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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA — A FARSA SINCERA — O TRAGICÔMICO NA CRÔNICA RODRIGUEANA Por: Nelson Luiz Romeiro da Silva Orientação: Luiz Edmundo Bouças Coutinho 2º/2006

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA

— A FARSA SINCERA — O TRAGICÔMICO NA CRÔNICA RODRIGUEANA

Por: Nelson Luiz Romeiro da Silva

Orientação:

Luiz Edmundo Bouças Coutinho 2º/2006

2

— A FARSA SINCERA — O TRAGICÔMICO NA CRÔNICA RODRIGUEANA

Nelson Luiz Romeiro da Silva

Tese de Doutorado, em Ciência da Literatura, na Linha de Pesquisa Semiologia,

apresentada à Coordenação de Cursos de Pós-Graduação, da Faculdade de Letras, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho FICHA CATALOGRÁFICA Faculdade de Letras da UFRJ 2º semestre de 2006 SILVA, Nelson Luiz Romeiro. A Farsa Sincera. Rio de Janeiro. UFRJ. Faculdade de Letras, 2006. 186. fls. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura (Semiologia)

3

— A FARSA SINCERA — O TRAGICÔMICO NA CRÔNICA RODRIGUEANA

Tese defendida por Nelson Luiz Romeiro da Silva Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura — UFRJ 2º semestre 2006

Banca Examinadora: 01. Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho Orientador ___________________________________________________ 02. Profª Drª Piedade Carvalho ____________________________________________________ 03. Prof. Dr. Latuf Isaías Mucci ____________________________________________________ 04. Profª Drª Eleonora Ziller Cakcamenietzki ____________________________________________________ 05. Profª Drª Maria Lizete dos Santos ____________________________________________________ SUPLENTES: 01. Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto 02. Prof. Dr. Fernando Fabio Fiorese Furtado

4

AGRADECIMENTOS

Para aqueles que, em toda trajetória do espaço imaginário desse dramaturgo, o

cronista e escritor brasileiro, Nelson Falcão Rodrigues, aqueles que criaram uma

identificação com esse autor em questão e, por consegüinte, contribuíram com este

trabalho de pesquisa, proporcinando, assim, o mais importante patrimônio que tivemos

como fundamento para tudo isto que aqui tentamos revitalizar.

A minha mulher, Paula Romeiro, que tanto me incentivou no encaminhamento

desta importante etapa de minha vida acadêmica. Aos meus filhos que, por todo o

tempo, foram o maior patrimônio de minha vida espiritual, minha possibilidade d ver a

vida e olhar na direção do crescimento dessa novidade para o mundo que é o meu

Brasil, em tudo aquilo que ele tem de simbólico.

A minha mãe, Lainer Mello da Silva Gama, que sempre me ensinou a ser um

eterno menino. Ao meu pai, Fernando Gama, letra maior de meu texto. Amigos

fraternos dessa doce jornada que é a eterna recordação de um passado recente como

diria meu Mestre maior — Nelson Rodrigues.

5

DEDICATÓRIA

O rumo deste trabalho tem a total gratidão ao querido orientador, Luiz Edmundo

Bouças Coutinho, posto que, sem seu apoio, direcionamento e carinho, não teríamos

obtido êxito. O reconhecimento a Prof. Dr. Antônio Sergio Lima Mendonça e a todos

os demais Mestres que foram presentes na minha formação. Profundo agradecimento

àquela que me acompanhou, tanto no Mestrado em Ciência da Arte, quanto neste

Doutorado: Profª Drª Piedade Carvalho. Aos ilustríssimos Doutores Latuf Isaias,

Eleonora Ziller, Maria Elizete, membros desta banca de defesa e que em muito

contribuíram, com suas pontuações, para com o todo o texto que aqui expressa

desenvolvimento da pesquisa em questão.

6

RESUMO

A crônica de Nelson Rodrigues é, com certeza, uma presença literária que

permite, à psicanálise extensiva, um instrumento fundamental de ilustração da arte e de

sua função propriamente dita. Traz sua verdadeira lógica subversiva enquanto relação

ao seu legítimo progresso. Sabe perfeitamente enquanto obra diferenciar moralidade,

mentalidade e fetichismo. Tinha a percepção de que a genealogia da arte era mais

importante que lhe estudar os efeitos sociais da mesma. Foi uma matriz fértil e invasora

da cultura de massa, e soube como poucos enfatizar uma antropologia do kitsch do

mercado modelo, o folhetim a novela a crônica o seriado e o romance

policial.Compreendeu como poucos a nova e impositiva estética das mídias transitando

nas estéticas intelectuais vigentes. Sempre antecipou no seu texto a diferença e a lei

divina “não matarás”, sublimando no seu texto o constante e atual mal estar da

civilização. Desvelou um Brasil inédito, pela sua novidade sublimatória. Revelou ao

país o sans lê savoir. Introduziu nossa única lógica narcísica quando inventou nosso

primário futebol, o de Garrincha e Pelé, deixávamos de ser feridos e passamos a fazer

piadas. Soube como poucos diferenciar burrice da loucura. Talvez por isso tão

paradoxal e tão significante. Uma humilhação de coragem alheia.

7

ABSTRACT

Nelson Rodrigues is certainty a letter that supplies the extensive psychoanalysis

a fundamental instrument of illustration of the art and of his function. He brings his true

subversive logic while relationship to his legitimate progress. He perfectly knows while

work differentiates morality, mentality and fetishism. He had the perception that the

genealogy of the art was more important than to study him the social effects of the

same. It was a fertile head office of the mass culture, and he knew as few the kitsch of

the market model, the pamphlet the soap opera the chronicle the serial and the romance

policial. He understood as few the new and aesthetic impositive of the mídias in the

effective intellectual aesthetics. It always advanced in his text the difference and the

divine law won't "kill", exalting badly in his text the constant and current to be of the

civilization. He revealed an unpublished Brazil, for his innovation sublimatória. He

revealed to the country the sans lê savoir. He introduced our only logic narcísica when

it invented our primary soccer, the one of Garrincha and Pelé, we left of being hurt and

we started to do jokes. He knew as few to differentiate stupidity of the madness. Maybe

for that so paradoxical and so significant. A humiliation of strange courage.

8

SUMÁRIO

pgs AGRADECIMENTOS ....................................................................... 04 DEDICATÓRIA ................................................................................. 05 RESUMOS .......................................................................................... 06

INTRODUÇÃO ........................................................... 09 DESENVOLVIMENTO.............................................. 10

CAPÍTULOS

1. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES ........................ 10 2. O LEGADO DRAMÁTICO .................................. 35

3. A FARSA SINCERA ............................................ 56

4. OS REMADORES DE BEN-HUR ....................... 88

4.1. O JORNALISMO EXISTENTE ................. 88 4.2. BEN-HUR ................................................... 97 4.3. O ESCOAMENTO DA MULTIDÃO.......... 102

CONCLUSÃO ............................................................. 156 REFERÊNCIAS .......................................................... 159

9

INTRODUÇÃO A pesquisa que aqui se propôs, se destina a um objeto de estudo sumamente

singular: Nelson Rodrigues, dramaturgo e escritor brasileiro. O trabalho em tela,

portanto, se configurará em um ensaio, apresentando, todavia de maneira delimitada ao

mencionado espaço, a vasta obra do autor em questão, a fim de melhor elucidá-lo. O

curso de toda pesquisa se seguiu em duas fontes de pesquisa: a obra, em si, do referido

autor, nos atendo aquelas mais expressivas; a concepções da psicanálise, como foco

iluminador de todo percurso de investigação. Apresentaremos algumas considerações

que aqui se apresentam como uma PRIMEIRA ABORDAGEM discursiva, nos capítulos que

se seguirão a esta introdução, para que possamos realizar o verdadeiro

DESENVOLVIMENTO desta tese. E isso faremos partindo das hipóteses por nossa

iniciativa de antemão formuladas. Em seguida, daremos início à exposição do LEGADO

DRAMÁTICO desse nosso autor, em toda a sua extensão, focando o drama, a tragédia, o

dramático, como dissemos, contudo também cômico, sem descartar a comédia de

Aristófanes, enquanto ponto de convergência. Foi-nos necessário, no curso de toda

pesquisa, nos ater, aos REMADORES DE BEM-HUR, ao BEM-HUR em si, ao JORNALISMO

EXISTENTE na alma de Nelson Rodrigues, às suas idéias e a tudo, enfim, que nos foi

possível investigar. Realizaremos, por fim, um ESCOAMENTO DA MULTIDÃO, ou seja,

uma caminhada delicada e severa sobre e em torno de muitas e muitas crônicas, da

autoria desse nosso escritor, para podemos dar o recado condizente a uma Tese de

Doutorado. E, na conclusão que expressaremos, estará definido tudo aquilo que

pudemos alçar e compreender, dentro da imaginação do autor em tela, a fim de gerar

uma contribuição a mais para com a comunidade acadêmica que nos assiste e lê.

10

DESENVOLVIMENTO

1. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

O tema a ser abordado, nesta tese, é o tragicômico na crônica rodrigueana — a

farsa sincera. A difícil distinção entre a farsa e a comédia, tendo esta última evoluída da

Komidia Dionisíaca para sua aparição oficial em 486 a.C., a juízo de Massaud Moisés

no seu Dicionário de termos literários, está no estilo e no grau da intensidade de suas

narrativas. Segundo o referido autor, a farsa teria as seguintes características:

“... a farsa consistiria no exagero do cômico, graças ao emprego de processos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a caricatura, o humor primário, as situações ridículas”1.

Portanto, a farsa, enquanto grotesco, quando afetada pela sinceridade, é o objeto

de estudo, neste trabalho, para que se possa manusear o que existe de mais primoroso no

mundo rodrigueano, no seu exaustivo trabalho de reconstrução, de sua letra forjada, em

sua velha máquina de escrever — uma simples Remington. Trabalho esse que, a partir

das velhas palavras e de um estudo combinatório, faz aparecer um universo metafórico

em cenas, aparentemente sem sentido, mas que guardam ilustrações pela ordem das

paridades semânticas e numa lógica singular. A técnica rodrigueana assume a

construção de uma linguagem estética, contudo de manuseio do cotidiano, anulando-lhe

o dito e recuperando o não dito da cena. Desvela o ridículo, ou seja, o oculto, o que se

esconde, evidenciando um sujeito, ou seja, aquele que se manifesta através da cena mas

também fora dela.

Trata-se de uma farsa, como dissemos, porque vai roubar, do cotidiano, a

injunção do limite da cena operacionalizada e a ação não percebida do falante —

1 MASSAUD, Moisés.Dicionário de termos literários, editora Cultrix, 5ª edição, 1988

11

artífice e criador de um estilo que vai mesclar o desmantelamento do senso comum

pelas causas paradoxais. O dramaturgo em tela chama o leitor a um sentido não

percebido e a um detalhe que foge ao fato.

Em função da natureza especializada na imprensa de sua sociedade e dos fatos

mundiais de época, tem-se a idéia clara do que o que Nelson Rodrigues está dizendo, a

respeito das regiões e das pessoas às quais ele se refere; têm-se noção daquilo que ele

deseja apontar, enquanto aspecto social e, ao mesmo tempo, psicológico. O nome de

cada personalidade ou personagem, os quais muitas vezes permeiam em lógica e ações,

tem relação direta com tipo de ação que esse mesmo personagem se apresenta no texto

— a narrativa rodrigueana.

A produção artística vem mostrar, no entanto, o desejo de superar a imobilidade

do corpo, seu perecimento e sua finitude, no processo criativo. O artista vai, portanto,

dar corpo ao sujeito que o habita.

Coutinho (1986) reconhecia Nelson Rodrigues como sendo um escritor ‘divisor

de águas’, no que diz respeito ao teatro brasileiro, ou seja, à dramaturgia. Segundo ele:

“Não escapa de todo a esta filiação nem mesmo o teatro de Nelson Rodrigues, certamente a mais poderosa e específica vocação dramatúrgica do Rio de Janeirro [...] Romancista de escândalo, jornalista que não desprezava o sensacionalismo, tradutor de best-sellers americanos mal disfarçadamente pornográficos, teatrólogo em perpétua luta contra a censura, é uma contradição em termos, um autor ao mesmo tempo comercial e maldito, popularíssimo e renegado – em parte Pitigrilli, em parte Jean Genet2”

Podemos dizer que Nelson Rodrigues se estabelece, como autor da

modernidade, realizando com maestria o jogo de tradição e modernidade, através das

crônicas, pois estas possuem um real caráter de expressão estética, em se tratando do

trágico bem como por se referirem a uma experiência fundada na vivência e por

2 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. VI: Relações e perspectivas / conclusão, 1986. p.37

12

estabelecerem um jogo onde os elementos fundadores do fenômeno moderno se

conjugam entre si. O exercício desse dramaturgo e escritor consiste em escrever sobre o

“tempo de agora”, ressaltando o evento do instante na palavra, fazendo do passado uma

tentativa de retomada dos signos ali lançados, ou seja, escrevendo a história do

presente, para um mesmo o presente. Uma das marcas fundamentais da sua narrativa é

que ela é plural.

Cabe ressaltar que, na crônica, devido a sua natureza híbrida, as palavras

ganham um novo significado, já que essas provêm da modernidade de um

estilhaçamento da função meramente representativa da linguagem e, liberadas do

mundo, libertas de uma narrativa pré-concebida, elas voltam-se para si mesmas. Essa

linguagem, na crônica desse dramaturgo brasileiro, conquista um espaço de autonomia,

no sentido de uma interatividade radical, disseminada como modalidade cautelosa e

silenciosa no próprio cintilar de sua existência, enquanto tal.

Muitos não compreendem os textos de Nelson Rodrigues. A fim de elucidar tal

questão, ensaiamos aqui traçar um paralelo entre o autor em tela e Lacan. Criando um

estilo próprio, sempre com muita maestria, o dramaturgo em questão desconstrói

personagens. Segundo Mendonça3 (2000), Lacan também criou um estilo próprio, onde

seus temas principais, sua renovação conceitual estavam a requerer um tempo, um

discurso e um vocabulário adequados. Para o autor, Lacan foi um malabarista barroco

do estilo. Sendo assim, um desconstrutor. Mendonça4 (2000) cita ainda o pensamento de

Lacan sobre seus próprios escritos:

“O que caracteriza meus Escritos é que não os escrevi para que fossem “compreendidos”, eu os escrevi para que fossem (efetivamente) lidos; é muito freqüente que, após ... anos, um de meus Escritos torne-se “transparente”. Vocês então verão

3 MENDONÇA. A.S. Lacan, o Moderno e a Desconstrução. A Transmissão, ano 8, no,.9, CEL, 2000. 4 Id. Ibidem

13

que, em pouquíssimo tempo, encontrarão Lacan em todos os cantos...5”

Como nosso foco de interesse é a crônica rodrigueana, vejamos o que possamos

entender sobre esse foco. Para Távola (2002), a crônica é encarada como texto

expressivo da modernidade devido às suas características próprias. Segundo ele:

“A crônica é a expressão das contradições da vida dos sentimentos, idéias, verdades e pensamentos. Caracteriza-se moderna, pois é ao mesmo tempo a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente. Por ser compacta, rápida, direta, aguda, penetrante, instantânea leva a uma análise de cunho subjetivo, ao lado da objetividade da informação do restante do jornal. Um instante de reflexão, diante da opinião peremptória do editorial. É tímida e perseverante. Não se enfeita com os altos sistemas de pensamento, mas pode conter a filosofia do cotidiano e da vida que passa. Não se empavona com a erudição dos tratados, mas pode trazer agudeza de percepção dos bons ensaios. [...] Deve ser rápida como a percepção e demorada como a recordação. Verdadeira como um poente e esperançosa como a aurora. Irreverente como um carioca. Suave como pele de mulher amada e irritada como uma criança com fome. Terna como a amamentação e insegura como toda primeira vez. Religiosa como a portadora de mistério e agnóstica como um livre pensador. A crônica nos obriga à síntese, à capacidade de condensar emoções em parágrafos – barragem. Faz-nos prosseguir, mesmo quando nos sentimos repetitivos. É, pois, a expressão jornalístico-literária da necessidade de não desistir de ser e sentir. A crônica é o samba da literatura.”6

De acordo com Lima7 (1986), Nelson Rodrigues não é um narrador, pois não se

limita a uma coordenada de espaço-temporal. Ele reconstrói o passado a partir da

vivência com o presente, contando também com a memória para reconstruir essa

experiência, a fim de garantir a permanência da palavra.

5 (conforme Conferência de Imprensa realizada em 29-11-74, no Centro Cultural Francês em Roma, Lettres de L’Ecole Freudienne de Paris, pp.17/18) 6 TÁVOLA, Arthur. Texto retirado do Jornal “O DIA”, 17/02/2002 7 LIMA, L. da C. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

14

Realizando uma estética do cronista Nelson Rodrigues, vimos que a obsessão

marca o seu estilo. Tal obsessão é percebida, não somente como uma repetição ou apego

exagerado a um tema, mas sim como um dado do estilo de composição. Ele mesmo se

definia como uma “flor de obsessão”, em virtude de reconhecer a necessidade da

repetição — seja de tipos, de situações ou, simplesmente, de metáforas.

O autor sempre afirmou sua emancipação e independência na originalidade de

sua obra, fosse qual fosse o meio de expressão literário por ele desenvolvido (crônica,

folhetim, crônica esportiva, autor de novela, romance, teatro, jornalismo). E, para

aqueles que transferidos e identificados ou mesmo afetados por sua obra, nos deu conta

de que sua produção literária se constituiria a tempo suficientemente claro. Ao ler e

reler os textos desse genial dramaturgo, ao ver a dinâmica de suas mutações, poderemos

questionar: mudou Nelson Rodrigues? Mudou a sua obra? Mudaram seus leitores? Não,

trata-se apenas de, por meio da dinâmica da criação, da arte que lhe confere, colocar a

própria obra ao alcance de todos; colocar a própria criação ao alcance do movimento da

temporalidade. Trata-se de um desejo do autor de ver sua obra perfeitamente absorvida

pelo circuito da cultura. Não há, no século em curso, a menor oportunidade de se falar

sobre inteligência brasileira e, em especial, sobre teatro brasileiro, sem referir Nelson

Rodrigues, sem anunciar a sua genialidade e originalidade.

Há no autor em tela uma transgressão que precipita uma lógica teatral, lógica

essa atrelada às vanguardas européias, focadas no expressionismo alemão,

paradoxalmente, e incorporando uma lógica da cultura de massa enquanto técnicas

cinematográficas onde o cronos, o cenário, a construção do tempo e a lógica psicológica

15

dos personagens são redimensionadas. A poiésis de Nelson Rodrigues dá gênese a uma

nova estética, aquilo que Koyré8 (1973) chama de revolução estética.

O expressionismo é um movimento artístico que se caracteriza pela expressão de

intensas emoções. As obras não têm preocupação com o padrão de beleza tradicional e

exibem enfoques pessimistas acerca da vida, marcado por angústias, dores, inadequação

do artista diante da realidade e, muitas vezes, necessidade de denunciar problemas

sociais. Dessa forma, fica clara a identificação da obra de Nelson Rodrigues com o

expressionismo. O convívio próximo com o ‘feio’, o ‘deformado’, aliado à presença

constante de uma espécie de caos e de conflito, nos remete a um outro ponto

característico da obra rodrigueana: como dissemos, traços do expressionismo.

Já vimos estudiosos sem compromisso acadêmico, sem compromisso científico

afirmarem que o dramaturgo brasileiro que aqui tomamos como objeto de estudo não

conhecia o teatro expressionista. Contudo, temos total consciência, a obra desse escritor

assinala características do referido movimento. Podemos dizer todavia que Nelson

Rodrigues é um escritor expressionista, na concepção da palavra, quanto à sua visão do

mundo. Essa visão que se fundamenta na concepção existencial da vida, na recusa

violenta da realidade dita aparente, dogmática. A maneira expressiva através da qual o

escritor brasileiro expõe a realidade é, por si só, uma atitude expressionista. Mesmo

porque, entendemos, um movimento da arte, seja o impressionismo ou outro qualquer,

não se fecha em um sistema de escolha unilateral, sem demarcar as propriedades de um

tempo e espaços históricos.

8 KOYRÉ, Fernando. Estudos de história do pensamento científico, Editora Forense, 1973.

16

Para Fraga9 (1998, p.14), o expressionismo caracteriza-se por:

“uma particular maneira de ver: a expressão do homem dilacerado ante o caos universal que o rodeia, manifestando-se em visões subjetivas, frenéticas e delirantes. É a tomada de consciência do conflito entre as pseudo-realidades do mundo e a realidade interna de cada um, através da dor e do sofrimento (mesmo quando os dissimula na ironia e no derrisório)”.

Na concepção de Fraga10 (1998), o expressionismo pode se manifestar em

quaisquer épocas ou períodos históricos. Por mais que, não devemos nos esquecer, o

expressionismo seja uma manifestação que envolve o contexto finissecular da cultura

alemã, uma iniciativa estilística que expressa a atmosfera político-cultural que engloba

dois momentos de extrema importância, o pré e o pós Primeira Guerra Mundial, que foi

no final da Primeira Guerra, que o expressionismo atingiu seu ponto máximo, não

devemos negar que o referido movimento pôde redimensionar-se em outros espaços e

momentos da criação artística. Cabe acrescentar aqui a dificuldade que encontramos em

tratar o tema — expressionismo — fora do contexto histórico-cultural de seu país de

origem. Afinal, as marcas da guerra, a destruição, o vandalismo, o sofrimento, a

exacerbação de sentimentos nacionalistas, dentre outros fatores, contribuiu de forma

avassaladora para que o movimento se tornasse cada vez mais particular e mais

intrínseco ao cenário cultural alemão. Porém, é inegável que a estética expressionista

tenha abarcado outras culturas, especialmente no período que engloba as décadas de 20

e 30. Período em que muitos artistas e intelectuais estrangeiros procuravam, na própria

Alemanha, estudar e participar daquele clima cultural que teria tomado conta da vida os

alemã.

