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Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro A POÉTICA DO MITO A POÉTICA DO MITO A POÉTICA DO MITO A POÉTICA DO MITO Diego de Figueiredo Braga Pereira Diego de Figueiredo Braga Pereira Diego de Figueiredo Braga Pereira Diego de Figueiredo Braga Pereira 2008 2008 2008 2008

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Universidade Federal do Rio de JaneiroUniversidade Federal do Rio de JaneiroUniversidade Federal do Rio de JaneiroUniversidade Federal do Rio de Janeiro

A POÉTICA DO MITOA POÉTICA DO MITOA POÉTICA DO MITOA POÉTICA DO MITO

Diego de Figueiredo Braga PereiraDiego de Figueiredo Braga PereiraDiego de Figueiredo Braga PereiraDiego de Figueiredo Braga Pereira

2008200820082008

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A POÉTICA DO MITO

Diego de Figueiredo Braga Pereira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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PEREIRA, Diego de Figueiredo Braga A Poética do Mito / Diego de Figueiredo Braga Pereira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. x, 185f; 30 cm. Orientador: Manuel Antonio de Castro Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Poética), 2008. Referências Bibliográficas: f. 197-201. 1. Mito. 2. Poética. 2. Ulysses. 3. Fernando Pessoa. I. Castro, Manuel Antonio de. II. UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Área de Poética. III. Título.

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A POÉTICA DO MITO

Autor: Diego de Figueiredo Braga Pereira

Orientador: Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação m Ciência da Literatura (Poética), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética). Aprovada por: Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro (Presidente) Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez Prof. Dr. Antonio José Jardim e Castro

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Um mito guarani diz que a divindade se ergueu no escuro iluminada por seu

coração e criou o amor e a linguagem, mas não tinha para quem dá-los. Então deu aos deuses a música para que a doassem aos homens e às mulheres, pelo que o amor se fez comunhão, a linguagem se fez vida. Assim a divindade passou a acompanhar as mulheres e os homens que caminhavam cantando: Estamos pisando esta terra reluzente! A quem caminha e canta comigo, pisando a terra reluzente: Lola e Luiz; Daniele; Manuel; Antônio e Andréia; E a todos os amigos.

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Este trabalho foi realizado com o auxílio da Bolsa de Mestrado concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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os vivos sozinhos não tecem o horizonte precisarão de um morto que do céu estenda

à terra as mãos com seu clarão de lua à noite e o sol que nas manhãs inventa

o despertar do fim em quem por ele é busca - Igor Fagundes

Aquilo que é torto não se pode endireitar;

aquilo que falta não pode ser calculado. - Eclesiastes 1:15

qual maçã que amadurece, doce,

dentre os ramos mais altivos, rubra, e se vela aos que recolhem pomos –

não a esquecem, mas jamais a alcançam. - Safo de Lesbos

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RESUMORESUMORESUMORESUMO

PEREIRA, Diego de Figueiredo Braga. A Poética do Mito. A Poética do Mito. A Poética do Mito. A Poética do Mito. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura, área de Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Esta dissertação perfaz a experiência de pensamento no horizonte próprio do acontecimento mítico, em que o mesmo não pode ser representado, conceituado, medido e calculado. Uma vez que o modelo metafísico-científico de pensamento se instaura como obliteração do vigor mítico e a conseqüente separação entre mito e verdade, a experiência de pensamento que aqui se realiza busca aproximar o mito de sua vigência poética originária. Para a realização desta experiência seguiu-se o poema Ulysses, da obra Mensagem, de Fernando Pessoa ao modo da escuta de sua constituição atual e permanente como obra, perfazendo-se assim uma hermenêutica que não se deixa limitar pelos ditames epistemológicos tradicionais de método e teoria. Deste modo este trabalho se projeta como empenho de ser aquilo de que trata.

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ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT

PEREIRA, Diego de Figueiredo Braga. A Poética do Mito. A Poética do Mito. A Poética do Mito. A Poética do Mito. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura, área de Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

This dissertation performs the experience of thinking within the horizon proper to

the mythical event in which it cannot be represented, conceptualized, measured and calculated. As long as the metaphysical-scientific model of thought is established upon the obliteration of mythical vigour and the following separation of myth and truth, the experience of thinking that happens here is an attempt to bring myth and its originary poetic effectiveness together. In order to fulfill this attempt, the poem Ulysses from the work Mensagem by Fernando Pessoa is accompanied in the process of hearing of its actual and permanent consistence as a work, and a sort of hermeneutics that is not limited by epistemological standards of method and theory is so performed. Therefore this work projects itself with the intent of being that which it deals with.

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SUMÁRIO

Introdução 11 I. Ulysses 14 II. O mytho é o nada que é tudo 32 III. O mesmo sol que abre os céus 60

É um mytho brilhante e mudo IV. O corpo morto de deus 99

Vivo e desnudo V. Este que aqui aportou 131

Foi por não ser existindo Sem existir nos bastou Por não ter vindo foi vindo E nos creou

VI. E assim a lenda se escorre 166 A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. VII. Embaixo, a vida, metade 183 De nada, morre. Conclusão 195

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Para as questões fundamentais não é possível introdução, porque jamais estamos

fora delas. Neste sentido, “mito” é uma questão fundamental. Portanto, esta introdução

não quer mais do que apresentar brevemente o percurso pelo qual nos encaminhamos

pelas vias desta questão neste trabalho, nomeando suas referências fundamentais.

Nossa pesquisa se iniciou como um diálogo com as principais obras da tradição

metafísica e científica que procuram tratar do mito como tema ou problema. Neste início,

ainda não tínhamos chegado ao princípio. Viemos, então, a compreender que jamais se

poderia pensar de modo próprio a questão “mito” se não se a tratasse devidamente como

questão. Daí surge o caminho pelo qual se realizou este trabalho, porque questionar de

modo próprio requer a colocação apropriada da questão. Neste sentido, questionar de

modo próprio não é apenas perguntar, produzir um enunciado interrogativo adequado. Se,

para os fins deste trabalho, simplesmente nos perguntássemos: “o que é o mito?”, nesta

nossa enunciação interrogativa correta já estaria pressuposto que o mito é algo, e assim

nada do que se fez aqui teria acontecido. Nosso trabalho não se diferenciaria de toda

tradição científica e metafísica em que se concebe sempre a essência daquilo que se

procura conhecer (neste caso, a essência do mito) como um ente, como algo representável,

conceituável, mensurável, resultando numa definição teórica mais ou menos complexa.

Não seria uma contribuição, ainda que pequena, tal como consideramos ser este trabalho.

Questionar de modo próprio não é estabelecer a interrogação correta, mas escutar

apropriadamente a questão tal como ela se nos apresenta. Então, consideramos: como o

mito se nos apresentaria como questão e não como tema ou problema, tal como no

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pensamento metafísico e na ciência? Compreendemos que o único dizer que não nos dá

definições conceituais nem nos apresenta problemas é o dizer poético. Assim, para

realizarmos uma caminhada de pensamento, questionando de modo próprio a questão

“mito”, teríamos que escutar esta questão apresentada numa poética. A poética do mito nos

veio ao encontro no poema “Ulysses”, do livro “Mensagem”, de Fernando Pessoa.

Aproximamos, então, nossa escuta da poética deste poema, para ouvirmos o mito como

questão. Assim, o percurso deste trabalho segue o dizer deste poema. Buscando, nesta

escuta, pensar e compreender o sentido e a verdade da questão “mito”, fomos

desenvolvendo este trabalho.

No primeiro capítulo pensamos o que é uma questão, o modo próprio de

questionar, para que assim possamos compreender o “isto” do mito, e não apenas buscar

elaborar uma teoria acerca do mesmo, nem elaborar uma definição que represente sua

essência em geral ou propor um método para que se o possa conhecer. Procuramos mostrar

que a “escolha” do poema não é algo subjetivo nem objetivo, pois a relação sujeito-objeto

pertence apenas à epistemologia, não ao pensamento. No segundo capítulo pensamos o

mito no horizonte do ser e do nada. Para isso, foi necessário dialogar com uma ontologia

que não determinasse metafisicamente o ser como ente. No capítulo seguinte, pensamos o

mito no horizonte da linguagem, e para tanto foi um passo fulcral libertar a linguagem de

seu entendimento como veículo de expressão subjetiva de idéias e emoções ou como

representação objetiva de fatos contextuais ou transcendentais. No quarto, pensamos o

mito no horizonte do sagrado e do profano, do divino e do humano, tentando libertar este

horizonte de sua circunscrição meramente religiosa. O quinto capítulo é a procura de uma

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compreensão originária da historicidade do mito para além da historiografia. Em seguida,

dedicamos o sexto capítulo à questão da realidade e da lenda, sem pressupor que o mito

corresponde à lenda, a partir de um reflexão aprofundada do que seja realidade. O sétimo e

último capítulo procura então pensar de modo próprio, à luz do tratamento dado às

questões anteriormente pensadas, o nome do poema, Ulysses, e a palavra mito, cuja

etimologia é pensada e não apenas mencionada. Quanto à questão “vida-morte”, pensamo-

la como horizonte da própria travessia existencial que somos. Se não pudermos

compreender que nós somos aquilo que compreendemos não será possível compreender

praticamente tudo o que se vai dizer aqui.

Diego Braga Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2008

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I. UlyssesI. UlyssesI. UlyssesI. Ulysses

Por que um trabalho que se propõe a pensar a questão do mythos teria o seu

capítulo inicial intitulado “Ulysses”? Antes, ainda, de onde nos vem esta questão – “mito”?

Será que esta questão, “mito”, é tomada aleatoriamente dentre tantas possíveis ou

subjetivamente de acordo com a vontade? Ou será que a questão é sinônimo de um

problema objetivo, que deve ser solucionado a partir da elaboração de uma hipótese que se

constitua, uma vez comprovada, em tese? Ou ainda, será que numa dissertação nem sequer

se nos imponha uma tal obrigação e apenas espere-se a elaboração detalhada de uma

opinião ou ainda o amálgama de um conjunto de opiniões? Não se pode responder a estas

perguntas sem que antes se pense, um mínimo que seja o suficiente para nos dar alguma

indicação do caminho, o que seja uma questão. Tal tentativa, por outro lado, já dá ensejo

ao percurso do trabalho, sem que seu curso seja predeterminado por respostas prévias às

perguntas acima formuladas. Para se pensar qualquer questão, sobre qualquer

“perspectiva”, é necessário uma compreensão do que seja inicialmente uma questão.

Este nome – Ulysses - evoca uma narração inaugural pelo nome de seu herói. Muito

já se disse sobre Ulysses e sobre a Odisséia, sobre como este herói se encontra perdido

numa viagem de retorno, de tal modo que a cada vez que nos debruçamos sobre tal obra -

a Odisséia de Homero – deparamo-nos não apenas com um imenso mar de sentidos e rotas,

mas sobretudo com uma imensa e originária possibilidade de permanecermos à deriva

neste mar. Fala-se, comumente, no “mito de Ulysses”, dentre outros. Este nome, Ulysses,

também, é o do primeiro de uma série de poemas intitulada “Castellos”, dentre as séries

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que compõem o conjunto chamado de Mensagem1 – que é uma das obras publicadas por

Fernando Pessoa em vida. Nesta obra, Mensagem, apresenta-se a experiência de navegar

como procura e conquista daquilo que, em se conquistando, perde-se. Estamos na procura

de pensar o que seja questão. Assim, estamos como Ulysses, entregues às mais diversas

possibilidades de sentido, de caminhos, de percurso. Não é por acaso que buscamos como

indicação a imagem-questão de Ulysses: sua errância é desde o princípio um retorno.

Porque uma questão permanece como questão apenas num constante retornar das questões

e um constante aventurarmo-nos nas questões. Por isso a aventura de retorno na imagem-

questão de Ulysses pode nos ajudar na procura da essência da questão. Ulysses volta para

casa e anseia apropriar-se do que lhe é próprio, aquilo que a ele pertence na medida em

que ele lhe pertence. Estamos numa questão já na medida em que procuramos pensar o

que é uma questão, pensar como ela vige enquanto questão, pois estamos, ao mesmo

tempo, numa busca e num retorno. Queremos algo que já nos pertence, como questão, na

medida em que, como questão, já lhe pertencemos. Mas como assim?

Não é possível haver introdução às questões. Para haver uma introdução, é preciso

que antes estejamos fora daquilo a que somos introduzidos. Só podemos ser introduzidos

aos conceitos, às determinações e concepções, aos sistemas e visões de mundo – porque são

delimitações que, incluindo algo, excluem, necessariamente, algo. Uma questão, por outro

lado, não é uma delimitação, mas a própria liminaridade que constitui, possibilita e

sustenta toda delimitação. Uma questão não é uma definição, um conceito, um sistema –

isto todo mundo já percebe – mas também não é algo vago, muito embora seja uma

1 PESSOA, 1972, p. 72.

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abertura. Abertura diz de algo que no âmbito dos limites está aberto. Por exemplo,

imaginemos uma porta que separa o interior da casa do exterior da rua. Fechada, ela seria

algo como um conceito, um limite fechado. Aberta, ela já seria mais como uma questão,

porque, aberta – dando passagem – ela ainda preserva a marca de liminaridade entre a rua

e a casa. Ao passarmos pela porta aberta, podemos dizer quando ainda estamos na rua e

quando já estamos em casa. A liminaridade da questão diz isso, de modo ainda mais pleno:

diz que estamos sempre nesta abertura (aquilo que é, literalmente, limitado por nada),

nesta referência entre limite e não-limite, entre um saber (presença sem a qual sequer nos

perguntaríamos, nos empenharíamos na e pela questão) e um não-saber (ausência sem a

qual também não nos empenharíamos na e pela questão). A palavra “pergunta” já traz

neste “per-“ o sentido de porta, de perímetro (marca de um limite), de perfeição (no

sentido original de circularidade) e, do modo como entendemos esta palavra, apesar do

“campo semântico” remeter a coisas feitas e fechadas, bem sabemos que a pergunta é

sempre um caminho, uma passagem2. É que os “campos semânticos”, por si, pouco nos

dizem das experiências originárias e próprias: pouco têm que ver com pensamento. Na

imagem da porta de casa, a questão nos remete para o retorno àquilo a que pertencemos.

Não é possível uma introdução às questões, da mesma forma em que não podemos ser

introduzidos, apresentados à nossa própria casa.

Em muitas das opiniões sobre o que Ulysses representa, diz-se que o herói

representa a própria condição do homem. Ocorre que não representa no sentido de dar

uma idéia, de delimitar uma determinada concepção de homem, senão no sentido da

2 Este sentido de liminaridade do limite no horizonte grego da questão da obra de arte encontra-se em HEIDEGGER, 1960, p. 88 e passim.

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reapresentação a cada vez exigida do homem na liminaridade do estar sempre

apropriando-se do que lhe é próprio, retorno ao que pertence e aonde já está; por dizer que

o homem é sem essência, no sentido de que não se apreende o que seja o homem a partir

de um conceito, qualquer conceito, ou pela soma de todos os conceitos de homem. As

ideologias diversas, que marcam catástrofes históricas do homem, baseiam-se sempre em

conceitos de homem, por isso violentam o que o homem é: estar sendo. “Estar sendo” diz:

estar numa liminaridade, a caminho na medida em que está no caminho e se põe a

caminho. Assim, portanto, o homem é questão, porque já está desde sempre na vigência do

questionar, sendo ele mesmo, em sua existência, verdade e historicidade, uma questão.

Qualquer questão só é uma questão do homem porque o homem é uma questão e se

apropria da questão, isto é, apropria-se do que lhe é próprio.

Queremos que a essência do mito venha ao nosso encontro. Consideramos que para

ser conceito, antes de ser conceito, depois e apesar de ser conceito – qualquer um – que

permita a construção de uma teoria que dê conta da totalidade do fenômeno mítico, o mito

sempre precisa acontecer como fenômeno, precisa se dar enquanto mito. Portanto, antes

de recorrermos apressadamente a tal ou qual teoria, para adotá-la ou criticá-la, tentamos

refletir um mínimo sobre o que seja esse modo originário de ser mítico. Esta reflexão pôs

diante de nós não apenas um caminho em que já estamos, mas uma caminhada em que nos

encontraremos... na e com a questão. Mas por que, afinal, a questão do mito?

Ulysses, o poema-porta (pois que nos abre os Castellos), é uma abertura delimitante

da Mensagem de Fernando Pessoa. É porta, é abertura para um “livro” que traz, como

dissemos, a experiência de navegar como procura e conquista daquilo que, em se

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conquistando, perde-se. Pelo que brevemente consideramos, podemos notar que, ao se

adotar um conceito, um sistema, uma concepção, perde-se o vigor da questão. Não

exatamente que este se perca. Antes, esquecemo-nos dela, ficamos como que surdos à

questão. Deixamos até mesmo de perceber que qualquer conceito, qualquer concepção e

sistema só vem a ser o que é a partir da questão que lhes deu ensejo, de um modo tal que se

fundam e originam na questão, e só permanecem na medida do vigor então oculto da

questão. Então – outro aceno – questionar é estar na procura do originário de todo

originado. É o que se perde em toda conquista, que se ausenta em toda mera presença tão-

somente presente. Não que isso seja algo como um defeito, uma falha. É próprio da

conquista trazer consigo sempre uma renúncia, uma perda, um esquecimento – de modo

que a conquista só é plena se ela acata e traz consigo renúncia, perda e esquecimento não

como falhas inevitáveis, nem como algo perdido, esquecido ou renunciado, mas como a

própria medida do conquistado, isto é, o que não se conquista em toda conquista: o

horizonte da conquista. A própria palavra “conquista” nos fala de um cum-quaerere, um

“com-querer” em que o querido e o querente estão um com o outro a partir do que lhes é

originário. Fala-nos da proveniência do querer que reúne querido e querente provindo,

ademais, do verbo latino de onde se origina também a palavra questão.

A opinião mais comum sobre o mito, no percurso histórico do ocidente, é a de que

ele foi a primeira conquista. Tanto no sentido de um fazer e pensar primeiro, como da

primeira condição a ser superada, no primeiro passo de superação, segundo a concepção de

que a história se constitui de uma sucessão de condições que se vão superando umas às

outras, seja como evolução ou simples mudanças estruturais de épocas. Ao mythos segue-se

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o lógos, entendidos, respectivamente e de modo abrangente, o primeiro como estória

fictícia e o segundo como pensamento racional. Ainda que haja aqueles que acreditam ser

suficiente constatar que nesta superação ainda resta um pouco ou tanto de mythos em todo

lógos, ou aqueles que dizem apenas superficialmente não se tratar de uma superação e sim

de mera mudança na estrutura do pensamento e da cultura, ainda assim, na medida em que

adotam a posição – e uma bem determinada representação - do lógos para apreender e

entender, conceituar e conceber o mythos, decerto afirmam a superação que apenas

superficialmente negam por um lado, e confirmam a total rejeição do vigor do mythos por

outro. Não pensamos que o mythos opõe-se ao lógos de modo incompatível. Apenas a

partir das representações diversas de lógos, baseadas na concepção metafísica deste como

razão e discurso do homem, é que se vai derivar um conceito de mythos que e é ou

categoricamente inferior ou conceitualmente incompatível com o lógos.

Portanto, nesta suposta conquista, que não é conquista originária, algo se perdeu de

modo que seu vigor já não é mais um apelo ao pensamento. Na conquista do mito, este se

perdeu. Esta não é uma mera constatação, não pode permanecer assim, como mera

afirmação. Esta perda, se é para ser renúncia, retração originária – questão – que de fato

possa configurar uma conquista originária, perfaz um horizonte de questionamento. A

questão do mito, o mito como questão, não é uma escolha subjetiva, nem um problema

objetivo. É nossa historicidade, nossa presença, nossa existência em seu sentido e verdade –

porque ela traça o destino de nosso percurso, mas também acena a possibilidade do porvir.

Porquanto isto que se perdeu, isto que já não mais se escuta, isto é o que requer nosso

empenho para que venha a ser aquilo que isto é: uma questão. Ou seja, na medida do

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abafamento de sua voz por que cada vez mais a ciência se esforça, nesta medida é que

justamente o mito reclama sua vigência, num clamar calado que nos conclama ao

questionar. O mito como questão, aqui, é reconduzir o mito ao seu vigor de questão – e

isto não é uma escolha nossa, porque já somos, todos, desde que somos, questão, e o que

nos clama como questão é sempre o mais silencioso, o mais velado. O mito aparece em

nossa caminhada como o mais calado em todas as certezas proferidas a todo tempo.

Também não é só um problema objetivo, objeto de um sujeito, posto que é o próprio

horizonte em que estamos inseridos em nossa historicidade: de uma forma ou de outra,

ainda que como oposição ou estágio superado, o mito é sempre o âmbito a partir do qual a

verdade metafísica e científica se determinam, posto que é aquilo a que estas se opõem ou

que as mesmas superam. A questão do mito é incontornável – eis o mito da questão.

Assim, estamos sempre no horizonte do mito, cabe questioná-lo, para compreendê-

lo. Como questioná-lo? No empenho de perseguir esta questão, buscamos um aceno. Este

aceno, conforme o que foi considerado acima, não pode ser uma definição, uma teoria, um

sistema, que bloqueie o questionamento, porque circunscreve já uma delimitação fechada,

e não deixa que a própria questão instaure a abertura do horizonte em que nos movemos.

De onde pode nos vir um tal aceno que seja aceno, de fato, que seja convite e convocação?

Que seja não palavra de ordem e instrução que previamente já determina de onde se vem,

como e para onde se deve ir? É um aceno que orienta, que nos dá algo, mas ao mesmo

tempo se retrai. Este é o tipo de aceno que possibilita toda e qualquer procura.

O mais imediato que nos é dado como questão do mito é a palavra: mito. É uma

palavra de origem grega, e ao longo de sua história foi concebida de diversas maneiras. A

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palavra bem poderia nos dar o tipo de aceno próprio de um questionamento. Mas ela traz

consigo o perigo de tomarmos o seu significado tal como se apresenta nos dicionários e nas

etimologias como se estes significados já não fossem estabelecidos a partir de certas

concepções sobre linguagem, verdade, pensamento, e outras questões fundamentais. De

modo específico, os dicionários e o saber etimológico se estruturam a partir de concepções

de linguagem, de verdade e de pensamento que instauram exatamente o percurso histórico

em que se obliterou o vigor do mito, a que aludimos anteriormente. Diante desta

constatação, fica sendo duvidoso o recurso de nos basearmos nos dicionários e etimologias

se queremos pensar o mito na plenitude de seu vigor, reconduzi-lo à vigência de questão.

Também as teorias científicas ou sistemas filosóficos talvez sejam duvidosos para esta

tarefa, pelo mesmo motivo. Até mesmo as concepções religiosas de mito podem ser

duvidosas, uma vez que a própria noção de religião pode se dar como um conceito de

fundamentação científica ou filosófica. Mas não iremos descartar, ao menos a princípio,

nem os dicionários, nem as teorias científicas ou sistemas filosóficos: 1) porque eles

também constituem o próprio horizonte onde estamos inseridos, e esta questão do mito é

uma questão atual, em todos os sentidos; 2) porque não podemos tomar dúvidas como

certezas. Onde então, o aceno?

Muito embora, pelo esforço de nos mantermos no questionamento, já estejamos

caminhando nas raias do questionar, o mito se pôs em questão como mito, mas com isso já

nos escapou. Isto é mesmo próprio de qualquer genuína questão, como vimos. O próprio

mito, como palavra, se mostra como questão, mas a partir de uma advertência que surgiu

devido à reflexão em torno do questionar e do nosso percurso histórico percebemos que

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seria incauto e apressado lançarmos mão dos dicionários e das teorias científicas e sistemas

filosóficos, posto que se configuram como a própria obliteração do vigor do mito. O mito

nos coloca, assim, numa aporia. Mas a todo tempo, desde o início deste trabalho, viemos

percorrendo questionamentos que se costumam considerar como “filosóficos”. Como,

então, podemos afirmar que não lançaremos mão de sistema filosófico algum? Ocorre que

filosofar e lançar mão de um sistema filosófico são ações bastante diferentes. Em sentido

próprio, não há algo como uma “questão filosófica”, como se pudesse haver questão que

não o fosse. Neste sentido, filosofia já não é sistema, mas pensamento. A filosofia assim

vigente tem seu vigor no questionar que, de acordo com o que ficou dito acima, pode ser

entendido como o que Heidegger nomeia de “correspondência do ser ao ente”, pois:

Não há dúvida que a correspondência ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas só de tempos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nós e aberto a um desenvolvimento. Só quando acontece isso correspondemos propriamente àquilo que concerne à filosofia que está a caminho do ser do ente. O corresponder ao ser do ente é a filosofia; mas ela o é somente então e apenas então quando esta correspondência se exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento. Este corresponder se dá de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou não ouvido um tal apelo, ou ainda, do modo como é dito e silenciado o que se ouviu.3

Ao longo do curto ensaio onde se encontram estes dizeres, Heidegger nos faz

percorrer o caminho da filosofia não como sistema, mas como pensamento. Mas por que

dizemos “percorrer o caminho” e não apresentar? Porque só é possível apresentar a

filosofia como sistema. Como pensamento, a filosofia é um filosofar, nas próprias palavras

citadas do autor: “(...) ela o é somente então e apenas então quando esta correspondência se

exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento”.

Correspondência ao ser do ente – estar na procura do que o mito é, corresponder à questão

3 HEIDEGGER, 1973(a), p. 218.

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do mito, num filosofar que se articula como pensamento e não como sistema. Não

podemos corresponder a ela sem que antes a coloquemos de maneira apropriada. Esta é a

compreensão que possibilita estar na procura do que o mito é, ou seja, do ser do mito, da

essência do mito.

Não se trata aqui de uma essência conceitual aos moldes da metafísica – tal como

ocorre por exemplo com o conceito muito em voga hoje de “identidade”. Não é uma

essência conceitual de mito que se procura, isto é, não se quer determinar o “ser universal”

de uma coisa, uma “coisa em geral em seu ser”. É por isso que buscamos questionar de

modo próprio não pensando o mito como uma coisa universal. Para isso é necessário que o

mito se apresente, isto é, que se faça presente como um “isto”, como uma coisa não-geral,

mas vigente, em suma, um acontecimento mítico, ainda, em outras palavras, o “mito sendo

mito” e não, portanto, conceito. Essência diz aqui o que uma coisa é no horizonte de uma

ontologia fundamental, em que se atenta para o sentido de “estar sendo” do ser, isto é,

ainda, presença como um “ausentar-se vindouro”. Em último caso, uma essência

conceitual, algo totalmente presente e conhecido, um predicado, determinado,

processável, controlável, nem sequer exige cuidado, cura, tampouco procura, posto que se

assemelha a uma carteira de identidade que temos no nosso bolso e que apresentamos

quando queremos dizer quem somos. Quando perdemos a carteira, não deixamos de ser

quem somos. Essência, em sentido pleno, não é algo que possuímos ao modo de uma

carteirinha – no sujeito-bolso em que guardamos as representações - a cuja segurança

recorremos quando necessário. Pois com isso só substituímos nossa presença por um gesto

banal de apresentar uma predicação. Realmente: nós não possuímos uma essência!

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Portanto, não implica o pensamento da essência que a pergunta deverá ser

enunciada como “o que é o mito?”, e que assim se espere uma resposta do tipo: “o mito é

[algo]”, mesmo que diluída ao longo de centenas de páginas, como de costume, em vez de

posta numa simples proposição. Porque isso seria pensar o ser ao modo do ente, ao modo

de alguma coisa que é algo (portanto conceituável, determinável, mensurável) - e a

tradição que se desenvolveu como sistemas filosóficos, teológicos e teorias científicas se

constitui e tem sua linha mestra justamente neste pensamento do ser como ente (isto é,

esquecimento do ser, e pensamento tão somente do ente). Como vimos, esta tradição é

aquela que esvaziou o vigor próprio do mito, que já não o considera, não tanto por falta de

recursos, mas porque não é possível que o pense e continue sendo o que é: metafísica4.

Estas considerações são de grande importância, por todo o percurso deste trabalho,

mas elas ainda não nos dão – não de modo imediato – o aceno que nos orienta na questão

do mito, mas nos orientam no sentido de nos mantermos no horizonte da questão. E com

isso, indiretamente, já se entrevê algo. Quando em nosso esforço de questionar

(corresponder ao ser do ente), procuramos cuidadosamente não proceder à maneira de

uma tradição que, pensando apenas o ente, esquece o ser (e este esquecimento não consiste

em algo simplório), acabamos nos deparando com o que se mostrou como uma aporia:

como pensar o mito se a própria palavra “mito” se acha calada no próprio modo como ela

chega a nós pela tradição? Não obstante, um caminho também se abre, parece, agora.

Embora nos dê muitos conceitos e formule muitas teorias sobre o mito, a tradição

metafísica não pensa o mito (não questiona o seu ser). Na verdade da metafísica, o mito

4 HEIDEGGER, 1973(b), p. 254 e passim.

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não fala: é objeto de estudo. Também se fala muito de “ser” na filosofia ocidental, e de

modo especial na metafísica, mas para esta o sentido do ser, o velamento ou

encobrimento5, já não comparece. Mas como assim “velamento”? O que isto nos diz do

sentido do ser esquecido pela metafísica? Recorremos ao que diz Emmanuel Carneiro Leão:

Sempre procuramos responder esta pergunta dando uma definição direta e cabal do ser; sempre nos esforçamos por apreender-lhe o sentido, dentro de uma determinação imediata e exaustiva de seu uso e de sua significação. Mas todas estas tentativas e esforços terminam num fracasso. Por isso, tentamos sempre de novo, buscando caminhos indiretos através da filosofia, da ciência, da arte e da religião, ou mediante as ordens do conhecimento com seus modelos, da ação com seus padrões, e do sentimento com suas vivências. E fracassamos de novo. É que o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a partir de seu sentido como ele mesmo. Também não pode ser comparado com algo que tivesse condições de determiná-lo positivamente em seu sentido. O ser é algo derradeiro e último que subsiste por seu sentido, é algo autônomo e independente que se dá em seu sentido.6

Assim, “velamento” não é uma definição de ser nem tampouco uma total

indefinição, um vazio abstrato. O velamento, com seu horizonte, é o que nos permite

realizar a experiência do pensamento que, pelas palavras citadas acima, se dá e radica no

agir mais essencial que é o questionar. Portanto, quando assim perguntamos, “o que é isto,

o mito?”, não vamos consolidar, ao fim, uma definição, mas tentaremos no percurso de

pensamento que se desenvolve mantermo-nos na questão do princípio ao fim posto que é a

única maneira de nos lançarmos no acontecimento que é o sentido do ser (“O ser é algo

derradeiro e último que subsiste por seu sentido”). Deste modo poderemos nos aproximar

do ser do mito. Mas onde este isto do mito, e não o mito em geral, se nos apresenta?

5 A mais profunda questão, a do sentido do ser, está presente de modo pleno em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2002 [a] e [c]) – uma questão que tomaria todo o escopo deste trabalho se pretendêssemos aprofundá-la aqui, e o que faríamos seria tão somente uma constante referência ao trabalho de Heidegger. Contudo, compreendendo o sentido que a questão toma neste trabalho de Heidegger, podemos dizer que a questão do sentido do ser está presente, aqui, como a questão do ser do mito – dado o compromisso com o modo próprio de questionamento. 6 LEÃO, 2002, p. 13

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Onde estará então o aceno que nos pareceu ser dado? Dissemos, acima, que este

havia se dado. Qual será? O velamento é o aceno próprio do sentido de toda e qualquer

questão de pensamento, de toda e qualquer aporia. Isto quer dizer que a pergunta precisa

ser colocada de maneira apropriada. Quando nos perguntamos “o que é o mito?”, esta

forma de perguntar já traz consigo um tipo único de resposta pré-determinada: o mito é

algo. Esta forma de perguntar já pressupõe e pré-determina que “mito” é alguma coisa, um

ente, uma coisa delimitada e determinável, que pode ser conhecida por meio das

predicações de uma ou de várias proposições. Ou seja, esta pergunta trata o ser como um

ente. Este modo de perguntar é característico da filosofia e da ciência que esqueceram o

velamento, o sentido do ser. Como, então, perguntar pelo ser do mito? Conforme

apontamos, o essencial numa pergunta é o vigor do seu questionar e não a sua estrutura

gramatical como enunciação interrogativa, de modo que o fundamental é que esta

pergunta, como quer que se enuncie, deva ser a presença de uma linguagem obediente – na

medida em que é ouvinte – ao sentido do velar-se. Portanto, não se encontra um tal

questionar apropriado numa linguagem que seja exteriorização das idéias ou emoções, nem

sinalização de uma realidade dada, que ela tão somente representa, na medida em que

serve como instrumento de comunicação. Este modo de linguagem, pode, como acréscimo

a seu emprego primeiro, ser utilizado para fins estéticos. O fundamental, contudo, não é

nada disso, mas que a linguagem apresente a questão, apresentando-se como questão.

A linguagem que apresenta a questão na medida em que vigora em sua essência é,

por excelência, a linguagem da poesia7 que, neste sentido, é a vizinhança mais próxima do

7 cf. HEIDEGGER, 2007, p. 113-128 e 2004, pp. 12, 121ss.

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pensamento. Não porque a poesia seja uma linguagem elevada, capaz de nos alçar às

alturas transcendentais, mas justamente pelo contrário, porque a poesia é concreta e

telúrica. “É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não

mais ressoa.”8 Portanto, poética é a mais plena vigência essencial da linguagem. “No

entanto, a concretude não deve ser atribuída, linearmente, apenas ao que tem massa (...).

Concreto é o que desencadeia realidade.”9 Dizendo isso de música, Antônio Jardim nos fala

não de um gênero de arte, da arte de combinar os sons, como se demonstra em seu

trabalho, mas sim da musicalidade essencial de toda e qualquer poética. Musicalidade

remete à escuta que desencadeia memória, não porque se trata de um gênero a ser ouvido,

em oposição, por exemplo, à pintura, é bom lembrar. Mas porque “Antes de tornar-se um

dizer, ou seja, um pronunciamento, poesia é na maior parte de seu tempo escuta”10 ou, nas

palavras do poeta-pensador Octavio Paz:

(...) o poema é linguagem – e linguagem antes de ser submetida à mutilação da prosa ou da conversação -, mas é algo mais, também. E esse algo mais é inexplicável pela linguagem, ainda que somente possa ser alcançado por ela.

Nascido da palavra, o poema desemboca em algo que a ultrapassa11

É pela escuta poética que o velamento nos vem, uma vez que esta escuta nos abre a

possibilidade de que a verdade se manifeste não como correção e adequação do conceito à

realidade nem como predicação possível (representação), mas sim como a historicidade do

sentido, isto é, em sua essência – como desvelar autovelante12. Então, a maneira apropriada

de se colocar a questão do mito, ao contrário do que se poderia esperar, não é por qualquer

8 Idem, 2003, p. 24. 9 JARDIM, 2005, p. 218. 10 HEIDEGGER, 2004, p. 59 11. No original: “.(...) el poema es lenguaje – y lenguaje antes de ser sometido a la mutilación de la prosa o la conversación -, pero es algo más también. Y ese algo más es inexplicable por el lenguaje, aunque solo puede ser alcanzado por él. Nacido de la palavra, el poema desemboca en algo que la traspasa.” (PAZ, 1972, p. 111) 12 HEIDEGGER, 2002(b), p. 227-249

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enunciado, de qualquer forma, mas pela escuta. Em sentido próprio, colocar uma questão é

colocar-se em escuta – o fundamental no questionar é ouvir cuidadosamente a questão.

Esta questão se dá no desvelo poético, em que não se pode partir de uma definição pré-

estabelecida do que se questiona.

Quando, então, iniciamos nosso percurso evocando Ulysses, não buscávamos uma

alegoria que preparasse o que se tinha por dizer, mas sim a escuta de um mito que nos fale

da escuta. Tal é o caso da passagem famosa do canto das sereias na Odisséia que:

(...) pensa e tematiza a questão sempre atual e presente da escuta poética da palavra cantada. E o faz através de um mito, que se faz atual e presente pela força do mítico. Nela e por ela somos convocados para a ausculta do vigor poético da palavra cantada e da sua presença no projeto de travessia que todos nós somos.13

Não se trata de uma escolha subjetiva, nem tampouco objetiva. Nesta travessia

poética já estamos lançados, pois que escuta poética é o próprio humano do homem, por

ela e com ela:

O universo deixa de ser um vasto armazém de coisas heterogêneas. Astros, sapatos, lágrimas, locomotivas, salgueiros, mulheres, dicionários, tudo é uma imensa família, tudo se comunica e se transforma sem cessar, um mesmo sangue corre por todas as formas e o homem pode ser enfim seu desejo: ele mesmo. A poesia põe o homem fora de si, simultaneamente, o faz regressar a seu ser original: retorna-o a si. O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia é entrar no ser.14

A poesia não é um fazer dentre tantos outros, que podemos executar ou não

conforme nossas escolhas. Na medida em que afirma a presença, a realidade em seu sentido

13 CASTRO, 2003, p. 23 14 No original: “El universo deja de ser um vasto almacén de cosas heterogéneas. Astros, zapatos, lágrimas, locomotoras, sauces, mujeres, diccionarios, todo es una inmensa família, todo se comunica y se transforma sin cesar, una misma sangre corre por todas las formas y el hombre pude ser al fin su deseo: él mismo. La poesia pone al hombre fuera de sí y, simultáneamente, lo hace regresar a su ser original: lo vuelve a sí. El hombre es su imagem: él mismo y aquel otro. A través de la frase que es ritmo, que es imagem, el hombre – ese perpetuo llegar a ser – es. La poesía es entrar en el ser.” (PAZ, 1972, p. 113)

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e verdade, a poesia assinala a eclosão do homem, não por ditar sua essência por meio de

metáforas, mas por instaurar, no agir fundamental que ela exige - o da escuta poética – a

travessia, o que se diz, também: existência. Não como um superar-se evolutivo, nem como

um destacar-se genial, nem como um descontrole emocional ou mesmo um êxtase

transcendental apartado da realidade, mas sim, plenamente, como retorno ao lugar em que

já se está. Um retorno à casa, a conquista no horizonte do não conquistado. O poema não é

só um meio para a questão, ele é o próprio acontecimento da dinâmica do questionar, pela

escuta do seu dizer.

Ulysses, sabe-se, decidiu escutar o canto das sereias, o perigoso canto das sereias. A

evocação de Ulysses assinala o risco que se corre neste trabalho, o risco de ouvir a questão.

O risco é o da errância cujo perigo vigora na tentativa do pensamento. Uma pesquisa

propriamente é necessária lá onde todos já estão de ouvidos tapados, contentando-se com a

segurança dos limites do barco, tal como os marujos de Ulysses. Esta escuta não é,

entretanto, mera imprudência de um navegante que se crê cheio de méritos, mas a escuta

própria, a escuta de quem se prende ao mastro, como Ulysses, que se sabe nos limites do

barco, mas permanece aberto ao extraordinário, aos mistérios do oceano, onde não há

caminhos traçados. No oceano todo envolvente das questões é preciso estar com o olhar

atento para as estrelas no céu e, ainda e sobretudo, com a escuta voltada para o canto das

sereias. Esta escuta é a escuta poética que se tenta aqui.

Contudo, conforme apontamos acima, há o problema de que, muito embora

estejamos cada vez mais cercados de recursos lingüísticos, e apesar dos avanços da filologia

e da arqueologia, a essência do dito que fala na palavra grega mythos não se nos

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aproximou. Pelo contrário, o vigor que a palavra mítica abriga se encontra cada vez mais

obliterado, em virtude do próprio esforço de tudo esclarecer na ofuscante claridade da

ciência. Por outro lado, o poema de Fernando Pessoa, também citado no início, nos fala

desde a proximidade de nossa língua. Se o mito que aqui se busca evoca Ulysses, o poema

Ulysses, de Fernando Pessoa evoca o mito em sua vigência poética. Dizemos “evocar”,

porque “mito” não é o tema do poema. Nem poderíamos dizer isso sem já partirmos de um

determinado entendimento do que seja mythos e do que seja um poema. Na evocação a

linguagem vigora como palavra. “Mito” no poema de Pessoa, não é tema, é palavra, e isto

quer dizer: não é significante de um significado (o tema), mas a apresentação daquilo que

na palavra se nomeia. Neste sentido:

Nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. Nomear é evocar pela palavra. Nomear evoca. Nomear aproxima o que se evoca. Mas essa aproximação não cria o que se evoca no intuito de firmá-lo e submetê-lo ao âmbito imediato das coisas vigentes. A evocação convoca. Desse modo, traz para a proximidade a vigência do que antes não havia sido convocado. Convocando, a evocação já provocou o que evoca.15

Evocando “mito”, o poema de Pessoa convoca à escuta, assinala a presença pela

escuta. Porque seu dizer se retrai, na medida em que é um dizer poético e não

comunicativo, a evocação mítica do poema já provoca o vigor do mito. O aceno para a

questão, que é sempre escuta, nos vem, portanto, de modo mais próprio e próximo, do

poema de Pessoa. Tentemos escutar uma vez o que ele nos diz:

PRIMEIRO/ULYSSES O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

15 HEIDEGGER, 2004, p. 15-16.

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Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.16

16 PESSOA, 1972, p. 72.

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II. O mytho é o nada que é tudo.II. O mytho é o nada que é tudo.II. O mytho é o nada que é tudo.II. O mytho é o nada que é tudo.

“O mytho é o nada que é tudo”. A força deste dizer nos convoca a uma escuta. Na

mais radical disputa que acontece neste dizer, “O mytho é o nada que é tudo”, o

entendimento se acanha, porque diante deste verso a lógica nada pode. A verdade deste

dizer poético não se dá a partir do julgamento de sua correção, na medida de sua

adequação a um real já dado. Algo que é contraditório, de acordo com os conceitos de

pensamento e verdade vigentes, simplesmente não pode haver. Uma coisa que seja “A” e

“não-A”, simplesmente não é, nos diz a lógica matemática. Diante da verdade que se dá

neste verso, o raciocínio se apequena. Conforme os parâmetros de julgamento da validade

das sentenças, uma sentença contraditória não pode nem mesmo almejar o status de

verdadeira. Este verso exige uma escuta, isto é, ele impõe obediência ao seu dizer. Ao

contrário do procedimento epistemológico corriqueiro, que estabelece um conceito

fundamental para então derivar matematicamente um conjunto de proposições válidas e

assim “produzir um conhecimento”, o poema nos dá um “não-conceito”. O poema se abre

com a impossibilidade do conceito, porque é a impossibilidade do conceito que abre a

escuta da poesia. No tempo histórico em que vivemos, acredita-se que pensar é processar,

estabelecer e relacionar conceitos. Acredita-se, piamente, que verdade significa o que é

correto, expresso numa sentença válida. Portanto, a poética do mito raramente se deixa

escutar, hoje. Sem questionar estas concepções de conhecimento, realidade e verdade, não

podemos escutar sequer o primeiro verso do poema.

