide na

análise do discurso ficcional machadiano como procedimento de sua teorização da

tradução enquanto fenômeno semiótico e cultural tanto discutido na atualidade.

CAPÍTULO 1: OS CAMINHOS DA TRADUÇÃO

Da mesma maneira que os fragmentos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o todo, devem combinar uns com os outros nos mínimos detalhes, apesar de não precisarem ser iguais, a tradução, em lugar de se fazer semelhante ao sentido do original, deve, de maneira amorosa e detalhada, passar para sua própria língua o modo de significar do original, assim como os pedaços de uma mesma ânfora, o original e a tradução devem ser identificados como fragmentos de uma linguagem maior. Walter Benjamin

1.1 – A Tradução na História:

A partir da invenção da escrita, os povos procuraram adquirir o

conhecimento técnico e científico dos seus próximos. Desse modo as traduções

ocuparam um lugar amplo na busca pelo que era visto como informação útil e

necessária. Em outros termos, desde que os primeiros homens empregaram a

escrita, os tradutores têm estabelecido elos entre as nações, as culturas e as

raças. Sem dúvida alguma esse processo de apropriação de descobertas alheias

provocou o desenvolvimento da ciência, a ampliação da tecnologia e a dispersão

da cultura.

Porém, o objetivo dos tradutores não ficava restrito aos limites do

enriquecimento da sua nação apenas. Muitas vezes, eles procuraram promover o

seu trabalho atuando como educadores, e não apenas como educandos ,

21

empregando o saber adquirido com o seu trabalho para favorecer o progresso

científico. Desta forma, os tradutores deixaram marcas na história da humanidade

e, não devem apenas ser considerados como canais passivos de informação

especializada, mas ainda como pessoas atuantes e diretamente envolvidas com

os textos que reformulavam em outra língua. Foram eles que favoreceram a

transformação de importantes textos de uma certa cultura em matéria de

dimensão universal.

Mesmo diante de tal importância, não faltaram críticas rigorosas e

desconfianças para com o trabalho de tradutores através da história.

Felizmente, nos últimos anos cresceu o interesse pela história da tradução.

Principalmente a partir da década de 1980, os estudiosos da tradução perceberam

a importância da pesquisa histórica acerca do fenômeno da tradução e

começaram a determinar os procedimentos e modelos da tarefa que cresceu

enquanto disciplina. Nosso intento neste capítulo da presente tese não é, de modo

algum, fazer um percurso histórico de tradutores através dos tempos, pois isso

demandaria uma pesquisa exaustiva que, de certa maneira, fugiria do mote

principal deste estudo, e sim, considerar através da avaliação da contribuição de

alguns tradutores famosos para o pecúlio cultural de suas nações, perceber o

quanto Machado de Assis se destaca no cenário brasileiro também pela sua

contribuição neste setor.

Verificaremos que a tradução não é uma ação individual e excepcional; é

parte complementar de todo processo normal de produção literária.

22

Espontaneamente, e com mais freqüência do que se pode supor, grande parte dos

textos escritos são produzidos a partir de traduções.

Além de ajudar a desenvolver sistemas de escrita, os tradutores em sua

tarefa de conduzir determinados textos fundamentais de uma cultura para outra,

também impulsionaram o desenvolvimento da própria linguagem.

O exemplo de Martinho Lutero faz jus a um destaque especial na história da

tradução. Além de seu papel eclesiástico, Lutero foi agente propulsor da criação

de uma língua literária na Alemanha. Suas realizações lingüísticas se norteavam

por um certo número de princípios, dentre eles a formulação de uma tradução de

acordo com a língua-meta e de que a palavra deveria seguir o sentido do texto, e

não o contrário. Na verdade, ele propõe que a tradução seja mais coloquial e mais

compreensível para tornar o texto acessível a todos.

Um bom exemplo é a tradução que fez do Novo Testamento, mais

especificamente de Mateus 12:34, que no texto em latim diz: “Ex abundantia

cordis os loquitur”. Para substituir a tradução literal, que ficava obscura ( A boca

fala a partir de um excesso de coração), Lutero propôs uma versão livre,

“mesclando” com um provérbio alemão muito conhecido: Wes das Herz voll ist,

des geht der Mund über (Arndt, 1968, p. 33). O sentido literal do provérbio é o

seguinte: “Quando o coração está pleno, a boca transborda”.

Através do exemplo acima verificamos que, em certos casos, uma

correspondência fiel trai o sentido genuíno da frase, e que os tradutores precisam,

às vezes, buscar uma correspondência na língua-meta que com outras palavras

deixe claro o pensamento contido no original. Por esse entendimento abrangente

23

do fenômeno da tradução, Lutero merece um lugar especial na história da

tradução e também da língua alemã, pois as primeiras gramáticas alemãs,

publicadas no século XVI se baseavam diretamente na tradução da Bíblia feita por

Lutero. Com sua tradução da Bíblia, ele ajudou a enriquecer e padronizar o léxico

alemão.

Da Inglaterra destacamos seu maior poeta medieval Geoffrey Chaucer

(1340-1400), para quem a tradução era uma atividade fundamental. Escrevendo

em inglês, num momento em que o latim ainda gozava de grande prestígio

cultural, Chaucer ganhou autoridade e importância com seu trabalho como

tradutor e compilador. Ele traduziu obras clássicas e vernáculas do latim, francês e

italiano, apoiou-se em Boécio, Boccaccio, Petrarca e Dante e “incorporou” aos

seus escritos os principais assuntos filosóficos e artísticos daquele momento. Para

Chaucer, como para outros antigos escritores em vernáculo, havia uma forte e

sedimentada relação entre a tradução, a compilação e o aproveitamento de textos,

de um lado, e, de outro, a autoria original. Uma maneira de revogar esses conflitos

era a idéia da tradução como recriação, costume que desapareceu durante certos

períodos diante da hegemonia da autoria original, mas que prosseguiu ao longo

da história até os nossos dias, provocando as mais acaloradas discussões.

A metáfora de Chaucer – arar velhos campos para cultivar uma nova

colheita – transcende tempo e espaço e em muito lembra a metáfora machadiana

“ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua

fábrica” de que trataremos mais adiante.

Diz Chaucer:

24

“For out of olde felds, as men seyth,

Cometh al this newe corn fro yer to yere,

And out of olde bokes, in good feyth,

Cometh al this newe science that men lere.”

Em velhos campos vê-se cada ano

Novas espigas sendo colhidas;

E dos livros antigos provém, de boa-fé,

Toda a nova ciência aprendida pelos homens.

( Chaucer, Parliament of Fowls, 1977, p. 566)

Através da história, a atração pelo original sempre esteve vinculada ao

desejo de forjar alguma coisa nova. No entanto, para Chaucer, as idéias de

traduzir e recriar, de imitar e deslocar, de importar e conquistar têm estado

indissoluvelmente vinculadas.

Desta maneira, podemos verificar que a tradução sempre se fez dentro de

um determinado contexto, que seus momentos culminantes estão fundamentados

na história e que participaram ativamente do processo de surgimento de uma

literatura, que aconteceu sempre em relação a outra numa atividade de

diferenciação. Daí conceber como parte do procedimento a relação entre centro e

margens, entre a cultura dominante e as culturas de menor peso, como confirma

Octavio Paz:

25

Há uma interação constante entre as duas, um

contínuo enriquecimento recíproco. Os períodos

mais criativos da poesia ocidental foram

precedidos ou acompanhados pelo cruzamento

de traduções poéticas. Por vezes esses

cruzamentos assumiram a forma da imitação, em

outras oportunidades adotaram a da tradução.

(PAZ, 1992, p. 160)

O século XVIII trouxe a teoria novidadeira da construção do conceito de

originalidade. Antes dessa época, as maiores tradições literárias se construíam

através da leitura e tradução, ou mesmo, da imitação das fontes estrangeiras.

De todo modo, o Romantismo europeu foi responsável por uma série de

traduções que enriqueceram as literaturas de todo o mundo ocidental. Um grande

fenômeno europeu surgiu com as traduções da obra de Shakespeare. A produção

teatral francesa se assentava sobre as traduções de Jean-François Ducis (1733-

1816), que eram consideradas “originais” já que os temas abordados por ele,

fossem históricos ou mitológicos, diferiam em diversos pontos da antiga tragédia

clássica. Suas versões eram consideradas intermediárias entre a tradição e a

inovação.

O inventário dos grandes autores que abordaram ocasionalmente o tema da

tradução ou dos problemas tradutórios é interminável, e ainda pontuamos Goethe,

Schopenhauer, Nietzsche, Matthew Arnold, Paul Valéry, Ezra Pound, Benedetto

Croce, Ortega y Gasset e Walter Benjamin. Todos eles aludem às combinações

da língua, de níveis de entendimento, da correspondência, da tradução livre, das

26

possibilidades e das limitações da tradução. E a quase totalidade deles entende o

exercício de traduzir como uma prática de “um exercício de estilo, uma pesquisa

de interpretação; é, afinal, um ato de amor, pois trata-se de se transferir por inteiro

numa outra personalidade”. (GUIMARÃES ROSA).

Antes, tudo acontecia já emendado e

envelhecido, igual se as coisas saíssem uma das

outras por obrigação sorrateira como se o atual

nunca pudesse ter uma separação certa do já

passado...

Guimarães Rosa

No século XX, mais precisamente a partir dos anos 30, o pensamento

tradutório se estruturou numa base normativa, uma vez que a tradução surgiu

como uma disciplina lingüística. O conceito de “equivalência” predominava nos

assuntos de tradução, que era desvinculada de quaisquer critérios históricos ou

contextuais. O foco da tradução era a palavra, que deveria ser reproduzida em

outra língua o mais equivalente possível com a palavra original. Com o

deslocamento do enfoque para o texto como unidade de tradução, surgiu uma

nova abordagem para os assuntos tradutórios, porém o conceito de “equivalência”

ainda permanecia arraigado, emperrando o avanço nesse campo.

A partir dos anos 30 do século XX, a tradução divorciou-se um pouco dos

estudos de base lingüística para ser vista como interpretação, alterando a visão

27

que se tinha, até então, do tradutor como um eterno descobridor de equivalências

e substituindo sua função para “mediador entre textos”.

Nos últimos anos do século XX e já nos que iniciam o novo século, o

esforço conjunto de teóricos, pesquisadores e tradutores, vem fortalecendo o

campo para que a tradução desenvolva suas próprias teorias, metodologias e

instrumentos de pesquisa, levando-a a firmar-se como uma nova e importante

área de conhecimento.

1.2 – A tradução: de sistema lingüístico ao contexto social,

considerações:

O homem é o ente que sabe expressar-se

em vários níveis . Quando passamos algum

pensamento de nossa linguagem cotidiana para o

idioma escrito, realizamos um ato tradutório, e

da mesma forma agimos, apenas em outro nível,

quando procuramos entender expressões

estrangeiras, seja em filme ou em conversas, ou

quando as utilizamos, entremeadas em nosso

próprio fluxo oratório.

Erwin Theodor

Normalmente, traduzir significa transportar textos de uma língua para outra.

Mas este sentido é restrito, pois sendo a tradução um processo complexo, há que

se considerar, portanto, além de questões culturais e lingüísticas, todo um trabalho

de criação. Isto acontece, principalmente, na tradução de textos literários.

28

Inicialmente, o papel do tradutor era, basicamente, de transcodificador de

línguas, responsável por uma atividade menor. Tanto isso ocorria, que seu nome

não era quesito obrigatório, como hoje, nas referências bibliográficas. Havia uma

tentativa de se reduzir o trabalho à busca da fidelidade ao original. Exemplo disso

é a fórmula tão amplamente propagada “tradutor/traidor”.

A partir da noção estruturalista, o tradutor foi colocado numa posição

complexa, pois, se de um lado dele se exigia a transposição literal, para a língua-

de-chegada, dos significados contidos no texto-de-partida; de outro, essa

transposição passou a ser admitida como muitas vezes impossível, motivadas

pelas diferenças naturais entre dois sistemas lingüísticos distintos, cabendo a ele

uma missão quase sobre-humana.

Toda essa discussão ganha contornos ainda maiores quando se começa a

considerar as disciplinas que tratam do assunto. Quase todos os trabalhos

dedicados ao tema abordam a perspectiva lingüística do tema tradução. Não há

muito espaço para discussões sobre a tradução do texto literário. Por outro lado,

mesmo os autores que se dedicam aos estudos literários também evitam tratar do

assunto e “a grande maioria dos escritores e poetas que abordam a questão da

tradução de textos literários considera que traduzir é destruir, é descaracterizar, é

trivializar”, ou que é “teórica e praticamente impossível” ( ARROJO, 1986, p. 25-6).

A maior parte dos trabalhos publicados que tratam de tradução e literatura

entre os anos 60 e 70 focaliza um texto específico, de uma literatura específica,

um autor ou um tradutor. Num âmbito geral, aborda-se a tradução feita com

29

finalidade estética, como criação artística ou recriação literária de um autor em

particular, contudo, os trabalhos não se sustentam em um enfoque teórico.

Outras vezes, por trás de uma aparência de senso comum, há, na verdade,

uma escandalosa adoração pela língua ou literatura estrangeira, o que é

inconcebível dada a radicalidade da situação ou na crença de que nenhuma

tradução é boa o suficiente. Erros, toda tradução pode apresentar e esses podem

ser corrigidos. Porém, nem mesmo nestes casos podemos diminuir sua

legibilidade, sua capacidade de comunicação.

Na verdade, o maior receio dos acadêmicos de língua estrangeira está em

acreditar que a tradução pode ameaçar os outros estudos das línguas

estrangeiras, muitas vezes um tanto automáticos. Em casos mais extremos, o

temor pode ser de que a tradução venha a diminuir ou até acabar com esses

estudos, esquecendo-se de que, sem o ensino de línguas estrangeiras não se

formam tradutores, nem a tradução pode ocorrer ou ser estudada.

Na circunstância atual, a partir da revogação das fronteiras geográficas e

intelectuais, as obras literárias espraiaram-se, perdendo os limites que a

cerceavam e passaram a reabastecer-se entre as culturas universais. O texto não

é mais um invólucro, entendido como algo hermético, e foi substituído pela noção

de texto/tecido, uma rede de informações, um “mosaico de citações”, como quis

Julia Kristeva (1974).

Mais modernamente, principalmente após ser compreendida como uma

forma de intertextualidade, a atividade de tradução passou a merecer um outro

olhar.

30

Por ser uma retomada de outros textos, a intertextualidade lega à obra

literária um outro sentido e a tradução, enquanto seu sinônimo, deixa de ser

singular, redutora e exclusiva e passa a ser inclusiva, uma alimentadora voraz de

textos, sugerindo a liberdade do tradutor de se nutrir de outros textos, tornando-se

plural. Ou seja, se através da intertextualidade, os textos literários são re-

presentados (“presentados” de novo), no sentido de trazer para o presente

novamente, mas já modificados e não mais representados, podemos afirmar que

a tradução ganha o contorno de ser um processo metamórfico, de transformação

de uma coisa em outra, porém sem o compromisso dessa segunda coisa ser igual

à primeira.

De acordo com Ronald Taveira da Cruz em seu artigo “ A tradução como o

segundo original”

Isto é a intertextualidade: uma obra pode se

apropriar de outra respectiva obra dando-lhe

cores outrora nunca reforçadas e que poderão

ser mais evidentes no momento em que sua

cultura necessitar de forças para melhor enxergar

a “alma” dessa respectiva obra literária. Em

outras palavras, se existe uma certa obra que foi

escrita em um certo país, em dada época, de

acordo com tais perspectivas e outro escritor

quiser redimensiona-la para seu país, sua época

e costumes diferentes, ele necessita com

petulância aprimorá-la aos novos ambientes

tanto socioculturais quanto lingüísticos, creio,

entre outros. (TAVEIRA, 1998). grifo nosso

31

1.3 – “A Originalidade do Original”

Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a

tradução de outro texto. Nenhum texto é

completamente original porque sua própria

língua, em sua essência, já é uma tradução: em

primeiro lugar, do mundo não-verbal e, em

segundo, porque todo signo e toda frase é a

tradução de outro signo e de outra frase.

Entretanto, esse argumento pode ser modificado

sem perder sua validade: todos os textos são

originais porque toda tradução é diferente. Toda

tradução é, até certo ponto, uma criação e, como

tal, constitui um texto único.

Octavio Paz

Um grande entrave nos estudos da tradução é o problema do “texto

original”. Alguns estudos sobre tradução se propuseram erroneamente a

considerar que teríamos pleno acesso à origem num processo tradutório. Essa

teoria é ilusória e ápora e manifesta-se pelo próprio uso do termo “texto original”

como sinônimo de “texto-fonte” ou “texto-de-partida”. Esses termos parecem

implicar na existência de uma “fonte” que carregaria o sentido e a intenção plena

e inicial de todos os textos. Porém, sendo a cultura a conseqüência de uma

interpretação, concebemos que o tradutor não lida com uma fonte, nem como uma

origem fixa, mas constrói uma interpretação que, por sua vez, também vai ser

movimento e desdobrar-se em outras interpretações.

32

Uma vez que é indiscutível a importância da leitura para a sobrevivência de

um texto, podemos deduzir que toda leitura está em dívida como o texto lido.

Assim, todo “original” depende do tradutor para essa mesma sobrevivência e é

preciso analisá-lo a partir de uma leitura contextualizada que articule os textos-de-

partida, ou o “original”, com o texto-de-chegada, ou a tradução, numa relação que

não seja de oposição. Ao constatar que o texto “original” também é produzido

através de um ato de leitura, podemos entender o paralelismo existente entre

“original” e tradução: ambos são resultado de uma leitura construída.

O pensamento contemporâneo reforçou a importância dessa relação ao

destacar que é inútil tentar neutralizar as diferenças. Essa atitude tem tido impacto

direto nas investigações sobre a atividade tradutória, pois tais concepções abalam

também a própria idéia de débito que o original tem para com a tradução, que

garantiria a sua sobrevivência.

Nesse universo, é preciso conceber a tradução como atividade produtora de

significado, o que implica que ela seja encarada como um caso particular de

leitura, ou de escritura, que promove a diferença, a transformação.

Uma concepção que espera que a tradução repita o “texto original”, que

seja sua perfeita equivalência, que reproduza seus valores, é tanto inviável quanto

impossível, porque tanto a tradução como o texto original mantém uma relação

necessária com o tempo, com o espaço, com as línguas e, na medida em que as

diferenças não permitem que dois textos estejam em relação de equivalência,

poderíamos pensar que estariam em relação de complementaridade.

33

Essa relação de complementaridade, à primeira vista, pode ser adequada

para explicar a relação entre tradução e texto-de-partida. Porém, “complementar”

significa preencher uma falta para formar uma nova estrutura completa. Implica

supor que cada texto ofereceria interpretações diferentes que se

complementariam tornando completo o texto, ou ainda que um elemento, ausente

e exterior ao primeiro texto, a ele se acrescente para formar um todo perfeito. Mas

sabemos que essa relação não é tão pacífica assim, ao contrário, desencadeia-

se numa relação em que há conflitos, em que se estabelece um embate pelo

poder de significação.

O termo exato e que caberia com sucesso para nomear esse processo é

suplementaridade. “Suplementar” significa ampliar. O suplemento é algo que

amplia, esclarece e aperfeiçoa, que uma vez adicionado, não possibilite mais o

retorno a uma origem pura, mas que verta o “novo” como um original para novas

cadeias de significações.

1.4 - O que traduz o tradutor? A tradução e a subjetividade:

No livro The translator’s invisibility- a history of translation ( 1995), o norte-

americano Laurence Venuti, ao lado de suas colocações mais tipicamente

teóricas, vinculadas a autores e ensaios, desenvolve inúmeras e minuciosas

análises, feitas sobre amplo material pesquisado. Com o emprego desse material,

que compreende traduções, prefácios e cartas, textos de crítica e literaturas dos

mais diversos gêneros e nacionalidades, ele vai construindo uma história da

34

tradução contextualizada no universo anglo-americano, em particular entre o

século XVII e os dias de hoje. Ele também assume uma atitude claramente política

através da qual convoca os tradutores a se oporem às práticas tradutórias

dominantes e a transformá-las, introduzindo, em suas culturas, textos e discursos

marginalizados, e “exigindo contratos que definam a tradução como um trabalho

de ‘autoria original’ e não como ‘prestação de serviço’ ( VENUTI,1995, p. 311).

Para ele, as estratégias tradicionalmente utilizadas na escrita e leitura das

traduções são responsáveis pela invisibilidade do autor da tarefa, marginalizando-

o. Contudo, as novas estratégias que sugere marcariam a sua visibilidade,

contribuindo assim para que o mesmo viesse a obter uma real valorização de seu

ofício em todos os sentidos: remuneração, regulamentação e, finalmente, o

prestígio desejado. Tais estratégias de escrita e leitura são observadas por

Venuti, sempre adotadas como práticas discursivas que, ideologicamente

determinadas, conseguem ou o apagamento ou o resguardo do estrangeiro, este

concebido como aquilo que difere dos cânones domésticos.

Em seu ensaio “A invisibilidade do tradutor” ( 1995), Venuti defende que

tanto uma técnica de escrita, que rompa com as estratégias hegemônicas, quanto

uma técnica de leitura crítica, nas quais o processo produtivo torne-se visível,

inclusive para leitores que desconheçam a língua estrangeira na qual o texto

original foi escrito, baseiam-se na idéia, a seu ver já aceita hoje em dia, de que

verter implica transformar o original. Essa forma de conceber, pressuposto

indispensável à construção de sua teoria de visibilidade, decorre justamente do

35

enfrentamento teórico de diferenças de sentido determinadas por contextos

sociais e externos.

“Ao efeito da visibilidade do autor, corresponde o de invisibilidade do

tradutor”. Essa relação é explicada por Venuti através de suas implicações, do

conceito de autoria: por ser o texto estrangeiro visto como a representação original

e autêntica dos “pensamentos e sentimentos” do autor, cabe ao tradutor produzir

um texto que é visto como a representação de segunda ordem, uma cópia

potencialmente falsa, e, simultânea e paradoxalmente, cabe a ele também “apagar

o seu estatuto de segunda ordem com um discurso transparente, provocando a

ilusão da presença autoral através da qual o texto traduzido pode ser encarado

com o original” .(VENUTI, 1995, p. 07)

Temos assim que, como insiste Venuti em todas as suas análises, ao autor

normalmente associa-se uma subjetividade individualista que excede limites,

enquanto ao tradutor é vinculado um estilo neutro e imparcial, já dele ou resultante

de um “auto-apagamento”. Um tradutor que, como Pound, citado por Venuti em

vários de seus ensaios, faz uma tradução “livre”, acaba sendo culpado pelas

‘liberdades’.

Ao chegar a esse ponto da reflexão, podemos observar a dura tarefa que o

trabalho com a tradução enfrenta: de um lado, a exigência da literalidade,

neutralidade e fidelidade; de outro , a da criatividade ou liberdade, nas quais a

tradução se vê tradicionalmente colocada, e que resultam numa bifurcação nesses

estudos e na maneira de relacionar o tradutor , as línguas e os textos. Os

trabalhos de Venuti têm como ponto de partida a afirmação de que toda

36

tradução necessariamente implica a intervenção daquele que a realiza e, como

este trabalho, investiga um enfoque teórico da tradução que ultrapasse a

‘dicotomia fidelidade-liberdade’:

O conceito de tradução como prática social

escapa às ciladas da dicotomia fidelidade-

liberdade que têm levado as discussões sobre

textos traduzidos a um impasse. A “fidelidade”

não pode ser entendida como uma equivalência

lingüística, pois, como o tradutor é obrigado a

fazer escolhas interpretativas, a tradução torna-

se necessariamente uma aproximação ou

estimativa que vai além do texto original. Isto não

significa, entretanto, que a tradução esteja

eternamente confinada à esfera da ‘liberdade’, da

‘impossibilidade’, do ‘erro’ e da ‘subjetividade’,

pois a interpretação do tradutor é limitada por um

conhecimento da cultura da língua-fonte, ainda

que parcial, e por uma assimilação dos valores

culturais da língua-meta. (Ibidem. p 122)

Para Venuti, em todo e qualquer ato de tradução reside uma violência

etnocêntrica, uma vez que traduzir consiste justamente em substituir a diferença

lingüística e cultural do texto estrangeiro por um texto inteligível para o leitor da

língua-meta. Como avalia o teórico, essa diferença nunca pode ser totalmente

extraída; contudo, ela passa a ser abalada pela cultura da língua-de-chegada,

suas tradições e ideologias, seus códigos e interditos.

Por esse caminho, ele nega a dicotomia estabelecida tradução livre/tradução

fiel, mostrando que nem uma nem outra pode de fato acontecer, uma vez que não

37

é possível ao tradutor despir-se de toda uma carga ideológica e cultural que o

constitui, a qual se refletirá em suas interpretações. Assim como a autoria ou a

tradução tida como livre, a pretendida neutralidade do ato tradutório é por ele

mostrada como um resultado superficial, suscitado por determinada tática de

escrita.

Para Venuti, a tradução nunca pode ser meramente a comunicação entre

semelhantes, porque ela é profundamente etnocêntrica. Isso é explicado já na

necessidade de escolha do texto que será traduzido, já que o texto estrangeiro é

selecionado para satisfazer gostos diferentes daqueles que motivaram sua

composição e recepção em sua cultura nativa. Essa é uma das principais funções

da tradução, a assimilação, a inscrição de um texto estrangeiro com

inteligibilidades e interesses domésticos.

Para exemplificar o que afirma, Venuti comenta a tradução que fez, em

1994, de um romance de Tarchetti, um escritor italiano do século XIX, chamado

Fosca a qual deu o título de Passion. O romance de Tarchetti mistura melodrama

romântico com realismo num texto que remete tanto a Madame Bovary

(FLAUBERT, 1857) quanto a Thérèse Raquin ( ZOLA, 1867 ). Vertido para o

inglês, Fosca garantia aos leitores a redescoberta de um clássico histórico, uma

“interferência estrangeira” à cena italiana. De certa maneira, durante o processo

da tradução percebeu que o romance de Tarchetti se transformara em uma versão

metamorfoseada para uma forma mais popular. Em outros termos, a tradução de

um texto canônico italiano que deveria interessar a um público mais elitizado, em

sua nova forma acabou tendo maior abrangência. O “ produto-derivado ” da

38

tradução não só assumiu uma nova forma, como um novo público. Venuti utiliza o

termo “produto-derivado” para significar um produto que é lançado a partir de outro

produto “original” ou a partir de uma obra como um livro, peça teatral, etc.

A teoria que se observa surgir a partir disso mostra que as estratégias

desenvolvidas nas traduções dependem primeiramente da interpretação que o

tradutor faz do texto estrangeiro. De acordo com Venuti, essa interpretação

“sempre olha para as duas direções”, por um lado é mister se afinar com as

qualidades especificamente literárias daquele texto, por outro, é imperiosa uma

avaliação dos leitores domésticos que o tradutor espera alcançar.

Voltando à tradução que fez, Venuti observa que em alguns pontos,

combinou várias palavras que se apresentavam mais desarmônicas para lembrar

o leitor de que ele ou ela estava lendo uma tradução atual. Numa cena em que a

personagem Giorgio passa uma noite inteira com Fosca, que se mostra

arrebatada de amor como quem está desfalecendo, Venuti faz as seguintes

alterações:

Suonarono le due ore all’orologio.

- Come passa presto la nolte; il tempo vola quando si è felici

– diss’ela.

( Tarchetti, 1971, p.82)

The clock struck two.

39

“ How quickly the nigth passes; time flies when you’re having

fun”, she said.

(Venuti, 1994, p. 83)

O relógio bateu duas horas.

“Como passa rapidamente a noite; o tempo voa quando

você está se divertindo”, disse ela.

A declaração time flies when you’re having fun é realmente uma variante

consoante com a do italiano. No entanto, no inglês americano adquiriu a forma de

um chavão quase irônico.

E assim declara Venuti

Por um lado, o clichê é característico de Fosca,

que tanto tende a fazer vigorosas declarações de

lugares-comuns românticos como está inclinada

a ser irônica em suas conversas; por outro lado,

o aparecimento abrupto de uma expressão

contemporânea num contexto arcaico quebra a

ilusão realista da narrativa, interrompendo a

participação do leitor no drama dos personagens

e chamando a atenção para o momento no qual a

leitura está sendo feita. E quando esse momento

torna-se consciente, o leitor vem a perceber que

o texto não é o italiano de Tarchetti, mas uma

tradução em língua inglesa. (VENUTI, 2002,

p.40)

40

A intenção de colocar essa exemplificação nesta tese foi a de constatarmos

como numa tradução um simples “resíduo” pode ter efeitos múltiplos.

1.5 – Laurence Venuti e o “resíduo” em tradução:

Depois de muitos anos dedicados a formulações de teorias e diversos

outros dedicados à prática da tradução, Venuti questiona as abordagens de

orientação lingüística que surgiram nos estudos da tradução durante os anos 60

do século XX, e que se caracterizaram, desde então, numa disposição

predominante. Essas orientações, geralmente baseadas na lingüística textual e na

pragmática, partem de conjecturações divergentes sobre língua e textualidade. De

acordo com Venuti, essas abordagens realçam um padrão conservador de

tradução que abrevia seu papel na inovação cultural e na transformação social.