A literatura expressionista desenvolve-se com uma linguagem marcada pela

precisão, pela ironia e pela forte tendência à abstração e, no teatro, o movimento ganha

9 FRAGA, EUDINYR. Nelson Rodrigues Expressionista. Ateliê Editorial/FAPESP, São Paulo, 1998. 10 Id. Ibidem

17

força por inovar a concepção tradicional de dramaturgia. No fulcro do drama

expressionista há uma centralização nas personagens protagonistas – evidenciadas, não

pela marca do ‘gênio’ ou do ‘herói’, como nos dramas do Pré-Romantismo e do

Romantismo, mas sim através da luta travada pela consciência individual de cada

personagem, preocupadas em se desvencilhar das repressões/restrições impostas pela

civilização e contrárias às pulsões e aos desejos desse indivíduo.

Segundo Fraga11 (1998), Nelson Rodrigues manejava com habilidade os

diversos níveis de comunicação. Ao mesmo tempo que informava, desinformava,

fazendo desaparecer a contradição que existia entre o quadro naturalista em que

desenvolvia a maioria dos seus textos e a atmosfera de alucinação, sem a lógica e a

plausibilidade realista.

Fraga12 (1998, p.65) assinala que:

"..... em inúmeros textos expressionistas, seus autores, preocupados em mostrar 'o espaço interno de uma consciência', mostram a realidade através do olhar do protagonista, confundindo, muitas vezes, o público. A originalidade do nosso dramaturgo consiste em jamais abandonar sua posição de 'organizador do caos'. Percebe-se sua presença manipulando os espaços".

Ainda de acordo com o autor, Nelson Rodrigues nunca teve intenção de escrever

um texto expressionista, mas acabou por fazê-lo de forma despretensiosa.

Para Rosenfeld (apud Fraga13, 1998, p.65):

“... a subjetivação expressionista não deve ser entendida como visando a apresentar a psicologia diferenciada de indivíduos, à maneira do drama realista. A intenção, ao contrário, é projetar a realidade essencial de uma consciência reduzida às estruturas básicas do ser humano em situação extrema. Não se trata, pois, de seres matizados, situados em contexto histórico mas arquétipos – portadores quase

11 FRAGA, EUDINYR. Nelson Rodrigues Expressionista. Ateliê Editorial/FAPESP, São Paulo, 1998. 12 Id. Ibidem 13 Id. Ibidem

18

abstratos de visões apocalípticas ou utópicas, num tempo julgado ponto terminal...

Objetivamos aqui resgatar, na convivência com os personagens de Nelson

Rodrigues, a concepção de farsa sincera nos meios de expressão da literatura, por ele

utilizados — romances, crônicas, dramaturgias. Objetivamos também reportar a uma

arte àquilo que ela tem enquanto arte em si e recuperar, sobretudo nas crônicas do autor,

esse tecido competente na sua visão do fato humano, desse humano habitante do Brasil,

especificamente no Rio de Janeiro, no burlesco que lhe diz respeito, no urbano e no

suburbano, na universalidade disso tudo que se apresenta em sua tragicomédia.

O Rio de Janeiro é uma cidade fragmentada, metonímia de um subúrbio do

Brasil, e tendo, em sua própria estrutura interna, a vocação para uma cidade de

contrastes entre a tradição e a modernidade. Se é que isso se possa entender como

ambigüidade, Facina14 (2004, p.178) faz uma análise dessa, quando afirma que:

“O Rio de Janeiro é para o Brasil o que a Zona Norte é para o Rio, local onde a tragédia ainda é possível, pois há o confronto dos valores modernos, ligados à liberdade individual, com valores tradicionais, centrados na predominância da família sobre os indivíduos e na manutenção das hierarquias sócias. [...]”

A escolha do tema justifica-se pelo fato desse escritor pernambucano, de espírito

carioca, ter reformulado a estética do teatro brasileiro, instaurando, de certa maneira,

podemos dizer, um expressionismo tropical. Na continuidade de seu trabalho, Nelson

Rodrigues abandonou e marcou a diferença entre o consistente do cotidiano e a

possibilidade do falante em simbolizar. Onde se passa essa versão fica justificado o

princípio da alienação.

14 FACINA, A. Santos e Canalhas. Uma análise da obra de Nelson Rodrigues. Civilização Brasileira, 2004.

19

Cabe aqui fazer uma observação, discorrendo um pouco sobre o ‘imaginário’,

na estrutura Lacaniana. Segundo Junqueira15 (2003), o termo derivado do latim imago

(imagem), imaginário designa aquilo que provém da imaginação, com a capacidade de

representar coisas através de pensamentos, independentemente da realidade. O imago é

a matéria-prima e o ‘imaginário’ é o acervo dessa mesma matéria-prima. São a

ferramenta para o trabalho de psicanalistas, poetas, artistas, sendo uma coisa cara a

todos os ofícios dependentes da criação, da criatividade. Para Lacan, ‘imaginário’

tornou-se portanto um conceito. De certo modo, pode-se supor que todos os fazeres

humanos dependem de uma instância imaginária e portanto simbólica, na trajetória de

transformação da idéia em ato, na criação de um sentido. Lacan foi de suma

importância, no campo psicanalítico, ao fazer uma articulação entre real, simbólico e

imaginário.

Junqueira16 (2003) afirma que, segundo Lacan, imaginário é definido como

sendo o lugar do eu por excelência, com seus efeitos de ilusão e engodo. O eu engana-

se por crer ser o que não é, o que conduz à constatação de que o eu é uma construção

imaginária. Isto caracteriza esse eu em sua precariedade, num contínuo processo de

identificações ou identificações parciais.

Preliminarmente, Lacan elabora o registro do Imaginário se estruturando em

colocações wallonianas tais como a seguinte:

" Em psicologia é corrente supor-se que o sujeito deve tomar consciência do seu ? eu? antes de poder imaginar o dos outros, que um é conhecido por intuição ou experiência direta e o outro por simples analogia, que constituem dois objetos inicialmente distintos e que pode haver quando muito projeção do primeiro no segundo. Toda uma longa tradição liga a consciência a uma realidade profundamente individual, onde ela representaria um poder de introspecção. Desta introspecção dependeria o mundo íntimo e fechado da

15 JUNQUEIRA, Maria Helena. Mais Além da Linguagem. Semiosfera ano 3, nº 4-5, 2003. 16 Id. Ibidem

20

sensibilidade subjetiva. A criança principia pelo autismo e passa pelo egocentrismo antes de poder imaginar os outros como parceiros capazes de encetar relações de reciprocidade17."

Lacan (apud Miller18, 1999) classifica como imaginário tudo aquilo que não é

suscetível de inscrição simbólica. O gozo não é dialético, é intra-imaginário. O real é

excluído e o simbólico domina o imaginário. Para Miller19 (1999), "Lacan construiu seu

conceito de simbólico a partir da lingüística, mas sobretudo como forma, como

articulação diferencial, como sintaxe, que precisa ser completada por um léxico que,

durante muito tempo, foi tomado emprestado do imaginário". Portanto, segundo

Miller20 (1999), para Lacan, nesses primeiros passos, o simbólico estaria ligado, em

princípio, à noção de ordem, a ordem simbólica, e que, no neurótico, esta ordem estaria

desconcertada.

A forma mais constante de externalização do imaginário é a de constituir-se em

um ‘ser’ — o que é bastante comum tanto do ponto de vista do imaginário grupal

quanto individual. O imaginário caracteriza-se fundamentalmente por tomar a imagem

como uma representação dura do objeto. É como se a imagem ganhasse um corpo e se

reconstituísse para se contrapor ao próprio objeto. É como se a sombra quisesse se fazer

passar pelo sujeito, como se a imagem da instituição quisesse se fazer passar pela

instituição. Lacan assinala que o imaginário é a fonte de alienação do sujeito. É onde ele

se paralisa através da visualização da imagem especular. Ou seja, o imaginário atua para

que fiquemos presos na imagem do espelho e não na escuta do sujeito ou do objeto. O

que há por trás do imaginário é o desejo do Outro. O ‘desejo do Outro’ estrutura a

17 WALLON, Henri. Psicologia e Educação na Infância.Lisboa, Editorial Estampa,1975, p.150. 18 MILLER, Henry, Obscenidade e reflexão, Vega-Passagens, 1999 19 Id. Ibidem 20 Id. Ibidem

21

matriz simbólica do imaginário que forma todo o conjunto de imagens do sujeito. É

como se o simbólico fosse um projetor que jogasse as imagens em um determinado

lugar. Os filmes, as imagens podem mudar. Mas o projetor — a menos que seja mudado

de posição — remeterá as imagens sempre para o mesmo local. Não importa que esse

local não seja o mais visível. O que importa é a posição do projetor.

O conceito de Desejo do Outro introduz uma outra ordem de posicionamento,

uma outra postura no sujeito que é a busca pelo acabamento do desejo. Ou seja, saber

porque o seu projetor remete a um lugar determinado e apresenta um certo número de

filmes. Sem abordar, a partir da óptica do psicanalista, o processo do sujeito parecerá

sempre fragmentário e sem sentido. Um processo contínuo de quebra de imagens. Há

uma lógica que o sujeito precisa atingir para saber porque o seu projetor foi colocado de

uma determinada forma. Somente estruturando-a, através da análise, o sujeito poderá

perceber que não é ao acaso que o seu projetor foi colocado naquele lugar e que

apresenta um determinado rol de filmes. Só atingindo o fantasma primário o sujeito

consegue saber a respeito da montagem do imaginário e do simbólico, em função do

registro do real. Mas este é um aspecto que só pode ser trabalhado na análise individual

do sujeito. Por mais que se delineiem os fantasmas secundários na instituição, eles não

conseguem revelar porque certos sujeitos foram atingidos por eles e outros não.

Somente o fantasma primário tem a resposta que permite o esclarecimento deste

processo. Mas isto só é possível se descobrir na análise pessoal do sujeito.

Nelson Rodrigues, em sua obra, expressava como ninguém a questão do desejo e

segundo Lacan (1979, p.172)21

"Há uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do acabamento do desejo - o desejo é essencialmente uma negatividade, introduzida num momento

21 LACAN, Jacques. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro,Zahar,1979, p.172.

22

que não é especialmente original, mais que é crucial, de virada. O desejo é apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa. A relatividade do desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização".

Entretanto, as obras de Nelson Rodrigues eram tidas como obscenas. Mas afinal,

o que é obsceno? Tudo o que foi considerado obsceno numa dada época foi, por

definição, escondido, ficando muitas vezes como um segredo impenetrável para o futuro

e para a História. Verifica-se que os objetos tidos como obscenos variam segundo as

épocas e os espaços (físicos e sociais) e que o próprio conceito apresenta vários

sentidos. Pode-se resumir as várias acepções da palavra em três variantes (que nos dão a

entender, imediatamente, a ambigüidade do conceito): o que deve estar fora de cena; o

impúdico, que ofende o pudor; o que sendo impúdico ou chocante atrai e excita.

Miller dá especial relevo à impossibilidade de definição da obscenidade:

“Basta que se diga que todos os que tentaram, de maneira escrupulosa descobrir o sentido da palavra, se viram obrigados a confessar que de maneira alguma tinham atingido o seu objetivo. No livro por ambos escrito To The Pure Ernst e Seagle são peremptórios em afirmar que "não há duas pessoas que estejam de acordo sobre a definição dos seis adjetivos mortais: obsceno, lúbrico, lascivo, sujo, indecente, vergonhoso." Até a própria Sociedade das Nações fracassou ao tentar definir o que constituía a obscenidade - e certamente que não escasseava a razão a D. H. Lawrence quando afirmava, pura e simplesmente, que "ninguém sabe o que a palavra obscena quer significar". Quanto a Theodore Schroeder, que consagrou toda a vida à luta pela liberdade de expressão, emitiu a opinião de que "a obscenidade não existe em nenhum livro ou quadro, mais não sendo que uma feição do espírito que lê ou que olha22."

Segundo Aristóteles:

“O terror e a piedade podem surgir por efeito do espetáculo cênico, mas também podem derivar da íntima conexão dos atos, e este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta. Porque o mito deve ser composto de tal maneira que,

22 MILLER, Henry, Obscenidade e reflexão, Vega-Passagens, 1999, p. 25.

23

quem ouvir as coisas que vão acontecendo, ainda que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiede (…).

Quanto aos que procuram sugerir pelo espetáculo, não o tremendo, mas o monstruoso, esses nada produzem de trágico; porque da tragédia não há que extrair toda a espécie de prazeres, mas tão-só o que lhe é próprio. Ora, como o poeta deve procurar apenas o prazer inerente à piedade e ao terror, provocados pela imitação, bem se vê que é na mesma composição dos fatos que se ingerem tais emoções”23.

A representação do ‘monstruoso’, o ‘abuso do espetacular’ provocariam "o

horror e não o terror trágico"24. Vejamos que, no desenvolvimento da tragédia, Édipo,

em cena, não fura os olhos; vejamos que é o mensageiro que anuncia a morte de

Jocasta; vejamos que todas as ações demasiado violentas ou, de alguma outra forma,

imorais passam-se fora de cena.

Sousa (1998) nota que "os mitos mais trágicos são precisamente os mais

imorais". Isso deve-se ao preceito aristotélico que recomenda que as ações catastróficas

se passem entre amigos ou familiares, pois "se as coisas se passam entre inimigos, não

há que compadecer-nos, nem pelas ações nem pelas intenções deles, a não ser pelo

aspecto lutuoso dos acontecimentos"25.

Para analisar convenientemente os efeitos da tragédia, Burke prefere considerar

antes os efeitos da simpatia diante da desgraça alheia. Dá como exemplos o fato de

lermos, com igual prazer, histórias reais e romances em que os acontecimentos são

fictícios e de vibrarmos mais com a desgraça de alguém próspero do que com a

prosperidade estável de outros, explicando que o terror é acompanhado de prazer

quando não afeta, de forma próxima, e que a compaixão leva ao prazer por nascer do

23 Poética, Imprensa Nacional, 1998, XIV, 74-75

24 Cf. notas de Eudoro de Sousa ao Cap.XIV (Poética, Imprensa Nacional, pp.177 e 178)

25 Poética, Imprensa Nacional, 1998, XIV, 77

24

amor e do afeto social. No que tange ainda aos efeitos da tragédia, Burke diz que nos

agrada o fato de se tratar de uma representação, mas que quanto mais diminui a idéia de

ficção mais perfeito é o seu poder, nunca se aproximando este, no entanto, daquilo que

representa.

Passemos então agora à análise da assertiva de Nelson Rodrigues: "Todo o casto

é um obsceno". A primeira explicação para a referida frase é: porque a obscenidade está

nos olhos de quem a vê, é uma concepção muito subjetiva. Sobre isto, Miller cita não só

Theodore Schoeder — "a obscenidade não existe senão no espírito que a detesta e a

lança sobre os outros". Também a Epístola aos Romanos (XIV, 14) — "Eu sei, e

convencido estou por Nosso Senhor Jesus Cristo, que não há nada de imundo em si

mesmo e que unicamente o que pensa que alguma coisa é imunda só a tem imunda para

si."26. vejamos também que Ernest Jones tem uma excelente justificação para a censura

que proclamam estes falsos castos:

“São pessoas secretamente atraídas pelas diversas tentações que as vinculam ao desvio das tentações que impregnam outras pessoas; efetivamente, não mais fazem do que defender-se elas próprias sob pretexto de defender os outros, dado que bem no fundo, têm medo da sua própria fraqueza27.”

E vejamos também que a opressão e a privação geram, muitas vezes, a

perversão. O fruto proibido é consumido com culpa e junta ao prazer próprio da ação o

prazer da transgressão. Foi assim que, ironicamente, a clandestinidade de muitas obras

literárias fez com que essas se divulgassem muito mais. "A censura condena-se a si

própria"28 pois o que é deixado à imaginação tem mais poder do que o que é visto com

26 MILLER, Henry, Obscenidade e reflexão, Vega-Passagens, 1999, p.29, 30 27 Idem, p.31 28 Idem, p.33

25

naturalidade e, dessa forma, integrado sem diferenciação. Sobre tais contradições

morais avança Miller com uma interessante perspectiva:

“Creio, em certa medida, que não é moralidade aquilo a que chamamos moralidade - antes sendo uma forma de loucura funcionalmente adaptada às circunstâncias presentes29. “

A linguagem ‘obscena’ tem o seu lugar e não deve ser abusada para que não

perca a sua enorme carga expressiva e catártica. Do obsceno surte um determinado

efeito que não pode ser suscitado de outras maneiras e tem uma energia própria. Mas,

como vimos, não é para ‘preservar’ o obsceno que a censura geralmente atua. Podemos

criticar o puritanismo dos censores e ver, na ‘obscenidade’, uma violência positiva, uma

manifestação da liberdade sexual, da liberdade de expressão e dizer que, realmente,

obscenas são a injustiça, a violência, a guerra — todas essas que não são muitas vezes

consideradas como tal:

“Nada seria considerado como obsceno (pelo menos essa é a minha intuição) se os homens fossem até ao fundo dos seus mais íntimos desejos. O que o homem mais teme é ser confrontado com a manifestação, oral ou efetiva, do que, rechaçado (como hoje se diz), recusou viver, de tudo quanto estrangulou ou sufocou, manifestação de que o inconsciente não abdica. As qualidades sórdidas imputadas ao inimigo são sempre as que reconhecemos como nossas - e é por isso que nos erguemos para as massacrar, uma vez que só por essa projecção nos damos conta da sua enormidade e do seu horror. O homem tenta como num sonho matar o inimigo que no seu interior se oculta30.”

A contribuição do tema visa atingir as impregnações e a detratividade, que

estigmatizaram a obra em razão de uma reabilitação ideológica. Vejamos que, nesta

tese, estamos realizando, grande foco, uma análise da crônica de Nelson Rodrigues, Os

Remadores de Ben-Hur, sob o prisma psicanalítico. Preliminarmente, importante se faz

tecer breves comentários acerca da obra desse dramaturgo e escritor brasileiro. Através

29 Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, p.49 30 Idem, p.42-43

26

da leitura de sua obra, verifica-se que existe uma unidade constituída pelo conjunto de

diferentes formas literárias — já o dissemos. Há um universo rodrigueano que extrapola

essa divisão por gênero, geralmente atribuída a sua produção. Existem elementos de

ligação, encontrados tanto no teatro e nas crônicas quanto nos folhetins que

transformam essas diferentes formas literárias e fazem das mesmas uma totalidade. A

totalidade do artista, enquanto escritor.

Na atualidade, vários eventos são realizados rememorando a obra de Nelson

Rodrigues. Até 1999 foram produzidos 19 filmes do autor. O Anjo Pornográfico, de

autoria de Rui Castro, ficou consagrado como obra posto que o teatro do dramaturgo

em tela foi antecedido de uma sistematização teórica, organizada, como projeto

intelectual, por Sábato Magaldi. Em sua emancipação sistêmica, enquanto obra do

Teatro da Obsessão, de Sábato Magaldi (2004), que logificou sua produção em:

a) Peças psicológicas:

� A mulher sem pecado; � Vestido de Noiva; � Valsa nº 6; � Viúva, porém honesta; � Anti-Nelson Rodrigues.

b) Peças Míticas:

� Álbum de família; � Anjo Negro; � Senhora dos afogados; � Dorotéia.

c) Tragédias Cariocas:

� A falecida; � Perdoa-me por me traíres; � Os sete gatinhos; Boca de Ouro; � Beijo no asfalto; Bonitinha mas ordinária; � Toda nudez será castigada; � A Serpente.

27

Ainda que tenha sido considerado, pela imprensa, um autor maldito, Nelson

Rodrigues, malgrado a versão da inteligência então considerada uma ‘estética

revolucionária’, antagônica a sua lógica de compreensão da função da arte, esse autor

brasileiro surge no seu texto como uma versão paradoxal e se populariza em suas

crônicas como um grande leitor da mentalidade brasileira e do imaginário nacional. Na

verdade, ele dá à arte o seu original exílio de corpo ou letra estranha aos procedimentos

culturais. (Ou aparentemente estranha). A bem de verdade é que Nelson Rodrigues

assumiu o paradoxo da árdua tarefa de expor a face inconfessa do humano e usou a

linguagem mais severa, despudorada, realista e contundente para fazê-lo. Armou-se de

um espírito combativo e da linguagem ágil que marcaram o seu estilo, para tal

empreitada, além de um séqüito de personagens obsessivos, transeuntes de um destino

sombrio em ambiência melodramática, sarcástica e humoristicamente descritas.

Impregnou seus textos de uma ritmia intensa, quase frenética onde coexiste tragédia,

lirismo, dramaticidade, em linguagem coloquial, fluindo num expressionismo híbrido e

hiperbólico. E assim sobe o aporte de uma apropriação mitificada da realidade social.