O conhecimento a partir da filosofia grega até a ciência moderna, desde o

fundamento em que se baseia, passando pelo procedimento pelo qual ele se comprova, até

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a sua organização estrutural, é matemático17. No pensamento grego, tà mathémata, que

vem de manthano (aprender e ensinar), indica o que pode ser ensinado e aprendido, só

vindo a significar relações entre números, figuras do espaço, linhas, num sentido derivado

posterior. Os gregos distinguiam além dos mathémata, outros modos com que os entes

vinham ao seu encontro, como tà physiká, tà poioúmena, tà pragmata, etc. Nestes modos

as coisas não se podem ensinar e aprender, enquanto tà mathémata são aquelas que se dão

ao homem sem experiência, prática, sensível ou criativa – ou seja, são aprendidas e

ensinadas justamente porque são como que uma “recordação” (e este já é o uso de Platão

para justificar o conhecimento) do que já está dentro de si. Ao se ensinar, leva-se o outro a

tomar posse do que ele mesmo se dá - porquanto já tem -, do que não provém da

experiência18. Então, “O matemático traz em si continuidade e meta de um procedimento

completo em si mesmo, ou seja, ele já é em si mesmo caminho, isto é, método.”19 Portanto,

em sentido próprio, o matemático é um caminho em que se consuma uma apropriação do

que é próprio, e neste sentido, é aprendizagem e ensino. Esta jornada de aprendizagem e

ensino, no vigor do questionamento - em que o homem se torna homem (portanto,

filósofo, no sentido daquele que se mantém no questionamento, na busca que espera a

verdade) - é fundamental no pensamento de Platão. Daí a importância do matemático, em

sentido pleno, para o pensador. Contudo, este vigor se perdeu, com o processo em que o

pensamento das questões fundamentais, que é o esforço de Platão, vai dando lugar a um

sistema de articulações consolidadas, uma teoria do real sistematizada, estruturada, em que

se institui o platonismo, conforme Castro:

17 HEIDEGGER, 2007, p. 43-81. 18 Ibidem, p. 45-47. 19 Ibidem, p. 47.

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Todo o vigor de pensamento que perpassa os diálogos de Platão perdeu-se já na própria Grécia quando o que era questionamento no pensador se tornou platonismo na mão dos seus discípulos, isto é, doutrina que deve ser ensinada e aprendida, ou em termos modernos, uma determinada filosofia entre “outras”. Contribui para isso o Helenismo alexandrino. Correspondendo ao platonismo do Helenismo, a tradução para o latim simplificou tudo e, na tradução, perdeu-se o vigor das questões porque se perdeu e esqueceu o sentido do ser.20

Com a perda deste vigor de questionamento, o que vai se dar é que a aprendizagem

e ensino deixam de ser um manter-se num questionamento para ser a apreensão, para

conseqüente manipulação e aplicação, de um sistema. Sendo sistema uma determinação

fechada, uma circunscrição em que todas as determinações que nela se articulam devem

estar de acordo com esta determinação mais ampla, o matemático passa de um processo de

apropriação do que é próprio, à aquisição e elaboração de sistemas de representação. Nesta

sua nova vigência, o matemático se instaura como modelo da metafísica, uma vez que esta

sua vigência é oriunda da primeira interpretação do pensamento determinante do

ocidente, o de Platão. Dada a importância do matemático no pensamento de Platão,

especialmente no processo de tornar-se o homem o que ele é, que Platão chama de

“filosofia”, o matemático se converte em teor e modelo do conhecimento metafisicamente

válido. Conhecer passar a ser daí em diante articulação de determinações menores

(conceitos) em relação a uma determinação maior (o sistema, que se identifica com um

conceito de ser, o conceito mais amplo). Por isso, na citação acima, fala-se no

esquecimento do ser. Com a substituição da dinâmica verbal do ser, cujo vigor é “estar

sendo, à diferença da forma nominal “ser” passível de substantivação, adota-se uma

concepção substancial 21 do ser. Uma vez que se o conceba como conceito, como

determinação mais ampla e fundamental, todas as demais determinações que nele se 20 CASTRO, 2007, p. 21 21 HEIDEGGER, 2007, p. 21-22.

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incluem e articulam-se entre si devem corresponder a este “ser conceitual mais

abrangente” para serem válidas. Está instaurado o entendimento metafísico de ser como

substância, como determinação mais ampla, em última análise, o entendimento do ser

como um “ente supremo”. Na matemática, modernamente concebida, esta determinação

fundamental corresponde aos axiomas fundamentais, que devem ser pressupostos, que

fundamentam toda demonstração mas em si não se demonstram.

A partir dessa noção matemática como sistema de representações articuladas entre

si em relação a uma representação mais ampla e todo abrangente, temos os dois

procedimentos que constituem já o método cartesiano: 1. intuição dos princípios (traçar os

limites ou conceito fundamental); 2. dedução das sentenças derivadas do princípio intuído

(elaboração das representações menores – análise -, como sentenças derivadas, validadas a

partir de sua correspondência ao princípio, ao conceito fundamental - síntese).22

Contudo, para se caracterizar como conhecimento válido, na modernidade, é

preciso que este princípio, o conceito fundamental, não seja simplesmente aceito (o que é

próprio da especulação), mas antes, rigorosamente delimitado a partir de si mesmo – isto é

– estabelecido como um fundamento válido, sem pressupostos. A concepção matemática

de método e de conhecimento nos dá a impressão de que consegue tal feito – derivar um

princípio de si mesmo. “Principium, arché, diz donde uma coisa é, vem a ser e

simplesmente se determina. (...) daquilo em que, previamente, já sempre se deve

enquadrar e inserir todo e cada sendo enquanto é e está sendo.”23 Isto é: o ser de todas as

coisas, condição de possibilidade de que todas as coisas sejam, o ens in communi.

22 Ibidem, p.48 23 ibidem, p. 67.

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Matematicamente, o fundamento é pensado como algo. Portanto, pensa-se o ser como uma

determinação que abrange todas as outras determinações possíveis é o fundamento de sua

validade, isto é, esquece-se o sentido de estar sendo (verbal) do ser, e passa-se a considerá-

lo substantivamente como substância, como o que está subjacente, como o que é subjetivo.

Na modernidade, a partir de Descartes, subjetivo identifica-se com a racionalidade humana

e, posteriormente, também com a emotividade ou com os instintos e impulsos vitais.

Pode-se, contudo, delimitar algo com nada? Qual será este princípio

autodeterminante? O princípio da contradição24. Este é o fundamento absoluto de toda e

qualquer metafísica e ciência. Este princípio diz: o contraditório é nada, ou seja, A e não-

A= nada (+1 e -1=0). O que pode ser (algo) é o que não é nada (o que não é contraditório).

O princípio da contradição diz que o contraditório é nada, e que portanto o não

contraditório é o ser concebido como a mais ampla determinação, a determinação

indeterminada.25 Este princípio determina o fundamento: aquilo que tudo inclui e conclui,

e nada exclui – ou seja – exclui o nada. É portanto, o conceito mais geral, o conceito

fundamental.

Como seu fundamento aparentemente se autodetermina (a partir de nada), tem-se a

impressão de que a metafísica e a ciência são desprovidas de pressupostos. Mas, de fato, no

contraditório, está pressuposto o dito (o não-algo pressupõe o algo). A metafísica pressupõe

isso: ser é algo. Oposição (contradição) pressupõe posição (presença). “Algo é determinado,

determinatur, não somente à medida que se põe simplesmente em relação com um outro,

24 Ibidem, p. 68-69. 25 Ibidem, p. 70.

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mas à medida que é ou não é o outro.”26 Esse algo determinado, entende-se como algo

representável, o que se pode representar, o que pode ser. O existente, assim, se dá como

uma representação complexa e possível, ou seja, como a combinação entre representações

simples compatíveis, ou predicação. Ao sujeito, devem se adequar determinadas

predicações, compondo representações complexas válidas, e assim a essência substantiva

com suas qualidades tem existência. O que não está de acordo com este fundamento (não-

contraditório), não é real, não existe, isto é, não se compõe de representações compatíveis

e possíveis. Isto quer dizer que o conhecimento acerca do que é real e possível se constrói

como um conjunto de proposições (representações complexas) que se compõem de

conceitos (representações simples). A existência, portanto, se dá quando a relação de um

sujeito e um predicado (duas determinações simples, essências) não é nula (contraditória),

e portanto existente, real, coisal27. Cria-se o problema da adequação entre as sentenças

representativas do conhecimento e a estrutura possível do real.

Com o movimento realizado pelo pensamento de Kant, a existência não se dá mais

nas coisas, como compatibilidade de substância e acidentes (predicados). Existência passa a

ser transcendental, o encontro do percebido e reunido pelas categorias do entendimento

com a racionalidade do sujeito, e assim se constitui o objeto. Isto implica que a existência

está agora subsumida à razão do sujeito do conhecimento. É neste âmbito da racionalidade

das representações que se pode certificar a existência e conhecer, por meio de

representações, o real já matematicamente concebido em seu teor e constituição. Esta é a

essência não só de toda e qualquer metafísica, mas de todo e qualquer conhecimento

26 Ibidem, p. 78. 27 Ibidem, p. 75-79.

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científico. A metafísica e a ciência nos ensurdecem, portanto, para a escuta do dizer mítico

– contraditório - do poema logo em seu primeiro verso, seja porque este verso não pode ser

uma sentença verdadeira, seja porque a estrutura ontológica do real assim considerada não

admite a existência de contradições.

O princípio da contradição, contudo, não é simplesmente algo formal e vazio (tal

como ele se apresenta segundo o modelo matemático moderno), mas algo originário e que

possibilita a nossa presença. Deste modo, entretanto, já não conseguimos mais

compreendê-lo. Por isso a grande dificuldade de se compreender o dito poético, que nos

fala do mito que é o nada que é tudo. Mas talvez o pensamento em que, conforme se

afirma por todo lugar onde se fale de história da filosofia, inicia-se o processo histórico do

primado da razão tenha algo a nos dizer sobre a essência da contradição, para além de sua

determinação matemática. Este pensamento se apresenta no poema de Parmênides,

intitulado Acerca da Nascividade. Pensá-lo, talvez, possa nos ajudar a compreender a

contradição em sua vigência originária e, assim, poder entrar na escuta do verso do poema.

A passagem em que se enuncia, com toda força, este princípio, é o fragmento II do poema

de Parmênides, que nos diz:

Vamos lá! – eu interrogarei, tu porém, auscultando a palavra, cuida que caminhos únicos do procurar são dignos de serem pensados: um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois segue o desvelar-se). O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala.28

Este dizer de pensamento assinala a contradição numa aparente oposição ao verso

do poema. Representa-se, normalmente, nas histórias da filosofia, o que aí se nos diz como:

28 PARMÊNIDES, 1999, p. 45.

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o ser é, e o não-ser não é. Entende-se isso como a enunciação incipiente do princípio da

contradição. Por isso, afirma-se em todo lugar que a filosofia, propriamente, surgiu com

Platão, mas a racionalidade começa já a dominar o pensamento a partir de Parmênides.

Desde então, a irracionalidade do mythos é superada – num processo histórico, diz-se -

pela razão, pelo lógos. Decerto, representamos o que se fala no poema de Parmênides desta

maneira porque falamos a partir desta hegemonia histórica da razão lógica, baseados

unicamente na concepção matemática do conhecimento. Já não conseguimos escutar a fala

poética do pensamento de Parmênides. De acordo com a concepção vigente, de poético,

em seu pensamento, há apenas a forma: está escrito em versos e contém figuras de

linguagem. O dizer poético de Parmênides, não o deixamos chegar até nós como verdade,

apenas como matéria e forma. Em seu conteúdo, o poema de Parmênides, de onde nos vem

o dizer citado, é filosófico. Sua forma, apenas, é que é poética. Nesta forma de representar,

o poético, como gênero do artístico, corresponde ao estético. O objeto estético se

determina, como o que é, pelo aístheton, que corresponde ao que se apreende pelo

conjunto das sensações unificadas sob a faculdade da sensibilidade. Contudo,

Nunca percebemos, como presume este conceito, no aparecer das coisas, em primeiro lugar e propriamente, uma afluência de sensações, por exemplo, de sons e ruídos, mas ouvimos a tempestade assobiar na chaminé, ouvimos o avião trimotor, ouvimos o Mercedes e o diferenciamos imediatamente de um Adler. As próprias coisas estão muito mais próximas de nós do que as sensações. Escutamos em casa a porta bater e nunca ouvimos sensações acústicas ou meros ruídos. Para se ouvir um puro ruído temos que afastar das coisas o escutar, distanciar delas o nosso ouvido, ou seja, escutar abstratamente.29

29 HEIDEGGER, 1960, p. 18 (tradução de Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo, em vias de publicação). No original: “Niemals vernehmen wir, wie er vorgibt, im Erscheinen der Dinge zunächst und eigentlich einen Andrag von Empfindungen, z. B. Töne und Geräusche, sondern wir hören den Sturm im Schornstein pfeifen, wir hören das dreimotorige Flugzeug, wir hören den Mercedes im unmittelbaren Unterschied zum Adler-Wagen. Viel näher als alle Empfindungen oder auch nur blobe Geräusche. Um ein reines Geräusch zu hören, müssen wir von den Dingen weghören, unser Ohr davon abziehen, d. h. abstrakt hören.“

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Assim, quando percebemos, por exemplo, uma caneta preta, não apenas

enxergamos uma forma cilíndrica oblonga, de cor negra, que posteriormente será reunida

no conjunto de suas impressões sensíveis, pela faculdade da sensibilidade, de modo a nos

permitir entender que se trata de uma caneta. Vemos, sim, “uma caneta preta”, isto é, as

coisas já nos vêm como coisas, as coisas como o que elas são.

Eu só posso constatar uma coisa como livro, à medida que, antecipadamente, sei e compreendo o que é um livro. Se não tivéssemos esta compreensão prévia, nunca nos poderia aparecer a possibilidade de ver este livro como livro. Assiste-nos, porém, um saber característico, que antecede as próprias coisas, em que as diversas coisas nos são dadas e se podem tornar acessíveis sendo desta ou daquela

maneira.30

Não compreendemos o que as coisas são a partir das percepções sensíveis, mas

apenas porque já estamos numa pré-compreensão da coisa em seu ser é que ela pode nos

aparecer como o que ela é. Se não soubermos o que é um livro, não podemos compreender

o que captamos com nossos sentidos como um livro. Isto aparentemente nega o que aqui se

quer afirmar, em duas direções. Primeiramente, pela questão: como percebemos então

alguma coisa de que ainda não temos uma pré-compreensão? A resposta apressada seria:

como um conjunto de sensações unificadas pela sensibilidade! De fato, não.

Compreendemos a coisa cuja essência escapa à nossa pré-compreensão como o

desconhecido, uma coisa desconhecida. O que é bem diferente de um conjunto de

sensações. Isso já nos dá um grande aceno acerca do vigor desta pré-compreensão. Ela não

é essencialmente pré-compreensão de algo determinado, já conceituado e conhecido,

delimitado, dado como uma representação mental a que recorremos na presença da coisa já

conhecida. A compreensão articula saber e não saber. Em segundo lugar, aparentemente

30 idem, 2007, p. 162.

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há uma negação do que afirmamos, pela pergunta: como chegamos a compreender uma

coisa, se só a compreendemos quando já previamente a compreendemos? O que se disse

sobre a essência do que aqui se entende por pré-compreensão evita uma resposta

apressada. A pré-compreensão fundamental, a partir da qual podemos compreender cada

coisa que chegamos a compreender em seu ser, em sua essência, como a essência do livro,

do carro, do sol, etc., esta pré-compreensão fundamental não é adquirida. Como seres

humanos, já estamos lançados nela. É por ela e nela que compreendemos a essência de cada

coisa. Compreendemos, então, a essência de cada coisa, ou seja, o que cada coisa é, pela

pré-compreensão fundamental. Esta pré-compreensão fundamental é a pré-compreensão

do ser. “Nós não sabemos o que diz “ser”. Mas já quando perguntamos o que é “ser” nós nos

mantemos numa compreensão do “é”, sem que possamos fixar conceitualmente o que

significa esse “é””31. Não se trata da compreensão de um conceito, de um algo, de uma coisa

delimitada, representável, que pode ser compreendida posteriormente. Ela é a pré-

compreensão fundamental – que não se ensina, não se comunica (pois que se retrai em

tudo que se diz), nem se aprende. Nela estamos lançados.

Considerar um poema a partir da estética, desta feita, nos impossibilita de

compreender um poema, simplesmente porque a estética se edifica em torno de uma

concepção inconsistente do próprio compreender. Então, não podemos tomar, de antemão,

a separação entre forma poética e conteúdo filosófico, se quisermos compreender o poema

de Parmênides – tratando esteticamente da forma e filosoficamente do conteúdo.

31 HEIDEGGER, 2002, p. 31.

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Precisamos tentar compreender o dizer poético de Parmênides de modo próprio. Qual

seria?

Poiesis, enquanto essência do agir com sentido (linguagem) diz respeito a todo e qualquer criar. A essência do ser humano provém da essência do agir na medida em que este é Dichtung/Poiesis, daí o sentido poético-ontológico da arte e não meramente estético, retórico ou ideológico. A Poesie/poesia é a Dichtung/poiesis em sentido estrito, mas que conserva o impulso originário da poiesis/Dichtung (...). E assim como a poiesis abrange e ao mesmo tempo está além do alcançado pela arte, deduz-se que a Dichtung bem como a poiesis se colocam no mesmo nível da physis e do logos, ou seja, do ser.32

O que se chama acima de Dichtung, como interpretação da palavra usada por

Heidegger em A Origem da Obra de Arte, que então se traduziu por poiésis, é justamente

este acontecimento essencial da verdade e da compreensão. Conforme pensamos no

primeiro capítulo, o compreender próprio se dá como a própria existência, como agir

essencial – isto é, poiésis. A divisão entre filosofia e poesia é imprópria. Por ela e com ela

não se compreende propriamente o que se apresenta num dizer poético-pensante.

Escutemos, então, o dito de Parmênides, ainda outra vez:

Vamos lá! – eu interrogarei, tu porém, auscultando a palavra, cuida que caminhos únicos do procurar são dignos de serem pensados: um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois segue o desvelar-se). O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-ente (pois este não pode ser realizado) nem haverias de trazê-lo à fala.33

O poema diz: “Vamos lá!”. Não trata de uma simples operação mental, este

pensamento. Não podemos considerar de antemão que isto é apenas uma forma

interessante de escrever, de tornar a sisudez de um texto filosófico mais atraente ao leitor

enfadado. Ele convida a uma caminhada. Não é uma caminhada solitária, uma vivência

subjetiva, tampouco. “Vamos, lá!” diz, vamos juntos, acompanhando um ao outro. O poeta

32 CASTRO, 2007, p. 77. 33 PARMÊNIDES, 1999, p. 45.

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nos convida a um diálogo, e nos diz: “eu interrogarei”. Ele não vai nos propor uma teoria.

Trata-se de um diálogo de questionamento. Mas o que é propriamente um diálogo?

A palavra diá-logo compõem-se do prefixo grego dia que significa dois, através de, entre. O radical da palavra diálogo, -logo, vem da misteriosa palavra grega: Logos. Logos. Logos. Logos. Formado do verbo legein, este se move num duplo sentido ao mesmo tempo complementar e tensional: reunir e dizer.34

Em sentido próprio, lógos evoca o que diz e reúne, em tudo que se diz e reúne.

Como reunião em torno do que se diz, o diálogo não é mera comunicação – o diálogo,

sentido pleno, é a vigência do lógos. Mas o poema não menciona lógos, o original nos dá a

palavra mythos. Neste diálogo, nesta vigência do lógos, aqueles que se escutam o dito na

reunião no lógos, bem como o que se escuta no dito da reunião no lógos é: mythos. O

poeta diz “suÜ muÍqon a)kou¿saj” – tu, ascultando o mythos. Na vigência do lógos, o que se

escuta é o mythos. Mythos e lógos estão na mais intima vizinhança, numa referência

fundamental. Isto nos diz o poema de Parmênides. Começamos, então, a suspeitar do que

nos diz a mais recente historiografia da filosofia, quando nos afirma que:

O pensamento filosófico pôde assim desprender-se das formas espontâneas da linguagem em que se exprimia, submetê-las a uma primeira análise crítica: para além das palavras, eÃpea, tais como o vulgo as emprega, há, segundo Parmênides, uma razão imanente ao discurso, um lo¿goj, que consiste em uma exigência absoluta de não-contradição: o ser é, o não-ser não é. Sob esta fórmula categórica, o novo princípio, que preside ao pensamento racional, consagra a ruptura com a antiga lógica do mito.35

O que se escuta, na vigência do lógos, no diálogo a que Parmênides nos convida, é

mythos. Contudo, o que Jean-Pierre Vernant nos diz é que, a partir da “fórmula

categórica” de Parmênides, há uma razão imanente do discurso, isto é, um lógos. Vernant

assume a interpretação metafísica de lógos como razão para interpretar o pensamento

34 CASTRO, 2006, p. 27. 35 VERNANT, 1990, p. 473.

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originário de Parmênides, porquanto separa, de modo inapropriado, mythos e lógos. Não

considera, com esse pressuposto, o dizer de Parmênides em sua essência, como poiésis.

Segundo a concepção expressa por Vernant, não se trata de dizeres poéticos, mas de

“fórmulas categóricas”, isto é, formulações conceituais próprias da metafísica, só que

travestidas de poesia por influência do contexto histórico. Haveria, então, uma “lógica do

mito”, que é claramente entendida como um modus operandi. O autor afirma que não há

uma súbita mudança do mythos ao lógos, mas apenas na medida em que a forma do poema

de Parmênides “(...) traduz este valor de revelação religiosa que conserva a filosofia

nascente”36, porquanto seu conteúdo exprime uma doutrina abstrata, leia-se filosófica.37

Assim, o que é propriamente superado é o modus operandi do mito, de modo que:

O mito então põe em jogo uma forma de lógica que se pode chamar, em contraste com a lógica de não-contradição dos filósofos, de uma lógica do ambíguo, do equívoco, da polaridade.38

Não se pode negar o grande mérito de Vernant. Ele afirma a necessidade de se

compreender o mito pela sua própria lógica. Caberia ao mitólogo, que deseja compreender

o mito, buscar uma lógica que não seja a lógica da não-contradição, que é a lógica do lógos,

do pensamento racional, da filosofia, nas palavras do autor.39 Isto é uma posição inovadora

em relação à historiografia da filosofia mais comum. Contudo, não podemos simplesmente

pressupor, sem pensar a palavra, que a “lógica” é um modus operandi, e não a dinâmica do

lógos, um dizer que reúne – mas que não reúne simplesmente como identidade (tal como o

pensamento racional, conceitual, isto é, que iguala o não igual40), nem somente como

36 Ibidem, p. 456. 37 Ibidem, loc. cit.. 38 Idem, 1999, p. 221. 39 Ibidem, loc. cit.. 40 NIETZSCHE, 2008, p. 35.

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diferenças (o que seria a lógica da contradição, da polaridade, em oposição à lógica

racional, de que fala o autor). A dinâmica do lógos instaura a reunião de identidades nas

diferenças, em que essa identidade, cabe a ressalva, não é um terceiro elemento posterior,

nem uma síntese dialética. Portanto, o que Vernant nos diz é que o mythos é superado,

em sua lógica da contradição, pela lógica da não-contradição do lógos (razão), embora este

lógos inicialmente venha travestido, em sua forma, em sua aparência, de mythos, como no

caso do poema de Parmênides. Esta tese parece estar de acordo com o poema de Pessoa,

quando diz que “o mytho é o nada que é tudo”, pois, ao dizer isso, está afirmando que o

mythos é o âmbito do pensamento que traz consigo a prerrogativa do contraditório, que

corresponderia ao “ambíguo”, ao “equívoco” e à polaridade.

Apenas parece, porque, conforme as considerações feitas até aqui, porquanto

Vernant se baseia em pressupostos de um modo de representar metafísico, que interpreta o

lógos como razão, e a lógica como modus operandi, - muito embora, à diferença das

posições mais comuns, não considere o modus operandi da não-contradição como o único

modo de pensamento possível – Vernant pensa o mythos a partir do modus operandi que

o superou (pelo que seu pensamento acerca do mito é conceitual, representativo) numa

ruptura histórica que ele mesmo afirma, confirma e comprova. Isso porque, apesar de

constatar a necessidade de se pensar o fenômeno mítico a partir de outra lógica que não a

da não-contradição, na medida em que seu pensamento se baseia nos pressupostos que se

sustentam pela lógica da não-contradição, que são metafisicamente fundados, esta

constatação não passa de uma constatação. O entendimento que daí se origina impõe

representações impróprias, pois não atende à escuta do mythos que o poeta-pensador

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solicita. De acordo com o modelo em que seu pensamento se insere, o princípio da

contradição é simplesmente uma coisa do pensamento abstrato, o fundamento de uma

lógica da razão que veio a se impor num determinado processo histórico gradual, processo

este que articula fatos econômicos, como a moeda, culturais, como a escrita, e políticos,

como a democracia41. Enquanto se determine, em sua vigência, por tais fatores, o princípio

da contradição, este não estará ligado com a presença do homem, com sua existência

histórica, com a historicidade de sua realização, mas apenas seria conseqüência de

contingências historiográficas, dependente de certos fatos históricos. Fatos estes factuais

apenas num pensar que representa a história matematicamente, como historiografia de

fatos deduzidos como causas e efeitos, correspondendo ao conceito fundamental mais

abrangente de história como sucessão de ocorrências lineares racionalmente concatenadas.

Como dissemos acima, o princípio de contradição não é algo apenas formal e

abstrato, o princípio do conhecimento, como se antes da vigência deste princípio o pobre

homem “primitivo” e “supersticioso” propriamente nada conhecesse. Esta afirmação foi

deixada assim, sem maior explicação, apenas indicando-se que já não entendemos este

princípio de outra forma que não aquela abordada, a matematicamente determinada,

porque desde que o pensamento de Platão e Aristóteles se converteu em doutrina, todo

conhecimento no ocidente passou a ser regido em seu modo de estruturação e em seu teor,

pelo matemático concebido como representação de relações conceituais, segundo um

princípio de contradição abstrato e formal42. O pensamento de Parmênides nos fala desde

uma outra vigência de pensamento. O pensamento de Parmênides nos fala como poema,

41 VERNANT, 1990. 42 HEIDEGGER, 2007.

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que convida, na vigência do lógos – em sentido próprio, poético, de dizer e reunir, e não

em sentido metafísico e científico (com o perdão da redundância) de razão - , à escuta do

mythos. O poema de Parmênides não traz uma superação do mythos pelo lógos, mas uma

obediência, isto é, uma escuta própria, da vigência do lógos, no dizer de um mythos. O

poema de Parmênides nos traz, à oposição do que propõe a historiografia, cujo expoente

mais recente é Vernant, a referência fundamental entre mythos e lógos. Cabe a escuta do

seu dizer. O que, então, ele nos convida a ouvir? “cuida que caminhos únicos do procurar

são dignos de serem pensados: um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência,

(pois segue o desvelar-se).”43 A palavra que rege a escuta é “cuida”, no original, kómisai.

Este não é apenas o começo da frase, numa ordenação sintática. Ela é a palavra que rege a

escuta do mythos porque é uma palavra-princípio, uma palavra que abre o dizer que vem à

escuta. Cuidar é o princípio. Princípio não é apenas o começo. Quando dizemos, “este é

um homem de princípios”, não falamos de “um homem de começos”, que está sempre no

começo das coisas. Falamos de um homem cujo agir se encontra no empenho de um

penhor, que age no horizonte do princípio. Cuidar é o princípio porque é conduz e

consuma todo fazer originário, como pensar e poetar. Todo dizer será um dizer sob o

princípio do cuidar. Este dizer exige uma escuta cuidadosa. O poeta pede cuidado ao

ouvinte, em sua escuta. Em grego, a palavra é kómisai. Esta é a forma média do aoristo do

verbo komídzein – que na forma média tem o sentido de “cuidar”, no sentido de “acolher”

e “levar consigo”, pelo que se chama aquele que acompanha um komistér. Este cuidar, que

o mythos recomenda, é um acolher e levar consigo. Deste modo o poema assinala - agora

43 PARMÊNIDES, op. cit., loc. cit..

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com maior clareza do que no “Vamos lá!” que convida ao diálogo - a referência

fundamental entre dizer do mythos e escuta do lógos que se dá em seu dizer, porquanto:

Quando há escuta verdadeira, entendida como o(mologeiÍn, então acontece propriamente um destino, então o le¿gein dos mortais se sintoniza com o Lo¿goj e se empenha pela postura recolhedora. Então o le¿gein se dispõe ao envio sábio que consiste no recolhimento da pro-posta originariamente acolhedora, isto é, que consiste no que a pro-posição recolhedora dispensou. Assim, pois, quando os mortais levam à plenitude uma escuta verdadeira, há um envio sábio.44

A escuta do que o mythos envia se dá como lógos, mas com estas palavras,

Heidegger não quer compreender o poema de Parmênides. Ele tenta seguir um famoso

dizer de Heráclito, que diz: “Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que

tudo é um.”45 A representação tradicional que nos vem pela historiografia da filosofia,

contudo, diz que a doutrina Parmênides “se opunha” à doutrina de Heráclito. Em suma,

este modo de representar nos diz que o primeiro pensa o ser como estático, na

impossibilidade do devir, enquanto o segundo pensa o ser enquanto “puro devir”, a partir

do quê, necessariamente, não há permanência. Contudo, ao começar a ouvir o dizer que

fala no poema de Parmênides, nossa escuta nos levou ao encontro da compreensão que

Heidegger encaminha, também a partir da tentativa de uma escuta própria, do pensamento

de Heráclito. Deixemos a sentença de Heráclito, por hora, repousar em seu dizer.

Parmênides nos diz o que nosso cuidado, isto é, escuta acolhedora de lógos e

mythos, deve cuidar “(...)que caminhos únicos do procurar são dignos de serem pensados:

um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois segue o desvelar-se).”46 Na

escuta de lógos e mythos, acolhemos os caminhos do procurar. Procura já remete

novamente à cura, mas agora no sentido não do acolhimento, mas da procura, isto é, do

44 HEIDEGGER, 2002(b), p. 192. 45 HERÁCLITO, 1999, p. 71 46 PARMÊNIDES, op. cit., loc. cit..

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acolhimento como procura – questionar, como no sentido de questionar que se dá na

palavra grega dídzemai ( procurar, buscar compreender). Buscar compreender, acolhendo,

se dá por caminhos. Caminhos, se dizem, no poema, hódoi. Em grego, hodós significa

caminho. A palavra portuguesa “método” é composta do grego, metá-, e hodós. Mas o

poema fala de hodós, caminho, e não de método, fala de uma travessia de caminhos, que se

dá como dídzemai, como buscar compreender, acolhendo a dinâmica do questionar.

O fato de que o ser próprio daquele que conhece também entre em jogo no ato de conhecer marca certamente o limite do “método” mas não o da ciência. O que o instrumental do “método” não consegue alcançar deve e pode realmente ser alcançado por uma disciplina do perguntar e do investigar que garante a verdade.47

O poema de Parmênides, portanto, não vai nos indicar um método de

questionamento racional a partir do qual o pensamento “lógico” se institui

hegemonicamente como a única forma de se chegar à verdade. Vai apontar justamente

para esta “(...) disciplina do perguntar e do investigar que garante a verdade.” No contexto

do pensamento de Gadamer, ciência tem o sentido amplo de saber, não é o sentido estrito

da ciência moderna48. A verdade garantida, no contexto do mesmo pensamento, não é a

mesma verdade das proposições válidas e corretas da ciência em sentido estrito, mas a

verdade como sentido, como desvelamento em sua historicidade 49 . Qual o primeiro

caminho mencionado a que o questionar em sua busca acolhedora se lança? “(...)um, que é

e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois segue o desvelar-se). O outro, que

não é, e que, necessariamente, não-ser é; este caminho eu te digo em verdade ser

47 GADAMER, 2007, p. 631. 48 Cf. ibidem, pp. 241-496. 49 Cf. ibidem, pp. 37-240.

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totalmente insondável como algo inviável;.”50 Esta fala poética nos diz que o caminho do

questionar é: não-contradição, e que o caminho da contradição é inviável. Nesse

pormenor, as representações comuns estão corretas – porquanto não se considere inviável

como impensável, mas apenas como não-representável. Contudo, de nada adianta a

correção, se não se dá o pensamento da verdade que fala em toda e qualquer representação

correta. “(...) o correto há e se dá demais na filosofia. Raro é apenas o verdadeiro”51. A

verdade, esta se pensa como presença, em seu pleno vigor, no poema de Parmênides. No

poema, quem fala é a deusa Alétheia. Esta palavra grega traduz-se comumente como

verdade. O fundamental, contudo, não é encontrar uma tradução, mas encontrar o que o

pensamento provoca a pensar com essa palavra. O poema nos diz que o poeta-pensador é

acolhido pela verdade: “E a deusa me acolheu graciosa e profusamente, tomou a mão

direita na sua, e, desta maneira trazendo o epos à fala (...)”52

É a deusa quem convida ao diálogo, à vigência do lógos, que se dá como escuta do

dizer do mythos. Este diz que a busca acolhedora do questionar se dá por caminhos. O

poema, então, nos diz que não vamos de encontro à verdade, segundo o que normalmente

se concebe, como algo que uma vez conquistado, por nossos méritos, procuramos

representar numa sentença que, ainda por nosso julgamento, será ou não verdadeira.

Afinal, conforme nos diz a palavra alétheia: “(...) a verdade e o desencobrimento das coisas

para um grego não é uma propriedade da sentença, nem uma propriedade do

conhecimento, mas um acontecimento real, no qual as próprias coisas entram.”53 O poema

50 PARMÊNIDES, op. cit., loc. cit.. 51 HEIDEGGER, 2007, p. 283. 52 PARMÊNIDES, op. cit., p. 45. 53 HEIDEGGER, 2008, p. 235.

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nos diz que a verdade se nos revela. Nessa revelação, a verdade aponta os caminhos do

questionar. Esta caminhada questionante não nos dará, portanto, a posse da verdade.

Antes, na presença divina – que devém – da verdade, é que nosso questionar se torna

possível. O acontecimento da verdade é originário do questionar e não o seu termo final.

Conforme Heidegger propõe:

(...) acenar para onde o pensador primordial está a caminho, ou seja, a casa da deusa Alh¿qeia. A partir dessa casa também a genuína viagem de sua experiência recebe, então, a indicação do caminho. A casa da deusa é o lugar da primeira chegada na jornada do pensar, e é, então, o ponto de partida para o curso do pensar que carrega todas as relações com os entes. A essência desta casa é determinada pela deusa (...). A A A A Alh¿qeia Alh¿qeia Alh¿qeia Alh¿qeia é o descobrimento que encobre em si é o descobrimento que encobre em si é o descobrimento que encobre em si é o descobrimento que encobre em si toda emergência, todo o aparecimento e desaparecimentotoda emergência, todo o aparecimento e desaparecimentotoda emergência, todo o aparecimento e desaparecimentotoda emergência, todo o aparecimento e desaparecimento. A Alh¿qeia é a essência do verdadeiro: a verdade.54

A essência da verdade, em outra palavra, é revelação. Revelar não é simplesmente

mostrar. É re-velação: revelar é velar de novo, na medida do mostrar. O que vem à luz

parte de um velamento e retorna ao velamento, pois que a palavra Alétheia se compõe de

léthe, o véu que encobre, e do prefixo a-, que é um alfa privativo, isto é, que aponta para o

movimento de contrário: é um “não”55. A essência da verdade é: não-velamento na medida

em que o velar permanece como vigor originário e destinação, como arché e télos do

sentido do movimento re-velador. Verdade, no pensamento poético de Parmênides, não é

afirmação confirmada, nem somente negação sem referência. O caminho que a verdade

aponta ao pensador é: “um, que é e que não-ser não é; é o caminho da obediência, (pois

54 Ibidem, p. 231. 55 É importante observar que este mesmo alfa privativo instaura não apenas uma negação, mas também reforça e impõe a idéia que “nega”, e isto quer dizer que em certa medida é também afirmativo. O alfa privativo de a-létheia, a palavra grega para verdade no sentido do “não-velamento”, é ao mesmo tempo uma afirmação e um reforço do velamento. Com isto notamos que além do fato de a própria palavra grega para verdade já trazer em si a contradição fundamental, temos aqui também um sentido poético originário da negação como aquilo que inaugura e atesta a sentido daquilo que nega, concomitantemente. É uma compreensão ambígua da negação que se dá aqui, na qual a negação não se incompatibiliza com a afirmação. Pelo contrário: em a-létheia, o que parece soar é o comum pertencimento de negação e afirmação no horizonte do velamento que constitui a vigência da verdade.

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segue o desvelar-se). O outro, que não é, e que necessariamente não-ser é; este caminho eu

te digo em verdade ser totalmente insondável como algo inviável”56. Em tese, assinala-se o

princípio da não-contradição. O caminho do questionar segue as vias da não-contradição.

Mas a própria essência da verdade, compreendida de modo propriamente grego, como

alétheia, o desvelar autovelante, é, em si, contraditória. Este questionar não encontra a

verdade, mas a verdade vem ao seu encontro. Ao manifestar-se, ela se vela, segundo sua

essência. Em seu manifestar-se ocultando-se, a verdade aponta o caminho do questionar

para o poeta-pensador. Este caminho persegue as vias da não-contradição. Contudo, agora,

ouvimos o que não se menciona, nas representações vigentes do pensamento de

Parmênides: este caminho da não-contradição “é o caminho da obediência, (pois segue o

desvelar-se)”. O que se diz com isso, é que a contradição não é a impossibilidade do devir,

como normalmente se representa. Ainda, diz-se que o caminho do não-ser - que não é - é

inviável.

Contudo, se escutarmos de modo próprio, o caminho da não-contradição é o

caminho do desvelar-se, é o caminho que segue o que vem a aparecer, porque é

obediência, isto é, escuta própria, ou como se disse no primeiro capítulo, questionar. A

essência da verdade nos diz que o que vem a desvelar-se se dá no horizonte do velamento.

Não se trata de algo simplesmente transcendental, ou simplesmente transcendente, mas de

um acontecimento real, que assinala a própria presença e a historicidade do homem.

A verdade é um acontecimento que se dá no e com o próprio homem, que não é possível sem a história da essência do homem. A verdade é um acontecimento do sendo, do que é e está sendo, em cujo fundo jaz todo o ser do homem.57

56 PARMÊNIDES, op. cit., loc. cit.. 57 HEIDEGGER, 2007, p. 231.

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Dada a correspondência entre o sentido do ser, e o sentido da verdade, na dinâmica

histórica de seu desvelamento, então o que vem a ser se dá no horizonte do não-ser: só o

que não é pode vir a ser. Mas, na medida em que vem a ser, resguarda-se o que não-é, o

nada. É neste resguardo que permanece inviável. Parmênides não nos diz simplesmente

que o não-ser, o nada, deve ser esquecido, abandonado. Diz apenas que não pode ser

conhecido e não pode ser dito, porquanto é o horizonte de todo conhecer e do todo dizer –

em sentido pleno, é o horizonte da própria existência, do próprio homem. “Existência” diz

que o homem não se determina por uma característica adicional que o diferencie de todos

os outros animais: seja como animal racional, seja como animal político, seja como animal

que fala. O homem se “determina” pela falta, isto é, falta-lhe uma essência. O homem se

“determina” pela sua “indeterminação”, porquanto ele está presente como possibilidade de

toda e qualquer definição. Na tentativa de melhor apresentar o que aqui se diz, recorremos

ao que nos diz Emmanuel Carneiro Leão:

A imanência da existência, que testemunha a indigência do homem de in-sistir no mundo dos entes para poder existir, é o índice de uma outra indigência. Da indigência ainda mais profunda, por constituir-lhe todo o ser, de in-sistir na vicissitude da Verdade do Ser, sem, nunca poder possuí-la e dominá-la. Que o homem só possa transcender o mundo dos entes na medida em que nele se encarna e mergulha, já mostra a finitude inexpugnável de sua transcendência. Ele só consegue atingir a verdade do ente, enquanto habita a luz do Ser, na qual o ente se manifesta como tal (...) O Ser nunca é diretamente acessível (...). O Ser só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina o ente segundo determinada figura de sua Verdade. Êsse jogo híbrido de retraimento e manifestação, de luz e sombra, de velar e re-velar constitui a essencialização de sua Verdade, tal como os gregos a pensaram originariamente na a-letheia.58

Na medida em que o caminho pensável, do ser que “é sendo” é o caminho que

segue o desvelar-se, e este desvelar-se é um vir a ser a partir do que não é, de forma a ter

58 LEÃO, 1969, p. 15-16.

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neste não-ser, neste nada, sua vigência própria, Parmênides aponta que o sentido e o

horizonte da não-contradição é a contradição, isto é: o ser, sendo, não-é. Isto significa que

o ser não se dá completamente em nenhuma das suas manifestações, ele não é algo, não é

uma coisa que se possa conceber e representar. O ser não-é, sendo – ser, originário tudo

que é, é nada. Isto não é o mesmo que uma síntese lógica absoluta hegeliana, conforme nos

aponta Heidegger:

O puro ser e o puro nada são, portanto, o mesmo.” Esta frase de Hegel (Ciência da Lógica, Livro I, WW III, p. 74) enuncia algo certo. Ser e nada copertecem, mas não porque ambos – vistos a partir da concepção hegeliana do pensamento – coincidem em sua determinação e imediatidade, mas porque o ser mesmo é finito em sua manifestação no ente (Wesen), e somente se manifesta na transcendência do ser-aí suspenso dentro do nada.59

O poema de Parmênides afirma o sentido originário de contradição. Quando

dissemos que já não conseguimos compreendê-lo desta maneira, isto reflete a provável

dificuldade que encontramos para tentar dizer este modo de compreensão nos parágrafos

acima. Isto se deve ao fato de estarmos acostumados a achar que só entendemos alguma

coisa quando conseguimos fazer uma representação conceitual daquilo que buscamos

compreender. Quem quer que tenha tentado entender o que se disse acima a partir da

elaboração de uma representação conceitual do que se disse deve ter encontrado uma

grande dificuldade, quando não uma impossibilidade. Mas isto não quer dizer que se disse

algum absurdo, nem que a compreensão do que se disse dependa de uma espécie de

iluminação religiosa, mística, transcendental. O que se disse acima é que, no caminho da

compreensão a que somos convocados, o fundamental é o exercício do passo. A preguiça

confortável das representações que nos dão um domínio e controle daquilo que

59 HEIDEGGER, 1973(b), p. 241.

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aparentemente compreendemos não é o que se quer aqui. Isto sim, é um absurdo: resignar-

se ao conforto conservador e seguro dos conceitos como desculpa diante do perigo e do

desafio de pensar. Neste esforço será preciso tematizar as questões da representação e da

verdade, o que nos conduz ao âmbito da linguagem. Contudo, não vamos deixar a

necessidade de coesão de um argumento suplantar a escuta do poema, que é de onde nos

vem o aceno para a escuta da questão da essência do mito.