Com a intenção de não condenar essas abordagens ao abandono, mas sugerindo

sua própria reconsideração a partir de uma nova orientação teórica e prática,

Venuti acredita que o caminho correto é o que permita ao tradutor escolher entre

práticas textuais diferentes a que deve empreender, considerando, sempre, o

cotejo entre textos estrangeiros e traduzidos, buscando mudanças, inferindo

preceitos, e baseando o ato tradutório na consideração do conceito de resíduo.

De acordo com Venuti

Estudar o resíduo em tradução não

implica abandonar a descrição empírica das

práticas textuais recorrentes e das situações

41

típicas. Pelo contrário, esse estudo oferece uma

maneira de articular e esclarecer – em termos

que são tanto textuais como sociais – os dilemas

éticos e políticos que os tradutores enfrentam

quando trabalham em qualquer situação. Nosso

objetivo deve ser a pesquisa e o treinamento que

produzem leitores de traduções e tradutores que

sejam criticamente conscientes, não predispostos

a normas que excluam a heterogeneidade da

língua. (VENUTI, 2002, p. 63)

Se a conseqüência da tradução revela-se conservadora ou transgressora,

vai depender basicamente das táticas discursivas empregadas pelo tradutor, mas

também dos vários fatores envolvidos na sua recepção.

O importante é considerar de sobremaneira que sendo a tradução uma

imponente contribuidora para a criação de discursos literários domésticos, ela

precisa ser incluída, de forma inevitável, em projetos culturais ambiciosos,

especialmente no desenvolvimento de uma linguagem e literatura que reflitam o

local. A formação de identidades culturais sempre resultou desses projetos, que

devem sempre considerar as estratégias discursivas, sejam elas acadêmicas ou

não. Isso não significa afirmar que a tradução pode sempre se livrar de sua tarefa

básica de reescrever o texto estrangeiro em termos culturais domésticos. A

questão, na verdade, é que um tradutor pode eleger um caminho que

descentralize e redirecione o movimento etnocêntrico do qual se utilize. A

identidade forjada nessa empreitada será legitimamente intercultural, não só

42

porque se ajusta em duas culturas, a doméstica e a estrangeira, mas porque

cruza as fronteiras culturais entre os vários públicos locais. Essa é uma ética da

diferença que pode mudar a cultura local e acentuar o viés “escandaloso” de uma

tradução, segundo Venuti.

1.6 – O Canibalismo Tradutório:

A presente discussão acerca das teorias da tradução é marcada por um

espírito mais ponderado de nossos tempos.

Uma alteração teórica vem-se dando no sentido de entender a tradução

como uma atividade em que se trabalha com a linguagem, atua-se com a

diferença, não se podendo mais ter, portanto, a perspectiva de que ela se atenha

a uma mera adaptação de significados e intenções.

André Lefevere, estudioso da tradução pertencente ao chamado grupo

Anglo-Americano, auxiliado sobretudo por descrições de traduções de textos

literários, tem definido importantes áreas de oposição ao domínio da lingüística

sobre a pesquisa em tradução, principalmente por causa das críticas que

apresenta aos que avaliam como entraves as tentativas de sistematização do ato

tradutório.

A apreciação dos trabalhos de Lefevere entre 1981 e 1992 mostra que o

teórico considera a tradução uma reescritura, podendo sofrer a mesma espécie

de coibições que ela. O intercâmbio entre ambas seria, até mesmo, responsável

43

pela canonização de certos autores, reprovação de outros e as modificações

pelas quais passa a literatura, na medida em que a tradução pode contribuir para

o seu percurso.

Em Translation, rewriting and the Manipulation of Literary fame (1992),

Lefevere salienta a dupla função exercida pela reescritura. Por um lado, pode ser

inovadora e revolucionária, pois “pode introduzir novos conceitos, novos gêneros,

novos mecanismos e a história da tradução é também a história da inovação

literária, do poder modelador de uma cultura sobre a outra.” (LEFEVERE,1992,p.

07). Por outro lado, pode ser repressiva e conservadora ao manipular as obras

para que se moldem à poética ou à ideologia constituída. Em quaisquer situações,

o autor ressalta “ tanto a importância da reescritura, a força motriz por trás da

evolução literária, quanto a necessidade de estudo do fenômeno em maior

profundidade”( idem), ao argumentar que a tradução não pode estar unicamente

ligada à lingüística, pois envolve fatores extralingüísticos, tanto na análise quanto

no ensino.

Por muito tempo, tais estudos seguiram rumos diferentes: a área de

literatura enfocando exclusivamente a tradução literária e outras áreas,

especialmente a lingüística, enfocando a tradução “comum”. E como o próprio

Lefevere aponta em vários trabalhos, os rumos que esses estudos seguiram não

foram satisfatórios. Entretanto, dividir o território em dois campos não leva

apenas à noção de que é necessário ter algum talento especial para traduzir

literatura: acaba por conduzir à crença de que a tradução seria uma arte. Por um

44

lado afirma que a especificidade da tradução de literatura não se relaciona ao

processo, mas ao modo como a tradução funciona na literatura ou na cultura-alvo.

De outra forma, também de acordo com Lefevere (1992), o estudo da

tradução nos anos 30 e depois da Segunda Guerra Mundial enfocava tão-somente

o panorama lingüístico. Conjecturava-se que tradução era equivalência e

ignorava-se a tradução literária. Considerava-se mais fortemente a noção de que

são traduções apenas os textos que se apontam como equivalentes, ou seja, que

apresentam todos os segmentos substituídos em outra língua, e tal atitude levaria

à eliminação de muito material que o crítico avalia de primordial importância,

principalmente textos que exibem omissões, acréscimos, resumos,

adaptações, extirpados de análise pelos lingüistas.

Esse olhar sobre o tema da fidelidade aparece assim em Translation/

history/ culture:

Na maior parte dos casos, os

tradutores...reescrevem, tanto no nível do

conteúdo quanto no do estilo...pode-se

mostrar, portanto, que a “fidelidade” em

tradução não é exatidão, nem primeiramente

uma questão de ajustes no nível lingüístico.

Envolve, mais precisamente, uma complexa

rede de decisões tomadas pelos tradutores

nos níveis de ideologia, da poética e do

universo do discurso. (LEFEVERE, 1992, p

35)

45

Neste panorama, a palavra “manipulação” poderia ser avaliada por dois

caminhos que se bifurcam: o de “preparar”, “engendrar”, “forjar”; mas também, o

de “adaptar ou mudar intencionalmente alguma coisa para adequar-se a algum

objetivo”. Da mesma maneira, as noções de desafio e de subversão, que Lefevere

(1992) relaciona podem se reverter para a noção de traição, explícita na

expressão “traduttore, traditore”.

Assim, Lefevere tanto busca traçar caminhos alternativos para o estudo da

literatura, quanto para o estudo da tradução. Uma análise cuidadosa de seus

textos leva a cogitar se seu objetivo não seria oferecer os fundamentos de uma

disciplina que estudasse os textos refratados, ou seja, estabelecer um esboço de

uma disciplina autônoma que tivesse como objeto a reescritura, por que de acordo

com o próprio significado da palavra refractario considera-se que é “aquilo que (de

certo modo) resiste a certas influências”. Reafirmando o indício desse propósito

mais amplo, Lefevere & Bassnett (1990) analisam que o futuro dos estudos da

tradução está na análise de imagens, tanto a de uma determinada literatura

quanto a dos trabalhos que a constituem, ou seja, no estudo da reescritura.

Pensam que a tradução tem sido um dos elementos que moldaram as culturas, o

que implica que não se pode conduzir o estudo da literatura comparada sem a

tradução.

1.7 – A Tradução nos Trópicos:

46

Começaremos esta parte da presente tese relembrando uma máxima do

argentino Jorge Luís Borges na qual afirma que

Se as páginas deste livro consentem algum verso

feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de tê-lo

usurpado, previamente. Nossos nadas pouco

diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que

sejas tu o leitor destes exercícios, e eu o redator

deles. ( Prefácio do livro Fervor de Buenos Aires)

É com esta citação de Borges que Ermelinda Ferreira começa seu ensaio “

O Leitor no Texto” (s/d), relembrando que

Nas ficções de Jorge Luís Borges, uma das

quais, o conto “Pierre Menard, Autor do Quixote”,

tornou-se um verdadeiro fetiche da crítica

contemporânea, ilustrando um dos temas

centrais de teorias da literatura recentes, ao

sugerir um personagem que se impõe a tarefa

quixotesca de escrever o Dom Quixote de

Cervantes, não como uma paródia ou paráfrase

ou cópia ou transcrição, mas como se ele,

Menard, pudesse ser o próprio Cervantes. A

frustração do projeto do francês acaba revelando,

porém, um fato inusitado: afinal, haveria hoje

algum outro Quixote senão o de Menard?; ou

seja, haveria, hoje, alguém capaz de ler a obra

de Cervantes tal como ela teria sido lida no

século XVII, ou só poderíamos ler da obra de

Cervantes aquilo que nosso ‘ horizonte de

47

expectativas’ nos possibilita? Neste caso, o que

lemos não é o Quixote de Cervantes , mas o

Quixote do nosso contemporâneo Menard ( que

nem precisou realmente escrevê-lo, uma vez que

o texto já estava escrito). Em outras palavras –

como diria Fish – não lemos o Quixote, nós o

‘escrevemos’, nós o construímos. (FERREIRA).

A ensaísta neste estudo destaca a importância e a presença do leitor, direta

ou indiretamente, no universo textual, e como tal lembra que a própria leitura é

uma tarefa de escritura. Baseando-se em Borges e seu Pierre Menard, afirma que

os textos “brotam” de outros textos, oriundos dos recantos mais indizíveis de

nossa memória leitora, e portanto estamos autorizados a usar dos livros alheios

como bem nos aprouver. Somos todos “Pierre Menards”, afirma Ferreira, autores

de Quixote, de Hamlet, da Divina Comédia...

Assim podemos admitir que encontramos também considerações amplas

como essa quanto ao fato de “tudo” ser uma tradução, neste novo sentido que o

termo abarca. Partindo deste princípio, desempenhamos todos, e a todo o

momento, ação tradutória, voluntária ou involuntariamente, e chegamos à

conclusão, como querem muitos, de que a tradução é atividade essencial.

Para o argentino Borges, as palavras do passado são contemporâneas,

porque a literatura não distingue diferenças de tempo ou nacionalidade. Em sua

obra – os escritos teóricos, sua ficção e as meticulosas notas explicativas –

podemos perscrutar uma clara identificação das traduções com a criação. Para

48

ele, a verdadeira função da tradução está em transmitir processos estilísticos,

novas formas poéticas, modelos e métodos narrativos, até mesmo critérios de

verdade e beleza, considerando que as línguas não são universos simbólicos

estanques, mas depósitos de processos poéticos e narrativos, de fácil acesso para

a utilização de todos os escritores do mundo.

No Brasil, a tarefa tradutória é algo que coincide com o surgimento das

produções literárias nitidamente nacionais. Um dos primeiros tradutores de que

temos notícia e que citaremos por sua importância em utilizar a tradução como

criação foi Justiniano José da Rocha (1811-1862), o “primeiro dos jornalistas

brasileiros de seu tempo”, título conferido pelo Barão do Rio Branco. Justiniano foi

um dos precursores do romance no Brasil e também um dos responsáveis pela

introdução do romance-folhetim no país, confessou na nota de pé de página de

um de seus romances a imitação de uma obra francesa:

Será traduzida, será imitada, será original

a novela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem

eu mesmo que a fiz posso dizer. Uma obra existe

em dois volumes, e em francês, que se ocupa

com os mesmos fatos; eu a li, segui seus

desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-

los aos limites de apêndices, cerceando umas,

amplificando outras circunstâncias, traduzindo

os lugares em que me parecia dever traduzir,

substituindo com reflexões minhas o que

parecia dever ser substituído(...) (ROCHA, 1839)

grifo nosso.

49

Percebemos que esses folhetins traduzidos vieram preencher um vazio na

literatura brasileira, quando esta se encontrava ainda em formação. Nesse tempo

ela dependia de modelos estrangeiros, porque não criava todo tipo de produção

literária. Esses folhetins é que trouxeram os elementos inovadores que

proporcionaram sua ampliação e renovação. As traduções utilizadas propuseram

novos parâmetros e não funcionaram como uma força conservadora, preservando

formas tradicionais, mas apresentaram um gênero novo – o que ilustra a

relevância da tradução na evolução de uma literatura.

Também em terras brasileiras, vamos encontrar Paulo Ronái, que embora

húngaro de nascimento, estabeleceu-se no Brasil desde 1941, considerado como

um dos mais importantes teóricos da tradução em nosso país.

Todos são unânimes em destacar a importância cultural de seu trabalho

como tradutor rigoroso e dotado de grande conhecimento literário e lingüístico.

Os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, levaram a prática da tradução

criativa às últimas conseqüências, chegando a se deslocar, em alguns momentos,

do texto de origem, e até a inserir versos contemporâneos em poemas do

passado.

Tal prática só foi possível a partir de uma mudança no campo do

conhecimento que relativizou as fronteiras entre modelo e cópia, na medida em

que pôs em questão a própria noção de origem. Não se acreditando no chamado

texto original como gerador de outros, a relação passa a ser não mais de

subordinação, mas de coordenação entre textos.

50

Muitos escritores se apropriaram de outros textos para fazerem os seus.

Entre muitos, destacamos Mário de Andrade, que em carta ao seu amigo

Raimundo Moraes explica o prazer em copiar:

“ copiei sim meu querido defensor. O que me

espanta e acho sublime de bondade, é os

maldizentes se esquecerem de tudo quanto

sabem restringindo a minha cópia a Koch-

Grünberg, quando copiei todos (...) confesso

que copiei, copiei às vezes textualmente” (in

CURY, PAULINO & WALTY, 1998, p.22).

Por ser bem crítico e conhecedor de sua potencialidade, Mário ironiza:

“sinto que meu copo é grande demais para mim, e ainda assim bebo no copo dos

outros”.( Idem, 1998, p.22).

Deste modo, o tradutor se instaura no texto que escreve, resultando daí um

total contra-senso em se afirmar a existência de uma escrita neutra, da qual ele

não se fizesse elemento, e também da existência de uma escrita livre, da qual ele

decidisse por si não participar e ser apenas um manipulador. De acordo com

Ronald Taveira da Cruz, em artigo já citado,

A cada obra de arte (re)lançada, outras mais

estão querendo sair do casulo que tanto as

protege. Saindo dessa proteção, a obra de arte

está exposta a milhares de ângulos de

observação. E cada ângulo tem sua história de

51

leitura e cada nova (re)leitura melhor se afina o

instinto criativo. Essa facilidade de descobrir o

tom mais adequado formando uma harmonia

entre as leituras passadas faz depreender novos

campos de interpretação ao mesmo tempo em

que nos concebe enquanto leitores. E mais,

concebe os criadores como autores. Por isso

todo leitor pode ser autor . E todo autor ,

infalivelmente, é leitor. Neste percurso, o mundo

é uma eterna (re)leitura. Essas (re)leituras

modificam o tempo artístico, fazendo com que o

passado literário , por exemplo, possa ser sempre

moderno. Porque através de um autor moderno,

uma(s) obra(s) que já estava(m) por desistir da(s)

aparência(s), revolta e volta toda cheia de forças

tornando-se (novamente) interessante(s) e

legível(eis). É notável essa visão de que uma

forte e moderna obra literária traz consigo um

passado literário e podemos observar que os

escritores são precursores, nas palavras de

Borges, ‘O fato é que cada escritor cria seus

precursores. Seu trabalho modifica nossa

concepção de passado, como há de modificar o

futuro’ (1999, p. 98). Assim, percebe-se que toda

obra literária está sujeita a novas leituras,

recepções e interpretações, deixando de ser

única e insubstituível.” ( CRUZ, 1998, p. 3 ).

A partir deste ponto, há que se desejar a presença de Oswald de Andrade

com sua antropofagia, que com seu desejo de assimilação do Outro nos indicou

outras perspectivas da construção de uma obra de arte. Ao abastecer-se

52

- no sentido de assimilar, digerir - de uma determinada obra, o autor está

fatalmente ingerindo outras já antes digeridas num sem-fim digestivo. E

esse ato de alimentar-se, se faz a partir das expressões artísticas sempre de

modo seletivo, como um bucho de ruminante, que num processo de mastigação

faz uma seleção daquilo que serviria para assimilação e o que seria, de certo

modo, excretado. “Desta forma, a vontade de comer nutre tanto o original

quanto o traduzido, afastando a imagem de origem inatingível e a projeta como

uma construção híbrida”( CRUZ, 1998, p. 4).

Neste ponto relembramos algumas partes do manifesto oswaldiano:

Só a antropofagia nos une. Socialmente.

Economicamente. Filosoficamente.

[...]

Só me interessa aquilo que não é meu. Lei do

homem. Lei do antropófago.

[...]

De William James a Voronoff. A transfiguração do

tabu em totem. Antropofagia.

[...]

A luta entre o que se chamaria Incriado e a

Criatura-ilustrada pela contradição permanente

do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o

modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção

do inimigo sacro. Para transforma-lo em totem. A

humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só

as puras elites conseguiram realizar a

antropofagia carnal, que traz em si o mais alto

sentido da vida e evita todos os males

53

identificados por Freud, males catequistas. O que

se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É

a escala termométrica do instinto antropofágico,

de carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade.

Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-

se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A

baixa antropofagia aglomerada nos pecados do

catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o

assassinato. Peste dos chamados povos cultos e

cristianizados, é contra ela que estamos agindo.

Antropófagos. (TELES, 2002, p.353).

Vem daí a afirmação imperiosa da ‘palavra’ como algo em construção, ou

seja, a palavra está em processo e seus sentidos estão em sucessivas alterações.

Então, pode-se asseverar que a obra de arte, constituída de palavras e sentidos,

é uma “difusão de saber, inquietação e prazer. Interminável”. ( CRUZ, 1998, p. 4)

Outro que também se manifesta sobre o fenômeno da tradução é Ledo Ivo.

Em um artigo publicado em seu livro A Ética da Aventura (1982), a propósito de

sua tradução de Rimbaud, escreve:

“para o tradutor atento, cada palavra se

engravida de opções; cada frase oferece versões

diversas, desfechando perplexidades e

intimidações; cada parágrafo abre as suas

veredas nos bosques das dúvidas. Nesse

território crítico, ao sabor dos humores cotidianos

e das sugestões dos dicionários, o oficiante se

sente intranqüilizado pelas possibilidades que a

cada passo vão vincando seu trabalho” (IN

Silveira Jr, 1983, p.47)

CAPÍTULO 2:

LITERATURA COMPARADA:

“UMA DISCIPLINA INDISCIPLINADA”:

La reflexión desde la periferia, entonces, está

atravesada por múltiples presupuestos y

estereotipos y genera actitudes variadas. Mirar

desde afuera sirve, mirar desde adentro

también. Lo que no sirve es mirar sólo desde la

afuera o sólo desde la región.

HUGO ACHUGAR

2.1 – A Literatura Comparada e a releitura da Dependência

Cultural:

O comparatismo tradicional no Ocidente foi marcado pelas noções de

“fonte” e “influência” que determinavam uma filiação excludente entre textos,

valorizando os pontos de contato entre eles numa relação que denotava

vassalagem ou filiação de uma obra a outra. A valorização dos textos era feita a

partir do estabelecimento de uma grande quantidade de pontos em comum com a

obra considerada matriz privilegiando o rastreamento das semelhanças e

analogias e desprezando as diferenças responsáveis por marcar as peculiaridades

de cada autor . Estabelecidos os critérios de valoração , aquilo que não

encontrava correspondência dentro do cânone era considerado uma cópia

55

imperfeita do modelo. Segundo este paradigma, favorecia-se a noção de

continuidade do texto influenciador, promovendo, no texto influenciado, uma

sensação de desvantagem. Nesse sentido, foram formadas verdadeiras

“linhagens” culturais privilegiadas por serem originais e cronologicamente

anteriores a quaisquer outras não pertencentes ao restrito círculo. A cronologia se

faz, portanto, fator fundamental num universo tradicional e marca ainda mais a

dependência dos textos periféricos sempre feitos com atraso cronológico com

relação aos textos da metrópole. A crítica brasileira Sandra Nitrini assim se

posiciona quanto a essa prática no capítulo em que traça os percursos históricos e

teóricos da Literatura Comparada.

A literatura comparada tinha-se limitado, até

então, a estudar mecanicamente as fontes e as

influências, as relações de fato, a fortuna, a

reputação ou a acolhida reservada a um

escritor ou a uma obra e as causas e

conseqüências deterministas das produções

literárias, sem nunca se ter preocupado em

desvendar o que tais relações supõem ou

poderiam mostrar no âmbito de um fenômeno

literário mais geral, a não ser mostrar que um

escritor leu ou conheceu outro escritor.

(NITRINI, 1997, p. 34).

Nesse histórico, percebemos que toda a literatura produzida no ocidente

era fruto de uma proposta eurocêntrica de busca de analogias entre textos.

56

O rastreamento dessas “afinidades” proporcionou uma “contabilidade”

baseada em débitos e créditos. Essa orientação mostrou-se, muitas vezes,

imperialista, pois aumentava a noção de débito do segundo texto com relação ao

primeiro. De fato, ao valorizar mais as culturas já estabelecidas, preservava-se o

cânone literários e criava-se um certo sentimento de dependência. Os textos das

culturas periféricas eram valorizados à medida que apresentavam uma série de

pontos afins com os textos europeus tomados como matriz. Dessa forma a

influência destes naqueles era vista como uma via de mão única, do colonizador

para o colonizado, reforçando a dependência cultural. A partir daí, concluiu-se que

a instauração de espaços definidos para o “mesmo” e o “outro” subjazia todo o

processo comparatista tradicional.

No sentido geral e no contexto brasileiro, a Literatura Comparada sofreu

com esta perspectiva universalizante que permeava os estudos comparatistas. O

trabalho comparatista brasileiro antes dos anos 70 apoiava-se nos modelos

franceses que apregoavam a valorização das fontes e influências. Deste modo

aumentava-se ainda mais a noção de débito. Nesse universo de dependência

cultural, apenas as apropriações “elogiosas” eram permitidas porque não

desestabilizavam uma hierarquia sistematicamente constituída. Assim se fortalecia

a prática colonizadora mascarada de um falso universalismo.

Novas orientações comparatistas no ocidente surgiram sobretudo a partir

da década de 70. Os antigos conceitos de “fonte” e “influência” foram substituídos

pela idéia de “diálogo entre textos”. A Literatura Comparada assumiu uma postura

57

mais democrática e encabeçou uma proposta valorizadora de questões referentes

à identidade cultural e de uma revisão dos “cânones literários”. Essa articulação

proporcionou uma nova dimensão para as literaturas periféricas. O conceito de

influência passou por uma revisão geral que confirmou sua existência, porém

considerando-se agora a mudança criativa imposta por parte do texto influenciado.

Essa atitude foi o primeiro passo para que o comparatismo assumisse uma nova

postura que valorizasse sobretudo as diferenças e caminhasse para uma

desarticulação da relação colonizador/colonizado promovendo mesmo, uma

descolonização cultural. O fazer literário tornou-se o principal espaço para o

diálogo entre o influenciador e o influenciado, este já não mais restrito à

inferioridade da periferia. Nessa relação não mais se sublinha as noções de débito

e dependência e sim as de acréscimo e autonomia. A diferença, agora em

evidência, passa a ser vista como uma possível mudança no texto matriz.

É importante lembrar que a tônica dos estudos comparatistas atuais está

longe de se embasar em um deslocamento do que antes era tido como central e a

ocupação de seu diferencial periférico. O enfoque dos estudos de Literatura

Comparada na atualidade propõe um questionamento da supremacia e

hegemonia das culturas colonizadoras e uma valorização da pluralidade resultante

do contato dialógico entre colonizador e colonizado.

Nas abordagens comparatistas atuais aparece o contato recíproco entre os

textos em substituição à via de mão única que relativizava o valor do segundo

texto em detrimento do primeiro. A diferença, antes vista como um “defeito” no

58

segundo texto, passa a ser a grande responsável pela possível afirmação de uma

identidade cultural. Nesse sentido a Literatura Comparada cai como uma luva

sobre a necessidade de auto-afirmação de países periféricos com é o caso do

Brasil. O comparatismo atual deu o devido destaque às peculiaridades de cada

autor e de cada literatura. Por este âmbito, os estudos comparatistas podem

colaborar para a descolonização cultural uma vez que o comparatismo atual

acredita na inserção original que o segundo texto pode imprimir ao se diferenciar

do primeiro. De acordo com os críticos comparatistas da atualidade, esse diálogo

permite que os textos da metrópole, antes aceitos irretocavelmente, possam ser

avaliados dentro da sua universalidade e os textos periféricos, na diferença que

imprimem. Ainda de acordo com esse críticos, os textos agora descolonizados

possuiriam uma riqueza por conter em si o texto original e a diferença como

resposta à influência. Com relação a essa postura assim resume o crítico Silviano

Santiago

Paradoxalmente, o texto descolonizado da

cultura dominada acaba por ser o mais rico ( não

do ponto de vista de uma estreita economia

interna da obra) por conter em si uma

representação do texto dominante e uma

resposta a esta representação no próprio nível da

fabulação. (SANTIAGO, 1982, p. 23).

59

Nesse sentido e no contexto periférico brasileiro, esses estudos

comparatistas participam ativamente do processo de descolonização cultural. O

papel do comparatista nas comunidades periféricas é de suprema importância

para a definição do próprio sistema literário e muito além de estar a serviço das

literaturas nacionais, o rastreamento das relações intertextuais possibilita a

identificação das apropriações modificadoras e criativas, incluindo aí as traduções.

Em resumo, o comparatista deixa de ter uma função única e exclusiva de

contrapor e confrontar autores e obras literárias para avaliar um texto que se

articula com o contexto social, político e cultural onde o fazer literário acontece.

Sem sombra de dúvida a Literatura Brasileira, que aqui tomamos como exemplo,

recebe uma forte influência da européia e de outras literaturas, mas para além

desta influência é preciso considerar a relevância de uma “fidelidade ao contexto”

em que ela se insere. A palavra contextualização torna-se lugar comum nos

estudos comparativos atuais porque proporciona uma possível explicação para as

diferenças entre os textos.

Assim aconselha o crítico Antonio Candido:

Se pudermos marcar alguns aspectos desta

interação talvez possamos esclarecer como, em

país subdesenvolvido, a elaboração de um

mundo ficcional coerente sofre de maneira

acentuada o impacto dos textos feitos nos países

centrais e, ao mesmo tempo, a solicitação

imperiosa da realidade natural e social imediata.

(CANDIDO, 1993, p. 125).

60

Dentro da perspectiva da Literatura Comparada atual observamos um

favorecimento para que as questões de identidade e descolonização culturais

sejam postas na ordem do dia. A partir dos anos 70, a Literatura Comparada

adicionou à sua prática, que até então valorizava um discurso unidirecional, um

estudo mais situado historicamente. Aos poucos revertem-se as “tintas

etnocêntricas” e animam-se os que pretendem uma aproximação com questões de

valor indiscutível nas comunidades periféricas como as questões sobre identidade

cultural.

As discussões críticas voltaram os olhos para as questões locais onde

antes se discutia o universal – um universal camuflador da prepotência imperialista

eurocêntrica.

As questões interdisciplinares e intersemióticas ganharam destaque

somadas às diferentes relações culturais antes destituídas de crédito. O contexto

ganhou um outro verniz a partir do momento em que as obras e textos literários já

não podem mais ser vistos sob o ângulo exclusivamente estético.

Os locais periféricos tornaram-se de extrema importância para a discussão

de temas tais como a articulação de produtos culturais destes postos e o resgate

da tradição local. O resultado deste questionamento tem sido uma

desierarquização da hegemonia colonizadora. Nesse sentido assim se posicionam

Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda

Assim é que repensar a nossa tradição cultural

de forma a colocá-la em posição diferenciada e

61

particularizada diante da tradição estrangeira (por

sua vez assimilada por nós) constitui um dos

pontos básicos de se colocar a questão da

dependência e, ao mesmo tempo, se livrar de

seu condicionamento exclusivista. (SOUZA &

MIRANDA, 1997, p. 42).

No caso brasileiro, o comparatismo até os anos 70 também esteve ligado

ao estudo das fontes e influências tomando por base textos franceses sempre

revestidos por uma aura superior que acentuava ainda mais a condição de

dependência dos textos aqui produzidos.

Na postura atual, os estudos comparatistas brasileiros enfatizam nos textos

a devolução criativa e a apropriação transformadora das fontes européias e norte-

americanas. Importa destacar que o valor da diferença não reside na simples

diferença literária, mas na sua relação com os registros locais e na valorização

dos discursos multiculturais.

2.2 – Tradução e Literatura Comparada, relações possíveis.

Uma vez que corrobora para o entendimento do Outro, a Literatura

Comparada avaliza sua presença na construção do processo de integração

cultural, e nesta empreitada muitos podem ser os caminhos escolhidos pelo

62

comparatista para chegar ao seu intento: lançar-se no trabalho com a tradução

literária, atuar com a estética da recepção e outros tantos mais.

