poesia como plano de fuga - posciencialit.letras.ufrj.br · poesia como plano de fuga por fábio...

111
Poesia como Plano de Fuga por Fábio Henrique Cruz Pinheiro Programa de Ciência da Literatura Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Vera Lucia de Oliveira Lins. Rio de Janeiro, 2º semestre de 2007.

Upload: lycong

Post on 01-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Poesia como Plano de Fuga

por Fábio Henrique Cruz Pinheiro

Programa de Ciência da Literatura

Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Vera Lucia de Oliveira Lins.

Rio de Janeiro, 2º semestre de 2007.

POESIA COMO PLANO DE FUGA

Fábio Henrique Cruz Pinheiro

Orientadora: Vera Lucia de Oliveira Lins

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Aprovada por: _____________________________________ Presidente, Prof. Vera Lucia de Oliveira Lins ____________________________________ Prof. Luis Alberto Nogueira Alves ____________________________________ Prof. Marco Americo Lucchesi ____________________________________ Prof. Eleonora Ziller Camenietzki ____________________________________ Prof. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

Rio de Janeiro Agosto de 2007

2

Agradecimentos: À Professora Doutora Vera Lins, pela orientação precisa, pela paciência e incentivo. Aos professores que, no andamento do curso, participaram da elaboração desse trabalho: Eduardo de Faria Coutinho, Ana Alencar, João Camilo Penna, Ronaldo Lima Lins, Luis Alberto Nogueira Alves. Aos poetas Tarso de Melo e Sebastião Uchoa Leite, pelas suas obras e idéias. A meus pais, Maria e João Pinheiro, pelo constante apoio. A todos os meus amigos e colegas, pelo carinho e paciência.

3

O que não precisamos decifrar, deslindar a nossa custa, o que já antes de nós era claro, não nos pertence. Só vem de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem. E como a arte recompõe exatamente a vida, em torno destas verdades dentro de nós atingidas flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério que não é senão a penumbra que atravessamos.

Marcel Proust

4

SINOPSE

Reflexões sobre as transformações impostas pela industrialização da cultura às formas artísticas no geral e na literatura em particular. Indagações sobre o lugar do discurso literário na contemporaneidade. Análise das mudanças poéticas sofridas pelo avanço das novas tecnologias da comunicação. Algumas poéticas contemporâneas desenvolvidas na época do capitalismo em seu estágio avançado.

5

RESUMO

PINHEIRO, Fábio Henrique Cruz. Poesia como Plano de Fuga. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

O presente trabalho levanta reflexões sobre a arte literária e sua relação com o mundo moderno povoado pelos meios de comunicação de massa responsáveis pela banalização da linguagem e da vida humana. Se por um lado o sistema capitalista criou a indústria cultural com o intuito de massificar a cultura e, conseqüentemente, manipular a população a partir da consciência para assim poder atingir seus objetivos, por outro a prática literária assumiu uma postura que procura desenvolver uma arte poética a fim de desestabilizar a linguagem da comunicação, criando uma poesia capaz de devolver ao homem sua essência. A partir deste embate o estudo desenvolve uma análise em dois níveis: num primeiro identifica os textos literários que resistiram ao processo de massificação durante a evolução das tecnologias desenvolvidas pelas instâncias do poder e, num segundo, aponta os caminhos a serem trilhados pela atividade poética no capitalismo avançado - quando o sujeito massificado, constantemente em contato com uma linguagem a serviço da técnica, encontra-se cada vez mais distante de sua natureza. Com esse intuito, o estudo fundamenta-se no exame das obras de dois poetas contemporâneos brasileiros - Tarso de Melo e Sebastião Uchoa Leite - para pensar como a literatura vem respondendo às indagações de seu tempo.

6

ABSTRACT

PINHEIRO, Fábio Henrique Cruz. Poesia como Plano de Fuga. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

The present work raises reflections on the literary art and its relation with the modern world fulfilled by the medias responsible for the vulgarization of the language and the human life. If, in one hand the capitalist system created the cultural industry with the intention of stereotype the culture and, consequently, manipulate the population from the conscience thus to be able to reach its objectives, on the other hand, the literary practice assumed a position that looks to develop a poetical art in order to take off the stability of the communication language, creating a poetry capable to return to the man its essence. From this shock the study it develops an analysis in two levels: in a first one it identifies the literary texts that had resisted the stereotyping process during the evolution of the technologies developed for the instances of the power and, in the second one, it points the ways to be covered by the poetical activity in the advanced capitalism - when the stereotyped citizen, constantly in contact with a language on the service of the technique, finds himself more and more distant from its nature. With this intention, this study is based on the examination of the workmanships of two poets Brazilian contemporaries - Tarso de Melo and Sebastião Uchoa Leite – in order to help on thinking the way literature is answering to the investigations of its own time.

7

Sumário

1. Introdução..........................................................................................................................9

2. Arte e Indústria Cultural................................................................................................14

2.1 - A Arte pré e pós Revolução Industrial..................................................................25

2.2 - A Indústria Cultural................................................................................................32

2.3 - O Papel da Arte no Capitalismo.............................................................................40

3. Arte e Indústria Cultural na Literatura do Século XIX..............................................45

4. A Poesia Concreta Brasileira..........................................................................................56

5. Poesia no Capitalismo Avançado....................................................................................75

6. Considerações Finais.....................................................................................................105

7. Bibliografia.....................................................................................................................108

8

1 INTRODUÇÃO Este trabalho visa verificar até que ponto este embate entre arte e indústria cultural está

presente em nossa realidade e como isto vem sendo destacado pela literatura atualmente. Será

que hoje, com toda a comodidade e facilidade proporcionada pelos bens fabricados, estamos

vivendo um momento de maior felicidade e harmonia com nossa natureza? Será que o advento

da industrialização fez com que as pessoas se sentissem mais representadas, ou seja, atingiu um

grau de democratização maior que nas épocas anteriores, quando somente a representação da

classe mais abastada tivera lugar na sociedade?

Assim, parte-se do princípio de que, com o advento do capitalismo e a produção em

série, o que vem acontecendo está longe de ser uma democratização entendida como aquisição

de um lugar pelo indivíduo na história, mas uma padronização dos bens culturais fabricados

pela indústria que também produz os indivíduos para consumi-los. Visto desta forma, o ser

humano não está se impondo para alcançar um reconhecimento pela sociedade, mas a sociedade

o está fabricando de acordo com a melhor conveniência. As criações espirituais que antes só

eram permitidas a uma pequena parte da esfera social (às classes mais ricas), hoje, se encontram

enredadas pelo esquema da indústria cultural. Esta assimilou a obra de arte e deu fim à

autenticidade do mundo natural proporcionada ao indivíduo pela obra de arte, pois tudo deve se

adaptar à realidade fabricada da sociedade espetacular. Os diversos sentidos criados pela

literatura até a época feudal tiveram que se adequar ao sentido da sociedade industrial, assim

como todo pensamento àquele imposto pelo sentido do capitalismo.