O primeiro verso do poema diz: “O mytho é o nada que é tudo”. No esforço de fugir

à constatação apressada de que esta evocação, em seu teor paradoxal, não pode ser pensada,

caminhamos por caminhos que nos levaram ao encontro:

1. Da essência matemática do pensamento metafísico, que se desdobra em filosofia

(no sentido comum), em teologia e em ciência moderna. Neste encontro pudemos

perceber porque tal pensamento é surdo ao vigor da fala do mythos.

2. Da enunciação do princípio da não-contradição, no dizer de Parmênides, como

possibilidade de compreender a essência da contradição, o que não é possível se

considerarmos a compreensão de acordo com o modelo lógico-matemático, pelo qual o

pensável é o não-contraditório. Mas na tentativa de escutar o que se diz no poema de

Parmênides o princípio da contradição nos assinalou a referência fundamental de mythos e

lógos, bem como a dinâmica re-veladora da verdade, que corresponde ao desvelar-se de ser

e nada. O poema assinala a diferença radical entre o que é e o que não é, enquanto

aproxima ser e não-ser no processo do desverlar-se;

3. Da copertinência de ser e nada – contradição originária- , não como síntese

lógica que os iguale na circunscrição da determinação mais geral, mas como diferença

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ontológica que os apropria neste comum pertencer. Há, portanto, dois sentidos de

contradição: 1. sentido lógico: o impossível: a ser evitado: impensável porque não

representável; 2. sentido ontológico: possibilidade fundamental: condição do pensamento

(e portanto do homem), na medida em que o pensamento é o próprio vigor do humano,

isto é, a travessia de sua existência, e que o pensamento, nos diz Parmênides, segue a

dinâmica re-veladora, do desvelar-se de ser e não-ser;

Então, cabe o esforço de tentar pensar o que diz o poema, resguardando-se a

impossibilidade de se o representar. Mas como podemos comprovar que o pensamento da

contradição originária de Parmênides – que resguarda a não-contradição – acontece

também na poesia de um poeta que lhe é vinte e cinco séculos posterior, e que compõe

numa outra língua?

Não se trata de comprovar nada. Para provar alguma coisa, é preciso que o

fundamento da prova não seja questionado, mas aceito como pressuposto. Assim, a prova

só é possível quando a questão já não se escuta. O que se pretende aqui é um caminho que

busque uma escuta própria, que é, conforme pensamos, o próprio colocar-se na questão.

Um poema exige uma escuta própria. A escuta própria do poema é uma escuta poética. A

escuta poética escuta a palavra, não o conceito. Escutando poeticamente as palavras de

Parmênides, atentamos para um modo vigoroso do pensar que articula contradição e não-

contradição, o que só é possível se o princípio da contradição não se entende

matematicamente, mas existencialmente. Esta escuta revelou neste pensar não um modus

operandi ultrapassado historicamente, mas o vigor próprio do acontecimento da realidade

como verdade originária em sua re-velação – isto é, o pensar como acontecer poético,

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como presença histórica do homem. Acontecer poético não se dá somente na poesia

enquanto gênero literário (e duvidamos até que se a considerarmos dessa forma ele poderá

nela se dar), mas também decerto nela, enquanto se a escuta propriamente, isto é, atenta-se

para o seu vigor questionante, resguardando-se que questionar não é o mesmo que fazer

perguntas. Este vigor poético do pensar é, portanto, a vigência em que estamos na escuta

de um poema. Na medida em que nos põe a contradição originária própria da existência,

pensamento de Parmênides é poético e o poetar de Pessoa é pensante. A cronologia que os

separa não cobre o vão originário que os reúne, porquanto vige uma escuta que os atualiza

na mais próxima vizinhança, de modo que eles falem hoje, agora, aqui. Pois se o poema de

Parmênides já não tem nada a nos dizer hoje, não dialoga com um dizer poético e pensante

de hoje, não pode ser escutado no horizonte em que estamos lançados, não conseguimos

compreender porque ainda nos deveríamos ocupar com ele. O dizer poético de Parmênides

nos fala de uma contradição originária, em que o diferente se reúne numa identidade que

não os iguala. Quando diz “o mytho é o nada que é tudo”, o poema não nos diz que o mito

é igual ao nada, nem tampouco que a ele se justapõe como pura diferença. Este é todo

sentido do é, que permanece, sempre, a ser pensado.

“O mytho é o nada que é tudo” nos diz que o mythos potencializa esta referência

fundamental entre nada e tudo. Este é, num pensar que se instaura como contradição

originária, a exemplo do de Parmênides, cujo vigor fala no verso de Pessoa, também,

nunca é tão somente um é, o equivalente lingüístico de um sinal matemático de igualdade.

Este “é” a todo tempo é um “estar sendo” na dinâmica re-veladora de ser-não-ser, de vir a

ser e não mais ser, que corresponde à vigência re-veladora da própria verdade entendida

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originariamente. Em nosso percurso até aqui, tentamos pensar o contraditório, o nada em

sua copertinência com o ser, isto é, em seu vigor próprio de um pensamento da

contradição originária, e não como algo

O primeiro verso do poema diz: “o mytho é o nada que é tudo”. “Mytho”, palavra e

dizer inaugural, inaugura o verso, e seguem-se o “nada” e o “tudo”. Este primeiro verso, do

mito, através do nada, desembocando no tudo, já é toda uma cosmogonia. “Tudo” vem ao

final do verso, como a se destacar pela força com que se manifesta. O “nada” está no meio,

está entre “mytho” e tudo. O nada reúne mito e tudo, e os separa. Esta é a sintaxe poética

do primeiro verso – que se funda no ritmo.

O ritmo poético não deriva da posição das palavras na frase, mas é o ritmo que faz

vibrar cada palavra em seu lugar próprio fazendo eclodir seu sentido. Não há ritmo porque

há palavras organizadas segundo uma métrica, mas toda métrica e toda palavra vibram na

força do que se diz a partir do ritmo. A escolha das palavras por um poeta é, por isso, uma

obediência ao ritmo. A escuta de um poema é a escuta de seu ritmo que realça o lugar

próprio da palavra na música do verso.

“O mytho é é é é o nada que é é é é tudo.” Este verso não diz simplesmente algo contraditório,

paradoxal e impensável. Decerto não se consegue representar o que se diz aqui. Nem

mesmo esta reflexão foi capaz disso, importante frisar. Decerto não se trata de raciocínio

lógico: dizendo o contraditório, o verso não iguala tudo a nada, numa síntese, tampouco.

Ser não corresponde à idéia matemática de igualdade. Ele reúne acolhendo nada e tudo,

em uma identidade e numa diferença. Esta identidade não é uma coisa, não é um algo. Não

pode, portanto, ser pensada à maneira de um ente. Como não pode ser pensada à maneira

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de um ente, nem a metafísica nem a ciência – baseada em conceitos e proposições, em

determinações - conseguem pensá-la. O pensamento é, neste verso, um pensamento

vigoroso, um pensamento próprio: é poético. Tentamos um caminho pelas vias deste verso,

vias estas que nos mostraram que a verdade do mito se dá no horizonte da não-verdade, do

ser, no horizonte do nada. Cabe seguir o rastro deste “tudo” que o nada é, se queremos

ouvir o nada que é tudo que o mytho é. Assim, parece-nos, permanecendo na escuta do

dizer próprio da poesia, isto é, no dizer que não representa, mas apresenta60, poderemos

pensar apropriadamente esta contradição originária do mythos. O que nos diz, então, em

seguida, o poema?

60 PAZ, 1972, p. 109.

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III. o mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo.III. o mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo.III. o mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo.III. o mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo.

Estes são o segundo e o terceiro verso do poema. Eles se reúnem num dizer. Este

dizer evoca o sol, os céus, o mytho e a mudez, nas dinâmicas do abrir e do brilhar. “O

mesmo sol que abre os céus”: talvez se diga aí, de modo embelezado, que o sol faz com que

o céu torne-se diurno, quando nasce o dia. Ou ainda, quem sabe, o sol aí nomeado não seja

propriamente evocado. Antes, talvez, aponte para outra coisa, isto é, talvez o poema esteja,

no fundo, dizendo outra coisa que não sol, quando diz sol. O poema, de um modo ou de

outro, nos falaria: 1) numa linguagem figurada, que aparentemente diz uma coisa, mas

essencialmente diz outra, numa linguagem embelezada que diz de modo turvo, isto é,

impreciso porém agradável à sensibilidade, uma coisa que poderia ser dita de forma clara

num discurso rigoroso e objetivo; ou ainda: 2) numa linguagem que tão somente se

sustenta na sua forma, sendo um fato estético. Neste último caso, as entrelinhas

importariam menos que a forma, e o poema seria “um dizer qualquer” numa forma ou

datada ou mirabolante ou típica - de acordo com seu tempo e não com o hoje - pelo que se

atribuiria ou mediocridade ou genialidade ou tipicidade ao sujeito autor. No primeiro caso

– o do dizer figurado - talvez o que subjaza nas entrelinhas das versificações enfeitadas e

turvas seja a expressão de uma vivência sentimental do poeta, e através do poema

poderíamos ter importantes dados acerca de seu estado de ânimo quando da redação desta

confissão pessoal, coisa de inquestionável relevância para todos, não apenas para os

especialistas que se dedicam a estudar a vida do autor por meio de seus poemas. Ainda,

talvez, as entrelinhas possam conter - de modo bastante cifrado neste caso - um relato da

época do autor com seus conflitos sócio-culturais previamente representados pela

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historiografia, relato este que veicularia sua visão de mundo ou revolucionária ou

conservadora ou típica. Neste modo de representar, o poema seria algo como uma

reportagem em versos, de grande interesse historiográfico, principalmente se faltarem

documentos mais confiáveis e mais diretos. Podem, ainda, estas entrelinhas, ser apenas

atestados da alienação do poeta que se nega a ser um repórter versificador dos conflitos de

seu tempo. Compreender o poema, em todo caso, seria apenas um problema de

compreender o que está dito por trás do que aparentemente se diz, e/ou de representar

abstratamente a forma como ele diz o que diz. Já apontamos antes para o problema

fundamental da noção estética de compreensão. Queremos agora nos direcionar ao modo

de “compreensão” que simplesmente decide ler as entrelinhas a partir das linhas, o que já

nos orientaria, então, acerca da compreensão que busca mesclar ambos os modos, o

estético e o figurado. Suspeitamos de que nos casos mencionados acima o poema não

vigore como poema, mas apenas como retórica, como confissão pessoal ou reportagem em

versos. Como se chegou a tanto?

Durante muito tempo, desde a antiguidade grega, também, acreditou-se que este

modo de compreender atualmente “aplicado” a poemas seria adequado para a compreensão

dos mitos, porque em tal contexto os mitos se apresentavam de modo privilegiado como

poemas. Não havia, originalmente, a diferença entre mito e poesia. Esse modo de

compreender um poema, hoje, segundo o qual o que nele se diz é outra coisa do que o que

ele diz, é a continuação de um modo de semelhante de compreender o mito, já muito

antigo, dado o desencontro - historicamente desencontrado - entre mito e poesia. Segundo

esse modo de compreender, o sol, evocado à proximidade na fala do poema, de fato não

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estaria próximo, mas seria apenas o sinal com que se sinaliza outra coisa. O nome por que

se convencionou chamar este modo de falar figurado ou embelezado da linguagem é

“alegoria”.

Alegoria significa allo agourein, ou seja, dizer outro, dizer outra coisa: na alegoria,

com a palavra se diz outra coisa do que a palavra diz. Na alegoria a palavra perdeu a força,

pois vale por aquilo que o pensamento é capaz de aprender com ela, por um lado, e por

outro apenas pela sua eficácia retórica. A palavra já não é um nomear que evoca. Já não é

palavra, mas suporte e superfície, pois:

É significativo que, em grego, a expressão usada para “palavra”, onoma, significa ao mesmo tempo “nome”, e em particular nome próprio, isto é, apelativo. A palavra é compreendida imediatamente a partir do nome. O nome é tal em virtude de alguém se chamar e atender por esse nome.61

Em sentido originário, a palavra evoca, ela é nome. A palavra perde sua força

quando ela já não evoca o que nomeia, quando seu dizer é alegórico. Isto coincide com as

origens da filosofia, que pouco a pouco vai negando ao poético o vigor da verdade, na

medida em que a filosofia realiza uma mudança no conceito de verdade, da re-velação de

alétheia para a correção, a adequação do nome à coisa, pois “O nome que se dá e que pode

ser mudado é o que motiva que se duvide da verdade da palavra.”62 Quando o que se diz

pode ser dito de outra forma está preparado o fundamento da alegoria. A alegoria acontece

com a perda do vigor poético da palavra. Apesar disso, desde há muito, a alegoria tem sido

um modo privilegiado de se tentar interpretar o dizer mítico. Não vamos nos entregar aqui

a uma descrição historiográfica dos usos da alegoria, por diversos autores, bem como à

contingência de suas variações que não tocam na sua essência. Há muitos tratados que já o

61 GADAMER, 2007, p. 524. 62 Ibidem, loc. cit.

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fazem, a que se pode recorrer para obter tais informações. 63 As constatações

historiográficas são úteis, mas em si elas não nos conduzem ao pensamento essencial que

aqui se quer tentar.

Antes mesmo de Platão, a alegoria foi usada como forma de se atribuir aos mitos

uma verdade. Isto apenas aparentemente contradiz o anteriormente dito, porque “atribuir

verdade” pressupõe que aquilo a que se a atribui já não a “tem”. Pelo que temos notícias,

Teágenes de Régio64, no século VI a. c. foi o primeiro a lançar mão deste procedimento.

Xenófanes de Colófon já havia criticado a imoralidade do comportamento dos deuses

homéricos, e o procedimento de Teágenes procura restaurar a dignidade dos poemas

homéricos, tão queridos pela quase totalidade dos gregos ainda muito depois do tempo de

Xenófanes. Segundo a doutrina que o escoliasta atribui a Teágenes, os nomes dos deuses

seriam alegorias, pois o que o poeta estaria querendo dizer, por exemplo, quando menciona

Atena, é inteligência, quando menciona Ares, é o irascível, quando menciona Afrodite,

paixão, Poseidon é água, Apolo, fogo, e assim por diante65. A Ilíada não passaria, então, de

uma narrativa alegórica que fala das interações e tensões dos archai ou das virtudes gregas.

Portanto, antes de Platão, embora não fosse pensada nestes termos, a palavra já era

considerada como uma aparência, que não era em si errônea, desde que se soubesse qual

era o significado essencial nela expresso. Este tipo de leitura foi largamente utilizado pelos

estóicos e epicuristas66. Por hora, queremos realçar que a alegoria surge num momento em

que os mitos começam a ser alvo de uma crítica – ainda que esta crítica não se dirija aos

63 Remetemos o leitor para os seguintes trabalhos: GUAL, 1999; VERNANT, 1999; RUTHVEN, 1976. 64 GUAL, 1999, p. 168. 65 Ibidem, p. 168-169. 66 Ibidem, p. 169.

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mitos em si, mas apenas ao comportamento dos deuses que neles se apresentava – do

contrário, não haveria necessidade de uma primeira “defesa da poesia”, conforme a

tentativa – frustrada desde os seus procedimentos – feita por Teágenes.

Curioso, contudo, é o fato de que Platão, apesar de usar o que se costuma chamar de

alegorias em muitos de seus diálogos, era contra este tipo de interpretação, que

considerava superficial e fútil. 67 Isto se torna ainda mais aberto ao pensamento, se

considerarmos que o nome de Platão está cinzelado na sua lápide historiográfica com o

epitáfio de que ele expulsou os poetas da cidade ideal, como o grande antagonista de

Homero. A questão da alegoria platônica é por demais complexa e não cabe discuti-la no

âmbito deste trabalho. Gostaríamos apenas de mencionar que, parece-nos, as alegorias

platônicas são de um caráter completamente diferente daquelas que se popularizaram a

partir de Teágenes e dos sofistas. Enquanto para estes um mito diz uma coisa que poderia

ser dita de outro modo (allo agoureuein), os mito platônicos dizem aquilo que de outra

forma não poderia ser dito. Em sentido próprio, os mitos de Platão não dizem uma coisa

que poderia ser dita de outra maneira, não dizem outra coisa senão o que dizem. No seu

dizer, abre-se o caminho para o pensamento essencial. Em sentido próprio, os mitos de

Platão não são alegorias.

Um outro tipo de alegoria, de mesma essência, aparece no século IV a.c., na Grécia.

Paléfato e Evêmero68 buscavam o fundamento de suas alegorias em eventos históricos,

sendo que para o primeiro os eventos eram coisas ínfimas, insignificantes, eventos banais,

enquanto para o segundo, os deuses e eventos míticos falavam de forma alegórica de

67 Fedro, 229d (PLATÃO, s.d., p. 30) 68 GUAL, 1999, p. 170-173.

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antigos reis e episódios importantes69. Dada o processo de apoteose que começou a ser

comum no mundo helênico, e, posteriormente, na Roma imperial, a alegoria evemerista

teve muitos adeptos. Também os padres da Igreja, no período de consolidação da fé cristã

na Europa, lançaram mão deste expediente no intuito de confirmar que os deuses pagãos

não passavam de simples seres humanos70. A essência permanece a mesma, o mito diz uma

coisa, querendo dizer outra. Com a cristianização consolidada, torna-se desnecessário o

esforço continuado de negação da verdade dos mitos pagãos. Por outro lado, contudo, o

pensamento teológico, de cunho primeiramente platônico, com Sto. Agostinho, e

posteriormente aristotélico, com a escolástica de Sto. Tomás de Aquino – ou seja, de

herança grega – busca durante o medievo adequar a revelação bíblica judaico-cristã, de

força mítica, à filosofia de teor grego. Isso não quer dizer que a revelação bíblica,

principalmente no que se refere à vida cristã dos leigos, não tivesse a força de um mito, de

uma plena manifestação do sentido e da verdade do mundo. Contudo, dada a dependência

desta mesma revelação para com a teologia, não apenas para que sua verdade fosse

conhecida, mas também justificada, já mostra que no âmbito do pensamento, que se

realizava na época como teologia, apenas a palavra, em si, não era suficiente. Precisava-se

de uma doutrina que lhe garantisse a correta interpretação.

Próximo ao fim da Idade Média, os mitos pagãos já não representam qualquer

ameaça à fé cristã plenamente dominante. Assim, no século XII, começam a aparecer

interpretações alegóricas dos antigos mitos gregos que visavam adaptá-los à moral e à

doutrina cristã. Com isso, no renascimento, os mitos gregos ressurgem como formas de arte

69 Ibidem, loc. cit. 70 ibidem, p. 170-176

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que trazem consigo um sentido cristão ou uma verdade metafísica, alquímica ou sobre o

natureza, tal como nas obras de Marsilio Ficino e Pico della Mirandola.71

A partir da agenda de esclarecimento do Iluminismo, passa-se a considerar os mitos

tão somente como enganos, como fábulas cheias de uma imaginação que nada trazia de

verdadeiro. Considerava-se, tal como de Brosses e Fontenelle, o pensamento dos povos

primitivos como fetichismo, um modo de pensar atrasado, que não conseguia perceber que

não existiam fantasmas, tal como já fazia o europeu civilizado72. Traçamos brevemente o

percurso do alegorismo, até aqui, no intuito de realçar o essencial. A alegoria priva a

palavra da força de seu nomear evocador, em que vigora a força poética da verdade. Nesta

forma de alegoria antiga e medieval, a referência essencial é sempre uma referência

externa ao intérprete: forças naturais, personagens e eventos acontecidos, os archai dos

primeiros pensadores gregos, e até mesmo as idéias metafísicas – porque, como bem se

sabe, as idéias metafísicas não eram conceitos que habitavam o intelecto do sujeito, ainda.

Esta consideração é fundamental para o que diremos a seguir.

Pensou-se que a agenda de Ilustração teria dado um fim definitivo ao procedimento

alegórico de interpretação dos mitos baseado nas representações capazes de determinar o

substancial por trás das meras palavras. Este entendimento é em geral o que se veicula,

inclusive nos estudos a que nos reportamos (ver nota 62) para quem possa se interessar

pela detalhada historiografia das opiniões acerca da verdade ou inverdade dos mitos. Neste

ponto, discordamos. Em geral, entende-se desta maneira, porque este entendimento fala a

71 ibidem, p. 179-198 72 ibidem, p. 202-207

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partir de um paradigma moderno, que se instaura definitivamente como modelo de

conhecimento a partir de Kant.

Na metafísica clássica, anterior a Kant, o conceito de sujeito, em latim subjectum,

que por sua vez é uma tradução literal do grego hypokeimenon, não se identificava com o

sujeito humano, o sujeito do conhecimento. Sujeito não significava “homem”.

Hypokeimenon significa “o que está lançado sob”, isto é, indica o fundamento, aquilo que

justifica a coisa em sua existência, aquilo que sustenta a coisa no que ela é, em suma: a

proveniência de sua essência. Subjectum, portanto, na metafísica clássica, designava aquilo

que estava como que por baixo do que se apresentava como res, como coisa. Era o

fundamento, a essência do que vinha ao encontro do homem, não de maneira imediata,

mas como essência subjacente. Já o conceito de objeto - em latim, objectum - na metafísica

clássica correspondia à representação da coisa que se apresentava no pensamento de quem

a pensava. Ou seja, sujeito correspondia ao que hoje se pensa como objeto, enquanto objeto

correspondia ao que hoje é o subjetivo.73 Quando Descartes encaminha seu pensamento de

modo a colocar o subjectum no cerne do homem, sua revolução, embora revolucionária

em seus efeitos, é apenas a inversão de um paradigma muito antigo. Com isso, tem início a

modernidade do conhecimento, em que a essência, o fundamento da coisa já não é algo

que se apresenta no real, mas no homem. Este movimento se completa com o pensamento

de Kant, quando a existência coisa já não se mostra como uma propriedade da coisa, senão

como um produto da cognição do homem. Antes de Kant, razão significava “conhecimento

do ser”, mas a partir de sua famosa crítica razão se concebe segundo o “modo” do conhecer.

73 HEIDEGGER, 2007, p. 57-58.

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O sujeito, contudo, continua a ser a razão de ser, a justificativa do objeto, que tem nele o

fundamento de sua existência. Ocorre que o sujeito é agora alocado no interior do

intelecto do homem, que se define como racional, isto é, que conhece segundo o modo da

razão que representa, calcula e determina. A forma do conhecer toma predominância

sobre o teor: na metafísica moderna, epistemologia se sobrepõe à ontologia. Este será o

molde pelo qual se formam as teorias modernas sobre o mito. A partir de Kant, a essência

que garante existência coincide com as faculdades intelectivas do homem. Não consiste a

existência mais numa propriedade das coisas, mas no modo de conhecê-las. Existente é o

que é racionalmente representável, isto é, passível de uma medida, de cálculo,

manipulação e controle. Como este modelo ainda é amplamente vigente, pensa-se que a

partir de então as teorias a respeito da verdade do mito não têm mais um caráter

alegorizante, porque não se percebe, quando se fala dentro deste modelo, que o discurso do

mito continua entendido como um dizer cuja verdade se encontra subjacente. Como não

se considera que sujeito não necessariamente corresponde ao homem, e sim à essência, ao

fundamento da existência, não se percebe que esta essência, no paradigma epistemológico

da modernidade, tão simplesmente se transportou para dentro do homem, e juntamente

com ela a verdade subjacente ao discurso do mito. As alegorias não remetem mais a uma

essência que se encontra na realidade “externa”, na natureza, nas coisas, personagens e

eventos, mas no realidade “interna”, nos processos e formas da cognição humana, que é o

sujeito da modernidade.

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Não é à toa que dentro deste modelo surge, logo depois de Kant, um pensamento

que normalmente se representa como uma total mudança na concepção da verdade dos

mitos. Em sua Introdução à Filosofia da Mitologia, Schelling nos diz:

A mitologia não se constitui simplesmente de ensinamentos sobre os deuses representados sucessivamente. Uma luta entre os sucessivos deuses, de que fala as teogonias, nunca se encontraria nas representações mitológicas a menos que elas já existissem realmente na consciência dos povos (...)74

A verdade da mitologia, a essência do que ela diz, está na consciência humana e não

mais em qualquer realidade essencial externa. É no pensamento do homem que não só o

seu sentido deve ser buscado, é dela que os mitos provém. Chamou-se esta proposta de

Schelling de “tautegorismo”, para marcar sua aparente oposição ao alegorismo. Contudo,

como vimos, a sua essência permanece a mesma. O significado do mito está em outro lugar

que não o seu próprio dizer, ele se encontra na evolução histórica da consciência

transcendental do sujeito pensante. Além disso, Schelling vê o desenvolvimento da

mitologias como um processo histórico que conduz de uma unidade divina original para o

politeísmo e deste ao monoteísmo, completado a realização plena da evolução da

consciência humano 75 ; de um conjunto de representações oriundas de uma intuição

estética que se reúnem ao fim do processo numa única representação absoluta em que a

ciência retorna à poesia76. É claro que o sistema de Schelling é complexo, mas não cabe um

exame detalhado de sua complexidade aqui. Esta sua concepção de caráter evolutivo acerca

do desenvolvimento histórico do mito, encontrava-se já em outras teorias contemporâneas

74 SCHELLING, 1972, p. 323. (tradução nossa). No original: “Mythology is not simply teachings about the gods successively represented. A struggle between successive gods, as spoken of in the theogonies, would never have been found in mythologic representations unless these had alrealdy really existed in the consciousness of peoples (...)”. 75 FELDMAN & RICHARDSON, 1972, p. 318, 76 SCHELLING, 1972(b), p. 321-322.

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a respeito do mito, que tinham em comum, como será sempre o caso a partir de Kant,

buscar o sentido do fenômeno mítico nas idéias presentes na consciência do homem. A

diferença radical de Schelling para com estes contemporâneos é que ele considerava os

mitos não como um produto de alguma falha da linguagem ou do pensamento, mas como

uma forma elevada de representação do desenvolvimento das idéias na consciência

subjetiva, o que, no seu tempo, era uma percepção por demais aprofundada, pela qual lhe

cabe todo o mérito. Esta sua percepção só viria a ser retomada no século XX.

Contemporâneos de Schelling, que acabaram nublando a sua teoria sobre o

fenômeno mítico, foram Max Müller77, com sua mitologia comparada com base filológica e

os adeptos da escola antropológica inglesa, como Tylor78, Lang79 e Frazer80. Para Max

Müller e seus seguidores, os mitos seriam uma espécie de “doença da linguagem”. Através

de análises etimológicas de vasta erudição, ele demonstrava que os nomes dos personagens

míticos e suas respectivas narrativas referiam-se originalmente a nomes e descrições de

fenômenos naturais, especificamente atmosféricos, com ênfase no sol, cujo percurso no céu

servia para explicar a origem de centenas de mitos diferentes. Com o tempo, a referência

destes nomes foi sendo esquecida, pelo que eles se converteram em personagens cuja ação

estaria ligada aos fenômenos descritos nas narrativas em que estes se encontravam. Assim,

por meio de um processo de equívoco semântico, os mitos foram surgindo. O problema,

para Max Müller, não estava exatamente no modo primitivo de pensar, mas na própria

linguagem, que não poderia nunca alcançar o caráter unívoco do pensamento. Tal não era

77 MÜLLER, 1972, p. 483-487; FELDMAN & RICHARDSON, 1972, p. 480-483. 78 TYLOR, 1958. 79 LANG, 1909. 80 FRAZER, 1998.

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a posição da escola antropológica inglesa. Para esta, a deficiência se encontrava não na

linguagem que dava origem aos mitos, mas na mentalidade que os criava. Seus adeptos

consideravam que os mitos surgiam como uma explicação proto-científica dos fenômenos

naturais, dada uma incapacidade da mente selvagem de conceber a verdadeira causa dos

fenômenos, isto é, incapacidade de fazer ciência. Este estágio do pensamento, chamado de

animismo, estaria presente na aurora da mentalidade européia também, o que explicaria,

por exemplo, a mitologia grega. Esta passara já, também, pelo segundo estágio, o religioso,

em que não se concebem mais uma gama de deuses para explicar os fenômenos, posto que

a divindade já é concebida como algo abstrato e universal. Portanto, assim como a

mentalidade dos europeus evoluiu até chegar ao pensamento plenamente desenvolvido, o

pensamento científico, acreditava-se que também as culturas primitivas da época teriam o

mesmo destino, o mesmo desenvolvimento que se cria natural na mentalidade do homem.

A partir da primeira metade do século XX, multiplicaram-se as teorias que

pretendiam tratar do fenômeno mítico, mas já não se o considerava como expressão de um

estágio inferior do pensamento humano, mas apenas, quando muito, como um modo

diferente de pensar, diferente do modo lógico e racional então dominante. É impossível

tratar de todas estas teorias, mesmo que resumidamente, aqui. Buscamos pensar, sim, o

teor essencialmente alegórico das mais relevantes dentre elas, na medida em que buscam

explicar os mitos segundo um fundamento essencial que se encontra na atividade mental

do homem, seja como estrutura ou forma de pensamento, seja como funcionamento da

psique profunda, seja como visão de mundo ou mentalidade que se manifesta em fatos

culturais. Este fundamento toma diversas e complexas formas nas elaboradas construções

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teóricas modernas, mas sua essência permanece alegórica: o que o mito diz, isto se

compreende na medida em que se compreende o fundamento essencial que lhes dá

origem, aquilo que é invariável e universal nas inúmeras manifestações do fenômeno. Não

que este modelo se imponha como subjetivista. Pelo contrário: a sua consistência reside

justamente em objetivar estas estruturas, formas, atividades psíquicas e visões de mundo

que são fenômenos da subjetividade. O pesquisador, trabalhando com estas teorias,

portanto, jamais chega a observar as estruturas e formas de seu próprio pensamento, a sua

própria atividade psíquica, a sua própria visão de mundo. Por isso, cria-se a ilusão de uma

objetividade. “Mitifica-se” (em sentido metafísico) o outro.

O primeiro alegorista, Teágenes de Régio, como vimos, buscava nos mitos,

referências subjacentes aos princípios, que em grego se diz “arché”. Mas aquela era uma

época que não havia desenvolvido a ciência, moderna fonte do mais pleno e correto

conhecimento humano, segundo a leitura pós-iluminista. Damos, então, um salto para o

início do século vinte, na época já de plena maturidade da ciência.

Tudo se torna claro, quando a consciência do sujeito moderno avança tanto que

chega a ser consciente de seu inconsciente. O mito é uma expressão em linguagem

simbólica dos conteúdos profundos da psique inconsciente do homem. Parte integrante da

atividade de sua alma, como os sonhos e as criações artísticas, foram há muito rejeitadas

pela consideração de que a mente do homem é essencialmente racional e consciente. Mito,

sonho e criações artísticas falam em linguagem simbólica, manifestando à luz da

consciência o conteúdo inconsciente. Os símbolos são inúmeros, em suas diversas

aparições tanto individuais como culturais. Para decifrar-lhes a linguagem, é preciso

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estabelecer um grupo reduzido e determinável de conteúdos essenciais a que estas

inúmeras aparências simbólicas se referem, e a partir dos quais seu significado pode ser

conhecido. Jung, chama estas formas essenciais de arquétipos:

Quando um psicanalista se interessa por símbolos, ocupa-se, em primeiro lugar, dos símbolos naturais, distintos dos símbolos culturais. Os primeiros são derivados de conteúdos inconscientes da psique e, portanto, representam um número imenso de variações das imagens arquetípicas essenciais.81

Fica dito que a essência deste método de interpretação é alegórico. Apenas ocorre

que, dada a revolução epistemológica kantiana, a essência das aparências já não há de se

encontrar, a partir de então, numa realidade externa, mas na atividade mental do homem.

A psicologia analítica não vê, contudo, esta essência como parte da atividade racional

consciente, mas sim como oriunda de uma atividade irracional inconsciente, que portanto

não se manifesta linearmente, mas simbolicamente, por meio de imagens. As imagens

simbólicas dos mitos, em sua virtual infinitude, são compreendidas a partir de um número

reduzido de arquétipos oriundos de uma camada tão profunda da psique que chega a ser

compartilhada por todos os homens, ao longo de toda a história. Cabe identificá-los e

determinar seu âmbito de significação e associação, para então poder remeter as aparências

simbólicas dos mitos a estas formas essenciais arquetípicas, decifrando-lhes assim o

sentido.

Mas talvez os mitos e sonhos sejam apenas a manifestação consciente de complexos

e desejos do inconsciente. Estes complexos e desejos foram internalizados ou reprimidos e

passaram, com o desenvolvimento da psique, ao inconsciente a partir de experiências

pessoais de impacto, principalmente da infância, por que todo ser humano passa na medida

81 JUNG, 2002, p. 93.

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em que tem pai e mãe. O sentido dos mitos e rituais, assim como dos sonhos, há de se

mostrar tão logo se consiga determinar o impacto que estas experiências têm na mente do

homem, capaz de gerar complexos e desejos que apareçam na forma - dentre outras coisas

que não nos interessam diretamente - de:

1) de mitos:

Tanto nas camadas mais baixas como nos estratos mais elevados da sociedade humana, a devoção filial tem o hábito de ceder a outros interesses. As obscuras informações que nos são trazidas pela mitologia e pelas lendas das eras primitivas da sociedade humana fornecem-nos uma imagem desagradável do poder despótico do pai e da crueldade com que ele o usava. Cronos devorou seus filhos, tal como o javali devora as crias da javalina, enquanto Zeus castrou seu pai, fazendo-se rei em seu lugar. Quanto mais irrestrita era a autoridade paterna na família antiga, mais precisava o filho, como seu sucessor predestinado, descobrir-se na posição de um inimigo, e mais impaciente devia ficar para tornar-se chefe, ele próprio, através da morte do pai.82

2) de práticas religiosas e ritos:

Assim, pois, na cena do sacrifício ao deus da tribo, o pai, de fato, aparece duas vezes: como deus e como animal totêmico a sacrificar. Mas em nossa tentativa de compreender a situação, devemos acautelar-nos contra aquelas interpretações superficiais que tendem a mostrá-lo como simples alegoria, sem tomar em conta a estratificação histórica. A dúplice presença do pai naquela cena corresponde à significação da duas soluções dadas, em tempos diversos, ao conflito. A atitude ambivalente para com o pai tomou uma expressão plástica, bem assim o triunfo dos sentimentos carinhosos do filho sobre os seus sentimentos hostis. A cena da derrota do pai e da sua maior humilhação, tornou-se matéria para a representação de seu triunfo supremo. A significação geral adquirida pelo sacrifício encontra-se no fato de oferecer ao pai a satisfação pela humilhação sofrida e isso no mesmo ato que perpetua a memória daquela violação.83

Claramente, o esforço de Freud é livrar-se da simplicidade alegórica. Contudo,

conforme vimos, simplesmente o fundamento da alegoria não há de se encontrar, mais, na

modernidade, em essências “externas” ao homem, mas em essências “internas” que

remetem, de uma forma ou de outra, à sua mente. Decifrar sentido do mito é conhecer o

sentido psíquico, afetivo, a forma essencial das experiências afetivas, principalmente das

82 FREUD, 1987, p. 253. 83 FREUD, s.d. p. 225-226.

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que criança tem com os pais ou em sua ausência. Cabe identificar esta forma essencial a

que os mitos, em sua aparição, se remetem, e de onde se originam, para que se possa

compreendê-los. Este é o tipo de exegese que se apóia na teoria de Freud. Tem, também,

como se percebe, um caráter essencialmente alegórico moderno.

Baseando-se no pressuposto de que a linguagem simbólica dos mitos expressa um

conteúdo essencial arquetípico, que se organiza em determinada formas narrativas

essenciais, que poderiam ser identificadas em todos os tipos de narrativas míticas que se

referem a cada uma destas formas arquetípicas essenciais, Joseph Campbell, dentre

outros84, dedicam-se a investigar estas formas de narrativas essenciais, como por exemplo,

as narrativas que contam feitos de heróis. Para Campbell, todas as narrativas de heróis são

meras variações da seguinte forma arquetípica essencial, que ele identifica por um nome

que em si já diz muita coisa, o monomito:

O herói se lança numa aventura saindo do mundo cotidiano, adentrando uma região de maravilhas sobrenaturais: forças fabulosas são encaradas e uma vitória decisiva é obtida: o herói retorna desta aventura misteriosa com o poder de distribuir benesses aos seus.85

O autor analisa outros tipos de narrativas, como narrativas do surgimento do

mundo e de seu fim, sempre reduzindo-as a um modelo essencial, como o monomito do

herói. Todos os mitos seriam classificados e interpretados de acordo com essas estruturas

narrativas essenciais, que teriam um significado universal para a humanidade, em todos os

tempos e culturas. A riqueza, a variedade, a possibilidade de novos sentidos dos mitos, dos

84 NEUMANN, 2003 e DEVEREUX, 1990. Estes baseiam-se na teoria dos arquétipos de Jung para estudar a formação do simbolismo feminino nos mitos. 85 CAMPBELL, 1949, p. 30. (tradução nossa). No original: “próximosA hero ventures forth from the world of common day into a region of supernatural wonder: fabulous forces are there encountered and a decisive victory is won: the hero comes back from this mysterious adventure with the power to bestow boons on his fellow man”

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ritos, do acontecimento vivo e extraordinário do poético são sufocados por um

esquematismo extremamente reducionista que, contudo, tem a boa vontade de querer

restaurar o prestígio dos mitos na vida moderna.

Há muitas outras abordagens, que adotam o mesmo modelo alegórico moderno

(essência pensada como ente, formal e concebida a partir de relações conceituais mais ou

menos complexas), embora se elaborem com acervo conceitual e procedimento

metodológico diferente. O fato de adotarmos aqui esta visão, buscando o fundamento

essencial comum a todas as teorias, deriva do fato de que, segundo a noção epistemológica

em que se fundam, todas elas se constituem exatamente segundo o paradigma metafísico

que arvora o científico, ao modo do matemático, no discurso hegemônico da verdade. Em

nosso modo de proceder, cada coisa pensada deve ser pensada no que ela é. E as teorias

metafisicamente constituídas, que adotam, constroem-se sobre e estruturam-se segundo o

modelo de aparências mutáveis e variadas, cuja verdade se conhece a partir de essências

universais determinadas (embora modernas: formais, a partir de relações conceituais

complexas), para que sejam pensadas e compreendidas adequadamente, devem ser

pensadas segundo esta mesma metafísica que é o cerne de sua constituição. Poderíamos

gastar páginas e páginas descrevendo com razoável detalhe cada uma destas teorias, mas,

procedendo segundo o modo que lhes é próprio, que procura ver em tudo que investiga,

determina, calcula e representa, apenas as formas, estruturas e conceitos fundamentais

universais, vamos pensá-las à sua própria maneira. Este, de modo algum é o modo próprio

de se pensar o fenômeno poético e mítico, que não é metafisicamente constituído segundo

um fundamento entificado universal, uma vez que se dá sobretudo onde tal modo de

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pensar representativo e conceitual não se impõe. Daremos, desta feita, a seguir, o teor

essencial de outras teorias científicas e metafísicas relevantes.

Para Claude Lévi-Strauss86, “(...) o mito parte de uma estrutura por meio da qual

empreende a construção de um conjunto (objeto + fato).”87 Tratava-se de compreender,

dentre outros fatos culturais, o objeto da narrativa mítica como forma de pensamento, e

esta tarefa realizar-se-ia assim que se pudesse reduzir o conjunto imenso das variações dos

mitos a um esquema abstrato. Esta esquematização consiste em mapear a forma do

pensamento humano, isto é, a representar a “lógica” de seu funcionamento, a partir das

estruturas que o organizam segundo uma relações oposicionais. Assim, esta estrutura

cumpre o papel paradigmático do universal, epistemologicamente concebido, do qual a

narrativa do mito é uma aparência variável:

É provável que não haja muito mais que isto na abordagem estruturalista: é a busca de invariantes ou elementos invariantes entre diferenças superficiais. (...) O problema é descobrir aquilo que é comum a todos. É um problema, poder-se-ia dizer, de tradução, de traduzir o que está expresso numa linguagem – ou num código, se se preferir, mas linguagem é suficiente – numa expressão de linguagem diferente.88

À diferença das escolas anteriores, não se vê este pensamento como primitivo,

posto que estas estruturas são consideradas como um elemento da neurofisiologia do

cérebro humano, presidindo, portanto, também, o pensamento do homem civilizado. Tal

como os alegoristas antigos buscavam nos elementos, nos archai, ou em episódios e

personagens o significado oculto das narrativas míticas, o pensamento científico vinte e

cinco séculos depois procura o significado dos mitos no funcionamento do intelecto

humano. Contudo, no modelo estruturalista, esses elementos que formam a estrutura não

86 LÉVI-STRAUSS, 1991; s.d.; 2005. 87 Idem, 1989, p. 41. 88 Idem, s.d., p. 20-21.

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tem valor em si, mas apenas a partir da relação que se estabelece. Ainda assim, esta relação

se estabelece segundo uma estrutura que tudo ordena e predetermina nas suas possíveis

variedades de relação. A estrutura é uma concepção formal, epistemológica, de essência. O

que se representa não é o teor do ser, mas o como do ser, “o que é” é representado no

“como é”. O significado dos mitos, assim, se revela quando se representa a estrutura de

funcionamento do pensamento que produziria os mitos a partir da qual eles poderiam ser

compreendidos.