Como nosso objetivo nesta tese é refletir, dentre outras hipóteses, sobre os

caminhos trilhados pela Literatura Comparada e seu envolvimento com a

tradução, pretendemos inventariar neste momento algumas considerações sobre o

assunto.

Nossa empreitada sugere um exame da participação da tradução como

intercessora nas relações interculturais e de sua atuação como instrumento de

trabalho do comparatista em sua tarefa de contrastar literaturas ou culturas

diferentes a fim de verificar de que forma o comparatista, ao lidar com a tradução,

transpõe os limites do simples ato de comparar traduções e aprofunda-se no

estudo das influências.

O estudo da recepção dessas traduções revela, muitas vezes, o impacto

que as traduções podem causar, seja pelas relações entre as línguas e culturas

envolvidas, seja pelas diferenças que as mesmas possam desvendar.

Num artigo intitulado “ O que é Literatura Comparada”, George Steiner

(1997) reflete sobre essas relações deste modo:

“Todas las facetas de la traducción – su

historia, sus medios léxicos y gramaticales, las

diferencias de enfoque, que van desde la

traducción interlineal , palabra por palabra ,

hasta la más libre imitación o adaptación

metamórfica – tienen un valor crucial para el

comparatista. El comercio que se da entre las

63

lenguas, entre los textos de distintos períodos

históricos o formas literarias, las complejas

interacciones que se producen entre una

traducción nueva y las que la han precedido, la

antigua pero siempre viva batalla entre ideales,

entre ‘la letra’ y ‘el espíritu’, es el de la literatura

comparada misma.” (STEINER,1997, p. 150).

Nesse mesmo caminho, estudando o objeto e a finalidade da Literatura

Comparada, Leyla Perrone-Moysés também nos fornece os seu olhar:

“Estudando relações entre diferentes

literaturas nacionais, autores e obras, a

literatura comparada não só admite, mas

comprova que a literatura se produz num

constante diálogo de textos, por retomadas,

empréstimos e trocas. A literatura nasce da

literatura; cada obra nova é uma continuação,

por consentimento ou contestação, das obras

anteriores, dos gêneros e temas já existentes.

Escrever é pois, dialogar com a literatura

anterior e com a contemporânea. (PERRONE-

MOYSÉS,1990, p. 94).

A tradução sempre facilitou a inter-relação com as obras-primas da

literatura mundial e é uma das maneiras de se revelar as marcas tanto estilísticas

quanto culturais da produção artística da humanidade.

Ponderar que a tradução de textos literários é um processo intelectual e

criativo é ponderar que depois de ser repatriado de um contexto para outro, estão

64

envolvidos nesse processo, além das duas línguas distintas também duas culturas

diferentes. O comparatista tem aí um prato cheio para a verificação do quanto

esse texto-de-partida alterou ou não a cultura que o recebeu ou que aclimatações

foram feitas, ou seja, o comparatista tem ampliado seu processo investigativo de

fontes e influências.

Ao apreciar a tradução a partir destes aspectos, o comparatista ainda deve

considerar a necessidade de sua feitura, a qual patrimônio literário ela passou a

integrar e até que relações ela pode ter com a produção local. É tarefa do

comparatista divulgar, como afirma BRUNEL, PICHOIS & ROUSSEAU ( 1993, p.

137) , que ela é muito mais que a “ multiplicação aparente do número de leitores,

mas escola de invenção e descoberta”.

Num contexto histórico decisivo, as culturas dependentes têm tomado uma

direção que considera a tradução como uma prática que possibilita a construção

de identidade, com participação efetiva na constituição de autores, leitores e

nações.

Uma vez que os países em desenvolvimento são locais que proporcionam

o conflito entre igualdade e a diferença cultural, o texto estrangeiro passa a ter a

oportunidade de revisar a hierarquia dos discursos culturais estabelecidos, cruzar

as fronteiras entre as comunidades culturais locais e alterar a reprodução de

valores e práticas já instituídas, promovendo a inovação e a mudança cultural.

Nesse caso, a importância de qualquer texto traduzido depende dos

efeitos e funções de sua recepção, os quais não podem ser anteriormente

65

calculados ou controlados. Um aparato crítico sobre a tradução e suas funções

pode contribuir para desfazer a imagem de que traduzir é destruir, corromper,

mas por outro lado não consegue retirar a idéia de que a tradução é um desvio ou

um deslocamento em relação a um “equivalente” possível, e isso de modo algum é

pernicioso, ao contrário, contribui a ponto de fortalecer a idéia de que a tradução

age como intercessora nas relações interculturais e se torna, mais do que nunca,

um lauto material para o trabalho do comparatista.

Sandra Nitrini (1997) em seu livro Literatura Comparada – História, Teoria e

Crítica, mais especificamente no subcapítulo intitulado “Tradução, Tubo de Ensaio

de uma Influência” apresenta o trabalho de Onédia Barboza que tem o título de

Byron no Brasil, Traduções (1975), a fim de destacar os estudos desta autora

acerca dos levantamentos e análises das traduções brasileiras da obra de Byron

entre os anos de 1832 e 1911. Com o intuito de aprofundar suas idéias sobre o

tema, Onédia apóia-se no livro de ensaios de Literatura Comparada de Harry

Levin chamado Refractions (1994), no qual o estudioso, apropriando-se de um

termo da física que explica a transformação de um raio luminoso, o transporta

para os estudos das relações literárias internacionais. Ao raio de luz, ao calor,

corresponderia em literatura a comunicação, a expressão e qualquer mudança no

seu rumo seria determinada pela natureza do meio. Nitrini afirma que, em

literatura comparada, tanto as traduções quanto as suas “meias-irmãs” ( 1997, p.

230) , as paráfrases, as imitações servem para destacar as intellectual refractions

descritas por Levin.

CAPÍTULO 3:

MACHADO DE ASSIS ANTECIPANDO O SÉCULO XX

Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como

se o estivesse “traduzindo”, de algum alto original,

existente alhures, no mundo astral ou no plano

das idéias, dos arquétipos, por exemplo. Nunca

sei se estou acertando ou falhando, nessa

“tradução”. Assim, quando me “re”- traduzem para

outro idioma, nunca sei, também, em casos de

divergência, se não foi o tradutor quem, de fato,

acertou, restabelecendo a verdade do “original

ideal”, que eu desvirtuara...

Guimarães Rosa

Como é impossível trazer aqui as manifestações de todos os que se

pronunciaram a respeito das teorias de citação, apropriação, reescritura,

reinterpretação, ou seja, tudo aquilo que na atualidade é abarcado pelos estudos

de tradução, procuramos seguir mais de perto, embora de modo sucinto, o

pensamento de alguns intelectuais que de algum modo mantém um diálogo com o

pensamento machadiano. Então nos aproximamos da proposta de escritura

antropofágica de Oswald de Andrade, consideramos a tarefa do tradutor segundo

Walter Benjamin, a transculturação e a plagiotropia de Haroldo de Campos, a

tradução-deglutição de Augusto de Campos e a tese do tradutor como autor da

67

diferença de Rosemary Arrojo a fim de entabularmos um diálogo com Machado de

Assis para comprovar o quanto esse “escritor de seu tempo e de seu país”

antecipa questões tratadas quase um século depois.

Comecemos por 1923, ano no qual Walter Benjamin publica o ensaio “ Die

Aufgabe des Übersetzers” (A Tarefa do Tradutor) em Heidelberg, Alemanha, como

prefácio de seu tradução dos Tableaux Parisiens de Baudelaire, que agrupa-se a

outros textos em que o autor trabalha com a linguagem como Sobre a Linguagem

em Geral e sobre a Linguagem dos Homens (1916); a Doutrina do Semelhante e

Sobre a Faculdade Mimética (1933) e Problemas da Sociologia da Linguagem

(1935).

Em “A Tarefa do Tradutor”, Benjamin define tradução como “forma”,

esclarecendo-a também frente a outras definições negativas: tradução não é

recepção, não é comunicação, não é imitação.

Tradução não é recepção, e para comprovar isso Benjamin parte da

afirmação de que uma obra de arte ou uma forma de arte ou as reflexões teóricas

sobre uma obra de arte não dependem de sua relação com um receptor e que

elas apenas implicam “a existência e a essência do homem em geral”. Na

verdade, Benjamin já começa seu ensaio afirmando que em lugar algum a

importância do receptor revela-se imprescindível para o conhecimento da obra de

arte. E que é um “desvio” a concepção de um “receptor ideal”. Assim, pois, como

a arte não tem como objetivo um receptor também a tradução não o deve ter, pois

que esta tem por finalidade somente traduzir aquela.

De acordo com Benjamin

68

Se ela (a tradução) for destinada ao leitor,

também o original o deveria ser. Se o original não

existe em função do leitor, como poderíamos

compreender a tradução a partir de uma relação

dessa espécie? ( BENJAMIN,1987, p. 191)

Esta teoria de Walter Benjamin desencadeou a ira de muitos teóricos,

principalmente os da Estética da Recepção, que encerra no leitor/receptor o ponto

de partida para suas apreciações artísticas e literárias.

Tradução não é comunicação. Depois de desconsiderar o receptor,

Benjamin teoriza que “a arte é muito mais do que comunicação, é comunhão”,

porque uma obra de arte não comunica o seu essencial, que reside no indizível,

no “intangível, misterioso, poético”. Uma vez que o objetivo da obra de arte não é

comunicar, por que o deveria fazer a tradução de tal obra ? A

comunicação não é essencial também na tradução, e se a pretensão desta for

comunicar e servir ao leitor então ela é uma má tradução.

Tradução não é imitação, porque a tarefa do tradutor é “resgatar em sua

própria língua a língua pura”, que se complementa na língua estrangeira. É sua

tarefa liberar, pela repoetização ( Umdichtung), a língua pura, cativa na obra (

Dichtung). Desta maneira, o tradutor só pode restituir o poético ao tornar-se ele

mesmo um poeta, pois a obra do poeta ( Dichter) é fruto do poetizar (dichten). O

tradutor (Überzetzer) deve re-poetizar (umdichten) para re-criar aquela obra

(Umdichtung), deve tornar-se, pois, re-poetizador (Umdichter). Não pode haver

tradução se esta pretende essencialmente imitar o original, diante do que

69

conceitos como fidelidade X liberdade, suas definições e possibilidades aparecem

como secundários, porque ao criar uma obra de arte literária, o poeta já define e

imprime um sentido, tornando a tradução isenta do papel de criação deste sentido,

já instaurado no original; a tarefa do tradutor não é criar, mas re-criar a criação.

Nesse ponto, o ensaísta alemão se aproxima do nosso Machado de Assis

que em uma crônica datada de 17 de outubro de 1864 se refere à tradução da

Morte de Sócrates assim:

Não li toda a tradução da Morte de Sócrates,

nem a comparei ao original; mas as páginas

que cheguei a ler pareceram-me dignas do

poema de Lamartine. O próprio tradutor

declara que empregou imenso cuidado em

conservar a frescura original e os toques

ligeiros e transparentes do poema. Essa

deveria ser, sem dúvida, uma parte da

tarefa; para traduzir Lamartine é preciso

saber suspirar versos como ele. (ASSIS, In:

JACKSON, v.23, p.192) ( grifo nosso).

A tradução advém do original. A tradução é uma manifestação da vida, “da

sobrevida” (Überlen) deste original e enquanto manifestação de vida tem por

finalidade a expressão da essência da vida ( do original).

Novamente citando Benjamin,

70

Da mesma forma com que as manifestações

vitais estão intimamente ligadas ao ser vivo, sem

significarem nada para ele, a tradução provém do

original. Na verdade, ela não deriva tanto de sua

vida quanto de sua sobrevivência. Pois a

tradução é posterior ao original e assinala, no

caso de obras importantes, que jamais

encontraram à época de sua criação seu tradutor

de eleição, o estágio de continuação de sua vida.

A idéia da vida e da continuação da vida das

obras de arte deve ser entendida em sentido

inteiramente objetivo, não metafórico. (Idem, p.

193).

A finalidade da tradução, segundo Benjamin, é a observação da essência,

revelada pela língua da verdade, que seria a língua pura, a qual nunca é

plenamente resgatada, mas que pode ser concebida a partir da

“complementaridade de sentido” possibilitado na reprodução das formas e

dos significantes das línguas entre si, e que só pode ser expressa por

aproximações e analogias, conseguida pelo poético. “A tarefa do tradutor é

provocar o amadurecimento, na tradução, da semente da língua pura”.

O texto está fundamentado sobre uma concepção de linguagem, uma teoria

da linguagem, que Benjamin constrói ao longo de sua obra, na qual os textos vão

se interligando, dialogando, se traduzindo. “Tradução é uma forma”. A partir desta

tese central, reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr, trans-formar na língua da

tradução a arte do original, trazendo para a sua língua a maneira de significar do

original. A complementaridade surge do confronto entre duas línguas, e possibilita,

71

muitas vezes, a revelação de um sentido antes despercebido na língua do original.

Ou seja, um determinado significado, encoberto nos originais, se demonstra

na sua traduzibilidade. Se essa tarefa é possível, a tradução também é possível.

Benjamim também se opõe à tese central da teoria tradicional da tradução

que trabalhava sobre a relação entre “fidelidade à palavra e liberdade de

reprodução do sentido do original”.

Nesse sentido assim coloca Benjamin

Se é a afinidade entre as línguas o que

deve se verificar nas traduções, como poderiam

elas fazê-lo, senão pela transposição mais exata

possível da forma e do sentido do original?

Naturalmente, a teoria em questão (teoria

tradicional da tradução) não saberia manifestar-

se a respeito de como tal exatidão seria

concebida e, finalmente, não poderia dar conta

daquilo que é essencial em traduções. [...] Para

compreender a autêntica relação entre o original

e tradução deve-se realizar uma reflexão, cujo

propósito é absolutamente análogo ao dos

argumentos por meio dos quais a crítica

epistemológica precisa comprovar a

impossibilidade de uma teoria da imitação. [...]

Pode-se comprovar não ser possível existir uma

tradução, caso ela, em sua essência última,

ambicione alcançar alguma semelhança com o

original. Pois na continuação de sua vida ( que

não mereceria tal nome, se não se constituísse

em transformação e renovação de tudo aquilo

que vive), o original se modifica (BENJAMIN, p.

195-7) grifos nossos.

72

De acordo com Mauri Furlan, especialmente dedicado aos estudos sobre

Benjamin

A tradução possui uma tarefa grandiosa,

messiânica, redentora; ela deve, em última

instância, expressar a realidade da ‘língua pura’

que se reflete nas línguas do original e da

tradução, da obra de arte e sua ‘reprodução’.[...]

Seu papel é, como o do profeta, de instrumento,

de trans-positor, trans-formador, re-formador, re-

poetizador da poesia, do modo de significar do

original. (FURLAN, 1996, p.11-2)

Cabe ao tradutor, então, uma missão profética: “reconduzir a linguagem

babélica à linguagem edênica”.

Devido à sua ousadia, Die Aufgabe des Übersetzers é um texto que, desde

sua publicação , tem motivado inúmeras discussões e mesmo leituras

controversas. Um bom exemplo disso é a leitura que Paul de Mann faz do ensaio

de Benjamin. Ele afirma que “o texto de Benjamin diz que é impossível traduzir” e

que “qualquer tradução é sempre inferior em relação ao original, e o tradutor está,

como tal, perdido logo à partida”. Já o argentino Jorge Luis Borges discorda e diz

que na tradução a recombinação de elementos não é obrigatoriamente inferior ao

original. A crença na inferioridade das traduções procede da experiência da

repetição do original”.

Por que para Benjamin

O maior elogio a uma tradução, sobretudo na

época de seu aparecimento, não é poder ser lida

73

como um original em sua língua. [...] a verdadeira

tradução é transparente, não encobre o original,

não o tira da luz; ela faz com que a pura língua,

como que fortalecida por seu próprio meio, recaia

ainda mais inteiramente sobre o original.

(BENJAMIN, 1987, p. 209)

Para Cristina Monteiro de Castro Pereira , em “A Tarefa do Tradutor”,

Benjamim se inspira numa passagem bíblica para falar sobre tradução. De acordo

com a ensaísta, para Benjamim “a multiplicação dos idiomas afasta os homens de

sua origem divina”. Deste modo, a tradução, nos moldes mais tradicionais, estaria

contaminada por uma enorme carga de melancolia, “advinda da impossibilidade

de recuperação total do texto original em uma outra língua”.

Eis a passagem citada por Pereira

Temendo um novo dilúvio, os homens

constroem uma torre de medidas transgressoras:

queriam alcançar o céu. A hybris, ancestral

tentação trágica do homem de ultrapassar seus

limites, está presente na história da Torre de

Babel do Antigo Testamento e provoca a ira não

mais dos deuses gregos, mas de um onipotente e

único Deus. Indignado com a pretensão dos

homens, o Todo-Poderoso faz a torre

desmoronar e os priva da língua universal: cria e

dissemina entre eles diferentes idiomas,

dificultando o entendimento entre os povos.

(PEREIRA, 2006, p. 1)

74

Quando lidamos com textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua

mensagem conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o

leitor e a obra, torna-se ainda mais difícil abarcar toda a riqueza de significados e

transpô-la para uma outra língua.

Diante do impasse e de sentenças taxativas quanto à impossibilidade da

tradução de textos literários, chega-se a uma saída possível: assumir a falta e

transformá-la em trampolim para a criação. Esta é a solução apontada por teóricos

como Haroldo de Campos e Walter Benjamin. O “impossível de se dizer” do

original se transforma em espaço para criação artística. Opondo-se à visão

tradicionalista, que colocava o tradutor e seu texto numa posição secundária e

subserviente em relação ao autor e ao original, Campos e Benjamin conquistam,

para a tradução, sua autonomia.

As lacunas não têm mais, neste caso, uma conotação negativa: a falta que

antes provocava melancolia transforma-se agora num impulso criativo para o

tradutor.

Como metaforiza Benjamin

Da mesma forma com que a tangente toca a

circunferência de maneira fugidia e em um ponto

apenas, sendo esse contato, e não o ponto, que

determina a lei segundo a qual ela continua sua

via reta para o infinito, a tradução toca

fugazmente e apenas no ponto infinitamente

pequeno do sentido do original, para perseguir,

segundo a lei da fidelidade, sua própria via no

interior da liberdade do movimento da língua.

(BENJAMIN, 1987, p. 211)

75

Avancemos ao ano de 1928, e atentemos para a Revista de Antropofagia,

a qual publica, assinado por Oswald de Andrade ‘em Piratininga, ano 374 da

deglutição do Bispo Sardinha’, a idéia base do Manifesto Antropófago que traz em

si a intenção insidiosa de ‘alimentar-se de tudo o que o estrangeiro traz para o

Brasil, sugar-lhe todas as idéias e uni-las às brasileiras, realizando assim uma

produção artística e cultural rica, criativa, única e própria. Era urgente desvincular-

se de laços passados – reforça o Manifesto, que é uma resposta às questões

colocadas pela Semana de Arte Moderna de 22 e propõe a renovação da arte

brasileira que nasceria da absorção da cultura externa: o europeu devia ser

devorado.

Haroldo de Campos crê que com a “antropofagia” oswaldiana, tivemos um

sentido mais agudo de pensar o nacional em relacionamento dialógico com o

universal. A proposta de Oswald de Andrade é o pensamento de uma devoração

crítica do legado cultural universal eliminando a participação do “bom selvagem”

romântico, mas através do “mau selvagem” antropófago, devorador daqueles que

podem contribuir para o “robustecimento” e a “renovação” de suas próprias forças.

Machado antecipa em muitos de seus textos a proposta oswaldiana. Em

Memórias Póstumas de Brás Cubas, especialmente no capítulo do ‘delírio’, sugere

uma devoração próxima da visão antropofágica de Oswald de Andrade que

alargou as fronteiras da imitação, adaptação, assimilação e originalidade.

76

No capítulo em questão, Brás Cubas relata seu próprio delírio e depois de

tomar a forma de um barbeiro chinês, de ser transformado na Suma Teológica de

S. Tomás, foi restituído à forma humana e arrebatado por um hipopótamo que o

levou a origem dos séculos onde dialogou com a Natureza ou Pandora pedindo

mais alguns anos de vida

Para que queres tu mais alguns instantes de

vida? Para devorar e seres devorado depois?

Não estás farto do espetáculo e da luta? [...] a

onça mata o novilho porque o raciocínio da onça

é que ela deve viver, e se o novilho é tenro

melhor: eis o estatuto universal. (ASSIS, 1992, p.

522).

Desse modo todas as informações advindas de diferentes contribuições,

depois de emaranhadas, preparam-se para “nova mastigação”, numa digestão, da

qual não é mais possível apontar o “organismo assimilador” ( a onça) da “matéria

assimilada” ( o novilho).

Depois de ser citado várias vezes neste trabalho, chegou a vez de nos

atermos mais detidamente em Haroldo de Campos, poeta, crítico e tradutor, cuja

ação regula-se pela conjugação da tradução com a antropofagia, decorrente da

associação com a intertextualidade. Por esse caminho, “retoma-se o projeto

artístico modernista de Oswald de Andrade e se recoloca a questão da nossa

literatura e das literaturas do chamado Terceiro Mundo como ‘tradutoras’ da

cultura do Outro” (SOUZA, 1993, p. 39). A necessidade de congregar a produção

77

artística dentro de um movimento universal provoca a conscientização da nossa

dívida para com as culturas dominantes, mas, por outro lado, insinua que a

superação desse débito se dá por meio da devoração antropofágica da herança

cultural estrangeira e a devolução de um texto modificado por uma digestão

oswaldiana que torna impossível distinguir o assimilador do assimilado. De seu

artigo “Da razão antropofágica: A Europa sob o signo da devoração”, de 1981,

originalmente publicado na Revista Colóquio/Letras, Lisboa, podemos destacar a

opinião de Campos com relação a essa prática

A um certo momento, com Borges pelo

menos, o europeu descobriu que não podia mais

escrever a sua prosa do mundo sem o contributo

cada vez mais avassalador da diferença aportada

pelos vorazes bárbaros alexandrinos. Os livros

que lia já não podiam ser os mesmos, depois de

manducados e digeridos pelo cego homeríada de

Buenos Aires, que ousara até mesmo reescrever

o Quijote, sob o pseudônimo de Pierre Menard...

Que haveria de novo, sem Borges, no nouveau

roman de Robbe-Grillet? Quem poderá agora ler

Proust sem admitir Lezama Lima? Ler Mallarmé,

hoje, sem considerar as hipóteses intertextuais

de Trilce de Vallejo e Blanco de Octavio Paz?

(CAMPOS, 1991, p. 23)

A opinião generalizada veicula que traduzir é trair, mas para Haroldo de

Campos é uma traição que gera virtudes. Desafiando as reservas contra a

tradução, ele praticou-a durante anos, sistematicamente. Porém, ao contrário de

78

muitos, raramente traduziu obras inteiras, apenas o que lhe agradava e acreditava

que traduzir é transcriar.

Transcriação é um neologismo cunhado por Haroldo de Campos para

nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limites do significado e se propõe à

fazer funcionar o próprio processo de significação original numa outra língua. Essa

proposta retoma criativamente o “modo de intencionar” do original e o recria de

modo artístico, através de sutilezas da forma e da linguagem em português. Mas

isto ocorre de tal forma que acaba por tornar-se o que o escritor brasileiro chama

de “transluciferação mefistofáustica”.

O texto “Transluciferação Mefistofáustica”, está presente no livro Deus e o

Diabo no Fausto de Goethe (1981), no qual Haroldo de Campos comenta o seu

método de trabalho a respeito de sua tradução da segunda parte do Fausto. Já a

partir do título do livro podemos observar o processo de criação de Campos, o

qual faz referência ao filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol

(1963) e a um clássico do Romantismo Alemão. A justaposição dos títulos do filme

e do romance na composição do título da obra de Campos remete à

aproximação de uma obra artística oriunda de um contexto periférico

irreverentemente associada a um romance canônico.

Já o termo “transluciferação mefistofáustica” deve ser olhado também

através do processo de composição e também representa o viés da teorização

tradutória de Haroldo de Campos. A palavra “transluciferação” é formada pelo

prefixo “trans-” que significa “movimento através de” e pelo vocábulo “luciferação”

que por sua vez é derivado da colocação de um sufixo à palavra Lúcifer,

79

expressando que a tradução se dá através de um processo e de uma atitude

luciferina. Nesse ponto, Campos de afasta da teoria de Benjamin que apresenta

uma concepção angelical, segunda a qual a tradução “libera a língua pura cativa

no original”. A segunda palavra do termo retoma dois personagens do Fausto, de

Goethe: Fausto e Mefistófeles. O primeiro é um velho cientista que se sente

insatisfeito com o que realizou, já que pensa ter sacrificado sua juventude, além

de nunca ter encontrado um grande amor. Diante disso, o segundo, oferece a ele

a mocidade perdida, dinheiro e o amor de uma mulher. Em troca, Fausto teria que

lhe oferecer sua alma. Numa relação simbólica Mefistófeles seria a tradução,

possuidora de um poder luciferino, satânico e Fausto, o original, que num pacto

com a tradução se doaria, mas receberia de volta a própria vida renovada. De

acordo com alguns estudiosos, até o posicionamento dos termos na palavra

“mefistofáustico” parece sugerir que é a tradução é que deve se mover em direção

ao original, na intenção de, num pacto, oferecer-lhe nutrimento em troca da sua

forma, pois o termo Mefisto vem antecedendo Fausto.

De modo muito semelhante a Machado de Assis, Haroldo de Campos vai

embutindo sua teoria em toda sua produção literária, diretamente ou através de

metáforas, como a definição da tradução “como transfusão. De sangue. Com um

dente de ironia poderíamos falar em vampirização, pensando agora no nutrimento

do tradutor” (CAMPOS, 1981, p. 208).

Segundo Campos, o discurso tanto musical quanto literário, possui um

elemento que pode ser imitado, variado, transposto, modulado, por vezes

80

transformado até se tornar irreconhecível...”um outro de si mesmo” que caminha

simplesmente para se tornar um novo ente, verdadeiramente autônomo no seu

significado estético.

Atualmente parece haver um consenso de que o ato de tradução exige do

tradutor uma prática criativa e crítica capaz de recriar o texto original de modo a

respeitar-lhe a integridade estética.

O discurso tradutório torna-se relevante por propiciar uma abertura efetiva

dos escritores e leitores para a compreensão de que o contato com outras culturas

seria positivo e contribui para a criação universal, além de afirmar que

Escrever, hoje, na América Latina como na

Europa, significará, cada vez mais, reescrever,

remastigar. Os vândalos, há muito, já cruzaram

as fronteiras e tumultuavam o senado e agora,

como prenunciado no poema de Kaváfis. Que os

escritores logocêntricos, que se imaginavam

usufrutuários privilegiados de uma orgulhosa

koiné de mão única, preparem-se para a tarefa

cada vez mais urgente de reconhecer e redevorar

o tutano diferencial dos novos bárbaros da

politópica e polifônica civilização planetária. Afinal

não custa repensar a advertência atualíssima do

velho Goethe: “Eine jede Literatur ennuyiert sich

zuletzt in sich selbst, wenn sie nicht durch fremde

Teilnahme wieder aufgefrischt wird” (Toda

literatura , fechada em si mesma , acaba

por definhar no tédio , se não se deixa ,

81

renovadamente, vivificar por meio da contribuição

estrangeira). (CAMPOS, 1981, p. 23-4)

Na opinião de Campos, o grande tradutor do século XX foi Ezra Pound, pois

somente a postura resultante do lema Make it new (Transforme-o em novo)

permite ao tradutor “ser fiel ao espírito, ao clima particular da peça traduzida”

(CAMPOS, 1984, p. 37) e, ao mesmo tempo “acrescentar-lhe, como numa

contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o

original autoriza em sua linha de invenção”. (Idem, p. 35). Dentro do universo

tradutório poético inglês é indiscutível a importância de Ezra Pound e é inegável a

sua influência na constituição do pensamento teórico e de tradução dos irmãos

Campos.

Como lembra Haroldo de Campos:

Para nós, tradução de textos criativos será

sempre recriação, ou criação paralela, autônoma,

porém recíproca. Quanto mais inçado de

dificuldades esse texto, mais recriável, mais

sedutor enquanto possibilidade aberta de

recriação. Numa tradução dessa natureza, não

se traduz apenas o significado, traduz-se o

próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua

materialidade mesma. O significado, o parâmetro

semântico, será apenas e tão-somente a baliza

demarcatória do lugar da empresa recriadora.

Está-se pois, no avesso da chamada tradução

literal. (CAMPOS, 1997, p. 35)

82

O transcriador, para muito além de nos proporcionar o texto traduzido, visa

transformar o passado em algo novo : “todo o passado que nos é outro merece ser

devorado. Vale dizer: merece ser comido, devorado” (CAMPOS, 1991, p. 23) e

isso também é uma forma de seletividade à moda antropofágica - assimilar o que

convém.

Assim coloca Campos com relação à Machado de Assis que para ele era

um grande devorador:

O grande e inclassificável Machado, deglutidor

de Laurence Sterne e de incontáveis outros ( é

dele a metáfora da cabeça com ‘um bucho de

ruminante’), onde, como lembra Augusto Meyer

num atilado estudo de fontes, “todas as

sugestões, depois de misturadas e trituradas,

preparam-se para nova mastigação, complicado

quimismo em que já não é possível distinguir o

organismo assimilador das matérias assimiladas”.