Nelson Rodrigues, por consegüinte, vai impor aos seus personagens uma identidade

psicológica bem determinada, que permeia seus jogos de imaginação, num recurso

recorrente ao memorialismo como componente primário da trilogia memória-realidade-

fantasia / alucinação. Compreendido como conservador, considerado adepto das

correntes políticas situadas no pensamento de direita, fez alguns textos em defesa da

ditadura militar instalada no Brasil, em 1964, contudo jamais infenso aos problemas

sociais. Resgatou o homem comum, ao expor a sua realidade cotidiana. Mas a sua

compreensão da sociedade e sua relações, essas que nos interessa, para esta discussão, é

28

a que habita o seu discurso entra-político, como a sua contestação axiológica, que se

constituía também num reforço da Ordem.

Seus personagens se situam num espaço amorfo, além dos limites do humano;

sobretudo, em sua atemporalidade e mesmo porque, afetuosos e ao mesmo tempo

fóbicos, rotulados patologicamente, de face socialmente anárquica e devassa,

representavam um outro hemisfério dessa sociedade ‘organizada’ e ‘reconhecida’. O

recurso aos mitos e aos estados arquetípicos forja um caráter irrealista dos cotidianos,

ou seja, daquilo que acontece onde não está, onde não pode ser visto, dando vitalidade

às formas alienígenas de ser, nutridas no desejo, na sublimação, na morte, na repressão,

na culpa, na obsessão, etc...

Os críticos e ensaístas sempre insistiram em considerar a obra não teatral de

Nelson Rodrigues como uma literatura menor, rasteira, que passeia pelo mau gosto,

chegando até ao pornográfico. Na verdade, poucos quiseram enxergar que a real

obsessão rodrigueana sempre foi o amor e as maneiras pelas quais o ser humano buscou

incessantemente, para conseguir realizar esse amor, fosse ele do tipo que fosse, da

forma que fosse, do título que tivesse. De fato, uma literatura pornográfica seria aquela

que se encontra em posição oposta à literatura desse nosso escritor. Sim, porque, no

pornográfico, o gozo é sempre parcial, há sempre um ser que busca apenas sua auto-

satisfação; nessa, não há conjunção amorosa. Os textos rodrigueanos estariam mais

condizentes como uma ‘erografia’ (a escrita de Eros). Certamente, a marginalidade a

que esses textos, rotulados de pornográficos, foram condenados não se deveu apenas à

rotulação que receberam mas, primeiramente, à ameaça que representam para a ordem

social. Essa literatura erótica (humorística e satírica) vai funcionar como elemento

questionador e denunciador da crise da hipocrisia, da tirania e da miséria social (e

29

sexual) em que vivemos e daquele que sofre por desejar o vazio que desconhece mais

que o preenche constantemente.

A importância de Nelson Rodrigues não tem sido alcançada pelos críticos e

ensaístas. Ele está muito além (ou aquém?) do rótulo de ‘pornográfico’ ou ‘tarado’ que

os críticos sem compromisso científico lhe atribuem. Está muito além (ou aquém) até

das corretas análises (sem formulação teóricas abalizadas) que lhe fizeram. Pelo

exposto, a importância da obra do escritor em questão parece não ter importância.

Portanto, onde ela menos parece profunda pode-se reconhecer a profundidade de um

pensamento em movimento dramatúrgico, bem como em outros mais (crônica, etc...).

Os principais elos que formam a cadeia de produção de Nelson Rodrigues

encontram-se nos temas de amor, adultério e morte — eterno retorno em seu texto. A

alcunha Anjo pornográfico, reconstituída por Rui Castro, ao biografá-lo, remete a uma

maneira de conjugar toda a produção rodrigueana a uma das suas facetas: a eroticidade.

Isto nos parece indicar, sem muito equívoco, que ele marcou a sua obra pela mediação

erótica objetivando a interpretação e descrição da realidade social, num momento de

nossa trajetória sócio-histórico-cultural em que sexo e erotismo ainda habitavam um

espaço ambíguo. Isto posto, impõe-se a necessidade de construir uma concepção de

pornografia que permita a mediação operacional de uma leitura de Nelson Rodrigues.

Genericamente, a noção de ‘pornográfico’ está associada tanto à manifestação quanto à

sugestão de elementos obscenos, no universo das artes. O recurso etimológico de

origem grega STUVW (scena), com a prefixação de contraste XY, quer dizer: alguma

coisa que está em oposição, à frente das cenas, ou seja, aquilo cuja manifestação só é

própria fora de cena, no bastidor. Isto é explicado, na concepção etmológica de Aurélio

30

Buarque de Holanda, remetendo ao ‘que fere o pudor’. Ou seja, dar visibilidade ao que

somente deveria existir privadamente.

Parafraseando Moraes e Lapeiz31 (1984), a pornografia, em sentido ampliado,

pode ser demarcada como: a exibição do indesejável; sexo fora de lugar. Espaço

proibido, do não dizível, do censurado; aquilo que não deve ser mais é. A pornografia

grita e cala, colocando lado a lado o escândalo e o silêncio. É nesse jogo de esconde-

esconde que encontramos seu sentido mas é também por causa dele que se torna difícil

defini-la. Mister se faz reconhecer que a pornografia é socialmente determinada e o que

parece óbvio, que indicar que a partir de elementos histórico, culturais, religiosos,

étnicos, etc., fixa-se o conteúdo da pornografia. A sociedade não ignora o fenômeno

pornográfico, o fora de lugar, mas lhe atribui determinado espaço real e simbólico

dentro do tecido social. Porém, o que aqui se pretende é resgatar ou instituir, uma leitura

da pornografia fora do seu enquadramento social legitimado. Dito de outra maneira, a

pornografia constitui-se e cumpre papéis fora dos espaços a ela destinado na

organização social.

Nelson Rodrigues sempre deixou claro que tudo o que ele escreveu fazia

parte de um projeto grandioso de obra cuja peculiaridade era justamente o fantástico

poder de se auto-alimentar de sua própria matéria. E importante compreender que a sua

verve de cronista surgiu quando ele ainda era repórter policial, pois essa atividade lhe

conferiu um dado fundamental para a constituição de sua visão de mundo e isso acabou

por influenciar, de forma decisiva, sua produção. Ainda garoto, enfrentou as reportagens

policiais e aproximou-as das leituras dos romances-folhetins que lera. Isso ocorre na

medida em que as insere em um universo característico desse tipo de romance:

31 MORAES, E. & LAPEIZ, S. O que é pornografia. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

31

publicações, em pequenas doses diárias e de maneira romanceada, de uma mesma

notícia; excesso de sentimentos que perpassam essas reportagens e recriações, por meio

da linguagem, da realidade. Dessa maneira, constituiu a própria literatura, ou seja, o

próprio estilo — uma verdadeira unidade entre a literatura de imprensa, o folhetim, a

dramaturgia, o romance. De acordo com Martín-Barbero32 (1997, p.183):

“(...) entre a linguagem da notícia e a do folhetim há mais de uma corrente subterrânea que virá à tona ao se configurar aquela outra imprensa que, para ser diferenciada da ‘séria’, chama-se sensacionalista ou popular.”

Sobre sua primeira reportagem policial, Nelson Rodrigues33 (1993, p.190)

assinala que:

“Ainda me vejo, na redação, com os meus treze anos, nome na folha e ordenado de trezentos mil-réis, escrevendo a minha primeira nota. Não vou esquecer nunca: – era uma notícia de atropelamento. Eu me torturei como Flaubert fazendo uma linha de salambô. E a prosa saiu-me (...)”

Pode-se perceber que alguns elementos do folhetim estão presentes nas

reportagens policiais elaboradas por Nelson Rodrigues, ou seja, lá estão os abundantes

detalhes que normalmente provocam e inquietam a imaginação do leitor. Assim, Nelson

Rodrigues parece fazer a folhetinização da informação que, segundo Meyer34 (1996,

p.224), “é uma informação que apazigua e suscita a curiosidade de um público para

quem o ‘excesso’ visceral (...) sempre foi ‘natural’” (...)

A linguagem e os temas tais como amor, adultério e morte, veiculados pelas

reportagens policiais, são também elementos que contribuem para atenuar as fronteiras

entre os diferentes componentes da produção rodriguiana — crônica, folhetim e teatro

32 MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997. 33 RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Volume único. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993. 34 MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

32

(como já dissemos). Resende35 (1992, p.4), no jornal Folha de S. Paulo, expõe a

importância deste jornalismo para Nelson Rodrigues:

“O Jornal, pode-se dizer, estava no seu berço ou no seu sangue... Só no Brasil, nas circunstâncias do momento em que viveu o Nelson, em que viveu sua geração, pode-se admitir que um autor dramático da sua importância tenha permanecido na mais sufocante tarimba de jornal (...) Tendo nascido com um tremendo faro jornalístico, repórter de polícia (...): Nelson tinha o instinto do sucesso popular (...) O companheirismo do jornal foi para ele uma lição de vida. (...) Foi sempre, arraigadamente, um homem de jornal. Seu sangue cheirava a tinta e sua pele era de papel linha d’água. “

Nelson Rodrigues, segundo Mendes36 (1986), traça um parâmetro de suas

experiências:

“(...) aos 13 anos eu fui ser repórter de polícia. Por aí, você já vê o que eu era. Eu gostava do assassinato, do pacto de morte! E, então, eu digo, tenho dito que quem ama, não se pode amar sem ter tido, várias vezes, o desejo de morrer com o ser amado. Eu tinha a visão do pacto de morte. Eu tinha uma vizinha, uma senhora triste, senhora que parecia estar esperando a morte. Um dia, o marido chega e diz que sabia que ela o traía. Por isso, ela tinha de tomar um veneno. E diz para ela: (...) se você não tomar eu te dou seis tiros. Disse assim. E ela tomou. Isso, então, espalhou. Eu achei isso uma beleza! Nesse mundo, ainda se morria de amor! Porque o cara, amante dela, que ninguém conhecia, pois só quem conhecia era o marido, ele nunca apareceu. Eu achei aquilo tão lindo, tão maravilhoso, o cochicho das vizinhas!”

Pode-se notar que um acontecimento que levaria os indivíduos a grandes

sofrimentos é visto, ou até mesmo sentido, pelo autor como algo belo. Essa beleza não

possui uma conotação qualquer, mas, sim, aquela que flui através da cadência literária

que o autor consegue imprimir à realidade. A partir da análise da relação entre a prática

de repórter policial, como trajetória de vida de Nelson Rodrigues, e sua produção e

tendo como o objetivo mostrar as articulações, pelas temáticas, dos folhetins com os

35 RESENDE. O.L. Seu palco sempre foi a redação de um jornal. São Paulo. Folha de São Paulo, caderno Mais, 22 de março de 1992. 36 MENDES, J. G. “Nelson Rodrigues: uma personagem de si mesmo”. As entrevistas de Ele/Ela, Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1986

33

demais textos, pode-se perceber dois pontos importantes: por um lado, a trajetória de

sua vida faz com que o autor, a partir dela, componha sua obra; por outro, encontra-se,

em sua criação literária, uma permanente revelação autobiográfica. Sem sombras de

dúvidas, ser repórter policial, ser homem de jornal foi uma experiência fundamental não

somente para seus escritos criativos mas também para sua própria vida e soerguimento

de seus textos.

Nelson Rodrigues atribui significado aos acontecimentos, aos objetos, aos

lugares e generaliza-os para interpretar sua realidade: se ocorre um adultério, a

infidelidade esta presente em qualquer um; se parte do corpo de uma mulher esta

descoberta, a nudez existe em todas as mulheres, mesmo que estas se cubram com

diferentes tecidos; se uma cena de ciúme e detectada, com certeza todas as pessoas têm

esse sentimento e agem na construção de grandes cenas. Nas crônicas de Nelson

Rodrigues, as questões morais alimentam o drama e a tragédia das relações. No entanto,

sem procurar enquadrar aquilo que é ou não moral. O escritor em tela expõe, nas

relações íntimas, o aspecto contraditório da modernização a partir do envolvimento

sentimental das personagens, no ambiente da cidade que possibilita a constituição das

tensões em torno da viga mestra vida/morte.

De acordo com Magaldi37 (2004):

“Nelson foi ao fundo da miséria existencial, num mundo aparentemente regido pelo absurdo. Inimigo de conceitos políticos e sociais que vêem na criatura apenas o produto do meio, não deixou de ambientar as personagens num quadro que detecta as humilhações dos explorados. No abismo em que se exilou, caído da graça paradisíaca, o homem ainda mantém signos de transcendência”.

37

MAGALDI, S. Teatro Completo de Nelson Rodrigues (organização geral e prefácio). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

34

Vendo toda essa dicotomia, sentindo a alma desse gênio brasileiro, por entre os

capítulos que se seguem, abordaremos o seu legado dramático, tecendo considerações

acerca do drama e da comédia, desde a Grécia, traçando um paralelo sob o ponto de

vista psicanalítico, fazendo desse campo teórico, na medida da de nossas possibilidades,

uma luz encaminhadora para que entendamos as crônicas de Nelson Rodrigues. E

levaremos em consideração os pensamentos de Freud, Lacan e Genet. Tomamos, como

escopo, a crônica Os Remadores de Ben-Hur.

35

2. O LEGADO DRAMÁTICO

Segundo Serôdio38 (1999) a classificação das obras literárias segundo o gênero

— épico, lírico e dramático —, estabelecida pelos pensadores gregos da antiguidade,

manteve-se inalterada durante séculos e deu lugar a inúmeras controvérsias teóricas

dentro das diversas correntes de pensamento que têm procurado apreender e explicar a

multiplicidade do fenômeno literário.

Em sentido geral, drama é toda composição literária que expõe uma ação por

meio de personagens que falam e agem entre si, em aparente objetividade, excluindo a

presença de um autor que conduza a narrativa (forma épica) ou extravase sentimentos

pessoais (lírica). Nesse sentido, o drama se define ou podemos defini-lo como um dos

três gêneros literários fundamentais, ao lado do épico e do lírico, segundo a visão

clássica de Platão, sistematizada por Aristóteles e desenvolvida por Hegel, quando de

sua abordagem no desenvolvimento da dialética. O drama trata-se de um gênero que

surge em determinadas circunstâncias histórico-sociais, um capítulo da literatura teatral

assim como a tragédia, a comédia, o auto medieval e a farsa. Como gênero teatral, o

drama surgiu em meados do século XVIII, quase ao mesmo tempo que a revolução

francesa, graças ao empenho teórico-prático dos intelectuais do Iluminismo, como os

enciclopedistas franceses (sobretudo Diderot) e os teóricos que lutavam por um teatro

nacional burguês, na Alemanha pré-romântica (principalmente Lessing). Nasceu com a

ascensão da burguesia, comprometido com uma exigência definida de realismo e

verdade social. Alguns dos elementos que viriam a constituir o drama podem ser

encontrados nas peças satíricas da antiga Grécia e no drama litúrgico da Idade Média.

38 SERÔDIO. M.H. Drama, 1999.

36

As reflexões sobre as relações sociais caracterizam o novo gênero, o drama

burguês, em que os heróis são personagens da vida cotidiana, semelhantes ao público

burguês — público racional a que só o mundo real poderia agradar, como afirmou

Diderot. Significando «ação», em grego, a palavra drama vem associada à representação

teatral na Poética de Aristóteles, por aí se distinguindo da epopéia, a outra forma

literária igualmente assente na imitação (mimesis) de ações. Desde cedo, portanto, na

teoria e na prática (da Grécia antiga), o drama surge nesta dupla articulação — com a

literatura e com o teatro —, embora a natureza, o sentido e a função dessa articulação

tenham posteriormente variado de acordo com os tempos, as práticas artísticas e as

proposições (e avaliações) estéticas. Apesar dos matizes que marcam a referida

articulação, drama é geralmente entendido como um texto escrito para teatro,

graficamente registrando a diferença entre didascálias (ou indicações cênicas) e réplicas

(ou falas das personagens), o que, na verdade, organiza, respectivamente, o texto

secundário e o texto primário. Enquanto este se manifesta na elocução dos atores, o

primeiro usa códigos não verbais, como gestualidade, mímica, coreografia, música,

adereços, maquilagem (ou caracterização), cenografia, luminotecnia, dentre outros. Na

sua relação com a literatura em geral, drama vem referido ao modo dramático,

compondo, juntamente com o lírico e o épico (ou narrativo), a tríade que foi, a partir do

Renascimento e durante algum tempo, incorretamente atribuída a Aristóteles. Trata-se,

com efeito, de uma elaboração teórica posterior à sua Poética, mas tem sido a mais

repetidamente glosada, embora seguindo diferentes critérios para a sua repartição, bem

como para o reconhecimento do sentido de valor dos seus componentes.

Na confrontação com os outros dois modos literários, o dramático tem sido ora

tornado menor, ora engrandecido. Menor porque entendido como incompleto sem a

37

realização cênica e, por isso, simples guião ou rascunho sem existência autônoma, ou

então porque nele participam elementos não puramente literários, configurando,

portanto, um caso-limite da obra literária. Neste sentido, torna-se clara a viabilidade de

critérios de definição e de avaliação dos modos literários, o que não impede o

reconhecimento de um modelo mais ou menos geral de realização do dramático, que

constitui a sua definição convencional, embora tenha permitido (como é regra de

qualquer «contrato») a sua repetida transgressão e reformulação. Elementos como

personagens, diálogos e ação (referida esta ao conflito ou colisão de forças quer

externas, quer internas às personagens) são, nessa conformidade, os elementos básicos

de um universo ficcional que, diferentemente do narrativo, é composto para ser

representado em palco. Por razões que se prendem com essa vocacionalidade cênica e

com as normais expectativas de um público quanto ao tempo de duração de um

espetáculo, a ação é geralmente mais concentrada (do que numa narrativa) — o que não

implica forçosamente a aceitação da «regra» das três unidades (de ação, tempo e lugar),

lei esta supostamente aristotélica, mas de fato de fabricação renascentista e dominante

sobretudo na composição do drama neo-clássico.

Essa idéia de concentração condiciona, de algum modo, a intensificação do

conflito, o que favoreceu a idéia de que o drama representa, exemplarmente e de forma

objetiva, uma colisão de forças e uma situação de crise e exaltação. Para além do

sentido de valor que ao dramático podem assim ser atribuídos, há ainda a considerar os

aspectos formais que se prendem à sua definição convencional e que, necessariamente,

se foram relacionando com a arquitetura da cena e modos de funcionamento do sistema

teatral (condicionando a sua função social e aos códigos quer de representação dos

atores, quer de configuração do lugar cênico, por exemplo), bem como com modelos

38

composicionais que os diferentes tempos, escolas e estilos foram praticando. Estes

abrangem elementos como o decoro (seguindo as razões de Aristóteles e os preceitos de

Horácio na sua Arte Poética), a peripécia e a catástrofe, o coro, a presença de um

Prólogo e Epílogo no início e fim do espetáculo, o solilóquio, o aparte, o quiproquó, o

efeito de distanciamento (ou estranhamento), etc., mas também se reportam aos

variadíssimos gêneros e subgêneros que o dramático foi consentindo: tragédia, comédia,

drama satírico, drama litúrgico, entrediz, tragicomédia, sátira, drama histórico, farsa,

comédia de costumes, comédia lacrimosa (larmoyante), melodrama, vaudeville,

comédia de boulevard, comédia-bem-feita, drama estático, music-hall, teatro épico

(decorrente da teorização de Erwin Piscator e Bertolt Brecht), comédia negra, farsa

absurda, entre vários outros modelos.

Preliminarmente cabe enfatizar que, segundo Aristóteles,39

Tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções.

O gênero literário conhecido como tragédia grega possui nascimento,

desenvolvimento, auge e morte dentro de um período muito peculiar da História da

Grécia, o século V a.C.. Ésquilo, o primeiro grande tragediógrafo grego, começa sua

carreira com a tragédia Os Persas (provavelmente encenada em 472 a.C.) e Eurípedes, o

terceiro e último grande tragediógrafo que compôs As Bacantes, sua última peça, em

408 a.C. (provavelmente encenada em 405 a.C. por seu filho Eurípedes, o Jovem).

Logo, compreender pontos relevantes da essência desse período ajudar-nos-á no

decorrer deste estudo.

39 Poética, VI – 26

39

Em meados do século V a.C., a Grécia, além de possuir conglomerados urbanos

organizados, bem constituídos e definidos, as conhecidas Cidade-Estado — em

oposição ao passado do mundo grego ou o ‘Período Obscuro’ —, realizava profundas

transformações na organização de sua sociedade. Em Atenas, o fim da tirania acontece

no governo de Clístenes, em 508 a.C., e foi marcado por um conjunto de reformas

administrativas (“que emolduram a futura democracia ateniense”40), o início do combate

entre gregos e persas (as Guerras Médicas ou Greco-Persas, em 492 a.C.) e a instituição

vigorosa da famosa democracia ateniense, cujo auge é atingido no governo de Péricles

(entre 461 e 429 a.C.)41. Péricles inicia seu governo num período de muita prosperidade

para a vida grega, marcado por inúmeros fatores: o crescimento da economia, dos

negócios e dos empreendimentos, o expansionismo em ascensão (Liga de Delos,

liderada por Atenas), o florescimento e consolidação da cultura grega, em diversas

variantes (“O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é

constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos representam a

arte do tempo de Péricles”42), dentre outros; no entanto, o governante termina seus dias

no poder com uma cidade já quase decadente, no início da Guerra do Peloponeso,

vencida por Esparta, que destruirá a hegemonia ateniense do cenário grego.