A indústria cultural reduz tudo ao estilo único da sociedade e toda sua produção deve

retratar a vida cotidiana como “natural” e, neste sentido, a obra de arte perde seu valor, pois não

9

é mais necessário propor uma vida mais autêntica e verdadeira para se escapar do mundo

massacrante dos negócios, se este mundo é exatamente, segundo as leis desta indústria, o lugar

da vida natural. Visto desta forma, a indústria cultural nada mais faz que reproduzir, no

momento do ócio, a dinâmica massacrante do trabalho nas empresas. Os bens culturais

fabricados como os filmes, as músicas, os livros, etc. reproduzem esta mesmice sobre outra

forma. Os acontecimentos se desenvolvem com uma rapidez que não deixam espaço para o

público pensar. Torna-se uma coisa maquinada e repetitiva, tal qual o trabalho nos campos de

produção em série.

Toda esta dinâmica da sociedade capitalista fez com que os homens afastassem de sua

condição humana natural como ser pensante e passassem a desempenhar o papel de ferramenta

para manter o bom andamento da grande máquina capitalista. Esta racionalização humana não

foi proporcionada pela escravidão como na sociedade escravocrata, onde os senhores faziam

seus servos desenvolverem trabalho através da força, mas pela escravidão da consciência

alcançada, em grande parte, pelos meios de comunicação de massa e dos bens culturais. Sob o

disfarce da diversão, a indústria cultural conseguiu desacostumar as pessoas de sua

subjetividade para aderirem ao esquema.

O conceito de verdade teve grande influência para a escravidão de nossas consciências.

Tudo deve buscar uma verdade. Toda contradição deve desaparecer cedendo lugar a um único

objetivo. A grande importância dada à verdade foi alcançada, em grande parte, pela informação.

Todo dado, todo acontecimento deve ser provado e explicado até atingir a verdade. A linguagem

distancia-se cada vez mais de si mesma para este fim explicativo. Dilui, desta forma, o poder da

linguagem em reconstruir um mundo mais autêntico e dinâmico que está se perdendo, para

deixar-se a serviço do sistema que busca apenas uma “verdade” fabricada pela lógica capitalista.

10

Segundo Adorno e Horkheimer na obra “Dialética do Esclarecimento”,

“a linguagem que apela apenas à verdade desperta tão somente a impaciência de chegar logo ao objetivo comercial que ela na realidade persegue. A palavra que não é simples meio para algum fim parece destituída de sentido, e as outras parecem simples ficção, inverdade”.1

A indústria cultural elege a informação necessária para divulgar o sentido de uma

sociedade sem sentido. Bloqueia, desta forma, o discernimento e o pensamento intelectual, pois

tudo já vem pronto. Segundo Rodrigo Duarte, em “Teoria Crítica da Indústria Cultural”, este é

um dos principais procedimentos utilizados pela indústria cultural no processo do

esclarecimento unilateral apontados por Adorno e Horkheimer no capítulo “A Indústria

Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas” na “Dialética do Esclarecimento”.

Tal procedimento intitulado “expropriação do esquematismo” age no sentido de fornecer uma

chave aos leitores para a leitura dos acontecimentos. O esquematismo é a ponte entre a

sensibilidade, que seria a faculdade das intuições, e o entendimento. A indústria cultural, além

de eleger as informações, bloqueia a sensibilidade e toma o lugar que o próprio sujeito teria ao

interpretar, através da intuição, os conceitos.

Acredita-se que a única possibilidade de denunciar esta realidade fabricada, ainda parte

das verdadeiras obras de arte, pois, elas têm o caráter de desenvolver a sensibilidade natural (e

não fabricada) do indivíduo. Mas, ao mesmo tempo, está cada vez mais difícil de produzir uma

obra em um mundo cercado por “guardiões” impostos pela sociedade industrial e onde as

pessoas não demonstram menor interesse em se descobrirem através do contato com a arte.

É a partir da criação espiritual autêntica que os indivíduos se ligam numa coletividade

mais verdadeira, onde os reais sentimentos se entrecruzam e alcançam uma comunidade coesa e

mais solidária. Adorno, ao falar da expressão lírica na sua “Palestra sobre lírica e sociedade”

1 ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. 1985. p. 138.

11

ressalta que o valor da obra lírica não está naquilo em que o artista expressa seus sentimentos

mais íntimos, mas o que ela tem de referência social. O fato de a linguagem lírica ser mais

autêntica e expressar de forma única o que não é representado pela realidade fabricada,

deixando escapar o que de mais humano existe no ser, é onde se manifesta o verdadeiro social:

“o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente o outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal”.2

Ainda, segundo o autor, o teor lírico só é objetivo, ou seja, só retrata a verdadeira

sociedade, quando, ao distanciar-se da superfície social, é motivado socialmente a partir da

linguagem: “A linguagem estabelece mediação entre lírica e sociedade”.3 Mas, esta mesma

linguagem é também a linguagem da propaganda, da comunicação e da informação e fora,

durante muito tempo, a arma utilizada pela indústria cultural para exercer seus objetivos.

Deste modo, tomou-se como ponto de partida o princípio de que somente a linguagem

artística seja capaz de libertar a sociedade aprisionada. Porém, para trilhar este caminho, tal

linguagem tem pela frente a tarefa de superar o desgaste que sofreu para atender a indústria da

comunicação, e isto só é possível quando ela ganha voz própria a partir dos impulsos subjetivos

do artista.

A hipótese deste trabalho é a de que, em um mundo dominado pelos meios de

comunicação de massa, a linguagem só vai adquirir sua voz própria quando se deixar escapar de

sua estrutura comunicativa conhecida e criar novas formas de composição. Só assim conseguirá

produzir uma obra mais profunda e verdadeira que irá denunciar a estética da mercadoria.

2 ADORNO, Theodor W. 2003. p. 66. 3 Idem. p. 74.

12

Nessa ótica, as obras “Planos de Fuga e Outros Poemas” do poeta Tarso de Mello e

“Obra em Dobras” de Sebastião Uchoa Leite empregam um tipo de linguagem que consegue

escapar de uma estrutura comunicativa costumeira ao criar uma nova sintaxe que, em perfeita

sintonia com o conteúdo esboçado, torna-se capaz de fazer com que o leitor entre em contato

com novas possibilidades de leitura de si e do mundo em que vive.