Aplicando sistematicamente este método de análise estrutural, chega-se a ordenar todas as variantes conhecidas de um mito em uma série, formando uma espécie de grupo de permutações, onde as variantes situadas em ambas as extremidades da série oferecem, uma em relação à outra, uma estrutura simétrica, mas inversa. Introduz-se, pois, um início de ordem onde não havia senão caos, e ganha-se a vantagem suplementar de distinguir certas operações lógicas que estão no fundamento do pensamento mítico.89

A estrutura fundamental do pensamento, à semelhança do “consciente coletivo” de

Durkheim90, seria tal como um recipiente universal em que se despeja um conteúdo local91.

Seria, assim, a essência formalmente concebida a partir de relações mais ou menos

complexas, isto é, seria o fundamento, a origem e a razão de ser da aparência que o mito

enquanto narrado é. Tal como a língua se organiza em fonemas, morfemas, etc, num

encadeamento hierárquico, do mais simples ao mais complexo, a narrativa do mito – um

fato lingüístico – estaria organizada em mitemas, pequenas seqüências da narrativa que, se 89 LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 258. 90 DURKHEIM, 2003. 91 Outro trabalho importante de orientação estruturalista é o de George Dúmezil (1995 e 1999). De fato, em seu estudo das sociedades e mitos indo-europeus, Dumezil representa uma estrutura ideológica que atravessaria toda o desdobramento histórico das sociedades de origem indo-européia sustentando uma sociedade tripartida. Neste sentido, embora procure encontrar, nas variedades de manifestações sócio-culturais e históricas, uma estrutura universal e invariável própria do pensamento, Dumézil trata esta estrutura ideológica tripartida representada na mitologia indo-européia a partir de sua função como elemento sustentador das instituições e práticas sócio-culturais. Contudo, esta estrutura ideológica abstrata é que realiza a função de elemento de coesão sócio-cultural, tal como em Lévi-Strauss. Não é propriamente a narrativa mítica que têm esta função. Então, sua abordagem do mito é estruturalista (o mito se compreende pela estrutura de pensamento) e não funcionalista, como veremos adiante, em que o mito, enquanto narrativa, é que preenche a função de elemento de coesão.

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tiradas de sua sintaxe linear e transportada para um quadro sinóptico paradigmático

organizado segundo oposições temáticas, poderiam revelar os principais conflitos de uma

cultura, que estariam expressos nesta lógica de oposições dos mitos, pelo que também o

sentido dos mitos se nos revelaria, juntamente com as propriedades do funcionamento

universal da mente humana:

Essas propriedades só podem ser pesquisada acima do nível habitual da expressão lingüística; dito de outro modo, elas são de natureza mais complexa do que as que se encontram numa expressão lingüística de qualquer tipo.92

Este sentido dos mitos, portanto, seria algo que somente os antropólogos

conheceriam, posto que o povo com sua “expressão lingüística” situada abaixo do nível da

estrutura não chega aos níveis mais elevados de compreensão de seu próprio mundo. Este

povo - que habita o acontecimento de mundo, verdade e sentido dos seus mitos, que a

interpretação do narrar e escutar instaura e em que estes mitos têm vigência - só seria

capaz de compreender o seu sentido menos elevado, contingente ao invés de universal,

inferior, de acordo com a hegemonia científica do compreender. Realçamos, de passagem,

que não é preciso muita imaginação para se ver que as conseqüências sócio-culturais da

universalização científica de tal conclusão podem ser, no mínimo, desastrosas.

Tentando uma libertação destes moldes de conhecimento, que parecem se dar

ainda de acordo com um mesmo modelo historicamente há muito estabelecido, pensou-se

que se deveria buscar não a forma e o conteúdo, mas o contexto. O mito não se entenderia

por sua forma ou conteúdo, mas por sua função. Sua função se dá no contexto da cultura

em que o mito vive. Compreender o mito é compreender sua finalidade. Sua finalidade é

sustentar, justificar, expressar e codificar as práticas e instituições cultuais. Isto

92 LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 242.

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aparentemente nos leva a uma saída, posto que não identifica a essência do mito, aquilo a

partir do que ele pode ser compreendido, em tal ou qual atividade da mente humana.

Compreende-se o mito como um fundamento da cultura. Na verdade, quando assim se

procede, estabelece-se que o mito e as práticas culturais estão numa íntima relação, em que

as práticas são sustentadas pelos mitos, e estes são narrados e criados como requisições

destas práticas culturais. O mito é um elemento fundamental da cultura. Esta é a essência

da escola entendida como funcionalismo, cujo maior representante é o etnólogo

Malinowski.93 A compreensão dos mitos nos vem com seu contexto de funcionamento.

Mas este contexto de funcionamento, o que é, como se o compreende, enquanto

fenômeno? Nas palavras do próprio Malinowski, tudo se compreende quando, novamente,

tudo se volta para a mente do homem:

“O que me interessa realmente realmente realmente realmente no estudo do nativo é sua visão das coisasvisão das coisasvisão das coisasvisão das coisas, sua Weltanschaung94, o sopro de vida e realidade sopro de vida e realidade sopro de vida e realidade sopro de vida e realidade que ele respira e pelo qual vive. Cada cultura humana dá a seus portadoresportadoresportadoresportadores uma visão do mundo visão do mundo visão do mundo visão do mundo definida, um certo gosto pela vida. Nas viagens pela história humana e pela superfície terrestre, é a possibilidade de ver a vida e o mundo de vários ângulosver a vida e o mundo de vários ângulosver a vida e o mundo de vários ângulosver a vida e o mundo de vários ângulos, peculiar a cada cultura, que sempre me encantou mais que tudo (...)”95

A função do mito numa cultura tem sua real compreensão a partir da representação

da visão de mundo de que os membros cultura são portadores, e para a qual ele funciona

como um elemento articulador96. Esta visão de mundo é algo como um retrato conceitual

93 MALINOWSKI, 1975; 1978. 94 Em alemão, literalmente, “visão de mundo”. 95 MALINOWSKI, 1978, p. 370. 96 Ou seja, compreende-se o mito, enquanto narrativa, por sua função de coesão que – articulando e justificando as diversas práticas e instituições sócio-culturais - permite compor a visão de mundo de um povo. Um outro teórico funcionalista, mais recente, é Walter Burket: “Por isso se recomenda que não se procure a especificidade do mito no conteúdo, mas na função” (s.d., p. 18). Ele tem como objeto as religiões antigas, estando ligado aos estudos clássicos. Levando esta proposta funcionalista da etnologia de Malinowski para este campo, Burket procura lançar mão de dados da cultura material para estabelecer a função que o mito, como narrativa, tem como “grande tema” cultural. Portanto, apesar das diferenças de método, são pequenas as diferenças teóricas com relação a Malinowski, porque Burket tende a trabalhar historiograficamente, enquanto aquele descreve culturas “vivas”. Deste modo, o que se diz aqui do funcionalismo de Malinowski é igualmente apropriado ao de Burket.

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do mundo. Uma vez que se consegue representar esta visão de mundo, como numa pintura

mental conceitual e descritiva, consegue-se compreender o contexto cultural em que o

mito funciona. O contexto é uma aparência que só pode ser compreendida em sua verdade

a partir de uma essência, que é uma matéria ou conteúdo mental de que os membros da

cultura são portadores. O significado do mito, articulando práticas e instituições sociais,

está presente para os membros da cultura em que ele se apresenta não exatamente a partir

de uma estrutura ou forma de pensamento, mas como uma visão de mundo. O mito, no

funcionalismo, é algo como uma argamassa que liga os tijolos das realizações que formam o

edifício cultural.

Ora, considerando-se rito como toda e qualquer prática sócio-cultural - uma vez

que etnologicamente não se pode partir do conceito de rito ligado apenas à religião (pois o

próprio conceito de religião é problemático para a etnografia) – então esta visão

funcionalista, segundo a qual o mito é como que uma força de coesão das diversas práticas

sócio-culturais, já seria refutada por um contemporâneo de Malinowski. São estas as

palavras de Walter Otto:

Compreende-se facilmente que os dois, mito e rito, são uma coisa só, quando se abandona o preconceito segundo o qual o mito traz a lume algo que só poderia aparecer na palavra e jamais também, até de forma mais espontânea, na conduta e na atividade do ser humano, de uma forma viva e produtiva.97

Portanto, já para Walter Otto, o mito não é tratado simplesmente como relato, mas

é algo que se instaura no cerne da própria existência do homem e todo fazer poético

(“vivo” e “produtivo”, nas palavras do autor, remetem justamente para a essência da

97 OTTO, 2006, p. 42.

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poiésis). Assim, não se pode considerar sequer qualquer visão de mundo, porque “mundo”

e “visão” não são coisas alheias à existência.

A visão de mundo, que é a visão da cultura que o etnólogo obtém, é a visão do

edifício cultural. Só vê o edifício quem está fora dele. Afinal, que homem é este que tem

uma visão de mundo? A visão do âmbito total das realizações de uma determinada cultura,

num determinado momento histórico? Quem, senão o homem que se identifica com sua

consciência, é capaz de atirar-se aos píncaros do espaço sideral e, da mesma forma que

consegue ver a terra girando em torno do sol, consegue ter, lá do alto, uma visão de

mundo, enxergar na tela de sua mente a representação total de uma cultura? Para se ter

uma visão de mundo, é preciso estar fora do horizonte em que uma cultura se realiza, é

preciso tê-la toda no campo de visão, é preciso vê-la, desta feita, abstratamente. É preciso

crer-se fora do mundo. Só o etnógrafo tem a visão de mundo que ele acredita estar na

consciência do membros da cultura que estuda. Porque quem está lançado no horizonte do

mundo, nunca pode ter uma visão deste mundo. Quando muito o que se lhe mostra é uma

perspectiva, que, neste sentido é sempre um ponto de vista. A perspectiva não é uma visão

de mundo, é uma visão no mundo. A perspectiva é subjetiva e não objetiva. Por isso, nunca

se adota a perspectiva, quando se quer fazer ciência. Mas também não é o que pretendemos

aqui, porque o horizonte é sempre mais amplo que a perspectiva. A perspectiva não abriga

o pleno horizonte que é o acontecimento de mundo. Imaginemos, como ilustração, que a

perspectiva abarca um ângulo de visão, que é sempre, no máximo, de 180 graus, para quem

não tem visão estreita. O horizonte seria um círculo completo, em sua circularidade

reveladora. Não podemos enxergar a nossa nuca: estamos – e de fato sempre estamos –

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num horizonte, em que temos sempre uma perspectiva. Certo, toda perspectiva só é

possível num horizonte. Igualmente certo, porém, é isto: não podemos sair dele. Então, a

perspectiva, numa compreensão própria, dá lugar ao horizonte que a possibilita, instaura

sua vigência e a liberta do relativismo. Assim, urge o pensamento do sentido que, no

âmbito das manifestações, do que vêm à luz da visão, quer abrigar sempre o velamento

que, para além e aquém da perspectiva, sustenta o campo de visão, quer pensar a plenitude

do horizonte na finitude da perspectiva.

Para Ernest Cassirer98, trata-se também de conceber e descrever uma forma de

pensamento para que se possa compreender o mito, tentando, cabe realçar, entender-lhe

pelo que lhe é próprio. Mas como podemos saber de antemão o que é próprio ao mito se

não o compreendemos? O procedimento consiste em representar o fundamento essencial,

em termos kantianos. Neste caso, é um fundamento formal, as categorias universais e

imutáveis do pensamento, de onde as inúmeras manifestações que nos vêm aos sentidos se

originam e a partir das quais elas podem ser compreendidas, a “força unitária de formação

e a lei segundo a qual esta força age” de que fala o filósofo:

Por trás da incalculável abundância de produções míticas deveria, desse modo, tornar-se visível uma força unitária de formação e a lei segundo a qual esta força age. Mas o mito não seria uma forma verdadeiramente espiritual se essa sua unidade não significasse senão uma simplicidade sem contradições.99

Além da exclusão da contradição do âmbito do pensável, é notável a recorrência de

palavras que remetem a leis e normas, na obra deste pensador. Trata-se de conceber o

fenômeno segundo leis que o regeriam. O programa que este pensamento parece

apresentar é o de legislar sobre a realidade, para, de posse das representações destas leis,

98 CASSIRER, 2000; 2004 99 CASSIRER, 2004, p. 391.

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assegurar a verdade, pressupondo que a realidade obedeceria às leis para poder ser

plenamente real, tal como um cidadão racional obedece às leis do Estado para poder ser

plenamente cidadão. O que impera é a concepção de toda a realidade segundo os moldes

da concepção de natureza veiculada na Física moderna. Próprio do mito, aquilo que

permite pensá-lo e compreendê-lo, para Cassirer, são categorias do pensamento que são

específicas deste fenômeno e modo de pensar, considerado com pensamento simbólico,

que se difere do pensamento lógico e crítico não por provir do inconsciente, mas por ser

ilógica e não crítica, sem consciência de si. Este pensamento simbólico, contudo, embora

diferente em seu modo de operação, não apenas interage com a racionalidade, mas é

fundamental para a formação dos conteúdos do pensamento como um todo uma vez que

determina o que é apreendido pela sensibilidade. Caracteriza-se, em seu desenvolvimento,

por contradições apreendidas como uma unidade ou “simplicidade sem contradições”, sem

que se resolvam numa síntese. Estas categorias regeriam, como leis, o pensamento mítico,

que assim seria um processar e produzir de variados conteúdos sob a jurisdição de tais leis.

No âmbito de todas as características, este traço fundamental pode ser identificado.

Essa lei peculiar da consciência ou coincidência dos elementos de relação no pensamento mítico pode ser acompanhada através de todas as sua categorias singulares. Se começamos pela categoria de quantidade, então já se revelou como o pensamento mítico não estabelece, entre o todo e as partes, nenhuma linha divisória nítida; como, para ele, a parte não apenas representa [vertritt], mas até mesmo é o todo.100

Esta observação de Cassirer está aparentemente de acordo com o que afirmamos, de

modo que concordaríamos com ele. Mas, ao contrário do filósofo, pelo que pensamos da

contradição originária, não se trata de oposições entre “coisas” do “tudo”, ou entre uma

100 Ibidem, p. 121-122.

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“coisa” e o “tudo”, ou seja, entre entes, isto é, oposições metafisicamente consideradas. O

pensamento, apesar disso, no pensamento de Cassirer, é algo fundamental para a

compreensão da atividade mental do homem, que antes de animal racional é considerado

um animal simbólico, cuja capacidade cognitiva não apenas é afetada pela sensibilidade a

que se adapta, mas antes, a atividade simbólica da mente do homem é que dá forma às

impressões sensíveis. Esta produção simbólica da mente humana é a base da formação da

unidade em sua consciência, de modo que é impossível compreender as possibilidades do

conhecimento sem levar em conta o fenômeno mítico e religioso101. Este é um dos pontos

em que Cassirer se separa de Kant. Permanece, contudo, tal como os demais teóricos que

trataram do fenômeno mítico dentro do paradigma metafísico moderno, o procedimento

de buscar a compreensão do mito num subjectum agora identificado com a atividade

mental humana que, neste caso, é tratada principalmente como atividade cognitiva.

“O mytho é o nada que é tudo”, nos diz o poema. Buscando num pensar não

metafísico a possibilidade de uma contradição originária, viemos a perceber algo muito

próximo do que nos fala Cassirer, de que o pensamento poético e mítico se dá como uma

reunião de diferenças não-sintética. Esta reunião de diferenças não-sintética, contudo (e aí

nos separamos do filósofo) não é tão simplesmente entre coisas, conceitos ou intuições,

mas entre o sendo em seu velar-se e o não-sendo em seu devir, entre nada e tudo, entre ser

e não-ser. Não se dá como atividade cognitiva a partir de impressões sensíveis. A

representação moderna julga-se, por vezes, com o direito de legislar sobre o pensamento,

aprisionar-lhe a dinâmica reveladora, para que possa assim conceituá-lo, esquematizá-lo e

101 CASSIRER, 1956, p. 165.

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defini-lo no que ele é, claramente. Quando se determina o que uma coisa é, a essência de

uma coisa como um ente, isto é, a partir de predicação, o modo de uma representação que

dá poder de julgar se o que se apresenta é ou não é o que está determinado, determina-se,

concomitantemente, o que uma coisa deve ser. Toda descrição predicativa é já uma

prescrição. No âmbito das realizações em que o homem se realiza parece de bom senso que

tal procedimento legislador seja de todo evitado.

No esforço de se solucionar este problema epistemológico, novas tentativas foram

empreendidas, mas não pela procura do pensamento do sentido no horizonte, mas

misturando-se elementos das diversas abordagens, certamente a partir da consideração de

que o problema não estava no princípio adotado, mas apenas no fato de se lançar mão de

apenas alguns deles, numa abordagem redutora, e não de uma combinação completa, de

modo que pudessem se integrar. Dentre os que empreenderam a tentativa de combinar o

princípio de uma matéria simbólica – não necessariamente inconsciente, mas ilógica - com

a descrição da forma de operação do pensamento própria ao mito, destacamos Gilbert

Durand102.

Durand busca re-elaborar a proposta do estruturalismo em conjunto com o

simbolismo de Jung e Bachelard, como o próprio termo “antropologia arquetipológica”103

que utiliza para denominar seu trabalho revela. Procura classificar as formas simbólicas do

imaginário – fonte de todas as representações indiretas do mundo, como mitos, filmes de

ficção científica, representações atômicas, cosmológicas, etc104 - em tipos de imagens, que

102 DURAND, 2002; 2004; s.d. 103 DURAND, s.d., p. 53. 104 Ibidem, p. 7.

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por sua vez se organizam em regimes e dominantes, numa verdadeira gramática do

imaginário105, cujo funcionamento se diferenciaria da lógica dominante no ocidente:

Portanto, o imaginário, nas suas manifestações mais típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação, etc.) e em relação à lógica ocidental desde Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico. A identidade não-localizável, o tempo não-assimétrico e a redundância e metonímia “halográfica” definem uma lógica “inteiramente outra (...)”106

Elabora-se, então, como forma de representar esquematicamente esta “outra

lógica”, uma montagem estrutural que busca abarcar a totalidade da atividade psíquica

integrada em todos os seus desempenhos.

O teórico recomenda, também, vários níveis de análise dos mitos, que não se

limitam à análise científica107. A essência do imaginário, assim, aparentemente, não se

deixa reduzir, tal como nas teorias anteriores, a uma essência. Apenas aparentemente,

porque o simples fato de a essência do imaginário se deixar representar num quadro

sinótico de classificações já aponta para o fato de que se trata, aqui, de um complexo

esquema que articula não somente a estrutura formal mas também o teor, a temática, a

matéria simbólica deste imaginário. Reduzido a um complexo inventário de símbolos em

suas múltiplas combinações estruturais, este tal imaginário converte-se numa imagem

sistemática, numa barroca representação composta de uma multiplicidade de conceitos que

não se crêem conceitos e de suas possíveis combinações. O que esta complexa forma de

análise tem em comum com as demais é o fato de buscar sempre entender um fenômeno

tão vivo e real como o próprio homem a partir de uma suposta estrutura formal de teor

simbólico, mais ou menos complexa, que estaria como que por natureza da mente do homo

105 Idem, 2002. 106 Idem, 2004, p. 87. 107 Ibidem, p. 57-67.

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sapiens. O que acontece é que “essência”, na metafísica, não diz simplesmente de um

conteúdo, antes, sim, fala de um princípio formal universal imutável, já desde as primeiras

interpretações do eidos de Platão. Este princípio se torna cada vez mais complexo, na

tentativa de superá-lo. Para superá-lo, é até mesmo contraproducente torná-lo cada vez

mais complexo. Não cabe superá-lo, o primeiro passo para tentar pensar de modo não-

metafísico, não conceitual, não reduzir o mito a sistemas de representação mental, é pôr

em questão justamente o que é isto, um princípio. De nada adianta inventar sempre novos

sistemas, vestir com as novas roupas dos jargões que entram e saem de moda o mesmo

princípio representativo das idéias, inventar conceitos e garimpar funções que permitam

deixar o real que nos escapa na medida em que devém sempre como que guardado na

segurança acessível da gaveta de nossa mesinha de cabeceira, assegurando o significado da

fantasia de nossos sonhos.

Este tipo de procedimento, como os que estudamos acima, evita o desafio de

pensamento que todo mito, todo obrar poético, nos coloca para, diante deste abismo sem

fundamento, como é comum no pensar metafísico, adotar logo o procedimento de

conceber um fundamento determinável de variável complexidade a partir do qual toda a

variedade e mistério do acontecimento do real podem ter seu entendimento

metodologicamente garantido, e de onde supostamente se originariam. O problema não é a

complexidade dos sistemas, mas do fenômeno, do real sempre mais e menos que qualquer

“agora sim!” que se quer um “sempre assim”. Não duvidamos aqui da eficácia destes saberes

em seus campos: que a psicologia seja capaz de detectar e tratar das patologias da mente, tal

como a medicina detecta e trata as patologias do corpo, que a antropologia seja capaz de

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determinar a essência deste animal cultural a que se refere como homem, tal como a

biologia determina a essência dos demais animais, que a sociologia seja capaz de calcular a

mecânica das interações de forças sociais, tal como a física clássica, apenas com maior

objetividade, calcula a mecânica das interações de forças naturais, que a lingüística possa

representar os processos e transformações das interações comunicativas tal como a química

representa os processos e transformações das interações que estuda. Questionamos apenas

sua capacidade de lidar com questões essenciais, que não se limitam a campos e não se

apresentam como objetos. Nelas se dá sempre um saber e um não saber.

Não sabemos o que é isto, o mito, no mesmo movimento em que ele se oferece ao

nosso saber. Ele se nos mostra, quando muito, como um pensar que não é esquemático, que

não se submete, desta feita, nem ao mais complexo esquema. Isto é o que dissemos

anteriormente, quando afirmamos que a metafísica pensa o ser ao modo de um ente, isto é,

pensa o não-determinável como algo determinável, delimitável e cognoscível, que pode ser

controlado, calculado e está a todo tempo acessível. A metafísica realiza, por meio deste

procedimento, a vontade de poder do sujeito que quer tudo conhecer, para tudo dominar.

Urge o pensamento do sentido. Este pensamento não opera dentro das relações de

sujeito e objeto surgidas historicamente, em que este objeto pode ser tudo, até mesmo um

outro homem. Não pode, também, lançar mão das palavras desgastadas, nem tampouco

simplesmente inventar novos conceitos, dar novos nomes às categorias cognitivas,

conceber novas estruturas objetivas da subjetividade. Este pensamento tem o desafio de

estar sempre lançado nas questões, de confrontar-se sempre com o devir e ainda a todo

tempo pensar a proveniência do que devém, sem recorrer ao procedimento fácil de

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estabelecer esta proveniência como um conjunto articulado de determinações, que trazem

a falsa sensação de domínio e segurança do real, que sempre se mostra impotente diante da

própria historicidade deste mesmo real se manifestando em sua verdade originária. Na

tentativa de entender o mito, uma vigência do real em que, segundo se crê, inventam-se

pessoas fabulosas para dar significado à existência das coisas, a ciência dos mitos acabou

por inventar coisas fabulosas para dar significado à existência de pessoas humanas – e

assim o horizonte do mito acabou povoado de entidades supra-sensíveis ainda mais

estranhas que os deuses, como estruturas mentais, arquétipos, complexos, ideologias,

símbolos, funções e visões de mundo. Este pensamento que aqui se arrisca quer pensar o

extra-ordinário no ordinário, sem reduzir um ao outro. Este pensamento é sempre uma

aventura e um risco, uma errância – condição humana – assumida. Não quer criar um

sistema de representações sempre presente em tudo que se apresenta. Este pensamento

lança o homem na jornada de apropriar-se do que lhe é próprio, instaurando-se como o

mito de Ulisses. Um poema intitulado “Ulysses”, que nos manifesta na linguagem de nossa

língua o vigor poético do mythos pelas vias perigosas da travessia humana, diz:

O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo108

“O mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo”. O sol é um mytho,

e é sol. Ele não é, apenas, um astro que flutua no universo. Não é isso que o poema diz. Em

seu brilhar ele é um mytho. Ele faz sentido, embora nós não saibamos o que é isto, um

mytho. Sol, como mito, é brilhante. Com ele, abrem-se os céus, e a manhã velada sob o

manto da noite acontece com o sentido de sua claridade. O céu separa-se da terra por nada.

108 PESSOA, op. cit., loc. cit..

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Sobre a terra, caminham os humanos. Erguemos a sola de um dos pés e mantemos a do

outro no solo: os humanos caminhamos entre o céu aberto e a terra. O sol abre os céus que,

com a terra, dimensiona os humanos caminhantes que, abertos a este brilhar, no húmus

fértil da terra, poetizam seu acontecer. Sobre o húmus fértil da terra, ligados à terra, os

seres – humanos - estão abertos para o acontecimento de abertura dos céus, no vigor

brilhante do sol. Na plenitude de seu brilhar, a luz já não é mera irradiação, mera onda a

navegar pelo espaço, mera energia e matéria. Ela faz sentido. A luz, na plenitude de seu

brilhar, aquece e acaricia a terra, ilumina a dor e a alegria, amadurece o fruto e resseca o

cadáver. A terra fértil corresponde à sua luminosidade e pode assim eclodir em infindáveis

e sempre novas manhãs viventes. A terra também vela sua fertilidade, nas imensidões das

areias douradas e nas montanhas rochosas que, totalmente abertas, correspondem ao vigor

quente e ambíguo do sol, que traz vida e morte. A terra corresponde, mas também por isso

é aquela que manifesta o sentido do sol. Sobre a terra, os mortais compreendem o brilhar

do sol. Por ele podem ver todas as coisas, à sua luz aparecem o rio e a casa, a criança e o

cão, a pedra e o carro. Ele, contudo, doando-se em sua luminosidade, abrindo a totalidade

do visível à visão, não se pode ver. Ao se olhar o sol, a vista se ofusca. A insistência teimosa

de querer ter o originário de todo ver, o sol, no campo de visão, de ver e assim conhecer o

vigor de todo ver leva à cegueira. O sol, nos diz o poema, é um mito. Este mito é

brilhante... e mudo. A mudez do seu brilhar na correspondência da terra manifesta o

sentido do mytho que o sol é enquanto brilhante. O brilho do sol abre o sentido, abrindo

os céus, a que a terra, esta vasta vigência de húmus e de desertos, de montanhas elevadas e

vales profundos, de florestas misteriosas e perigosas cortadas por rios que desenham

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igarapés, de fertilidade e retração da vida já se encontra desde sempre aberta à espera das

chuvas, das extra-ordinárias e tão simples estrelas cadentes e dos trovões devastadores que

trazem o fogo e um instante de iluminação nas noites tempestuosas, quando as nuvens

fecham o céu e velam o sol... mas o poema diz, de modo simples, apenas: “O mesmo sol

que abre os céus é um mito brilhante e mudo.” O dizer de um poema, talvez, valha não

pelo que ele encerra, mas pelo que ele liberta.

O sol é um mytho brilhante. O sol é um mytho mudo. Mudez, contudo, não é

simplesmente a ausência de fala. Uma mesa também não fala, mas nem por isso dizemos

que uma mesa é muda. A mudez só é possível àquilo que é aberto à possibilidade da fala. A

mudez, talvez, então, se condicione pela fala. A fala possibilita a mudez, quem sabe. Se

assim se dá, então primeiramente somos capazes de fala, para então sermos capazes de

mudez. A fala, por sua vez, só é possível como ruptura do silêncio. A fala se dá a partir do

silêncio109. Neste sentido, toda fala é uma fala sobre o silêncio, mas não se pense aqui este

sobre com o sentido abstrato de “tratando de”, “tendo por assunto”, mas sim no sentido

concreto, locativo. Toda fala é uma fala sobre o silêncio diz: a fala é do silêncio. Este

“sobre” também pode ser entendido com os sentidos mencionados anteriormente, mas,

sentidos derivados que são, devem ser pensados em sua derivação. Este sentido de “sobre”,

como “tratando de”, significa “com referência a”, isto é, com referência ao lugar, ao âmbito

em que acontece e se dá o que se enuncia. Falar sobre literatura, por exemplo, é falar com

referência ao âmbito da literatura. A fala fala sobre o silêncio – a fala, na medida em que

fala, é uma referência ao silêncio e tem nele sua proveniência. A referência fundamental

109 LEÃO, 2000, p. 23-32.

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da fala não é às realizações de um real dado, mas à sua própria proveniência: o silêncio. Por

isso, a fala, toda fala, em sentido próprio, é fala das origens, refere-se ao âmbito de sua

origem, isto é, vigora o originário que na revelação da fala se vela. A fala, em sentido

próprio é um dizer do originário, isto é, não apenas traz o originário, mas dele provém. No

que se refere ao âmbito de sua proveniência, a fala o traz num dizer que o vela, posto que o

dizer é um romper o silêncio. A fala traz em seu manifestar-se o silêncio velado, quando a

ele se refere como o seu âmbito originário. O silêncio manifesta-se como fala, na medida

em que nela se vela. Velando-se nela, o silêncio abriga a fala como o âmbito de sua origem,

sem o qual ela não teria sua referência mais fundamental. O silêncio é a essência originária

da fala, isto é, o âmbito a partir do qual ela pode ser o que ela é, ou seja, o vigor em que ela

tem sua vigência. Mas é também a fala originária a única a nos dizer o silêncio.

“O mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo”. O sol é um mytho.

É mudo. Em seu brilhar ele abre os céus, ao seu brilhar corresponde a terra, que se abre e

vela em vida e morte. O seu brilhar ilumina a travessia poética dos mortais. O seu brilhar

abre o acontecimento de sentido. Este brilhar é mudo, abrindo os céus. Abrindo os céus,

oferece o vigor à vigência poética, o acontecer do humano em sua realização que, ouvindo

o vigor silencioso de sua mudez, poetiza: “o mesmo sol que abre os céus é um mito

brilhante e mudo”. O mito, em si, não fala, é mudo. Na correspondência a esse mudo

brilhar está a abertura do humano. Como essência de tudo o que se fala, o silêncio não se

apresenta, como silêncio, em nenhuma fala. Em toda fala, ainda, é ele que se nos diz. O

silêncio se apresenta como ausência. O silêncio, como essência da fala, é um vigoroso e

prolífico nada em que tudo que se fala se sustenta e tem vigência.

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O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo.

O poema evoca o nada, mudez, mas não no sentido negativo, simplesmente de um

não-algo, mas como possibilidade, proveniência e brilho de todo algo, de tudo. Este

silêncio que se vela só se nos mostra como fala. Este nada que se vela só se nos mostra

como tudo. Esta é a referência fundamental entre tudo/nada, silêncio/fala – como doações

de um brilhar do sol que ao brilhar se oculta à visão. O silêncio não se pode falar, mas se

doa em toda a fala, o sol não se pode ver, mas se doa em toda visão, o nada não pode ser,

mas se doa em tudo que é.

“O mesmo sol que abre os céus é um mytho brilhante e mudo”. Entre tudo que se

vê, como fonte originária do dia, em que o seu dizer silencioso, como o dia, se abre da

noite velada, o mito brilha, é sol, é mudo. É silêncio originário que pulsa de modo próprio

no ritmo que se escuta no dizer da poesia. O silencioso ritmo assinala o lugar próprio da

palavra. É mudo, e por isso abre o dizer da fala à liberdade do sentido. “Brilhante” e

“mudo” estão numa vizinhança obediente ao ritmo, pelo que dizem de uma mudez

iluminadora. O terceiro verso, “É um mytho brilhante e mudo”, abre-se novamente com a

questão do “ser mito”, em que o brilhar ocupa o lugar central, a convergência do que se

ilumina, encerrando-se na mudez que se destaca como um soar final do verso. A isto se

chama rima.

“Mudo” rima como “tudo”. A rima instaura consonâncias do mesmo que não é a

mesma coisa. É a mudez consoante, em totalidade. O ritmo nos diz que o nada articula o

fazer-se tudo em que o mito se retrai, bem como o brilhar iluminador da mudez de seu

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dizer. O ritmo é a sabedoria do verso. A consonância das rimas faz soar as referências

fundamentais do sentido, em que o dizer encerra uma abertura. A vizinhança das palavras

colocadas em seu lugar por obediência ao ritmo se reúne a partir do soar que não está em

nenhum lugar além das palavras rimadas, não é nada menos que a própria pronúncia das

palavras rimadas e que, contudo, as aproxima, mantendo-as cada uma como o que são.

Começamos buscando a possibilidade do nomear poético como referindo-nos a uma

coisa, seja ela numa realidade empírica ou conceitual. A primeira experiência de alegoria

se mostra a partir da separação da palavra do sentido que ela instaura na sua realização

como horizonte histórico de mundo. A palavra, passando a remeter-se a algo por ela

significado dá ensejo à alegoria. Como signo de um significado a palavra só pode ser vista

ou sincrônica ou diacronicamente – já não é mais horizonte histórico de mundo. As teorias

que tentaram dar conta do fenômeno mítico têm caráter geral de alegorias. Isto porque não

se questiona o fato de que a palavra seja um suporte de significações relativamente

flutuantes, de que primeiro as coisas se manifestam e só depois acontece a linguagem. A

alegoria parte do princípio de que a palavra não traz a fala, mas aponta ou exterioriza o

falado. Assim, a linguagem se converte numa propriedade do homem, que com ela nomeia

o real que a ele se apresenta ou as representações que produz independentemente da

experiência, como se o real e as representações pudessem se apresentar ao homem ou

serem por ele produzidas sem que a linguagem já não estivesse acontecendo. Afinal:

Não só o mundo é mundo apenas quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa mundo. A originária humanidade da linguagem significa, portanto, ao mesmo tempo, o originário caráter de linguagem do estar-no-mundo do homem.110

110 GADAMER, 2007, p. 572.

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O que a tentativa de pensamento nos deixou ver, como um modo próprio de

vigência poética do mito, é que linguagem e pensamento não são realizações internas nem

externas do homem. O próprio real em seu acontecimento originário já instaura a

dinâmica da linguagem, de um modo que o homem já desde sempre está no mundo, na

medida em que corresponde à linguagem e põe mundo. Quando eclode na multiplicidade

de suas manifestações, o real já nos lança na dinâmica da linguagem, isto é, já é questão,

porque o próprio acontecer dos fenômenos - históricos, naturais, sociais, espirituais - é que

nos convoca a pensar, mas apenas se ouvirmos o silêncio que nele nos fala, isto é, se não

tomarmos as palavras como significantes e os remetermos para significados ou esquemas de

representação conceitual conhecidos. A linguagem não é essencialmente um instrumento

de comunicação, nem um meio de expressão do homem. Como tal, ela transita apenas no

âmbito dos acordos, do comum, do compartilhado, do já realizado interna ou

externamente. A linguagem não pertence ao homem, o homem pertence à linguagem que,

no acontecimento silencioso – espantoso – do real como questão, já lança o homem na

dinâmica do nomear, do pensar, do corresponder, do poetizar. Se o real não se apresenta,

velando-se como silêncio da questão, o homem nada pode nomear, a nada pode

corresponder e nem recebe a questão originária de todo pensar. A linguagem é a realidade

manifestando-se em seu sentido e verdade como homem. Não há que se determinar um elo

de ligação entre a linguagem e a realidade, seja interna ou externa. Este elo não é uma

coisa.

Fala do silêncio e acontecimento do real como questão que se vela, a linguagem é

ambígua. Este modo de vigorar, na correspondência do homem que traz o silêncio à fala, se

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dá como poiésis, de onde vem o nome da arte poética. Pela ambigüidade, a poiésis da

linguagem nos abre no poema um horizonte de interpretação, isto é, liberta a experiência

do pensar para o âmbito da re-velação histórica dos sentidos. Como não nos liberta dela

mesma, nem do mundo, a linguagem limita, “aprisiona”. Ao mesmo tempo, ela liberta para

ela mesma, para o horizonte de interpretação, pelo que é abertura. A poesia requer a escuta

desta abertura que se dá no silêncio, a que corresponde a interpretação de uma fala. Mas o

próprio poema é uma fala. Como fala poética que se instaura como a própria realização do

real, contudo, ele é uma fala do silêncio. Toda interpretação que se lance no horizonte re-

velador da verdade originária também vigora como fala do silêncio, isto é, permite uma

escuta apropriada, abre um horizonte de sentido em vez de tão somente encerrar-se em

determinações, em conceitos, em representações em que o dizer sempre remete a algo já

realizado ou concebido. Não se tente representar, portanto, o que se diz em seguida.

O essencial na ambigüidade poética não é o conjunto dos múltiplos significados,

embora este seja um dado imediato necessário. Não são os termos reunidos numa

complementaridade pensada a partir dos termos. O essencial é justamente o que está entre

e reúne todos os significados de uma palavra poética – é isto que faz de uma palavra,

palavra poética. Multivocidade, polissemia, ambigüidade... não são nomes apropriados: o

signo, quando palavra poética, é mais como um entresignos. Mas este termo, que também é

em si uma palavra, conversível em conceito, revela-se igualmente insuficiente. Em sentido

próprio a palavra poética é silêncio, não a palavra “silêncio”, mas a essência originária do

silêncio. Por outro lado, isto não quer dizer que não se deva pronunciar mais nenhuma

poema, mas que o vigor poético de toda dicção da poesia vigora na medida em que deixa

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escutar, e em que nos deixamos ouvir este silêncio, no dito poético. É o horizonte,

possibilidade e vigor de qualquer compreensão. É fundamental o dizer, tanto quanto o

escutar. Por isso, poeticamente, e não apenas retoricamente, se dá o dizer e o ouvir do

silêncio – dizer e ouvir a palavra em seu vigor pleno, essencial. Este entre que é o dizer

poético é ele mesmo horizonte. Horizonte é o que é limitado por... nada. Mais ainda,

horizonte não é algo, uma linha que divide céu e terra. Entre céu e terra: nada, e contudo,

se não fosse por este nada entre céu e terra, como conceber, determinar, compreender céu

e terra? Sem este nada que separa e reúne – identidade e diferença – de céu e terra, não

haveria, de fato, céu e terra. O horizonte é o aberto, o limitado por nada. Linguagem é

horizonte: mundo histórico. Quando caminhamos o horizonte caminha conosco, e o real,

deste nada entre céu e terra, vai aparecendo à nossa frente, e sumindo atrás de nós. Sempre

estamos lançados num horizonte, sempre estamos neste entre, estando mesmo entre as

coisas. Entre cada coisa em seu perfil, em sua figura, em seu eidos. O entre talvez seja

mesmo este perfil. A linguagem da poética é a poética da linguagem. Agora talvez

consigamos ouvir sem representar: “o mesmo sol que abre os céus é um mito brilhante e

mudo”.

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IV. O coIV. O coIV. O coIV. O corpo morto de deus vivo e desnudo.rpo morto de deus vivo e desnudo.rpo morto de deus vivo e desnudo.rpo morto de deus vivo e desnudo.

Pelo que pensamos anteriormente, já podemos nos precaver contra a atitude de

criar recursos espalhafatosos para tentar dizer o que esta poética do mito possa estar

querendo dizer. Esta poética do mito não quer dizer, ela diz. O que ela diz não somente

vigora no que o seu dizer encerra, mas também no que ele liberta. É linguagem, liberta o

acontecer que é o próprio homem, a questão que é o homem. O que se diz aqui, diz-se a

partir do que o poema encerra e liberta. Não se trata, portanto, de representar somente o

que supostamente ele estaria a encerrar. O poema diz: “o corpo morto de deus vivo e

desnudo”. São dois versos. O primeiro: “o corpo morto de deus”, já se abre como uma

questão, fundamental: corpo. Se queremos corresponder ao que o poema liberta,

simplesmente é absurdo partir de um conceito de corpo. Qualquer conceito. É preciso

libertar a questão, para tanto. Libertar a questão não é procurar uma enunciação

interrogativa correta. É escutar a questão.

“Corpo”, numa tentativa de libertar o que aqui se diz, pode ser uma infinidade de

coisas. Não se trata de enumerar todos os conceitos de corpo até hoje realizados, pois

estaríamos ainda encerrados em determinações. Cabe libertar “o corpo” como questão, o

que significa, deixar a palavra livre, para assim podermos entrar na liberdade de seu

sentido.

O “corpo” é corporal – ele acontece ao modo do corporificar e incorporar, pelo que

também pode desincorporar. Corporificar é: tornar(se) corpo ou manifestar(se) pelo corpo

ou como corpo. Incorporar diz: abrigar no corpo, tomar como o corpo, deixar vir ao corpo.

Desincorporar diz: libertar o que se abrigou, renunciar ao que se tomou, deixar ir o que

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veio ao corpo. Corpo acontece como: um tornar(se) corpo ou manifesta(se) pelo corpo ou

como corpo, em que o corpo manifesto pode abrigar o que lhe vem, de modo a tomar para

si, em sua corporeidade, o que devém, porquanto pode renunciar o abrigado, libertando-o

para seu próprio destino. Por exemplo: um corpo corporifica-se como corpo materno, ao

incorporar, abrigar e tomar como seu corpo o corpo em gestação, para em seguida

renunciar a ele, libertando-o para seu próprio destino. O corpo corporifica-se como corpo

social ao abrigar o corpo de cada um como seu próprio corpo, de modo a poder libertá-lo a

seu destino.

O corpo é, de modo próprio, a mais íntima reunião, das mais íntimas diferenças, a

mais fértil possibilidade de abrigar e libertar. Há uma palavra portuguesa, de origem latina,

que diz o que acima se disse: profanar. O “profanus”, em latim, donde se origina a palavra

portuguesa, não designa necessariamente uma oposição ao “sacer”, ao sagrado em latim.