Vieira (2001) chega a levantar a hipótese da peste que assola Atenas entre 430-

426 a.C., causa da morte de Péricles, ser a própria peste vivida por Tebas no início do

Édipo-Rei de Sófocles43. O que parece estar no mínimo condizente com a data da

primeira encenação da peça, provavelmente entre 430 e 420 a.C. – hipótese contestada

40 VERNANT, J.P. & VIDAL-NAQUET, P. – Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1a. edição, 1991 vol. 2, p. 158. 41 MOTA, M. B. & BRAICK, P. R. – História, das cavernas ao Terceiro Milênio, 1a. edição, 1998, p. 38 a 40. 42 JEAGER, W. – Paidéia, A formação do Homem Grego, trad. A. M. Parreira, 3a. edição, 1994, pág. 320 43 VIEIRA, T. – Entre a Razão e o Dáimon in Édipo Rei de Sófocles, 1a. edição, 2001, p. 18.

40

por Vernant e Vidal-Naquet. Resumidamente para Atenas, este século V a.C. inicia com

o semear de uma próspera sociedade, floresce e desenvolve seu esplendor (em especial

na tragédia) e falece com o enfraquecimento das guerras entre os próprios gregos. Este é

o período que forma a base para o expoente mais notável e difundido do conhecimento

grego que ainda será desenvolvido: a filosofia.

A posição dos tragediógrafos, nessa linha do tempo, também é importante para

compreendermos em que mundo viviam tais escritores e como este era visto e retratado

em suas obras. Como bem lembra Jaeger44, “Sófocles encontra-se no estreito e altaneiro

píncaro do brilhante meio-dia do povo ateniense, e que tão velozmente havia de passar”

– talvez por isso sua posição de destaque, como perfeito artista-educador, para o

estudioso alemão, pois a vida do tragediógrafo grego no período áureo da sociedade do

tempo de Péricles o capacitou a criar os caracteres individuais únicos, idealizados no

modelo de perfeita educação da conduta humana. Também como lembra Steiner (apud

Vieira45, 2001), a tragédia grega, tal como se configurou ao longo do quinto século

antes de Cristo, teria servido, como um “terreno de prova e validação para os pontos

fundamentais do historicismo de Hegel”, sustentado pela noção central do progresso da

consciência, por meio do conflito. O autor salienta ainda que é, portanto, nos limites de

uma perspectiva teleológica que Hegel irá conceber o conflito trágico. Trata-se, com

efeito, de circunscrever os preceitos de uma ética — que se apresenta sempre em

estreita subordinação aos princípios da vida coletiva — nos limites da tensão necessária

entre os interesses particulares e os do Estado. Sendo o conflito, aos olhos de Hegel,

essencialmente criador e restaurador, o alvo visado no horizonte traduz-se num

momento de síntese, em que se assiste à superação das antinomias e à configuração de 44 JAEGER, W., op. cit., p. 322. 45 VIEIRA, T. – Entre a Razão e o Dáimon in Édipo Rei de Sófocles, 1a. edição, 2001

41

uma totalidade dialética. O ethos trágico, tal como formulado por Hegel em sua leitura

da peça de Sófocles, reconhece no conflito levado ao extremo (ou seja, nas posições

rígidas tanto de Antígona como de Creonte) uma maneira de demonstrar como o

processo de individuação esbarra em um limite necessário, inevitável, representado pela

morte, mas que traz, na sua contrapartida dialética, a possibilidade do encontro da

substância ética absoluta e universal. Lacan (apud Rubião46, 2003) proferiu comentários

acerca de Antígona no qual salienta a posição paradoxal de sua heroína e situa, aí,

justamente nessa condição paradoxal, a razão do seu poder de fascínio. Para Lacan

(apud Rubião47, 2003), se Antígona segue os desígnios de sua áte, é somente para

transformá-los em um ato de vontade tributário de sua singularidade e não recoberto

pelas regras de qualquer rede discursiva (simbólica) que lhe possa servir de referência.

Assim, a personagem trágica, na leitura lacaniana, exprime a condição de desamparo e

solidão do sujeito que, por estrutura, define-se como sem recurso, sem apelo possível ao

campo do Outro.

Se, por um lado, o olhar da psicanálise sobre os efeitos da tragédia contempla a

dimensão do conflito como necessário e indissolúvel, por outro — e esse será o eixo

principal de nossa argumentação —, a visão trágica do desejo não deixa de acarretar um

impasse teórico-clínico, cujas conseqüências gostaríamos de abordar a partir de um

exame sobre as contribuições advindas da perspectiva cômica. Nosso percurso será

sinalizado por uma questão de fundo, que cumpre antecipar desde já: em que medida os

estudos sobre a comédia, em particular os referentes à comédia antiga, podem lançar

alguma luz sobre o debate relativo à Ética, em psicanálise, uma vez contrapostos ao

modelo trágico em que ele está apoiado nos anos 1960? 46 RUBIÃO, L.L. O impasse trágico e a via cômica na ética da psicanálise, Agora, vol.6, nº 1, Rio de Janeiro, 2003. 47 Id. Ibidem

42

Para se compreender como a ética da psicanálise pôde ser articulada à tragédia e

por que a Antígona de Sófocles ocupou um lugar privilegiado nessa conexão, é preciso

lançar mão de alguns instrumentos teóricos que serviram de apoio para a confecção do

Seminário VII de Lacan. Esse foi um momento fecundo do pensamento do autor,

propício à reformulações de certos pressupostos conceituais que, até então, guiavam o

movimento de retorno a Freud, por ele empreendido. O enquadre teórico em que se

desenrola a discussão sobre a Ética distingue-se do anterior, na medida que são

incluídos aí alguns elementos novos que requerem um redimensionamento da relação

entre o inconsciente e a rede de linguagem. Antígona é lida à luz do limite entre o

significante e a coisa, entre o que é passível de um desdobramento simbólico ou de

inscrição no plano discursivo e o que faz barreira a essa possibilidade. De acordo com

Lacan (apud Rubião48, 2003),

“a tragédia representou a relação do homem com a fala, uma relação tomada em sua fatalidade — uma fatalidade conflitante —, posto que a cadeia que liga o homem à lei significante não é a mesma no nível da família (áte) e no nível da comunidade. Eis a essência da tragédia.”

Para Vernant & Vidal-Naquet49 (1988), a noção de fatalidade tomada em sua

relação com o conflito e com o aspecto da divisão subjetiva torna-se preciosa quando se

quer pensar nos efeitos da tragédia antiga, pois problematiza a idéia de submissão e

passividade dedutível de todo fatalismo. O herói trágico não é aquele que cumpre

cegamente os desígnios de uma ordem divina que o antecede. É da tensão permanente e

insolúvel entre as potencialidades humanas — nitidamente postas em relevo pela

48 RUBIÃO, L.L. O impasse trágico e a via cômica na ética da psicanálise, Agora, vol.6, nº 1, Rio de Janeiro, 2003. 49 VERNANT, J.P. & VIDAL-NAQUET, P. – Mito e Tragédia na Grécia Antiga, 1a. edição, 1991

43

constituição da cidade grega e pelo avanço das práticas políticas, jurídicas e científicas

— e o universo do mito, que nasce a originalidade do conflito trágico.

Cabe salientar que, para Lacan, essa fatalidade é constitutiva e estrutural no ser

falante, ou seja, que o desejo, por ser desejo do Outro, apresenta-se, certamente, sob a

forma de um legado, mas do qual o sujeito deve apropriar-se. Só assim o gesto radical

de Antígona — enterrar o irmão contra o édito de Creonte, rei de Tebas, sob pena de

perder a vida — pode ser visto como um gesto único, que se impõe como uma exceção

a toda exigência de coerência e explicação lógicas. Um gesto que deve assegurar-se de

sua própria estranheza, pois não se mostra inteiramente solidário nem da herança

sanguinária da saga dos Labdácidas (áte divina), nem tampouco da justiça distributiva

encarnada pela lei da cidade. Lacan concentra seu argumento na passagem da peça em

que Antígona é intimada, por Creonte, a falar de sua transgressão e propõe a seguinte

tradução: “pois de maneira nenhuma foi Zeus quem proclamou essas coisas para mim”.

Dessa forma, coloca em destaque a marca da “individualidade absoluta” digna de sua

heroína, rigorosamente situada no deserto de seu desamparo fundamental. Se ela é

levada a cumprir a sua áte, a atrelar-se ao fio criminoso que perpassara todo seu legado

ancestral, isso se dá apenas no momento de uma apropriação em que se desenha uma

resposta singular. Portanto, um gesto tão estranho quanto a justificativa que lhe atribui a

personagem ao afirmar que não teria feito o mesmo por um esposo ou filho mortos, pois

um novo matrimônio reabilitaria sua condição de esposa ou de mãe, enquanto que,

estando já mortos seus pais, o irmão seria insubstituível (SÓFOCLES, 1999, p.58-5950).

50 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. (Tradução e apresentação Mário da Gama Kury). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

44

Segundo Doods51 (1988, p.11), Áte é um termo grego antigo, presente em

Homero, em geral designando “uma conduta imprudente e inexplicável (...) sem

qualquer referência explícita à intervenção divina”, espécie de loucura ou

obscurecimento do estado normal da consciência. Quase sempre traduzido por desgraça,

ruína ou simplesmente tragédia, é um termo recorrente nos textos trágicos. A questão da

morte, proposta por Lacan, comporta vários desdobramentos no fio da discussão sobre a

tragédia. Ainda que não possamos, nos limites reservados a essa reflexão, abarcar todas

as suas peculiaridades, alguns pontos merecem destaque. De acordo com Lacan (apud

Rubião52, 2003), Antígona é tomada como a expressão mais autêntica de uma postura

conseqüente, que mantém o estreito vínculo entre o desejo e a morte, a ponto de figurar

como representante de um “puro desejo de morte”. Trata-se do impasse a que nos

conduz a vertente trágica do desejo, passível de receber, a nosso ver, um outro

tratamento, por meio de uma investigação acerca da comédia. Uma nova definição para

a humanidade estava nascendo, o conceito de indivíduo e individualidade, de maneira

diferente do que o conhecemos hoje (especialmente após o período romântico), mas

como o princípio do auto-conhecimento humano e diferente da existência soberba

centrada nos heróis épicos de Homero. Ou, para novamente citar o helenista alemão, “a

tendência antropocêntrica do espírito ático que dá lugar ao nascimento da ‘humanidade’,

no sentido do conhecimento da verdadeira e essencial forma humana”53 acontece neste

século de ouro. Segundo Vernant & Vidal-Naquet (1988) através do estudo dos

helenistas franceses, “a tragédia nasce quando se começa a olhar o mito com os olhos de

51 DOODS, E.R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988. 52 RUBIÃO, L.L. O impasse trágico e a via cômica na ética da psicanálise, Agora, vol.6, nº 1, Rio de Janeiro, 2003. 53 Idem, ibidem, p. 328.

45

cidadão”54, acontecimento exclusivo deste período; e como os estudiosos bem apontam,

a comunidade cívica enxerga e discute seus problemas, vividos pelo herói trágico, na

forma institucionalizada da tragédia. O uso de termos técnicos do Direito na tragédia

(termos que se confundiam também em outras esferas do conhecimento da sociedade) é

um dos exemplos por eles apontados deste ‘tornar público o problema’, uma forma de

discutir a imprecisão de um vocabulário em construção que se mostrava incoerente,

ambígüo e dissonante, o que revelava na verdade a inconsistência, a discordância e as

tensões internas de todo um novo sistema que estava sendo modelado55.

Nietzsche expõe, em seu “A Origem da Tragédia”, a oposição entre a alma

apolínea — dotada de sonho e formas perfeitas, regidos pela razão e moderação e

resultante da “aparência” — e o espírito dionisíaco — conjunto de instintos primitivos e

individuais, dominados pelo desejo e irracionalidade, resultante da “essência” — como

as duas vertentes de força e pensamento que deram nascimento, evolução e morte à

tragédia como forma de arte em seu tempo. Para o filósofo alemão, o pensamento

socrático, sua lógica e racionalidade — deturpadora do pensamento sofista — são

motivos de sobra para a decadência e derrocada de uma expressão artística natural,

primitiva, musical, instintiva e regida por tradições religiosas que exprimiam, por si só,

o conceito do homem no mundo; ele chega a dizer que “Sócrates é o ponto solsticial e a

coluna em torno da qual gira a história do mundo”56 dentro desta visão racional

deturpadora do misterioso instinto dionisíaco que dá origem à tragédia como forma de

arte. A lenda de Édipo-Rei vinha sendo trabalhada, pela mitologia grega em

florescimento no período e por outros tragediógrafos, como todos com desejos de traçar

os rumos do cidadão que desconhece seus pais biológicos e sua cidade natal. E é a 54 VERNANT, J.P. & VIDAL-NAQUET, P., op. cit., vol. 1, p. 20. 55 VERNANT, J.P. & VIDAL-NAQUET, op. cit., vol. 1, p. 23. 56 NIETZSCHE, F. - A Origem da Tragédia, 8a. edição, 1997, p. 125 e 126.

46

versão de Sófocles a que mais altera os rumos originais do mito e que melhor arquiteta

todo o desenlace de seu infortúnio, concentrado na encenação do investigador que se

descobre réu de sua própria investigação. “Dois mil e quatrocentos anos depois, o

gênero humano, como Édipo, ainda procura sua identidade”57. Édipo é o inquiridor que

age por delegação da cidade e é o próprio objeto do inquérito, bem nos lembra os

helenistas franceses Vernant e Vidal-Naquet. Em outras palavras, por imposição do

cargo e da pólis que governava, Édipo se sente na obrigação de elucidar o problema da

peste que assola o demos que governa e acaba por se descobrir como a própria causa e

solução do problema que enfrentava. Sua investigação, causada pelo bem público,

coincide com a auto-descoberta de seus próprios mistérios, um encontro de si para

consigo mesmo. “Para os Gregos, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade

do mundo circundante, com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e

solitário”58. O drama de Édipo, significando seu sofrimento e angústia, começa e

termina dentro de sua própria existência, suas ações e escolhas (pré-determinadas ou

não) dentro de seu destino. No entanto, a perspectiva de que ele é o ‘elemento escolhido

a dedo’ , dentro do conjunto dos Labdácias, para sofrer e marcar a História de sua

família com a inesquecível cegueira daquilo que ele não soube ver no percurso, traz o

enfoque do problema para dentro dos limites e das instituições da pólis, na qual ele é, ao

mesmo tempo, juiz e julgado. Pelos lances do acaso, Édipo não é culpado por não

conhecer sua própria história e identidade, ou como diz Aristóteles, “pode acontecer de

o personagem desconhecer a vilania de seu ato, pois o laço de sangue só será revelado

mais tarde”59, mas é o criminoso de duas horrorosas atrocidades, sem precedentes, cuja

57 RANGEL, F. – Édipo Rei – um espelho de muitas imagens in Édipo-Rei, trad. G. Campos, ed. Abril, 1976, p. 110. 58 JAEGER, W., op. cit., p. 151. 59 ARISTÓTELES, Poética, XIV, 79.

47

contaminação atinge não só a si, mas toda sua família e cidade, impossibilitando-o de

qualquer impunidade. Édipo é o meio conturbado de uma geração cuja desgraça lhe é

indiretamente anunciada. Primeiro a seus antepassados (e por isso seus pais machucam

seus pés quando bebê, para encerrar-lhe a vida). Édipo significa algo como “o de pés

inchados”), desgraça esta que perpetua a seus filhos com a “esposa e mãe” Jocasta.

Neste acaso do destino, Édipo acaba nascendo, vivendo e morrendo em três diferentes

cidades (nasce em Tebas, vive em Corinto, quando jovem, governa Tebas, como rei

“estrangeiro” e morre cego em Colono), como um inconsciente cigano da mitologia.

Talvez por não se identificar com seu verdadeiro demos, por se identificar com outra

pólis que não sua verdadeira, a dúvida de identidade trilha, num único caminho, e os

atos que o conduzem à vitória e grandeza individual, até a queda e ruína, como ser

humano.

Cabe fazer um preâmbulo e abordar o Édipo na ótica da psicanálise. Segundo

Mendonça60 (2005), o Édipo, em Freud, enfoca uma forma de metaforizar sua questão

sintomática: “o que é um Pai”. De acordo com Freud, o Édipo de Sófocles vai estar de

certa forma reconfigurado. Nessa concepção, O mito do assassínio do Pai + A

predestinação + A proibição do incesto (e a condenação do Parricídio como forma de

homicídio) + A Castração (sua criação singular) + a questão Paternidade/Monoteísmo

conclui-se na síntese desse pensamento. Diante disso, Mendonça (2005)61 conclui que:

“a) ali se substitui o “enceguecimento”, e com isto a ênfase na PURGAÇÃO, pela CASTRAÇÃO² (Complexo, para ele, derivado do Complexo de Édipo); b) hiperdeterminava-se, também, à questão do “Pai-morto” e seu porta-voz hebreu e se articulava a condenação do parricídio à do homicídio: NÃO MATARÁS, isto por ser colocado o Édipo grego em campo conceitual (análogo) ao dito Moisés Hebreu.”

60 MENDONÇA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005 61 Id. Ibidem

48

Mendonça62 (2005) assinala que Lacan reconfigurou o conceito de Édipo.

Preliminarmente, se contrapôs ao texto de Ernest Jones sobre Hamlet, pois segundo ele

tratava-se de um personagem como manifestação do Complexo de Édipo. Segundo

Mendonça63 (2005), para Lacan Édipo era “mito do ASSASSÍNIO do PAI +

PREDESTINAÇÃO + CASTRAÇÃO + MONOTEÍSMO + “MESTRE CASTRADO”. Além disso,

em termos clínicos, Lacan via o Édipo como a Lei do Pai, efetivação da Metáfora

Paterna, constituição do “pai morto” enquanto Pai-Simbólico, normatividade da

potência a ser transmitida, como tal, para o Sintoma do Homem e como contingência de

procriação para as mulheres. A conclusão da tragédia de Édipo expressa, nas palavras

do Coro, um tema recorrente em Sófocles: a idéia de medida nos julgamentos humanos,

aqui a medida da felicidade humana. A tragédia grega, como forma de arte, reflete

características diversas, complementares e distintas do ser humano, em sociedade ou

isoladamente. Como representante de um conjunto maior e integrado no ambiente

comunitário, onde valores políticos e sociais são colocados em jogo; como unidade

ímpar e completa em si, conceitos existenciais se confrontam para mostrar uma

existência mítica, misteriosa e inexplicável, irredutível a um único denominador.

Parece haver, na tragédia grega, uma noção maior daquilo que é perpétuo, dos conceitos

que inexplicavelmente acompanham a humanidade há séculos e que, de alguma

maneira, parecem confrontar-se com a realidade da comunidade, trazida e traduzida pela

noção de cidade-Estado. A organização política, em torno de um bem comum maior, de

quando em vez, suplanta o direito individual e/ou familiar, em circunstâncias cruciais,

as quais a tragédia explora para revelar o insolúvel conflito entre indivíduo, família e

cidade. “A tragédia exprime esta tensão entre o oikos e a cidade. A palavra oikos, que às 62 MENDONÇA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005 63 Id. Ibidem

49

vezes traduzimos por ‘família’, dificilmente é traduzível. Ora designa a família, no

sentido estrito do termo, ora a casa e todos os que gravitam em torno do lar — pais,

filhos e escravos64”. Indo a outro pensador, podemos também mencionar o pensamento

de Jaeger, quando afirma que é, em Sófocles, que o apogeu atinge o desenvolvimento da

idéia grega de medida, considerada como o mais alto valor. É o piedoso reconhecimento

de uma justiça que habita as próprias coisas e cuja compreensão é o sinal da mais

perfeita maturidade. O próprio helenista alemão afirma não ser este combate entre as

forças do indivíduo e do estado o centro da obra mas, sim, “o caráter iniludível do

destino que os deuses impõem ao homem”65.

Preliminarmente, cabe tecer breves comentários acerca do Governo dos Trinta

Tiranos. Sócrates tinha conquistado uma posição política em Atenas, sobretudo ao

retornar a paz, depois da perda da guerra do Peloponeso. Somente no final, foi ser

vítima do confucionismo político decorrente da influência de Esparta, vitoriosa. Passada

a guerra do Peloponeso, sucederam-se regimes em Atenas, à base de agitações. De 404

a 403 ocorreu o regime dos Trinta Tiranos, imposto pelo general espartano Lisandro.

Críticas foi das mais cruéis. Ao novo regime, considerado progressista, pertenceu

Sócrates, eleito para o Senado. Mas o filósofo grego não suportou o terror praticado

contra os cidadãos tradicionais e renunciou. E aí, Tebas, comovida com o infortúnio da

cidade de Atenas sob a tirania do Trinta Tiranos, recebeu os proscritos. Armando-os

ainda para uma revolução, essa resultou na expulsão dos tiranos e restauração da

democracia ateniense. Restaurada a democracia em 403, com apoio de Tebas, piorou,

contudo, a situação de Sócrates. O "Governo dos Trinta Tiranos" teve curta duração. No

ano seguinte, em 403 ac, estes foram destituídos pelo líder democrático Trasíbulo. A 64 VERNANT, J. P. & VIDAL-NAQUET, P., op. cit. vol. 2, p. 169 e 170. 65 Idem, ibidem, p. 331.