(CAMPOS, 1981. p.13).

Já o conceito de plagiotropia formulado por Haroldo de Campos confirma a

“reproposição do passado através de várias etapas de sincronia, ao longo da

história, de uma memória não linear, mas muitas vezes oblíqua ou deformada”

(CAMPOS, 1976, p. 62) .

83

Seria uma tradução da tradição numa proposta de re-apresentação

transformadora que em vez de destruir o original prolongaria sua vida através da

nova apresentação.

Nessa tarefa, a voz do tradutor antes afônica ganha timbre novo e

autonomia dentro do texto em oposição a uma tentativa de transparência frustrada

por que nunca conseguida.

O nosso Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se permitiu

algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser

um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor, embora

assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem servilismo,

exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária contribuindo para

tornar-se um exemplo da teoria da plagiotropia mais tarde defendida por Campos.

Aproximando-se ou afastando-se do original, tanto Campos como Machado

não abrem mão do diálogo: é a partir dele que fazem suas escolhas, recriando o

passado mas não negando uma ruptura com a origem.

De acordo com Esteves

Se Haroldo de Campos tem razão, a maior

criação que Machado de Assis legou para a

estética do nosso romance foi o seu capítulo.

Segundo o autor, a originalidade do capítulo

machadiano reside justamente em sua

tartamudez, que se constitui numa forma de dizer

o outro e de dizer outra coisa abrindo lacunas [...]

84

por onde se insinua o distanciamento irônico da

diferença. (ESTEVES, 1996, p. 150)

Para um outro Campos, Augusto, a tradução mostra-se essencial por que

é um desafio, um prazer, um modo de conversar com os poetas que ele mais

admira, uma crítica do fazer poético e uma disciplina do Ego. Através dessa

justificativa do fazer tradutório percebemos uma desmistificação da concepção da

tradução como simples repetição do “original”. Para ele, a tradução é uma forma

de aprendizado e é ainda, nas palavras do próprio Augusto de Campos

Uma forma de devolver à coletividade os

conhecimentos que adquiri, tornando acessíveis

realizações afastadas do convívio da maioria,

pelo idioma e pela dificuldade do texto, mas a

meu ver constituem alimento básico para a

renovação da experiência humana (CAMPOS,

1982, p.94).

Nesse sentido, a tradução para Augusto de Campos propõe um olhar crítico

sobre o texto estrangeiro para que sua versão para a língua materna supere a

idéia de cópia e venha a se tornar um produto que traga algo de acréscimo. E

esse aspecto não norteia apenas a teoria proposta por Campos, como também a

sua prática.

Um de seus argumentos teórico-tradutórios está expresso em citações

como esta

85

Tradução para mim é persona. Quase

heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor

para refingir tudo de novo, dor por dor, som por

som, cor por cor. Por isso nunca me propus a

traduzir tudo. Só aquilo que minto. Ou que minto

que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em

sua própria persona (CAMPOS, 1988, p. 7).

Augusto de Campos se apropria de Fernando Pessoa para relacioná-lo à

tradução, criando, por exemplo o neologismo “refingir” e fazendo alusão à dor “que

deveras sente”.

Retomando uma de suas justificativas para se praticar a tradução - um

modo de conversar com os poetas que ele mais adm ira – Augusto de Campos se

refere ao modo de se aproximar dos poetas que ama e traduz desta maneira:

A minha maneira de amá-los é traduzi-los.

Ou degluti-los, segundo a Lei Antropofágica de

Oswald de Andrade: só me interessa o que não é

meu. (CAMPOS, 1988, p. 7).

Partindo da concepção do tradutor como autor da diferença encontramos

Rosemary Arrojo, que toma uma posição frente à tradução que é contrária

àquela que mantém os clichês tradicionais, que sempre empobreceram e

limitaram qualquer reflexão ou discussão teórica sobre a tradução. Partindo

basicamente de alguns pressupostos, a teórica faz reflexões sobre a tradução,

86

levantando questões sobre a relação entre a linguagem humana e o ser humano

de maneira inovadora. Ao afirmar que o papel do tradutor é o de produtor e

transformador de significados, reafirma sua posição defendida em oficina de

Tradução – Teoria na Prática (1986), O Signo Desconstruído – Implicações para a

Tradução, a Leitura e o Ensino (1992) e Tradução, Desconstrução e Psicanálise

(1993). Nesses e em outros textos, não só valoriza a tradução enquanto prática,

como ilustra e confirma a teoria de Jacques Derrida de que um texto original está

em débito com a tradução, ou seja: “a tradução é uma forma de escritura produtiva

exigida pelo original”. Não só junto a esta postura da tradução-escritura, a autora

aborda também a tradução como uma atividade profissional na qual o tradutor tem

um papel decisivo na produção de significados. Partindo desta proposta Arrojo

denomina todo o seu empreendimento teórico de pós-estruturalista.

Segundo Rosemary Arrojo, dedicada especialmente aos estudos da

tradução, em seu texto onde discute implicações para a tradução, a leitura e o

ensino

Qualquer tradução, por mais simples e

despretensiosa que seja, traz consigo as marcas

de sua realização: o tempo, a história, as

circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de

seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua

origem numa interpretação, ainda que seu

realizador não a assuma como tal. Nenhuma

tradução será, portanto, ‘neutra’ ou ‘literal’, será

sempre e inescapavelmente, uma leitura.

(ARROJO, 1992, p. 78)

87

A mesma Rosemary Arrojo, em seu texto “ A que são fiéis tradutores e

críticos de tradução?” (ARROJO, 1993, p. 15-26) discute resenha publicada na

Folha de São Paulo em 1985 e assinada por Nelson Ascher sobre John Donne

que agora citaremos para ilustrar, de certa maneira, os comentários que aqui

fazemos sobre tradução. Em sua resenha, diz Arrojo, Ascher inicia os comentários

sobre as traduções de Paulo Vizioli, tomando como paralelo as traduções do poeta

e ensaísta Augusto de Campos. Depois de réplicas e tréplicas, em meio a

afirmações de que a tradução de Vizioli é “útil e muito necessária”, porém

“conservadora e com uma dicção poética ultrapassada” e a de Augusto de

Campos é “obra criativa” e que criou para Donne uma “linguagem própria e uma

dicção poética condizente”, descobrimos que o critério que leva Ascher a

considerar “um lance realmente inventivo” de Augusto de Campos é a

incorporação de um verso de Lupicínio Rodrigues ao poema “A Aparição”. Ao

afirmar que o que distingue “de fato” as duas traduções é “a concepção de

tradução que as norteia”, continua Arrojo, Ascher parece estar se referindo às

duas concepções opostas de tradução tradicionalmente citadas: uma, atribuída a

Vizioli, é a tradução “literal”, que “se contenta com uma linguagem conservadora e

com uma dicção poeticamente ultrapassada”, “ valioso subsídio para o estudo e a

apreciação do autor, correta e esclarecedora”; a outra, atribuída a Augusto de

Campos, é a tradução supostamente “criativa”, com “lances inventivos”. Quanto a

Augusto de Campos, um dos teóricos da tradução citados nesta tese, por sua vez

88

acredita que os textos de um poeta do passado só terão valor numa tradução se

puderem ser “absorvidos” por poetas do presente. Citado por Arrojo, Augusto de

Campos escreve no seu prefácio de Verso Reverso Controverso, que será

novamente citado nesta tese para novas considerações:

A minha maneira de amá-los [ aos poetas que

admira] é traduzi-los. Ou degluti-los, segundo a

lei Antropofágica de Oswald de Andrade; só me

interessa o que não é meu. Tradução para mim é

persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da

pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor

por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca

me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só

aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como

diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria

persona.(ARROJO, 1993, p. 25)

Ao acreditarmos que existe um “outro” autor permeando e permeado no

texto traduzido, desmistificamos a ingenuidade da tradução bem-intencionada que

se esforça pela fidelidade cega ao original. A visibilidade do tradutor como autor

da diferença e da possibilidade de sobrevivência do modelo também torna visível

o anseio de captação e de assimilação implícito em qualquer ato tradutório.

Se esse encontro acontece dentro de uma rede de fascínio e adoração, dá-

se também a partir de uma ação de devoração e combate. Deste modo, o contato

com o texto sempre submerge um anseio de ter um conhecimento que se atribui

inicialmente ao outro e é, a partir dessa vontade, que surgem não apenas a leitura

e a tradução, mas também, a escritura.

89

Voltando ao texto de Rosemary Arrojo, “A tradução e o flagrante da

transferência”(ARROJO, 1993. p.151-176), onde a crítica discute “algumas

aventuras textuais com Dom Quixote e Pierre Menard” , encontramos a mesma

discussão em torno da escritura. Afirma a autora que

Se a escritura tem sua origem numa leitura, ou

seja, no desejo de também ocupar o lugar autoral

daquele que considero um “sujeito suposto

saber”, a leitura já se realiza sob o signo de um

desejo de apropriação. Se não há textos, mas

apenas relações entre textos, a relação de

influência, nos termos descritos por Harold

Bloom, ‘ governa a leitura da mesma forma que

governa a escritura, e a leitura é, portanto, uma

desescritura da mesma forma que a escritura é

uma desleitura’.(ARROJO, 1993, p. 161-2)

Pelo que retomamos aqui, conclui-se que já no século XIX, o crítico

Machado antecipou questões com as quais hoje se deparam diversos críticos no

estudo da tradução, e nesse momento, que é o da discussão sobre esse

fenômeno literário que é a tradução, muito pouco se tem alertado para a lacuna

que se instaura nos estudos machadianos pela não discussão da prática tradutória

exercida por ele. Ledo Ivo ressalta a falta de interesse dos críticos de Machado

por sua “práxis tradutória”

As atividades de Machado de Assis como

tradutor não têm sido esmiuçadas pelos seus

90

críticos e biógrafos, que se agarram ao exemplo

da tradução de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe,

contentando-se com esse episódio afortunado e

fazendo apenas menções sumárias à parte

quase total do ofício. Registra Lúcia Miguel

Pereira que ele traduziu, entre 1860 e 1867, nada

menos que sete peças teatrais, inclusive O

Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e o

romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor

Hugo. Não são, porém, estabelecidos os vínculos

entre autor e tradutor, como se não tivesse

havido entre ambos qualquer comunicação ou

proveito (IVO, 1976, p. 51).

Raros ensaios são publicados sobre o assunto e apenas Eliane Ferreira

(1998) tem um trabalho de maior fôlego sobre o tema e aborda as traduções

machadianas para a ribalta. Segundo a estudiosa, Machado de Assis traduziu 48

textos, abrangendo poesia, romance, teatro, ensaio. Principalmente teatro e

poesia. Eliane aponta que Machado também opinava sobre as traduções de

peças traduzidas como parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro,

como veremos em capítulo mais adiante. De acordo com ela, o velho bruxo

afirmava que “o tradutor dramático é uma espécie de criado de servir que passa,

de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha”.

CAPÍTULO 4: MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO

As idéias alheias, por isso mesmo que não

foram compradas na esquina, trazem um certo ar

comum, e é muito natural começar por elas antes

de passar aos livros emprestados, às galinhas,

aos papéis falsos, às províncias, etc. a própria

denominação de plágio é um indício de que os

homens compreendem a dificuldade de confundir

esse embrião de ladroeira com ladroeira formal.

Machado de Assis

4.1 – Machado de Assis e o fio de Ariadne:

Tal como Teseu saiu do labirinto de Creta, o qual era assombrado pelo

terrível minotauro, guiando-se pelo fio dado por Ariadne, filha do rei Minos, vamos

percorrer a produção machadiana em busca do fio condutor que permitirá construir

uma teoria acerca do pensamento de Machado de Assis relativo à tradução e

achar a saída deste labirinto, o da representação. Sabemos que o escritor

começou sua carreira literária pela tradução e foi esboçando uma teoria com

relação à mesma durante o seu trajeto. É certo também que aos poucos foi

mudando de opinião com relação a essa prática, uma vez que quando analisava

textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha que

desabonava as traduções mal-feitas, principalmente no tocante ao emprego da

92

língua portuguesa. O que não podemos afirmar com certeza é em que ponto

começou a alterar sua posição, porém em busca do tal fio pudemos observar que

Machado era rígido apenas quando analisava os textos que lhe eram entregues

para avaliação e também quando praticava traduções encomendadas, porque

quando as fazia por sua conta “permitia-se algumas liberdades”. No início algumas

e depois muitas.

Alguns críticos do trabalho machadiano ousam afirmar que essa

transformação aconteceu na mesma época em que houve a propagada mudança

na sua ficção com Memórias Póstumas de Brás Cubas, e que como tal, também

foi motivada pela crise dos quarenta anos ou detonada pelo agravamento de

alguma enfermidade, uma vez que um período de grave doença do escritor e o

repouso em Friburgo por três meses forneceram à crítica psicológica e biográfica o

enredo para a modificação e a geração de um ‘novo’ Machado. A verdade é

qualquer alteração no percurso machadiano, ou seja, a instauração do ‘novo’ no

seu trajeto é condicionado pelo ‘já existente’ e isso é justificado pela relação,

outras vezes citada, do pensamento do autor brasileiro com o Eclesiastes

O que já foi, isso será. O que já se fez isso se

fará; nada de novo debaixo do sol. Uma coisa da

qual se diz: “Eis, aqui está uma coisa nova”,

justamente esta existiu nos séculos que nos

precederam. (Eclesiastes, cap. 1, v. 9-10)

O certo é que Machado de Assis parece sempre estar consciente de sua

mudança com relação aos primeiros escritos, porém reconhece a existência de

seus pensamentos, ainda que discretos e acanhados, desde o início.

93

Para exemplificar tomemos o que diz quando se refere às duas fases de

sua obra de ficção numa carta a José Veríssimo:

O que você chama a minha segunda maneira

naturalmente me é mais aceita e cabal que a

anterior, mas é doce achar quem se lembre

desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue

a catar nela algumas raízes dos meus arbustos

de hoje. (ASSIS, 1953, p. 145).

E deste modo podemos considerar que aconteceu desta maneira não só

com o romance machadiano como também com suas considerações teóricas e

críticas, ou seja, para os arbustos de hoje há que se considerar as raízes de

ontem.

Tudo isso retomamos com a intenção de demonstrar que também com

relação à tradução o nosso Machado de Assis começou aos poucos, traduzindo

textos quase que literalmente, para enfim “degluti-los” e devolvê-los com nova

feição.

A tradução é muito além de uma forma de multiplicar leitores, é uma escola

de invenção e descoberta. Assim sendo, um julgamento da ação tradutória na

carreira de Machado de Assis, a partir de uma visão atualizada, destaca-se como

um aspecto extraordinário na produção do escritor. Enxergadas, de um ponto de

vista limitado até então, as fontes de teorização da tradução em sua carreira

literária necessitam de uma ampliação e importância: Machado de Assis formulou

e desenvolveu desde 1857 uma teoria da tradução.

94

Neste momento de questionamentos sobre o “novo momento da tradução”

– alargamento do conceito, ampliação de disciplinas a tratá-la de modo especial –

é imperiosa a necessidade de uma ‘remexida’ nessa teoria tradutória.

Machado sempre deixou claro seus precursores, suas leituras, as quais

poderia ter lido no original ou não. Dentre essas leituras, o escritor brasileiro

também escolhia os textos que desejava traduzir e recriar.

De acordo com muitos estudiosos a biblioteca machadiana era composta

sobretudo por livros de autores românticos e filósofos que lhe deram acesso à

cultura estrangeira num contato que viabilizava sua atuação na construção de uma

literatura nacional. (vide anexo I).

Com relação a uma teoria da tradução à luz dos recentes conceitos a ela

atribuídos, podemos vislumbrar a ficção machadiana como uma das fontes

de teorização tradutória a fim de concluir que ela é uma realização daquilo que

pregou enquanto crítico e teórico.

A crítica literária, ao mencionar os precursores de Machado de Assis,

aponta as presenças de Xavier de Maistre, Shakespeare, Moliére, Goethe, Sterne,

entre outros, como expressão das “fontes machadianas” (vide anexo I). No

entanto, a citação de suas fontes acentua o mérito do escritor brasileiro e marca

um diferencial com relação a seus contemporâneos. Os empréstimos de textos

alheios num momento da tentativa de formação de uma nação suscitam um certo

conflito, pois se discute até que ponto Machado pode ser considerado um escritor

nacional como José de Alencar o foi.

95

Na atualidade, com a mudança do conceito tradicional aferido à tradução

com relação aos estudos das fontes e influências, destaca-se a importância dos

estudos da tradução como favorecedores de novas perspectivas teóricas, no

momento em que permitem “a abertura ao Outro”.

Já no início de sua carreira, no papel de crítico literário, Machado aparece

como consciente valorizador da diferença que um segundo texto pode imprimir no

original. Consideremos uma declaração sua presente no ensaio – “Instinto de

Nacionalidade” datado de 1873.

O que se deve exigir do escritor antes de tudo é

certo sentimento íntimo, que o torne homem do

seu tempo e do seu país, ainda quando trate de

assuntos remotos no tempo e no espaço.(ASSIS,

1992, p. 804)

Esse sentimento íntimo é responsável por imprimir originalidade e

possibilidade ao escritor consciente de gerar diferença em qualquer assunto do

qual se aproprie, seja este de qualquer tempo ou lugar, e marcá-lo de modo a

torná-lo seu. Notemos que o crítico Machado faz uma antecipação ao

ficcionista Machado que colocaria mais tarde em prática o que antes teorizara.

O leitor que se apaixona por um texto e resolve traduzi-lo, pretensamente

sem se permitir um envolvimento com ele, ou seja, o tradutor que como Pierre

Menard, aparentemente se impõe o impossível sacrifício de sua auto-anulação,

parece, na verdade, estar fugindo da carga de sua própria culpa. Afinal, o tradutor

96

é exatamente aquele leitor que se apropria do texto do outro e o reescreve numa

outra língua, deixando nele as marcas dessa apropriação e dessa “traição”.

Em um trabalho de crítica literária intitulado “Antônio José” e publicado em

Relíquias de Casa Velha, Machado reflete sobre o conceito de imitação,

declarando que um escritor pode permitir a si

Ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para

temperá-la com o molho de sua fábrica.( ASSIS,

1992. p. 727)

O crítico Machado de Assis, ainda em suas reflexões sobre “imitação”,

considera o conceito de “cópia” defendendo em seu texto “Idéias sobre o Teatro”

de 1859, que

Copiar a civilização existente e adicionar-lhe

uma partícula , é uma das forças mais

produtivas com que conta a

sociedade.(ASSIS, 1992. p. 791)

Ao “copiar” um texto escrito no e para o centro do mundo renascentista,

Machado “adicionou-lhe” não só uma “partícula”, mas muitas. No romance

machadiano, texto e contexto se entrelaçam. Copiar, nesses termos, em nada

diminui o escritor.

Em uma crônica de A Semana de 28 de julho de 1895, assim sublinha o

crítico Machado

97

A Revolução Francesa e Otelo estão feitos:

nada impede que esta ou aquela cena seja

tirada para outras peças, e assim se

cometem, literariamente falando, os plágios.1

Nesta crônica de “A Semana”, Machado deixa claro que tanto a história

oficial quanto a história fictícia podem ser “plagiadas” de maneira criativa.

Machado de Assis, sempre tão acusado de esquecer a cor local num

momento em que a Literatura Brasileira tendia a “lambuzar-se” nestas tintas,

propõe-se a fazer literatura nacional, a partir da literatura ocidental, ou seja,

“copiando”-a, traduzindo-a com criatividade.

Machado tem consciência de que os dramas e tragédias do homem

universal são os mesmos do homem local. Não podem ser as problematizações

humanas facilmente transportadas para qualquer lugar por um autor consciente?

O que difere sensivelmente o texto machadiano do de seus modelos é o peso do

tempo e do espaço onde está inserido cada um dos textos.

________________________ 1.MACHADO DE ASSIS, J.M “A Semana”. In: Gazeta de Notícias, 28 de julho de 1895. Observação: na edição utilizada não encontramos esta crônica. Ela aparece citada por GOMES, Eugênio In: Shakespeare no Brasil. Rio de Janeiro, MEC, Serviço de Documentação, 1961, p. 176 e por CALDWELL, Helen In: The Brazilian Othello of Machado de Assis – A study of Dom Casmurro. University of Califórnia Press, Berkeley ans Los Angeles, 1960, p 126.

98

Em seu já comentado ensaio intitulado “Instinto de Nacionalidade”,

Machado cita Shakespeare e demonstra sua admiração pelo escritor inglês

Perguntarei simplesmente[...] se o Hamlet, o

Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm

alguma coisa com a história inglesa nem com o

território britânico, e se, entretanto, Shakespeare

não é, além de um gênio universal, um poeta

essencialmente inglês.( ASSIS,1992, p.803-4)

Nesses termos, Machado defende que um autor consciente deve

“alimentar-se” dos assuntos de sua região, mas essa máxima não pode se fazer

tão absoluta que impossibilite recriações e empobreça a literatura “nascente”. A

suas recriações Machado, dá o nome de “plágio”. Porém, é preciso atentar para o

sentido da palavra “plágio” que assume, aqui, novo significado. Trata-se de um

exercício que possibilita à segunda versão, a originalidade da primeira. É nestes

termos que a originalidade de Machado de Assis comparece em nossas letras,

numa articulação consciente do processo de criação através da tradução que o

ficcionista Machado de Assis trabalha, confirmando na prática aquilo que pregara

enquanto crítico. Nesse sentido, o crítico se antecipa ao romancista.

Em tempos de afirmação de nacionalidade e definição do próprio sistema

literário nacional é importante destacarmos a consciência com que Machado de

Assis trabalhou a serviço da literatura local utilizando-se da universal.

De todas as declarações de Machado aqui mencionadas podemos deduzir

que ele defende, com a consciência de o estar fazendo, a contextualização

99

modificadora de influências literárias, seja através da adição de uma “partícula” ou

de um tempero extra com o “molho de sua fábrica”.

Com relação ao outro tipo de plágio, que é a apropriação indébita do texto

do outro, o próprio Machado de Assis foi acusado desse tipo de ato por um

folhetinista do Correio Paulistano: o Sr. Sílvio Sílvis.

Este foi o parecer dado pelo colunista sobre a estréia da peça de Machado

de Assis, O Caminho da Porta, em 1864:

Tivemos um dia 11 gordo a respeito de

espetáculo.

Foi todo ele novo, novíssimo. Abriu o

divertimento a comédia brasileira – Caminho

da Porta do Sr. Machado de Assis. A lhes

falar a verdade não sei lá o grande mérito que

acham nesta composição. O dono dela (dono se

dizia dos escritores quando os que roubavam se

chamavam ladrões, hoje nem todos os escritores

se podem chamar de dono... mas também não se

chamam outra coisa) o dono dessa composição

possui apenas no Caminho da Porta um estilo

elegante e delicado, o mais...

O nosso Machado sempre se defendeu das acusações de plágio embora

nunca tenha demonstrado pretensão de uma originalidade perfeita, no sentido

antes dado ao termo, antecipando desta maneira, a noção de que esta é

impossível, como hoje sabemos. Com relação ao conceito de autoria, Machado

também deixa muito clara sua concepção.

100

Assim se posiciona Machado de Assis a respeito do julgamento do Sr. Sílvis

na Carta à redação da Imprensa Acadêmica datada de 21 de agosto de 1864:

O que me obriga a tomar a pena é a insinuação

de furto literário, que me parece fazer o Sr. Sílvio-

Sílvis, censura séria que não pode ser feita sem

que se aduzam provas. Que a minha peça tenha

uma fisionomia comum a muitas outras do

mesmo gênero, e que, sob este ponto de vista,

não possa pretender uma originalidade perfeita,

isso acredito eu; mas que eu tenha copiado e

assinado uma obra alheia, eis o que eu contesto

e nego redondamente.

Se, por efeito de uma nova confusão, tão

deplorável com a outra, o Sr. Sílvio- Sílvis chama

furto à circunstância a que aludi acima, fica o dito

por não dito, sem que eu agradeça a novidade.

Quintino Bocaiúva, com a sua frase culta e

elevada, já me havia escrito: “ As tuas duas

peças, modeladas ao gosto dos provérbios

franceses, não revelam mais do que a

maravilhosa aptidão do teu espírito, a própria

riqueza do teu estilo”. (ASSIS, 1992, p. 978)

Quando afirmamos que o ficcionista Machado trabalha de acordo com o

que determina o crítico Machado transcrevendo para nosso solo através de

“plágios” grandes textos da literatura universal, é preciso esclarecer, mais uma

vez, que esse trabalho de “plágio” não é uma mera cópia, mas uma cópia

transformadora, uma tradução.

101

O termo “plágio” utilizado pelo Machado em seus textos de crítica literária

do século XIX e por alguns de seus críticos, como a americana Helen Caldwell em

seu trabalho datado de 1960, já foi renomeado pela atual crítica literária

comparatista como “apropriação transformadora”, “cópia em diferença” ou mesmo

“reescritura” mas sempre conservando a idéia “insidiosa” contida no termo

utilizado pelo escritor brasileiro e é agora utilizado nesta tese com o nome de

tradução. Como bem coloca o escritor

A literatura como Proteu, troca de formas, e nisso

está a condição de sua vitalidade.

ou

Já alguém afirmou que citar a propósito um texto

alheio equivale a tê-lo inventado. (Diálogos e

reflexões de um relojoeiro, 1856)

Nesse sentido, argumentaremos que a crença no ‘múltiplo plagiarismo’

aos olhos de Helen Caldwell, crítica norte-americana cujo texto The Brazilian

Othello of Machado de Assis (1960) é citado por diversos estudiosos do autor,

seria, na realidade, uma contribuição machadiana para a teorização e o exercício

do que a contemporaneidade chama de intertextualidade.

Ao rearticular o texto primeiro através do “plágio” transformador, já não se

mostra mais o texto matriz com o mesmo, pois esse já foi “perturbado” – para

utilizar um termo do crítico Homi Bhabha – pelo poder criador do segundo texto,

“produzindo outros espaços de significação subalterna”.(BHABHA: 1998. p.228).

102

Como nos lembra Schneider ( 1990, p. 72) um artífice da palavra, “bem que

tem o direito de reutilizar produtos acabados como matéria-prima nova” e o

conceito de intertextualidade postulado por Julia Kristeva alivia o escritor dessa

situação de compromisso com suas fontes e crise de consciência com relação ao

processo de autoria.

O termo intertextualidade designa esta

transposição de um ou vários sistemas de signos

num outro, mas já que este termo foi

freqüentemente entendido no sentido banal de

“crítica das fontes” de um texto, preferimos o de

“transposição” que tem a vantagem de precisar

que a passagem de um sistema significante a um

outro exige uma nova articulação da temática

existencial, da posição enunciativa e denotativa.

(KRISTEVA, 1974, p. 60).

Novamente lembramos aqui o cultuado Instinto de Nacionalidade de

Machado de Assis que, publicado em 1873, antecipa muitas dessas questões

porque, segundo ele, “ não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura

nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua

região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam”,

pois, de acordo com Machado, o que enriqueceria a literatura nacional seria

justamente o diálogo com outras culturas. Para ele, “copiar a civilização existente”

não estabelecia um impedimento à criação artística, e não enfraquecia a produção

local.

103

Machado de Assis consideraria em Instinto de Nacionalidade e também

em A Nova Geração a inclinação exagerada à cor local um equívoco por não

deixar enxergar outras possibilidades para o processo de constituição da literatura

nacional e, ao mesmo tempo, já revogava a estabelecida relação centro-periferia

que poderia restringir a nossa literatura a um espaço circunscrito pela

preocupação excessiva com a individualização e o nacionalismo. Desse modo, se

aproxima da crítica contemporânea por delinear, no século XIX, uma teoria que

propõe o alargamento do horizonte crítico para os intelectuais de sua época.

Assim coloca em A Nova Geração:

Do que fica dito resulta que há uma inclinação

nova nos espíritos, um sentimento diverso no dos

primeiros e segundos românticos, mas não há

ainda uma feição assaz característica e definitiva

do movimento poético. Esta conclusão não chega

a ser agravo à nossa mocidade; eu sei que ela

não pode por si mesma criar o movimento e

caracterizá-lo, mas sim receberá impulso

estranho, como aconteceu às gerações

precedentes. [...] A atual geração ,

quaisquer que sejam os seus talentos, não pode

esquivar-se às condições do meio; afirmar-se-á

104

pela inspiração pessoal, pela caracterização do

produto, mas o influxo externo é que determina a

direção do movimento; não há por ora no nosso

ambiente a força necessária à invenção de

doutrinas novas.( ASSIS, 1879, p.809)

Por isso, Machado não repele o “outro”, ele o adota carinhosamente certo

de que daí há muita contribuição para criação de um pecúlio cultural universal, que

possa “assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das matérias”.

(SCHWARZ, 1990, p.09).

Novamente em A Nova Geração podemos vislumbrar o germe da teoria da

tradução que afirmamos nesta tese estar embutida em toda a produção intelectual

do grande e inclassificável Machado de Assis

Digo aos moços que a verdadeira ciência não é a

que se incrusta para ornato, mas a que se

assimila para nutrição; e que o modo eficaz de

mostrar que se possui um processo científico,

não é proclamá-lo a todos os instantes, mas

aplicá-lo oportunamente. Nisto o melhor exemplo

são os luminares da ciência: releiam os moços o

seu Spencer e seu Darwin. Fujam também a

outro perigo: o espírito de seita, mais próprio das

gerações feitas e das instituições petrificadas.