Apenas numa distinção posterior, que é como em geral aparece nos textos latinos que nos

chegaram, é que tal distinção se apresenta, e então o profano se apresenta como o

sacrílego, algo já próximo do sentido pecaminoso, carnal, mundano em oposição ao

espiritual, com que a palavra comparece no pensamento cristão. Porque também, por

outro lado, o “sacer”, o sagrado, não se opõe originariamente ao mundano, ao material, à

mácula, como veremos mais adiante. O fato de que o adjetivo latino “profanus” não se

oponha necessariamente ao “sacer”, se deixa entrever no verbo “profanare”, que significa

“consagrar alguma coisa aos deuses, oferecer aos deuses”. Ou seja, profanare articula um

diálogo, uma oferta, que pressupõe intimidade, embora não igualdade, com o sagrado. O

profano é aquilo que está aberto, como oferta, ao sagrado. Por outro lado, o mesmo verbo

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também significa “macular”, “marcar”, que por extensão adquire o sentido de cometer

sacrilégio, pelo qual passa a se opor ao sagrado.

Portanto, esta oferta do profanare é uma marca, um sinal. Ela assinala, enquanto

oferta, o âmbito do sagrado. Nesta marca, em que se dá a intimidade, mas não igualdade,

entre sagrado e profano, assinala-se uma diferença. O platonismo, que fortemente

influencia o pensamento cristão, entende diferença como oposição. Às idéias opor-se-iam

as aparências, ao espírito, a matéria, ao sagrado, o profano. Originariamente, isto é,

poeticamente, diferenças se dão como referência fundamental, como comum

pertencimento. Neste comum pertencer se dá o sentido, o acontecimento criptofânico de

ser e verdade. O profanare, porquanto assinala esta identidade nas diferenças, esta

referência fundamental com o sagrado, instaura os limites nos não-limites do sagrado. Na

liminaridade de sagrado e profano encontra-se o sentido, em que ambos se apropriam em

seu comum pertencimento. Nesta liminaridade é que acontece e que se compreende o

sentido de sagrado e profano. Como sinal de fronteira entre dois limites é que o profano

vem a ser identificado com o mundano, num processo em que o horizonte de ser e ente se

torna uma verdadeira barreira alfandegária para se pensar estas questões. Este processo

marca a fronteira como dicotomia metafísica, em que a dobra originária de sagrado e

profano se converte num duplo inconciliável.

Por outro lado, o adjetivo “profanus” é composto do prefixo “pro-” e do substantivo

“fanum”. Ao encontro do que viemos dizendo acima, “fanum” significa exatamente “lugar

consagrado”, “templo”, o âmbito genuíno do “sacer” ao qual o profanus vai posteriormente

se opor numa dicotomia. O prefixo “pro-” tem o sentido preposicional de “diante de,

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defronte de, em presença de”. Ora, neste primeiro momento, “pro-fanum”, designa

justamente aquilo que está diante do, em presença do sagrado. Isto quer dizer: na mais

íntima vizinhança, de um modo a pressupor a presença do sagrado e ter seu sentido neste

comum pertencimento, nesta referência fundamental. Num segundo momento, a

preposição “pro” indica um “movimento em direção a”, “em favor de”, aponta para o

sentido verbal já referido de “oferenda”. Profanar, então, se dá como movimento em

direção ao sagrado, não para aniquilá-lo ou destruí-lo (como no sacrilégio), mas para

favorecê-lo, enaltecê-lo com a própria referência fundamental do encontro de sagrado e

profano. No encontro de sagrado e profano, ambos têm a vigência plena de seu sentido.

Quando se afirmou a correspondência entre “profano” e “corpo” tal como aqui

pensados, visava-se justamente esta proximidade no modo de acontecer. Se corpo acontece

como um tornar(se) corpo ou manifesta(se) pelo corpo ou como corpo, em que o corpo

manifesto pode abrigar o que lhe vem, de modo a tomar para si, em sua corporeidade, o

que devém, porquanto pode renunciar o abrigado, libertando-o para seu próprio destino,

então o profano, na medida em que é aquilo que assinala o limite do não-limite sagrado, na

medida em que se move em favor deste, enaltecendo o sagrado como oferenda e fazendo-o

reluzir em sua plenitude, neste mesmo movimento é que o profano é propriamente

profano. Se um corpo se torna corpo ao abrigar e tomar para si aquilo a que renuncia e

liberta, o sagrado se torna sagrado na medida em que abriga e envolve o profano que a ele

se destina, enaltecendo-o e assinalando-se como limite, e assim o liberta para o seu próprio

sentido. A corporeidade corresponde à sacralidade do profano.

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O corpo acontece de modo próprio, segundo um devir corporal, e assim também o

profano se destina ao comum pertencer com o sagrado. Neste sentido, é corpo tanto o

corpo do vivente que pode abrigar e renunciar, como é corpo também o corpo da

comunidade, da família, o corpo social. É corpo, também, o corpo que abriga e liberta o

corpo da comunidade, a terra. Não pretendemos decidir de que corpo fala o poema, se é

que fala de qualquer corpo mencionado aqui. Porque não é o poema que deve

corresponder ao que se fala aqui, mas o que se fala aqui é que é falado como

correspondência ao que o poema liberta. O poema liberta o corpo do conceito de corpo,

para o pensar. Ele diz, de modo mais simples, e por isso mais ambíguo, em sentido pleno,

apenas “corpo”, como se esta palavra fosse mesmo assim tão pouco. Mas enquanto corpo,

qual seja – isto é, liberto – o poema evoca o “corpo de deus”. Mais ainda, “o corpo morto de

deus”. Mais ainda “o corpo morto de deus vivo e desnudo”. É uma única evocação o que

nestes versos se convoca, isto é, se con-voca, traz um com o outro pela voz, ou seja, na

evocação de uma unidade nas diferenças. Esta evocação é, assim, corporal e, além do mais,

é uma evocação do poema, que por sua vez, é evocação de uma “Mensagem”, que é uma

obra evocadora dentre as muitas obras que convocam o homem e seu devir poético,

histórico. A palavra poética é o “corpo” que (se) corporifica (como) homem, que incorpora,

abriga o homem, e desincorpora, liberta o homem para o seu destino. Assim, também o

profano se destina ao comum pertencer com o sagrado, como homem.

Toda evocação poética é, assim, um corpo, isto é, torna-se corpo, ao mesmo tempo

em que incorpora e renuncia ao incorporado, abandonando-o ao seu destino. É o corpo

poético. O corpo poético aqui se apresenta como corpo morto de um deus vivo. Mas o

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poema não fala do corpo como palavra poética sacro-profana, mas como “corpo morto de

deus vivo e desnudo”. “Deus”, segundo a representação mais comum, é sagrado, mas já

aludimos à referência fundamental entre sagrado e profano. Abandonemos a oposição

metafisicamente condicionada, por um entendimento que deixe falar e escutar a poética do

mito, e pensemos como um corpo pode ser de deus. Para tanto, cabe pensar em que

medida ele é morto, vivo e desnudo.

Quando, de forma simples e clara, nos fala em “corpo morto de deus vivo”, o poema

parece estar novamente evocando o contraditório. Conforme o caminho que percorremos

até aqui, chegamos a tentar articular a possibilidade de uma contradição originária, algo

que seria próprio da travessia poética do homem, posto que, conforme dissemos,

questionamento e pensamento, linguagem e verdade, articulam-se sempre como uma

referência fundamental a partir de “contrários”. Nesta referência, o originário do encontro

de “contrários” é o entre, o silêncio, o nada, o saber e não-saber das questões, o desvelar-

autovelante da verdade. Desta forma, já estamos mais cautos em relação à atitude apressada

de se tomar o que se diz aqui, com tal contradição, como uma figura de linguagem (isto é,

como retórica), ou como coisa impensável. Parece que quando se evoca “o corpo morto de

deus vivo”, o que se está enunciando é, mais uma vez, o contraditório em sentido

originário. Mas é preciso tentarmos pensar de onde nos vem esta decisão já tomada,

segundo a qual “morto” se opõe a “vivo”, sem mais.

Nesta decisão, já fala um determinado entendimento do que seja “vida” e “morte”.

Por ele, o que se compreende como “morte” se opõe ao que se entende por “vida”, na

medida em que marca o seu fim. Como “não-mais-viver” a morte é irreconciliável com o

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viver, não podem estes nunca ao mesmo tempo se dar na mesma relação. O ente que está

morto não “tem” nenhuma vida, isto é, quando o ente “perde” a vida que “tem”, ele

“morre”. Neste sentido, primeiramente, a morte se dá como a “perda” de algo, da vida. Mas

o modo com que se “tem” vida, é completamente diferente do modo que se tem, por

exemplo, dinheiro ou saúde. Ainda que se tenha saúde, quando se a perde, ainda se

permanece, de um modo ou de outro, como existente. Já quando se “perde” a vida, perde-

se com ela a própria “existência”, de um modo que passamos a “estar” apenas no âmbito da

existência dos outros que ainda “têm” vida, considerando vida ainda aqui no sentido mais

comum. Não se pode, contudo, experimentar a morte de outrem como morte. Na morte

dos outros o que propriamente experimentamos é uma perda. Perdemos a presença de

alguém, e assim não experimentamos a morte, mas sim uma perda111.

Fica impossível, assim, de fato, experimentarmos nossa própria morte como algo

que se dá, tal como experimentamos um resfriado ou uma promoção no trabalho. Como

impossibilidade da experiência, como liminaridade própria da nossa própria presença, a

morte não é uma coisa que se dá no âmbito que compreende a nossa existência como algo

realizado, dentre tantas coisas 112 . Isso porque a morte é esta própria liminaridade da

existência, o limite das realizações. Assim, a morte não é uma realização dentre outras,

para que possa ser experienciada como uma realização113 , como algo que se dá. Não

experimentamos a morte como morte na ocorrência de um caso de morte.114 Como então

111 HEIDEGGER, 2002(c), p. 17-19. 112 Ibidem, p. 12-21 113 ibidem, p. 27-32. 114 Ibidem, p. 35.

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experimentamos a morte como morte, para que possamos nos situar no horizonte próprio

de vida e morte?

Vimos que se considera a vida como algo que se “tem” e que, com a morte, se

“perde”. De fato, será que ainda podemos “ter” propriamente alguma coisa, quando

“perdemos” a vida? Será que quem morre, ainda vive a experiência de ter família, ter

esperança, etc.? Decerto não como travessia, como ser que está no mundo e que instaura

mundo, porquanto corresponde ao acontecimento da questão-pensamento, do ser-nada, da

linguagem-silêncio. Este é o modo de estar sendo do homem no horizonte da poética do

mito, que se nos abriu até aqui. Assim, a vida não é exatamente uma coisa que se “tem”, e

que, em se perdendo, permite ainda “ter” outras coisas. A vida é a condição de

possibilidade de todo e qualquer ter, isto é, é o horizonte de todo e qualquer ter, fora do

qual não podemos ter esperança, ter saúde, ter dinheiro, ter família. A morte, como não-

realização não é alguma coisa a mais que ocorre, como um “caso” dentre outros, no âmbito

de uma vida. A vida não é algo que se “tem”, em sentido próprio, sendo mais como o

horizonte de todo ter, e de uma maneira tal que não se “perde” a vida, como se assim

realmente se experimentasse uma “perda” de algo. Com o fim-da-vida, não se vive

experiência alguma, nem de perda, pois quando a “perdemos”, de fato nos perdemos de

nossa própria possibilidade de experienciar esta perda. Quem a experiência são os outros.

Vida e morte não formam um par, a partir do entendimento de que uma é algo que se

perde com a ocorrência de outra.

Como então será possível a referência fundamental de vida e morte, como é que

pode o poema colocá-las, ambas, no que parece ser uma contradição? A contradição

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originária não é o mesmo que mera incompatibilidade, nem simplesmente uma

contraposição. A contradição originária é diferença na identidade. Articula sempre uma

convergência divergente, para o e do originário. O originário é entre, em outras palavras:

liminaridade. A própria travessia poética se dá como liminaridade, como entre-ser115, como

estar entre saber e não-saber, escuta do silêncio e fala da linguagem, ser e não-ser, questão

e pensamento, talvez, também, vida e morte.

Morte não é uma ocorrência que se realiza na vida, não é uma experiência vivida:

“Ninguém pode assumir a morte do outro”116. A morte, e isto até é razoavelmente fácil de

notar, pode ser pensada então não como uma ocorrência, como um caso que se realiza, mas

como um processo que se inicia logo ao nascer. Começamos a morrer ao nascer, até

terminarmos de morrer. Morrer se identifica com viver, neste caso. Deste modo, ninguém

assume a morte de outro, porque não pode assumir a vida de outro. Entretanto, a

contradição originária acima referida não se reduz a uma síntese que tudo iguala. Então,

em que medida o morrer que acompanha o viver, dando-se desde o nascer até o falecer, é o

mesmo que viver? Não como igualdade, mas como horizonte: a morte é o horizonte da

vida. Pois ainda que se considere o dito acima, quando o viver finda, com o falecer, o

morrer permanece. De acordo com o que se disse acima, que morrer acompanha o viver

até que este se encerre, enquanto o viver ainda vige, diz-se “está vivo”. Quando o viver já

não acompanha mais o morrer diz-se “está morto”. A morte, neste sentido, ainda que

acompanhe a vida, permanece para além desta. Mas também a morte só se apresenta como

não-limite do limite da vida. Note-se: da vida. Não é tampouco possível morrer sem viver.

115 CASTRO, s.d., 74. 116 HEIDEGGER, 2002(c), p. 20.

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Deste modo a vida se limita no que ela é pelo não-limite da morte, de uma maneira tal que

este não-limite da morte não é apenas uma não-vida, mas também vigora no próprio limite

do viver, como acontecimento que abre com o viver uma referência fundamental. Com

este o morrer está numa tensão que o limita, deixa-o ser o que é, ou seja, o viver se dá não

apenas na medida em que já é um morrer, mas sobretudo porque se dá sempre no

horizonte do morrer. A vida é aquilo que tem a morte como horizonte, não como não-

vida, como simplesmente impossibilidade de vida, mas também como o próprio

acontecimento que é viver.

Porquanto vivem, os homens são mortais. Vivem na medida em que estão no

horizonte da morte, não como um mero além, mas como a maior certeza que se tem, a

certeza por excelência, a certeza da vida. Mas esta certeza não é uma certeza calculável ou

provável, nem é a certeza de uma ocorrência.117 A certeza não é calculável ou provável,

simplesmente porque, como a mais própria certeza, ela é a mais própria indeterminação.118

Como aquilo que nos é mais próprio, que ninguém pode assumir por nós, a morte como

horizonte da vida é simplesmente a certeza que não sabemos como, nem quando, nem

onde, nem por que... Como plena certeza totalmente indeterminada, a certeza da vida no

horizonte indeterminado da morte instaura-se, existencialmente, como limite

(determinação, certeza) e não-limite (indeterminação, incerteza). Entre vida e morte, a

travessia humana caminha os “entrecaminhos” desta liminaridade.

Os mortais são os homens. São assim chamados porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O animal finda. Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A morte é o escrínio do Nada, do que nunca, em nível algum, é algo que simplesmente

117 HEIDEGGER, 2002(c), p. 44-45. 118 Ibidem, p. 48-50.

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é e está sendo. Ao contrário, o Nada está vigendo e em vigor, como o próprio ser. Escrínio do Nada, a morte é o resguardo do ser119.

Por estar sempre na possibilidade da morte, ou seja, porquanto a morte é a

possibilidade de todas as suas possibilidades, já que o homem vive na medida que morre, e

pode o que pode na medida em que a morte ainda é possível, o homem é mortal, pode a

morte, tem a morte como horizonte da vida, não apenas se sente ameaçado por ela. Mas o

poema fala do “corpo morto de deus vivo e desnudo”. Morte e vida, pensados

poeticamente, ao modo da contradição originária, ainda não nos abrem simplesmente

como um deus vive e morre. Nem todo deus é imortal, pois sabemos de muitos mitos,

como o do Ragnarök tal como narrado nas Eddas120, por exemplo, em que deuses morrem.

Não queremos, e nem cabe no âmbito deste nosso caminho, nos embrenhar pela discussão

filológica acerca do que, nestes mitos especificamente, é esta morte como fato da morte de

um deus. Nem queremos erigir a partir destes exemplos uma afirmação universal de que os

deuses morrem. Podem não morrer, e o podem, também, de diversas maneiras. Não será

útil recorrer, tampouco, a evidências “exaustivas”. Porque nenhuma evidência exaustiva é

capaz de exaurir o vigor poético do acontecimento. Exaurem-se as evidências de mitos

como coisas já dadas, mas não o vigor do mito como acontecimento no horizonte da

presença, em que o mito ainda pode ser mito. Somente como acontecimento que acontece

é que mito pode ter vigência e, assim, pode ser pensado como o que ele é. Nenhuma

evidência dá conta do porvir que é próprio da realização de qualquer fenômeno. Além

disso, toda discussão das evidências, seja no campo da História das Religiões, da Filologia,

da Antropologia, da Arqueologia, já parte de uma determinada conceituação do mito,

119 Idem, 2002(b), p. 156. 120 EDDA, 1936, p. 25-28.

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como fenômeno religioso, filológico, antropológico, arqueológico. O que pretendemos é

algo mais simples, e, portanto, também algo primeiro. O que pretendemos é pensar o mito

como fenômeno mítico, isto é, pensá-lo em seu acontecimento, por isso, em sua poiésis.

Esta poiésis do mito, esta poética mítica, nos chega não por modos de representar que já se

instauram como uma oposição, superação ou radical diferenciação do mito em seu

acontecimento, mas pelo contrário, esta poiésis só nos chega como uma presença poética.

Presença poética é o acontecimento do real e travessia existencial que articula uma outra

vigência de verdade, de linguagem, de ser. Por isso deixamos que esta poética do mito nos

venha ao encontro na fala do poema.

Este poema nos fala do “corpo morto de deus vivo”. Tentamos nos encaminhar pelo

sentido que acontece no poema, para estar na compreensão própria da poética do mito que

nos vem ao encontro. Pensamos “corpo” como uma possibilidade não conceitual, a partir

da simplicidade do dizer “corpo” que o poema apresenta. Tentamos pensar vida e morte,

libertando-a das suas concepções vigentes. Tentamos uma redução fenomenológica para

chegar à fala poética, isto é, tentamos ver o poética do mito como fenômeno poético, em

sua poiésis, em seu acontecer. Isto nos colocou diante da questão do divino, no horizonte

corporal de vida e morte. Um deus pode morrer. Pode também, viver. O Cristo é deus

vivo, segundo a fé cristã, também como apenas exemplo de que é possível que se

compreenda os deuses como, de algum modo, viventes. Não pretendemos, e nem podemos,

acumular evidências exaustivas. De nada nos serviriam tais evidências, diante do porvir e

da complexidade extrema da realidade fenomênica que nunca se limita a conceitos e a

qualquer número de evidências que se possa justapor. Não pretendemos acessar a

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divindades dos deuses como dados culturais alheios ao horizonte do pensamento que aqui

se tenta, nem como fatos culturais do passado. Nem é possível, se quisermos pensar o mito

em sua vigência como mito, em sua presença, ou seja, pensá-lo de modo próprio.

No âmbito da cultura ocidental, científica e técnica, dominante, que é o horizonte

histórico que atravessamos, os deuses não são verdadeiros enquanto deuses. Podem apenas

ser várias coisas: imagens, símbolos, expressões de visões de mundo, conceitos, superstições

e explicações nada verificáveis para fenômenos naturais e justificativas de instituições

culturais. Os deuses já não são deuses, de um modo que é difícil fazermos qualquer

experiência de sua divindade, neste horizonte histórico que atravessamos. Diante deste

tratamento científico e metafísico do divino, Walter Otto já afirmava: “(...) os deuses não

podem ser inventados nem concebidos, mas tão somente vivenciados”. Com isto ele se

contrapõe tanto à noção segundo a qual o mito (especialmente o mito grego) seria a

manifestação de uma religião estética, como a pretensão de que se possa vir a conhecer o

divino por meio de conceitos de divindade. Tentaremos seguir este aceno de Walter Otto,

com a ressalva, porém, de que não limitaremos esta vivência do mito ao campo da

experiência religiosa, tal como o faz Otto121, ainda que deixe claro que o conceito de

religião metafísico não dá conta da experiência mítica da religião.

Então, talvez a nossa não seja uma tarefa impossível, se pelo menos de início

considerarmos a possibilidade de que esta “fuga dos deuses”, este “desencantamento do

mundo” não seja uma impossibilidade de experienciar o divino, isto é, de pensar os deuses

como deuses, em sua ausência. Se tal for possível, então uma experiência do divino, pela

121 OTTO, 2005 e 2006.

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ausência, pode nos abrir o sentido próprio de como um deus pode ter um corpo morto e

vivo enquanto deus, isto é na sua verdade, ou ainda, no vigor divino que lhe é próprio.

Esta tentativa pode nos trazer o sentido de sua presença. Como se pensa a ausência?

A morte é uma presença-ausente, conforme vimos. Ela se dá no viver, ao mesmo

tempo em que é o horizonte do viver. No viver, a morte vai acontecendo, enquanto se

ausenta como aquela possibilidade mais possível, que tudo possibilita, mais certa e mais

indeterminada. A morte é pensada em sua ausência, não como algo ainda não dado que vai

ocorrer, mas como algo presente a todo tempo, acontecendo na medida própria em que se

ausenta. Porque a morte é a possibilidade das possibilidades, ela acontece de modo próprio

como possibilidade presente, a mais vigorosa presença e a mais vigorosa ausência. Talvez,

então, em sua ausência, os deuses, uma vez que esta ausência seja pensada de modo

próprio, vigorem ainda de modo até mesmo privilegiado, quem sabe. Esta ausência dos

deuses, no contexto técnico-científico, não se pensa como ausência, exatamente, mas

apenas como uma não-divindade do deus, isto é, os deuses não são mais compreendidos

como divindades, mas como símbolos, visões de mundo, etc. No âmbito técnico-científico,

a ausência dos deuses se pensa como uma desdivinização dos deuses. Os deuses não são

mais divinos. Isto porque nada de “divino” pode ser real e verdadeiro. A realidade e

verdade dos deuses, no âmbito técnico-científico, não é realidade e verdade divina, mas

apenas simbólica, cultural, ideológica, etc. Se a ausência dos deuses é pensada como uma

vigência dos deuses que não é divina, então já não se pensa os deuses em sua ausência

como deuses. Não se os pensa de modo próprio, como deuses. Cabe pensar ausência dos

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deuses como deuses, em sua divindade, e não apenas a ausência como uma vigência

(simbólica, cultural, etc.) dos deuses, tal como se representa no contexto presente.

Não se consegue pensar desta forma, porque, conforme vimos, nos capítulos 1 e 2,

principalmente, o pensar metafísico só consegue pensar o ente como ente, isto é, só

consegue pensar o que está de alguma forma e tão-somente presente, seja em variedade

concreta ou em universalidade abstrata. Por isso, é um pensamento que representa para si

o que pensa, e limita o pensar ao representável. Com isso, é de se entender que de fato só

se pense a ausência dos deuses de fato como realização, isto é, como outra coisa, como se os

deuses não estivessem realmente ausentes, mas presentes como outra coisa que não deuses.

Não se pensa a ausência dos deuses quando, normalmente, se fala em “desencantamento do

mundo” ou “morte de deus”, mas apenas pensa-se os deuses como uma outra forma de

realização, representados segundo outros modelos sociológicos, psicológicos, teológicos,

políticos, ideológicos, estéticos e culturais. Mesmo a ciência moderna, em seus anos de

desenvolvimento, e também a filosofia pelo menos até o fim do século XIX, tratando de

deuses como imagens e símbolos, como conceitos filosóficos ou hipóteses não

comprováveis, muito embora expressamente não negassem sua existência – quando não a

afirmavam – por outro lado desdivinizavam deuses, a começar pelos antigos deuses gregos,

e finalmente chegando ao deus cristão, que se tornara o deus dos filósofos, porque os

deuses não eram considerados como divindades, não eram divinos. Expressamente, a

morte de deus que está aí em “gestação”, só será expressa, como bem se sabe, por

Nietzsche. Ele percebe a morte de deus, por mais que ainda se fale em deuses, como a

ausência de divindade:

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(...) aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divinaverdade é divinaverdade é divinaverdade é divina... Mas como, se precisamente istoistoistoisto se torna cada vez menos digno de crédito, se nada mais se revenada mais se revenada mais se revenada mais se revela divinola divinola divinola divino, com a possível exceção do erro, da cegueira, da mentira – se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira?mentira?mentira?mentira?122

Daí, por esta ausência de divindade, tudo que é considerado como Deus, os

conceitos filosóficos e científicos, não passa de uma mentira. Se deus não é divino, mas

ideal, cultural, conceitual, então não é deus, mas uma mentira. Isto é, está, como deus,

morto, o que, de fato, para o espírito científico e racionalista, para o mundo da tecnocracia,

pode significar a derrubada da última barreira, quando já não é necessário mais salvar deus

pelos conceitos. Mas se por um lado isto pode levar a uma crise da ausência total de

sentido, por outro, este horizonte que se abre pode ser um mar aberto à aventura criativa

do pensamento ousado, do poeta profeta. Uma abertura para o devir.

(...) De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.123

A morte de deus como ausência do divino nos abre um horizonte amplo, que na

linguagem pensante e poética da Gaia Ciência se compõe como “mar aberto”, como um

mar “nosso”. Como assim? Esse mar aberto é a permissão para a ousadia de buscar

conhecer. Então, a morte de deus, pensada como ausência do divino, abre caminhos, para

buscas ousadas. Estas buscas ousadas buscam conhecer. Esta abertura se abre iluminada

como uma nova aurora. Esta busca se dá como um zarpar, navegando mar aberto. A

ausência do divino é abertura. Sabe-se que em seu Zaratustra, Nietzsche nos fala em vários

122 NIETZSCHE, 2001, p. 236 (aforisma 344), grifos nossos. 123 Ibidem, p. 234 (aforisma 343)

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momentos do “além-do-homem”, colocando-o na tarefa deste que vai ousar a singradura

do mar aberto, busca de conhecimento que enseja fundar novos valores124. Estes valores se

encarnam no “sentido da terra” como afirmação da “vida”125. A morte de deus se dá uma

vez que não está mais vigorando o divino. Isto abre o sentido da terra, como vida, pulsante

e criadora. Abrem-se os caminhos da criação. Esta criação não é uma criação do homem,

pelo homem e para o homem. Esta criação só se dá pela superação do homem-conceito126.

O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no homem, é ser uma transição e um ocaso.127

A superação deste homem que a tradição metafísica instaura, como ser definido e

estático, em suas diversas conceituações essenciais, é posto numa travessia, sob um abismo,

isto é, sem fundamento. Para este “além-do-homem”, “Übermensch” é a palavra de

Nietzsche, que diz, conforme Torres Filho, em comentário à sua opção de tradução:

“(...) ser humano, que transpõe os limites do humano. Na falta de uma forma como p. ex., “sobre-homem” (como em francês surhomme), não há equivalente adequado em português, mas este próprio ‹4128 do Zaratustra dá o contexto e a direção em que deve ser lida a palavra – “travessia, passar, atravessar” – Para “travessia” o texto traz apenas a preposição Hinüber, como que solta no ar (...)”129

O homem é esta travessia. Nesta travessia, o homem deixa de ser somente homem,

isto é, liberta-se dos conceitos de homem, podendo ser criador. Como o ocaso o homem é

um ser para a morte enquanto homem, posto que o homem é mortal, pode morrer. Esta

morte se dá como projeto de sua própria travessia em que ele se faz na medida que

124 idem, 2006, passim. 125 Ibidem, p. 36. 126 Ibidem, p. 335. 127 Ibidem, p. 38. 128 Parágrafo 4º da primeira parte de Assim Falou Zaratustra. (NIETZSCHE, 2006) 129 FILHO, 1983, p. 228

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abandona a segurança do conceito de homem. Abre-se a travessia da dimensão poética do

homem. O conhecimento, portanto, que se busca neste mar aberto, nesta corda bamba,

não é um conhecimento rebuscado, mas buscado, não se trata de tornar mais complexas as

essências, remodelando-a segundo antigos moldes, mas de buscar, de lançar-se ao que não

se possui, como aquilo que é mais próprio: travessia numa corda bamba, sobre um abismo.

Abismo, mar aberto, a travessia se instaura num horizonte em que o divino se retrai.

Morre deus, portanto, como tudo que não é divino, como tudo que é uma mentira

enquanto deus, como o “velho Deus” dos conceitos metafísicos. Se o “velho Deus” dos

conceitos, dos filósofos e teólogos, é justamente um modo de ser deus que nada tem de

divino, com a morte do “velho Deus”, abre-se a possibilidade de vigor do divino em sua

ausência. E assim se abre a travessia da busca de conhecimento, não numa rebuscada re-

elaboração e produção de novos conceitos, mas numa criação em que o homem se conduz

sobre este abismo que é humanidade.

Com a morte da mentira de deus, o divino pode ser divino, pode divinar. Com a

morte do velho deus dos conceitos, isto é, deus cuja divindade está dada e representável, o

divino pode vigorar, uma vez que, na “vida” do velho deus nada há de divino. Nada mais se

dá como divino. O divino, pela morte de deus, do “velho Deus”, contudo, já não é outra

coisa, senão divino. Pode divinar, em sentido próprio. Em latim, divinitus é o que provem

dos deuses, ou seja, divino evoca a proveniência. Já o verbo divinare, diz: predizer, prever,

profetizar, adivinhar, estar na espera do destino, apropriar-se do destino por meio da

palavra profética colhida do envio de uma proveniência. Divino é, na liberdade dos

conceitos mortos de deus, horizonte, o próprio devir do real, da vida, da physis, do ser.

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Proveniência, cujo cuidado que ausculta seus acenos pode colocar em palavra profética o

devir. O divinar é o modo em que os mortais, atentos à proveniência do divino, conseguem

dizer a palavra profética. O divino retrai-se como o porvir revelado no dizer do divinar. Na

medida em que devém, o divino permanece divino em sua retração. Na divinação devota o

divino devém, e se guarda. O que se retrai, como vigor e horizonte do dizer, é silêncio. É

deste silêncio que nos fala Zaratustra:

Ontem, à noite, falou comigo a minha hora mais silenciosa: é este o nome da temível senhora. (...) Ontem, na hora mais silenciosa, o solo fugiu de baixo de meus pés: o sonho começou. (...) Nunca ouvi tamanho silêncio em torno de mim: a tal ponto que o meu coração se assustou130.

Retraído em seu covil, Zaratustra pensa, após sua tentativa de revelar a boa nova.

Esta “hora silenciosa” é uma temível senhora. Temível porque convoca Zaratustra à

travessia da corda bamba, sobre o abismo, deixando para trás sua humanidade conceitual,

na medida em que escuta a fala do silêncio que abre o sentido da travessia. Põe diante dele

o porvir na medida em que o divino se retrai num abismo sob seus pés e assim vigora

divinamente, tornando-se a humanidade a travessia de uma corda bamba, que permite o

devir criador do além-do-homem:

Então, voltaram a falar-me sem voz: “Que importa a tua pessoa, Zaratustra! Fala a tua palavra e despeça-te!” E eu respondi: “Ah, é, acaso, a minha palavra? Quem sou eu? Aguardo alguém mais digno; eu não mereço, sequer, despedaçar-me contra ele”. Então, voltaram a falar-me sem voz: “Que importância tens tu? (...)”131

A morte de deus, do velho deus conceitual, o deus dos filósofos e dos teólogos, o

deus da metafísica, abre mar, abismo, e põe o homem a singrar, em travessia, os caminhos

130 NIETZSCHE, 2006, p. 178. 131 Ibidem, p. 179.

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de criação em que o homem também se liberta do “homem”, da segurança das definições

que impedem a criação, o devir. O divino se retrai, já não é alguma coisa, coisa alguma.

Assim, pode abrir o divinar, falar silenciosamente ao poeta-profeta, ao pensador-criador,

que com sua fala nomeia o porvir que se retrai. O divino, com a morte do deus conceitual,

metafísico, pode vigorar. Vigora como fala silenciosa, a que o pensador-criador e poeta-

profeta correspondem. Estes podem, em auscultando, corresponder na divinação. Esta fala

da divinação que nos empenha no porvir é criadora. Criadora não a partir de uma

subjetividade conceitual da pessoa humana metafisicamente determinada, mas como

próprio convocar a andar sobre corda bamba num abismo, singrar mares abertos e não

estradas com rumos definidos: esta é a travessia humana. Com a possibilidade do vigor

divino pela morte do deus metafísico, abre-se também, o vigor dos homens em travessia.

Ambos, numa referência fundamental, viva, não no sentido biológico, mas de existência

como vida-morte.

Disto já nos fala o pensador Heráclito, também desde uma vigência poética do

pensar, aberta ao sentido da verdade que acontece na vizinhança de mythos e lógos. Diz

Heráclito: “Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte destes, morrendo a vida

daqueles.”132 Mortais e imortais vivem e morrem a vida e a morte uns dos outros. O sábio

de Éfeso nos fala de uma conjuntura mitopoética do pensamento, que pensa

originariamente as contradições. Conforme viemos acompanhando o pensamento de

Nietzsche, que coloca com todo vigor o tema da morte de deus como forma de questionar

o divino como divino, este último se mostrou numa referência fundamental com o homem

132 HERÁCLITO, 2005, p. 148 (fragmento LVII, DK)

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em sua realização poética que transcende os conceitos das humanidades, inaugurando uma

possibilidade de viver como morrer, isto é, de fazer a travessia no horizonte do sempre

possível mais presente, justamente por que se retrai. Este modo de vigência é a

possibilidade de o divino ser divino. O dizer de Heráclito nos fala desta conjuntura,

também, num outro contexto, que é “oposto”, digamos, ao de Nietzsche: aquele da

presença vigorosa mitopoética homérico-hesiódica, em que o divino vigorava

poeticamente, não pela morte de deus, mas pela vida da linguagem na irmandade de ser e

verdade. É esta linguagem viva que manifesta o divino. Este e um retrair-se que propele a

travessia humana em que mortais e imortais, vivem e morrem a vida e a morte uns dos

outros. Heráclito o diz com: “Ouvindo não a mim, mas ao lógos, é sábio concordar ser

tudo-um”133. Em relação a este fragmento, seguimos o comentário de Alexandre Costa:

O homem ouve. Se ele ouve o “eu”, dá ouvidos ao mundo enganoso das suas falsas impressões e ao bulício da idiossincrasia. Esta, a audição equívoca à qual Heráclito diz “não”. Esse modo de escuta acaba por constituir o ruído que ensurdece o homem para a escuta do lógos. Mas, se o homem calar a interferência do “eu”, poderá ouvir o que o lógos lhe diz. Escutar o lógos é – diz o fragmento – o que conduz à sabedoria. A posição de “é sábio” na sentença confere-lhe um carácter dual: refere-se tanto ao ouvir o lógos, como ao concordar. Portanto, a sabedoria maior é ao mesmo tempo ouvir o lógos e concordar com ele. Porque ouvir é também obedecer, acatar: no que se ouve, acata-se, concorda-se. (...) A sabedoria consiste, portanto, na subtração do “eu”, o que permite a abertura do homem à concordância com o lógos: a sabedoria nada mais é do que a homología, ouvir o lógos. Ouvindo o lógos, sendo sábio, o homem escutará do próprio lógos a revelação da sua natureza fundamental: ser tudo-um. (...) É preciso sublinhar, contudo, que o lógos não é nem apenas o tudo nem apenas o um, e nem mesmo o um que reúne tudo. É preciso observar as palavras de Heráclito e ver que o lógos abarca unidade e multiplicidade, conservando-as enquanto tais ao mesmo tempo que lhes impõe o mútuo contacto. Assim, o lógos é tanto a união quanto a separação; é ainda a própria relação entre esses dois momentos, o comum, o todo, o tudo-um.134

Isto cuja escuta é originária de todo sábio corresponder, e que não é coisa alguma

nem a uma reunião de tudo (o mais abrangente), o lógos, como vimos, não se opõe ao

133 ibidem, p. 141 (fragmento I, DK) 134 COSTA, 2005, p. 163.

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mythos. Por ele, tudo é um – identidade e diferença de ser sendo e nada: devir. Este mar

aberto, tal como na jornada de Ulysses, é o aceno da jornada mitopoética do homem que já

não é “homem”, conceito de homem, que já não é sujeito, que abandona este último tronco

a que na pós-modernidade ainda se agarra uma metafísica náufraga que falhou na travessia

de singrar os mares abertos do pensar, por insistir em deixar de ser mythos, separando-o do

lógos, entendendo que este o superava. Não quer ouvir as vozes daquelas que falam na

hora mais silenciosa, como sereias a que todos tampam os ouvidos por negar o ser-mar e

ater-se somente ao ente-barco, e que leva muitos outros à perdição de querer o mar fora do

barco-mundo, querer o ser como ente além dos entes. Auscultando o lógos, o canto das

sereias, no horizonte do mundo-barco, o homem acolhe em si a fala silenciosa da verdade

do mito e assim é que “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”135. Assim é que se

singra o mar aberto, como criador de valores que instaurem a cada momento mundo, como

além-do-homem que sabe da morte de deus que se dá quando o divino se torna uma

mentira, já não é divino senão conceito. Isso porque “além-do-homem” não é só “além”.

Não podemos ser negligentes com as palavras cuidadosas, porque poéticas, de Nietzsche.

“Além”, sim, mas “do”. Este “além” não abandona sua proveniência fundamental, pois

quando deixa de ser homem-conceito, acata sua proveniência como funâmbulo. Uma vez

que se entenda a vigência de ser homem, como funâmbulo e não como conceito, parado à

beira do abismo, pode-se perceber em que medida o “além” é “do homem”. O “além-do-

homem” é o horizonte em que o homem pode ser homem. Ai pode vigorar o divino,

quando o homem assume o abismo no horizonte do além-do-homem. Na travessia poética

135 HEIDEGGER, 1973(b), p. 249.

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anunciada pela fala do silêncio, essência acolhedora da linguagem que é lógos, o divino é

devir que se retrai e anuncia no acontecimento poético do mythos, narrativa das errâncias

de mortais e imortais, no ausentar-se vigoroso do divino. Nas palavras de Heidegger:

O erro de Deus e do Divino é a ausência. Mas ausência não é um nada. Ausência é precisamente a vigência apropriadora da plenitude velada do ter-sido e assim do que, reunido no modo do ter-sido, vige e é. Ausência é a vigência do divino para os gregos, para os judeus, para a pregação de Jesus. Esse não-mais é, em si, um ainda-não do advento velado de seu vigor inesgotável. Uma vez que ser nunca é apenas o real dado, vigília do ser não pode, de forma alguma, equiparar-se à função de um vigia, que protege os tesouros conservados num imóvel contra possível assaltantes.”136

É nesta vigília, em que se escuta as inominadas que falam na hora mais silenciosa,

que se pode vir a tomar o caminho do homem além-do-homem, do funâmbulo, e assim

estar novamente aberto para o mar que se abre, pela atenção à morte de deus quando não

vigora o divino, mas apenas deuses conceituais filosóficos e teológicos (não mais

mitopoéticos), que se pode fazer valer novamente a criação. Isto também: criar novos

valores, não a partir do sujeito, mas justamente sobre o abismo, na corda bamba em que

dança o poeta-profeta, o pensador-criador que aceita, na medida em que dança na corda

bamba, o corpo sacro-profano, que está sempre no devir e que não nega esta potência de

vida-morte, a que os gregos chamavam physis. Neste devir corporal, e não num corpo

biológico, estão numa referência fundamental, homens e deuses, vida e morte, sagrado e

profano, mythos e lógos. De fato, este “corpo morto de deus vivo e desnudo”, na fala do

poema de Pessoa, é ele mesmo um mito, como se compreende na leitura da primeira

estrofe:

O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo –

136 HEIDEGGER, 2002(b), p. 162.

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O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.137

O próprio divino aqui se dá como tensão de vida-morte, como vigência da

possibilidade das possibilidades sempre presente enquanto ausente, pelo que o corpo é

manifestação existencial de um acolher e libertar-se para este destino em que se realiza o

próprio homem para além dos conceitos sem que para isso possa prescindir dos imortais

como horizonte de sua própria mortalidade. Mortais e imortais estão em comum

pertencimento reunidos que vão sendo nesta travessia que se dá na escuta do lógos do

mythos que é o “corpo morto de deus vivo e desnudo”. O verso nos fala da vigência “de

deus” no vigor do divino. Não se trata simplesmente da vinda deste ou daquele deus já

estabelecido filosófica ou teologicamente. Como nas palavras de Heidegger acima citadas,

não é a vigília vigiar algo, mas abertura ao porvir, acolher o risco desta poética que é o

próprio real, e assim nos abrirmos para o destino. Abismo sem medida, abertura de

travessia em que o homem já não é conceito de homem – o divino se experiência na

referência fundamental de vida e morte, mortais e imortais na possibilidade presente do

devir. O que não pode ser medido, mas que abre toda medida é este lógos que dimensiona

todo encontro, isto é, que instaura toda medida de dois (dimensão) e em que tal medida

vige. A referência entre o divino e o sagrado, então, torna-se mais clara, contanto que

atentemos para o sentido próprio de sagrado, oriundo do latim “sacer”.

O termo latino sacer encerra a representação para nós mais precisa e específica do “sagrado”. É em latim que melhor se manifesta a divisão entre o profano e o sagrado; é também em latim que se descobre o caráter ambíguo do “sagrado”: consagrado aos deuses e carregado de uma mácula indelével, augusto e maldito, digno de veneração e despertando horror.138

137 PESSOA, 1972, p. 72. 138 BENVENISTE, 1995, p. 189.

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Assim, o sagrado está, em sua ambigüidade, ligado à macula indelével. Mácula, em

sentido próprio, não é uma coisa má, nem vergonhosa. Significa sinal, mancha, marca, e

apenas em sentido derivado, desonra. Mácula é aquilo que marca, que mostra e dá sinal.