13

2 ARTE E INDÚSTRIA CULTURAL

No início do processo evolutivo, o homem deparou com a necessidade de se proteger das

forças naturais que exerciam grande ameaça sobre sua vida. Deste modo, foi necessário o

desenvolvimento de aparatos técnicos capazes de proporcionar uma defesa perante tais poderes

da natureza e garantir uma melhora das condições de vida. Assim, surgiu a necessidade de

trabalho para o desenvolvimento de tais técnicas que iriam suprir suas necessidades básicas, tais

como comida, moradia e vestimentas e a possibilidade de viver melhor diante de um mundo

ameaçador. Como o homem se apresentava pequeno diante do resto do mundo, viu que não

seria capaz de produzir o que lhe convinha sozinho e começou a juntar-se em pequenas tribos,

aliás o homem é um ser socializável por excelência. Com uma organização coletiva, volta-se a

um trabalho organizado que seria mais eficiente e benéfico para todos. A partir da promessa de

uma vida melhor e, conseqüentemente, de um estado que seria capaz de permitir aos indivíduos

um espaço protetor perante o terror exercido fora dele, as pessoas eram levadas ao trabalho

organizado, almejando assim uma possibilidade de libertação cada vez maior e melhor de seus

medos. Segundo Engels, “o trabalho começa com a elaboração de instrumentos”.4 Como os

vegetais disponíveis na natureza não estavam dando conta da alimentação humana, foi

necessário o desenvolvimento de novos hábitos alimentícios e os primeiros instrumentos

produzidos pelo homem foram os que facilitavam na caça e pesca. Com o passar dos anos,

novas necessidades permitiram a criação de novos tipos de trabalho:

“à caça e à pesca veio juntar-se a agricultura, e mais tarde a fiação e a tecelagem, a elaboração de metais, a olaria e a navegação. Ao lado do comércio e dos ofícios apareceram, finalmente, as artes e

4 ENGELS, Friedrich. 1999.

14

as ciências; das tribos saíram as nações e os Estados. Apareceram o direito e a política, e com eles o reflexo fantástico das coisas no cérebro do homem: a religião”.5

No início, o trabalho foi desenvolvido com o intuito de aproveitar melhor os recursos

naturais para a sobrevivência. Os medos perante as forças naturais eram amenizados pelos mitos

desenvolvidos pelas tribos. Cada tribo criava seus mitos para poder lidar com o poder natural

que os apavorava. Os signos míticos eram povoados por elementos da própria natureza,

considerada sagrada pelos homens. Superada esta fase, pouco a pouco o homem deixa de se

apropriar da natureza para a obtenção de recursos úteis a sua sobrevivência e passa a modificá-

la e a obrigá-la a servir-lhe, ou seja, dominá-la. O domínio sobre a natureza não se mostrou

suficiente, o que levou a um domínio sobre os próprios homens. Os mais fracos eram

dominados para trabalhar na exploração dos recursos naturais. Da propriedade comum, utilizada

para o cultivo de bens necessários, chega-se à propriedade privada. Segundo Engels,

“A primitiva propriedade comunal da terra correspondia, por um lado, a um estádio de desenvolvimento dos homens no qual seu horizonte era limitado, em geral, às coisas mais imediatas, e pressupunha, por outro lado, certo excedente de terras livres, que oferecia determinada margem para neutralizar os possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Ao esgotar-se o excedente de terras livres, começou a decadência da propriedade comunal. Todas as formas mais elevadas de produção que vieram depois conduziram à divisão da população em classes diferentes e, portanto, no antagonismo entre as classes dominantes e as classes oprimidas. Em conseqüência, os interesses das classes dominantes converteram-se no elemento propulsor da produção, enquanto esta não se limitava a manter, bem ou mal, a mísera existência dos oprimidos. Isso encontra sua expressão mais acabada no modo de produção capitalista, que prevalece hoje na Europa ocidental”.6

Na sociedade feudal, os proprietários arrendavam suas terras aos despossuídos em troca

de uma parte da produção. Assim, aqueles que não possuíam bens materiais, como a

propriedade da terra, forneciam o trabalho físico para a produção dos bens necessários a si e aos

senhores detentores da propriedade:

5 Idem. 6 Ibidem.

15

“a propriedade privada baseada no trabalho próprio converte-se necessariamente, ao desenvolver-se, na ausência de posse de toda propriedade pelos trabalhadores, enquanto toda riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos que não trabalham”.7

Porém, era preciso algo maior para justificar esta concentração de poder na mão de uns

poucos que nada faziam, mas tinham suas necessidades supridas pelas mãos dos trabalhadores

sem terra. Para conservar e manter o poder constituído cria-se um aparato sistemático que

promove a alienação de uma realidade vivida e sua substituição pelas imagens adaptadas pelo

próprio poder. Segundo Giulia Crippa em “Reflexões acerca do espetáculo como fundamento

cultural do ocidente”, “este aspecto se evidencia a partir da dissolução dos laços feudais do

mundo urbano do século XII, quando surge uma economia pré-capitalista baseada em tráficos

comerciais”.8 Ainda segundo a autora, este procedimento se dá a partir da espetacularização do

poder. Primeiro,

“a Igreja procura contestar (as revoltas populares) pela espetacularização de suas doutrinas. Durante o Renascimento, o poder encontra, como espetáculo, uma definição mais equilibrada na sociedade; no entanto, a reforma protestante cria, mais uma vez, a necessidade de uma nova espetacularização em favor das massas cristãs, produzindo o fenômeno do Barroco. Durante a Revolução Francesa, assistimos à criação de espetáculos que ganham a adesão das massas à revolução. Assim se constitui a sociedade de massas espetacular nas formas e conteúdos que refletem a realidade contemporânea”.9

Até então, apesar da exploração, a cultura era uma decorrência espontânea da condição

humana. Esta se expressava na tradição da população, em seus mitos, seus objetos estéticos e

seus costumes. O fim da época feudal e a maior concentração do poder fizeram com que a

cultura espontânea fosse sendo substituída pela cultura dominante. Para a população restava

apenas a aquisição cultural da classe dominante e pouco a pouco, as várias tradições foram

sendo substituídas pelos hábitos e costumes privilegiados. Depois do trabalho, os servos eram

7 Ibidem. 8 CRIPPA, Giulia. 2001. p. 01. 9 Idem. p. 01

16

colocados em contato com a cultura dominante que freava a busca de uma vida mais autêntica

da classe trabalhadora:

“As imagens contempladas de forma passiva – imagens escolhidas por outros – passam a substituir a função ativa do indivíduo, e este substitui, por meio delas, a experiência e a determinação dos acontecimentos”.10