(ASSIS,1992, p.836 ).

105

Diante disso, pudemos perceber um Machado de Assis sugerindo aos

intelectuais brasileiros “que releiam o seu Spencer e o seu Darwin” mas que o

façam de modo a evitar a adoção do “já-estabelecido” sem um posicionamento

crítico, pois isso em nada contribuiria para a constituição da nacionalidade cultural

no Brasil.

A idéia de uma teoria da tradução construída por Machado de Assis

aparece também numa crônica de 22 de agosto de 1864, na qual vislumbramos

um dos pontos mais debatidos pelos teóricos da tradução na contemporaneidade:

se a tradução deixa de ser devedora ao texto original tendo vida própria. Assim

coloca Machado:

Os meus hóspedes são americanos, um da

América do Sul, outro da América do Norte;

ambos poetas, - cantando um na língua de

Camões, outro na de Milton, - e para que, além

de talento, houvesse neste momento um elo de

união entre ambos, - um criou uma página

poética sobre uma lenda do Amazonas, - outro

criou outra página poética, traduzindo literal, mas

inspiradamente, a página do primeiro. O primeiro

é John Greenleaf Whitter, autor de um livro de

baladas e poesias, intitulado: In War Time, Em

Tempo de Guerra; - livro, onde vem inserta a

página poética em questão. Chama-se o

segundo, na linguagem simples das musas, -

Pedro Luis, poeta fluminense, dotado de uma

imaginação ardente e de uma inspiração arrojada

e vivaz, autor da magnífica Ode à Polônia [...] A

própria tradução parece original, tão naturais, tão

106

fáceis, tão de primeira mão são os seus versos.

Não quero privar os entendedores do prazer de

compararem as duas produções, os dois

originais, deixem-me assim chamá-los. ( ASSIS,

1994, p100-1).

Ainda com relação à tradução, lembraremos uma crônica de 17 de outubro

de 1864, do Diário do Rio de Janeiro, na qual Machado de Assis comenta a

publicação de Cantos Fúnebres, de Gonçalves de Magalhães se referindo à

tradução da Morte de Sócrates, de Lamartine, deste modo:

Não li toda a tradução da Morte de Sócrates,

nem a comparei ao original; mas as páginas

que cheguei a ler pareceram-me dignas do

poema de Lamartine. O próprio tradutor

declara que empregou imenso cuidado em

conservar a frescura original e os toques

ligeiros e transparentes do poema. Essa

deveria ser, sem dúvida, uma parte da tarefa;

para traduzir Lamartine é preciso saber

suspirar versos como ele. As poucas páginas

que li dizem-me que os esforços do poeta não

foram em vão. (ASSIS, In: JACKSON, v.23,

p.192)

107

O texto “Amour dês femmes pour les sots”, (1859) de Victor Henaux (Queda

que as mulheres têm para os tolos) foi traduzido por Machado de Assis em

1861 e publicado na revista A Marmota, em cinco números sucessivos: 19, 23, 26,

30 de abril e 03 de maio, registra um erro cometido por vários estudiosos de sua

obra: o texto em questão foi considerado por muito tempo como original do autor,

até que Jean-Michel Massa declarou que se tratava na verdade de uma tradução.

Através da comparação entre o tratado em francês e sua tradução em português

é possível avaliar a fidelidade de Machado ao texto original.

Outro exemplo é a tradução feita por Machado de Assis, no Folhetim do

jornal Diário do Rio de Janeiro, de 15 de março de 1866 até 29 de julho de 1866,

da obra de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar, que apareceu sem a assinatura

do tradutor. A ausência do nome não causa espanto no caso dos textos traduzidos

nos jornais brasileiros no século XIX porque ressalta a invisibilidade do mesmo.

De acordo com Ledo Ivo a tradução de Os trabalhadores do mar

Posto diante do gênio torrencial e de

imaginação desbragada, que não hesitava diante

das mais crispantes ostentações do romanesco,

o jovem Machado se permitiu algumas licenças.

Como se em sua oficina de tradutor quisesse

amortecer as ruidosas antíteses hugoanas. [...]

Em Victor Hugo o mar estendia-se completo,

minucioso, com as iras e calmarias, habitantes e

leis cósmicas. Em Machado de Assis, tudo isso

poderia resumir-se, um dia, ao rastilho de uma

ressaca: a dos olhos da dissimulada Capitu. (IVO,

1976: 55).

108

Ivo observou que Machado de Assis, ao traduzir o texto de Victor Hugo,

alterou o tempo da narrativa pela substituição dos verbos utilizados no mais-que-

perfeito no texto “original” pelo pretérito perfeito.

Decerto que a crítica também observa contribuições que a tradução de Os

trabalhadores do mar deu ao jovem tradutor. Todas as passagens que denotam

“ecos do pessimismo” poderiam ser assinadas pelo romancista maduro de alguns

anos mais tarde, como se tivessem influenciado no amadurecimento de nosso

escritor, como, por exemplo: “ Toda natureza devora ou é devorada. As presas

mastigam-se umas às outras. Podridão é alimentação. Assustadoras limpeza do

globo. O homem carnívoro é também coveiro. A nossa vida é feita de

morte”.(HUGO, Victor, parteIII, l. 4)

Num capítulo posterior veremos que a tradução também visita a prosa de

ficção machadiana, algumas vezes como fonte de teorização, outras como

processo de criação literária. Analisaremos dois de seus romances que

exemplificam seu trabalho com a tradução já no seu sentido amplo que abrange

os conceitos de cópia, plágio e imitação, constituindo, além do mais, um apêndice

à teorização da tradução através de símbolos.

Para exemplificar a postura de Machado de Assis, utilizaremos a “teoria do

molho” exposta por Afrânio Coutinho que se baseou nas utilizações metafóricas

criadas pelo escritor oitocentista com relação à apropriação de textos alheios.

Esses princípios listados por Coutinho trazem à tona os juízos de valor

concebidos por Machado e que vem a ser o segredo de sua genialidade. Coutinho

inicia seu ensaio lembrando que o nosso escritor afirmara que

109

“O discípulo embebe-se na lição do mestre,

assimila ao seu espírito o espírito do modelo”

(ASSIS, 1992, v.1, p.32)

ou faz confissões como

“tiro de cada coisa uma parte e faço o meu ideal

de arte, que abraço e defendo” (idem, p. 32)

em outro lugar declara

“Que a evolução natural das coisas modifique

as feições, a parte externa, ninguém jamais o

negará; mas há alguma coisa que liga, através

dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa

inalterável, universal e comum, que fala a todos

os homens e a todos os tempos”. (idem, p. 32)

Para Machado de Assis não importava o material, mas o tratamento dado a

ele, assim, jamais usava as contribuições alheias como estavam na origem. De

acordo com Mário Casassanta, lembrado por Coutinho

“O certo é que [Machado], apesar de haver

pilhado alimento em muito timo e muita

manjerona, deu-nos um mel de seu fabrico que

não sabe a timo nem a manjerona.” (idem, p.33)

Essa é a teoria do molho que explica o fazer literário machadiano e também

sua brasilidade.

Além da “teoria do molho” introduz-se ainda, nesta tese, o estudo do texto

machadiano através das noções contemporâneas, como as de intertextualidade e

plagiotropia para a elaboração do conceito de tradução enquanto citação/

110

/reinterpretação/recontextualização no processo criativo machadiano.

É de fácil reconhecimento e apontado freqüentemente pela crítica brasileira

o fato de Machado fazer uso sistemático de citações em seus textos, mas não

citações simplesmente, e sim, citações truncadas, ou sejam, que não

correspondem fielmente aos textos citados. Explicações vieram de toda a parte e

de toda a sorte, inclusive de falhas na memória do escritor. O certo é que por meio

da citação, o escritor exercita o ato de apropriação e é dessa forma que Machado

mostra-se como tradutor e elabora uma teoria sobre tradução. Ao apropriar-se de

textos de outrem, estabelecia simultaneamente uma teoria sobre o traduzir.

O uso de citação de autores estrangeiros, no original ou em tradução,

suplementava o assunto das crônicas, dos contos, dos diversos gêneros literários

em que os textos foram produzidos. Depois de percorrer boa parte do seu

labirinto, percebemos que diante do paradoxo tradição X inovação, Machado

optou por uma solução criadora que, ao mesmo tempo que transformava a

tradição, adaptava-a às necessidades culturais e artísticas de seu tempo.

Um dos escritores que mais acompanhou Machado pelos labirintos de suas

criações foi o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare. Ele soube recriar

com engenho e arte a obra shakespeariana, adaptando-a aos seus propósitos

narrativos. Podemos afirmar que Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta e Macbeth

representam seus textos prediletos. Citações de falas desses personagens

aparecem em suas crônicas, contos, romances. Porém, as referências adquirem

uma roupagem machadiana com novos significados: irônicos, galhofeiros,

111

perversos ou satânicos. Machado sempre se valia de citações de Shakespeare,

ora para invertê-las, ora para questioná-las.

A crítica norte-americana Helen Caldwell registra a presença de Otelo como

argumento de vinte e oito histórias e artigos de Machado de Assis. Segundo

ela, sete dos nove romances do autor trazem a marca do ciúme, que é também

enredo de outras dez pequenas histórias. Romeu e Julieta serviu de tema para um

romance e dois contos. Hamlet é o texto que mais aparece em referência nos

textos machadianos.

De acordo com a maioria dos críticos do textos machadianos, a tradução do

texto A Queda que as mulheres têm para os tolos produziu o romance

Ressurreição, como este é, segundo Helen Caldwell, o “germe” de Dom

Casmurro, considerado uma tradução de Otelo. Atentemos para o “mosaico de

citações” (KRISTEVA, 1974) que constitui a produção machadiana.

Uma outra prática encontrada no puxar dos fios comparece no conto A

Cartomante. Já nas primeiras linhas nos deparamos com a frase célebre da

tragédia Hamlet “ há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa

filosofia”.

De acordo com Garcez

Machado de Assis situa o seu diálogo com a

tradição literária européia em vários níveis de sua

construção discursiva a começar pelo gênero. A

reescritura de Hamlet no Brasil oitocentista se dá

112

a partir de uma transposição de gênero: a um

gênero considerado maior como o trágico,

Machado contrapõe um gênero moderno como o

conto realizando uma travessia considerada

pelas instituições convencionais como qualitativa.

Essa dessacralização da tragédia e também da

própria obra Hamlet estende-se ainda pelo texto

através de inversões, de dissonâncias, de

deslocamentos que marcam o viés contrapontual

sob o qual se apresentam, no conto, as

personagens, a linguagem, as marcações sociais

e espaciais e aspectos da realidade brasileira.

(GARCEZ, , p. 115-6)

A intertextualidade constatada nesse caso se manifesta pela tradução que

destaca a irreverência na apropriação, na desierarquização e mesmo na

transcriação do escritor brasileiro que traz para a periferia do oitocentos o texto do

dramaturgo inglês. Pode-se sublinhar que o Reino da Dinamarca foi transformado

ao chegar ao Rio de Janeiro articulando a identidade nacional através da forma

criativa e irreverente.

No Brasil, as personagens shakespearianas são travestidas de marcas do

cotidiano, chegando bem próximas do popular, misturando aspectos da realidade

brasileira com discussões de caráter universal.

E, concluindo, não poderíamos deixar de citar mais uma vez Garcez de que

esta é

113

Mais uma percepção aguda do mestre a que a

crítica literária atual deve estar mais atenta se

não quiser passar de um extremo a outro: de

uma postura eurocêntrica a um fechamento

nacionalista da periferia, incapaz de dar conta da

verdadeira situação política, econômica e cultural

dos países marginalizados pelo centro Estados

Unidos-Europa. ( idem, p. 117)

Perscrutando mais um pouco o labirinto machadiano encontramos, no conto

Um Homem Célebre, mais uma demonstração das conjecturas do nosso tradutor

abordando o tema da impotência criativa do personagem Pestana. Neste conto,

Machado acaba por colocar em discussão o tema da imitação e da originalidade.

Pestana, o personagem principal, tem um talento admirável para compor

polcas que logo caíam no gosto do público que pedia, sempre que tinha

oportunidade, que o exímio compositor tocasse uma de suas modinhas. Ao

contrário do que se poderia supor, Pestana sempre o faz a contragosto e sem

entusiasmo, não por pudores ou modéstia, mas porque se sentia aborrecido e

vexado cada vez que precisava relembrar suas composições e certificar-se de que

não passavam de imitações. Sempre que chegava em casa, irritado consigo por

uma dessas lembranças, metia-se no pijama e sentava-se ao piano para tocar

seus compositores preferidos : Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach,

Schumann. No dia seguinte, ao levantar, era tomado de súbito por uma onda de

inspiração, corria ao piano e de lá saía, como que fluindo, uma nova composição,

a qual era imediatamente levada ao editor e daí para o sucesso era só um átimo

114

de tempo. Logo depois vinha outra decepção, e era sempre assim. Cada vez que

imaginava ter criado uma peça musical de qualidade, descobre ser mera imitação.

O ponto alto de sua frustração ocorre quando pensa ter finalmente criado um

noturno e, ao executá-lo para a mulher, sem avisar-lhe do que se tratava, ouviu

em resposta: “Não é um Chopin?”

Diante da constatação, Pestana

“empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um

ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se

ao piano, e, depois de algum esforço de

memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o

motivo eram os mesmos; Pestana achara-o

em algum daqueles becos escuros da

memória, velha cidade de traições.” (ASSIS,

1994, p. 502). grifo nosso

Na verdade o contato com os clássicos na noite anterior dava o gás que

faltava a inventividade do compositor. O conto de Machado de Assis traz à baila

um conceito considerado importante para a criação artística: a originalidade. O

compositor Pestana não conseguia lidar com a angústia que a influência que os

clássicos exerciam sobre sua atividade criadora e concebia o original como aquilo

que nunca tinha sido feito antes. Machado mais uma vez teoriza sobre o processo

criativo através de sua ficção.

3.2. “O CORVO” visita o Brasil

115

Machado de Assis principiou sua atividade tradutória escrevendo duas

imitações: Minha Mãe ( imitação de Willian Cowper) – poesia, em 1856 e Hoje

Avental, Amanhã Luva ( La chasse au Lion, de Vattier et De Najac) – teatro, em

1860. Recebeu críticas com relação ao primeiro texto por não tê-lo lido no original

mas, através de uma tradução para o francês que o fez alterar o texto original.

Críticas como essas, na contemporaneidade, perdem qualquer valor pois, o

conceito de tradução foi ampliado incluindo nele as versões, adaptações e

paráfrases.

Esses rastreamentos nos espantam às vezes por já estarmos acostumados

apenas com o comentário sobre a tradução de O Corvo, poema de Poe escrito em

1845, traduzido por Machado de Assis em 1883 e sem dúvida sua mais famosa

tradução. Torna-se necessário tomarmos, neste momento, tanto o “original” de

Poe quanto O Corvo de Machado a fim de melhor exemplificarmos as alterações

criativas na tradução do escritor brasileiro:

The Raven

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,

Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,

While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,

As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.

“ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door-

Only this, and nothing more.”

116

O Corvo

Em certo dia, à hora, à hora

Da meia-noite que apavora,

Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,

Ao pé de muita lauda antiga,

De uma velha doutrina agora morta,

Ia pensando, quando ouvi à porta

Do meu quarto um soar devagarinho,

E disse estas palavras tais:

“É alguém que me bate à porta de mansinho;

Há de ser isso e nada mais.”

No texto de Edgar Allan Poe podemos observar já na primeira estrofe um

denso cruzamento de rimas finais e internas, completado por abundantes

aliterações e todo tipo de assonâncias, constituindo um absorvente desafio a sua

tradução.

O nosso Machado traduziu com perfeita transposição do sentido e do clima,

além de algumas artimanhas sonoras, como por exemplo retomar o som “or” de

“more” e “Lenore” de Poe nas rimas “morta”/ “porta”.

Ah, distinctly I remember it was the bleak December,

And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.

Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow

Form my books surcease of sorrow – sorrow for the lost Lenore –

For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore –

Nameless here for everymore.

Ah! Bem me lembro! Bem me lembro!

Era no glacial dezembro;

117

Cada brasa do lar sobre o colchão refletia

A sua última agonia.

Eu ansioso pelo Sol, buscava

Sacar daqueles livros que estudava

Repouso (em vão) à dor esmagadora

Destas saudades imortais

Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,

E que ninguém chamará mais.

Quanto à metrificação, verificamos que Poe utiliza versos de 16 sílabas,

enquanto Machado de Assis alterna entre versos de 8, 10 e 12 sílabas.

And the sliken sad uncertain rustling of each purple curtain

Thrilled me- filled me with fantastic terrors never felt before;

So that now, to still the beating of my heart. I stood repeating,

‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber door-

Some later visitor entreating entrance at my chamber door;-

This it is, and nothing more.”

E o rumor triste, vago, brando

Das cortinas ia acordando

Dentro em meu coração um rumor não sabido,

Nunca por ele padecido.

Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,

Levantei-me de pronto, e “Com efeito,

(Disse), é visita amiga e retardada

“Que bate a estas horas tais.

“É visita que pede à minha porta entrada:

“Há de ser isso e nada mais”.

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,

118

“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;

but the fact is I was napping, and so gently you came rapping,

and so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,

that I scarce was sure I heard you”-here I opened wide the door;-

Darkness there, and nothing more.

Minh’alma então sentiu-se forte;

Não mais vacilo, e desta sorte

Falo: “Imploro de vós – ou senhor ou senhora,

Me desculpeis tanta demora.

“Mas como eu, precisando de descanso

“Já cochilava, e tão de manso e manso,

“Batestes, não fui logo, prestemente,

“Certificar-me que aí estais”.

Disse; a porta escancar, acho a noite somente,

Somente a noite, e nada mais.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,

Doubting, dreamind dreams no mortals ever dared to dream before;

But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,

And the only word there spoken was whispered word, “Lenore!”

This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” –

Merely this, and nothing more.

Com longo olhar escruto a sombra

Que me amedronta, que me assombra.

E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,

Mas o silêncio amplo e calado,

Calado fica; a quietação quieta;

Só tu, palavra única e dileta,

Lenora, tu, com um suspiro escasso,

Da minha triste boca sais;

119

E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;

Foi isso apenas, nada mais.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,

Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.

“Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice:

Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore-

Let my heart be stiil a moment and this mystery explore;-

‘Tis the wind and nothing more.”

Entro co’a alma incendiada,

Logo depois outra pancada

Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:

“Seguramente, há na janela

Alguma coisa que sussurra. Abramos,

“Eia, fora o temor, eia, vejamos

“ A explicação do caso misterioso

dessas duas pancadas tais,

“Devolvamos a paz ao coração medroso,

“Obra do vento, e nada mais”.

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,

In there stepped a stately raven of the saintly days of yore;

Not the least obeisance mede he; not a minute stopped or stayed he;

But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door –

Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door –

Perched, and sat, and nothing more.

Abro a janela, e de repente,

Vejo tumultuosamente

Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.

Não despendeu em cortesias

Um minuto, um instante. Tinha o aspecto

120

De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,

Movendo no ar as suas negras alas,

Acima voa dos portais,

Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:

Trepado fica, e nada mais.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,

By the grave and stern decorum of the countenance it wore.

“Though thy crest be shorn and shaven, thou, “I said, “art sure no craven,

Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore –

Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”

Quoth the Raven, “Nevermore.”

Diante da ave feia e escura,

Naquela rígida postura,

Com o gosto severo, - o triste pensamento

Sorriu-me ali por um momento,

E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas

“Vens, embora a cabeça nua tragas,

“Sem topete, não és ave medrosa,

“Dize os teus nomes senhoriais;

“Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”

E o corvo disse: “Nunca mais”.

Aqui, Poe atribui a origem do corvo ao submundo infernal relacionando-o

com a figura mitológica de Plutão; já Machado não cita tal figura mas em

contrapartida acrescenta a expressão “noite umbrosa” ao seu texto.

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,

Though its answer little meaning – little relevancy bore;

For we cannot help agreeing that no living human being

Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door –

121

Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,

With such name as “Nevermore.”

Vendo que o pássaro entendia

A pergunta que eu lhe fazia,

Fico atônito, embora a resposta que dera

Dificilmente lha entendera.

Na verdade, jamais homem há visto

Coisa na terra semelhante a isto:

Uma ave negra, friamente posta

Num busto, acima dos portais,

Ouvir uma pergunta a dizer em resposta

Que este é seu nome: “Nunca mais”.

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only

That one word, as if his soul in that one word he did outpour.

Nothing further then he uttered – not a feather then he fluttered-

Till I sacracely more than muttered, “other friends have flown before.”

Then the bird said, “Nevermore.”

No entanto, o corvo solitário

Não teve outro vocabulário.

Como se essa palavra escassa que ali disse

Toda sua alma resumisse,

Nenhuma outra proferiu, nenhuma.

Não chegou a mexer uma só pluma,

Até que eu murmurei: “Perdi outrora

“Tantos amigos tão leais!

“Perderei também este em regressando a aurora”

E o corvo disse: “Nunca mais!”

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,

122

“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store,

caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster

followed fast and followed faster till his songs one burden bore-

till the dirges of his Hope that melancholy burden bore

Of ‘Never – nevermore’.”

Estremeço. A resposta ouvida

É tão exata! É tão cabida!

“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência

“Que ele trouxe da convivência

“De algum mestre infeliz e acabrunhado

“Que o implacável destino há castigado

“Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,

“Que dos seus cantos usuais

“Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,

“Esse estribilho: “Nunca mais”.

But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,

Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;-

Then upon the velvet sinking, I bettok myself to linking

Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore-

What this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of yore

Meant in croaking “Nevermore.”

Segunda vez nesse momento

Sorriu-me o triste pensamento;

Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;

E, mergulhando no veludo

Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,

Achar procuro a lúgubre quimera,

A alma, o sentido, o pávido segredo

Daquelas sílabas fatais,

Entender o que quis dizer a ave do medo

Grasnando a frase: “Nunca mais”.

123

Na citada estrofe, constatamos que Poe emprega uma intensa e freqüente

adjetivação, enquanto Machado apresenta uma tendência à concisão de idéias e

formas na tradução da mesma estrofe e diz apenas : “ave do medo”.

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing

To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;

This and more I sat divining, with my head at ease reclining

On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er,

But whose velvet violet linig with the lamplight gloating o’er,

She shall prees, ah, nevermore!

Assim posto, devaneando,

Meditando, conjeturando,

Não lhe falava mais; se lhe não falava,

Sentia o olhar que me abrasava.

Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,

Com a cabeça no macio encosto

Onde os raios da lâmpada caíam,

Onde as tranças angelicais

De outra cabeça outrora ali se desparziam

E agora não se esparzem mais.

Then methought the air grew denser, perfumed from an unseen censer

Swung by Seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.

“Wretch, “I cried, “Thy God hath lent thee- by these angels the hath sent sent thee

respite – respite and nepenthem from thy memories of Lenore!

Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!”

Quoth the Raven, “Nevermore.”

Supus então que o ar, mais denso,

Todo se enchia de um incenso,

Obra de serafins que, pelo chão roçando

Do quarto, estava, meneando

Um ligeiro turíbulo invisível:

“Manda repouso à dor que te devora

124

“Destas saudades imortais.

“Eia, esquece, eia olvida essa extinta Lenora”.

E o corvo disse: “Nunca mais”.

Aqui averiguamos que Poe menciona uma antiga droga dos gregos utilizada

para curar a tristeza: o nepente. Esta droga ajudaria a esquecer a amada Lenore.

Já Machado apenas reforça o fato de esquecer a amada e não cita droga

alguma.

“Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!-

Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,

Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted-

On this home by horror haunted – tell me truly, I implore!

Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me, I implore!”

Quoth the Raven, “Nevermore.”

“Profeta, ou o que quer que sejas!

“Ave ou demônio que negrejas!

“Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

“Onde reside o mal eterno,

“Ou simplesmente náufrago escapado

“Venhas do temporal que te há lançado

“Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo

“Tem os seus lares triunfais,

“Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”

E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil!

By that Heaven that bends above us – by that God we both adore-

Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,

It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore-

Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.”

Quoth the Raven, “Nevermore.”

125

“Profeta, ou o que quer que sejas!

“Ave ou demônio que negrejas!

“Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!

“Por esse céu que além se estende,

“Pelo Deus que ambos adoramos, fala,

“Dize a esta alma se é dado inda escutá-la

“No Éden celeste a virgem que ela chora

“Nestes retiros sepulcrais,

“Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”

E o corvo disse: “Nunca mais!”

Neste ponto, enquanto Poe menciona o Éden como o lar de Lenora,

Machado apenas o chama de “Éden celeste”.

“Be that word our sign in parting, bird or fiend, “I shrieked, upstarting-

“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!

Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!

Leave my loneliness unbroken!-quit the bust above my door!

Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”

Quoth the Raven, “Nevermore.”

“Ave ou demônio que negrejas!

Profeta, ou o que quer que sejas!

“Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!

“Regressando ao temporal, regressa

“À tua noite, deixa-me comigo...

“Vai-te, não fique no meu casto abrigo

“Pluma que lembre essa mentira tua.

“Tira-me ao peito essas fatais

“Garras que abrindo vão a minha dor já crua”

E o corvo disse: “Nunca mais”.

126

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;

And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,

And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor

Shall be lofted –nevermore!

E o corvo aí fica; ei-lo trepado

No branco mármore lavrado

Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.

Parece, ao ver-lhe o duro cenho,

Um demônio sonhando. A luz caída

Do lampião sobre a ave aborrecida

No chão espraia a triste sombra; e fora

Daquelas linhas funerais

Que flutuam no chão, a minha alma que chora

Não sai mais, nunca, nunca mais!

Pudemos verificar através do cotejo dos dois textos que o “original” de Poe

é mais enxuto porque a estrutura é diferente ( cada estrofe de Poe tem 5 versos

longos e um curto, enquanto Machado aumentou para 10 versos curtos).

E mesmo sendo a mais famosa de suas traduções, há opiniões

controvertidas com relação à tradução feita por Machado.

De acordo com Barroso e Masini (2002), The Raven (1845), é um clássico

da poesia inglesa que desafia tradutores – mais de trinta versões já foram feitas só

em português e quase nenhuma consegue o efeito conseguido no inglês que

coaduna os efeitos de som da rima em – ore ( never more e nothing more ) com

Lenore, o nome da morta por quem o poeta sofre.

127

Para esses especialistas em tradução, manter “nunca mais” em português

dá “suadouro em tradutores de vários calibres” e não pouparam a tradução de

Machado do texto de Edgar Allan Poe afirmando que ela é um “equívoco”.

Em seus trabalhos, Barroso e Masini fazem excelentes compilações e

avaliam as poesias que melhor resgataram a força do original, mas se esquivaram

de dizer que cada uma delas serve de medida exata para mostrar que toda

tradução, ainda mais em poesia, é pura recriação e esta tese procura reforçar isso

mostrando que Machado de Assis entende por originalidade o efeito da

apropriação modificadora da forma de origem, portanto já não se pode considerar

sua tradução de O Corvo um equívoco.

Do mesmo modo que tudo que se põe em discussão gera opiniões

divergentes, com a tradução não poderia deixar de ser assim, ainda mais de um

texto célebre como O Corvo. Então para Bellei (1992), por exemplo, “Machado

universaliza o que Poe reduz a uma percepção mais limitada da dor da perda no

ser humano” (1992, p. 87) , ou seja, produz originalmente na repetição, porque

“enquanto Poe escreve um poema sobre um

amante aflito pela perda da mulher amada e usa

o corvo como emblema dessa situação, Machado

reescreve o poema original dando ênfase ao

corvo como centro de atenção e à mensagem

secreta que ele tem para oferecer à humanidade”

(1992, p. 83).

Sem a ambição dar a lista completa podemos garantir que há pelo menos

120 autores de traduções de O Corvo nas principais línguas neolatinas da Europa

ocidental. As traduções brasileiras são consideradas muito livres do ponto de vista

128

formal; são versões em sonetos, em oitavas, em décimas e ainda versões em

prosa, cordel e mesmo poesia visual.

Analistas da tradução feita por Machado de Assis avaliam desde seu

comedimento na descrição física do ambiente, considerado por muitos como fuga

do “compromisso com a realidade”, à consideração de que este mesmo fato tem

justificativa nas características estilísticas ligadas a sua prosa de segunda fase

que valoriza o plano psicológico do amante, perturbado e melancólico com a morte

da amada.

O que podemos constatar é que certas escolhas lingüísticas e literárias

assinalam para maneiras distintas que diferentes tradutores lidaram com o texto

de Poe, ou seja, apropriaram-se dele com intenção de construir novas

possibilidades de significação. Em conseqüência disso, alertamos para o fato de

que um texto nunca permanece intacto e intocável diante de novos indivíduos e

contextos, mas ao contrário, é lido e avaliado de modo diverso a cada olhar,

traduzido para uma realidade que jamais se coliga com o mesmo e a estagnação.