Aquilo que ressalta a presença de algo, mostrando, marcando. O sagrado articula então os

deuses em sua divindade que se retrai, e a mácula que mostra, sinalizando a presença. Mas

Benveniste fala de uma divisão entre sagrado e profano. Vejamos isso um pouco mais à

frente, quando, a partir de uma outra observação, poderemos entender melhor. O sagrado,

conforme a citação, remete tanto ao augusto, ao querido e beneficiado pelos deuses, quanto

ao maldito. Este caráter de maldição ou dádiva, se articula a partir do sacramentum:

O sacramentum é propriamente o fato ou objeto por meio do qual se anatematiza antecipadamente sua própria pessoa (sacramentum militar) ou o penhor dado (no sacramentum judiciário). A partir do momento em que a palavra é dada seguindo as formalidades, está-se potencialmente no estado de sacer. Esse estado se torna efetivo e atrai a vingança divina no caso de trans-gressão do compromisso assumido.139

Como se vê, o estado de sacer a que se chega pelo empenho da palavra é

exatamente este “entre” que pode ser augusto ou maldito, provocar a benção ou a ira

divina, conforme o compromisso com a palavra. O sagrado é propriamente este “entre” que

abre toda e qualquer decisão. O sacramento empenha o homem na ambigüidade do

sagrado. O cuidado do homem em relação ao porvir, ao divino, conforme a palavra

empenhada no juramento os faz caminhar as vias do sagrado. Os deuses testemunham o

empenho da palavra no sacramento que declara sagrado. Assim, homens e deuses se

encontram numa referência fundamental, dimensionados pelo sagrado. Contudo, ainda

que na mais íntima vizinhança, dimensionados pelo sagrado, os deuses e os homens não

139 Ibidem, p. 174.

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são a mesma coisa, nem tampouco se pode identificar uns ou outros com o próprio sagrado.

Os deuses, e também os homens, no sacramento, assinalam, dão mostra e testemunho do

sagrado, na medida em que o sacramento marca a presença do sagrado no juramento

empenhado pelo homem na testemunha dos deuses. O sacramento, o sagrado empenho da

palavra, reunido mortais e imortais, evocando pela palavra o âmbito do sagrado,

corresponde – numa tensão poética - ao movimento de destinação e favorecimento do

profano ao sagrado. O sacramento põe em movimento o profano, na medida em que este se

lança em oferenda ao sagrado. Assim somos levados a discordar de Eliade, quando afirma

um estatuto ontológico superior do sagrado em relação ao profano, a partir de uma ligação

do mito apenas ao âmbito do sagrado, ao dizer que “Tudo o que pertence à esfera do

profano não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo

mito, não tem modelo exemplar.”140 Além disso, a diferença entre sagrado e profano não se

dá como dois modos de existência, em que o primeiro corresponderia a uma vigência de

verdade do mito, e o outro à um percurso histórico marcado pelo desencantamento, ou

seja, pela predominância do pensar metafísico141. Contudo, compreendemos que o sagrado

e o profano são diferentes. Mas esta diferença é di-ferença, só pode ser compreendida a

partir do “entre” originário do qual divergem na medida em que para ele convergem.

Portanto, embora sagrado seja realmente diferente de profano, está com ele

intimamente ligado, numa convergência opositiva, numa contradição originária. O

sacrifício também assinala esta vizinhança. No sacrifício, torna-se a vítima sagrada. Para

isso, ela deve deixar de viver, o que significa igualmente deixar de realizar a possibilidade

140 ELIADE, 1992(b), p. 85. 141 Cf. ELIADE, 1992(b), p. 20 e passim.

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das possibilidades que é a morte, conforme vimos. Ou seja, o sacrifício consuma: leva à

plenitude a manifestação, a mácula, o sinal da presença de algo, de modo que no sacrifício,

a vítima, pela consumação do sacrifício, máxima sinalização da presença, assinala a

liminaridade de vida e morte, de sagrado e profano. O profano se destina ao sagrado. Por

esta liminaridade assinalada no sacrifício, em que a presença do sacrificado se retrai,

profano e sagrado aparecem na plenitude de seu sentido142. O sacrifício e o sacramento, um

retraindo a presença, e outro apresentando o retraído, articulam a dinâmica do sagrado.

Como então, veio o sagrado a reduzir-se ao seu sentido institucional? Ocorre que há uma

outra palavra, que se irmana de sacer e com ela se articula: sanctus, sanctum.

(...) é sanctum o que está apoiado por uma sanctio, forma abstrata da palavra sanctum. Vê-se em todo caso que sanctum não é o que é “consagrado aos deuses”, que se diz sacer, nem o que é “profano”, ou seja, o que se opõe a sacer; é aquilo que, não sendo nem um nem outro, é estabelecido, firmado por uma sanctio, aquilo que é defendido de qualquer ataque por meio de uma penalidade, a exemplo das leges sanctae.143

Portanto, enquanto o sagrado, na dinâmica do sacer articula esta ambigüidade

poética, reunido deuses e homens, assinalando presença e retraindo o vigor da divindade, o

sanctum tem o sentido do instaurado nesta dinâmica, neste devir sagrado. É este sentido

institucional, estabelecido e firmado, que dá origem ao sagrado conceitual da teologia e da

filosofia, das leis que não se pautam pelo sentido do desvelar autovelante da verdade do

ser. Sem o devir sagrado, o sagrado institucional se congela, enrijece e fossiliza, torna-se

uma entidade abstrata que nada tem que ver com o real, tornado assim tão-somente pobre,

pequena e limitadamente profano, no sentido mais corriqueiro. A partir deste sagrado

142Cf. BENVENISTE, 1995, p. 189-190 143 ibidem, p. 191.

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conceitual, realmente não pode fazer qualquer sentido o dizer poético: “o corpo morto de

deus vivo e desnudo”.

Tentamos, até aqui, libertar o que os versos nos falam para que nos pudesse vir ao

encontro o seu sentido. Isto porque não queremos aqui, com divino, vida e morte, corpo e

deus, representar aspectos do mito. Não queremos dar respostas válidas e utilizáveis a

partir de então sempre que necessário, nem tampouco criar um novo conceito de mito.

Queremos sobretudo, ao menos tentar, uma vez, ainda que brevemente, abrirmo-nos à

experiência de sentido e verdade do mito, queremos ao menos uma vez, pelo menos tentar,

de modo próprio, estar nesse sentido e nessa verdade na compreensão de seu

acontecimento. Uma experiência do sentido da verdade vale mais que mil conceitos. Não

temos - embora sequer tenhamos tal pretensão - que comprovar que a reflexão que aqui

tentamos, mas sim que tentar libertar a fala do poema para que ela aconteça poeticamente.

As comprovações só são possíveis lá onde o fundamento da prova está inconteste, e aquilo

a que desde o princípio nos lançamos aqui é justamente à tentativa de ouvir questões

fundamentais, na busca de reconduzir o mito à plenitude de seu vigor. Ou seja, de

questionar o fundamento, nas questões fundamentais, para encontrar o originário.

“O corpo morto de deus vivo e desnudo” é, tal qual “o sol que abre os céus”, “o nada

que é tudo”, ele também um mytho, “brilhante e mudo”. Isto, diz-nos o poema. Divino é o

vigor de deus, ou seja, aquilo em que seu ser tem vigência e aquilo que deus é, na medida

em que vai sendo. O divino como vigor de deus livra deus da morte de “um velho deus”,

que envelhece nas suas metamorfoses dentro da circunscrição conceitual. O deus que,

vigorando divinamente, em sua imortalidade, morre e também vive; está numa vizinhança

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próxima dos mortais, que vivem morrendo e morrem vivendo. “O corpo morto” é o corpo

que já se retraiu como vivente e foi acolhido pelo que já não é medido, o abismo de não

ser. “O corpo morto de deus”, é o corpo morto do que tem vigência divina, isto é, do que

mantém resguardada a origem na abertura de já não ser. “O corpo morto de deus vivo” é

aquele que já não sendo, vive como o divino, como o resguardo da origem que está já desde

sempre na iminência, do porvir. O corpo de deus é vivo-morto, resguardado em seu ser

assinalado na ambigüidade originária, pela qual a palavra sagrada empenha o homem sob

testemunho divino no sacramento, e pela qual, no sacrifício, se encobre a presença

deixando-a sem sinal, numa consumação que reúne e marca a liminaridade de homens e

deuses. O mytho, nos diz o poema, se mostra como corpo, aparece, vivo, retraindo-se como

corpo morto que já não é, na medida em que vigora resguardado como o mais iminente vir

a ser.

“Desnudo”, é este “corpo morto de deus vivo”. Nudez é, em princípio, ausência de

roupa. Quem está sem roupa está desnudo. Essa constatação é correta. Contudo, na

correção, que é um julgamento de adequação entre idéia e coisa feito pelo homem,

segundo critérios humanamente determinados, ainda não se dá o verdadeiro. O verdadeiro

se nos dá no acontecimento da verdade, na dinâmica de ser, vindo a ser e já não sendo, do

real. Sem essa dinâmica, sem que a coisa se apresente na retração do silêncio que conclama

questão (espanto!) e já é linguagem se dando, não é possível nem mesmo pensamento,

quanto menos julgamento correto e equivocado. Não se trata aqui desta espécie de verdade

moralmente circunscrita, isto é, determinada por um julgamento de correção ou

incorreção. Trata-se de escutar o acontecimento do real, o que se retrai no que se dá:

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questão. Nudez, diz, sim, estar sem roupa. Contudo, o que começa a nos conduzir ao

essencial é perceber que de um cachorro, embora esteja este sem roupa, nunca se diz que

está desnudo. Diz-se, contudo, quando se vê um cachorro destes muito queridos usando

peças de roupa, que está vestido, mas quando não as usa, não está nu. Nem tampouco se diz

tal coisa de uma estante ou de uma estrela. Porque não permanecem, ainda que trajados,

abertos ao vestir-se.

O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

“Desnudo”, encandeando pela sonoridade com “mudo” e “tudo”, articula neste soar

a reunião instauradora de sentido. Esta reunião não é explicação, não é visão de mundo, é

apenas a palavra na mais plena dignidade de palavra, que chega e diz o que diz,

entregando-se à escuta. Desnudo, sem estar encoberto pelas roupagens, é que o mito é

tudo. O tudo se desnuda. Nesta nudez vigora a mudez que se desnuda na récita das

palavras poéticas do mito. Estas palavras recitadas evocam a corporeidade do divino, vivo

porquanto morto, ou seja, o horizonte do que é vivo, a morte velada na corporeidade da

vida. Assim o divino é divino, porquanto se mantém no vigor do que, velado, devém,

desnudando-se. O corpo é morto. A proximidade destas palavras na sintaxe musical da

poética que soa na récita das palavras deixa o corpo ser corpo. Não é um organismo, não é

massa, não se determina pelas suas medidas de peso ou extensão. É oferenda que assinala a

liminaridade de sagrado e profano. É sacramento e sacrifício em que sagrado e profano

convergem na medida em que divergem. Com esta corporeidade o homem acontece como

homem.

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Só pode ficar nu o ente que permanece aberto ao vestir-se, isto significa não apenas

que se pode neste ente vestir algo, mas que o ente está aberto ao vestir-se. Isto quer dizer:

para este ente o vestir-se, em se dando, pode acontecer como o sentido de vestir-se, pelo

que o tal ente pode encontrar a si mesmo e aos outros que como ele permanecem abertos

ao vestir-se como vestidos ou nus. A nudez só se dá para o ente que está aberto ao vestir-

se. Só se veste de verdade o que pode estar nu. O vestir-se cobre. Mas não apenas cobre,

também mostra. Pela vestimenta os seres humanos, entes abertos ao vestir-se, se mostram

de muitas maneiras. Cobrindo-se, manifestam o próprio mundo, a própria historicidade,

sua própria vigência enquanto seres que podem corresponder à linguagem. O vestir-se é

linguagem, que corresponde a um ocultar que mostra. No vestir-se a criança vai para

escola e se faz estudante, a noiva se torna noiva e deixa de ser a que tão somente conta os

dias para o casamento; e o sacerdote, sacerdote, e não meramente alguém investido nesta

função ainda que fora dela, quando fora do vestir-se. No vestir-se o folião num carnaval se

torna aquilo em que se fantasia, torna fantasia realidade e se oculta como o que é, para ser

uma miríade de coisas que tecem e entretecem a presença histórica do corpo social. O

vestir-se oculta e mostra o que é e não é, sendo. A nudez se revela no vestir-se.. No vestir-

se, como nos cultos afro-brasileiros, o devoto manifesta no corpo dançante o orixá que se

resguarda na sua divindade. A nudez divina está oculta no devoto dançante vestido de

orixá. Resguardando-se no vestir-se, a nudez velada pode se dar. A nudez divina se vela,

mostrando-se no vestir-se. Deus se veste de homem, quando homem se veste de deus.

Neste vestir sagrado, um homem é deus. Lembrando que, na vigência mitopoética que

tentamos vir acompanhando, na fala do poema, ser não é ser igual. Um homem só pode

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vestir a nudez de um deus, mascarar-se de deus, encarnar deus, se permanece – como é

próprio do vestir-se – aberto à nudez que se oculta, mostrando-se no vestir-se. O homem

permanece aberto à nudez sagrada, porque permanece aberto ao divino. Pelo vestir-se, a

nudez, no horizonte sacro-profano, mostra a mais íntima vizinhança de mortais e imortais,

veste do divino. No culto, na dança, na máscara da tragédia, na hóstia, na palavra sagrada,

no templo, encontram-se o sagrado e o profano.

Com isso não se quer afirmar profeticamente uma teofania vindoura, não se quer

profetizar, nem se pode. Ao pensamento é vedado profetizar. A profecia – divinação em

sentido pleno - é propriamente mitopoética. A poética do mito divina. O mito, poética

divinatória, é o nomear do sagrado, porquanto seu dizer pode nos preparar para a

obediência do extra-ordinário: “O corpo morto de deus vivo e desnudo”. Tentamos nos

aventurar na escuta deste dizer. Esta aventura só se dá como experiência do mito. Se não

há abertura para ela, de nada adianta continuar tentando libertar o dizer desta poética do

mito, que nos fala nos versos de Pessoa. O melhor a fazer é deixar a palavra à poesia, para

que assim possamos estar, na procura, à espera do que o poema evoca como chegada:

Este que aqui aportou Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

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V. Este que aqui aportou, foi por nãV. Este que aqui aportou, foi por nãV. Este que aqui aportou, foi por nãV. Este que aqui aportou, foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter o ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter o ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter o ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter

vindo foi vindo e nos creou.vindo foi vindo e nos creou.vindo foi vindo e nos creou.vindo foi vindo e nos creou.

Até agora, viemos tentando libertar o dizer do poema, na procura de uma vigência

poética do mito. Uma vigência poética do mito não quer dizer que se compreenda aqui que

o mito é somente uma manifestação artística. A busca de uma vigência poética do mito é a

busca de uma escuta do mito que se articule como um pensar próprio. Repetimos que

pensar, no contexto deste trabalho, não é elaboração e processamento de conceitos e

sistemas, e que verdade não é correção a partir da adequação entre idéia e coisa, entre

sentença e realidade, porquanto a linguagem não é um suporte de idéias nem um

instrumento de comunicação. Nosso caminho de pensamento não se atém a uma

metodologia que assegure de antemão a verdade, mas ousa tentar a errância e o risco do

pensar, isto é, um caminho de pensamento que se instaura ao modo da própria existência, a

que nos viemos por vezes referindo como “travessia poética”, posto que esta travessia é um

fazer-se não apenas do homem, mas do real eclodindo na historicidade de seu sentido. Este

caminho nos leva por entrecaminhos, em que as imagens-questões evocadas na poética do

mito que tentamos escutar se instauraram ao modo de referências fundamentais, que não

se entendem como mera diferença lógica, nem síntese dialética, nem complementaridade a

partir dos termos. O entre se mostrou como a dimensão fundamental, pelo que ele é

originariamente di-mensão, isto é, o entre é a desmedida (o que não pode ser medido nem

calculado nem concebido, pois não é algo) que di-mensiona toda medida. Esta referência

fundamental se manifesta como identidade-diferença, que evocamos no âmbito do pensar

como “contradição originária”, no âmbito do real como “ser-não-ser-sendo” e “nada que é

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tudo”, no âmbito da verdade como “desvelar autovelante” e “re-velação”, no âmbito da

linguagem como “escuta e fala do silêncio”. Mas falar em “âmbito” não é o mais

apropriado, porque todas estes âmbitos estão um para com os outros também numa

referência fundamental. Isto significa que, enquanto dimensionantes, linguagem, verdade,

realidade e pensamento são também dimensionados uns com os outros. Isto é até mesmo

próprio de um pensar que não se propõe a realizar uma derivação rigorosa a partir de

pressupostos.

Tal esforço de libertar o sentido para o pensamento procurou, por outro lado,

encerrar o pensamento no sentido, ouvindo o poema de modo próprio. Ouvir de modo

próprio é dialogar, é já a instauração do dizer que corresponde à escuta. Por vezes, para

ouvir de modo próprio, dada a vigência metafísica do horizonte histórico em que vivemos,

no que se refere aos domínios do conhecer e do pensar, é preciso convidar para o diálogo

pensadores e poetas que trilharam as vias da travessia poética de modo próprio, num

esforço de pensar propriamente o poético. Também trouxemos para o diálogo cientistas e

filósofos que operam no horizonte metafísico, para trazer tensão e assim procurar abrir a

compreensão. Contudo, em todo o percurso em que as imagens-questões do poema foram

articulando suas referências fundamentais, como identidade-diferença, acabamos por

caminhar em meio a diversas palavras que não estão no poema, mas que o dizer poético

libertou como questão quando tentamos encerrar nosso o pensamento no sentido.

Por vezes, é comum imaginarmos se realmente é isso que o poeta quis dizer. Esta

suspeita pressupõe que o sentido do poema reside nas idéias, sentimentos e vivências do

poeta, ou na influência que o seu meio sócio-cultural ou histórico exerceu sobre ele.

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Conforme o que consideramos até aqui, pudemos apenas entrever que se quisermos pensar

o poema em sua historicidade, ou seja, em sua verdade e realidade poéticas, no devir de seu

sentido, de modo a libertar o seu dizer para o pensamento e para o questionamento, não

podemos pressupor que há um sentido “interno”, que há “entrelinhas” a serem capturadas

por nosso entendimento, pelo que o poema se torna sempre uma coisa pronta e, com o

tempo, um artefato do passado, um objeto arqueológico de interesse apenas dos

especialistas que, quando muito, conseguem estender um fio que liga este objeto à

realidade. Assim, o poema deixa de ser justamente real. Desenvolveremos melhor a

questão da historicidade do sentido do poema no horizonte da poética da interpretação, a

partir desta poética mítica pessoana, um pouco mais à frente.

Como preparação para os próximos passos, contudo, gostaríamos de apresentar

ainda uma outra consideração. A relação entre autor e obra pede um cuidado. Se o sentido

de uma obra não se prende ao seu autor, posto que o leitor que lê um poema de modo

próprio o lê poeticamente, por outro lado, o poema de fato não vem a ser sem o autor.

Contudo, um poeta só poeta de alguma poesia. Um poeta não vem a ser sem o poema. Daí

que ambos eclodem da poesia, que não é uma entidade abstrata, mas o próprio

acontecimento revelador e autovelante, em que eclodem poema e poeta-leitor-em-escuta,

isto é, o real como mundo na historicidade de seu sentido. Este acontecimento da poesia

manifesta o poema, quando poeta interpreta poeticamente a revelação do real em seu

sentido e verdade (e de fato uma coisa implica a outra: interpretação poética e sentido e

verdade). Este acontecimento também se dá quando o leitor interpreta poeticamente o

poema (pelo que o poema é, aí, a própria realidade se manifestando em sua revelação de

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sentido). Este acontecimento se dá, ainda, quando o poema revela o poeta-leitor-em-

escuta. Ou seja, real, sentido, verdade, poema, leitor e poeta são históricos, na medida em

que são poéticos. Desenvolveremos isso mais adiante, também. Quisemos apenas esboçar a

relação entre autor e obra, libertando-os um do outro, na medida em que os mantemos

reunidos como acontecer da poesia. Também entre autor e obra, assim como entre

ouvinte-leitor e obra, surpreende-nos a questão da referência fundamental, que tem se

apresentado como a força originária da poética que nosso diálogo com o poema de Pessoa

tem tentado compreender. O próprio Pessoa, num de seus escritos afirma a intimidade de

identidade e diferenças como constitutivas daquilo que é e está sendo144. Mas a referência

fundamental aqui pensada não se justifica como poética pelas palavras de uma reflexão

filosófica do autor do poema a partir do qual tal horizonte de sentido se nos abriu.

Conforme procuraremos dizer neste capítulo, o vigor propriamente poético do mito

é aquele em que somos levados a pensar que o mito é o seu sentido. Poético não é aquilo

que tem tal ou qual sentido, que pode ser justificado por alguma referência externa.

Poético é aquilo que é o seu sentido. Deste modo, uma poética do mito nos conduz pelo

pensamento do mito no horizonte de sentido que ele é, e assim ele é histórico,

criativamente histórico, reunido todo intérprete, seja ele “autor”, ouvinte-leitor, e obra, na

dimensão de uma referência fundamental. É por isso que a questão da autoria, em tudo

aquilo que vigora poeticamente, tal como o mito, é uma questão mais profunda, que não

pode se limitar a uma subjetividade, seja ela individual ou sócio-culturalmente constituída.

Neste horizonte de questionamento, o mito é poético porquanto é histórico. É o que

144 PESSOA, 1976, 529-530.

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parece nos soar nos versos que dão título a este capítulo: “Este, que aqui aportou, foi por

não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo e nos creou.” Vamos

tentar ouvir o que nos dizem os primeiros versos, postos numa reunião.

Os versos evocam “este”. Quem é tal “este”? Será alguém? Será algo? Não podemos

simplesmente decidir. Retrocedendo ao que a escuta prévia libertou como sentido e

verdade, como poética deste poema, teríamos: 1. a evocação do mito em sua ontologia ( “o

mytho é (...)”) que não se constitui na determinação de sua essência como representação

mais geral, como conceito mais abrangente, mas antes como uma contradição originária,

uma reunião de identidade e diferença, uma referência fundamental: o nada que é tudo; 2.

evocação do sol e sua potência do brilhar e da mudez, como vigor poético da linguagem,

que o próprio mito é, de uma forma tal que não há o mito e uma linguagem que o expresse;

3. evocação do corpo morto de deus vivo e desnudo, cuja referência fundamental o mito

também é, revelando-se aqui não como dado cultural, religioso, filosófico e abstrato, como

um fazer que pode ou não fazer parte dos fazeres do homem, mas como a própria

corporeidade e humanidade do homem, como ser entre vida e morte, cuja mortalidade

fundamental se dimensiona com a imortalidade divina. Esta é a presença do porvir, ou

ainda, a possibilidade das possibilidades do advento, das criações do homem e da criação

do homem, numa tensão que vige no vigor velado do mito como acontecimento sagrado.

Deste modo, não queremos simplesmente decidir o que é o “este” do verso

mencionado (“Este, que aqui aportou (...)”). Contudo, não podemos simplesmente passar

por cima destes versos e pressupor uma interpretação dos versos seguintes que possam

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explicar estes por que passamos. Portanto, primeiramente, referencial será o dito que abre

a evocação destes versos:

Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

Esta é, também, a segunda estrofe inteira. Da mesma maneira que a primeira estrofe

traz consigo uma ontologia poética do mito, evocando ser (verso 1), linguagem (versos 2 e

3), o corpo, deus, vida e morte (versos 4 e 5), esta segunda estrofe encaminha um

movimento de acontecimento desta ontologia poética. A segunda estrofe abre o sentido

desta ontologia poética do mito como acontecimento de verdade, no horizonte da

existência. Enquanto a primeira estrofe reúne em seu dizer o vigor do permanente, a

segunda estrofe faz vigorar o atual. Permanência e atualidade se encontram na maior

intimidade, nesta poética pessoana que manifesta o vigor do mito. Esta intimidade é até

mesmo própria da vigência do acontecimento poético, conforme nos fala Castro:

(...) o poético é a mudança como vigência do permanente, do atual. Esta palavra se origina do verbo latino agere, agir, que diz, em-si, o mesmo que o verbo grego: poiein: o agir originário como essência originária, o poético. Atual e atualidade nos lembram mais o presente histórico. Há aqui uma tautologia: se é presente é histórico, se é histórico é presente. É que não há presente nem histórico sem tempo originário. A História é uma doação do tempo e, como doação, é presente que constitui o humano do homem. O humano do homem é o tempo se dando no homem como presente, como permanência e atualidade, como o poético constituindo o “isto” do homem, isto é, o humano, a sua essência, o que lhe é próprio, o mesmo. Eis por que o humano só se realiza na travessia145.

Muito profundas são estas palavras citadas, e abrem todo um horizonte de

pensamento das questões mais fundamentais. A reunião originária, porque diferenciadora,

na fala da poética do mito, faz vigorar, então, o mito como permanente e atual. Atual não

145 CASTRO, 2007, p. 14.

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diz o mesmo que uma coisa “da última tendência”, seja esta tendência comercial,

acadêmica, política ou religiosa. Atual enuncia agir essencial, tal como poiésis. Este agir é:

criar e ser o que se cria na correspondência do vir a ser e não-mais-ser que é a própria

vigência da physis, da “natureza” tal como pensada pelos gregos. Natureza, então, não é um

domínio diferente do domínio cultural e histórico. A atualidade - poiésis - imita a

natureza, mas a natureza não como paisagem diante da cultura, mas como physis. A

atualidade poética imita a natureza na medida em que é como a natureza, como physis, isto

é, na medida em que vem a ser e não-mais-é, e assim é que vai sendo. É de tal forma como

a natureza, que com ela se identifica e ainda assim se diferencia, como realização própria.

Assim, aquele que cria, que é uma doação da physis, é tanto quanto o criado um acontecer

que é ele mesmo physis, mas não a mesma coisa que physis. O homem é homem na

medida em que é physis, na medida em que se realiza poeticamente. Deixamos por hora de

dizer “natureza”, usando “physis”, apenas para deixar realçado que, dado o entendimento

de “natureza” no pensar metafísico, a melhor palavra, a palavra menos distante que hoje

teríamos de physis é: “real”. O real não é somente o realizado, nem tampouco realização e

“desrealização”. Real é tanto o realizado como a realização e a desrealização, de uma

maneira tal que é melhor sempre dizer com uma palavra: real. Melhores ainda, porque

menos carregadas pela tradição metafísica, são as palavras “permanência” e “atualidade”

quando propriamente entendidas na sua mais íntima vizinhança, isto é, como permanência

e atualidade poéticas.

Este agir do atual é não somente o fazer do homem, mas o fazer-se do homem, que

é o próprio fazer-se da physis, no horizonte poético. É neste sentido que o mito acontece

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como physis-homem, de tal modo que o próprio mito talvez seja a physis acontecendo

como homem. Como vigência poética de manifestação criadora no vigor do velamento, de

retração que abre sempre o horizonte em que se torna possível a atualização permanente, o

mito, já agora pensado em sua poética, em seu estar acontecendo como verdade e sentido,

na dinâmica re-veladora, é o próprio tempo se dando em sua verdade e sentido. Mito

inaugura tempo não como extensão linear em que se dá o movimento espacial e a

transformação substancial, mas como acontecimento da realidade, da physis. Tempo

mítico não é medido, é imenso (no sentido pleno de não medido), justamente porque é ele

que dimensiona toda e qualquer medida. Nesta presença do tempo em seu sentido, não em

sua medida, o mito é História. Tal como nas palavras citadas de Castro, História, no

horizonte do mito, não é o estudo de fatos passados a partir de documentos lidos no

presente. A História é presença. Esta presença, tal como a viemos pensando, é constitutiva

do homem não como um dado, mas como um não-dado, como aquela abertura que não

somente inaugura o criado e a realidade, mas vela o originário de toda criação e realidade,

de tal maneira que não são dois âmbitos ontológicos distintos, tampouco iguais, conforme

já tentamos mostrar.

Mircea Eliade procura compreender o mito como história sagrada de modo

diferente da questão da historicidade tal como viemos tentando pensar aqui, embora à

primeira vista as nossas possam parecer duas compreensões semelhantes. Seu trabalho

busca desenvolver uma interpretação do mito a partir da permanência cada vez atual dos

símbolos na história existencial da humanidade. Os diversos símbolos seriam como que

conteúdos permanentes que a cada momento do desenvolvimento existencial se mostram

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de modo renovado em imagens. Contudo, “símbolo” para Eliade não tem o mesmo sentido

com que a palavra comparece nas teorias de orientação psicológica:

O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstancial ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu estudo nos permite melhor conhecer o homem, “ o homem simplesmente”, aquele que ainda não se compôs com as condições da história. Cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História.146

Portanto, o símbolo, para Eliade, é muito mais uma potência de pensamento em

que a história se faz e se converte em criação. Não se aplica, na vigência do mito como

história sagrada, o modelo de história como sucessão de fatos, mas como suspensão do

tempo como cronologia, e sua conseqüente experiência como retorno às origens

criadoras147. Neste sentido é que “o homem simplesmente”, ou “homem tradicional” como

no trecho abaixo, isto é, nem o homem agente da história, nem o homem determinado

pela história, é um homem que habita o vigor do mito, na medida em que por este vigor a

experiência da história se dá como experiência da criação.

Assim, para o homem tradicional, o homem moderno não dispõe do tipo de um ser livre, nem de um criador da história. Ao contrário, o homem das civilizações antigas pode orgulhar-se de seu modo de existência, que lhe permite ser livre e criar. Ele tem liberdade para não ser mais o que era, livre para anular sua própria história por meio da periódica abolição do tempo e da regeneração coletiva. Essa liberdade com respeito à história – a qual, para o homem moderno, não é só irreversível, mas constitui a existência humana – não pode ser reclamada pelo homem que deseja ser histórico148.

Em virtude desta dicotomia inconciliável entre existência histórica e existência

criativa é que o pensamento que aqui se tenta se distingue do de Eliade. Porque, conforme

146 ELIADE, 1991, P. 8-9. 147 ELIADE, 1992. 148 Ibidem, p. 134.

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vamos continuar tentando encaminhar adiante, o que é propriamente histórico na história

é justamente o que é originário e que assim convoca o homem a realizar-se poeticamente,

criativamente. Ou seja, não há uma existência histórica e outra criativa e mítica, mas toda

existência, toda travessia poética humana, é sempre a todo momento histórica porquanto é

criativa, e é criativa porquanto é histórica. E justamente referência fundamental entre

história e criação é dimensionada por aquela questão que nos vem na palavra “mythos”. O

mito é que dimensiona história e criação.

Contudo, é de grande valor e profundidade o trabalho do historiador das religiões

romeno. Principalmente no encaminhamento que dá à questão do sentido do mito

enquanto interpretação atual e permanente do mesmo simbolismo em imagens criadas. Diz

ele:

É então a Imagem em si, enquanto conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única de suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referência. Traduzir uma Imagem na sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá-la, é aniquilá-la, anulá-la como instrumento de conhecimento.149

Portanto, a imagem é aberta e por isso é uma âmbito de realização que permite e

condiciona a criação. A crítica de Eliade aqui se direciona ao procedimento comum às

teorias simbolistas anteriormente referenciadas neste trabalho, que visa relacionar a

pluralidade das imagens a uma única referência simbólica, fixando-lhes um significado.

Com isto - e aqui entra a nossa diferença em relação a Eliade – o que é aniquilado é não

somente a imagem em sua potência criativa, mas a própria historicidade da existência

humana, que acontece poeticamente! Torna-se, assim, questionável se o estudo do

simbolismo, pelo desdobramento de imagens numa história sagrada nos leva à

149 ELIADE, 1991, p. 12.

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compreensão da permanência e atualidade, e nos aproxima de uma vigência histórica em

que se dá o vigor mítico. Porque uma vez que se consiga representar o permanente, o

símbolo, a partir do que se atualiza criativamente já desde sempre na imagem, o que se fez

é justamente converter isto que não é simplesmente o criado, mas que vigora em toda

criação, o originário, numa representação passível de apreensão, ainda que não se remeta

sempre e a cada vez a esta representação apreendida quando se tenta compreender a

atualidade da imagem. Em outras palavras, ainda que, como diz Eliade, não se possa

reduzir a atualidade criativa da imagem a um significado simbólico permanente, a

concepção representativa de determinados símbolos, que permite o estudo do

desenvolvimento histórico das imagens, já condiciona não somente o entendimento das

imagens, limitando-as a campos apenas relativamente abertos e criativos, mas também

estabelece uma espécie de essência a-histórica representável como que regendo,

subjacente, todo o processo criativo da história. É inclusive a partir disto que se pode

estabelecer uma diferença entre existência histórica e existência criativa da história, tal

como faz Eliade. Pois enquanto aquela não retoma a essência simbólica no seu processo

linear de sucessões, esta outra o faz e assim não se dá como sucessão, mas como eterno

retorno. Assim ele permanece “livre para anular sua própria história por meio da periódica

abolição do tempo e da regeneração coletiva” 150 , nas palavras do autor citadas

anteriormente. Permanece desta feita inalterada a noção de história como sucessão de

fatos, em vez de se pensar o histórico como o advento do acontecimento que movimenta a

história.

150 ELIADE, 1992, p. 134.

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Portanto, na compreensão da história como temporalidade da presença, não há

distinção– tampouco pura igualação – nem entre atualidade e permanência, nem entre a

compreensão histórica e o devir histórico. No horizonte do mito, o homem é aquilo que

compreende, e vai sendo na medida em que vai compreendendo, atravessado em sua

travessia pela dobra de ser e compreender. Esta dobra de ser e compreender se desdobra

historicamente como linguagem. Linguagem é, portanto, tanto o ser compreendido, como

compreender o ser, na historicidade de seu sentido. Mas a história se tornou algo

problemático, a partir da representação metafísica do vigor do tempo e da compreensão

que fundamenta a ciência historiográfica. Para esta maneira de representar, o poema,

quando evoca o vigor histórico do mito nos versos abaixo, não está falando da História de

fato:

Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou.

Isto porque, fundamentalmente, não se determina o que é tal “este”, nem o “aqui”

em que aportou, nem o quando aportou. Desde que a história se entende

historiograficamente, só é histórico o que é ação - ao longo de uma medida de tempo e

num determinado espaço sócio-cultural - de um indivíduo, de uma sociedade ou de uma

cultura. Histórico não é temporalidade. Esta se converte no eixo da abscissa que, em

conjunto com o eixo da coordenada sócio-cultural, permite calcular o curso da história

como um vetor orientado em seu sentido pela ação do sujeito, como indivíduo ou

coletividade. Esta noção cartesiana da história não se restringe ao historicismo, porquanto

está presente sempre que os ditames da objetividade nos levam a crer que podemos

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representar e compreender a história como um plano que traçamos diante de nós. Como se

pudéssemos realmente ter diante de nós o tempo e o mundo em que já desde sempre

estamos lançados. Só mesmo como contexto sócio-cultural é que “mundo” pode ser

representado como algo diante de nós, da mesma forma que somente como uma

linearidade mensurável é que a temporalidade também pode pairar como se estivéssemos

fora dela. No vigor histórico do mito, não podemos sair da temporalidade nem do mundo,

somos históricos. A própria compreensão histórica é a história acontecendo e, por isso,

mesmo, não se pode falar de um fato histórico, neste horizonte mítico, porque o próprio

horizonte da história que se compreende é o mesmo horizonte da história em

acontecimento. Deste modo, a ilusão de um horizonte fechado na linha da história, de um

fato histórico, é apenas uma abstração a-histórica. Apenas nos distancia, portanto, da

historicidade. Por não articular fatos nem pôr em dicotomia compreensão e objeto, a

história mito-poética não é compreendida como propriamente histórica a partir da

perspectiva historiográfica. Daí a impropriedade de uma historiografia do mito ou das

teorias “históricas” do mito. É impossível compreender e apreender o mito se não se

redimensiona a compreensão da história cronológica.

Pelo fato de não ser objetivamente representável, a compreensão-história

mitopoética não é subjetiva. A realidade divida em objetividade e subjetividade é uma

concepção metafísica, e a própria concepção do que seja subjetivo e objetivo não é

imutável, dentro da própria metafísica, conforme já aludimos. Subjetividade e objetividade

são categorias a-históricas. Portanto, só embotam qualquer compreensão da historicidade

da presença, porque reduzem mundo e temporalidade, respectivamente, a linearidade e

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contexto. Linearidade e contexto são formas de se entender tempo e mundo de modo a

permitir a ilusão objetivante de que os podemos ter diante de nós. Sempre somos tempo e

mundo, e por isso somos históricos. A compreensão mitopoética da história não se dá fora

do horizonte mundo-temporal. Por isso história e compreensão histórica nunca se

determinam conceitualmente no horizonte mitopoético.

A necessidade de uma objetivação da história surge como uma aparente oposição do

pensamento romântico ao iluminismo. O iluminismo se caracteriza como uma postura de

pensamento preconceituosa em relação a todo e qualquer preconceito. 151 Para este,

portanto, o mundo - o sentido do real no horizonte temporal - em que todo pensamento se

dá é sempre entendido como um conjunto de preconceitos oriundos de juízos não

fundados. Contra estes preconceitos, a razão deve dirigir-se metodicamente, para assim

verificar ou não sua validade. Com isso, nega-se a própria historicidade do mundo, na

medida em que se pretende sair da historicidade do mundo para concebê-lo novamente ex

ratione, ou seja, a partir de um fundamental universal (sem-mundo) e atemporal. Na

aparente oposição ao iluminismo, o romantismo quer justamente pensar o mundo

historicamente como uma sucessão, apenas invertendo o juízo de valor. Enquanto o

iluminismo via a superação do mythos (entendido como discurso irracional) pelo lógos

(entendido como discurso racional) como algo positivo, o romantismo, aceitando a mesma

representação da história como o processo de tal superação, e herdando o mesmo

entendimento de mythos e de lógos, apenas avalia negativamente este processo.152 Ele

151 Cf. GADAMER, 2007, p. 361ss. 152 Cf. Ibidem, p. 363-364.

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herda os conceitos fundamentais da metafísica que fundam o racionalismo iluminista, de

modo que seu historicismo se converte numa consumação da agenda do iluminismo.

Relacionado a isso encontra-se também o fato de que a oposição entre um autêntico pensamento mítico e um pensamento poético pseudomítico é uma ilusão romântica, montada sobre um preconceito da Aufklärung: o de que o fazer poético, pelo fato de ser uma criação da livre capacidade de imaginar, não participa mais da vinculação religiosa do mythos. É a antiga polêmica entre poetas e filósofos, que entra agora no seu estágio moderno de fé na ciência. Agora já não se diz que os poetas mentem muito, pois eles não têm nada de verdadeiro para dizer, já que só produzem um efeito estético e pretendem estimular a atividade da fantasia e o sentimento vital do ouvinte ou do leitor através das criações de sua fantasia.153

Quer dizer: por trás da separação entre poesia e mito, que se consolida no

romantismo, ao mito resta apenas a vigência aprisionadora (posto que não é livre criação

individual, subjetiva) da religião. Encontramo-nos hoje, ainda, em grande parte, quando se

pensa o fenômeno mítico, imbuídos destes dois pressupostos: o da separação entre mito e

poesia, por um lado, e o da restrição de mito à religião por outro, sendo esta última

metafisicamente concebida a partir da dicotomia entre sagrado e profano. Ainda, resulta

de tal separação de mito e poética a ligação entre poesia e estética, o que confirma ainda

mais a concordância na aparente oposição entre romantismo e iluminismo. Porque para o

esclarecimento o que tem pretensão de validade e não é epistemologia, ou é ética, ou é

estética. Por outro lado, o mito é tradição, é mundo histórico, ou seja, discurso falacioso

não fundamentado em juízos válidos. Com o romantismo, recupera-se o mito e a história,

mas aceitam-se os entendimentos de mito e história do esclarecimento que os preteriu à

racionalidade, apenas invertendo-se os valores. O mito, no romantismo, como um estado

primevo, desejável e perdido, esta como numa sucessão de fatos na linha do tempo.

153 Ibidem, p. 365.

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Com o historicismo do século XIX, contudo, a compreensão da história, para ser

validada, passa a ser regida por um método. Quer-se compreender a história

objetivamente, e com isso a própria presença do investigador, do sujeito do conhecimento

histórico, deve ser claramente distinta de seu objeto, da história. Assim, cria-se a ilusão

historicista de que se pode realizar um discurso histórico neutro, fora da história. Este é o

primeiro passo que, quando superado, deixa uma herança para a historiografia do século

XX. O mais importante é o conceito de fato histórico como coisa dada na linearidade do

tempo e no contexto sócio-cultural, por um lado, e por outro a separação entre mythos,

lógos e poiésis.

Na moderna historiografia, o historiador já não pretende abstrair a si mesmo. O

historiador reconhece a si mesmo como um sujeito inserido num contexto sócio-cultural e

situado na extremidade da flecha linear do tempo. Não é mais uma história positivista que

se faz, muito embora ainda seja metafísica, historiográfica, isto é, com pretensão de

objetividade, baseada no conceito de fato. Apesar de se reconhecer no processo histórico

que estuda, para ter objetividade, o historiador moderno precisa ainda separar a história

que estuda da história que ele vive. Isso é garantido pelo conceito de fato histórico. Ele

garante que, apesar da compreensão de que sua narrativa historiográfica é uma história, e

não a história, esta historiografia, agora uma dentre tantas, ela é ainda assim objetiva, de

modo que esta “uma” história não seja entendida como uma visão subjetiva da história.

A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna cognoscível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para só despertar ainda interesse histórico. É só então que parece possível descartar a participação subjetiva do observador.154

154 Ibidem, p. 394.

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Assim, a distância temporal entre o fato histórico e a compreensão historiográfica já

não é mais uma distância a ser transposta, por meio da abstração de si por parte do

historiador. Como se herda o conceito de tempo, contudo, ainda não vigora aí a

temporalidade. Porque a distância temporal é agora a garantia da objetividade, uma vez

que se aceita a historicidade e mundanidade do historiador. Sem a ilusão historicista de

uma compreensão universal e atemporal da história, elemento que dá coesão e unidade à

seqüência de fatos históricos na linha do tempo, a historiografia moderna se torna

descontínua. O processo histórico não é mais entendido como se regido por um princípio

universal atemporal. O encadeamento dos fatos, das causas e conseqüências, se dá como

uma descontinuidade entre horizontes históricos fechados. Tal concepção é possível por

meio do conceito de fato histórico. O fato histórico é um evento histórico fechado, num

determinado horizonte histórico. O presente histórico é um horizonte fechado em que está

o historiador. Também o horizonte histórico estudado é concebido como um horizonte

fechado, a partir de um determinado recorte. Fechados, ambos os horizontes não se

relacionam senão pela atividade do historiador, cuja narrativa serve de ponte. A seqüência

dos fatos históricos é a medida do tempo historiograficamente concebido como linearidade

de fatos sucessivos. Os conceitos de fato como evento fechado, de horizonte histórico

como horizonte fechado, e de tempo como sucessão linear de horizontes fundamenta a

concepção historiográfica moderna de história.