Segundo Debord,

“A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido, na sociedade histórica dividida em classes; o que equivale a dizer que ela é o poder de generalização que existe à parte, como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura se desligou da unidade típica da sociedade do mito, ‘quando o poder de unificação desaparece da vida do homem e os opostos perdem sua relação e interação vivas, ganhando autonomia...’(Différence des systèmes de Fitche et de Schelling). Ao ganhar independência, a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é ao mesmo tempo o declínio de sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas a respeito dessa autonomia, também se expressa como história da cultura. E toda história de vitórias da cultura pode ser compreendida como a história da revelação de sua insuficiência, como uma marcha para sua auto-supressão. A cultura é o lugar da busca da unidade perdida. Nessa busca da unidade, a cultura como esfera separada é obrigada a negar a si própria”.11

A cultura seria, então, uma promessa de unidade a partir da pluralidade daquilo que é

vivido. É a totalidade expressa na unidade. Ela deixa de ser autêntica quando elege um certo

tipo de representação dominante em detrimento das demais expressões. Isto faz dela uma esfera

separada da totalidade, diminuindo as chances de alcançar esta unidade perdida. Deste modo,

deixa de ter sentido. Do mesmo modo, a história. Se a cultura é a totalidade das representações,

a história geral seria a história da cultura. Quando se elege um determinado tipo de cultura que

deve se sobrepor as suas variantes, a história geral passa a ser a história da dominação, enquanto

os dominados ficam sem representação.

Este déficit cultural, já pode ser observado no século XII, quando a economia feudal vai

abrindo espaço para a crescente mercantilização. Nesta época, a Igreja pregava ideais de

10 Ibidem. P. 02. 11 DEBORD, Guy. 1997. p. 119.

17

pobreza e lealdade aos homens em troca da promessa de um lugar no paraíso, que seria

alcançado após a morte. Deste modo, o homem deve se resguardar para a obtenção da felicidade

plena numa outra esfera que não a terrena, onde acredita que se vai caso siga os ideais de

comportamento eleitos pela instituição. Hoje, é claro que estes ideais foram estabelecidos para a

alienação dos trabalhadores em relação aos seus intuitos e para a obediência à exploração da

classe dominante, a fim de proporcionar o sustento da mesma.

A sociedade dominada pelo catolicismo assiste a uma forma de espetáculo, onde o poder

humano se transfere para a esfera divina, com a transformação de sua aparência em um Deus

que, freqüentemente, a ele se opõe. Segundo Giullia Crippa,

“essa projeção em uma esfera terrena traduz-se no próprio espetáculo, que realiza a mesma operação. Maior o poder atribuído às divindades, maior o sentimento de impotência humana. Só resta aos homens a contemplação desses poderes, que resulta ser inversamente proporcional à vida individual, tanto que até as ações mais banais são eliminadas da vivência do próprio sujeito para outrem”.12

Com o início da ascensão da classe burguesa, na fase conhecida como Renascimento, se

dá uma profunda transformação político-cultural, pois os interesses políticos da nobreza têm

afinidades com as aspirações desta nova classe em crescimento, já que esta recebe o respaldo

necessário às suas exigências econômicas, apesar de estar longe de alcançar prestígio político. A

espetacularização dos interesses destas classes se dá a partir de toda representação artística que

busca a simetria e a composição perfeita dentro de seus limites físicos. Assim, o crescimento

urbano favorece a atividade comercial que já tinha se originado na época precedente, mas ainda

não tinha uma força expressiva.

Este período estabeleceu a passagem para um outro e mais complexo, cheio de tensões: o

período Barroco. A realidade barroca é marcada por uma oposição entre um poder absolutista,

relacionado com parâmetros divinos, que coordena as novas formações nacionais, e a crescente 12 CRIPPA, Giulia. 2001. p. 03.

18

atividade comercial que busca uma racionalidade do pensamento e uma abertura política e

econômica que não condizia com os interesses da nobreza e, conseqüentemente, do clero.

Conhecimento religioso e os parâmetros científicos elaborados pela ciência da época concorrem

em pé de igualdade para alcançar a consciência. Desta tensão, surge uma espetacularização do

mundo grandiosa e eloqüente que, segundo Giullia Crippa, procura a solução deste conflito

através da metáfora, pois esta é capaz de fornecer “respostas múltiplas em uma única

expressão”.13 A metáfora é capaz de demonstrar mais objetos em uma só palavra e as obras de

arte da época se apossavam dela a fim de criar esta tensão entre o divino e a ciência (como a luz

que penetra no palco da tela de Caravaggio, que deixa escapar toda inquietude da vida do

homem, mas fornece uma tentativa de ordenar a realidade) e proporcionar uma teatralização do

mundo. Isto já nos fornece um indício do que viria a ser a época moderna, onde esta

teatralização do mundo se confunde com a própria realidade de maneira mais forte e eficaz.

Com a classe burguesa no poder, a racionalidade científica passa a comandar o

pensamento humano e exercer seu poder sobre a consciência. O plano teórico da ciência abriu

um espaço onde a liberdade e a igualdade dos indivíduos adquire um lugar privilegiado nas

discussões da época. Porém, esta igualdade e liberdade são constantemente vigiadas com a

criação de um estado de Direito, instituído pelas instâncias de poder. Até então, o espetáculo

exercia sua influência na esfera pública da sociedade. O espaço privado mantinha-se

resguardado até um determinado ponto. O espetáculo dos ritos religiosos, das artes simétricas e

da teatralização barroca se dava na esfera pública, enquanto no mundo doméstico ainda era

possível um certo grau de liberdade humana. Neste espaço, os homens ainda preservavam seus

ideais, mesmo estes sendo, de certa maneira, construído pela influência externa.

13 Idem. p. 08.

19

A sociedade moderna é caracterizada pela vigilância. A visão total da realidade por parte

das classes dominantes se dá, segundo Giullia Crippa, a partir da organização em uma

“estrutura circular que cerca uma torre central, cuja função é manifestar a possibilidade constante de estar vigiando os espaços em volta, sendo, ao mesmo tempo, visível por todos os lados. Claramente, em sua estrutura teórica reflete a nova organização dos iguais que voluntariamente se sujeitam ao direito e às leis, fundamentos do Estado burguês. Esta visualização, que tão toscamente se realiza na concretude do espaço urbano das escolas, das prisões e de outras instituições que necessitam de controle, parece-nos o cume da espetacularização, que desnuda o indivíduo não somente em sua esfera de ação pública, mas também em sua vivência privada. Para que ninguém consiga escapar das malhas do poder, é necessário que se estabeleça constantemente uma ‘aparência’ de acordo com as regras estabelecidas”.14

A racionalidade da sociedade burguesa capitalista se dá sob o disfarce da promessa de

que, a partir da possibilidade do desenvolvimento tecnológico de que é capaz, o homem poderia,

de uma vez por todas, livrar-se do medo da escassez dos bens imediatamente necessários para

sua sobrevivência e alcançar um modo de vida mais digno e libertador. Com isso, conseguiu o

apoio das massas empolgadas com o novo sistema que se deslocou para a realização do trabalho

nas indústrias de montagem para a produção das mercadorias burguesas. O preço disso: ter seus

passos vigiados o tempo todo a partir das organizações desenvolvidas pelos dominadores. Era

necessário que tais operários se adequassem ao modo de vida burguês e deixassem de lado as

necessidades individuais. Assim, a vida passa ser um espetáculo completo, já que o homem abre

mão de suas vontades para se voltar às necessidades do sistema.