Com estes exemplos, pretendemos demonstrar o uso da citação como

parte integrante da formação intelectual e literária do escritor-tradutor. A tradução

de fragmentos de textos estrangeiros evidencia o importante papel que a tarefa

tradutória exerceu não apenas em sua carreira literária, mas também no contexto

cultural da sociedade brasileira oitocentista.

CAPÍTULO 5:

A TRADUÇÃO MACHADIANA E O TEATRO NACIONAL

Nuestra tradición es toda la cultura

occidental...los sudamericanos en general

podemos manejar todos los temas europeos,

manejarlos sin supersticiones, con una

irreverencia que puede tener, y ya tiene,

consecuencias afortunadas.

Jorge Luis Borges

5.1 – Machado de Assis Parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro

Machado de Assis se associou ao Conservatório Dramático Brasileiro aos

23 anos. Fazia, nesse tempo, carreira como crítico teatral e escreveu, ao todo, 16

pareceres para o Conservatório entre 1862 e 1864.

Neste capítulo procuraremos destacar a importância do Conservatório

Dramático Brasileiro tendo como mote a atuação de Machado de Assis naquele

órgão.

De acordo com José Luís Jobim (2001) em seu artigo “ Machado de Assis,

membro do Conservatório Dramático Brasileiro e leitor do Teatro Francês”

Se quiséssemos definir o que foi o

Conservatório Dramático Brasileiro, talvez

pudéssemos afirmar que foi a instituição

responsável pela censura durante grande parte

130

do século XIX. No entanto, esta afirmação não

seria de todo correta, pois o Conservatório

pretendia também ser uma agência formadora

e propagadora do bom gosto estético, como

demonstram seus artigos orgânicos, aprovados

em 24 de abril de 1843.

Machado de Assis tornou-se censor do Conservatório Dramático em 1862,

porém o mesmo já existia desde 1843 e tinha autoridade de permitir ou proibir as

encenações das peças colocadas sob sua observação e análise através dos

pareceres de seus membros. Eram duas as principais disposições que serviam de

instrução para os censores:

1ª - Em um aviso de 10 de novembro de 1843: “Não devem aparecer em cena

assuntos, nem expressões menos conformes com o decoro, os costumes, e as

atenções que em todas as ocasiões se devem guardar, maiormente naquelas em

que a Imperial Família honrar com a Sua Presença o espetáculo”.

2ª - Em uma Resolução Imperial de 28 de agosto de 1845: “ O julgamento do

Conservatório é obrigatório quando as obras censuradas pecarem contra a

veneração à Nossa Santa Religião, contra o respeito devido aos Poderes Políticos

da Nação e às Autoridades constituídas, e contra a guarda da moral e decência

pública. Nos casos, porém, em que as obras pecarem contra a castidade da

língua, e aquela parte que é relativa à Ortoépia, deve-se notar os defeitos, mas

não negar a licença.” (FARIA, 2004).

Lançando um olhar mais atilado sobre os pareceres machadianos notamos

131

que a preocupação com o conteúdo moral das peças prevalece sobre as

observações de caráter estritamente estético. Em seu artigo, José Luís Jobim

lembra que em 16 de dezembro de 1861, Machado de Assis responde uma

provocação de Antônio Joaquim de Macedo Soares e deixa claro quais seriam

suas idéias sobre o teatro e sua finalidade:

Cumpre que o povo não saia do teatro sem

levar consigo alguma moralidade austera e

profunda. A arte só, a arte pura, a arte

propriamente dita, não exige tudo isso do

poeta; mas no teatro não basta preencher as

condições da arte. ( MAGALHÃES JÚNIOR,

1981, p.169)

De acordo com João Roberto Faria “ Machado aceitou fazer parte do

Conservatório, embora achasse, desde 1859, que a autoridade dos censores era

muito limitada” e, segundo o estudioso em um folhetim intitulado O Espelho, com o

título de “Idéias Teatrais”, Machado comenta as disposições lançadas aos

censores e critica principalmente o último parágrafo da segunda disposição.

Afirma Faria que todo o artigo machadiano “ é uma crítica a essa limitação imposta

ao censor, que na sua opinião devia julgar também o mérito literário das peças e,

quando necessário, proibi-las de subir à cena com base nesse julgamento”.

(FARIA, 2004, p. 18).

Como já dissemos Machado emitiu dezesseis pareceres sobre o julgamento

de dezessete peças:

132

1º - Clermont ou a mulher do artista – não continha nome do autor e do tradutor.

Segundo Machado era uma tradução mal feita do francês. Dizia o censor:

Clermont ou a mulher do artista é uma dessas

banalidades literárias que constituem por si o

repertório quase exclusivo dos nossos teatros[...]

pena é que os nossos teatros se alimentem de

composições tais, sem a menor sombra de mérito,

destinadas a perverter o gosto e a contrariar a

verdadeira missão do teatro. Compunge deveras

um tal estado de cousas a que o governo podia e

devia pôr termo iniciando uma reforma que

assinalasse ao teatro o seu verdadeiro lugar.

(SOUZA, 1956, p. 178-9).

2º - A caixa do marido e a charuteira da mulher, de J.P.B. – de acordo com o

censor Machado era uma tradução de alguma farsa francesa, e mereceu

comentário semelhante ao primeiro:

A comédia em um ato A caixa do marido e

a charuteira da mulher, assinada modestamente

por três iniciais, parece obra de obscura

paternidade, que não quer aparecer e recolhe-se

no mistério. Quem lê a comédia vê logo que ela é

uma péssima tradução de francês, deturpada

evidentemente, sem forma portuguesa nem de

língua nenhuma.

Disse comédia, quando ela é farsa, pela

indicação do frontispício e pelo contexto. É farsa

grotesca, sem graça, lutando a grosseria com o

aborrecimento. Se estivesse nas minhas

obrigações a censura literária com certeza lhe

133

negaria o meu voto; mas não sendo assim, julgo

que pode ser representada em qualquer teatro.

Rio, 12 de janeiro de 1862.

Machado de Assis (SOUZA, 1956, p. 188-

9)

3º - O filho do erro, de José Ricardo Pires de Almeida – aprovou não sem antes

considerá-la má literatura:

Quanto ao filho do erro, se é defeituoso

literariamente falando, não me parece fora das

condições legais e morais. Acho que se pode

representar.(SOUZA, 1956, p. 192)

4º - Finalmente, Antônio Moutinho de Sousa – comédia que recebeu restrições do

censor, mas foi aprovada.

5º - Um casamento da época, Constantino do Amaral Tavares - aprovada.

6º - Mistérios Sociais, Augusto César de Lacerda – aprovada.

7º - O anel de ferro, Arcires – aprovada:

Li o drama O Anel de Ferro, por Arcires. É mais

um esforço de nossa nascente literatura

dramática. Se não é uma obra completa em

absoluto acusa boas qualidades da parte do

autor, revela um talento a quem não falta senão o

estudo dos mestres e a reflexão precisa para a

reprodução dos caracteres. [...] estas

observações têm por fim indicar de passagem no

autor os escolhos a evitar erro no futuro, e se as

134

faço com liberdade, faço-as também com a

convicção de que o talento do autor pode sem

dúvida triunfar dos defeitos de hoje e tomar

conscienciosamente o caminho do progresso.

(SOUZA, 1956, p. 189)

8º - As mulheres do palco, sem nome do autor – aprovada.

9º - Ao entrar na sociedade, Luís Guimarães Júnior – aprovada.

De acordo com Faria, as seis últimas peças listadas acima “mereceram

restrições que são, em geral, observações sobre defeitos nos diálogos ou na

armação das cenas, incongruências no enredo, má caracterização dos

personagens, algum pequeno deslize em relação à moral.” ( FARIA, 2004, p. 21)

10º - Os descarados, Emile Augier – aprovada

11º - As leoas pobres, Emile Augier – aprovada.

12º - Os íntimos, Victorien Sardou – aprovada.

13º - As garatujas, Victorien Sardou – aprovada.

As últimas quatro peças foram aprovadas sem reservas e receberam

elogios.

14º - A mulher que o mundo respeita, Veridiano Henrique dos Santos Carvalho –

reprovada, considerada imoral.

15º - As conveniências, Quintino Francisco da Costa – reprovada. De acordo com

o parecerista “um feixe de incongruências”.

16º - Os espinhos de uma flor, José Ricardo Pires de Almeida – reprovada,

considerada imoral:

135

Apesar de toda a simpatia que me inspiram os

moços laboriosos não posso conceder a licença

que se pede para este drama cujo autor procura

adquirir um nome na literatura dramática. Louvo-

lhe os esforços, aplaudo-lhe os conseguimentos,

mas não me é dado sacrificar os princípios e o

dever.

Ora o dever manda arredar da cena dramática

todas aquelas concepções que possam perverter

os bons sentimentos e falsear as leis da moral.

(SOUZA, 1956, p. 191)

Se tomarmos como exemplo três textos publicados em 1859, em que

alinhava uma série de ideais sobre teatro e sobre o Conservatório Dramático

Brasileiro, talvez possamos entender melhor como Machado já expressava

opiniões assemelhadas às que emitirá no futuro, entre 1862 e 1864, na condição

de membro daquela instituição. Para começar, ele assinala que “basta a boa

vontade de um exame ligeiro sobre a nossa situação artística para reconhecer que

estamos na infância da moral” , e que a iniciativa em arte dramática deve ter um

objetivo:

A iniciativa, pois, deve ter uma mira: a

educação. Demonstrar aos iniciados as

verdades e as concepções da arte; e conduzir

os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à

esfera dessas concepções e dessas verdades

(ASSIS, 1979, p. 790)

Como já foi mostrado, Machado de Assis também lançava apreciações

sobre a qualidade da tradução das peças que lhe eram apresentadas. De acordo

136

com Faria (2004, p. 21), esse dado ratifica o conceito de um escritor que “viveu

intensamente o movimento teatral nos seus anos de formação”, mostra o quanto

era antenado com as cenas estrangeiras e brasileiras, discutindo com capricho as

iniciativas sérias no teatro nacional e condenando a profusão de traduções por

retardarem o surgimento de talentos nacionais que oferecessem uma arte que

realmente nos representasse.

Por isso preocupava-se com o tradutor dramático que muitas vezes não

fazia uma tradução bem cuidada e, por vezes, transplantava a cultura francesa

para os palcos tropicais sem adaptá-la ao contexto brasileiro.

Ao avaliarmos o problema da tradução no século XIX brasileiro, em uma

sociedade pós-independência premida pela urgente modernização, podemos

afirmar que tal funcionou como um meio de transferência cultural e se mostrou

como componente da formação de identidade cultural da nação porque ao traduzir

o outro, provocava o encontro do próprio. Machado de Assis, percebendo isso

alertou para os perigos de uma assimilação estrangeira sem um posicionamento

crítico.

Eliane F. C. Ferreira(1998) em seu bem elaborado trabalho comenta:

Se, num primeiro momento, Machado em

seu ensaio “ O Passado, o Presente e o Futuro

da Literatura Brasileira” (1858) e a definição que

emitiu para o tradutor dramático em “Idéias Sobre

Teatro” (1859), se aproxima da posição de que

as traduções funcionam como um entrave ao

surgimento dos talentos genuinamente nacionais,

sua prática contradiz sua postura crítica, já

137

que, ao longo de sua carreira, vai demonstrar que

a tradução é um dos elementos formadores da

nacionalidade literária brasileira e que propicia

seu desenvolvimento intelectual. (FERREIRA,

1998, p.57) grifo nosso

É preciso dizer mais uma vez que Machado de Assis preocupava-se com o

transplante de textos sem uma posição crítica da cultura estrangeira que uma

tradução não cuidada podia oferecer. Por isso podemos afirmar que sua prática

não contradiz sua postura crítica. Machado avaliava as traduções dentro do que

postula o sentido tradicional do termo: preocupação com transferência lexical,

porém nunca manifestou-se contra as aclimatações dos modelos tomados

criticamente de outras plagas.

Um exemplo disso se deu quando José de Alencar

confessou candidamente que havia procurado

um modelo de alta comédia na dramaturgia

brasileira para escrever O demônio familiar e que,

não o encontrando, buscou-o na França,

especificamente em Dumas Filho e em sua peça

La question d’argent. Em seu entendimento, esse

escritor ( por sua vez) havia “aperfeiçoado” a

comédia de costumes de Molière, adicionando-

lhe um traço novo, a “naturalidade”, e construindo

assim a comédia moderna. (FARIA, 2004,p. 5)

Alencar foi buscar seu modelo em Dumas Filho, que o foi buscar em

Molière não sem antes “aperfeiçoá-lo” , dando-lhe nova feição. E tanto Machado

de Assis admirava o talento de Alencar chamado por ele de “chefe” quanto a

138

recíproca também é verdadeira. Machado por volta de seus vintes anos já era

considerado uma peça importante como o maior crítico literário e teatral da década

de 1860, por suas intervenções críticas corajosas alcançando um grande prestígio

entre os intelectuais de seu tempo bem antes de dedicar à atividade literária que o

consagrou – a ficção. Alencar lançou em uma carta pública todo seu apreço a

Machado de Assis:

O senhor foi o único de nossos modernos

escritores, que se dedicou sinceramente à cultura

dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma

porção de talento que recebeu da natureza, em

vez de aproveita-lo em criações próprias, teve a

abnegação de aplica-lo a formar o gosto e

desenvolver a literatura pátria. Do senhor, pois,

do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante

vocação literária, que se revelou com tanto vigor.

( ALENCAR, citado por FARIA, 2004, p. 2)

Por isso acreditamos que o Machado crítico antecipa questões que o

Machado ficcionista colocou em pauta. E como já bem destaca a crítica: a

propagada mudança que ocorre em sua obra de ficção, no romance com o

surgimento de Memórias Póstumas de Brás Cubas e nos contos a partir de Papéis

Avulsos pode ser um indício da mudança gradativa que ocorre no seu papel de

crítico e teórico: primeiro um censor preocupado com traduções mal feitas, depois

um tradutor com as mesmas preocupações e por fim, um ficcionista que desafia a

dependência cultural em nossas letras sendo irreverente a ponto de traduzir a

139

produção intelectual existente para abaixo da linha do Equador.

Enquanto nossa cultura não atendia a todo tipo de produção, modelos

estrangeiros ocupavam esse espaço vazio. Porém, nem sempre esses modelos

eram conservados inalterados e muitas vezes sofriam imitações, versões e

adaptações alargando o sentido anterior dado à tradução.

Como exemplo citaremos o texto teatral La chasse au Lion que desde a

tradução do título – Hoje avental, amanhã luva – confirma que o trabalho do

tradutor pode ser criativo e livre, baseado em teorias que vêm sendo retomadas

por teóricos de tradução na contemporaneidade. Machado de Assis troca os

nomes de personagens para outros mais condizentes com o território brasileiro

evidenciando, inclusive, “acomodações” ao contexto carioca:

Durval: (sentando-se) – como o Corcovado,

enraizado como ele. Já me doíam saudades desta

boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá

dois anos bem insípidos – em uma vida uniforme e

matemática como um ponteiro do relógio: jogava

gamão, colhia café e plantava batatas. Nem teatro

Lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica:

Solidão e mais nada. (Citado por MASSA, 1965, p

137).

Podemos vislumbrar através de seu percurso como tradutor que Machado

de Assis praticava a tradução no sentido tradicional do termo quando fazia

traduções por encomenda ou ainda quando criticava as traduções que lhe eram

140

encaminhadas no Conservatório Dramático, porém quando exercia a prática

tradutória por livre vontade usava os modelos para sua “criação”. No caso da

peça Hoje avental, amanhã luva poderíamos dizer que se trata de uma recriação e

não uma imitação ou adaptação.

CAPÍTULO 6: A TRADUÇÃO NO ROMANCE MACHADIANO

Há frases assim felizes. Nascem

modestamente como a gente pobre; quando

menos pensam estão governando o mundo,

à semelhança das idéias. As próprias idéias

nem sempre conservam o nome do pai;

muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e

de ninguém. Cada um pega delas, verte-as

como pode, e vai levá-las à feira, onde todos

as têm por suas.

Machado de Assis

6.1 - Dom Casmurro e o novo conceito de “plágio”

“Oh, flor do céu! Oh, flor cândida e pura!”*

De pura maravilha inexistente!

Tua beleza, sensual e renitente,

Rasga-me a carne, expondo-me a fratura!

Oh, fogo do inferno! Diz-me: és impura!

Diz com as letras, ainda que aparente!

Não me deixes a dor, cruel, persistente,

Diz-me logo: és a última da incura?!

Não, não podes ser, de resto, canalha!

142

Foste apenas menina enamorada

E do bardo a mais forte inspiração...

Foste a lâmina fria da madrugada,

Que expôs, que na aventura da criação,

“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!” *

Iverson Carneiro

* Versos de Bento Santiago em Dom Casmurro

Iniciaremos esta parte do presente estudo lembrando de um capítulo de

Dom Casmurro, o de número LV, intitulado “Um Soneto”. Nele o protagonista

Bento Santiago comenta a história de um soneto que nunca concluiu. Estando

deitado, solitário, saiu de sua cabeça “como uma exclamação solta” o primeiro

verso.

Assim na cama, envolvido no lençol, tratei

de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o

filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir

com aquele monge da Bahia, pouco antes

revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria

em verso as minhas tristezas, como ele dissera

as suas no claustro. Decorei bem o verso, e

repetia-o em voz baixa, aos lençóis; francamente,

achava-o bonito, e ainda agora não me parece

mau:

Oh! flor do céu! flor cândida e pura!

(ASSIS, 1994, p. 866)

143

Depois de uma longa hora ou duas, de virar para todos os lados, Bento

ainda não havia conseguido elaborar os treze restantes que faltavam para o

soneto, concluiu ser necessário fazer o último verso para que os demais

surgissem um a um, deveria ser uma “chave de ouro” porque “os sonetos mais

gabados eram os que assim concluíam”, e depois de suar bastante conseguiu o

seu intento:

“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”

Tendo o início e o fim do soneto prontos, era de se esperar que ficasse

mais fácil da tarefa de encher o centro com os doze que faltavam. Mas não. Bento

trabalhou em vão e não vieram os versos esperados. É o próprio narrador quem

aponta a solução para esse soneto inacabado:

Pois, senhores, nada me consola daquele

soneto que não fiz. Mas, como creio que os

sonetos existem feitos, como as odes e os

dramas, e as demais obras de arte, por uma

razão de ordem metafísica, dou esses dous

versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao

domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em

qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o

soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o

centro que falta. (ASSIS, p. 867).

Deste modo, o poeta Iverson Carneiro aceitou o oferecimento e completou

a empreitada iniciada por Bento Santiago, traduzindo a idéia “casmurra” para os

144

tempos atuais. E como o assunto principal desta tese é o aproveitamento do já

estabelecido, fica essa alegoria a marcar o início do estudo de Dom Casmurro,

romance que reconceitua o “plágio” machadiano do texto de Shakespeare: Otelo.

A crítica norte-americana Helen Caldwell em seu trabalho intitulado The

Brazilian Othello of Machado de Assis: a study of Dom Casmurro (1960), elabora

exaustivas comparações entre o Otelo de Shakespeare e o de Machado. Assim, a

ensaísta contribui para teoria tradutória na contemporaneidade na medida em que

demonstra o remanejamento que Machado fez da tradição tanto como tradutor

literário quanto como tradutor lexical. Mais incisivamente, Haroldo de Campos

declara:

“se se deve entender por tradição o processo

histórico da práxis artística, então cabe

compreendê-la como um movimento do pensar

que se constitui na consciência receptora,

apropria-se do passado, o traz até ela e ilumina o

que ela assim traduziu ou tra-ditou em presente,

à nova luz de um significado atual” (CAMPOS,

1984, p. 58).

Ao atualizar o trabalho da crítica norte-americana inclui-se uma questão não

tratada por ela e de grande importância para a nossa discussão acerca do tema

desta tese: a tradução de gênero que Machado de Assis no romance Dom

Casmurro impõe à tragédia Otelo de Shakespeare.

145

Note-se que esta questão já foi esboçada, mas não desenvolvida, por

Enylton de Sá Rego no texto de 1989 O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis,

a sátira menipéia e a tradução luciânica, mais especificamente no capítulo no qual

o autor trata de Dom Casmurro e a reescritura da tragédia. É verdade que o

objetivo de Enylton é fazer uma relação dessa reescritura com a questão luciânica

– o que não nos interessa aqui. Em seu bom trabalho, Enylton reconhece uma

importante diferença na tradução da tragédia para o romance: com a mudança de

gêneros, a certeza de um texto transforma-se na ambigüidade do outro.

No caso do romance Dom Casmurro verificamos o quanto na tradução de

Otelo realizada por Machado de Assis e identificada por seus críticos existe um

“sentimento íntimo” a tornar o escritor um homem do seu tempo e do seu país.

Note-se que a tradução da tragédia feita por este “homem de seu tempo e

de seu país” acontece quando ele se põe a “temperar” a “especiaria alheia” com o

“molho de sua fábrica”, fábrica esta, digamos, brasileira. A “especiaria alheia”,

neste caso, a tragédia shakespeariana Otelo, foi buscada por este “homem do seu

tempo e do seu país” nos palcos renascentistas e trazida com novo “molho” para

um contexto periférico do oitocentos.

O que importa é que a tragédia Otelo da qual Machado se apropria é

traduzida, transformada, contextualizada, aclimatada, modificada, ou seja, já é

outra no romance Dom Casmurro, tanto em termos de gênero quanto de tempo e

espaço.

146

Ao traduzir um texto escrito no e para o centro do mundo renascentista,

Machado “adicionou-lhe” não só uma “partícula”, mas muitas. Lembremos que o

escritor oferece-nos um Otelo diferenciado em Dom Casmurro pela combinação

no protagonista Bento Santiago, de duas personagens da tragédia shakesperiana:

o bom Otelo e o malévolo Iago.

Lembremos também que Otelo foi adaptado aos padrões sociais e cristãos

de um país periférico do oitocentos. Em Dom Casmurro não observamos mais a

raiva impulsiva do guerreiro mouro dando cabo da vida da amada que

possivelmente o atraiçoara mas a raiva comedida e disfarçada de um civilizado

e aburguesado ex-seminarista que deixa a suposta esposa traidora no “exílio”,

sem derramar uma gota sequer de sangue, como convém a um cristão católico, e

passa a viver remoendo suas dúvidas casmurras. Afinal, num moderno contexto

brasileiro em fins do século XIX, onde circulam cavalheiros e damas

aburguesados, a vingança não precisava ser tão trágica. No contexto prosaico de

Dom Casmurro também não temos a possibilidade de ver as reações heróicas do

guerreiro Otelo que encanta a amada Desdêmona com a narrativa movimentada

de suas aventuras nos campos de batalha, o que vemos é um advogado

aburguesado movimentando-se com elegância sobre a escritura de suas

memórias de modo a não levantar suspeitas para os leitores quanto às suas

próprias dúvidas.

Consideremos agora os gêneros literários onde estão inseridas as duas

obras para melhor compreendermos as significativas mudanças impetradas no

147

original.

A primeira vista as relações entre o teatro e o romance parecem-nos

“tranqüilas” por se tratarem ambos de expressões artísticas, uma vez que o teatro,

enquanto texto impresso, participa do plano literário. Contudo, há que se duvidar

dessa aparente tranqüilidade. Se existem muitos pontos de contato entre as duas

espécies literárias, há outros tantos que divergem. Essas diferenças tomam feição

monumental quando encaramos o texto como passível de ser encenado em um

palco, diante de um público e não apenas como texto.

O romance pertence ao gênero conhecido como narrativo, onde há um

narrador contando uma história. O aspecto que dá conta de que é uma história

contada é fator diferenciador importante entre romance e teatro. Ao teatro

pertence a ação: enquanto os leitores de romance imaginam todas as ações entre

as personagens, aquele que assiste a apresentação teatral vê as ações

serem desenvolvidas; enquanto no teatro o dramaturgo desaparece em

favor das ações no tablado, no romance, o narrador, direto ou não, está sempre

em evidência comunicando-nos a ação.

Ao colocar Bento Santiago contando a sua tragédia em primeira pessoa, o

romance machadiano se permite a ambigüidade não admitida à tragédia de

Shakespeare. Como chama atenção Roberto Schwarz (1997). Machado empresta

a Otelo o papel do narrador, deixando-o contar a história, o que muda tudo. O

leitor/espectador não tem mais acesso direto aos fatos que estão sendo agora

filtrados pela subjetividade do novo Otelo. Machado traduz o diálogo do texto

shakespeariano num relato de memórias de uma personagem que oferece a nós

148

leitores unicamente a sua palavra e a sua versão dos fatos enquanto que dos

outros personagens não nos é dado ouvir diretamente a voz.

Notemos que se na tragédia de Shakespeare a personagem enganada é

Otelo, a quem se engana na sua tradução em Dom Casmurro? Segundo os

trabalhos de Roberto Schwarz (1997), Silviano Santiago (1978) e John Gledson

(1991), quem está sendo enganado no romance machadiano é o leitor – por um

narrador não- confiável.

Lembre-se, como Caldwell sublinha, que Bento Santiago na construção

machadiana corresponde não só à personagem Otelo mas a um Otelo incorporado

por Iago. Nesse sentido, pode-se considerar que este narrador Iago pode estar

utilizando a própria narrativa memoralística como um “lenço” para despistar,

enganar e convencer os leitores “Otelos” quanto ao seu ponto de vista. Portanto,

nesta tradução da tragédia shakespeariana o leitor participa sim – no papel de

Otelo.

Tanto parece ser assim que o leitor-Otelo ao deparar-se com o José Dias-

Iago apresentado pelo narrador a princípio dá-se por satisfeito e não percebe que

existe um outro Iago. A correspondência Otelo/Bento, Desdêmona/Capitu e

Iago/José Dias parece confortável dispensando maiores e mais intrincadas

considerações.

Mas como também sublinha Caldwell, o papel de Iago não cabe com

perfeição em José Dias, que diferentemente do modelo, é um tipo “pobre” de Iago,

daí a necessidade de um outro Iago em Dom Casmurro.

149

Lembremos que José Dias é um agregado da família Santiago. Na tradução

contextualizadora que Machado faz da tragédia de Shakespeare, o agregado

funciona como um diferencial típico da sociedade brasileira do oitocentos. O

termo agregado designa aquele que vive na dependência de um chefe de família

abastado da época do Segundo Reinado, a quem presta todo tipo de serviços.

Muitas vezes são pessoas sem vínculo de parentesco com a família, podendo

perder o “posto” a qualquer tempo.

Machado de Assis constrói a personagem do agregado José Dias sempre

pronto a agradar, a dizer palavras certas nas horas propícias, a “exagerar” com

seus superlativos quando se faz necessário um elogio. O medo de perder a

posição dentro da família Santiago faz com que o agregado veja como ameaça o

possível romance entre Bento e Capitu. A esse agregado medroso, que vive de

favor dentro de uma família aburguesada em fins do século XIX, não cabe com

perfeição o figurino ardiloso de Iago, ele não tem “força” para ser o antagonista à

felicidade de um Otelo/Bento.

De acordo com John Gledson

Esse agregado aparentemente descartável é a

expressão perfeita de uma sociedade que, em

geral, é incapaz de se exprimir, inconsciente

como é da própria natureza política, social e

econômica. (GLEDSON, 1991, p. 174).

A esse agregado a quem não cabe o figurino de Iago, cabe perfeitamente o

papel da diferença na tradução feita por Machado. José Dias é a “expressão

perfeita” da sociedade brasileira em fins do século XIX.

150

Eis um registro machadiano de nossa identidade cultural, uma diferença

impressa na tradução cultural de um texto clássico de Shakespeare. Nestes

termos é que a prática tradutória literária de Machado de Assis comparece em

nossas letras, numa articulação consciente do processo de criação que o

ficcionista trabalha, confirmando na prática aquilo que pregara enquanto crítico.

Machado defende que um autor consciente deve “alimentar-se” dos

assuntos de sua região mas essa máxima não se pode fazer tão absoluta que

impossibilite recriações e empobreça a literatura “nascente”.

Em tempos de afirmação de nacionalidade e definição do sistema literário

nacional é importante destacar a consciência com que Machado de Assis

trabalhou a serviço da literatura local utilizando-se da universal.

As comparações entre os textos permite-nos a identificação das

apropriações e possibilita que a proposta da metrópole, no caso Otelo, possa

ser avaliada dentro da sua universalidade e a periférica, Dom Casmurro, na

diferença que a tradução imprime ao primeiro.

Conclui-se que já no século XIX, o crítico Machado antecipa questões com

as quais se deparam hoje os comparatistas e tradutores. Quando afirmamos que o

ficcionista Machado trabalha de acordo com o que determina o crítico

transcrevendo, traduzindo para nosso solo grandes textos da literatura universal, é

preciso esclarecer mais uma vez o redimensionamento que depois o termo

tradução obteve. A palavra tradução passou a conter mais significativamente uma

idéia “insidiosa” de transformação.

151

Em Dom Casmurro, nos deparamos com um escritor criterioso, atento e

profundo conhecedor do contexto no qual está inserido. O romance machadiano

incorpora elementos que renovam e exploram as múltiplas possibilidades que a

leitura de um clássico Otelo pode produzir.