Contudo, a poética do mito diz:

Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou.

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O acontecimento não nomeado, o “este”, aporta “aqui”. O lugar de acontecimento

do mito é sempre o “nosso” lugar, o mundo de nossa presença histórica. Não é um lugar

geográfico, nem um contexto sócio-cultural que precise ser determinado. Não é, também,

atemporal e fora do mundo: muito mais radical que isso é a palavra “aqui”, que liberta o

acontecimento da mera espacialidade ou contextualidade para a vigência própria de nossa

presença histórica. O acontecimento que acontece em/como nossa presença é o “isto” do

mito, que no poema é evocado como “este”. “Este” evoca o acontecimento do mito, sem

determinar qualquer essência ôntica deste acontecimento. Com isso, o acontecimento pode

ser acontecimento, isto é, pode acontecer. Apenas liberto da necessidade conceitual de

determinação que sempre estagna o porvir numa abstração universal e atemporal é que o

acontecimento vige no vigor da temporalidade e do mundo, e aí sim é histórico, em

sentido próprio. O tempo histórico não é aí uma extensão que nos separa de algum fato

histórico, mas sim o próprio originário do acontecimento histórico, que se doa como

sentido na presença da história, na história da presença. Neste horizonte é que o sentido do

verso seguinte se deixa manifestar: “Foi por não ser existindo”. Na história mitopoética,

não há fatos. O acontecimento histórico não é uma existência, no sentido metafísico do

termo, isto é, não é uma coisa representável e mensurável, tal como só pode mesmo o ser o

fato concebido como horizonte fechado (que portanto nada tem de horizonte). O

acontecimento histórico é o “Este, que aqui aportou”. Este é o acontecimento que “foi por

não ser existindo”. Pelo não ser originário, o nada que é tudo que o mito é, o “isto” (este)

do mito, aqui aportou. Mas aportou pelo não ser existindo, isto é, pela dinâmica do

desvelar autovelante a que corresponde a existência humana (que é um “existindo” no

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gerúndio). O mito marca esta mesma travessia existencial do homem como historicidade

do acontecimento. O mito, pelo não ser originário, existindo, é o próprio homem

existindo. Deste modo, o mito não é um produto cultural do homem, pois que se dá

historicamente como acontecimento na própria existência que é o homem. É assim que o

poema diz, em seguinda: “Sem existir nos bastou”. Sem existir, o mito, que vigora como

homem que existe, basta a nós, não a um homem esquecido num passado historiográfico

ou no rincão de algum contexto sócio-cultural alienígena. Basta a nós.

Retornando ao que foi dito, e relacionando-o com a concepção historiográfica de

história, poderemos compreender melhor o que se dirá a seguir. Contra o conceito

historiográfico de tempo, índice do acontecido, a história mitopoética articula tempo em

acontecimento. O tempo não se dá apenas no dado, de forma a ser medido, o tempo se dá

como temporalidade, como horizonte do acontecer que é a dimensão de toda e qualquer

medida. É justamente aquilo que não se mede historicamente a partir da sucessão dos fatos.

Aquilo que é “entre” os fatos, e que na representação historiográfica é deixado de lado

como nexo, ainda que nexo de uma descontinuidade. Este “entre” os fatos, que marca,

inaugura e se abre ao sempre acontecer é o que é propriamente histórico, o originário da

travessia história, a temporalidade do tempo. Tal como o horizonte “entre” céu e terra não

é alguma coisa, mas é originário de toda coisa, e não pode ser medido ou representado, a

temporalidade do tempo é originária da história, é o histórico da história. Deixando a

temporalidade de lado, por não ser representável, mensurável, a historiografia deixa de

lado justamente o histórico da história, para se ater aos fatos da história, à medida dos fatos

em vez de à dimensão do horizonte. Esta não pode ser medida.

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É que nunca podemos ter o nosso tempo certo, a nossa história verdadeira, enquanto não formos históricos, e não o somos enquanto nos mantivermos incapazes de experimentar a fundo o poder da temporalidade, de forma a permanecermos firmes no centro do seu arrastamento, e isso quer dizer, ao mesmo tempo, enquanto nos mantivermos apegados a uma imagem da eternidade que é apenas um presente permanente e, como tal, fácil de pensar; ao passo que a eternidade envelhece e torna-se aquilo que foi (...)155

Como “entre” de passado e futuro, que os reúne numa referência fundamental, a

temporalidade é fundamentalmente presença, na medida de seu ausentar-se constante que

é a própria dinâmica do devir histórico. É sintomático, portanto, que a historiografia se

negue a pensar justamente a presença histórica, atendo-se àquilo que, por meio de um

procedimento de abstração a-histórica, pode ser convertido em fatos, criando assim o

conceito mais comum de passado como fato que não está mais presente, como fato tão-

somente feito. O presente é a posição assumida do historiador que, na objetivação do

passado, torna-se inacessível, de um modo que a compreensão história, não articulando a

historicidade da presença, não é propriamente histórica. Uma compreensão da história que

não seja histórica não é uma compreensão própria da história.

Da mesma forma, a redução de mundo à representação contextual cala a voz da

história no discurso historiográfico.

Assim como cada um jamais é um indivíduo solitário, pois está sempre se compreendendo com os outros também o horizonte fechado que cercaria uma cultura é uma abstração. A mobilidade histórica da existência humana se constitui precisamente no fato de não possuir uma vinculação absoluta a uma determinada posição, e nesse sentido jamais possui um horizonte verdadeiramente fechado. O horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que conosco faz o caminho. Os horizontes se deslocam ao passo de quem se move. Também o horizonte do passado, do qual vive toda vida humana e que se apresenta sob a forma de tradição, que já está sempre em movimento.156

155 HEIDEGGER, s.d, p. 108. 156 GADAMER, 2007, p. 402.

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Uma determinada “cultura” só se abre à nossa compreensão porque está no

horizonte de nossa compreensão, no horizonte em que nos compreendemos. Da mesma

forma, o “passado” só se compreende porque o “presente” não é outra coisa se não o

acontecimento deste passado ainda acontecendo. Somente porque a história é histórica,

somente porque o “passado” não parou de acontecer é que há “presente”. Como devir da

presença que se vela como passado e se revela como futuro, história é memória. Qual seria

o vigor de se pensar a história senão atualizar a permanência do sentido histórico? Neste

sentido é que a própria compreensão histórica é o acontecimento histórico, porque a

história não é outra coisa que o a permanência e atualidade de seu sentido, aquilo que em

nossa presença se dá como horizonte histórico. O pensar histórico é atualizar a

permanência da história. Deste modo, o mito, como atualidade permanente na tradição,

em que têm vigência as interpretações sempre novas do mesmo do canto da saga poética,

atualiza de modo muito mais pleno o sentido da história do que qualquer historiografia. No

canto da saga poética, o sentido da história é a história do sentido, a cada vez recriada na

interpretação originária. Um horizonte de sentido é o que chamamos de mundo, ou

tradição, nas palavras de Gadamer. Mundo, portanto, é quando o conceito engessado de

“cultura” tem seu vigor histórico, na temporalidade da presença. Como já nascemos num

mundo, isto não significa que somos inteiramente determinados em nossa existência

história por esse mundo, porque este mundo, entendido como horizonte de sentido, deve

ser entendido como horizonte: não apenas como âmbito de manifestação, mas também

como abertura à manifestação. Por outro lado, esta abertura não se dá a partir da

criatividade subjetiva, mas justamente como abertura “do mundo”, isto é, como abertura

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do sentido. Sentido não é simplesmente algo que aponta uma direção, mas também aquilo

que liberta, que nos abre uma caminhada. Horizonte de sentido é a vigência histórica de

mundo, como temporalidade da presença.

Neste sentido, a travessia mitopoética como desvelar autovelante de um horizonte

de sentido e verdade em que mundo e homem se realizam tal como aqui pensamos

distingue-se daquela pensada por Eudoro de Sousa. Este pensa de modo muito próprio o

fenômeno mítico como uma travessia existencial de encontro entre homens e deuses por

meio da qual o homem vai como que se “despindo” de sua subjetividade até que do “eu”

sobre apenas “nada”. Neste momento de identificação do ser que se é com o nada acontece

o encontro de homem e divindade – como consumação desta travessia157. Num primeiro

momento distingue-se porque, tal como viemos conduzindo o pensamento das questões

“história” e “travessia”, aqui, não pudemos compreender que tal história e travessia, ainda

que no âmbito da experiência pessoal do “eu”, tenham no seu horizonte qualquer fim em

que se realize um síntese dialética de qualquer tipo, entre ser e nada, mortais e imortais.

Em seguida, distingue-se porque não pensamos que esta travessia se dê como um sucessivo

desmascaramento da subjetividade, pois o conceito de subjetividade embota qualquer

compreensão própria do histórico da história – sobretudo quando tal conceito é eminente

em relação à objetividade, tal como em Sousa. Ele identifica objetividade à uma vigência

metafísica e científica - “coisística” –, e esta vigência ele classifica como “diabólica”. A esta

vigência, como vigência própria do mito, ele contrapõe uma dimensão simbólica a partir

do conceito de complementaridade, em que o mundo não é composto somente de objetos

157 SOUSA, 1995.

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(coisas). O mundo simbólico é chamado de “trans-objetivo”. Por isso, quando tenta pensar

o originário, o “entre”, Sousa o pensa a partir dos termos. Assim, o originário não é

pensado como originário, posto que é determinado pelos termos em vez de os

determinar158. O conceito de subjetividade, ainda que residual, não é próprio de nenhum

momento da vigência mitopoética da travessia humana. Outro ponto pelo qual nosso

pensamento acerca da travessia poética diverge do de Sousa se dá em relação ao horizonte.

Para Sousa, o acontecimento histórico de mundo e homem, no vigor do mito, se dá como

uma saltar sobre abismos de horizonte em horizonte.159 Em nossa maneira de compreender

e pensar o próprio conceito de horizonte é em si abismal. Esta travessia, conforme nosso

diálogo com Nietzsche no capítulo anterior (imagem-questão do funâmbulo), se dá a todo

tempo sobre um abismo, e é só por isso que ela é um horizonte, aquilo que é “limitado por

nada”, conforme já dissemos. Não há descontinuidade e ruptura, porque toda ruptura

pressupõe limites fechados e tão-somente fechados. Não parece que a imagem-questão do

horizonte possa ser compreendida a partir de tal conceito de limite, senão como

liminaridade de limite e não-limite. Finalmente, ao contrário de Sousa, pensamos que a

historicidade do mito não se constitui como narrativa daquilo que não pode ser alcançado

pela a historiografia com seu conceito de passado, o que Sousa chama de “O Outrora”,

pensado como uma eternidade sempre presente para além do mero agora160. Pensamos a

historicidade do mito como originária, e isto quer dizer que ela se dá numa vigência de

tempo como eviternidade, conforme veremos mais à frente. Por isso é originária, porque

não se articula nem com a noção cronológica, linear, do tempo historiográfico, nem com a

158 Ibidem, passim (especialmente pág. 82, parágrafo 54). 159 Ibidem, passim (especialmente pág. 77, parágrafo 46). 160 SOUSA, 1995(b).

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noção metafísica de eternidade, como uma essência permanente, imutável e sempre

presente do tempo. Não há uma essência atemporal do tempo. A historicidade do mito se

dá justamente numa vigência de temporalidade cuja essência tem sua proveniência dos

interstícios (do originário que não pode ser pensado de modo complementar a partir dos

termos), e que portanto não pode ser algo sempre presente, porque justamente é o que se

ausenta e vela em tudo que se apresenta e revela na historicidade.

Portanto, quando o poema nos diz: “Foi por não ser existindo, sem existir nos

bastou”, devemos entender este “bastar” de modo pleno. Na dinâmica da temporalidade do

acontecimento histórico do mito como mundo, não há apenas a pura indeterminação de

uma continuidade, como tampouco a determinação de uma série de rupturas de

descontinuidade. Atualidade e permanência são ambas a articulação fundamental da

história. Embora seja abertura, esta abertura é mais como algo limitado por nada, a que nos

referimos. A mesma temporalidade que nos liberta, também nos cerca. O mesmo horizonte

de sentido que se nos abre, também encerra nosso ver. Apenas porque herdamos é que

podemos perder, da mesma forma que para herdar é preciso estar aberto para receber.

Apropriar e renunciar são duas e concomitantes formas de homem agir poeticamente, de

ser histórico, de fazer apenas e na medida em que está feito, de vir a ser na medida e

apenas porque se é. O mito, portanto, não é somente a convocação a um dizer que virá,

mas a escuta de um dizer que vêm. Na medida em que convoca a dizer, o mito manifesta e

instaura, inaugura o horizonte de sentido, põe mundo pelo canto da saga. Na medida em

que vêm à escuta, o mito se vela e abre o horizonte, projeta a existência na dimensão da

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temporalidade. No momento concomitante dos dois movimentos, o mito é acontecimento

histórico.

Podemos agora compreender melhor o que o poema diz com “Sem existir nos

bastou”. O mito, acontecendo historicamente como horizonte de sentido – mundo – e

temporalidade da presença – travessia - não trata de uma alteridade cronológica, e

também não trata de uma alteridade sócio-cultural, vista a partir de uma identidade

subjetiva. Reunindo na temporalidade da presença o “passado” da tradição, o “futuro” da

criação, e o horizonte de sentido que é mundo, a história mitopoética fala sempre a nós. O

eu e o outro se reúnem na identidade das diferenças. A presença histórica mitopoética é

não somente de quem, não sem certa presunção, representa para si um tempo e uma

cultura histórica. Na presença histórica mitopoética, atualizada em sua permanência pela

récita da saga, como cânticos rituais, como danças, como culinária e vestimenta na

temporalidade propícia, estão presentes os existentes e os ancestrais, os mortais e os

imortais, homens e deuses. O “nós” que o poema evoca, não está ligado somente a homens.

Os ancestrais são o horizonte da travessia. De tal maneira acenam aos que estão em

travessia, que seu aceno assinala a própria consumação do que é ser e estar em travessia, de

modo pleno. De diversas maneiras isto se dá, ora como santos e santas, ora como heróis e

heroínas, ora como árvores e animais: em todo caso, como horizonte da travessia, como

horizonte do que é ser humano, como liminaridade para além da qual só os deuses... Os

ancestrais não são homens de uma alteridade cronológica e cultural. São a presença que

assinala, com seu aceno, o horizonte da travessia existencial do homem. Como esta

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travessia se assinala pelo aceno dos ancestrais é que os ancestrais são como que acenos da

história, não como história de fatos, mas história de feitos memoráveis, de memória.

O mito - que é o nada que é tudo, que é brilhante e mudo, que é ele mesmo o sol

que abre os céus (a própria physis tem no sua raiz a origem de phos, que significa “luz”, e

phaino, que significa “aparecer”, “vir à luz”), que é o corpo morto de deus vivo e desnudo -

reúne a nós, deuses, homens e ancestrais. Como reunião é, contudo, acontecimento

histórico. Este reunir historicamente, pelo que o velado se manifesta, e o manifesto se vela,

é que articula a vigência própria de memória. Memória mítica é uma memória criada na

celebração do recebido. Apenas porque sua criação é sempre uma recriação originária é

que se pode, posteriormente, pela obliteração do originário, conceber a memória como

retomada ou retenção do já dado e passado. Contudo, no horizonte mitopoético da

história, a memória é não apenas recebida, mas também a todo tempo criada. Porque da

mesma forma que a escuta poética, pela qual o sentido de um poema se nos dá, é a cada vez

uma interpretação criadora, também a escuta celebrante da memória, no canto da saga, é

sempre uma celebração criadora, que recria o que uma saga fundamentalmente é: criação.

Para permanecer o que é, uma criação deve a cada vez ser criação, numa recriação

originária. Apenas na medida em que se recria é que um mundo, criação que é, permanece

sendo o que é. Por isso é que a vigência histórica própria de mundo é mitopoética. “Assim,

é, em última instância, pela memória que o ser humano se configura como um ser passível

de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se

estabelece a possibilidade de vigência da unidade.”161 Ora, esta articulação que encadeia

161 JARDIM, 2005, p. 124.

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deuses, homens e ancestrais no desencadeamento de memória impõe uma vigência do

tempo diferente da linearidade cronológica. Dado o vigor criativo da memória a que

aludimos - que retomaremos a seguir -, numa aproximação com a temporalidade própria

da história mitopoética, temporalidade que se entretece como a criatividade que

potencializa a história para além (porque “entre”) os fatos, ou seja, temporalidade não

mensurável, é possível referenciar a temporalidade própria da história mitopoética ao

vigor criativo da memória. Esta temporalidade da história mitopoética em sua referência

fundamental à memória é chamada eviternidade, conforme Jardim:

Compreendemos a eviternidade como o tempo concebido como substantividade. Enquanto o tempo cronológico da duração material se caracteriza por uma aderência explícita aos domínios das realizações, do senso comum e do bom senso e a eternidade por uma total ausência exatamente do âmbito das realizações, a eviternidade se coloca, por assim, dizer, a meio caminho. Significa: a eviternidade a eviternidade a eviternidade a eviternidade se instaura intermitentemente nos interstícios,se instaura intermitentemente nos interstícios,se instaura intermitentemente nos interstícios,se instaura intermitentemente nos interstícios, nos espaços, nos vãos deixados abertos pela impossibilidade tanto de que o tempo do âmbito das realizações seja capaz de dar conta de toda a realidade, quanto a eternidade seja capaz de construir uma realidade desprovida de realizações.162

Tal como a vigência da temporalidade da história mitopoética é criativa,

potencializando a história justamente por se constituir como horizonte de qualquer

realização redutível a fatos, a temporalidade da memória, num entendimento aprofundado

a partir de sua origem musal (tal como é destaque no trabalho citado de Jardim), é também

criativa. Como dádiva e acontecimento musical (porque musal), memória é sempre

criação. Como temporalidade criativa é que a história mitopoética é memória musical. A

palavra mítica, em sentido pleno, é palavra cantada, então, não porque junto com a

pronúncia do vocábulo entoam-se notas num ritmo. Antes, a palavra mítica é sempre

palavra musical, cantada, na medida em que apenas a potência musal restaura a palavra em

162 Ibidem, p. 135. (grifos nossos)

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sua originalidade instauradora, pela qual ela é de fato palavra e não signo, pela qual sua

força instauradora de sentido e verdade se sustenta tão somente no ser palavra, na

evocação cantada que revela, porquanto a música é esta mesma temporalidade que nos

abre qualquer manifestação. A palavra cantada, mítica, muito resiste à redução de sua

vigência ao entendimento de que ela opere uma representação qualquer, de um mundo

material ou espiritual qualquer. Antes, ela comparece, até mesmo nos esquemas

representacionais, muito mais como criadora de mundos. Porque o próprio mundo é uma

música que não cessa de nos tocar, e que tocamos. Apenas porque somos musicais é que

podemos ter mundo.

Como dádiva musal, a memória é criadora. Neste horizonte, cultura pode ser

entendida na plenitude de seu sentido como “(...) unidade de culto, celebração de um mito

dominante, que institui o rigor de uma projeção mundial e o vigor de uma fascinação

vital.”163 Apenas no desencadeamento criativo da temporalidade da memória como história

mitopoética é que a cultura é culto, como acrescenta Souza:

A cultura persiste em sua vitalidade histórica somente enquanto insiste na perduração mitológica do seu culto. Em conformidade com esta ordem de raciocínio, o conhecimento da singularidade de uma cultura depende do reconhecimento do culto em que se configura a vigência de sua historicidade.164

Portanto, mito deixa de ser, no horizonte criativo da memória cultual, apenas uma

narrativa nem somente um conjunto de narrativas – não se limita ao narrado. A potência

criativa é o âmbito fundamental. A simples récita da palavra cantada, se não é uma

interpretação criativa, que recria na medida em que faz acontecer de novo o sentido e a

verdade do mito cantado, tende a estagnar o vigor propriamente mítico da saga e esvaziar a

163 SOUZA, 2001/2002, p. 9 164 Ibidem, p. 9.

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música da potência criativa da memória. A partir daí, apenas, é que o mito pode se

converter em relato e a música em arte de combinar os sons segundo o gosto. No horizonte

mitopoético, em seu pleno vigor, toda criação é uma recriação, porque é uma

rememoração das origens. Rememorar as origens não é lembrar um fato mítico primeiro,

mas trazer à dinâmica da memória o originário. Originário, conforme nos abriu o sentido

da escuta da poética mítica do poema de Pessoa, é aquilo que se revela, isto é, que se

mostra enquanto a cada vez se vela. Tal como uma fonte, que se revela no rio, velando-se

como fonte. Olhando para a nascente, desde o mais ínfimo brotar, já temos um rio. A fonte

é aquilo que continua brotando como rio, mas em si não é uma coisa que aparece senão

como rio, velando-se como fonte. Onde está a fonte? No rio. Mas este estar no rio não é

um “estar por baixo”, nem um “estar antes”, porque a fonte não cessa de ser fonte para que

haja rio, da mesma forma em que desde que há fonte, há rio. A fonte permanece na

atualidade corrente do rio. A dinâmica originária da fonte, que se vela no que se revela, é

uma imagem da memória. Atento à este vigor originário da memória como velamento que

revela, Jardim evoca o esquecimento como articulação fundamental da dádiva musal:

(...) o esquecimento, apesar de durar, pode não ter fim, pode não acabar, no sentido em que a noção mais comum de tempo pode terminar, ela se esgota. O tempo da eviternidade não se esgota. A própria dinâmica memória/esquecimento é constituída pela eviternidade como temporalidade caracterizadora, assim como esta é constituída por aquela dinâmica.165

O esquecimento é o desenlace do que a memória enlaça, em sua unidade reunidora

e criativa. Na unidade reunidora e criativa, a história mitopoética se constitui numa

unidade de culto que atualiza mundo no encontro de deuses, homens e ancestrais. O

165 JARDIM, 2005, p. 135.

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esquecimento é justamente a dimensão deste horizonte que mantém aberta a possibilidade

fecunda do devir criativo no âmbito do criado. No esquecimento se dá a possibilidade de

que a criação seja sempre recriação e de que a palavra cantada da dádiva musal da memória

- velando-se como passado e revelando-se como futuro, isto é, reunindo porvir e esvair no

devir – articule o esquecimento, numa atualidade permanente. Esquecer é o horizonte

poético de toda memória, velamento o é da revelação, tal como nada e tudo, silêncio e fala.

Neste horizonte, o mito é a força daquilo que convoca sempre a narrar, muito mais do que

uma dada narrativa. Tal como diz Souza:

Em consonância com a poética cultural da memória, mito e culto, poesia e história, memória e cultura mutuamente se implicam. Mito e culto não possuem valor próprio e absoluto. Um não subsiste, senão porque o outro existe. Quando se dissociam, a cultura perde sua força criativa, principalmente porque o mito sem culto se transforma no relato do que aconteceu no passado primordial, mas já não acontece no tempo atual, e o culto sem mito se converte na cerimônia formal, no ato que se repete, mas não se vivencia como possibilidade atualizadora do sentido existencial. Divorciada da poesia, a história se transmuta em historiografia, na ciência que se abstrai do contexto histórico presente a fim de representar objetivamente a historicidade dos tempos idos e vividos.166

Na medida em que corresponde à convocação, a palavra mitopoética evoca,

instaurando mundo em sentido e verdade. Mito não é uma ou mais narrativas tradicionais,

passadas adiante geralmente em contextos orais de transmissão, mas a abundância daquilo

que é digno de ser narrado sempre de novo como criação originária, como atualidade da

permanência, no horizonte do velamento, do esquecimento, porque toda manifestação

advém somente como aquilo que ainda não se deu, e o que se dá só deixa advir o que não

veio quando se destina ao velamento que lhe é próprio. Só no horizonte do esquecimento é

que a memória é poética, articulando mito, história, mundo, numa temporalidade criativa.

Quando se nega este horizonte criativo do velamento, num processo de instauração da

166 SOUZA, 2001/2001, p. 11.

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metafísica ocidental que é marcado pelo esquecimento fundamental do sentido do ser

como velamento167, não é, portanto, por coincidência que o mito perde o vigor de verdade,

tal como a verdade perde o vigor mítico. A própria verdade é propriamente poética no

horizonte do velamento, do sentido do ser. Perdendo-se a memória criativa da história

mitopoética que atualiza no culto a permanência do mundo, perde-se o próprio sentido do

ser.

Agora, talvez, possamos escutar de modo próprio o dizer do poema:

Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

A celebração cultual da memória que potencializa a história mítica permanente e

cada vez atual, assinalando com o esquecimento que se abre em horizonte de recriação da

criação, instaura, destina e projeta a travessia poética dos mortais reunidos aos deuses e aos

ancestrais. Esta história mítica, memória criativa no horizonte do esquecimento, não é,

portanto, uma história passada, é uma história presente. Somente “por não ter vindo”, por

não ter passado, “foi vindo”, continua presente como acontecimento histórico, continua

aberta como horizonte em que se articulam memória e esquecimento, na celebração

criativa do mito. Esta criação não parte da subjetividade, não somos apenas nós, seja a

pessoa do poeta, do pensador, quem cria o mito. Antes, o mito nos cria, na medida em que

o criamos. Não como uma sucessão dialética, mas como um diálogo criativo, como escuta e

fala da saga instauradora de mundo. Jamais estamos livres da indigência do acontecimento

da história e do sentido do mundo para que possamos nos abstrair dela e assim

direcionarmos a história estabelecermos o sentido do mundo segundo uma vontade ou

167 Cf. HEIDEGGER, 1969.

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razão isolada em si. Não estamos fora da história para tê-la como um passado que

representamos diante de nós, da mesma forma que – conforme dissemos anteriormente –

apenas para quem faz a operação abstrata de “sair do mundo”, isto é, apenas para quem

incorre na ilusão objetivante do “contexto sócio-cultural” é que se pode ter uma visão de

mundo, e assim acreditar que se pode manipular, retificar, construir ou desconstruir seu

sentido. A poética do mito diz:

Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

Por outro lado, conforme o horizonte de sentido liberto pelo esforço de escuta

destes versos e dos anteriores, sabemos que o movimento do real em seu sentido e verdade

insiste numa tensão harmônica e consiste numa referência fundamental. Portanto, o que

dissemos acima acerca da potência criativa de mundo e história mítica em que já desde

sempre estamos inseridos não pode ser entendido como simples determinismo. O que é

mundo e história senão o acontecimento poético do homem? Mundo e história míticos não

são conceitos ou categorias que possam ser isolados do estar sendo que somos. Portanto, da

mesma forma que esta identidade nas diferenças de mundo-história e homem impede que

se pense que o homem seja o agente subjetivo do mundo histórico objetivo, também não se

pode pensar, considerando-se esta identidade nas diferenças, que o mundo histórico

objetivo seja determinante da subjetividade do homem. O problema todo, que aprisiona o

pensamento da referência entre mundo-história e homem, é considerar que esta referência

se orienta ou por um determinante objetivo ou por um actante subjetivo, ou ainda por um

e outro dialeticamente. Em suma, o problema reside em ater-se à relação sujeito-objeto,

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em que sempre alguém/algo está sujeito a uma subjetividade que o objetiva e assim dele se

assenhora por meio das representações conceituais a que se chama de conhecimento.

“Este que aqui aportou” evoca a chegada, o porvir daquilo que se guarda, pois não é

nomeado. É o que chega e, não sendo simplesmente algo acontecido, resguarda seu vigor,

permanecendo inominado. Nesta permanência é que “foi por não ser existindo”. Sem ser,

por não ser, é que vai existindo. O devir inaugura a existência, a travessia poética em que o

homem vai sendo homem e se abriga no não ser. Assim é que “sem existir nos bastou”. Por

renunciar à existência, oferecendo assim, ao homem, o horizonte da renuncia de se

constituir tão simplesmente como ente, é que o velado, o não-nomeado basta. “Basta” diz

que, embora se resguarde como não nomeado, “este” vai preservando o vigor do não-limite

em que vige o limite que vai já desde sempre se fazendo mundo e homem. Com este bastar,

o acontecimento chega, aporta, abriga e potencializa o histórico da história. Na história,

para além dos ditames dicotômicos entre agente e paciente, o homem cria na medida em

que se cria, então o poema diz: “Por não ter vindo foi vindo, e nos creou”. Por nunca se dar

completamente em tudo que se dá, e assim convocando o homem à realização poética de

criação da história, o acontecimento poético presenteia o próprio homem, acontece como

o próprio homem que cria na medida em que a ele corresponde. Não somente objetivo,

nem somente subjetivo, este acontecer poético não se pode entender tampouco como

síntese de subjetivo e objetivo. Esta poética criadora é do homem, é própria do homem,

como também é poética criadora do homem, cria o homem.

Portanto, quando o poema nos diz:

Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo.

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Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

Somos lançados, pela escuta destes versos, na dinâmica histórica do mito, que

instaura mundo na celebração criativa da memória que reúne mortais, deuses e ancestrais

no horizonte do esquecimento, em que não há sujeito e objeto, mas apenas a presença

atual e permanente de homem-mundo-história na palavra musical do mito, já sempre a

cada vez e novamente a mesma criação. Homem-mundo-história, no vigor da palavra

musical do mito, é esse diálogo poético168.

Somos um diálogo. Como se relaciona o diálogo com a língua 169 ? A língua acontece no diálogo, e este acontecimento é, propriamente, o seu Ser. Nós somos um acontecimento lingüístico, e este acontecimento é temporal, mas não o é apenas no sentido exterior de decorrer no tempo, de ser mensurável, respectivamente, segundo os critérios de início, duração e termo; antes, o acontecimento lingüístico é o início e a causa do verdadeiro tempo histórico do Homem. Este diálogo não se inicia algures no meio do decurso de acontecimentos “históricos”, pelo contrário, só desde que decorre tal diálogo, o tempo e a História são. 170

É por isso que não há diferença quanto a um suposto modus operandi, nem

oposição essencial, nem sucessão historiográfica entre mythos e lógos. Porque o

acontecimento próprio do vigor do mito se dá na vigência do diá-lógos, do diálogo.

Quando Parmênides, em seu poema, convoca ao diálogo de pensamento em que se dá a

escuta do mito, ele convoca justamente ao pensamento originário, não porque pense o

começo das coisas, mas porque tem tal pensar como horizonte o princípio, que vigora no

princípio. A proximidade entre mythos e lógos se torna tanta que, apenas nesta

proximidade tão “grande” ambos assim aparecem com a envergadura mais plena de sua

168 Neste sentido, a historicidade do mito não se diferencia da história literária pensada como Acontecer Poético. (cf. CASTRO 1982) 169 Na tradução que aqui citamos, optou-se pela tradução por “língua” daquilo que em nosso trabalho viemos chamando de linguagem. O termo original alemão é Sprache, que não tem a nuança de diferenciação do português. 170 HEIDEGGER, s.d., p. 71.

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diferença, em sua “grandeza”. Somente quando há nada entre mythos e lógos é que eles se

reúnem na plenitude de sua diferença, porque em sua liminaridade se enlaçam

mutuamente numa identidade que desenlaça os limites de suas diferenças. Por isso,

conformam um pensamento originário que, apenas quando obliterada a origem originante

pelo pensar que representa e mede, se deforma numa mera e eterna repetição

aprisionadora de uma “narrativa dos começos”. Começos há muito começados e partir de

então somente “lembrados”, em vez de princípios presentes, princípios que originam,

orientam e destinam o pensar mítico, pela criação musal da memória no horizonte do

esquecimento, de um modo tal que:

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre.171

171 PESSOA, 1972, p. 72.

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VI. E assim a lenda se escorre a entrar na realidade. E a fecundáVI. E assim a lenda se escorre a entrar na realidade. E a fecundáVI. E assim a lenda se escorre a entrar na realidade. E a fecundáVI. E assim a lenda se escorre a entrar na realidade. E a fecundá----la decorre.la decorre.la decorre.la decorre.

Tão amplamente aceita quanto a imprópria dicotomia mythos-lógos é também

outra: a dicotomia lenda-realidade. Lenda é o irreal. Real é o não-lendário. A própria

dicotomia aponta, ao menos, para uma íntima relação entre os dois, que só não é

amplamente percebida por não ser assim tão evidente. Desde há muito não conseguimos

nos aproximar de nada que não seja meramente evidente, no sentido daquilo que se pode

de algum modo representar, medir e calcular.

Um acontecimento lendário distingui-se do fato historiográfico, mas é um

acontecimento histórico. Histórico é o originário da saga, que em sua vigência não se

limita ao narrado, nem mesmo às variantes das narrativas. A narrativa tem sua vigência

plena não só pela mera repetição narrativa, porque a memória é potência criativa.

Memória é criação, porém, não apenas pelo que nesta criação se manifesta, mas também

pelo que na mesma se vela e preserva. Velamento é o esquecimento que vigora em todo

narrar e recriar, fazendo-os acontecer o novo, atuais e permanentes. No horizonte deste

esquecimento (velamento) originário é que a memória é criação.

Então, o não-dito em todo dito, o não-cantado em todo canto, o velado em toda

celebração não são entrelinhas, um conteúdo que se desenhe por meio de análise e síntese.

Não são tampouco um esquema abstrato subjacente baseado em relações, ao molde de uma

essência metafísica formal. O não-dito na narrativa do mito, que assinala a referência entre

sagrado e profano, entre deuses e homens, não é também uma contraparte funcional, em

que o mito operacionaliza, como rito, as instituições sócio-culturais. Em todas estas formas,

conforme viemos tentando articular um pensamento próprio, o que se nos mostrou foi o

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esforço epistemológico de converter o não dito em alguma coisa, em um dito. Assim, o

vigor originário converte-se numa coisa, em algo passível de representação e conceituação,

que passa a ser tão somente um processar e reprocessar de forma e conteúdo dentro de

limites estabelecidos. O não dito, por este procedimento, deixa de o ser. Com tudo isso,

não se pensa o vigor originário, o não dito velado, porque o que se pensa, representa e

esquematiza é tão somente algo dito, na medida em que consiste numa representação. O

vigor do mito permanece sem ser pensado.

Para se o pensar, deve-se pensá-lo. Deve-se tomar o não-dito como o que é. Este

pensamento, é claro, não pode nos dar uma representação do vigor mítico não-dito, pois

isto consiste justamente num subterfúgio para não se pensar o mais próprio: a poética do

mito. Nesse ponto tocam-se levemente: o nada originário, o silêncio da fala, o divino que

devém, o sagrado e o profano, memória e esquecimento, história e saga. Também este é o

ponto em que se tocam lenda e realidade. É grande o esforço de não reconduzir tal

pensamento às formas de representação e cálculo, dado o costume e a exigência

epistemológica vigente em nosso tempo de cientificismo. Ao tentar um pensamento da

intimidade de lenda e realidade, talvez cheguemos no limiar da necessidade de rigor que

sempre se impõe no pensamento do vigor.

A distinção entre lendário e real remonta à aurora da filosofia. Contudo, reproduzir

as representações de uma história das idéias ainda não nos leva à possibilidade de pensar o

que o poema nos diz quando evoca a lenda a fecundar a realidade. Isto simplesmente

porque enquanto historiografia, a história das idéias é uma representação que já toma para

si a dicotomia entre lenda e realidade, pela qual o dizer que o poema evoca é simplesmente

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um absurdo. Ou a lenda é um produto das relações e interações de uma realidade material,

ou é expressão de realidades ideais, conceitos e mentalidades ou ainda, mais recentemente,

origina-se de relações de forças sócio-culturais ou políticas que, sendo reais, sustentam sua

vigência de discurso lendário. A lenda só é “real” a partir da realidade que a sustenta, ou

seja, não é realmente real, mas apenas real de modo derivado. É uma realidade segunda,

quando muito. Mas o que o poema nos diz é que a lenda fecunda a realidade. Não há como

decidir o que é “realidade”, qual seu significado preciso, no poema. Isto não é sequer

desejável. É preciso pensar o acontecimento fertilizante da lenda na realidade, pois é isto

que o poema evoca.

Este acontecimento não se dá se tentarmos pensá-lo à luz das representações da

relação entre lenda e realidade corriqueiras, a que aludimos. De acordo com estas

representações há, em oposição à lenda, uma realidade “cultural”, “conceitual”, e uma

realidade “histórica”, isto é, os fatos históricos. Dada a vigência narrativa do que se chama

de lenda, a relação mais próxima de lenda com os conceitos vigentes de realidade se dá

com o conceito de realidade histórica. De modo muito determinante, à lenda opõe-se a

realidade histórica. Mas a lenda também tem uma vigência histórica. Contudo, apenas na

medida em que é um fato cultural. Enquanto lenda mesmo, a lenda não pode ser real,

muito menos fecundar a realidade.

À lenda corresponde a arte, enquanto arte da ficção narrativa. Lendas são estórias

inventadas, que podem até trazer alusões a realidades históricas, ou trazer realidades

históricas transformadas, distorcidas. Também desde há muito tempo a arte não é real

senão enquanto produto cultural, ou seja, enquanto expressão de uma realidade cultural.

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169

Em todo caso, a lenda tem sempre como que uma realidade “emprestada”. De fato, uma

lenda pode ser corretamente representada como uma realidade cultural historicamente

datável. Mas o que quer que se entenda como realidade histórica e cultural, esta só pode

ser o que é na vigência da lenda. Por exemplo, se a Odisséia surge tal como ela é a partir de

um determinado horizonte histórico da Grécia antiga, este mesmo horizonte histórico da

Grécia antiga não poderia ser o que ele é sem a Odisséia172. Então, se a lenda se origina da

realidade, a realidade se origina da lenda. Parece que estamos num círculo.

Pode-se argumentar que a realidade histórica que a Odisséia fundou é posterior

àquela que condicionou seu surgimento, o que tornaria a colocar novamente a realidade

como dado fundamental, original, e a lenda como fator secundário, originado. Tem-se a

impressão de se desfazer o círculo, agora. Mas a realidade histórica é construída como

construção histórica. As lendas são construções históricas. Uma realidade histórica é

construída, também, com lendas. Qualquer que seja a realidade histórica que condicionou

o surgimento da Odisséia, ela estava impregnada, como construção histórica que é, de

lendas. Faz parte de nossa realidade histórica, hoje, também, uma série de lendas, estórias,

ficções. O que é este construir, em que a realidade histórica se constrói?

Construir não é simplesmente elaborar algo até que esteja pronto. Construir é

manter o que se constrói em obra, isto é, manter o que se constrói como construção.

Porque uma obra finda, se não se mantém operando, não é obra. Construir é também

cuidar do que se constrói, na medida em que se constrói173. Então, a princípio, toda

construção histórica só é e permanece o que é na medida em que é um cuidado histórico,

172 Cf. PAZ, 1972, p. 185-186. 173 HEIDEGGER, 2002(b), p. 127.

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construir história é cuidar da história, mantê-la vigente em sua historicidade. Esta

construção histórica ao modo do cuidado não é, além disso, uma dentre outras ações

eventuais do homem, como se o homem pudesse ser o que ele é mesmo que acaso não se

ocupasse de construir história ao modo do cuidado. Construir e cuidar da história é ser

homem, é o modo em que o homem é homem174.

Contudo, agora já estamos pensando uma realidade histórica como criação, como

construção ao modo do cuidado, e o criar é próprio da lenda. Mas pode-se argumentar que

nem toda construção histórica é criada tal como lenda, porque é também produzida como

atos, utensílios, instituições e revoluções. De fato, é correto. Mas nestas produções escapa

justamente o que é propriamente histórico na história, conforme vimos, o vigor

dimensionante que reúne acontecimento e não-acontecimento e permite que a história

esteja acontecendo. O que reúne acontecimento e não-acontecimento é a lenda. Lenda é o

que acontece sem se reduzir ao simplesmente acontecido. É o que acontece por estar

sempre acontecendo, sempre já acontecido enquanto ainda por acontecer. Otávio paz,

falando das lendas manifestas no mythos Homérico, nos diz que:

O que nos conta Homero não é um passado datável e, a rigor, nem sequer é passado: é uma categoria temporal que flutua, por assim dizer, sobre tempo, com avidez sempre de presente. É algo que volta a acontecer assim que lábios pronunciam os velhos hexâmetros, algo que sempre está começando e que não cessa de manifestar-se. A história é o lugar de encarnação da palavra poética175.

Continuando a afirmar a realidade da lenda como o presença histórica, segue,

dizendo: “E esta virtude de ser agora e sempre presente, por obra da qual o poema escapa

174 Ibidem, p. 127. 175 No original: “Lo que nos cuenta Homero no es un passado fechabel y, en rigor, ni siquiera es passado: es una categoría temporal que flota, por decirlo así, sobre el tiempo, con avidez siempre presente. Es algo que vuelve a acontecer apenas unos lábios pronunciam los viejos hexámetros, algo que siempre está comenzando y que no cessa de manifestarse. La historia es el lugar de encarnación de la palavra poética.” (PAZ, 1972, p. 186.)

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171

da sucessão e da história, ata-o mais inexoravelmente à história” 176 . A lenda é uma

presença histórica porque sua construção é sempre o cuidado de atualizar a permanência

do sentido inaugural de uma lenda.

A lenda, como criação, é real e liga-se à própria origem da realidade. A lenda

manifesta a realidade, não tanto porque, tal como em mitos de criação, ela narra os eventos

por meio dos quais a realidade veio a ser tal como é, mas porque é a em sua própria

narrativa, como récita permanente e atual, a realidade se manifestando. A lenda não é um

relato imaginado do começo da realidade, mas o princípio. Isto é, a lenda narra e, nada

medida em que narra, a realidade acontece de modo real. Por isso, é permanente e atual.