O aumento da produtividade tornou necessária a circulação das mercadorias para suprir o

lucro esperado pelos proprietários das fábricas. Deste modo, era necessário criar na população

uma necessidade de consumo das mercadorias e assim, terem de volta em seu poder o dinheiro

gasto para o pagamento dos funcionários. Começa então o desenvolvimento de novas

necessidades para que os homens possam querer consumir e ser cada vez mais escravos do

14 Ibidem. P. 10.

20

sistema econômico, já que o salário recebido pelo trabalho voltava para as mãos do patrão,

criando um círculo vicioso do qual estava cada vez mais difícil escapar.

Para isto, a espetacularização da realidade desempenhou um papel importante para

manutenção da lógica capitalista. O tempo do ócio fora preenchido por estruturas ligadas ao

poder e responsáveis pela criação das novas necessidades. O prestígio teve um papel importante

neste contexto. Um produto poderia não ter utilidade prática para o consumidor, mas o fato

deste poder adquiri-lo fazia com que ganhasse prestígio perante a massa da população. Havia

uma necessidade de se destacar da massa uniforme. A igualdade não era mais almejada, mas a

superioridade perante os outros. O valor de prestígio de um produto era ditado pelas grandes

instituições e o consumo dele era sinal de status. Este é o momento em que Marx assinala que o

valor de uso da mercadoria fora substituído pelo valor de troca.

Segundo Debord, a conseqüência deste fato é uma transformação completa no modo de

ver a vida da sociedade. Para o autor, quando a economia começa a adquirir maior importância

social perante as outras instâncias (políticas e culturais) há um deslocamento do ser para o ter.

Na fase atual da economia, cuja aquisição de prestígio com o consumo das mercadorias está na

base da sociedade, o ter abre espaço para o parecer, onde a imagem conquistada ao adquirir um

produto está muito acima de sua função. Assim, toda realidade individual tornou-se social, ou

seja, o indivíduo é moldado pela sociedade, deve aparentar, pensar e viver do modo como se

espera.15

Começa então a padronização social para o consumo das mercadorias. A racionalidade

do mundo é propagada aos quatro cantos e todos devem parecer com a realidade fabricada. Para

isto se tornar possível, foi necessária a criação de uma série de instituições que possibilitasse a

15 DEBORD, Guy. 1997. p. 18.

21

divulgação do estilo de vida econômico capitalista. O sistema educacional proposto tinha o

papel de exercer sobre o pensamento das pessoas a razão do sistema. Tudo no mundo deveria ter

uma explicação, o que fugisse à regra era relegado à superstição e não poderia ser levado a

sério. As instituições de segurança deveriam preservar esta racionalidade, punindo aqueles que

não se enquadrassem. O espaço público fora preenchido por estabelecimentos comerciais em

busca do consumo por parte da população. O ato de consumir virou divertimento e todo um

aparato técnico fora criado com o fim de entreter a população no seu tempo livre e não deixar

espaço para o livre pensar. Giullia Crippa, conclui que

“o século XIX, marcado pelo capitalismo e imperialismo europeus, elabora o espetáculo e o concede, como diversão, às massas trabalhadoras, mas produz, na realidade, a alienação do espectador em benefício do objeto contemplado”.16

A criação dos meios de comunicação de massa foi a invenção mais bem sucedida pelos

detentores do poder. Através deles, foi possível exercer a dominação sobre o indivíduo fora do

horário de trabalho. Os jornais buscavam a informação onde quer que ela estivesse e oferecia a

explicação mais plausível; o rádio invadiu as casas com uma programação padronizada; o

cinema, o meio técnico que prometia, segundo Benjamin, uma democratização da arte (in A

Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica), serviu, ao contrário, para fortalecer a

massificação, pois difundia para o expectador a racionalidade da realidade fabricada. Do mesmo

modo a televisão, mas com um poder ainda maior, pois ela fora capaz de invadir as casas para

inculcar nos telespectadores uma reprodução da razão do sistema, tomando o espaço do diálogo

e da possibilidade de libertação da realidade opressora. O pequeno espaço para o diálogo depois

do pesado trabalho exercido nas fábricas foi preenchido pela programação televisa que não fazia

nada mais que reforçar a alienação do trabalhador.

16 CRIPPA, Giulia. 2001. p. 11.

22

Todos estes instrumentos produzidos a partir do século XIX, trabalharam a serviço da

resignificação de tudo que se criou até então para o uso e consumo da sociedade proposta e para

a criação de novos signos mais específicos e eficazes. Tudo deve ser objeto de consumo.

A única instância que até então fora capaz de escapar da espetacularização do mundo foi

a verdadeira arte autônoma. A criação artística sempre forneceu aos indivíduos a possibilidade

de abstração da realidade imediata ao recriar um mundo onde suas necessidades mais humanas

eram levadas em consideração e concretizadas. Porém, toda uma indústria fora criada para

promover a dissolução artística e, conseqüentemente, seu enfraquecimento. A indústria cultural,

termo atribuído por Adorno e Horkheimer aos instrumentos criados pelo sistema para a

padronização da cultura, ou seja, aos meios de comunicação de massa, ressignifica o sentido das

obras de arte para o consumo. Deste modo, até mesmo a arte tem passado por um período de

enfraquecimento total e está tendo que procurar novas formas de expressão capazes de continuar

promovendo sua função.