Portanto, Machado de Assis entabula um diálogo com a literatura da

metrópole – a Europa – em uma tradução literária de um corpus pertencente ao

cânone literário ocidental. Neste diálogo, Machado trabalha a contextualização

numa forma de desierarquizar o texto matriz, tirá-lo de uma posição segura e

intocável dentro do contexto europeu e adaptá-lo aos padrões e realidade de um

país periférico, substituindo um gênero literário por outro, como marca da sua

irreverência, desafiando assim a dependência cultural.

Agora que já tomamos as comparações com Otelo de modo a mostrar a

tradução machadiana do clássico inglês, vamos nos voltar ao capítulo do texto

Dom Casmurro intitulado É tempo. Neste capítulo, o narrador declara que agora é

que vai começar a sua história, e esta começa a representar-se como num

espetáculo de ópera. “Agora é que eu ia começar a minha ópera” declara o

narrador. “A vida é uma ópera”, disse a ele um velho tenor italiano de nome

Marcolini. (ASSIS, 1992, p. 817). Logo em seguida começa o capítulo A ópera, no

qual o velho tenor que explica que a vida é uma grande ópera onde

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem

maestro de muito futuro, que aprendeu no

conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e

Gabriel, não tolerava a precedência que eles

152

tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser

também que a música em demasia doce e

mística daqueles condiscípulos fosse aborrecível

ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou

uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele

expulso do conservatório. Tudo se teria passado

sem mais nada, se Deus não houvesse escrito

um libreto de ópera, do qual abrira mão, por

entender que tal gênero de recreio era impróprio

da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito

consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que

valia mais que os outros – e acaso para

reconciliar-se com o céu, - compôs a partitura, e

logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

(ASSIS, 1992, p. 818).

Instituindo a vida como representação, o nosso Casmurro a compara a uma

ópera, uma versão demoníaca da Sagrada Escritura. A partitura que Satanás

compõe é um suplemento acrescentado ao manuscrito original escrito por Deus

com o propósito de tornar-se co-autor da criação divina. Deus acaba consentindo

que a tal ópera fosse encenada contanto que fora do céu e, para isto, criou a terra,

para servir de palco, e esse descuido divino seria o responsável por todos os

desconcertos da história do homem.

O resultado de tal parceria encontrou opiniões desencontradas e até

divergentes. Os parceiros de Satanás elogiam a empreitada e os de Deus afirmam

que o original foi adulterado

Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura

corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita

153

em alguns lugares, e trabalhada com arte em

outros, é absolutamente diversa e até contrária

ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no

texto do poeta; é uma excrescência para imitar as

Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é

contestado pelos satanistas com alguma

aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo

em que o jovem Satanás compôs a grande

ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram

nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês

não teve outro gênio senão transcrever a letra

da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece

ele próprio o autor da composição; mas,

evidentemente, é um plagiário. (ASSIS, 1992, p.

818-9) grifo nosso

Neste ponto observamos ainda mais uma vez observações machadianas

com relação a questões como original e tradução, fidelidade e traição, repetição e

diferença. O texto satânico se afigura como um suplemento ao texto divino na

composição da ópera da vida, Shakespeare aparece como um plagiário ao

reescrever a letra da ópera, e o próprio casmurro na escritura de suas memórias

que aparecem como um suplemento da verdade, pois quando se põe a escrever-

se a si mesmo sua memória viola, adultera o original “ à medida que (me) vai

lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo” .

De acordo com Scarpelli

Dessa forma, o narrador de Dom Casmurro não

apenas aceita, mas ainda adota a teoria da vida

enquanto uma versão satânica da Sagrada

Escritura , primeiro , por encontrar nela

154

explicações para sua própria vida; segundo,

porque se trata de uma forma transgressora de

tradução, precisamente a que lhe servirá de

modelo operatório para a criação de sua própria

escritura (nada benta, diga-se de passagem).

(SCARPELLI, 1994, p. 23)

Mais uma vez Machado de Assis traz à tona temas caros à teoria literária

da contemporaneidade: original/originalidade, mesmo/diferente e por conseguinte,

a tradução. Schneider afirma que quanto à originalidade “em todo escritor

esconde-se aquele velho sonho de ser original, o que, no limite extremo, quer

dizer não ter origem, ser sua própria origem”. (SCHNEIDER , 1990, p. 346).

6.2 – Esaú e Jacó no labirinto da tradução:

Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis e revela-se, de

acordo com a tese defendida neste trabalho, como o auge dos contatos que o

escritor estabelecera com a literatura universal.

De acordo com Eugênio Gomes no seu texto O Testamento Estético de

Machado de Assis, de 1958, a respeito do título a ser dado para o romance foram

pensados vários nomes, entre eles “Ab ovo” ( do ovo, desde o ovo, desde o início)

parecia talhado para o assunto, por fim escolheu-se Esaú e Jacó, embora o outro

título também remetesse à rivalidade antiga de dois irmãos desde o ovo,

lembrando a história bíblica.

155

São inúmeras as citações e alusões que surgem no desenrolar da narrativa.

Podemos citar, à primeira vista, Homero, Ésquilo, Xenofonte, Dante, Shakespeare

e Goethe, e ainda a Bíblia. Há, de acordo com Eugênio Gomes (1958), “fontes

subterrâneas que não se deixam descobrir senão a custo de prolongada

investigação”. Em seu “Testamento Estético de Machado de Assis”, Gomes ainda

afirma que

Como quer que seja, pode-se perceber que, em

maior ou menor grau, aquelas constelações de

primeira grandeza (os autores citados acima)

influíram sobre o ‘pensamento interior e único’,

que presidiu à elaboração de Esaú e Jacó.

(GOMES - 1958, In: ASSIS, 1992, p. 1.099)

Grifo nosso.

Dentre as presenças certificadas no texto machadiano encontramos a Ilíada

cuja narrativa apresenta a disputa entre dois homens violentos traduzida em Esaú

e Jacó pela disputa sempre acirrada e frenética entre os irmãos Pedro e Paulo.

A presença bíblica se comprova para muito além do que observou Eugênio

Gomes quando afirma,

Embora o Gênese é que tenha dado a sugestão

decisiva para os nomes que finalmente

receberam os gêmeos, Aires recorre, também, a

duas citações de Homero.(idem, p. 1.099)

156

Ao observarmos a passagem em que uma dama, de nome Natividade,

acompanhada de sua irmã Perpétua, sai da sua casa no elegante bairro de

Botafogo e sobe, magoando os pés na íngreme, desigual e mal calçada ladeira,

do suburbano Morro do Castelo a fim de consultar uma adivinha sobre o destino

de seus filhos gêmeos nascidos há pouco mais de um ano podemos

comprovar o que Eugênio Gomes chamou de “influências às avessas” (p.1.100) e,

que hoje renomeamos como “apropriação em diferença”, mais condizente com

uma tradução que aclimata os textos aos padrões nacionais. Para reforçar essa

posição vejamos que, além de ouvir da adivinha sobre “cousas futuras”,

Natividade ouviu também sobre as “cousas passadas”, soube então que os seus

gêmeos brigaram no ventre e que cá fora também brigariam. A preocupada

Natividade, que de fato não tivera gestação sossegada, só ficou aliviada quando

também ouviu da adivinha que seus filhos seriam grandes e gloriosos.

É preciso observar que este início é uma referência às páginas bíblicas do

Antigo Testamento que narram a profecia sobre dois irmãos gêmeos destinados a

brigar desde o útero materno.

No entanto Gomes declara que quanto à Bíblia

“já não pode subsistir nenhuma dúvida de que

Machado de Assis só se utilizava de seus textos

com finalidade simplesmente literária”. (idem,

p.1.099).

O que Gomes não considera é, que as referências bíblicas explícitas ou

implícitas no texto, são um incentivo para que aproximemos as duas histórias, e

157

ao fazê-lo, estaremos considerando não o conceito de influência e sim o de

reescritura e tradução. Uma tradução da tradição bíblica que aclimata a história de

Esaú e Jacó ao contexto mundano.

Lembremos a história original dos gêmeos Esaú e Jacó, destacando os

seguintes fatos: Isaque, tendo orado a Deus por sua mulher estéril, teve suas

preces atendidas e Rebeca deu então à luz os gêmeos Esaú e Jacó. Durante a

gravidez, ao sentir que os filhos lutavam em seu ventre, a futura mãe decidiu

consultar ao Senhor que a esclareceu com uma profecia a respeito de dois povos

rivais que dela iam nascer e que desde o ventre já brigavam pelo direito à

primogenitura.

Na tradução desta história para o contexto brasileiro do oitocentos algumas

modificações das mais significativas se estabeleceram: primeiro, Rebeca pode

consultar o próprio Senhor sobre o futuro de seus filhos, enquanto

Natividade teve que recorrer a uma adivinha. Machado de Assis parece ter

considerado que diferentemente dos tempos bíblicos, nos tempos modernos,

Deus já não se comunica mais diretamente ao seu povo, tornando-se necessário,

portanto, oferecer à Natividade uma intermediação pouco bíblica e muito mais

pagã. Esta “aclimatação” em relação ao texto original está em perfeito acordo

com a religiosidade sincrética do povo brasileiro e de sobra, possibilita a

aproximação machadiana com a tradição oracular na forma de uma adivinha

cabocla relacionada pelo narrador à Pítia grega. Desta forma, verificamos a

presença de Ésquilo numa alusão sobre a consulta às sacerdotisas gregas nas

158

Eumênides, traduzida nas páginas iniciais de Esaú e Jacó para a consulta de uma

dama da alta sociedade fluminense do segundo oitocentos a uma popular

adivinha.

Em segundo lugar, notemos ainda, as modificações a que a própria profecia

veio a ser então submetida. Pudemos constatar que, em Esaú e Jacó, Natividade

só conseguiu tirar da adivinha palavras vagas relativas a “cousas futuras”, tais

como:

Serão grandes, oh! grandes! Deus há de dar-lhes

muitos benefícios. Eles há de subir, subir,

subir...Brigaram no ventre de sua mãe, quem

tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão

gloriosos. É só o que lhes digo. Quanto à

qualidade da glória, cousas futuras! (ASSIS,

1992, p. 950)

Já o Senhor foi bem mais preciso em sua profecia. Tanto que quando

diretamente consultado por Rebeca, respondeu Ele:

Duas nações há em seu ventre

Dois povos nascidos de ti se dividirão:

um povo será mais forte que o outro, e o mais

velho servirá ao mais moço. ( GÊNESIS 25, v.

23)

A mãe dos tempos bíblicos preocupava-se em saber qual dos filhos gêmeos

seria grande e glorioso, isto é, receberia a benção do pai e a primogenitura,

159

ajudando, inclusive, o mais novo a se fazer passar pelo mais velho e assim

conseguir a benção do pai.

Machado em sua tradução da história bíblica para o contexto brasileiro,

considerou que o costume da primogenitura estava praticamente abandonado e

tornou ambos os filhos de Natividade grandes e gloriosos.

Com relação à presença grega em Esaú e Jacó, é preciso considerar que,

no século XIX, citar os helenos era “timbre de glória” e que a Grécia era uma

presença constante nas referências dos escritores brasileiros premidos pela

necessidade de fortalecer a literatura nacional.

No caso de Esaú e Jacó, a presença da intertextualidade se dá na

apropriação modificadora e irreverente que Machado de Assis faz traduzindo a

influência grega e estabelecendo um diálogo com o texto de Xenofonte que

Eugênio Gomes percebe, anota, porém, não desenvolve. Nesse sentido é isso que

passaremos a fazer.

Gomes certifica que a presença grega se faz logo no primeiro capítulo onde

o narrador aconselha a seus leitores:

Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá

verás a Pítia, chamando os que iam à consulta:

“Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se,

segundo o uso, na ordem marcada pela sorte”...

A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a

verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca

a sua vez de audiência.” (ASSIS, 1992, p. 948).

160

Ao aproximarmos as duas histórias, como quer Machado, observamos que

na tradução do texto grego para a periferia do oitocentos, a sacerdotisa é

substituída por uma cabocla com o sugestivo nome de Bárbara e faz o uso de

cartões numerados. Coube a Natividade o número 1.012, que o narrador se

apressa em justificar como sendo necessário a fim de atender a “uma freguesia

numerosa e de muitos meses.”

Gomes ainda anota a presença grega no capítulo intitulado “Lendo

Xenofonte” , no qual o conselheiro aparece lendo uma narrativa do autor grego.

Xenofonte, considerado um dos maiores prosadores da Antigüidade,

nasceu em 427 a C. e morreu em 355 a. C. e no século XIX os seus livros mais

lidos eram Anabasis e Cyropaedia, e, como era de se esperar, constam na

biblioteca de Machado de Assis ( vide anexo I ). Além de estar presente em Esaú

e Jacó, o escritor grego é citado pelo brasileiro numa crônica de “A Semana” , do

dia 01 de fevereiro de 1894:

Não consultemos Xenofonte, que, ao ver as

trocas de governo nas repúblicas, monarquias e

oligarquias, concluía que o homem era o animal

mais difícil de reger, mas, ao mesmo tempo,

mirando o seu herói e a numerosa gente que lhe

obedecia, concluía que o animal de mais fácil

governo era o homem. Se já por essa noite dos

tempos fosse conhecido o anarquismo, é

provável que a opinião do historiador fosse essa:

que, embora péssimo, era um governo ótimo. A

variedade dos pareceres , a sua própria

161

contradição, tem a vantagem de chamar leitores,

visto que a maior parte deles só lê os livros da

sua opinião. É assim que eu explico a

universalidade de Xenofonte. (ASSIS, 1992, p.

596).

Gomes não desenvolve comparações entre os textos de Machado e

Xenofonte que parecem ser sugeridas pelo próprio narrador, no entanto, a já antes

mencionada crítica norte-americana, Helen Caldwell, aceita a sugestão para

aproximar as duas histórias em seu trabalho de 1970, The Brasilian Master and

His Novels, observando que os narradores das duas histórias mantém muitos

pontos em comum e que ambos tecem um elogio a sua pessoa no decorrer da

narrativa. Observemos como se dá essa aproximação: no Anabasis, o escritor

grego conta como depois da morte do jovem persa Cyrus, recebeu sob seu

comando as tropas gregas e de modo hábil e brilhante obteve sucesso na retirada

de volta à Grécia e isto apesar dos incontáveis desafios que tiveram que enfrentar.

Segundo Caldwell, concomitantemente à sua narrativa, Xenofonte vai construindo

um elogio a si mesmo. Ao aproximarmos as duas histórias nos deparamos com o

Conselheiro Aires escrevendo o seu Memorial.

O narrador de Anabasis, estando exilado, por ter se aliado aos espartanos,

rememora sua vida através da narrativa de modo a parecer um herói como

estrategista militar. Já o nosso Conselheiro é um diplomata aposentado que

escreve o último volume de seu memorial que vem a imortalizá-lo a partir da

publicação: O Memorial de Aires.

162

Ao cotejar Esaú e Jacó e Anabasis, Caldwell identifica a seguinte

semelhança: Aires e Xenofonte se colocam em um plano superior aos outros

personagens. Cada um dos memorialistas representa um papel de grande

importância em seus respectivos “mundos”. Nos heróicos tempos da Grécia

antiga, o do épico cavaleiro e nos burgueses oitocentos brasileiros, o fino

cavalheiro. Uma diferença a ser sublinhada na tradução machadiana, e não

tratada por Caldwell, se observa ao constatarmos que se o heróico narrador grego

é um homem de guerra que sabe movimentar-se em campos de batalha, o

aburguesado Aires é um homem de sociedade que sabe comportar-se

elegantemente nos salões sociais.

A apropriação machadiana do auto-elogio de Xenofonte, no seu clássico

Anabasis, veio a se dar, em diferentes termos, no aburguesado romance do

elegante Aires.

Assim, da possibilidade de estudarmos Machado de Assis como um sujeito

influenciado, copiador em débito com o original, passamos à perspectiva de

estudar um sujeito ativo, apropriador, copista em diferença do original, colocando

em prática um conceito que se aproxima da teoria da tradução examinada nesta

tese. Ao substituirmos a idéia negativa de passividade, contida no conceito de

influência, pela idéia positiva de atividade contida no conceito de apropriação e

tradução, ambicionamos estar nos colocando de um melhor viés para

estudarmos a tradução machadiana de Xenofonte.

163

A nossa proposta é apontar que o brasileiro Machado de Assis, além de

“copiar” esta “especiaria alheia” que é o clássico Anabasis do grego Xenofonte,

como apontamos antes neste trabalho, atreveu-se ainda, “adicionar-lhe uma

partícula” na sua tradução. É nossa proposta também mostrar que esta

consciência, explicitada nos seus textos de crítica, compareceria na prática nos

seus textos de ficção.

Outro ponto de contato com o texto do escritor grego se dá no tema da

discórdia entre irmãos. Com relação a esse ponto assim se manifesta Terezinha Z.

da Silva (1995):

Consideremos que tanto Aires quanto

Xenofonte escreveram as suas memórias sobre a

discórdia fraterna pelo poder político. No seu

Anabasis, narra o exilado ateniense a história da

trágica e sangrenta discórdia que testemunhara

entre dois irmãos reais Cirus e Ataxerxes pelo

imponente trono da pérsia no mundo antigo. Já

o brasileiro aposentado Aires narra em seu

memorial a discórdia dos gêmeos Pedro e Paulo,

filhos da “burguesia crioula” que vieram com as

comedidas armas dos tempos modernos – a

retórica parlamentar – a disputar o poder político

na periferia oitocentista. Estas semelhanças e

diferenças possibilitam interpretarmos o caso

como mais uma tradução machadiana. (Notemos

que do centro da antiguidade clássica, o tema da

discórdia entre irmãos é redimensionado para o

contexto aburguesado da modernidade clássica,

o tema da discórdia dos irmãos reais, tão

somente o desacordo comedido entre civilizados

164

brasileiros europeizados.) (SILVA, 1995, p. 29)

E a tradução machadiana de Esaú e Jacó não fica apenas em Xenofonte: a

presença de Dante se faz explícita na epígrafe do livro e no Capítulo XII, com a

citação de um verso do Canto V do Inferno : Dico, Che quando l’anima mal nata...e

no Capítulo CXIII, intitulado “Uma Beatriz para dois”. Acerca disso assim comenta

Gomes:

Vê-se, portanto, que não se pode deixar de

associar Flora e Beatriz, doce paradigma da

Esperança, da Piedade e da Perfeição, em forma

de mulher, que encarnando efemeramente na

terra o Eterno Feminino, corresponde a diferentes

e mesmo ambíguas expressões de idealidade. A

verdade é que, no pensamento de Machado de

Assis, Flora representa a quinta-essência de suas

criações desse caráter e, como Beatriz simboliza

um ideal indefinível, adaptando-se por isso

mesmo às mais várias interpretações. (GOMES,

in ASSIS, 1992, p. 1.111-2).

E, de acordo com Gomes, há muito mais no subterrâneo de uma narrativa

que traduz para o solo brasileiro verdadeiras maravilhas da literatura universal.

6.3 -Memorial de Aires e a Tradução Literária de Machado de

Assis.

165

Como já afirmamos Machado de Assis atuou com rigor com relação às

traduções que lhe eram apresentadas para aprovação na época do Conservatório

Dramático Brasileiro e conforme fomos demonstrando no decorrer da análise de

dois de seus romances da chamada segunda fase, a postura outrora austera com

relação às traduções foi-se modificando tanto na sua apreciação teórica quanto

na sua prática ficcionista.

No último romance, publicado em 1908 - dois meses antes de sua morte,

tomamos conhecimento através do diário do Conselheiro Aires, ainda que de

forma “oblíqua”, de conceitos sobre a teoria da tradução que estão em debate até

os dias de hoje: a apropriação, a liberdade do tradutor/escritor, a relação de

autoria e originalidade enquanto transformação de um texto alheio.

No Memorial de Aires, é o personagem Aires quem relata, sob a forma de

diário, os fatos ao seu derredor, objetivando a vida de terceiras pessoas.

Iniciemos por considerar que Aires viveu mais de trinta anos na Europa. O

simples fato de o Conselheiro ser diplomata nos remete ao fato de que ele é

conhecedor de outras culturas e outros idiomas e o coloca em posição favorável

enquanto transeunte cultural e manipulador de textos escritos em diferentes

línguas. No acervo de citações do diplomata encontramos Shelley, Shakespeare,

Goethe, Mozart, Dante, que traduzem tanto a leitura quanto a vida clássicas do

“diplomata” criador Machado de Assis.

O Conselheiro, inventariando suas referências literárias e culturais, desvela-

nos através de seu diário, as suas leituras, seus conhecimentos, suas impressões

da vida e das pessoas.

166

Destaca-se, nesse manancial literário, a preferência por Shelley, que visita

o seu diário várias vezes. A primeira, onze dias após o começo da escritura do

diário, mais precisamente no dia 20 de janeiro de 1888, no qual o Conselheiro

relata:

Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente

alguma coisa de Shelley e também de

Thackeray. Um consolou-me do outro, este

desenganou-me daquele; é assim que o engenho

completa o engenho, e o espírito aprende as

línguas do espírito. ( MACHADO, 1994, p,1.102)

De Shelley, o Conselheiro resgata o verso retirado de seu poema To,

escrito em 1821:

I can give not what men call love

Aires empresta os versos do autor inglês, verte-os como quer, devolvendo-

os com um acréscimo todo seu:

“Assim disse comigo em inglês, mas

logo depois repeti em prosa nossa confissão do

poeta, com um fecho da minha composição: ‘ Eu

não posso dar o que os homens chamam

amor...e é pena!’. (Idem, p.1.104)

O destaque para o comentário acrescentado pelo escritor Aires “e é pena”

ao verso inglês transforma-o em um novo verso, já travestido de “novo molho” e

traz de novo à baila o conceito de tradução que enviesadamente percorre a

produção machadiana, que avalia a liberdade de criação do tradutor-autor, que na

167

sua irreverência, e pelo acréscimo, transforma o “já dito” no “novo” sem a angústia

da inferioridade.

Se um leitor arguto encher-se de curiosidade e for à fonte procurar pela

poesia completa de Shelley vai encontrar os seguintes versos:

One word is too often profaned

For me to profane it;

One feeling too falsely disdain’d

For thee to disdain it;

One hope is too like despair

For prudence to smother;

And pity from thee more dear

Than that from another.

I can give not what men call love:

But well thou accept not

The workship the heart lifts above

And the heavens reject not,

The desire of the moth for the star,

Of the nigth for the morrow,

The devotion to something afar

From the sphere of our sorrow?

Embora o narrador Aires só se aposse do primeiro verso da segunda parte

do poema, os dois primeiros versos do poema inglês que, com certeza, eram de

conhecimento do narrador Aires, que se declara um admirador de Shelley, e que

ele propositalmente omitiu, podem revelar uma prática muito exercida por ele. Pelo

narrador do memorial, o conselheiro Aires e pelo seu autor, Machado de Assis.

Eis os versos:

168

One word is too often profaned

For me to profane it;

“Profanar” já na primeira acepção do dicionário significa “ tratar com

irreverência”; e não é isso que faz o conselheiro, acrescentando um registro seu

ao verso do poeta inglês? E não é exatamente isso que Machado faz, “

temperando com o “molho de sua fábrica” a especiaria alheia? Shelley afirma nos

dois primeiros versos de seu poema que “uma palavra é muito freqüentemente

profanada para que eu a profane”. Irreverentemente o nosso autor dos oitocentos

pensa diferente. Ela a profana, a modifica, a retempera e a devolve diferente.

Ainda no diário de Aires, há outros registros teóricos machadianos. Sobre o

dia 3 de setembro, Aires anota que fez um pedido musical à viúva Noronha e

solicitou que tocasse um autor francês qualquer, antigo ou moderno, e postula

teoricamente que “ a arte naturaliza a todos na mesma pátria superior.” (Idem, p.

1.144).

Mais adiante, no diário de 30 de setembro o Conselheiro desabafa

“se eu estivesse a escrever uma novela,

riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste

mês. Uma novela não permitira aquela paridade

de sucessos .[...] Riscaria os dous capítulos, ou

os faria mui diversos um de outro; em todo caso

diminuiria a verdade exata, que aqui me parece

mais útil que na obra de imaginação. [...] A vida,

entretanto, é assim mesmo, uma repetição de

atos e maneios, como nas recepções, comidas,

visitas e outros folgares; nos trabalhos é a

mesma cousa. Os sucessos, por mais que o

169

acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais

no tempo e nas circunstâncias; assim a história,

assim o resto.” ( Idem, p. 1.154-5)

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

La extrañeza cesa de ser un extravío y se vuelve

ejemplar. Su ejemplaridad es paradójica y

reveladora: el salvaje es la nostalgia del civilizado,

su otro yo, su mitad perdida. La traducción refleja

estos cambios: ya no es una operación tendiente a

mostrar la identidad última de los hombres, sino

que es el vehículo de sus singularidades [...] por

una parte la traducción suprime las diferencias

entre una lengua y otra; por otra, las revela más

plenamente.

OCTAVIO PAZ

Para concluirmos este trabalho é necessário que retomemos por um

momento o início deste texto, mais especificamente o título: Machado de Assis

tradutor: o labirinto da representação. Esta tese procura a saída de um labirinto

criado por Machado de Assis à semelhança do labirinto de Creta, criado por Minos

e habitado pelo horrível Minotauro. Conta a mitologia que Teseu, rei de Atenas,

conseguiu derrotar a fera e sair do labirinto auxiliado por um fio de novelo dado

por Ariadne, filha do próprio Minos. Assim, buscando o fio de Ariadne para sair do

labirinto machadiano, percorremos sua produção à cata de uma teoria da tradução

171

que aparece “oblíqua” e “dissimuladamente” pelos seus pareceres e citações para,

enfim, explodir nos textos ficcionais.

A tese demonstra que o prestígio intelectual que Machado conquistou em

sua juventude literária não se deveu aos textos de sua extraordinária produção

ficcional. Antes mesmo já era conhecido como crítico teatral e literário,

comediógrafo e tradutor – sendo inclusive censor do Conservatório Dramático

Brasileiro, fato que retomamos nesta tese a fim de mostrar a importância desta

função no amadurecimento de uma teoria que já percorria de modo sublime as

suas idéias.

A tradução, ao colocar em jogo conceitos como diferença cultural, histórica,

social e até mesmo política, produz ou detecta relações de alteridade através da

língua, evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e cultura.

Essa teoria acerca da tradução tão discutida na contemporaneidade já tinha seu

esboço traçado por Machado de Assis no século XIX, e é isso que procuramos

asseverar nesta tese.

Deste modo expomos a análise de dois de seus romances para mostrar na

prática como se configurou a sua teoria da tradução já amadurecida, que

propunha todo o tipo de apropriações, citações, paráfrases, assimilações e

aclimatações.

Partindo da verificação da importância da tradução para a história cultural

da humanidade, perscrutamos, ainda que de modo superficial a atuação de

tradutores no decorrer da história, verificando a postura vanguardistas de alguns

172

deles. Percebemos que o percurso da tradução não se fez de forma linear e que

embora reconhecidamente imprescindível para a divulgação de grandes obras e

mesmo a perpetuação delas através dos tempos, a tradução percorreu quase todo

o caminho como uma tarefa menor e discriminada. Associada inúmeras vezes aos

estudos lingüísticos, a tradução se tornou sinônimo de “equivalência” até que

conseguiu sair da obscuridade e ressurgir excelsa conjugada com a produção

textual.

Nesse percurso, surgiram diversos teóricos responsáveis por delimitar o

lugar da tradução, seu campo de atuação, bem como a sua função, tirando-a da

marginalidade. Um deles foi Laurence Venuti para quem as estratégias

tradicionalmente utilizadas na escrita e leitura das traduções, ao longo dos anos,

foram responsáveis pela invisibilidade do autor da tarefa. Em contrapartida,

verificamos que as novas estratégias que sugere, marcariam a sua visibilidade,

contribuindo assim para que o mesmo viesse obter uma real valorização de seu

ofício em todos os sentidos: remuneração, regulamentação e, finalmente, o

prestígio desejado.

Os trabalhos de Venuti têm como ponto de partida a afirmação de que toda

tradução necessariamente implica a intervenção daquele que a realiza, porque

uma atividade em que se trabalha com a linguagem atua com a diferença, não se

podendo mais ter, portanto, a perspectiva de que a tradução seja uma mera

adaptação de significados e intenções.

173

Observamos que um outro teórico, André Lefevere, considera a tradução

uma reescritura, que sofre a mesma espécie de coibições que ela, mas que atua

como uma força motriz por trás da evolução literária, quando há necessidade de

estudo do fenômeno em maior profundidade, ao argumentar que a tradução não

pode estar unicamente ligada à lingüística, pois envolve fatores extralingüísticos,

tanto na análise quanto no ensino.

Perscrutando o sistema tradutório que se desenvolve “nos trópicos”,

encontramos muitos escritores que se apropriaram de outros textos para fazerem

os seus. Entre muitos encontramos Jorge Luis Borges, Mário de Andrade,

Justiniano José da Rocha e o nosso Machado de Assis.

As teorias da tradução desenvolvidas nos últimos quinze ou vinte anos se

apresentam, de um modo geral, movidas pelo interesse em tirar da marginalidade

um atividade tão antiga e tão fundamental em nossa história e, por conseguinte, o

profissional que nela atua.