Não somente se afirma a cada vez a realidade, pelo recitar das lendas, como também é o

sempre novo recitar das lendas que sustenta a realidade do real. Deste modo, não é como

se a realidade precisasse das lendas apenas para lhes explicar as origens, mas sim, como se a

própria narrativa das lendas fosse o acontecimento de realização da realidade. Isto porque

a realidade, histórica, para continuar sendo e acontecendo, retoma sempre a si mesma a

partir do âmbito originário da história, isto é, corresponde ao vigor mítico. Uma vez que

não mais se corresponda ao vigor mítico, a realidade, não mais acontecendo, converte-se

simplesmente no realizado. Este último passa a ser o âmbito donde se calculam

probabilidades e no qual se identificam causas para os acontecimentos futuros, da mesma

foram em que se passa a conceber o presente tão-somente a partir de fatos passados. Esta é

a realidade sem lenda. Uma realidade desencantada, sem o vigor do canto criativo da

memória, em que o devir é tão somente um derivar. Apenas a esta pode opor-se a lenda.

176 No original: “Y esta virtud de ser ya para siempre presente, por obra de la cual el poema se escapa de la sucesión y de la historia, lo ata más inexorablemente a la historia.” (PAZ, 1972, p. 187)

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172

Em relação ao que se disse acima, é sugestiva a indicação de Mircea Eliade de que a

lenda, quando ela é real, pode ser “verdadeira” ou “falsa”. O que se entende por lenda

“verdadeira” é toda narrativa de origem da realidade, da presença e vida dos deuses e dos

heróis e seus feitos177. Ou seja, quando a lenda é uma realidade viva no horizonte de uma

comunidade, ela é verdadeira quando manifesta o que aproximadamente para o

pensamento desencantado é exatamente o irreal, o fictício, isto é, o lendário. Por outro

lado, no horizonte de vigência real da lenda, ela é “falsa” quando trata de coisas mais

imediatas, como narrativas sobre os animais e plantas, peculiaridades das partes do corpo,

dos alimentos178. Assim, na realidade da lenda, o “falso” corresponde aproximadamente

àquilo a que mais propriamente se atribui realidade no pensamento desencantado.

O que é mais importante observar em relação ao que se disse acima é que na

vigência da lenda, tanto o “verdadeiro” como o “falso” não se opõem entre si, na media em

que ambos são vigências de realidade da lenda. Não há, como no pensar metafísico, a

identificação entre realidade e verdade, segundo um conceito de verdade que se inscreve a

partir da prescrição de que é preciso ser representável e mensurável, isto é, de que é

preciso ser “coisal”, ser apenas “ente”, para ser verdadeiro. Reduz-se à verdade à verdade

do ente, este entendido como coisas apreensíveis pela representação, e a partir daí, como

objetos do conhecimento. A realidade é composta de objetos do conhecimento. Ora, tudo

isso remete justamente ao núcleo do pensar metafísico que entifica o ser, desencadeando o

processo de seu sucessivo esquecimento.

177 ELIADE, 2004, p. 15-16 178 Ibidem, p. 16.

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173

No horizonte da lenda, portanto, “verdadeiro” não remete à representação correta

da coisa “real”. O verdadeiro mencionado acima, como lenda verdadeira, remete-se ao que

se resguarda em tudo que devém. É o desvelado pela narrativa da lenda a partir do velado,

e que por ser assim desvelado, se resguarda no velamento. Neste sentido, o verdadeiro é o

desvelado que manifesta o velado. É a este sentido, assim nos parece, que a observação de

Eliade conduz. Do mesmo modo, o “falso” mencionado por ele não significa a

representação inadequada – portanto não-verdadeira – em relação à coisa “real”. O “falso”

no horizonte da realidade da lenda, é o que estando presente e manifesto, pela narrativa da

lenda, oculta o velado. O falso é o desvelado que, pelo narrar da lenda, oculta e assim

resguarda o velamento. O falso é, na realidade da lenda, o que põe a coisa no abrigo do ser,

protegida da conversão em “mera coisa”. Encobrindo, o falso põe a coisa no abrigo do ser, e

neste mesmo movimento em que resguarda o velamento, ele resguarda portanto o âmbito

originário e fundamental de todo des-velamento. Portanto, a referência fundamental, no

horizonte mítico (a realidade da lenda), entre verdadeiro e falso se dá como a relação

entre: 1. o desvelado a partir do velado, que manifesta o velado, ou seja, o verdadeiro; 2. o

desvelado que encobre o velado, e assim o resguarda, ou seja, o falso. Um não é sem outro,

mas isto não significa que um é a partir do outro, porquanto um é com o outro pelo vigor

do entre que liberta o verdadeiro e o falso na medida em que os encerra nesta referência

fundamental.

A este “falso” do horizonte mítico (a realidade da lenda) tal como pensado a partir

da observação de Eliade, parece corresponder a palavra originária grega pseûdos, que se

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174

apenas traduzida (e não devidamente pensada) pode conduzir a uma compreensão

equivocada pensar mitopoético. Tal palavra é assim pensada por Heidegger:

No yeu=doj vige um encobrir que, simultaneamente, desvela. O “falso” ouro parece ouro, mostra-se como ouro e, na medida em que se mostra assim – embora somente ao fazer assim – encobre o que ele é em verdade: não-ouro. A essência do yeu=doj encontra sua determinação a partir do domínio de encobrir, desvelar e deixar a aparecer.179

Então, a divergência convergente entre yeu=doj e a)lhqe¿j - que posteriormente

veio a ser pensada de maneira metafísica como uma oposição entre falso e verdadeiro a

partir da inadequação ou adequação da representação à realidade - nos fala

originariamente e, portanto, de modo próprio no horizonte mitopoético, da tensão entre

aquilo que em se manifestando resguarda o velamento (pseûdos - falso) e aquilo que em se

desvelando re-vela o velado (alethés - verdadeiro). Neste ponto, a nossa reflexão aqui, em

torno de tais palavras, concorda com Heidegger, quando diz:

Uma vez que to£ yeu=doj, de acordo com o testemunho de Homero, pertence ao âmbito essencial de oculta [Ver-hehlens], isto é, de encobrir [Verbergens] e desvelar [Enthüllens], a oposição grega de palavras entre si diversas, a)lhqe¿j e yeu=doj, não tem mais algo de estranho. Os gregos pensam em yeu=doj um esconder, e não devemos esquecer que yeu=doj é usado para “sinais”, por exemplo, do raio.180

Enquanto o verdadeiro (alethés) é pensado como o desencoberto que descobre. Em

outras palavras, como o desvelado que re-vela o velado:

Entretanto, os gregos chamam tanto o “descoberto”, quanto “o que descobre”, com a mesma palavra a)lhqe¿j, o que significa literalmente “o desencoberto”. Sustentamos, porém, que esta tradução de a)lhqe¿j por o desencoberto seria a única tradução “literal”. Mas, agora, pode ser visto que a palavra a)lhqe¿j, no duplo sentido de “descoberto” e “o que descobre”, é ambígua.181

179 HEIDEGGER, 2008, p. 61. 180 Ibidem, p. 63. 181 Ibidem, p. 64.

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175

Não há dicotomia entre falso e verdadeiro, no horizonte mitopoético, porque não

há dicotomia entre ser e ente, entre o que se vela e o que se desvela, entre os deuses e o

“mundo”, entre passado/futuro e presente. “Falso” no horizonte mitopoético, remete àquilo

que se apresenta sem ser tão somente uma coisa presente, mas uma coisa cujo vigor é

velado e resguardado no porvir (já não apenas futuro) e no esvair-se (já não somente

passado). Da mesma maneira, o verdadeiro, em tal horizonte, remete àquilo que, a medida

em que é o desvelado, devém como sentido e verdade, vigora na vigência do mundo, ou

seja, desvela o velado. Pensando isso em relação ao horizonte mitopoético tal como

aconteceu na Grécia antiga, Heidegger nos diz:

Esta vigência do descobrir e do encobrir, que se dá sempre, previamente e em toda parte, para todo ente e no todo do ser, é expressa na palavra dos gregos. É no dito primordial – o lendário. Por isso a essência da palavra e da lenda experimentada pelos gregos tem seu fundamento e sua eminência no fato de que palavra e legenda deixam aparecer desencobrimento e encobrimento, o descoberto e o encoberto.182

Portanto, o mito é real não porque as coisas que evoca são fatos, dados, coisas

mensuráveis e calculáveis, objetos apreensíveis. O mito é real porque evoca tudo que não

se dá como algo dado, como uma mera realização, mas como aquilo cuja realidade consiste

justamente na historicidade de ser real na medida em que devém, isto é, tudo aquilo que é

propriamente histórico.

Se o vigor do mito não é simplesmente o que se conta, mas o que se conta no

horizonte daquilo que permanece por se contar, o originário de todo conto que não

somente vela o que se conta, mas que provoca o recontar, de modo próprio, também, a

realidade da lenda não é simplesmente o acontecido, mas o acontecido no horizonte do

182 Ibidem, p. 102.

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176

que permanece por acontecer, e que assim é atual, um acontecimento que está sempre

acontecendo. Deste modo é real. O poema, contudo, nos diz:

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre.

Com isso, o poema nos diz que a lenda “entra” na realidade. Entrar pressupõe estar

fora. Mas, atentando ao dizer do poema, vemos que este estar fora não é simplesmente

fora. Porque a lenda é lenda porquanto entra na realidade, ou seja, porquanto realiza

sempre e a cada vez esta reunião com a realidade, sem com ela se igualar. São o mesmo,

mas não a mesma coisa. E isto quer dizer que a realidade é real na medida em que é lenda,

e a lenda é lendária na medida em que é real. A lenda como não-limite, assinala os limites

da realidade, na medida em que nela entra, manifestando-a como realidade e velando-se

como lenda. Não é a realidade que assinala os limites da lenda, mas o contrário. Como

manifestação do que só é o que é na medida em que devém, a lenda é o horizonte da

realidade, que sustenta e envolve. Como vimos, o horizonte não é o fim do manifesto, mas

a sua origem. O horizonte não se separa do que é manifesto numa dicotomia, mas é o

próprio vigor do manifesto, revela o manifesto. Neste sentido é que a lenda entra na

realidade: por já estar dentro dela a todo tempo, velando-se, permanece entrando nela.

Assim, quando o poema diz que a lenda entra na realidade, ele não fala de um espaço

chamado realidade em que uma coisa chamada lenda se insere. A lenda entra na realidade

porque entra em realidade. A lenda entra em realidade ao modo do escorrer.

O poema chama a entrada da lenda em realidade de escorrer. Escorrer diz de algo

que flui, que se move, de modo a deixar de estar visível, deixar de estar presente,

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manifesto. Escorrer parece até mesmo um fugir, mas não é. Porque o fugir pressupõe um

medo, fugir “de algo”, a partir de uma vontade de preservação. O escorrer, não sendo

simplesmente um fugir, não se dá em função de coisas, nem segundo qualquer vontade. O

escorrer é um fluir que se dá ao modo do velar-se. Velando-se é que a lenda entra na

realidade. Deste modo, a referência fundamental entre lenda e realidade, pela qual a lenda,

ao escorrer, entra na realidade, é íntima do modo de ser da verdade mitopoética

anteriormente nomeada e pensada em sua criptofania. A lenda que se escorre, se vela, e

entra na realidade, manifestando-se, e assim é verdade.

Escorrer é verbo que fala do movimento de fluir, daquilo que não está

simplesmente dado tal como a noção de realidade metafísica e científica. Escorrer é a

vigência do que deixa a presença ao modo do correr, o que é presente como referência

fundamental entre arché (princípio originário) e télos (destino originário). Escorrer é

próprio dos líquidos. Neste sentido, a lenda se escorre a entrar na realidade, qual fosse água

penetrando o solo, por exemplo. Nesta imagem-questão, temos a terra sendo impregnada

pelo fluir que se vela da água da chuva. O poema diz que, escorrendo, ao entrar na

realidade, a lenda fecunda a realidade. A terra, absorvendo a água que se vela em seu seio,

torna-se fértil, brota como plantas e como a fonte que eclode ao pé da montanha. Assim, a

terra se manifesta e consuma como terra. Na terra fértil impregnada de água, o homem

pode plantar. Dela pode colher frutos e aliviar sua sede no brotar incessante da fonte.

Onde se encontra água e se produz alimento, o homem pode habitar. A terra, impregnada

pela água que escorre, concede habitação ao homem. Ali ele pode ser o que ele é, pode

viver e morrer. É deste modo que a lenda se escorrer a entrar na realidade, e decorre a

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fecundá-la. Fecundando a realidade, a lenda concede humanidade, donde eclode o

homem. Quando chove, a água cai sobre a terra que, receptiva ao devir aberto dos céus,

acolhe a chuva em seu seio. Nestas horas, o homem sensato procura abrigo, e permanece

em casa. Por vezes, quando o ímpeto é forte, a chuva provoca relâmpagos, que por um

momento extraordinário iluminam a noite velada, revelando cada coisa em seu lugar.

Nesta hora, o homem sensato agradece, apesar do perigo dos raios, a dádiva da chuva.

Numa intimidade com esse acontecimento extraordinário e tão simples, também, a lenda

se escorre a entrar na realidade, e a fecundá-la decorre. A chuva manifesta o tempo e

anuncia também o momento em que a terra vicejará. O vicejar da terra fecundada pela

água que escorre e se vela em seu seio prepara o tempo da colheita. Manifestando o sentido

do tempo, também, a lenda se escorre a entrar na realidade.

Portanto, esta imagem-questão acima pensada, da lenda escorrendo a entrar na

realidade, decorrendo a fecundá-la evoca o vigor próprio do mito. Nesta imagem-questão é

que se dá a compreensão da “essência” do homem como travessia mitopoética, tal como nas

palavras de Heidegger:

Porque a saga, enquanto palavra desvelante, contém a relação primordial do ser com o homem e, dessa forma, tem presente, então, a relação do homem com os entes, por esse motivo a saga e o dito originário são também mais reais do que qualquer outro ente que o homem venha a criar ou construir.183

Mais que toda construção do homem, pelo homem e para o homem – isto é, de todo

agir orientado pelo humanismo – a lenda é real, porque não se orienta para o homem, não

surge pelo homem e não se limita ao homem. A lenda pertence ao homem tanto quanto o

183 Ibidem, p. 116.

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homem pertence à lenda. O homem cria a lenda tanto quanto a lenda cria o homem. Esta

referência entre homem e lenda, assim pensada, nos abre o horizonte do mito.

Numa referência ao que acima se disse é que trazemos para o nosso pensamento

uma conhecida narrativa latina, conhecida como “O mito de Cura”. O texto é atribuído a

Gaius Julius Hyginus, e o apresentamos aqui numa tradução de Carlos Tannus:

Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura. Enquanto meditava no que já fizera, Jove interveio. Cura pede-lhe, então, que lhe infunda um espírito (ao que acabara de moldar) e facilmente o consegue. Como Cura quisesse impor-lhe por si própria um nome, Jove proibiu-lho, insistindo em que ele deveria dar-lhe seu próprio nome. Enquanto Cura e Jove discutem, ergue-se ao mesmo tempo a Terra, querendo dar-lhe seu próprio nome, já que lhe fornecera o corpo. Tomaram a Saturno como juiz, e este busca ser equânime: “Tu, Jove, porque lhe deste o espírito, recebê-lo-ás após a morte. Quanto a ti, Terra, porque lhe deste o corpo, então o receberás. E Cura, porque primeiro lhe deu figura, mantê-lo-á durante todo tempo em que ele viver. Mas, porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem porque parece ter sido feito do húmus”. 184

É muito amplo o horizonte desvelado neste mito, e nem de longe poderemos pensá-

lo, correspondendo de modo próprio à envergadura de seu sentido. Queremos tomar aqui

apenas as fundamentais referências ao que viemos pensando sobre a lenda que, escorrendo,

entra e fecunda a realidade. Primeiramente, esta lenda, como construção histórica, foi

pensada como construção ao modo do cuidado que preserva a vigência do que é, no vigor

do sentido de ser. Cuidar é preservar o que é na confiança de deixar ser. Esta preservação

confiante é Cura, em sentido próprio. Ela pressupõe não somente o preservar o que se cura

da ameaça, mas também deixá-lo aberto para a consumação que lhe é própria. Porque uma

184 HYGINUS, 2007.

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cura que apenas mantém protegido aquilo que cura, sem libertar e reconduzir seu ser à

abertura de suas possibilidades não é cura, mas mera manutenção das condições dadas.

Como cura, lenda é não somente o que é, mas o que vem a ser, já desde sempre. Conforme

a lenda, entrando em realidade, deixa eclodir a cada vez o homem, Cura “dá figura” ao

homem (“CuraCuraCuraCura vê uma lama argilosa e, pensativapensativapensativapensativa, recolhe-a e começa a dardardardar----llllhe figurahe figurahe figurahe figura”).

Figurar é conceber, no sentido de dar forma, tal como um escultor dá forma a uma estátua.

Este conceber é também um fingir. Fingir, originado do latim fingere, é “modelar”, “dar

forma”, como Cura dá forma ao homem, colhendo o húmus do rio. Fingir, que dá origem a

toda ficção, a toda lenda, é a própria eclosão do homem em sua figura própria, humana. A

lenda, porquanto é um fingir, figura o homem. O sentido figurativo da lenda, porque ela se

dá como um agir de Cura, de cuidado, faz surgir o homem. O homem surge no limiar do

rio, naquela parte da terra umedecida pelo fluir da correnteza incessante do sempre novo e

mesmo rio. No limiar da solidez da margem, permeado da fertilidade do fluxo do rio, é que

a Cura caminha, pensativa. É assim que o mito se abre, com esta imagem-questão. Esta

imagem-questão nos abre o mito: o cuidado pensativo caminha e, como fingimento, acolhe

a terra permeada pelo fluxo do rio e faz eclodir o homem, na liminaridade.

O sentido do homem, o seu nome, surge numa disputa que reúne o céu, com Jove e

seus trovões, a Terra que acolhe a chuva, Cura que lhe finge a figura. Esta disputa se

harmoniza no nome do homem, feito de húmus. O húmus é a reunião de céu, terra que se

deixa colher e fingir pela cura. O húmus e a origem do homem. Deste modo, o mito, que é

nada e é tudo, que é o sol abrindo os céus, brilhante e mudo, que é o corpo morto de deus

vivo, e desnudo, que é a chegada inaugural do inominado que por não ser existindo basta,

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que por estar vindo sem ter vindo cria, é a própria realidade se dando como homem, no

fingir da lenda que escorre a fecundá-la. Quando o poema, manifestando o vigor do mito,

nos diz:

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre.

Está se evocando não um aspecto acessório das produções do homem que, dentre

outras coisas, já é homem e como homem tece fábulas. O que se evoca nos versos é a

vigência do mito, pela qual o homem surge como lenda, é a própria lenda, o próprio fingir

da realidade no acontecimento de Cura. Mas isto não significa que o homem é passivo num

acontecimento transcendente. O que se diz é que as categorias de agente e paciente, com

que estamos acostumados, na modernidade a lidar com todo vir a ser simplesmente não são

determinantes na vigência do mito. O homem faz surgir a e surge com a lenda, tal como o

poeta faz surgir o e surge com o poema, conforme dissemos anteriormente.

A intimidade de lenda e pensamento, pela qual o fingir de cura, que em o humano

se configura se dá de modo “pensativo” no “recolhimento”, articula-se com a referência

fundamental entre mythos e lógos, pois: “¡O lo¿goj, to£ le¿gein é a postura recolhedora

(acolhedora). Mas para os gregos le¿gein continua sendo também: apresentar, expor,

narrar, dizer. (O lo¿goj seria a essência da saga, pensada de modo grego.”185 A palavra

lenda se origina da palavra legenda que no latim medieval significava “relato da vida de

um santo”. Esta, por sua vez, se origina do verbo legere, com sentido de “colher”, “reunir”

e “recolher”, e também “delegar”, “entregar”, “doar” e “atribuir”. Lenda, portanto, é o

recolhimento que doa, é a reunião que atribui. Neste sentido, lenda é justamente a palavra

185 HEIDEGGER, 2002(b), p. 201.

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originária da realidade, em que a compreensão que se recolhe e atribui é o mesmo que a

doação do que por si se entrega. E assim o é, na medida em que o que se entrega senão por

tal recolhimento eclode como sentido e verdade. Nesta intimidade de recolhimento,

doação e pensamento, isto é, nesta Cura, é que o homem habita, e assim as construções em

que ele se realiza são mais reais que qualquer realidade simplesmente dadas, porquanto são

lendas. Pelo cuidado da realidade da lenda, ao modo do recolher, do doar e do pensar é que

o homem pode compreender a poética do mito.

E assim se a lenda se escorre, fecundando a realidade, tal como a água penetra e

fertiliza a terra. Há aí não apenas um acontecimento de vida, de vir a ser, mas também um

velamento, o resguardo velado do horizonte da vida, a morte. Porquanto a lenda se

escorre, velando-se, deixando de estar presente, também o homem, que surge com a lenda,

fazendo-a surgir, se vela neste mesmo movimento, deixando de estar presente. Neste

sentido, a lenda a escorrer-se, entrando na realidade, é mais como um corpo morto que se

vela e, assim, fecunda a própria vida.

A lenda, como corpo morto, se escorre, se vela, e assim dá ensejo à presença do que

é vivo e vigente. Como corpo morto, também, a lenda entra em realidade, e é vivificante.

Assim o sacrifício da oferenda assinala a intimidade de sagrado e profano e o corpo morto

de deus é vivo: esta é a lenda que fecunda a realidade. Por isso, o poema se encerra, como a

se escorrer fecundando a realidade, com os versos:

Em baixo, a vida, metade De nada, morre.

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VII. Embaixo, a vida, metade de nada, moVII. Embaixo, a vida, metade de nada, moVII. Embaixo, a vida, metade de nada, moVII. Embaixo, a vida, metade de nada, morre.rre.rre.rre.

PRIMEIRO/ULYSSES O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.186

O poema evoca a figura de Ulysses, como um sinal de abertura. “Ulysses” é o título

de um poema primeiro, que abre uma via. O poema, com o título, ainda não começou, mas

já tem seu princípio. Princípio não é o mesmo que começo. O começo marca o início de

um acontecimento, o princípio é a sua origem, que como princípio orienta e se apresenta

em cada instante do acontecer. Orientando o acontecimento, o princípio é como um aceno

que o acontecimento atende e assim segue o curso de seu acontecer, destinando-se pelo

princípio. O princípio, portanto, é também o fim pelo qual um acontecimento se orienta187.

O poema se orienta como Ulysses. Este orientar-se, portanto, não tem uma rota marcada,

mas reconhece seu destino como o retorno ao que lhe é próprio, à sua terra, à sua casa.

Este princípio é o enfrentamento de aventuras, é a travessia pelo mistério do

desconhecido, pela presença do extra-ordinário.

186 PESSOA, 1972, p. 72. 187 HEIDEGGER, s.d., p. 11-12

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Agora que encaminhamos uma tentativa de pensar originariamente lenda e

realidade, talvez possamos compreender melhor a questão de Ulysses evocada neste

poema, como princípio de uma travessia poética de pensamento do mito.

O mito de Ulysses nos abre um vastíssimo horizonte, e a escuta de seu sentido

requer muito mais do que uma parte de um capítulo. Portanto, aqui, nos limitaremos a

pensar o “este” dos seguintes versos:

Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos creou.

Tendo esta estrofe sido pensada no capítulo V, o que se vai dizer aqui como

referência ao “este” deve ser compreendido à luz das questões “história”, “realidade” e

“lenda” tal como pensadas neste trabalho. Quando, num primeiro momento, dissemos que

o “este” que “aqui aportou” evocado no poema permanecia inominado, correspondemos a

um determinado sentido do poema que nos traz o âmbito do acontecimento poético

originário como aquilo que permanece inominado em tudo que acontece poeticamente.

Por outro lado – e isto não anula a interpretação anterior – dentro do contexto de obra em

que o poema “Ulysses” opera, sabemos que tal “este”, ainda que inominado, instaura uma

referência.

A obra “Mensagem”, em que o poema “Ulysses” se dá, é o canto da saga de

descobrimento do mundo pelas navegações portuguesas, em que encontramos a

historiografia tradicional por meio da qual tais navegações normalmente nos são relatadas

convertida num mito. Isto significa que as navegações, em “Mensagem”, deixam de ser um

fato simplesmente dado, uma ocorrência dentre outras, e se apresentam nos poemas desta

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obra como históricas em sentido próprio, o que significa dizer que ainda acontecem

sempre e a cada vez, porquanto são históricas no horizonte de sentido e verdade do mito

que instaura a presença humana como travessia poética.

Portanto, a referência instaurada pelo “este” inominado não é uma referência a algo

simplesmente acontecido, a uma origem cronológica lendária perdida num passado para

sempre passado. Esta referência é mítica, e isto quer dizer que ela acontece sempre e a cada

vez que se escuta de maneira própria a verdade e o sentido do poema em que ela se nos

oferece. Esta referência, portanto, não é uma referência a um suposto Ulysses “real” (no

sentido metafísico) que tenha chegado onde hoje é Lisboa e assim a tenha fundado. Isto se

diz com base numa lenda que diz que o fundador de Lisboa teria sido Ulysses, o famoso

herói da Odisséia. Esta lenda foi considerada “falsa” (no sentido metafísico) pela etimologia

correta verificada nos mais antigos registros latinos do nome da capital portuguesa. Este

nome grafava-se de diversas formas, geralmente “Olisipo” ou “Olissiponis”, o que

desvincularia o nome da cidade a Ulisses, que em latim grafa-se “Ulysses” e em grego

“Odysseús”188.

A questão aqui, portanto, é que se considera o mito a partir de um conceito de

realidade que não lhe é próprio: aquele que diz que real é o simplesmente dado. Assim,

obviamente, o mito não é verdadeiro, porque também se considera verdade de modo

impróprio, como adequação entre a representação e o tal conceito de realidade. Conforme

188 Portanto, o fundador de Lisboa é Ulisses, mas não que o seja como fundador historiográfico, e sim como fundador mítico. Isto é, sobretudo, a fundação do homem como aquele que é ao modo da existência, isto é, como aquele que só é o que é na travessia de ser. Lisboa, a cidade mais ao extremo oeste da Europa, aparece nesta fundação mítica como timoneira, no percurso diante do desconhecido oculto sob o véu do Atlântico. Ulisses é o fundador de Lisboa, portanto, porque é o homem na liminaridade entre saber e não-saber. Lisboa aqui, então, também é uma cidade mítica que ganha os traços arquitetônicos da morada do homem como liminaridade. Não é, portanto, uma localização geopolítica que é fundada por Ulisses.

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viemos pensando verdade e realidade, história e lenda, a partir de uma escuta do poema,

chegamos a compreender que não é deste modo que o “este que aqui aportou” do poema

faz referência a Ulysses, porque o poema faz referência ao mito de Ulysses. Esta referência

não quer dizer intertextualidade, de modo que precisaríamos ir visitar cada um dos textos

que trataram do mito de Ulysses e assim retirar deles significados a serem aplicados na

compreensão desta referência. Tampouco buscar semelhanças e diferenças entre as

diversas manifestações mitopoéticas de Ulysses.

“Mensagem” é a saga mitopoética do desvelamento do mundo pelo povo português.

Este povo cujo ancestral mítico é Ulysses. Escrito na língua portuguesa da linguagem

poética, esta obra poética fala a quem está lançado no mundo ao modo de poder ouvir e

falar tal língua da linguagem poética. Assim, o “português” aqui não é um campo étnico,

nem político, nem lingüístico (no sentido da Lingüística). Este “português” nomeia um

horizonte de doação da linguagem como língua. Como horizonte de linguagem como

língua, ele remete à poética do sentido e ao sentido da poética, à uma verdade e à uma

historicidade. “Mensagem” não é a descrição de eventos em “forma e estilo de poesia”, que

são datáveis e representáveis pela historiografia do povo do país chamado Portugal, e que

ocorreram no tempo cronológico ao longo do século XVI. A saga “portuguesa” de

mensagem fala a todos os que se fazem habitantes numa travessia poética que está lançada

num horizonte de doação da linguagem como língua portuguesa.

Assim é que é possível compreender a referência a Ulysses, no “Este que aqui

aportou”. Ulysses é o nome que evoca o horizonte mítico em que o homem se realiza como

homem, isto é, o homem em travessia poética. O homem em travessia poética, portanto,

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não é somente um “personagem” (no sentido da Teoria Literária tradicional), mas o

próprio leitor-em-escuta lançado na compreensão do poema. Isto porque estando lançado

na compreensão do poema é que o leitor-em-escuta se realiza na travessia poética do

horizonte da linguagem doando-se na língua portuguesa. Enquanto leitor-em-escuta do

poema Ulysses, o homem realiza a travessia poética em que o humano do homem e o

mundo comparecem como sentido e verdade. Tal comparecer de homem e mundo como

sentido e verdade, realizando-se em travessia poética, é nomeado como Ulysses. Por isso

este é o título próprio de um poema que nos revela a poética do mito. Por isso, também, é

que se tratou o mito, tal como revelado em sua poética no poema Ulysses, não como o

tema deste poema, mas como uma questão, o que também quer dizer que o mito não é o

tema deste poema porque neste poema nós, leitores-em-escuta, somos também mito.

Agora, talvez, possamos compreender de que maneira o “Este que aqui aportou” é tanto

Ulysses quanto o inominado. O poema não apenas evoca o originário inominado de todo

acontecer mitopoético, mas também, com este inominado, evoca o próprio leitor na

travessia (leitura-escuta) como um acontecimento poético originário.

Também agora talvez possamos compreender o sentido da palavra mythos. Uma

vez que as questões como Linguagem, Verdade, História, Lenda, Realidade, Sagrado, Corpo

e as demais pensadas até aqui estão libertas pelo rigor que nos prende à escuta de seu

sentido. Tentamos apenas agora pensar a questão presente na palavra mythos porque

esperamos o momento propício em que uma escuta própria pudesse se dar. A decisão por

tal espera se deu por cautela em relação ao trato “dicionarizante” e meramente etimológico

com a palavra. Este trato cala a palavra. Assim, impede a caminhada do pensamento em

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que a lenda escorre sempre e a cada vez a entrar na realidade e a fecundá-la. Entretanto,

talvez agora possamos compreender melhor o que as possíveis e incertas etimologias da

palavra mytho nos dizem, se ouvirmos o étimo no horizonte do que aqui se tentou pensar

a partir de uma escuta.

Muitas são as possíveis etimologias da palavra mytho. Não cabe aqui discutir qual a

mais válida. Talvez tal decisão não seja sequer prudente: por que teríamos de nos adequar

ao ditame que prescreve a necessidade de se fixar um significado e, assim, mesmo sem que

se o queira, delinear os contornos de uma essência metafísica. Talvez, na pluralidade de

suas possibilidades, livre da fixidez estabelecida como representação definitiva é que a

palavra possa estar mais livre para encerrar as possibilidades plenas de seu sentido. Assim é

que ela encerra a liberdade do sentido que se plenifica sempre a cada vez no

acontecimento da recitação poética do mito.

Uma das possibilidades etimológicas189 aponta para uma derivação de mythos a

partir de myo, que significa “encerrar”, “fechar”. Neste sentido, o mito instaura mundo e

entra em realidade. Como horizonte do dizer, o mito assinala, pelo não-limite da

convocação do vigor poético, o limite do dizer da saga. Este fechar, contudo, não converte

o narrado numa coisa simplesmente dada, pois a memória é criativa, no horizonte do

esquecimento que convoca a cada vez a comemoração musical. Isto é o que se diz num

outro étimo de mythos, que poderia derivar também de myéo, “iniciar”, que em sentido

pleno não aponta simplesmente para um começo cronológico, para o princípio, o

originário que está a todo tempo começando, para o princípio que é sempre fim, porquanto

189 Para este parágrafo sobre as possíveis etimologias de mythos nossa fonte é: PERINE, 2002, p. 38.

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destina a presença, em virtude de um aceno originário, ao velamento que abriga o vigor de

seu surgir. Isto porque myéo é não somente “iniciar”, mas também “mistério”, pois o

sentido desta palavra grega remete também para aquilo que é dito “entre os dentes”, a fala

sussurrada de quem diz como que calando, de quem conta como que segredando. É,

portanto, um início que se vela e, na medida em que não se deixa conter e apreender por

uma representação, se mantém vigorando como aquilo que dá ensejo ao que se inicia: isto é

o que se diz com a palavra “princípio”. Neste sentido, também, liga-se aos cultos de

mistério em que o homem se inicia, assinalando, portanto, também, a intimidade entre o

mito e o sagrado. Este aceno originário é o acontecimento do silêncio da linguagem, e

outro étimo possível para mythos é a exclamação mû, de que podem derivar tanto myéo

quanto myo anteriormente aludidos. Esta exclamação remete para “emudecer” e ao mesmo

tempo “fazer-se sentir”, isto é, fazer-se presente na ausência. Como silêncio, a própria

linguagem acontecendo como exclamação originária que, na correspondência do homem

ao lógos, se torna a questão originária, o mito se faz presente na ausência. É o silêncio da

fala, o nada que é tudo, a morte que é vida. Como exclamação, acontecimento de sentido e

verdade que cria e é criado pelo homem, o silêncio do mito é recolhido na escuta como

questão. A questão vigora na vigência do pensamento, e assim sustenta o pensamento, na

medida em que este deixa e resguarda o ser-questão da questão. Neste sentido é que nos

fala ainda outro étimo de mythos, a raiz indo-européia meudh, que significa “recordar-se”,

“aspirar” e “cuidar”. No cuidado pensante em que a linguagem enseja o pensamento, em

que a lenda fecunda a realidade e faz eclodir o homem histórico, acontece a memória

poética. Este cuidar pensante recorda e comemora, mas também cria e aspira, reúne o

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passado recordado ao futuro aspirado como presença cuidadosa do sempre comemorar das

danças, da música, da vestimenta, da oração, do culto, da oferenda em que a vigência

destes ritos vigora no horizonte poético do mito. O sentido de mythos como

acontecimento do pensamento se revela na forma como as palavras mytholomai,

mythologeo e mythologia comparecem em Ésquilo, Sófocles e Homero. Na poética destes

poetas-pensadores, o mito acontece na escuta do lógos, e então é não somente o silêncio da

fala, mas também o narrado na saga. Este último sentido, apenas, é o que nos legou a

tradição e se apresenta nos dicionários: “o narrado”, “o dito”, “o que se conta”. Contudo,

sem o pensamento próprio e a escuta própria, o significado do mito, assim considerado,

pode convertê-lo tão-somente em algo dado, algo dito, mensurável e passível de ser

dominado e controlado pelos esquemas e teorias da epistemologia das representações

conceituais. Deve-se atentar que, mesmo neste significado de narrativa, o mito é narrativa

verdadeira e, enquanto verdadeira, se dá propriamente como aquilo que não é somente

dado, mas que se mantém no horizonte que é originário de todo dizer. Neste horizonte é

que o simples relato é uma originária Mensagem.

A poética que nos lançou na travessia do mito não nos deu um sistema que permita

agora facilmente dar conta do mito. Ela nos fez saber o mito, isto é, vivê-lo como travessia

poética, ela fez acontecer – esperamos que sim – a experiência de nos tornarmos o que

somos, estes que se destinam rumo à origem. O mito de Ulysses não foi em vão. A poética

do mito se encerra quando, libertando-se para leitura, nos diz: “Embaixo, a vida, metade de

nada, morre.”

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“Embaixo”: sob o sol que abre os céus, sob o mistério do que aportou, foi vindo, e

nos criou. Sob a imposição libertadora da palavra cantada é que a lenda que se escorre – na

realidade. “Embaixo”, como a ter tudo acima, tudo suspenso sobre este nada que é tudo, em

suspense, o que diz: a se pensar, em suspenso.

“A vida”, esta travessia que é já desde o início um morrer até terminar de morrer, é,

por isso, “metade de nada”. Metade de um nada que é tudo, um nada fértil, um nada vivo,

uma injunção que junta numa disjuntiva que requer de nós sempre a decisão de aceitarmos

o que nos é dado, e de o renunciarmos para que possamos receber: morte. A referência

fundamental entre vida e morte, com que o poema se encerra, liberta-nos para a travessia

de seu sentido, retomando o originário, na medida em que só nos resta o silencio que

inaugura e convoca a cada vez uma nova leitura. A referência fundamental entre vida e

morte nos apropria do que é mais próprio. Ela nos reconduz à casa, à morada onde já desde

sempre estamos. Então compreendemos que não há nada que não seja um mito contado

que permanece sempre ainda por contar. A vida “morre” – assim encerra-se a poética do

mito num dizer libertador, não como algo fantasioso ou impensável, algo passado ou

apenas um futuro, mas como a afirmação mais aconchegada à presença. Nossa presença.

***

Chegamos a Ítaca, está feita a Odisséia, com a esperança de que não se leia o que se

apresentou como uma representação geral da essência do mito, a partir da qual todo rito

possa ser compreendido. Esta nossa esperança assim se mostra um pouco desesperançosa,

dado o império de uma perspectiva em que só valem os sistemas cada vez mais

nanométricos, por medo da jornada de retorno... à simplicidade da casa. Lá encontramos o

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que nos é próprio, na figura do familiar em que o extra-ordinário se vela no ordinário: as

enseadas, o velho cão, Penélope, Telêmaco crescido, o leito da oliveira à sombra da qual

nos deitamos, em repouso. Ítaca já não é a mesma e, contudo, ainda é a mesma Ítaca. Pelo

vigor do extra-ordinário, o ordinário se apresentou como algo mesmo e outro. No

reencontro, reconhecemos e desconhecemos o que é Ítaca, o que é Casa. Chega a até nós a

memória de um poema de Kaváfis, que deixaremos simplesmente soar aqui:

ÍTACA Se partires um dia ruma a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras, repleto de saber. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o colérico Posídon te intimidem; eles no teu caminho jamais encontrarás se altivo for teu pensamento, se sutil emoção teu corpo e teu espírito tocar. Nem Lestrigões nem os Ciclopes nem o bravio Posídon hás de ver, se tu mesmo não os levares dentro da alma, se tua alma não os puser diante de ti. Faz votos de que o caminho seja longo. Numerosas serão as manhãs de verão nas quais, com que prazer, com que alegria, tu hás de entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir: madrepérolas, corais, âmbares, ébanos, e perfumes sensuais de toda espécie, quanto houver de aromas deleitosos. A muitas cidades do Egito peregrina para aprender, para aprender dos doutos. Tem todo o tempo Ítaca na mente. Estás predestinado a ali chegar. Mas não apresses a viagem nunca. Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca. Sem ela não te ponhas a caminho. Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

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Ítaca não te iludiu, se a achas pobre. Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas.190

Está feita a Odisséia. Sabemos, ao modo de um não saber que é estar numa

experiência, numa viagem, o que é Ítaca. Está feita a Odisséia: nada terminou. Quando

Ulisses chega à Ítaca, tem início a Odisséia, pois ela se abre à escuta do que em sua fala se

encerra. Está a nossa espera a aventura da escuta da Odisséia. Está esperando a Odisséia

uma infinidade de leituras poéticas – de diálogos - abertas à escuta de sua fala, da fala

poética do mito, que assim nos lança na errância que é a aventura do pensar que nos

reconduz à mesma e outra casa, na mesma e outra viagem. O poema que nos lançou no

aceno deste ensaio de Odisséia é o poema “Ulysses”, do livro “Mensagem”, de Fernando

Pessoa. Mensagem, palavra derivada do latim mittere, que significa em sentido próprio

“deixar ir”, “libertar”, não é um comunicado que tem um significado fixo, mas um aceno

que, naquilo que seu dizer encerra, nos liberta para a travessia de sermos. Que este nosso

trabalho seja, então, uma Mensagem. A travessia que ele realiza é como o ensaio de uma

peça que, sempre por acontecer, já é a própria peça. Que este ensaio que aqui se encerra

valha como diálogo, oportuno nos tempos de falatório. Um diálogo que surgiu da escuta de

um dizer primeiro:

PRIMEIRO/ULYSSES O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou.

190 KAVÁFIS, 2006, p, 146-147.

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Por não ter vindo foi vindo E nos creou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.

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ConcConcConcConclusãolusãolusãolusão

Para as questões fundamentais não há conclusão. Procurou-se neste trabalho pensar

o mito como questão fundamental. Portanto, esta conclusão não pretende mais do que

retomar o que foi pensado em linhas gerais.

O mito vigora poeticamente. Isto quer dizer que a compreensão do que é o mito, é a

compreensão do que o mito está sendo, a compreensão do acontecimento do mito.

Portanto, o mito não tem um sentido e uma verdade. O mito também não tem uma

essência metafísica, ele é o seu sentido e a sua verdade no horizonte histórico em que

realizamos a travessia poética de nossa presença.

O mito não é veiculado pela linguagem. O mito é a Linguagem de todas as

linguagens, da poesia, da religião, da arquitetura, da dança, da música e assim por diante.

Portanto, o mito não é tema ou problema do pensamento. O mito é o pensamento que o

pensa.

O mito não fala sobre deuses e heróis, sobre seres irreais ou sobre um passado

remoto. Não trata de realidades supra-sensíveis, nem tampouco de coisas tão-somente

dadas. O mito reúne deuses e heróis, antepassados e os mortais em sua travessia, portanto

também é manifestação originária em vez de relato das origens.

O mito não é uma história contada à maneira da ficção. Ele é o que é propriamente

histórico na história. Não é invenção humana, tampouco discurso formador de identidades

culturais. O mito manifesta o acontecimento homem que o manifesta e, assim não é um

produto cultural, mas uma reunião originária é Mundo e Natureza.

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Mito não é lenda em oposição à realidade. No horizonte do mito lenda e realidade

estão num pertencimento comum. A lenda entra em realidade, e isto quer dizer que o

mito, que é tal acontecimento, é não somente real, mas também que o real é um mito que,

acontecido, acontece e está sempre por acontecer.

Mito não é algo alheio ao que somos. Mito é a vida-morte que somos. É vida no

horizonte da morte. É morte na vigência da vida. Encaminhamos não apenas a

compreensão de que o sentido deste trabalho é a própria travessia no vigor do mito, ou

seja, de que este trabalho é aquilo de que ele “trata”, mas também que a nossa própria

presença - enquanto leitores que escutam a poética do mito – é também esta mesma

travessia.

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