É verdade que os novos aparatos técnicos, desenvolvidos pela economia burguesa

capitalista, foram capazes de proporcionar ao indivíduo a supressão de suas necessidades

básicas, porém a promessa de uma forma de vida social mais cômoda e agradável, com a

diminuição do trabalho despendido está longe de se resolver. Pelo contrário, quanto mais o

tempo passa, mais se trabalha e temos menos tempo disponível para realização de nossa

felicidade e bem estar. A grande dificuldade que encontramos está no fato de desconhecermos a

felicidade ou acharmos que ela se esconde atrás do consumo das mercadorias. O novo

capitalismo está marcado por instituições fragmentárias e instáveis que refletem esta

instabilidade na sociedade. Richard Sennet em “A cultura do novo capitalismo”, revela que

apenas um certo tipo de ser humano é capaz de adquirir sucesso em condições sociais instáveis e

23

fragmentárias. Segundo o autor, este tipo ideal tem de enfrentar três desafios: o primeiro seria o

controle sobre o tempo, pois, como tudo muda numa velocidade tremenda, o indivíduo é

obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida, sobrando pouco espaço para ter um

sentimento sobre si próprio. Outro desafio está relacionado ao talento. Talento hoje é sinônimo

de renovação. Como tudo muda numa velocidade cada vez maior, o indivíduo propício ao

sistema seria aquele capaz de desenvolver novas habilidades cada vez que o mercado exige.

Deste modo, o indivíduo passa a ser medido mais pela sua capacidade de adequação às

mudanças do que pelo trabalho que realizou. Isto leva ao terceiro desafio que é a tarefa de

descartar o passado estando sempre aberto à novidade, perdendo assim a possibilidade de uma

narrativa consistente de sua vida. Este desafio está diretamente relacionado com o consumo. Na

necessidade de sempre estar consumindo, o ser humano deve abandonar o passado e tudo aquilo

que foi construído e voltar-se para o consumo de produtos “novos”. Segundo o autor, as novas

formas de trabalho, talento e consumo não fornecem ao indivíduo a liberdade esperada.

Isto faz com que devamos começar a dar maior importância às atividades que realmente

oferecem uma oportunidade para escapar à alienação. Se a atividade artística é a única

possibilidade de resistência contra a lógica de um sistema que embota as consciências e afasta o

homem de sua natureza, é necessário identificar o seu valor para a sociedade e apontar quais são

os caminhos necessários para sua sobrevivência.

24

2.1 A ARTE PRÉ E PÓS-REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

“- Ah! Mais uma vez – disse Rodolphe. – Sempre os deveres; estou cansado dessas palavras. São velhos engodos bem vestidos, que continuamente nos sussurram aos ouvidos:

‘O dever! O dever!’ Por Deus! O dever é sentir o que é grande, amar o que é belo, e não aceitar todas as convenções

da sociedade, com as infâmias que ela nos impõe.” (Flaubert, “Madame Bovary” – p. 150)

A arte sempre desempenhou um papel primordial no âmbito da cultura. Os objetos

estéticos produzidos pelo homem contêm a expressão particular que dá testemunho de uma

existência plena e autêntica. É a partir destes objetos que podemos identificar a totalidade

através da diversidade expressiva de cada elemento. Numa sociedade composta de várias

coletividades distintas, onde cada uma tem um modo diferente de se expressar perante o mundo,

a obra de arte se apresenta como a forma mais autêntica desta expressão, devido a sua natureza

descompromissada com a realidade opressiva do trabalho. A soma destas obras fornece o

testemunho da possibilidade de uma coesão social que respeita a diversidade pelo menos no

âmbito da cultura.

Nas sociedades primitivas, cada tribo possuía um modo de encarar as diversidades da

vida. É através da criação dos mitos que estas tribos acreditavam estar a salvo da força da

natureza. As várias expressões míticas dão testemunho de uma sociedade que conseguiu se

expressar e entender o mundo a seu jeito, ou seja, de uma forma mais autêntica que nas

sociedades espetaculares. O testemunho mais completo desta forma de encarar o mundo é dado

pelos elementos artísticos que tornavam os mitos mais inteligíveis.

25

Com a dissolução destas sociedades e ascensão dos grandes impérios, os mitos passam

por um processo de unificação. As várias experiências míticas vão sendo reduzidas a uma

expressão cultural ligada às instâncias de poder. Mas, apesar da unificação, ainda existe o mito.

O encantamento mítico do mundo. Quando o mundo espetacular é concebido como aquilo que é

“certo” e almejado por todo ser social, esta unificação nada mais é que uma nova forma mítica,

já que a essência humana é heterogênea e natural e não homogênea e fabricada. A partir deste

ponto é que se começa a notar a decadência da possibilidade de negação do mundo do trabalho e

da realidade opressiva por grande parte da humanidade. Com a dissolução dos vários modos de

se ver o mundo, o ser é privado de conhecer seus impulsos mais íntimos e obrigado a se moldar

no mundo criado pela elite. Precisa desenvolver qualidades para estar enquadrado neste mundo

e, desta forma, vai se distanciando do seu verdadeiro ego.

Para a sociedade pré-industrial já dividida em classes, restava, pelo menos à classe mais

favorecida e instruída, um modo de escapar da opressão da realidade comum através da

expressão artística. Esta porção social também sofria com a imposição da realidade social que

fora estabelecida com padrões, deveres e direitos, porém, no seio de sua individualidade, era

possível escapar através da experiência artística. Em contato com tais obras era possível criar

um mundo à parte capaz de expressar seus verdadeiros anseios. Era um mundo alienado, mas

consciente ao mesmo tempo. Um espaço de negação do status quo.

As verdadeiras obras de arte desta época não retratam a imagem dos príncipes, lordes,

reis, ou seja, verdadeiros ícones da realidade estabelecida, mas é na figura da prostituta, da

adúltera, do bêbado, do poeta, do tolo, do criminoso, todos ícones da contracultura, que o

indivíduo vai encontrar alento para suas necessidades. Nestas figuras, o receptor da arte pré-

industrial era capaz de dar movimento aos seus pensamentos mais íntimos e às suas

26

necessidades mais vitais. No mundo regido por estes personagens, via a força subversiva da arte

e sua possibilidade de destruição da “verdade”. Possibilidade, porque, de fato, nunca perturbou

o status quo, devido ao fato de sempre ter sido considerada de uma ordem “superior”, que podia

muito bem coexistir com o outro mundo, mas que dava aos fatos seus verdadeiros nomes. Nos

livros, por exemplo, a “realidade” era freqüentemente posta em cheque quando se via na figura

do personagem seus sentimentos e indagações mais autênticas, o que não se vê no dia-a-dia.

Aqui é possível sentir amor, ódio, tolerância e romper com a imagem criada pelo mundo que

pretende ser homogêneo e alienador. Este é o espaço onde, a partir da tragédia e dos romances,

os sonhos e ansiedades estão sendo representados de maneira autêntica e não criados e

consumidos.