Para atingirem seu objetivo, os teóricos da tradução propõem-se a minar o

que consideram o principal esteio dessa marginalização: o não reconhecimento do

traduzir como uma atividade necessariamente transformadora e,

conseqüentemente, a visão do tradutor como alguém que realiza uma escrita

neutra.

Ainda percorrendo o labirinto, acreditamos ter sido possível mostrar que a

literatura comparada e os estudos de tradução mantêm estreitas relações, no

sentido de que a primeira tem na segunda constante fonte de inspiração e um

174

riquíssimo campo de trabalho e a segunda pode se valer da primeira para ampliar

suas pesquisas. Atrás de ambas está o escriba original, o autor do texto que

resultou na tradução, tradução essa que serviu de ferramenta de trabalho para o

comparatista. Também como membro da espécie humana, o autor original

traduziu para outros homens seus anseios, sonhos e frustrações, numa cadeia

sem fim que, ao final das contas, talvez traia nosso íntimo desejo. Sendo a língua

a ferramenta maior de comunicação entre os homens, a tradução garante

progressivamente seu status, sobretudo em tempos de globalização econômico-

financeira e de individualização cultural. E com ela a literatura comparada alça

vôo, vislumbrando não só o resultado do produto final como a fonte que o originou;

da fonte para as influências e o contrário; enfim, o que o espírito e a mente

humanas criaram como forma de comunicação.

Ao pesquisador de estudos da tradução e ao comparatista muitos

questionamentos têm sido suscitados na atualidade e merecem análise profunda,

especialmente agora que muitas populações até então marginalizadas e

silenciadas começam a contar sua história às culturas hegemônicas que as

haviam dominado.

Tão importantes são os estudos da tradução atualmente que

pesquisadores da área têm expandido suas teorias sobre o assunto e têm trilhado

novos caminhos, haja vista a profusão de estudos ligando a tradução à lingüística,

aos estudos literários, à história cultural, à filosofia, à antropologia.

175

Com tantas teorias novas, outras preocupações passaram a ocupar a

mente dos tradutores; assim, literatura comparada e tradução caminham lado a

lado. Comparando obras, cotejado textos de diferentes origens e épocas e

aprendendo (e apreendendo) cultura, o comparatista está constantemente

mergindo em alteridade cultural.

Com relação a uma teoria da tradução à luz dos recentes conceitos a ela

atribuídos, podemos vislumbrar a ficção machadiana como uma das fontes de

teorização tradutória a fim de concluir que ela é uma realização daquilo que

pregou enquanto crítico e teórico.

Sendo assim, chegamos ao centro do labirinto da representação e

encontramos o “inclassificável” Machado de Assis, para quem o cérebro é como o

“bucho de um ruminante”. Depois de ter sua produção ficcional e crítica

vasculhadas pelos maiores estudiosos do Brasil, e fora dele, surge mais uma

possibilidade que consideramos nesta tese: confirmar que Machado de Assis

elaborou uma teoria da tradução e que esta comparece, ainda que obliquamente

dissimulada, em seus textos, ficcionais ou não.

Diante dessa possibilidade, acreditamos que Machado antecipou questões

teóricas acerca da tradução que estão na ordem do dia. Aproximamos suas

metáforas sobre apropriações, plágios e aclimatações de textos das teorias de

Walter Benjamin, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e

Rosemary Arrojo.

176

Acreditando que a saída de um labirinto se dá virando sempre para a

esquerda, puxamos o fio a fim de desvelar o trabalho tradutório do nosso autor.

Verificamos que ele começou sua carreira literária pela tradução e que quando

analisava textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha

que desabonava as traduções mal-feitas principalmente no tocante ao emprego da

língua portuguesa, porém pudemos observar que Machado era rígido apenas

quando analisava os textos e quando praticava traduções encomendadas, quando

as fazia por sua conta “permitia-se algumas licenças”.

Através de metáforas, Machado de Assis distribuiu pela sua produção

literária máximas que pudemos observar nesta tese como

Ir buscar a especiaria alheia, mas há de

ser para temperá-la com o molho de sua fábrica

(ASSIS, 1992, p. 727)

Ou

Copiar a civilização existente e adicionar-lhe

uma partícula (ASSIS, 1992, p.791)

Ou ainda,

A literatura como Proteu, troca de formas,

e nisso está a condição de sua vitalidade.

E

Já alguém afirmou que citar a propósito

um texto alheio equivale a tê-lo inventado.

De todas as declarações de Machado mencionadas nesta tese podemos

deduzir que ele defende , com a consciência de o estar fazendo , a

177

contextualização modificadora de influências literárias, seja através da adição de

uma “partícula” ou de um tempero extra com o “molho de sua fábrica”.

Em nossos rastreamentos paramos mais detidamente sobre a tradução

mais famosa e comentada de Machado de Assis – O Corvo, de Poe – e inclusive

aqui pudemos comprovar as inúmeras alterações no original praticadas pelo

irreverente Machado em sua tradução, tornando seu o texto de outro; produzindo

originalmente na recepção.

E essa não é a discussão mais cara aos assuntos tradutórios na

contemporaneidade?

E mais, pudemos comprovar que Machado se aproxima da crítica

contemporânea por esboçar, no século XIX, um pensamento que propõe a

ampliação do horizonte crítico para os intelectuais de sua época ao não fugir da

inevitável dependência.

Como vimos

A atual geração, quaisquer que sejam os

seus talentos, não pode esquivar-se às condições

do meio; afirmar-se-á pela inspiração pessoal,

pela caracterização do produto, mas o influxo

externo é que determina a direção do movimento;

não há por ora no nosso ambiente a força

necessária à invenção de doutrinas novas.

(ASSIS, 1879, p. 809).

178

Observamos que o mesmo acontece com a tradução do texto de Victor

Hugo, Os trabalhadores do mar no qual Machado de Assis, se permitindo algumas

licenças, reduz a força da antítese do autor francês.

No caminho, percebemos ainda que a trilha percorrida pelo autor brasileiro

nos assuntos da tradução se assemelha ao seu percurso na ficção já identificado

e debatido por inúmeros críticos: Machado começa sua tarefa literária como

tradutor que se preocupa com as equivalências lexicais e no decorrer do caminho

vai alterando suas concepções até traduzir antropofagicamente. Basta cotejar o

texto Queda que as mulheres têm para os tolos e sua tradução quase equivalente

ao original, passar pelos seus pareceres rigorosos para o Conservatório Dramático

Brasileiro, averiguar O Corvo e suas aclimatações, sua peça Hoje avental,

amanhã luva e suas contextualizações, para, enfim, chegar aos romances no

quais coloca em prática mais amplamente suas teorias: transforma o destemido

Otelo, o mouro de Veneza no aburguesado narrador casmurro, empresta a

rivalidade dos irmãos bíblicos, Esaú e Jacó, ou dos irmãos persas, Cirus e

Ataxerxes, para um prosaica narrativa oitocentista, constrói um narrador à

semelhança de Xenofonte e, por fim, esse mesmo narrador comparece em seu

último trabalho como que num alter-ego com seu criador, apropriando-se na

narrativa do seu memorial da “especiaria alheia”, mas sempre temperando-a “com

o molho de sua fábrica”.

No fim do percurso, podemos vislumbrar um Machado que antecipou

questões que hoje norteiam os estudos da tradução, que não acreditam mais

179

numa leitura singular e se propõe a desvendar sempre o texto revelando suas

relações intertextuais.

De acordo com Candido

O amadurecimento promovido por

Machado de Assis foi decisivo e cheio de

conseqüências futuras, porque ele não apenas

consolidou com maestria uma escolha temática,

mas se interessou por técnicas narrativas que

eram heterodoxas e poderiam ter sido inovadoras

(e foram). Além disso, teve consciência crítica da

sua posição sem preconceitos provincianos, com

se vê no famoso e nunca assaz mencionado

artigo “Instinto de Nacionalidade”, de 1873.

(CANDIDO, 2000, p.203)

Sendo assim, longe de encerrarmos de vez a questão, descobrimos agora

mais uma faceta inesgotável do Bruxo do Cosme Velho: um tradutor que

representa ou reapresenta para nós toda a cultura universal travestida numa

nova e irreverente indumentária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, O. de. Manifesto Antropófago, 1928.

ALIGUIERI, D. “Canto XX do Inferno”. Tradução de Machado de Assis. In:

MACHADO DE ASSIS, J.M. Ocidentais. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p. 476-7,

vol 18.

ALVES, I. “ O Discurso Europeu e a Questão da Identidade Cultural no Brasil”. In:

Cânones e Contextos. Vol. 2, 5º Congresso Abralic – Anais. Rio de Janeiro,

1998, pp. 383-390.

ARROJO, R. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago,

1986.

____________(org.) O Signo Desconstruído: implicações para a tradução, a

leitura e o ensino. Campinas: Pontes, 1992.

_____________ Oficina de Tradução. São Paulo: Ática, 1986.

AUBERT, Francis Henrik. As (in)fidelidades da tradução: servidão e autonomia

do tradutor. Campinas, S.P.: Edit. da UNICAMP, 1994.

BARROSO, I. (Org). O corvo e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda

Editores, 1998.

BASSNETT, S. Translation studies London and New York: Roudledge, 1988.

____________ Comparative literatura: a critical introduction. Oxford:

Blackwell, 1993.

181

BATISTA, A. B. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.

____________ Em nome do apelo do nome: duas interrogações sobre

Machado de Assis. Lisboa: Litoral, 1991.

BELLEI, S. L. P. “O Corvo Tropical de Edgar Allan Poe”. In: _________.

Nacionalidade e Literatura: os caminhos da alteridade. Florianópolis, SC: Ed.

da UFSC, p. 77-90.

BENJAMIN, W. A Tarefa do Tradutor. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:

Brasiliense, 1987.

_____________Gesammelte Schriften. Kleine Prosa. Baudelaire Übertragungen.

Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. vol 4, p. 7-21. A presente versão foi extraída

de Clássicos da Teoria da Tradução – Antologia Bilíngüe/ Alemão-Português, p.

189- 215.

_____________ Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet.

São Paulo: Brasiliense, 1987.

BHABHA. H.K. O Local da Cultura. Trad. Myrian Ávila e outros. Belo Horizonte:

Ed. UFMG,1998.

BLEST GANA, G. “O Primeiro Beijo”. Tradução de Machado de Assis. In: MASSA,

J-M. (org) Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério de

Educação e Cultura, 1965, p. 255-8.

BORGES, J.L. Ficções. Trad. Carlos Nejar. 5ª ed. São Paulo: Globo, 1989.

____________ Discussão. Trad. Claudio Fornari. São Paulo: DIFEL, 1986.

182

BOSI, A . O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.

BROCA, B. Machado de Assis e a política. Rio de Janeiro: Simões Editora,

1957.

BRUNEL, P; PICHOIS, C. & ROUSSEAU, A. M. Que é Literatura Comparada?

(trad. C. Berretini). São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

CALDWELL, H. The Brasilian Othello of Machado de Assis – A Study of Dom

Casmurro. University of California Press, 1970.

____________. The Brasilian Master and His Novels. University of califórnia

Press, Berkley. Los Angeles. London, 1970.

CAMPOS, A . Poesia, Antipoesia, Antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes,

1982.

__________________ Verso, Reverso, Controverso. São Paulo: Perspectiva,

1988.

CAMPOS, G. O que é tradução. São Paulo: Brasiliense, 1986.

CAMPOS, H. de . “Da tradução como Criação e como Crítica”. Metalinguagem.

São Paulo: Cultrix, 1976.

______________________ “ Da razão antropofágica: A Europa sob o signo da

devoração”. In: Colóquio/ Letras 62. Julho de 1991, pp.10-25.

_____________________ A arte no horizonte do provável e outros ensaios.

São Paulo: Perspectiva, 1981.

183

_____________________ O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura.

Rio de Janeiro: Imago, 1997.

___________________ Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:

Perspectiva, 1981

CANDIDO, A. O Nacionalismo literário. Formação da literatura brasileira:

momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

____________ “Uma palavra instável”. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas

Cidades, 1995. p.293-305.

____________ A Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática,

2000.

____________ “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários Escritos. São Paulo:

Duas Cidades, 1995.

CARNEIRO, C. R. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

CARVALHAL, T. F. “Tradução e recepção na prática comparatista”. In:

_________. O Próprio e o Alheio: ensaios de Literatura Comparada. São

Leopoldo, RS: Ed. da Unisinos, 2003, p. 217-259.

CASANOVA, P. “A tradução como literarização”. In: _________. A república

mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação

Liberdade, 2002, p. 169-173.

184

COSTA, A. L. L. Dependência Cultural: o caso Machado de Assis. (dissertação

de Mestrado). UFJF, 2001.

COUTINHO, A . Machado de Assis na literatura brasileira. Rio de Janeiro: São

José, 1966.

COWPER, W. “Minha mãe”. In: MACHADO DE ASSIS, J.M. Obras completas de

Machado de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p. 402-404.

CRUZ, R.T. “ A tradução como o segundo original”. In:

http://www.interletras.com.br/dossie/traducao.html

CUNHA. P.L.F da. Machado de Assis: um escritor na capital dos trópicos.

Porto Alegre: IEL: Unisinos, 1998.

CURY, M.Z., PAULINO, G. WALTY, I. Intertextualidades: teoria e prática. Belo

Horizonte: Lê, 1998.

DELISLE, J. & WOODSWORTH, J. Os Tradutores na História. São Paulo: Ática,

1998.

DERRIDA. J. “Des tours de Babel”. In: GRAHAM, J. Difference in translation.

London: Cornell University Press, 1985, p. 149-164.

DICKENS, C. Oliver Twist. Tradução de Machado de Assis & Ricardo Lísias. São

Paulo: Hedra, 2002.

ESTEVES, P. L. M. L . “ O Conselheiro Aires e a Crônica Mundana de Machado

de Assis”. Belo Horizonte: Vária História, nº 15, 1996, p. 133-154.

185

FARIA. G. “Literatura comparada e tradução”. In: CUNHA. E.L. e SOUZA.

E.M.(org) Literatura Comparada: ensaios. Salvador: EDUFBA, 1996.

FARIA. J.R. “Machado de Assis, leitor e crítico de teatro”. In:

http://www.scielo.br/scielo.php. Estudos Avançados vol 18 nº 51. São Paulo, 2004.

FERREIRA, E.F.C. Machado de Assis sob as luzes da ribalta. São Paulo: Cone

Sul, 1998.

FERREIRA, E. “O Leitor no Texto”. In: http//www.plataforma.paraapoesia.htm.

FROTA, M. P. A singularidade na escrita tradutora: linguagem e subjetividade

nos estudos da tradução, na lingüística e na psicanálise. Campinas, S.P.:

Pontes, 2000

GARCEZ, C. M. “ Jogos de Sobrevivência e Reverência”. In: Ipotesi: revista de

estudos literários, Juiz de Fora, vol. 3, nº 2 – pp. 115-117.

GENTZLER, E. Contemporary translation theories. London and New York:

Routledge, 1993.

GIRARDIN, E. de & DUMAS fils, A. Suplício de uma mulher. Tradução de

Machado de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p. 351-406.

186

GLEDSON, J. Machado de Assis; impostura e realismo. Trad. Fernando Py.

São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

____________________ Machado de Assis e confrades de versos. São Paulo:

Mindem, 1998.

____________________Machado de Assis: ficção e história. Trad. Sonia

Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

GOMES, E. Machado de Assis – Influências Inglesas, Pallas, INL, 1976, 2ª ed. (

1ª ed. Bahia, 1939)

_____________________Shakespeare no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, Serviço

de Documentação, 1961.

GRANJA, L. Machado de Assis, escritor em formação. Campinas, São Paulo:

Mercado de Letras, 2000.

HALL, S. Identidades culturais na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da

Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

HEINE, H. “Prólogo do Intermezzo”. Tradução de Machado de Assis. In:

MACHADO DE ASSIS, J. M. Obras completas III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

1997, p. 342-3.

HÉNAUX, V. Queda que as mulheres têm para os tolos. Tradução de Machado

de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p . 163-81.

187

HILL, A. G. A Crise da Diferença – uma leitura das Memórias Póstumas de

Brás Cubas, Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.

HUGO, V. Os trabalhadores do Mar. Tradução de Machado de Assis. São Paulo:

Nova Cultural, 2002.

IVO, L. Teoria e Celebração: ensaios. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

JACQUES, A. Machado de Assis: equívocos da crítica. Porto Alegre:

Movimento, 1974.

JOBIM, J. L. (org.) A Biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro:

Topbooks, 2001.

KOTHE, F. O Cânone Imperial. Brasília: UnB, 2000.

KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. Trad. Lúcia Ferraz. São Paulo:

Perspectiva, 1974.

___________ Nations without nationalism. Trad. Leon Roudiez. New York:

Columbia University Press.

LAGES, S. K. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp,

2002.

LEFEVERE, André . Traslation literatura: the German tradition from Luther to

Rosenzweig., 1977

188

__________________ translation, rewriting, manipulation: textures of power

and power of texts. London: Pinter, 1991.

LEFEVERE, A . & BASSNETT, S. Translation, history and culture. London:

Pinter, 1990.

LIMA, L. C. “Antropofagia e controle do imaginário”.In: Revista Brasileira de

Literatura Comparada, Niterói, n1, 1991.

MACHADO DE ASSIS, J.M. Obra Completa. Vols. I, II e III. Rio de Janeiro:

Aguilar, 1994

__________________ “Antônio José”. In: ___________. Crítica teatral. Rio de

Janeiro: Jackson, 1953, V.30, p. 271-291.

__________________A Semana. Rio de Janeiro: Jackson, 1952, v.22, p.27.

__________________Crônicas. Rio de Janeiro: Jackson, 1952, v.22, p.32-6.

__________________Instinto de Nacionalidade. In: ___________Crítica

Literária. Rio de Janeiro: Jackson, 1952, v.29, p.129-149.

_________________Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, v. I p.

1.094 – 1.200.

189

__________________ Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, v. I p. 807 –

944.

__________________ Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, v. I p. 945 –

1.093.

__________________ “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”.

In:____________. Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p.785-9.

MAGALHÃES JÚNIOR, R. Vida e Obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira/INL-MEC, 1981.

MANN, P. “Conclusões: A Tarefa do Tradutor de Walter Benjamin”, in A

Resistência à Teoria. Lisboa: Ed. 70, 1989. Trad. Terese Louro Peres.

MARTINS, M. A. P. (org.). Tradução e Multidisciplinaridade. Rio de Janeiro:

Lucerna, 1999.

MASINI, A.C.S. “Poesia e Tradução”. São Paulo: casa da Palavra de Santo André,

2002 . http://www.casadacultura.org/Literatura/Poesia/Poesia - Poética-Verso-

Artigos/ Poesia-e-tradução-palestra.html

MASSA. J-M. “Machado de Assis: traducteur” .In: Colóquio de Estudos Luso-

Brasileiros, 1963. p. 155-162.

190

_________________ Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro:

MEC/INL, 1965.

MATOS, G. C. Machado na Escravização. Juiz de Fora: Esdeva, 1989.

MIRANDA, W.M. “Operação Tradutora”. In: Corpos Escritos. São Paulo: EDUSP,

1992.p.90-4.

NITRINI, S. Literatura Comparada. São Paulo: EDUSP, 1997.

PAES, J. P. Tradução – A Ponte Necessária. Aspectos e problemas da arte de

traduzir. São Paulo: Ática, 1990.

PAZ, O. Traducción: Literatura y literalidad. Barcelona: Tusquets Editores, (s/d)

PEREIRA, C.M.C. “Transcriação: a tradução em jogo”.

http://www.filologia.org.br/anais/cadernos06-15.html

PERRONE-MOISÉS, L. Flores da Escrivaninha. São Paulo: Companhia das

Letras, 1990.

_______________ Altas Literaturas: escolha e valor na obra crítica de

escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras,1998.

PLAZA. J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

191

POE, E. A. “O Corvo”. Tradução de Machado de Assis. In: MACHADO DE ASSIS,

J.M. Obras Completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Jackson, 1936, p.

402-404.

PONTES, J. O Aprendiz da Crítica. Rio de Janeiro: INL, 1960.

RIDEL, D.C. Metáfora: o espelho de Machado de Assis. 2ª ed. São Paulo:

Francisco Alves, 1979.

ROBINSON, D. Becoming a translator – an accelerated course. London and

New York: Routledge, 1997.

____________________ Translation and empire. Manchester: St. Jerome Publ.,

1997.

ROCHA, D. S. (depoimentos) A tradução da grande obra literária. São Paulo:

Álamo, 1982.

ROCHA, J.J. A Paixão dos Diamantes. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 27-

30 mar., 1839)

RODRIGUES, C. C. Tradução e Diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

ROMERO, S. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira.

Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1992.

RONÁI, P. A Tradução Vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

192

_____________ Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e

Saúde, 1952.

SAID, E. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1994

SANTIAGO, S. “ Retórica da Verossimilhança”. In: Uma Literatura nos Trópicos.

Ensaios sobre Dependência Cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp 29-48

________________________ “ O entre-lugar do discurso latino-americano”. In:

Uma Literatura nos Trópicos. Ensaios sobre Dependência Cultural. São Paulo:

Perspectiva, 1978, pp. 11-28.

________________________ “ Apesar de Dependente, Universal”. In: Vale

Quanto Pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 13-24.

SCHWARZ, R. “ Nacional por Subtração” In:_________________ Que Horas

São?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp.

___________________ “ A Poesia Envenenada de Dom Casmurro”. In: Duas

Meninas, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

___________________Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992

___________________Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de

Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

193

SCARPELLI, M. F. Trilhas partidas: engenho novo; estudo da memória em

Dom Casmurro de Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. UFMG, 1994.

SCHNEIDER, M. Ladrões de Palavras. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco.

Campinas: Unicamp, 1990.

SENNA, M. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de

Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

SHAKESPEARE, W. Othello, the moor of Venice. The Complete Works of

Willian Shakespeare. Cleveland, New York. The World Syndicate Publishing

Company, 1930, pp. 981-1012.

__________________________. ‘Monólogo de Hamlet “To be or not to be”.’

Tradução de Machado de Assis. In: MACHADO DE ASSIS, J.M. Ocidentais. Rio

de Janeiro: Jackson, 1936, p. 384-385.

SILVA, T.V.Z. “ Diplomacia em Literatura: esboço de uma outra leitura do

testamento estético de Machado de Assis” . Rio de Janeiro: Advir, nº 7, out. 95,

pp. 28-30.

SOUZA, E. M. “Tradução e intertextualidade”. In: Traço Crítico. Belo Horizonte:

Editora da UFMG/Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.

SOUZA J.G. de. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,

1956.

194

_____________ “Machado de Assis, censor dramático”. In: Revista do Livro, nº

3-4, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956.

STEINER, G. “Qué es literatura comparada?” in: Pasión intacta. Barcelona:

Siruela/Norma, 1997.

TELES, G. M. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro: apresentação

dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas,

de 1857 a 1972. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

TEIXEIRA, I. A poesia de Machado de Assis. Folha de São Paulo. São Paulo:

1986, 2 de novembro.

VENTURA, R. O caso Machado de Assis. In: Revista da USP, nº 8, 1991.

VENUTI, Lawrence (1995) “A invisibilidade do tradutor”. Tradução de Carolina

Alfaro. PaLavra, n.3. departamento de Letras da PUC-Rio, pp. 111-134

__________________. Escândalos da Tradução: por uma ética da diferença.

Trad. Laureano Pelegrin, Lucinéia Villela, Marileide Esqueda e Valeria Biondo.

Bauru, S.P.: EDUSC, 2002.

XENOFONTE, Anabasis. Trad. J. S. Watson. London, George Bell and Sons,

1880.

____________ Citado por Helen Caldwell. In: Machado de Assis: The Brasilian

Master and his Novels. Berkley, Los Angeles and London, University of California

Press, 1970.

195

WERNECK. M.H. O homem encadernado: Machado de Assis na escrita das

biografias. Rio de Janeiro.

COSTA, Ana Lúcia Lima da. Machado de Assis tradutor: o labirinto da

representação. Rio de Janeiro, 2006. Tese ( Doutorado em Ciência da Literatura

– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

R E S U M O

Esta tese observa as relações de Machado de Assis com a tradução, que

são abundantes, e de grande impulso na constituição do escritor e de sua obra.

Será verificado tanto o Machado de Assis tradutor, através do exame de excertos

de textos traduzidos de vários escritores de diversos gêneros e idiomas, como o

Machado de Assis crítico e teórico, abordando as seguintes feições: a relação com

a tradução, que ora atua como meio de modernização, ora como obstáculo ao

aparecimento de talentos nacionais; a postura das literaturas periféricas e a

recepção de modelos externos; a releitura da dependência cultural; a diluição de

modelos exclusivos de referência; a revisão de conceitos de cópia, imitação e

plágio; a relação entre tradução e processos criativos e a migração da tradução

teatral para a ficção.

Para isso, situamos Machado de Assis no contexto teatral dos anos de

1850 e 1860 do século XIX, passamos por sua extensa produção jornalística, na

qual se notabilizou como crítico teatral e folhetinista, detendo-se também na

atividade de censor do Conservatório Dramático Brasileiro que o escritor exerceu

por algum tempo.

COSTA, Ana Lúcia Lima da. Machado de Assis tradutor: o labirinto da

representação. Rio de Janeiro, 2006. Tese ( Doutorado em Ciência da Literatura

– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

A B S T R A C T

The present thesis observes Machado de Assis’ relations with translation,

which are abundant and give impulse to the writer’s work. It seeks to analyze

Machado de Assis as a translator, by examining excerpts from texts translated by

writers of different genres and languages, and Machado de Assis as a critic and a

thoeretician addressing the following aspects: the relation with the translation that

acts either as a means of modernization or as an obstacle to the appearing of

national talents; the stand of peripheral literatures and the reception of external

models; the critical reading of cultural dependence; the dilution of exclusive models

of reference; the review of concepts of copy, imitation and plagiarism; the relation

between translation and creative processes as well as the migration of drama

translation to fiction.

Therefore, concerning the study organization, Machado de Assis is first

situated within the drama context of the 1850s and 1860s. It then permeates

Machado’s extensive journalistic, which made him an outstanding and renowned

drama critic and pamphleteer. As a last discussion, it also emphasizes the writer’s

activity as censor of the Conservatório Dramático Brasileiro ( Brazilian Drama

Conservatory), position which he carried out for some time.

COSTA, Ana Lúcia Lima da. Machado de Assis tradutor: o labirinto da

representação. Rio de Janeiro, 2006. Tese ( Doutorado em Ciência da Literatura

– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

RÉSUMÉ

Cette thèse met en observation les rapports de Machado de Assis avec la

traduction, qui sont abondants et représentent un important essor pour la

constitution de l’écrivain et de son oeuvre. On vérifiera soit Machado de Assis en

tant que traducteur par l’examen d’extraits de textes traduits de plusieurs auteurs

des langues et des genres les plus varies, soit Machado de Assis en tant que

critique et théoricien, où l’on peut se rendre compte de l’approche des aspets

suivants: le rapport entre la traduction qui agit tantôt comme un moyen de

modernisation tantôt comme un obstacle à l’apparition de talents nationaux, la

posture des littératures péripháriques et la recéption des modeles externes; la

relecture de la dépendence culturelle; la dilution de modèles exclusifs de

référence; la révision de concpets de copie, imitation el plagiat; la relation entre

traduction et des processus créatifs et la migration de la traduction théatrale pour

la fiction. Pour ce faire, on va situer Machado de Assis dans le contexte théatral

des annés 50 et 60 du XIXème siècle, puis on va passer par son immense

production journalistique, dans laquelle il s’est rendu célèbre comme critique

théatral et feuilletoniste, en se vouant aussi à l’activité de censeur du

Conservatoire Dramatique Brésilien que l’écrivain exerça pendant un certain

temps.

199

ANEXOS

CATÁLOGO ATUALIZADO DA BIBLIOTECA DE

MACHADO DE ASSIS

A fim de conferir confiabilidade e veracidade às informações prestadas

sobre os predecessores de Machado de Assis anexei a esta tese um catálogo

atualizado por Glória Vianna que refez o inventário dos livros da biblioteca

machadiana, recuperando 15 dos que estavam dispersos em outras coleções.

Estes últimos foram incorporados aos 718 listados por Jean-Michel Massa em

1961. A pesquisadora constatou que 42 volumes da lista original de Massa estão

extraviados. Nesta listagem podemos saber, além dos títulos, quem doou com

dedicatórias a Machado de Assis, anotações à margem, objetos encontrados

dentro dos livros. A preciosíssima pesquisa conta ainda com um catálogo de

citações, utilizadas por Machado na construção de sua obra. Viana elabora um

catálogo com as citações que ela chama de diretas, aquelas nas quais o narrador

faz uma referência textual ao nome de uma pessoa ou ao nome de um livro ou

texto, as citações indiretas ela não cita explicando que estas estão incorporadas

ao texto machadiano como que “digeridas”. Tudo isso só vem a corroborar com a

teoria de uma tradução assimiladora de que tratamos nesta tese.

200

Concluindo, acrescentei este anexo a esta tese com a finalidade de

comprovar as leituras feitas pelo autor pesquisado, que de maneira direta ou

indireta incorporaram-se a sua própria obra. Por que de acordo com o que afirma

a própria pesquisadora:

“Para o leitor da obra de um escritor sua biblioteca é um verdadeiro

tesouro”.(VIANNA, 2001, p. 100).