50

democracia em Atenas, no entanto, nunca mais voltou a ser a mesma. A comédia

continuou a ter várias restrições.

Politicamente, a guerra do Peloponeso marcou o fim da civilização ateniense

como força dominante. No século IV ac, a Grécia, como um todo, é uma potência

decadente. Antes mesmo do fim desse século, no ano de 338 ac, os Macedônios, com o

rei Felipe à frente, invadiram a nação. A comédia intermediária representa essa

transição. Podada e cansada da crítica política, os comediógrafos voltavam-se para

outros assuntos. Naquele momento, a temática das comédias passou a girar em torno das

paródias míticas, das sátiras aos sistemas filosóficos, de questões como a instabilidade

das fortunas, assuntos gastronômicos etc... É neste momento que a comédia começa a

adquirir o tom da crítica de costumes. Deste período da comédia, pouco nos chegou.

Somente duas peças de Aristófanes pertencem a esta época. São elas Assembléia de

mulheres (392 ac) e Pluto (388 ac). A primeira trata ironicamente da idéia de uma

comunidade de bens e amor livre (aparentemente, esta concepção parecia interessar aos

atenienses da época). A outra versa sobre a distribuição de riquezas. Em Pluto, a

questão central não é mais política. Não é, igualmente, aquele Aristófanes corrosivo e

crítico que encontramos. Nessa obra, vemos uma preocupação individualista, não mais

aqueles manifestos da comédia antiga contra as lideranças políticas. Nela, o deboche

desaparece para dar lugar a uma forma mais serena de ver o mundo. Essa é a sua última

obra que se tem notícia. Há indícios, segundo alguns historiadores, de que Aristófanes

teria, graças à sua longevidade, chegado a compor uma peça no estilo da nova comédia.

O nome desta obra seria Cócalo. Se ela existiu, realmente, está perdida.

51

Voltando a Lacan, (apud Rubião66, 2003),

“o que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos faz apreciá-la em sua dimensão humana, não excetuando o inconsciente, não é tanto o triunfo da vida quanto sua escapada, o fato de a vida escorregar, furtar-se, fugir, escapar a tudo o que lhe é oposto como barreira, e precisamente as mais essenciais, as que são constituídas pela instância do significante”.

A comédia entra em destaque, precisamente, em virtude de sua dimensão

humana. Humana, talvez, em oposição ao que se apresenta como o aspecto desumano da

personagem Antígona, cujo ato de forçar, em direção a uma escolha absoluta, conduz

necessariamente ao dilaceramento. Se a tragédia traduz algo relativo ao que não se deixa

civilizar/simbolizar, no homem, algo como um limite só transposto mediante o

sacrifício do ser, a comédia parece fornecer uma via original de transposição desse

limite do insuportável, dado pelo significante enquanto barreira. E essa operação aponta

não para o triunfo da vida — esboçado, imaginariamente numa celebração que

promoveria o bem-estar a despeito dos efeitos desse insuportável —, mas pelo índice de

sua escapada, por entre as gretas da barreira significante. O triunfo da morte é então

balizado pela escapada da vida, em relação ao que se impõe, como dissemos, como

barreira significante. O termo ‘vida’ é muito vago e não tem um estatuto conceitual.

Talvez pudesse ser substituído pelo conceito de gozo, ainda não muito explorado, por

ocasião do seminário da Ética, mas que guarda, como teremos oportunidade de conferir,

uma conexão estreita com a abordagem lacaniana da comédia. Para Lacan (apud

Rubião67, 2003), se a tragédia situara-se como a expressão da relação de fatalidade que

o homem mantém com a fala, a comédia apontaria para um tipo diferente de relação em

que algum proveito pode ser daí extraído. Lacan nos mostra a habilidade de Aristófanes

66 RUBIÃO, L.L. O impasse trágico e a via cômica na ética da psicanálise, Agora, vol.6, nº 1, Rio de Janeiro, 2003. 67 Id. Ibidem

52

em transformar a bela dialética socrática em instrumento do gozo particular de um

velho esperto e desonesto. As necessidades mais básicas, do sexo, da ganância, da

irreverência são atingidas por meio desse artifício.

Segundo Aristófanes68 (1995), a dialética socrática, apresentada por Platão como

sendo o exercício racional que garante as vias de acesso ao conhecimento de uma

verdade sobre o ser, converte-se, na peça de Aristófanes, no ‘pensatório’, lugar a que se

dirigem os iniciados que passarão por um ‘moinho de palavras’, a fim de tornarem-se

mestres na arte do engano, da infâmia, da difamação. Uma maestria às avessas, uma vez

que faz deslizar o eixo em torno do qual se consolidasse o nexo do discurso racional

para o registro do absurdo e do nonsense.

Jaeger69 (1995) enfatiza que o Sócrates da peça de Aristófanes representa tudo o

que se podia depreender de pior das correntes iluministas que invadiam a nova geração

do homem grego, trazendo conseqüências desastrosas para os diversos setores da vida

pública, em especial para a esfera política. A comédia só adquiriu sua importância e

reconhecimento, esclarece-nos Jaeger, quando passou a fazer parte da vida pública e do

debate político ateniense, onde se configurou sua função específica na formação do

espírito do homem grego. A tensão entre os princípios e valores antigos e os novos está

no centro de As nuvens e materializa-se na cena do debate entre o logos Justo e o logos

Injusto. Esta passagem é comparada ao debate entre Ésquilo (passado) e Eurípedes

(atualidade), na peça As rãs. Ainda, segundo o autor, se a comédia pode habitar o

domínio do nonsense e do absurdo, sem deixar de afirmar-se como um meio de

fomentar a crítica e a reflexão do público, ou seja, de propiciar a transmissão de uma

68 ARISTÓFANES. As nuvens. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. 69 JAEGER, W. Paidéia. A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

53

verdade submetida à censura, isto se dá através da suspensão de uma barreira, de uma

sanção que autoriza o tratamento do que é mais sublime e respeitável pelo viés da

abjeção e da derrisão. Tudo isto com que finalidade? Fazer rir ou deixar passar um

ganho de prazer. Cabe também dizer que, para Lacan (apud Mendonça70, 2005), a obra

Balcão, de Genet, tratava-se de um retrato da perversão maníaca. Lacan também

articulou a obra de Genet à comédia de Aristófanes, pois viu em ambos o tema da:

“volta ao Lar, próprio da adoção na pólis trágica do dado que era compatível com a

tragédia: o repúdio à guerra; adotado, também, no enaltecimento do herói épico”.

Reafirmando, Lacan (apud Mendonça71, 2005), diante da importância da comédia de

Aristófanes, lamentou o fato da psicanálise (freudiana) ter sido fundada sob o signo da

tragédia, pois para ele teria sido melhor se esta tivesse sido fundada pelo signo da

comédia.

Relação das obras conhecidas de Aristófanes:

• Os Babilônios (427 a.C) - obra perdida • Os Arcanos (425 a.C) • Os Cavaleiros (425 a.C) • As Nuvens (424 a.C) • As Vespas (423 a.C) • A Paz (421 a.C) • As Aves (414 a.C) • Lisístrata (411 a.C) • As Celebrantes das Testemófórias (411 a.C.) • As Rãs (405 a.C.) • Assembléia de Mulheres (392 a.C.) • Pluto (388 a.C) • Cócalo - obra perdid-

Outros representantes deste momento da comédia foram Antífanes,

Anaxandrido, Alexis, Arquipas, Nocóstrato e Timocles. Destes, no entanto, só nos

70 MENDONÇA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005 71 Id. Ibidem

54

sobraram fragmentos de peças e/ou comentários. Nada que nos dê a idéia exata de sua

produção. Resta-nos somente Aristófanes.

A comédia intermediária, porém, teve curta duração. Ela representou muito mais

a procura por uma estética que fosse consoante com os novos tempos. De acordo com

Wilson (1982) o discurso de Aristófanes no Banquete de Platão foi elaborado segundo

sua obra. Em Lisistrata, temos uma greve de sexo planejada e executada pelas mulheres,

que são, dessa forma separadas dos homens. Tal conflito é reproduzido no coro que é,

pela primeira vez, em Aristófanes, formado por dois grupos diferentes e antagonistas:

homens e mulheres. O objetivo da greve é o final da guerra e a volta dos homens para

casa, ou seja, a continuidade da família, que estava interrompida pela guerra. Em

Tesmoforiantes, temos a mesma separação dos pares, só que agora legalizada pelo

festival das Tesmofórias, exclusivo das mulheres. Há a figura do efeminado poeta

trágico Agatão, que servirá de ponte entre o sexo masculino e o feminino, na

caracterização feminina. Essas duas peças cômicas de 411 a.C. apresentam a separação

dos casais, com a presença de figuras andrógenas, na primeira, pela masculinização das

mulheres, tomando o poder na cidade e batendo nos homens; na segunda, com a

feminização dos homens. Platão, no Banquete, faz o personagem de Aristófanes contar

um mito que inclui a divisão dos seres circulares em dois, como castigo por sua

impiedade.

Beltrametti72 (2000) acredita que o teatro de Aristófanes tem seus duplos, que

são “esses outros si mesmos que têm por função instaurar uma tensão com o si dos

protagonistas das comédias, fazendo com que as perspectivas se entrelacem tão

estreitamente que acabem por se perder”. A autora entende ser o par cômico: “1) 72 BELTRAMETTI, Anna. Lê couple comique. Des origines mythiques aux dérives pshilosophiques. In: desclos, Marie-Laurence. Le rire de grecs: anthropologie du rire em Grèce ancienne. Grenoble: editions Jèrôme Millon, 2000, p.215-226.

55

Unidade dramática de dois elementos indissociáveis; 2) Princípio e, ao mesmo tempo,

base estrutural; 3) Nó semântico, onde se ligam as mais importantes linhas do sentido”.

Para Beltrametti (2000), na comédia, os relatos míticos são os topoi, onde se movem as

oposições atuais. De forma diferente, na tragédia, os conflitos atuais e aqueles da

história são transferidos para o mito. Do mesmo modo que o mito, a comédia apresenta

os vizinhos, do interior da comunidade, como os maiores inimigos e não os que vêm de

fora. A tragédia também trabalhou a complexidade da ambivalência heróica e mítica do

par trágico, que se desdobra. Mas o par cômico, além de desdobrar e explicar, enfatiza

as confusões e a decadência da democracia.

56

3. A FARSA SINCERA

Cabe, preliminarmente, enfatizar que o método psicanalítico revela não apenas a

face oculta do conteúdo de um texto, com também pode ser aplicado à análise da forma,

pois a imagem poética supera a dicotomia conteúdo/forma. Segundo Lopes73 (1998),

ampliar a compreensão psicodinâmica da arte nos provê de subsídios para, sob o signo

da Estética, formularmos uma Teoria da Leitura e determinar uma análise textual que

englobe tanto a questão da forma quanto da tentativa de detecção das dificuldades

encontráveis na leitura. De acordo com Rita74 (2002), para acabar com a Guerra do

Peloponeso, Lisístrata reúne, em Atenas, um plenário de mulheres que decidem fazer

greve de sexo e ocupar a Acrópole, onde estava depositado o tesouro ateniense que

sustentava o conflito. Mas um grupo de velhos tenta expulsar, da Acrópole, as mulheres

em luta, enquanto que um comandante militar ensaia, em vão, a prisão de Lisístrata,

protegida pelas restantes mulheres. Do diálogo entre o comandante e Lisístrata

ressaltam as razões femininas em nome das quais se diz que as mulheres são melhores

que os homens para resolver conflitos contra o argumento masculino que afirma que o

lugar das mulheres é dentro de casa. Lisístrata confessa, às mais velhas, os difíceis

esforços que tem de fazer para impedir que as mulheres entrincheiradas na Acrópole

escapem e se confraternizem com o "inimigo". Enfim, num jogo permanente de

sedução, de avanços e de recuos, a trama desfaz-se na vitória das mulheres,

materializada num acordo de paz entre Atenas e Esparta. Lisístrata, mulher de Atenas,

tinha também mobilizado para a greve de sexo as mulheres de Esparta... Tudo isto num

73 LOPES, A.J. Contribuições de uma Teoria da Leitura e de uma Nova Estética para a Educação, in Leitura: Teoria e Prática. Associação de Leitura do Brasil, ano 17, número 31, Campinas, junho 1998 74 RITA, João. Lisístrata e outras mulheres de Atenas. Jornal "a Página" nº 109, ano 10, Fevereiro 2002.

57

texto criado por um homem, Aristófanes, 400 anos antes de Cristo. Segundo Rita75

(2002),

"(...)Se um homem se colocar, sem truques de encenação, no papel de uma mulher e se uma mulher se colocar no papel de um homem, será mais fácil distinguir as diferenças naturais e inultrapassáveis, mas será também inevitável descobrir-se que ambos são pessoas e, neste conceito, iguais. (...) Nada é só preto ou branco. Há sempre algo de novo no velho e algo de velho no novo, algo de masculino no feminino e algo de feminino no masculino... E há em tudo isto muita incerteza... A única certeza, em todos os domínios, é que é tudo, felizmente, incerto, e nada é definitivo ou acabado.(...)"

Em Atenas, as mulheres, durante a guerra, ficavam muito tempo distantes de

seus maridos e o desejo delas era ignorado, visto que as mulheres eram tidas como

subservientes aos homens e tal fato pode ser destacado segundo as palavras de Chico

Buarque de Holanda76:

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar violentos Carícias plenas Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho Costumam buscar o carinho De outras falenas Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços De suas pequenas Helenas

75 RITA, João. Lisístrata e outras mulheres de Atenas. Jornal "a Página" nº 109, ano 10, Fevereiro 2002. 76 Trecho da letra da música Mulheres de Atenas de Chico Buarque de Holanda

58

De acordo com Mendonça77 (2006), esse erotismo contido assinala que:

“Os Homens, na estética Épica quinhentista, são introduzidos na Castração (“reconhecimento da impossibilidade do gozo”) pelo discurso utópico das mulheres (“Flamma Feminina”), isto é, pelo reconhecimento (escolha) amoroso, tanto do sublimatório Deus (monoteísta, gótico e cristão), quanto da helenista Vênus. Tal ato os autoriza a conjugar utopia desejante e experimentalista na “insula” paradisíaca; ou seja, quando, no Amor, Ágape separou-se de Eros, paradoxalmente, abriu espaço e campo para que, em nome de sua memória, de Eros surgisse, como sua outra face-forma escópica, a feminina Psychê (na exata acepção do poema da veia de Fernando Pessoa), ou seja, trata-se de um ato e/ou discurso onde, qual o dito pelo Lacan de: “Os Não-do-Pai”, o orgasmo das mulheres as remete, literalmente, à angústia, enquanto o falicismo masculino do sintoma do homem o irá suturar pela ilusão imaginária da potência; já a histeria o dissimulará pela impotência.

Ainda para Mendonça78 (2004), Lacan resgata integralmente a concepção

conceitual apresentada por Freud a respeito da sublimação do artista, tendo-se como

referência Leonardo da Vinci. Acredita ainda que:

“se na sublimação, de um modo geral, tem-se, como efeito da interrupção não-precoce do circuito pulsional, a geração de um sinthome (sintoma fundamental) que vem suplementar, sem dúvida, o recalque; na dita sublimação do artista, de incisão precoce que acarreta a interrupção do circuito pulsional, produz-se um symptôme, uma nomeação não-fálica do sujeito pela autoria;

O referido autor salienta também que:

“Se em Leonardo da Vinci, por interrupção precoce do circuito pulsional, Lacan deduz ter havido SUBLIMAÇÃO, vê-se que ali é produzido um symptôme autoral e não o fálico sintoma fundamental (sinthome), e isto se dá por estar ali a Idéia aposta no lugar do gozo, encontraremos um symptôme, uma nomeação de autoria singular que se torna, para o sujeito e para a universalidade, o índice excepcional (invulgar e de exceção), do lugar de nome próprio”

77 MENDONÇA, A.S. Os Limites de uma Erótica Contida. Literatura e/ou psicanálise. CooJornal, Ano 9 nº 470, edição de 01/04/2006. 78 MENDONÇA, A.S. Cinco artistas e um problema: Foraclusão e/ou sublimação. Opinião acadêmica, nº 382, 2004

59

Cabe salientar que Freud nunca se interessou por estética, nunca formulou o

conceito algum sobre o belo, o sublime, o lírico, e ligeiro ou qualquer categoria do

esteticismo. Ele se interessava, tão-somente, pela genealogia da arte. Já Lacan entende o

conceito de belo por Narciso, contudo não mencionando outras categorias da estética.

Pode-se concluir, portanto, que ambos preferiram se deter à psicanálise, em si, que á

estética, enquanto filosofia da arte. Por uma questão de coerência de campo teórico, a

psicanálise não interpreta obra de arte nem autor. Ela, apenas, ilustra, através de obras

de arte, ou de referência aos autores, os conceitos psicanalíticos. Por exemplo, o

conceito da lei paterna é tirada de Édipo. A uma obra de arte pode, apenas, nas mãos da

psicanálise, ilustrar o dado humano.

De acordo com Lopes79 (2000), em toda obra de arte, o equilíbrio do sentido

(apresenta uma dupla face – imaginário e simbólico) e a busca da significação pode

utilizar a Psicanálise para a compreensão dos dois pólos dessa dicotomia, desvelando a

obra como unidade harmônica e efetivando um equilíbrio dinâmico entre simbólico e

imaginário. A recriação da imagem pelo leitor constitui um processo ativo, permitindo a

construção de uma totalidade orgânica, por meio da qual atinge-se a união da dicotomia

conteúdo/forma, bem como da dicotomia emoção/razão. A Estética, como disciplina

filosófica, ultrapassou a questão do belo como fulcro da arte, conceituação que teve seu

ápice nos séculos XVIII e XIX, e hoje engloba, como objeto de estudo, todas as

manifestações possíveis da criatividade: o feio, o grotesco, o exagero, o horror, o kitsch,

etc. Procurando por uma definição mais abrangente, a Estética Contemporânea propõe-

se então a determinar qual a natureza ou quais as características comuns encontradas na

percepção dos objetos que provocam a emoção estética, também denominada gozo 79 LOPES, Anchyses Jobim. Dorotéia de Nelson Rodrigues: Poesia, Sonho e Repressão Sexual. Revista Estudos de Psicanálise. Círculo Brasileiro de Psicanálise, número 23, setembro 2000, Recife, PE

60

estético. A superação das dicotomias constitui um dos fatores essenciais para que surja o

gozo estético. Outras contribuições para a compreensão psicológica da fruição e do

prazer na arte são: o processo catártico descrito por Aristóteles, e a sublimação, tão

enaltecida por Freud. De acordo com Mendonça80 (2005) Lacan, voltando-se a Genet, o

irá considerar como autor de um drama contemporâneo à sua época. Isso significava

dizê-lo um autor moderno no sentido que LYOTARD empresta a este termo, ou seja,

compatível com a supremacia das narrativas de legitimação81. Porém, para não dizer que

não falamos ‘das flores e espinhos’ do Simbólico, deveríamos, também, destacar o

“nosso anjo pornográfico”. Nelson Rodrigues, isto no dizer de Rui Castro, pois este

verdadeiro “Kant com Sade” brasileiro e urbano, sem dúvida, em pelo menos três de

suas peças: O Beijo no Asfalto, o Boca de Ouro e Os Sete Gatinhos parece não ver

distinção alguma entre o moralismo popular das vilas de subúrbio e o ‘cristianismo

burguês’ da udenista classe média alta, inscrevendo ambos no que se denominou de “a

perversão nossa de cada dia”, que era dissimulada pela hipocrisia de um “bom-

mocismo”, tio-avô do que hoje é dito como: “politicamente correto”, e que Slavoj Zizek

caracterizaria como manifestação da “razão cínica”.

Mendonça82 (2003) salienta que, na sociedade contemporânea, as relações

sociais são presididas pelo signo da impostura perversa, ou seja, trata-se da razão cínica

e da identificação imaginária com esta mesma razão cínica. Zizek (apud Mendonça,

80 MENDONÇA, A.S.. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005 81 No dizer de Jean-François Lyotard, em seu texto-referência sobre o “Pós-Modernismo”, narrativa de legitimação é a que se propõe a interpretar o mundo, a sociedade. Nos séculos XIX e XX destacaram-se como exemplos da “KULTUR KRITIK” (Crítica da Cultura) o marxismo ocidental enquanto índice de legitimação histórico-política, as vanguardas históricas como ícones de legitimação estética, e a Psicanálise como marco da legitimação erótica. 82 MENDONÇA, A.S. A identificação imaginária e a razão cínica. A Transmissão. A psicanálise, a mídia e o consumo. CEL, 2003.