Depois das horas de trabalho e obrigações, estas pessoas se dirigem aos grandes teatros,

museus, concertos, salões de exposição ou qualquer lugar que permita uma alienação do

presente para entrar em contato com o mundo da negação, mais autêntico e alentador. O fato é

que, na nossa sociedade capitalista industrial, tanto estes espaços quanto as angústias e os

sonhos, estão sendo dissolvidos por assimilação. Ou seja, o mundo bidimensional (social X

artístico) está aos poucos se diluindo e a alienação artística está sendo incorporada pela

realidade social. Muitos dos lugares “sagrados” onde antes reinava o mundo da arte estão sendo

substituídos pelas grandes corporações como shopping centers, indústrias, igrejas,

“megastores”, etc., e as obras estão sendo misturadas com anúncios das mercadorias produzidas

pelo sistema. É normal, hoje, entrarmos num supermercado e ouvirmos música clássica para a

divulgação de produtos industrializados. Os livros que permitiam àquela parte da população

uma alienação do mundo social estão sendo vendidos como clássicos, ao lado de bestsellers

inúteis e massificadores e, deste modo, vão perdendo sua característica transgressora ao

27

incorporar à realidade. O espaço público foi sendo tomado por elementos relacionados ao novo

tipo de realidade e sobram poucos espaços para exercer uma fuga qualitativa da realidade

opressora. Segundo Marcuse, o valor de verdade das obras de alienação artística

“dependia em alto grau de uma dimensão do homem e da natureza não-abrangida e não-conquistada, dos limites estreitos impostos à organização e à manipulação, do ‘núcleo insolúvel’ que resistia à integração. Na sociedade industrial plenamente desenvolvida, esse núcleo insolúvel é progressivamente debastado pela realidade tecnológica. Obviamente, a transformação física do mundo acarreta a transformação psicológica de seus símbolos, imagens e idéias. Obviamente, quando cidades e rodovias e Parques Nacionais substituem vilas, vales e florestas; quando embarcações a motor correm nos lagos e aviões cortam os céus – então essas áreas perdem o seu caráter como uma realidade qualitativamente diferente, como áreas de contradição”.17

A arte perde seu lugar de expressão e se confunde com o mundo administrado. Neste

momento deixa de ser arte e vira mercadoria, perde seu caráter de recusa. Adorno, em Filosofia

da Nova Música, alerta para o fato de como a perda do espaço próprio para a exposição do

artístico diminui seu caráter de negação e se transforma em consumo, devido à impossibilidade

de concentração. Segundo o autor, tomando como exemplo a música, relata que esta, ao virar

mercadoria e invadir um espaço que não é só seu, ou seja, tendo que dividir a atenção com

outras atividades diárias, faz com que o ouvinte a receba de maneira desconcentrada,

enfraquecendo e, até mesmo, destruindo seu poder de negação. É diferente de quando o ouvinte

vai até um concerto e está pré-disposto para recebê-la e concentrar-se nela. Deste modo, para

que não incomode os ouvintes enquanto realizam outras tarefas, o produto musical deve ser

simples, deixando de lado seus aspectos mais difíceis causando uma regressão na audição. O

mesmo acontece com os outros sentidos em relação às outras artes. Assim, os produtos culturais

deixam de ser despreocupados e autênticos e passam a serem direcionados para a realidade

17 MARCUSE, Herbert. 1967. p. 77.

28

opressora, abandonando assim seu caráter artístico, pois foram privados de seu espaço de

expressão próprio.

A problemática relacionada com a mudança do espaço público acarreta uma

transformação psicológica importante também para o entendimento das mudanças ocorridas.

Com o desenvolvimento da ciência, principalmente da psicologia, sociologia e medicina,

juntamente com as novas tecnologias, as angústias dos personagens passam a não fazer mais

sentido, pois estas disciplinas apresentaram uma resposta objetiva. Deste modo, todas as

indagações de Tristão e Isolda, de Madame Bovary, Romeu e Julieta, entre milhares de outros

personagens, são explicadas e “sanadas” pelo psicólogo de plantão. Os estilos de vida que

ofereciam resistência à realidade social (a prostituta, a adúltera, o tolo, o louco, o criminoso)

hoje são vistos como desvios da mesma forma de vida da estrela de cinema, do homem viril, da

dona de casa simpática. Segundo Marcuse, “não mais imagens de outro estilo de vida, mas

aberrações ou tipos da mesma vida, servindo mais como afirmação do que como negação da

ordem estabelecida”.18

A força da obra de arte, seu caráter de subversão encontrava-se no seu teor, ou seja, na

sua forma. Lendo um bom livro ou ouvindo uma boa música era possível redimensionar o real.

O mundo administrado era colocado em segundo plano e não extinto, mas entendido como

realmente é. Na forma das obras, a forma do “real” era analisada de um modo mais preciso em

relação aos seus atos e efeitos e isso representava uma grande ameaça. Com a assimilação destas

obras no seio da sociedade de consumo, esta contradição foi aplanada e a arte perdeu sua força

contrária.

18 Idem. p. 71.

29

A maior invenção da sociedade capitalista para conseguir tal poder assimilador foi o

fortalecimento da razão. A racionalidade tecnológica foi capaz de enquadrar toda negação em

material racional e só é racional aquilo ou aquele que está dentro dos parâmetros desta

sociedade. Caso contrário, são aceitos, mas discriminados e usados como exemplo de fraqueza.

Deste modo, toda forma de negação sucumbe ao processo racional industrial. A indústria

capitalista, a partir do progresso técnico, foi capaz de destruir o espaço da expressão artística,

causando uma regressão sensitiva e psicológica no homem, substituindo suas necessidades vitais

pela sua equivalente fabricada.

Todo este quadro é claro que não foi configurado sem razão. O problema foi que esta

classe privilegiada esqueceu que atrás de si escondia uma enorme parcela da população que há

muito fora esquecida e privada deste mundo à parte, tendo que se contentar com a dura

realidade. E toda assimilação sofrida pelo mundo das belas artes, segundo Marcuse, “estabelece

igualdade cultural”.19 A desculpa de uma pseudo-igualdade cultural entre as classes facilitou e

muito o advento de novas formas ditas “artísticas” que, com a desculpa de serem mais

democráticas por serem acessíveis a todos, foram trazendo para o dia-a-dia (já que nem todos

podiam entrar no teatro ou adquirir um livro) o seu conteúdo. É lógico que isso só foi possível

devido a uma série de aparatos criados pela indústria e para esta mesma indústria difundir e

vender seus produtos e serviços. Porém, veremos a seguir que esta mudança está longe de ser

encarada como uma democratização da arte, mas uma massificação cultural que nem de longe

veio suprir as necessidades vitais da outra parte da população. Segundo Marcuse,

“O fato de as verdades transcendentes das belas-artes, de a estética da vida e do pensamento terem sido acessíveis apenas a uns poucos ricos e instruídos importou em falha de uma sociedade repressiva. Mas essa falha não é corrigida por brochuras, educação geral, discos ‘long playing’ e abolição do traje a rigor no teatro e nos concertos. Os privilégios culturais expressaram a injustiça da liberdade, a contradição entre ideologia e realidade, a separação entre produtividade intelectual e

19 Ibidem. p. 76.

30

material; mas também garantiram um campo protegido no qual verdades feitas tabus podiam sobreviver com integridade abstrata – afastadas da sociedade que as suprimia”.20

20 Ibidem. p. 76.

31

2.2 A INDÚSTRIA CULTURAL

“A propaganda põe a gente pra correr atrás de carros e roupas. Trabalhar em empregos que odiamos para

comprar merdas inúteis. Somos uma geração sem peso na história. Sem propósito ou lugar. Não temos

uma Guerra Mundial. Não temos a Grande Depressão. Nossa Guerra é a espiritual. Nossa Depressão, são nossas

vidas. Fomos criados através da TV para acreditar que um dia seríamos milionários e estrelas de cinema. Mas não somos. Aos poucos tomamos consciência do fato.