61

2003) destaca esta razão cínica como sendo uma espécie de gozo perverso da sociedade

contemporânea. Mendonça83 (2003) compara a razão cínica com o que Sloterdikj

denominava de “Kynisme”. Para ele, a razão cínica opunha-se ao “Kynisme” que era

encarado como um “cinismo positivo”, visto que tratava-se de uma apropriação cínica

que as classes subalternas e as pessoas que não estão de acordo com a ideologia oficial

fazem de seu aparato retórico para ridicularizá-lo. Enquanto a razão cínica é a expressão

dissimulada da ideologia do poder, o “Kynisme” é o que a desconstitui pelo uso

corrosivo da ironia. Na verdade, a razão cínica é uma forma de comparecimento da

identificação egóica na sociedade contemporânea. Para Mendonça84 (2005), o simbólico

assim erotizado em direção à paródia produz a crítica da perversão. Uma paródia que

testemunha, pelo riso, a perversão encenada como espetáculo teatral, figura, no sentido

hegeliano, pois O Balcão a universaliza, e nós, leitores, por identificação, a

singularizamos. O autor enfatiza ainda que Lacan verá então Genet como o Aristófanes

de nossa época e a guerra como um estado de generalização do bordel em que se

transformou a questão social contemporânea, onde o homem não deve dever ao Estado,

mas o que importa são as formas de sobrevivência ou ilusão. Mais do que a guerra, é a

decadência que se torna permanente, a mesma que ele já anunciara no misantropo e,

diante dela, a Comédia só produz pessoas dramáticas, significantes: bispos, juízes ou

generais, e a Comédia de Genet torna-se O Balcão de onde se assiste, como casa

ilusória, à guerra de que se participa sans-le-savoir. Ali, como na charge contemporânea

(“Quero o Meu” – personagem do Veríssimo), trata-se de sobreviver e o Ego-Ideal, o

Moi torna-se um “Ideal-do-Meu” e, no lugar da sublimação, temos esta guerra

83 MENDONÇA, A.S. A identificação imaginária e a razão cínica. A Transmissão. A psicanálise, a mídia e o consumo. CEL, 2003. 84 MENDONÇA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005

62

permanente como “erotização” do relacionamento simbólico e, a partir daí, Genet

reivindica a libertinagem, redenominando Sade, como a verdadeira função subversiva

do Sujeito Patológico, na acepção de Serge André. Pois O Balcão ilusório nos faz

assistir, como palco da guerra, ao bordel que vivemos desde aquela época, o que vem

corresponder ao que hoje é chamado de modo pós-moderno de “banalização da

violência”. E, como todas as personagens são pessoas dramáticas, podem ser

perfeitamente assimiladas umas às outras em seus papéis ilusórios.

Mais uma vez nos aportando ao pensamento de Mendonça85 (2005), no que ele

se refere a Genet, podemos dizer que, para esse é fundamental, na condição coadjuvante

dessa sociedade sem lei, qual no anúncio publicitário de Gelol, o princípio fetichista de

que não basta representar a prostituição, não basta representar como prostituição a

fantasia sádica, é preciso dela participar. A fantasia sádica torna-se, tal como o anúncio,

incorporada à função estratégica da mídia que sustenta a degradação da cultura em

nome do show-business, do entretenimento, do espetáculo, da audiência, enfim... “Não

basta ser pai, é preciso participar”. Este ‘prazer’ que a participação proporciona se

realimenta de sua própria culpa, porque este prazer não é uma culpa natural, psicótica,

nem o remorso neurótico. Ele é o prazer que se obtém provocando culpa em outrem, é

sádico. Mendonça86 (2005) ainda exemplifica que Lacan, ao falar de Genet, amplia a

própria idéia do Sujeito do Prazer: não mais se trata apenas de alguém que coloca o

prazer no lugar do gozo para que a virtude ali não habite; e, mas ainda, de que, até isso,

para acontecer, terá de ser como simulacro, ou seja, naquilo que antecipa o “sonho

deleuziano [...]”. Então, a perversão se torna aquilo que ela verdadeiramente é: um jogo

de prazer com a imagem anexa, não precisando mais do álibi sexual freudiano. Isso 85 MENDONÇA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005 86 Id. Ibidem

63

porque a castração que aqui é suspensa não é a imaginária da mãe. E Genet propõe uma

interpenetração entre fetichismo e perversidade, ao contrário de Gide, que a juízo de

Allouch propicia, a Lacan, qual Jensen, a visão da estruturalidade do fetichismo, na sua

forma mais singular. Lacan, na concepção de Genet, dá estatuto maníaco ao projeto

freudiano de dissolução da cultura, pois, diante do ‘bordel’ em que vivemos, a

dissolução toma a forma de degradação da cultura, o que serve de argumento até para os

moralistas que defendem os caros princípios do Mal-Estar. Logo, por exemplo, a função

de um chefe de polícia como elemento sobrevivente da fusão entre dissolução e

degradação é uma constatação para a Psicanálise e um álibi para a ‘”‘repressão”, do

ponto de vista daqueles que querem transformar a ilusão de um bordel, por exemplo,

numa exceção. É o fato de que, quando toda a ordem se desvanece, serve à lei apenas o

personagem mediano, na hierarquia, porque é o único que pode estabelecer as regras da

sobrevivência. Se, de um lado, a sociedade é reduzida à manutenção da ordem, destaca-

se a figura do chefe de polícia, porque se o juiz ouve, da prostituta, que ela é, além

dessa condição, uma ladra, ela, por sua vez, poderá ouvir desse mesmo juiz a confissão

de que ele é um libertino. Todos pedem para ocupar, portanto, o ápice da ordem;

ninguém pede para mantê-la e, neste momento, só sobrevive quem a mantém, daí o

chefe de polícia funcionar como objeto, como semblante do Falo.

Genet também nos chama a atenção, na leitura de Lacan: que a revolução pode

ser uma festa, no sentido de ser um ritual de morte; que pode até provocar diversão,

desde que quem a assista ou a pratique seja um perverso. Logo, a revolução se faz

aparentemente entre o bem moral político e o bem moral da ordem, pois os atos da

revolução vão mostrá-los quase como equivalentes, porque vão interseccioná-los.

64

Revendo Lacan (apud Mendonça87, 2000), no Balcão de Genet, podemos dizer

que as funções humanas se referem a simbólico, ou seja, o poder daquele que prende e

absolve na ordem do pecado e da culpa. Todos os personagens representam funções em

relação às quais o sujeito encontra-se como alienado e serão, de uma só vez, submetidos

à lei da comédia. E ainda Mendonça (2000) salienta que Genet nos demonstra, no plano

da perversão (fetichismo), aquilo que, numa linguagem forte, podemos considerar, nos

dias de grande confusão, o bordel dentro do qual vivemos. Vejamos que Genet, assim

como Nelson Rodrigues, sabe apontar, dentro e diante de nós, o papel do personagem

grotesco, empurrando-o para além de toda a expressão e consegue dar, a esse mesmo

grotesco, dimensões engrandecidas.

Freud88 (1997) nunca considerou política tanto quanto as questões de poder

temas centrais de análise. Entretanto, em sua obra O mal-estar da civilização, ele faz

uma leitura metapsicológica do sujeito do desejo e das pulsões e sua inserção na

sociedade e na política que lhe diz a respeito. Entretanto, Birman89 (1997) mostra-nos

que Freud nunca se opôs à Revolução Russa de 1917 ou aos seus ideais. Ele não

acreditou é na realização desses ideais socialistas-científicos que exigiam a abdicação,

pelo homem, de certos desejos pulsionais inerentes à sua constituição psíquica. Para

Freud (apud Birman90, 1997, p.111) “A nervura da argumentação se centrava na

impossibilidade de os homens retirarem algo de si, do seu usufruto próprio e do seu

próprio gozo, para compartilharem com os outros no espaço social”. A socialização da

riqueza seria impedida ou ao menos severamente obstaculizada devido à relação fálica

87 MENDONÇA, A.S. Lacan, o Moderno e a Desconstrução. A Transmissão, ano 8, no,.9, CEL, 2000. 88 FREUD, S. A Dissolução do Complexo de Édipo. In: Obras Completas, vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1997. 89 BIRMAN, Joel: Retórica e Força na Governabilidade, in Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997. 90 Id. Ibidem

65

de posse que o sujeito estabeleceria com os seus bens materiais, que operariam como

uma espécie de “reserva de gozo” para o sujeito. Nota-se que aí se aponta que o ser

humano deve deixar de ser visto como um indivíduo centrado nas meras necessidades e

ser reconhecido, também, como um “sujeito do desejo e das pulsões”. Dá-se aí, nessa

linha de pensamento sócio-dinâmico, portanto, uma mudança de registro, de

transmutação da necessidade humana, caminhando da economia política para, também e

sobretudo, a economia pulsional. Eis que tudo é história. O próprio Birman91 (1997,

p.113) diz: “Daí porque o projeto socialista é complicado e pleno de obstáculos, pois

implicaria na transformação da reserva de gozo para as subjetividades”. A questão da

felicidade então surge oportunamente porque está diretamente relacionada, no projeto

socialista, à redistribuição dos bens materiais. Freud é textual ao abordar o assunto,

quando assegura, em seus textos, que se a felicidade é guiada pelo princípio do prazer,

como ele acredita que realmente é, então ela é praticamente impossível nesta vida. Para

Freud92 (1997, p.24), o programa de felicidade

“(...) se encontra em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não há possibilidade alguma dele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) das necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica”.

No que tange à felicidade, inda segundo Freud93 (1997, p.33), “no sentido em

que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do

indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que

91 BIRMAN, Joel: Retórica e Força na Governabilidade, in Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997. 92 FREUD, S. A Dissolução do Complexo de Édipo. In: Obras Completas, vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1997. 93 Id. Ibidem

66

descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”. Freud94 (1997)

chegou também à conclusão de que as pulsões não poderiam ser todas da mesma

espécie. Concluiu, por volta de 1920, que, ao lado da pulsão que buscava preservar a

vida para reuní-la em unidades crescentes, seria necessário que houvesse uma força

contrária, uma força que tendesse a dissolver essas unidades para remetê-las a seu

estado inorgânico original, sendo que os fenômenos da vida poderiam ser explicados

pela ação concorrente dessas duas pulsões. Para ele95 (1997, p.78), o conceito de pulsão

de morte tem a sua singularidade e assim o descreve:

“(...) uma parte da pulsão é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como uma pulsão de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, a própria pulsão podia ser compelida para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição (...). Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, por exemplo, que os dois tipos de pulsão raramente - talvez nunca - aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes”.

E em defesa dessa questão, o pai da psicanálise96 (1997, p.72) ainda assinala:

“Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. (...) O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”

Vejamos que, para Freud97 (1997), a pulsão erótica ordena que o movediço

terreno do poder e da política em torno de um centro onde se erigiria um projeto comum

que, agregando as singularidades, as despojaria de suas radicalidades incompatíveis, ao

94 FREUD, S. A Dissolução do Complexo de Édipo. In: Obras Completas, vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1997. 95 Id. Ibidem 96 Id. Ibidem 97 Id. Ibidem

67

acenar com a possibilidade de atender a anseios comuns a todos. Este centro se constitui

no Estado, onde a figura de um governante carismático, porta-voz do projeto comum,

exerce o papel mediador. O projeto comum personificado pelo Estado e seus

componentes constitui uma representação da força pulsional, que se torna assim visível

e reconhecida. Referindo aqui mais um pesquisador, dessa mesma corrente de

pensamento, Pereira98 (1998) e dizer sem receios que a obra de Nelson Rodrigues

explora os meandros da profundidade psicológica, entendida como busca de uma

simbologia existencial no drama. O referido pesquisador salienta ainda que o universo

construído pelos textos de Nelson Rodrigues é de personagens contraditórios e que as

armadilhas arquitetadas nos seus textos dramáticos, por exemplo, possibilitam, ao

receptor de classe média envolver-se empaticamente com os personagens. Contudo o

seu caráter aparentemente contraditório, quando mistura os sonhos mais ingênuos com o

cinismo, quando aponta o exercício assumido das práticas mais condenáveis na

moralidade burguesa com o grau mais compungido da consciência culpada, atordoam e

apontam para hiatos de identificação com amplas faixas de público moralmente

tradicionalista.

Continuando nossas assertivas acerca do objeto de nosso estudo e tendo como

luz guiadora os autores que vimos apontando, podemos dizer que, além disso, a alusão,

clara ou pressuposta, ao fato de que as figuras apresentadas na obra de Nelson

Rodrigues exprimem o vigor de forças intoleravelmente poderoso, na definição do

destino humano, e estabelecem uma espécie de solo de solidariedade perante a dor e

perante a punição aos excessos exemplarmente apresentados. Nesse sentido, continua a

vigorar a psicologia inerente ao componente trágico que se insere na dramaturgia desse 98 PEREIRA, Victor Hugo Adler. Dessa vez foi mais leve: intensificação e diluição nas leituras de Nelson Rodrigues. Revista de Literatura. Rio de Janeiro, Ano 4, nº 4, 1998. p. 1-16

68

escritor brasileiro. Sábato Magaldi99 (1992) muito bem entendeu que a peça Dorotéia,

de nosso primoroso dramaturgo, é possivelmente a obra mais controversa de todo o

polêmico repertório dramático rodrigueano. Considerada, por críticos e profissionais do

teatro, uma peça-problema, apresenta problemas tão amplos que raramente foi possível

levá-la ao palco. Problemas esses referentes à viabilização da interpretação e até mesmo

encenação. Magaldi100 (1993) considerou Dorotéia como a quarta e última peça dentre

as ‘peças míticas’, sucedendo Álbum de Família (1945), Anjo Negro (1946) e Senhora

dos Afogados (1947). Nesse ciclo, Nelson Rodrigues foi acometido de um crescente

paroxismo de análise das motivações mais profundas e primitivas do ser humano: todas

as formas de atração sexual, incestos, ciúmes e assassinatos familiares. Por meio de uma

linguagem cada vez mais lírica, as quatro peças formam uma espécie imensa analogia à

Totem e Tabu, colocando em relevo principalmente o que Freud mais esquecera naquele

texto: os vários papéis possíveis da mulher na mítica família primeira. Esse tema,

evidentemente, não poderia ser mais impopular, sobretudo naquela época. Além da

censura real (Álbum de Família só foi liberada em 1965), as peças míticas constituíram

fracassos de público e o próprio autor rotulou-se fundador do teatro do desagradável.

Indo além, apoiando-nos em mais um pensador, veremos que, segundo Salomão (1999),

ao ciclo das peças míticas continuou-se aquele das peças psicológicas e iniciou-se o das

tragédias cariocas. Sob todos os pontos de vista é consenso que a maior parte das peças

desses dois ciclos é tão ou mais expressiva que as do ciclo mítico. Mas também é

inquestionável que, deixando à parte o simbolismo intenso, o surrealismo das imagens

no palco e o conteúdo ancorado em raízes tão primitivas, as peças psicológicas e as

99 MAGALDI, SÁBATO. Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. Editora Perspectiva, segunda edição, São Paulo, 1992. 100 MAGALDI, S. Prefácio, in Nelson Rodrigues - Teatro Completo. Volume único. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993.

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tragédias cariocas puderam ser popularizadas com mais facilidade. Divulgação que se

confundiu com banalização, tanto por meio de interpretações excessivamente ancoradas

em elementos reconhecíveis do cotidiano, quanto por meio do excesso da já exagerada

denúncia dos usos perversos da sexualidade e do falso moralismo contidos no próprio

texto. Ou seja, o autor pode ser comercializado e exaltado pelo lado mais escabroso que

sempre o acompanhou e, salvo algumas honrosas exceções, o cinema contribuiu ainda

mais para transformar o ‘poeta trágico’ no ‘tarado de suspensórios’.

Nelson Rodrigues nomeou Dorotéia de farsa irresponsável, classificação que até

hoje provoca longas discussões. Tratando de mitos e formas tão primitivas de

funcionamento da psychê, o dramaturgo aproximou-se também da origem mítica do

próprio teatro, em que tanto a Tragédia quanto a Comédia nasceram a partir dos

mesmos festivais e rituais dionisíacos. Como sabemos, por meio da psicanálise,

antíteses possuem um mesmo significado. Farsa, portanto, não significa superficialidade

mas arquétipo ou estereótipo, representado em cena por meio da frenética ritimicidade

do texto e da sucessão de imagens, muito próximo portanto do furioso arrebatamento de

um festival de sátiros dionisíacos ou do delírio maníaco de bacantes excitadas. No

festival dionisíaco a música arrebatadora e o canto coral, a perda dos limites do eu e da

identidade, a licenciosidade sexual, eram os modos pelos quais as trágicas revelações,

ou seja, as metamorfoses e o despedaçamento do deus, seu renascimento, bem como da

existência como dor universal, podiam ser afirmadas e suportadas. [Não apenas o

trágico e o cômico originam-se da mesma fonte, como também o grotesco e, segundo

Nietzsche101 (1997), o lírico]. Dentre as quatro peças míticas, Dorotéia culmina como

paroxismo tanto do grotesco quanto do lírico, tanto do trágico quanto do cômico, 101 NIETZSCHE, F. A Origem da Tragédia, 8a. edição, 1997.

70

criando um caleidoscópio de formas que se metamorforseiam e se entrelaçam. Em

Dorotéia, Nelson Rodrigues atinge um de seus ápices quanto à concisão formal: apenas

seis personagens — todas, mulheres; duas, protagonistas principais — em um único

cenário e uma única unidade aristotélica de tempo e espaço (Aristóteles, 1992). A

divisão, em três atos, neste caso, é mero cacoete de teatro; a peça pode ser perfeitamente

encenada em um único ato — o que acentua ainda mais sua proximidade com a

Tragédia Grega. Indo adiante, nesta explanação, podemos dizer que um corpo magro,

sem atrativos sexuais, é atributo muitas vezes mostrado, pelas viúvas, como marca de

castidade e de beatitude. Mas as mulheres de Dorotéia, como se percebe ao longo de

todo texto, são obcecadas pelo sexo. Já no início da peça há o paradoxo da censura ao

sonho. Há um domínio da imagem. Imagens que são descritas, pelo autor, por meio da

daquela que caracteriza a Poesia. Paradoxal, Nelson Rodrigues indica que, em termos

cênicos, sempre que algo considerado vergonhoso é dito, aquelas personagens que estão

vestidas de negro devem esconder o rosto, com um leque multicolor. Em Dorotéia, na

concepção de Brandão102 (1992), ainda, no início da peça, a protagonista-título narra o

que pode ser tanto um sintoma histérico quanto uma hamartia (falta cometida), isso que

se configura como desencadeadora da trama de uma tragédia grega, originada da hybris

(desmedida, excesso), ousada pelo antepassado de um genos; paralelo, por exemplo, aos

infortúnios que, por gerações e gerações, assolam a dinastia dos Labdácidas, a família

de Édipo.

O romantismo negado aparece em toda sua força: o pecado contra o amor é tão

grande, para Nelson Rodrigues, que ele não se volta apenas contra quem o comete, mas

o mostra transmissível de geração para geração. Pecado que está bem de acordo com o

102 BRANDÃO, JUNITO DE SOUZA. Teatro Grego - Origem e Evolução. Ars Poética, São Paulo, 1992.

71

aforisma de que não há solidão mais vil que a do sexo sem amor. O enigma-problema,

em Dorotéia, cuja confissão é arrancada pelas suas próprias primas (personagens), é que

até então jamais sentira a náusea familiar, sintomática e histérica antítese do orgasmo. E

Martuscello103 (1993) ainda nos faz reconhecer que a destruição da beleza provoca, na

personagem Dorotéia, uma grande ambivalência que permanece quase até o final da

peça. Mas acaba por predominar um super-eu sádico, reforçado pela identificação com

as suas primas, o que permite a expiação parcial de sua culpa. Para que possa ocorrer tal

processo, deve ela submeter-se a um sacrifício físico: transformar-se de bonita em feia,

adquirindo chagas por todo o corpo através do contágio com um misterioso homem

doente, que vive isolado do mundo, chamado Nepomuceno (nome de um leproso que

também aparece em Bonitinha Mas Ordinária). Desse modo, todas esperam que ela

passe a ter a náusea — prova irrefutável de que se purificou e se igualou às parentas.

Segundo Martuscello104 (1993),

“Nelson utiliza esta inversão de valores para remarcar a repressão sexual em todos âmbitos ou possibilidades de aparecimento da sexualidade, ressaltando a feiúra, a doença, os sacrifícios e todos sofrimentos em geral como valores sempre perseguidos por elas como meio de exegese e ascese espiritual purificadora dos pecados do sexo.”

Nelson Rodrigues utilizou todos os recursos possíveis e conseguiu, mesmo sem

intenção imediata, representar a pulsão de morte, a cisão e a psicose. As imagens

evocadas, intensamente simbólicas e bizarras, não apenas aproximam Dorotéia do

expressionismo alemão e do surrealismo, quanto do sonho. Dorotéia constitui a peça em

que o dramaturgo aproximou-se tanto da linguagem poética — logo onírica —,

evocando de tal modo a fronteira e o recalque entre palavra e imagem. Para isso, teve de

utilizar todo o seu potencial criativo não-verbal. Ao trabalhar esse não-verbal, Nelson

103 MARTUSCELLO, CARMINE. O Teatro de Nelson Rodrigues - Uma Leitura Psicanalítica. Siciliano, São Paulo, 1993. 104 Id. Ibidem

72

Rodrigues produziu intensa reflexão sobre seus mecanismos — desde a análise da

imagem onírica, quanto à criação de um estudo, por meio de figuras cênicas, de alguma

coisa que, só alguns anos mais tarde, recebeu conceituação teórica retomadas de Freud,

tais como: denegação, recusa, preclusão. Ensaiemos portanto a análise de trechos onde a

forma predomina sobre o conteúdo, em relação à imagem onírica e poesia. Para Freud105

(1978) e Lacan106 (1986), o lirismo, como construtor de belas metáforas, ainda sugere a

predominância da criatividade, da pulsão de vida. Por meio de um movimento crescente

de adensamento das imagens, a partir do segundo ato de Dorotéia, o autor aprofundou

ainda mais o texto, como metáfora dos mecanismos e arquétipos inconscientes, e

descreve várias cenas que servem a uma possível discussão tanto acerca dos

desdobramentos da pulsão de morte e do recalque, quanto dos mecanismos de preclusão

e denegação. Através de Dorotéia, Nelson Rodrigues trilhou, a partir de si mesmo e do

teatro, todo o caminho percorrido desde as primeiras formulações do recalque

freudiano, trilhando pelos desdobramentos clínicos e conceituais posteriores, até o outro

extremo teórico-clínico que constituiu o conceito de preclusão. No que tange ao

recalque, propriamente dito, o significante não está ao alcance do sujeito, tendo sido

excluído do campo da consciência, mas pode retornar indireta ou disfarçadamente sob a

forma de sintoma: sonho, neurose, ato falho. A preclusão, pelo contrário, implica a não-

integração, ou melhor, implica em uma não-ascenção ao simbólico. Implica em um

vazio que não pode ser preenchido, posto que o significante não pode ser recuperado e

isso não por estar em outro lugar, mas porque não está em lugar algum e vai aparecer

alucinatoriamente no real. Tanto a recusa quanto a preclusão foram descritas, por

105 FREUD, S. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978. 106 LACAN, J. Os Escritos Técnicos de Freud - Seminário 1. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1986.

73

Freud107 (1978) e Lacan108 (1986), como meios de rejeitar e não aceitar a suposta

castração percebida pela criança, ao observar os genitais femininos. Vejamos que

acontece a recusa e preclusão que nascem da incapacidade para tolerar a diferença

sexual.

Em Dorotéia, o método psicanalítico desvela-nos tanto no que diz a respeito do

conteúdo quanto da forma. O conteúdo dramático de Dorotéia, coerente com sua forma,

reproduz o recalque, bem como outros mecanismos gravemente regressivos, e todos

funcionando para manter a aversão à sexualidade, por meio da mais extrema

representação imagística. Uma interpretação suplementar das personagens representadas

pelas três primas de luto e sua conexão com a pulsão de morte remete diretamente ao

artigo O Tema dos Três Escrínios de Freud (1978). Segundo Magaldi109 (1992),

Dorotéia é, entre as autorias de Nelson Rodrigues, uma das peças menos conhecida.

Raramente encenada, ora descambou para a tragédia solene, ora para a farsa exagerada.

Portanto trata-se de um texto de difícil leitura, tanto como literatura quanto como teatro

em si. Questões de gosto à parte, o fato de Dorotéia lidar com aspectos tão primitivos e

embebidos de pulsão de morte da natureza humana, aponta-nos uma das causas dessa

dificuldade. Para a psicanálise, quando a perda do objeto ocasiona uma renúncia

pulsional, permite que ocorra a constituição do símbolo e do próprio sujeito. Aceitar a

perda, em termos de definitivo ‘para sempre’, de algo, seria o primeiro passo para

recuperá-lo, dentro de nós mesmos, através do símbolo e da palavra; aceitar a morte do

objeto amado seria o primeiro passo para revivê-lo dentro de nosso eu (identificação). A

107 FREUD, SIGMUND. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978. 108 LACAN, J. Os Escritos Técnicos de Freud - Seminário 1. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1986. 109 MAGALDI, SÁBATO. Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. Editora Perspectiva, segunda edição, São Paulo, 1992.

74

denegação possui grande importância nesse deslocamento pulsional, ajudando para que

a falta seja reconhecida e, simultaneamente, não-reconhecida por meio de sua

substituição pela linguagem. A palavra é uma presença feita de ausência, vale dizer, é

negatividade (Castro, 1997)110. Logo, a pulsão de morte possui papel essencial na

constituição da linguagem. Também segundo esse outro pensador — Dias111 (2005) —,

podemos assegurar que a propensão à mistura dos componentes passionais ou

melodramáticos ao tom humorístico é traço estilístico da prosa rodrigueana. A rigidez

mecânica dos personagens rodrigueanos, capazes de exacerbar manias ou tolas

idiossincrasias em obstinações e paroxismos, é primeiramente encarnada pelo próprio

cronista. Os "ideais-tipos" que constituem as criações desse dramaturgo, ao se

manifestarem pela aparência desagradável do grotesco — kitsch ou pornográfico —,

constroem a visão moral da vida, inerente à obra. É justamente esse desconcertante

âmago filosófico, a partir do qual a existência aparece como brinquedo absurdo, que dá,

à pluralidade da produção, artística ou jornalística, um perfil mais ou menos acabado,

conforme o caso, de "meditação dramática"112. Ainda seguindo a concepção de

Sontag113 (1987), da mesma maneira que a dramaturgia, em Nelson Rodrigues as

crônicas, confessionais ou memorialistas, também possuem, de maneira muito

marcante, essa característica reflexiva e intrigante de ensaio. Mas o impulso da

investigação filosófico-moral é de ordem estritamente subjetiva, trabalha movido pela

110 CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997.

111 DIAS, Ângela Maria. Nelson Rodrigues e o Rio de Janeiro: memórias de um passional. Alea vol.7 no.1 Rio de Janeiro Jan/June 2005

112 RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante. Primeiras confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993: 127. 113 SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

75

memória afetiva. A cidade, o país, a vida, em suma, aparecem tecidos pela mão

invisível da recordação, constituindo a violência do que força a pensar. Daí,

exorcizando todos os diabos pela via do "gênero incerto" da crônica, as confissões

exercitarem a memória, como sendo esse "um inventário das exacerbações mais

pessoais"114.

O constante auto-exame das obsessões e interesses mais íntimos, que

impulsionam a recordação, bem como a reflexão dela decorrente, não só explicitam a

natureza difícil e paradoxal do próprio rememorar e a solidão moral de seu agente,

como também transformam a própria escrita em uma espécie de "streaptease" moral, ou

seja, em um ato problemático, meio suspeito, quase obsceno, em termos tanto públicos

quanto individuais. Por outro lado, o ponto de vista do homem comum, do "brasileiro

médio"115 e se, em princípio, funciona como recurso persuasório de aproximação com o

leitor — sobretudo em referências a hábitos de classe —, pode, também, quando

radicalizado em termos morais, espantar ou ainda produzir uma espécie de rejeição pelo

excesso do desnudamento. A mistura entre realidade e ficção, humorismo e seriedade,

depoimento e passionalidade, constitui a temperatura da reminiscência, sempre

distendida na corda bamba entre as "fixações inarredáveis" e a vivência sensível da

cidade como o "grande teatro do mundo".

A travessia rodrigueana, meditativa e humorística, vai, então, regular-se tanto

pelo vaivém da associação de sensações e idéias, entre presente e passado — próximo

ou remoto —, quanto pela imaginação destemperada e capaz de tomar a pólis como

palco de uma realidade e cujas fronteiras com o sonho e a ficção se tornam, muitas

vezes, de difícil delimitação. A perspectiva do homem comum se manifesta não apenas 114 SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987: 82 115 RODRIGUES, Nelson. O remador de Ben-Hur. Confissões Culturais. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.33

76

nas reminiscências das privações infantis; é um sentimento de mundo que caracteriza o

adulto e se imprime nas vivências mais corriqueiras da cidade. Daí os percursos

prosaicos desse indelével escritor brasileiro, no aperto de um "ônibus apinhado", capaz

de enguiçar "na praça Onze" e as fixações de um homem pobre:

“Quando ando de táxi, sinto uma euforia absurda e terrível. Isso vem de longe, vem de minha infância profunda. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. Meu pai deu um passeio de táxi, com toda a família; e eu, na frente, ao lado do chauffeur, teci toda uma fantasia de onipotência. Repito: o táxi ainda me compensa de velhas e santas humilhações.

O ônibus, não. Quando ando de ônibus (e, às vezes, só tenho o dinheiro contadinho do ônibus), viajo como um ofendido e sou, realmente, um desfeiteado. É uma promiscuidade tão abjeta, que eu diria: o ônibus apinhado é o túmulo do pudor”116.

Insistindo nessa exposição, vejamos que, para Dias117 (2005), a visão romântica

e encantatória do mundo, a crença em um absoluto inalcançável, a inesgotável

capacidade de se alimentar das próprias obsessões habitam o âmago da sensibilidade

artística de Nelson Rodrigues e são responsáveis pela correspondência estreita entre arte

e vida. Tudo isso que caracteriza o seu percurso existencial e artístico, seu ser criador

maldito e incurável polemista. Por isso mesmo, suas crônicas confessionais, ao mesmo

tempo em que se ocupam da cidade vivida e sentida, desenham o espaço público da

pólis, e nele configuram o que poderíamos considerar um conjunto de atitudes. A

natureza mística de convertido que o caracteriza, como já observou Ruy Castro,

transforma sua participação política na discussão dos impasses públicos em uma espécie

de ritual dramático, no qual encena vários papéis e para o qual cria um repertório de

116 RODRIGUES, Nelson. Óbvio ululante. Primeiras Confissões. São Paulo, Companhia das Letras, 1993: 25. 117 DIAS, Ângela Maria. Nelson Rodrigues e o Rio de Janeiro: memórias de um passional. Alea vol.7 no.1 Rio de Janeiro Jan/June 2005

77

personagens. A respeito do místico, Cioran estabelece um perfil bastante compatível

com o figurino de Nelson Rodrigues:

“O místico, na maioria dos casos, inventa seus adversários [...] seu pensamento afirma a existência de outros, por cálculo e artifício: é uma estratégia sem conseqüência. Seu pensamento reduz-se, em última instância, a uma polêmica consigo mesmo – ele busca ser e se transforma em multidão, ainda que somente fabricando para si próprio uma máscara atrás de outra, multiplicando suas faces: em que se assemelha a seu Criador, cujo histrionismo perpetua”118.

São inúmeros e inusitados os personagens desse nosso dramaturgo,

multiplicando-se conforme as circunstâncias e a necessidade de criar palcos adequados

à polêmica e de criticar atitudes, visões ou comportamentos. Assim, a cabra vadia e o

terreno baldio — tidos como precondições à veracidade das entrevistas — são usados

ao pé da letra pela televisão, como cenário de seu programa com personalidades da

época. Nada mais verdadeiro para definir a práxis político-reflexiva de Nelson

Rodrigues. O mergulho no dito ‘mau gosto’, característico daquilo que o próprio autor

qualifica de "teatro desagradável", na escrita da crônica memorialista, ganha proporções

sacrificiais, transformando o cronista em uma espécie de ‘bode expiatório’,

autodesignado para purgar as culpas de uma sociedade, na etapa crucial do fim de 1960,

com a perda das liberdades democráticas e, durante os piores momentos da ditadura

militar, no ano de 1970.

Sontag119 (1987), ao falar das "possibilidades estéticas da pornografia como

forma de arte e uma forma de pensamento", observa seu caráter de imaginação

totalizante, ou operante de forma total, capaz de converter tudo ao imperativo erótico.

Por isso mesmo, aproxima-a dos universos da lógica e da religião, já que tudo o que

escapa de suas respectivas polarizações e binarismos é absolutamente descartado.

118 SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 89 119 Id. Ibidem

78

Seguindo o mesmo padrão, a ensaísta aponta o surgimento, durante o século XIX, de

formas novas ou renovadas de imaginação total, como "aquelas do artista, do

erotômano, do revolucionário de esquerda e do louco"120. Para Castro121 (1997, p.330),

já em tanto o apontamos, Nelson Rodrigues, em nossa modernidade, constitui um dos

casos mais completos e acabados de imaginação artística totalizadora, concebendo o

enlace entre experiências-limite, em vários campos da atividade e do interesse humanos:

o erótico; o mais óbvio e disseminado; o religioso, no sentido mais radical — como o do

homem que dizia que "É absurdo o sujeito se demitir da vida eterna, como se fosse um

suicida depois da morte" —; e o filosófico-existencial, ao tentar levar, às últimas

conseqüências, a revelação de nossa "lama inconfessa e encantada".

O proselitismo entusiasmado de toda a imensa obra de Nelson Rodrigues,

apoiado pela repetição e pela economia de meios — aliás, características básicas da

imaginação pornográfica — tem muito de religioso na insistência com que argumenta

em favor de uma espécie de liberação pelo extremo da violência.

Segundo Freud, o sujeito é um estranho portador da fala cuja origem é a palavra

criadora; o sujeito mantém-se sempre numa relação de exclusão interna ao seu objeto,

ao objeto que é a sua causa; o sujeito só surge a partir da sua entrada na cena do mundo.

É na via do retorno, na repetição de uma marca fendida, que o sujeito comparece

gravado na dupla vertente da verdade e do saber. O sujeito é um lugar esvaziado do

sentido comum que se pretenda dar, dizendo, nomeando, como fazemos no senso

comum, o homem. Portanto, o sujeito, de modo algum, é causa de si mesmo. Ele advém

de outra coisa. Surge do significante colocado no mundo. Sabe-se que isto é o momento

em que o sujeito advém na palavra.

120 Idem, p. 72 121 CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997

79

De acordo com Lacan, aquilo que se apresenta no quadro vazio, numa tela, é o

representante da representação que falta. N’alguma coisa que não era possível ser vista,

está o que vai interessar à atitude espectadora, posto que não é o que está pintado o que,

de fato, interessa mas o que isso que está pintado, desenhado, configurado provoca

naquele que o olha. É isso, portanto, que convoca cada sujeito no momento em que se

vê diante de um quadro. É convocado naquilo que tem de mais íntimo e, por isso, vê e

se sente interrogado. Então a partir desse momento de mudança de plano perspectivo,

mudança de posição, o homem pôde ver algo antes jamais visto. Para onde convergem

todos os pontos da perspectiva, chama-se de ponto de fuga. Esse ponto de fuga é, para a

psicanálise, exatamente, o ponto do sujeito. Um quadro, então, enquanto moldura para o

vazio, apresenta claramente o que este tem de estruturante quanto ao sujeito. Esta

questão será central para a história da pintura. O olhar fica escondido na tela, o sujeito

dado a ver no ponto de fuga, olhado portanto pelo quadro, é o direito e avesso de uma

mão em luva. O olhar que não se vê é chamado, na tela, de mancha. A mancha, vela e

revela, num movimento de júbilo e gozo da imagem, e tem como efeito o que nós

chamamos de belo. Segundo Hegel, “a arte se desenvolve como um mundo. O

conteúdo, o próprio objeto é representado pelo belo, como isso que vela esse furo, esse

vazio, esse buraco da morte”. E o verdadeiro conteúdo do belo não é, senão, o espírito.

É o espírito, em sua verdade, ou seja, o espírito absoluto como tal é aquilo que constitui

o centro. É por esse efeito do belo que Lacan nos diz que o sujeito é chamado para

dentro do quadro, ficando preso, siderado, pelo olhar que este lhe devolve. É também o

mesmo Lacan quem nos dirá que o quadro é uma armadilha para o olhar, ou seja,

captura alguma coisa que antes não se dava conta de ver. Mas o olhar, enquanto é

barrado do campo visual por aquilo que tem função de anteparo, ou se a tela é, portanto,

80

um anteparo ao olhar para o sujeito, o quadro pode representar não só o olhar, como

também o próprio sujeito da representação em questão dessa representação que falta.

Freud fez uma abordagem à Leonardo da Vinci por entre seu texto Uma

lembrança infantil, para discorrer sobre a questão da sublimação. Ele fez a análise de

uma lembrança de infância desse pintor renascentista. Nessa sua análise, ele viu aquilo

que está além do desenho, na profundidade do desenho. [Cabe assinalar que Leonardo

da Vinci em seus trabalhos trazia características de perspectiva e anamorfoses]. Aliás,

uma curiosidade interessante para quem não leu os cadernos de Leonardo da Vinci: ele

fez várias anotações. Ele tinha uma mania, podemos dizer, que não era apenas uma

simples mania. Ele sempre fazia pequenas anotações nas margens de seus textos. Fazia

anotações como se fosse em espelho. Nas artes plásticas, o que está em questão é muito

mais uma relação direta com o vazio e com esse efeito de borda da letra que se produz

ali, eventualmente, quando um artista assina a sua obra e o seu estilo possa ser

reconhecido. A assinatura é a definição, a marca de um estilo. E todo estilo é a

significação de um caráter (criador). Sobretudo a escrita poética tem relação com o

exercício perene da letra e com a sustentação direta de um significante. Essa é uma

distinção importante que Lacan fará. Ele faz esse apontamento nos Escritos, no início

dos Escritos, quando fala da Carta Roubada. Fala muito dessa articulação e é nesse

momento que faz uma certa confusão. Uma certa, não; ele mistura o conceito de ‘letra’

com o conceito de ‘significante’ e, só depois, distingue tudo isso.

Em psicanálise, quando se fala de castração, isso significa a perda de sentido,

corte, secção. A sublimação então é um processo pelo qual a força pulsional, isso que

vem do sujeito, que ele não sabe controlar, não tem como controlar e que é constante,

81

limita sua ação ao deslocamento desse investimento e à substituição do seu

representante. Esse processo implica que a inibição do corpo afaste a satisfação sexual.

Para Freud122 (1974) a partir do momento em que o homem ficou de pé, em que

houve um distanciamento do nariz em relação aos órgãos sexuais, a pulsão olfativa

deixou de estar em preponderância e o sujeito ficou de pé. Quando se deu, também, a

oposição do polegar, alguma coisa aconteceu a partir de então transformando o

individuo inteiramente. Podemos aqui afirmar que essas mutações da natureza humana,

isso que veio modificar a pulsão, no humano, ocasionaram verdadeiros fenômenos

estéticos. Queremos dizer: a arte realiza suas mutações a partir daquelas vividas pelo

homem e pela natureza; o fenômeno estético advém do fato estético. E cada mutação é

uma proposta a uma nova forma de gozo. Tentando avançar nessas considerações,

podemos avocar o pensamento de Mendonça123 (2005) : “O artista, então, é alguém que

pode dar o testemunho de uma outra forma de gozar”. E, ainda, para ele

“o estético é uma razão de fato, é a obra, sua gênese e seu efeito e a estética é um suposto-saber sobre a arte. Isto é, sobre o fazer estético. O fenômeno estético, então, é fundamentalmente sublimatório, porque na impossibilidade de nomear o desejo ele manifesta a verdade em seu esplendor; ou seja, no belo, pela presentificação do objeto que chamamos belo. Isto é o que mais se aproxima do campo de destruição que está no centro do desejo. Campo de destruição, enquanto esse furo, esse arrebentamento do sentido. O belo não é uma imagem, mas o afeto, enquanto angústia. Porque para a psicanálise o afeto fundamental que nos interessa é a angústia que faz produzir, que faz trabalhar, ligado à fantasia que permite que toda obra de arte provoque gozo naquele que se coloca na posição de espectador, e também naquele que produz a obra.”

E, para Lacan, o gozo é o real do simbólico — eco da representação que falta.

As criações artísticas introduzem-nos por isso, na relação paradoxal da fantasia com o

122 FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização. Imago, 1974. 123 MENDONÇCA, A.S. A Psicanálise Enquanto uma Erótica (ético-estética) do Luto - Psicanálise & Drama – número 438, 2005

82

significante. Elas representam o que escapa às paixões do narcisismo do artista, não no

sentido pejorativo. Narcisismo disso que para ele mesmo está oculto, ou seja, aquilo que

diz respeito ao seu primeiro traço identificatório e que ele fica tentando reproduzir no

seu objeto e aí vai de um trabalho para outro, de um trabalho incessante na busca de

escrever esse traço originário que foi aquilo que permitiu, num dado momento, que ele

se reconhecesse como tal, seja ele qual for. É disso que falamos quando apontamos a

questão do narcisismo. Não é nenhum adjetivo pejorativo e, então, seu desejo é

esvaziado de todo sentido que conduz o gesto para o encontro com o que, do real da

fantasia, rege seu sintoma. O objeto que permite ao artista criar é o mesmo que nos

mobiliza numa direção oposta à da satisfação obtida no encontro erótico com um

parceiro. A relação do artista com o que ele cria não é idêntica à busca repetitiva que se

estabelece na relação de dependência com o desejo, veiculada nas demandas. Ou seja, a

necessidade de repetir é repetir o traço, repetir a letra, isso que lhe deu origem, isso que

o sustenta. O artista é alguém que, a partir de sua produção, cerca e se acerca do seu

próprio objeto, destacando-o como objeto de gozo e efetuando-o como sua marca. O

artista traz a presença de seu desejo, numa experiência pública do belo. Então, aquilo

que lhe era mais privado, mais particular, ele coloca ao alcance do público. Ele

explicita, para o público, uma realidade invisível e interna a si, produzindo,

eventualmente, efeito de belo. O fenômeno estético, no que pode ser identificável ao

belo, funciona como uma barreira frente ao campo inominável do desejo. Através dessa

configuração do belo, assim exposto, do belo em seu brilho e esplendor, evita-se o mal

radical que Lacan nomeia de campo de destruição, campo do desejo. Campo de

destruição, campo do desejo enquanto algo inominável. (Dizer que o desejo é

inominável não quer dizer que não possamos, de alguma maneira, circunscrevê-lo).

83

Ainda falando sobre sublimação, ainda cabe atentar para com alguns quadros de

Leonardo da Vinci. O quadro, A Virgem dos Rochedos, é um quadro impactante e ao

mesmo tempo nos convoca a seu ponto de fuga, que é exatamente a anamorfose que se

pode ver no braço da figura da Madonna, nesse referido quadro. E o ponto luminoso, ao

fundo esses rochedos, vai repetir-se inúmeras vezes nos quadros desse pintor d

Renascença , especificamente nos quadros da Madonna. Leonardo da Vinci é o primeiro

pintor a produzir um estudo sobre a pintura, na sua técnica do “esfumato”. Ele vai

apresentar, no jogo do claro e do escuro, uma nova perspectiva. Vai apresentar, sem

saber, a localização do objeto proposto na teoria lacaniana. Lacan, no seu Seminário

falando do texto de Freud, a propósito de uma lembrança infantil, vai fazer a suposição

de que a recorrência das Madonnas, nos quadros do Leonardo da Vinci, diz respeito,

justamente, ao fato de que ele sempre permaneceu ligado, atado à sua relação com sua

mãe e talvez esse seja o ponto de sua sublimação. Então, de alguma maneira, ele faz

essas representações das Madonnas indicando aquilo que para ele era uma questão: a

mulher como enigma. Todos os quadros de Leonardo da Vinci nos capturam pelo olhar.

Quando são imagens femininas, sempre há um olhar desviado, um olhar que nos avoca

e, ao mesmo tempo, se desvia do nosso olhar.

A fórmula da criação, proposta por Lacan, evidencia, em seu fundo, em

perspectiva, a castração sofrida pelo sujeito quando de sua divisão. A este efeito de

criação do inconsciente pode-se chamar: sintoma. Freud124 (1978, p.219) distingue

“com o nome de sublimação certa classe de modificação da meta e mudança de via do

objeto na qual intervém nossa valoração social” e fala das “aspirações sublimadas” que

124 FREUD, SIGMUND. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978.

84

põem “sua energia à disposição do desenvolvimento cultural”. Salienta ainda que a

sublimação não pode garantir “uma proteção perfeita contra o sofrimento; não (...)

procura uma couraça impenetrável para os dardos do destino...” e mostra cautela ao não

esperar dela nenhuma promessa quanto aos valores sociais. Freud alude a identificação,

em suas diversas modalidades, como fundamento das constelações estruturais da vida

psíquica e dá conta dos vassalos do eu que servem a vários déspotas simultaneamente: o

mundo exterior, o superego e o isso; acrescentamos: aos ideais. Essa posição freudiana

invalida qualquer concepção possível, em psicanálise, da autonomia ou síntese do eu. O

eu é heterônomo. Lacan125 (1966) assinala, com base em dois eixos da teorização

freudiana: a imagem do corpo (narcisismo) e a teoria das identificações. A partir daí,

formula sua teoria do sujeito: um produto; não, uma causa. Para ele o sujeito é efeito do

significante: “o significante representa o sujeito para outro significante” o que é possível

porque há um lugar no Outro, como lugar simbólico, que avaliza a palavra do sujeito. O

que diferencia o homem do animal.

Freud126 (1978, p.90) mostra a diferença entre sublimação e idealização,

diferença que sustentará em toda sua obra, salvo algumas oscilações. Convém ter em

conta a delimitação que estabelece, neste texto, entre o Eu Ideal e o Ideal do Eu, porque

é o que permitirá entender o conceito de idealização. Para delimitá-los, precisa apoiar-se

no conceito de repressão: “A repressão, já dissemos, parte do eu. Poderíamos precisar:

do respeito do eu por si mesmo (Selbstachtung). Pode-se entender Selbstachtung como a

auto-estima que a imagem que se tem de si mesmo merece, ou seja, o sujeito aparece

“medindo” a si mesmo como estimável, ou melhor, digno de amor, o que nos faz

125 LACAN, J. Le Seminaire, Livre 6, Le Désir et son interpretacion. Paris, inédit, 1966. 126 FREUD, SIGMUND. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978.

85

suspeitar da intervenção de um terceiro, que é o que outorga medida a esse amor. É

importante analisar em que consiste a “formação do ideal”, porque parece consistir em

toda uma estratégia simbólica com a qual o sujeito mede a si mesmo e, para fazê-lo,

precisa de um padrão de medida. Em suma, isto nos fala de uma mediatização entre seu

eu e essa imagem valiosa que tem de si mesmo. Para Freud127 (1978, p.91), “A

sublimação é um processo que concerne à libido de objeto e consiste em que a pulsão se

lança a outra meta, distante da satisfação sexual; a tônica recai então no desvio com

relação ao sexual”. Supõe algo que sucede com o fim da pulsão. É uma via de escape

da repressão. Freud128 (1978) acrescenta que a formação do Ideal do Eu não se confunde

com a sublimação da pulsão, como se costuma mal-entender, porque quem modificou

uma vez seu narcisismo — refere-se à passagem Eu Ideal (Ideal do Eu —, pela

veneração de um elevado Ideal do Eu, não implica que tenha alcançado a sublimação de

suas pulsões libidinais. Parece que o conceito de sublimação precisaria de outra volta no

parafuso, mais além do campo do narcisismo. O que realizou, finalmente, em O ego e o

id. Para Freud129 (1978) a formação do Ideal do Eu exigiria a sublimação, mas não pode

forçá-la; a sublimação continua sendo um processo especial cuja incitação pode ser

estimulada pelo Ideal do Eu — de minha parte, diríamos: aí onde encontra um ponto de

seu fracasso, mas cuja execução é por inteiro independente de tal incitação. Assinalando

esta limitação da idealização com respeito à sublimação, Freud se adianta em

desenvolvimentos que derrubará em O mal-estar na civilização130 (1997) porque a

sublimação nada tem a ver com o que a cultura valoriza como ideais seus. O que se

127 FREUD, SIGMUND. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978. 128 Id.Ibidem 129 Id. Ibidem 130 FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1997.

86

dirige, ao cumprimento dos valores sociais, ao bem-estar, ao “whol” kantiano não pode

confundir-se com a sublimação. Qualquer porvir de uma ilusão está destinado a

espatifar-se. Precisamente, são os “idealistas” que se vêem impedidos de aceder à

sublimação. Desidealizar supõe suportar a inconsistência do Outro e atravessar os

difíceis caminhos do luto pelo pai ideal que deixa, como lastro, na subjetividade, um

estado de dolorosa orfandade, mas também de responsabilidade subjetiva.

A sublimação, para Freud, está ligada às pulsões e consiste no modo mais

criativo de se conseguir um álibi para a satisfação das mesmas, o que se explica porque

a pulsão modifica seu fim e alcança a dessexualização. Aqui, a sublimação se diferencia

da repressão e, efetivamente, é uma via de escape dela. Não precisa do sistema de

substituições (falsos enlaces); não precisa do sintoma que, como retorno do reprimido,

opera via substituição significante. Será preciso, neste ponto, fazer um pequeno rodeio

para nos orientar com uma série de conceitos que Freud precisou retomar e modificar

com relação à teoria pulsional: sua grande mitologia. Para Freud, na sublimação, a meta

da pulsão é trocada. Daí, nosso enigma, pois então a pulsão não se satisfaria em favor

do reprimido que opera na direção da substituição significante — operação que, em

troca, aparece na idealização com o envoltório do objeto. Um grande investimento

libidinal o recobre e o adorna e talvez esteja aí a razão de seu encanto. A ligação entre

idealização e repressão permite a Freud afirmar que a formação do Ideal aumenta as

exigências do Eu, e é precisamente o mais forte favorecedor da repressão. Digamos,

então, que a formação do Ideal é a condição da repressão porque se liga ao complexo de

castração; conceito chave para dar conta da diferença entre sublimação e idealização. A

castração, operação simbólica, instaura a falta e tem como agente o pai real, que

possibilita outorgar significação ao falo. A castração é o elemento princeps do

87

complexo nodular edípico. Édipo não é sem castração. Só pela castração — como

enfatizam Introdução ao narcisismo (1914) e O estranho (1919) — o menino abandona

a posição do Eu Ideal, onde se encontra de posse de todas as perfeições valiosas,

mudando-a para a nova forma do Ideal do Eu. Mas o sujeito nunca se consola desse

abandono e procura, por caminhos substitutivos, o retorno do reprimido. De todo modo,

o Ideal do Eu encontra seu lugar no conjunto das normativas da lei.

Na idealização, o objeto sofre um envolvimento, torna-se disponível porque está

recoberto libidinalmente; aparece como objeto, objetivo postiço. Na sublimação isto não

ocorre e encontramos uma clara orientação em Freud131 (1978, p.342): “Existe, com

efeito, um caminho de regresso da fantasia à realidade, e é (...) a arte”, ou seja, a arte

supõe um retorno à realidade, mas a um novo tipo de realidade, não à realidade em que

acreditamos, mas à de uma falta. Lacan132 (1960) acrescenta que essa falta implica um

reconhecimento da lei do pai morto e da inconsistência dessa lei, de sua falta de

garantia, daquilo que não se recobre. Os homens se unem no reconhecimento de suas

respectivas faltas, de sua comunidade na negatividade, na falta, nesse ponto de Deus

morreu. Para Lacan133 (1960, p.139), dessa forma, a diferença entre sublimação e

idealização implica que na sublimação se suporta uma potência insistente e cruel a partir

do desvio da satisfação sexual, a troca de finalidade se orienta para um mais além do

objeto velado e imaginado, procura o das Ding como tal, a Coisa, o vazio de a-Coisa (o

não dizível). Lacan afirma que, em suma, a sublimação eleva o objeto à dignidade de a-

Coisa... seu direcionamento é o Real, o objeto como causa.

131 FREUD, SIGMUND. The Interpretation of Dreams, in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vols. IV e V. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, London, reprinted 1978. 132 LACAN, Jacques. Le Seminaire, livre 4. Relation D’objet, Paris, Seuil, 1960. 133 Id. Ibidem

88

4. OS REMADORES DE BEN-HUR

4.1. O JORNALISMO EXISTENTE Vejamos, aqui, a presença daquilo que se pode chamar de um amigo real, aquilo

que se torna um modo de presença e de existência. A crônica rodrigueana impõe uma

elipse sobre o retilíneo, estabelece um outro campo de ação da letra, traça uma trajetória

inesquecível. Imortalizada o que constrói, enquanto uma nova edificação do jornalismo

existente. Nela, são descobertos personagens adormecidos pelo tempo, esquecidos pela

história e uma constante recordação de um passado recente. Quem, na verdade, é Ben-

Hur? Trata-se de uma figura desconhecida, perdida na história, um desconhecido

importante em virtude da capacidade de alavancar o remo contra as ondas,

impulsionando a embarcação? Ou seriam vários, esquecidos, lembrados ou

reconhecidos pela alegoria física de mover a embarcação, contra o ritmo das ondas e em

busca de sua rota de chegada. Bem-Hur são vários e muitos. São múltiplos. O

movimento dessa embarcação é assimétrico, lugar de constância, intervém na cultura,

não aposta na reforma da mesma, tal qual Genet e Aristófanes, ao contrário, apostam na

sua dissolução, tem noção da diferença entre gozo e prazer, arte e estética. Sabe da

perseguição que sofrerá, mais não abandona o gozo da escrita, o gozo da letra, a

significação do falante. Retirada do esforço dos remadores do filme homônimo,

daqueles que tinham que trabalhar duro para viver, a coletânea perfaz crônicas escritas,

no período de 1957 até o ano de 1979, reunidas em uma publicação, em 1996, pela

Companhia das Letras, com seleção e organização do escritor e biógrafo Ruy Castro.

Totalizando setenta e sete crônicas, impressas e distribuídas nos veículos, O Cruzeiro,

Jornal O Globo, Manchete e O Jornal do Brasil, foi com certeza um meridiano apenas

153

Fala do delírio que Paulinho da Viola causava. Porque? Em seu entender, é

Paulinho da Viola quem nos dá o Samba Puro.

Foi incessante a pena desse nosso escritor. Escreveu O Chacrinha a Sério, A

Patusca Indira, A Igreja Assassinada, A admirável PUC. Nessa crônica, Nelson

Rodrigues tenta esclarecer a carta de uma leitora que o acusa de não gostar da PUC. Ao

que declara:

“Não gostar da PUC, eu? Deus me livre. E vou mais longe: – não faço outra coisa senão gostar da PUC, dia e noite. Direi mesmo que daqui a duzentos anos os historiadores chamarão este final de século de “época de PUC””. 239

A leitora se ressentia, pois achava que ele tinha insultado uma aluna de

psicologia da PUC, chamando-a de patusca. Esclarece:

“Em primeiro lugar, não disse que todas as alunas de psicologia são patuscas. Nem todas. Tive o cuidado de individualizar. Escrevi sobre uma aluna determinada que, a meu ver, tinha modos, hábitos mentais, ponto de vistas que a tornavam irremediavelmente patusca.”240

Não podemos deixar de mencionar crônicas tais como Os nossos irmãos, Os

jacarés, A grande palavra nova, A divina, Ainda idiotas, Teatro Assassinado, O Cáfen

do Martírrio e Carta pela Anista.

Começa, então, a falar das mudanças na classe teatral. Enquanto antes os

artistas só se preocupavam com o teatro, daí então passaram a se preocuparem com a

realidade brasileira e do mundo. Se preocupam em ser ‘inteligentes’, ou seja, de certa

forma, exóticos.

“Os novos tempos respeitam a vaidade do ator, da atriz, do bilheteiro, do contra-regra, do homem que abre a cortina e fecha a cortina? Resposta: sim. O que se dará, apenas, é uma

239 Idem, p. 261. 240 - Idem, p. 261.

154

substituição de uma vaidade. Antes o profissional se envaidecia dos seus papéis, dos seus autores, de seus repelões. Agora a vaidade é a inteligência, é uma delícia total. Isso no teatro, como no rádio, como na televisão.”241

Nelson ainda diz que só por ocasião da Copa do México é que os brasileiros

descobriram o futebol. E mais: descobriram o Brasil. “Este país foi ruidosamente

ocupado por brasileiros. Só as esquerdas é quem continuavam vietcongs, cubanas,

russas, chinesas etc. etc.” Diferentemente quanto ao automobilismo, pois muitos

conheciam Emerson Fittipaldi que virou célebre facilmente. Antes o Brasileiro tinha

vergonha de ser brasileiro. “Foi esse o maior feito da Revolução: – tornar o Brasil muito

popular no Brasil. O Brasil não humilha mais o Brasil. (...) Com exceção das esquerdas,

que são marginais do processo brasileiro, todos estamos potencializados, da cabeça aos

sapatos”. O episódio do prêmio brasileiro, ganho pela Caixa de fósforo, foi para Nelson

Rodrigues o inicio do Brasil-Brasil. Nas ruas, abríamos os braços uns para os outros: –

“Ganhamos! Ganhamos!” “E era uma euforia de vitória pessoal. (...) Momentos assim

tivemos, mais tarde, com a volta de Rui Barbosa. Chegou aqui como a Água de Haia.

Rui foi amado por nós porque era inteligente. (...) Agora há um novo Brasil”. Emerson

Fittipaldi, por exemplo, é um novo brasileiro.

Chegando ainda mais perto da música, Nelson Rodrigues apresenta aquela que,

segundo ele, é

“A única divina de toda a história carioca e brasileira. Eis seu nome: – Elizabeth Cardoso. Não é atriz, claro (e seria também se o quisesse), mas cantora popular, a maior de todos os tempos, nesse país. Numa época de contestação ninguém contesta. Há em torno de Elizabeth uma unanimidade. Eu próprio disse, certa vez, que toda unanimidade é burra. Nem todas, porém. De cinqüenta em cinqüenta anos aparece uma unanimidade cujo julgamento é preciso, inapelável, eterno, como o Juízo Final”.

241 Idem, p. 267.

155

Por fim, diz: “não a chamem de Elizeth. Digam Divina, sem sobrenome.”

Nosso dramaturgo conta que, uma vez, foi criticado no jornal por estar falando

muito sobre teatro. Descobriu que a pessoa não sabia que ele, Nelson Rodrigues, era um

Dramaturgo e, por isso, tinha plenos direitos. Desconfiou, então, da existência do teatro.

“Comecei a desconfiar da existência do teatro brasileiro. Sendo assim, tenho feito uma coisa que não existe, ou seja, teatro, e escrito sobre um assunto que também não existe, ou seja, ainda e sempre teatro. O pior é que se trata de um amigo meu, e íntimo, de um sujeito que viu, inclusive, peças minhas. Ora, tenho trinta anos de dramaturgia. Como diz a minha vizinha gorda e patusca: – “Trinta anos não são trinta dias”. Pois bem. Depois de trinta anos chega a um amigo, olha-me de alto e baixo e pergunta, num desolado escândalo: – Você é dramaturgo? (...) e então, no meu divertido horror, julguei compreender o abismo que se cavou entre o teatro e o brasileiro. Desde Pero Vaz de Caminha não se formou aqui uma platéia teatral. O sujeito vai uma vez e não volta. Ou só volta daí a dez anos. Os nossos profissionais deviam fazer apenas teatro. Em vez disso, começam a pensar, isto é, pensam que pensam. Resultado: – o freguês quer ver A ré misteriosa, uma Dama das Camélias, uma Maria, a desgraçada”.242

Dramaturgo, compreendeu que a cena brasileira é uma sugestão primeira a ser

encaminhada ao palco, a ser exibida. E assim se fez homem de teatro tanto quanto um

cronista da vida brasileira ou um escritor, em toda essência..

242 Idem, p. 282.

156

CONCLUSÃO

“Penso somente onde não existo, portanto, só poderei existir onde não penso”. (Jacques Lacan . A Instância da letra no inconsciente e/ou a razão desde Freud, In...Écrits, Paris, Seuil, 1966).

A notória preocupação e o considerável aumento das dissertações e trabalhos

científicos, no meio acadêmico, sobre Nelson Falcão Rodrigues, recortam de maneira

contundente a importância da imortalidade desse autor. A pesquisa aqui empreendida

nos permitiu ver que Nelson Rodrigues vive, através de sua obra, o desejo de superar a

imobilidade do corpo, seu perecimento e sua finitude, já que no processo criativo do

artista ele dá corpo ao sujeito que o habita.

Artífice e recriador de um estilo que vai mesclar o desmantelamento do censo

comum, o dramaturgo brasileiro busca o paradoxal para dele extrair a sua obra. Chama

o leitor a um sentido não percebido, ao detalhe que foge do fato. Vimos também que sua

escrita confere uma imagem àquele que escreve, sendo essa imagem uma borda

inventada, com manuseio lingüístico primoroso, a partir da língua, a partir da narrativa.

O texto de Nelson Rodrigues vem evidenciar um sujeito. Trata-se da escrita que mostra

não somente as lembranças do homem escritor, mais que explicita sobretudo o lugar do

desejo, onde subvertendo as leis naturais da paranóia, do jornalismo tradicional e o do

lead, usando a própria estética da cultura de massa (o folhetim) para descompassar a sua

genética e genealogia, vem roubar-lhe o tempo e dotá-la de lógica. Vimos que o

controle do cotidiano e o vazio da paixão são sentimentos estéticos que se fazem

presentes em suas obras. Sintática e semanticamente o escritor cria um novo modo de

157

instrumentalização, de literatura. Uma forma singular de falar da realidade do

inconsciente, através da ficção. Vimos também que, em função da natureza de sua

sociedade, Nelson Rodrigues expressa uma idéia clara face ao que diz, face às regiões,

face às pessoas a que refere. Ele reconta sua própria historia. Expõe o tema a esse volta,

pontuando sempre essa ação ou situação por meio da chancela ou da máxima que lhe

espiritualizaria. Vimos que Neçson Rodrigues emblematizou a significação, como se

quisesse extrair, desse complicado traçado, um tecido a meias palavras ditas, no termo

que lhe escapa. A polissemia de ações e personagens e situações não se dá por acaso

muito mais do que uma preocupação em precisar os lugares, os objetos, ou as pessoas

para além da simples descrição ou alegoria. As pessoas ou situações vão ganhando

formas lógicas. ao longo da narrativa – foi o que vimos e concluímos. Seus “pobres

textos” a juízo de alguns detratores, vimos, são um mistério, um sintoma, cuja

dificuldade de descrevê-los é uma verdadeira encruzilhada a decifrar seus achados no

risco da obra, no desenho e no silêncio da imagem.

Tivemos o enorme prazer de ver e aprender que Nelson Rodrigues soube, como

poucos, distinguir ‘mulheres’ da mulher (ser amado), traçando, em um texto por vezes

cáustico, o olhar de uma trajetória que sabia, com maestria, separar o amor da histeria

— assim como da culpabilidade neurótica —, traçando um assujeitamento constante ao

amor verdadeiro. Vimos que o dramaturgo em questão soube o que é e o que não é

traição, por meio de seu perdoa-me por me traíres, assim como soube ver, no

casamento, um atestado ideológico da moral burguesa cristã, na sua promessa da junção

paixão e amor. E vimos, entre tantas outras coisas mais, que o escritor em estudo

reconheceu que o amor a dois é o amor em um só, posto que “amar é ser fiel a quem

nos trai”.

158

Por meio da luz recebida da psicanálise, vimos a obra de Nelson Rodrigues, em

sua dimensão dinãmica. Vimos ainda o que Lacan considerava a respeito de Genet,

como vimos que Lyotard acreditava que um autor moderno era aquele compatível com

a supremacia das narrativas de legitimação. Nossa maior conclusão é que Nelson

Rodrigues é um verdadeiro “Kant com Sade”, brasileiro e urbano, que não via distinção

nenhuma entre o moralismo popular das vilas do subúrbio e o “cristianismo burguês” da

classe média alta, ou seja, “a perversão nossa de cada dia”.

159

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