E estamos muito, muito putos.” (Diálogo retirado do filme “Clube da Luta” de David Fincher)

Com a promessa de uma vida melhor para a população a partir das novas descobertas

científicas que possibilitariam, a partir do progresso dos meios tecnológicos, um acúmulo de

recursos que iriam sanar as necessidades essenciais da população, a burguesia conseguiu a

aprovação da classe subalterna ao novo estilo de vida que estava entrando em vigor. Esta classe

ofereceria a mão de obra para o trabalho nas indústrias em troca de uma vida melhor e mais

digna, que, a partir do aumento da produtividade, aos poucos, iria ser poupada do trabalho

pesado, para, então, poder desfrutar de seus bens. É desta forma que o capitalismo consegue

aprovação da maioria que há muito fora esquecida pelas instâncias de poder.

Porém, esta promessa, além de até hoje não ter sido cumprida, significou apenas uma

nova desculpa para um aprisionamento ainda maior das camadas mais pobres. Antigamente, a

maioria era discriminada por não ter acesso à riqueza, a alta cultura e ser forçada a desenvolver

um trabalho em regime escravocrata que era mantido a partir da força exercida pelos mais

poderosos. Mas, ainda era possível ter consciência de tudo. Com o advento do capitalismo e o

desenvolvimento dos meios de produção estamos assistindo a um aprisionamento também da

consciência e isto só foi possível a partir de uma série de meios desenvolvidos pelos donos dos

32

meios de produção, tendo em vista um acúmulo dos produtos em suas mãos e uma concentração

ainda maior das riquezas proporcionadas por eles. Com o desenvolvimento do sistema

capitalista, parece cada vez mais claro que nunca houve interesse por parte da classe detentora

do capital de prover uma melhoria nas condições de vida da humanidade, apenas um acúmulo

cada vez maior de dinheiro e poder nas suas mãos. Para isso, foi preciso suprir as necessidades

imediatamente básicas para a sobrevivência dos oprimidos e educá-los para um mundo de

repressão e de trabalho que seria a base para a manutenção do sistema econômico.

A burguesia elaborou uma realidade condizente com seus interesses e embutiu, nas

consciências dos demais, a defesa desta estrutura pré-fabricada para defendê-los. Deste modo,

foram desenvolvidas instituições para divulgar e educar a população para um novo tipo de vida

mais repressivo e caótico do que qualquer outro estágio na história.

O sistema não se contentava em desenvolver produtos capazes de suprir as necessidades

de todos, mas queria a concentração cada vez maior de riquezas e prestígio nas mãos dos donos

das fábricas e, para isso, deveria criar novas necessidades que seriam satisfeitas por novos

produtos e, assim, movimentaria toda a economia do sistema. Os trabalhadores, que eram os

responsáveis pela produção nas indústrias, recebiam como recompensa uma quantia em dinheiro

que permitia a aquisição de bens para o sustento e outros produtos que foram fabricados a fim

de que todo o dinheiro voltasse para as mãos dos patrões. Deste modo, conseguiam manter os

trabalhadores nos campos de produção e garantiam seu status perante os demais. Para isso, foi

criada uma série de prerrogativas que deveriam ser inculcadas na cabeça do povo para garantir a

coesão social direcionada a tal fim. O homem deveria deixar de buscar a satisfação de seus

instintos naturais para “melhor” viver em comunidade. Foram desenvolvidas instituições para

garantir a coesão, instituições estas responsáveis em disseminar os deveres que deveriam ser

33

cumpridos para o novo tipo de civilização. A família, a escola e a igreja foram as primeiras

instituições responsáveis em disseminar as regras de conduta para adequar a massa ao sistema.

Os poderosos criaram o homem ideal para o sistema e tais instituições foram responsáveis em

educá-los para um pensamento racionalmente voltado às leis de primeira ordem. Assim, o

indivíduo, evoluindo neste sistema, aprende que, para melhor viver dentro desta realidade, é

preciso seguir o princípio da lei e da ordem e, deste modo, vão transferindo o aprendizado de

geração a geração. Tudo que escapasse da razão era tido como desvio e seria discriminado

dentro da sociedade. Porém, este êxito só foi amplamente alcançado com a criação de meios

mais abrangentes e, conseqüentemente, mais eficazes: os meios de comunicação de massa. Estes

tinham a tarefa de transformar a cultura em mais um campo de exploração econômica, pois com

a ajuda deles seria possível administrar o trabalhador mesmo fora dos campos de produção.

Através dos meios de comunicação de massa os bens simbólicos alcançavam um público maior

e ganhavam mais aprovação por uma massa que há muito fora privada de tais bens. Porém,

diferentemente do que sempre acontecera com as obras do espírito, estes bens tinham como

pano de fundo a estética da mercadoria, pois escondiam atrás de si o interesse do sistema de

produção, que transformava a arte em entretenimento. Como as mercadorias precisavam ser

padronizadas, pois não era possível e muito menos rentável a produção de produtos

diferenciados, era necessário criar também um público mais uniforme e que tivesse a

necessidade das mesmas mercadorias. No meio de um conjunto formado por pessoas

infinitamente diferentes, seria possível despertar neste conjunto um interesse pelas mesmas

coisas? Este seria o trabalho de todas estas instituições, tendo como força maior a nova indústria

do entretenimento: os meios de comunicação. Segundo Marcuse,

34

“como a sociedade afluente depende cada vez mais da ininterrupta produção e consumo do supérfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição, os indivíduos têm de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais”.21

Assim, as instituições, os meios de comunicação e as mercadorias trabalhavam juntos a

fim de manter coesa a nova realidade e moldar os indivíduos da maneira mais conveniente.

Partindo deste princípio, os meios de comunicação de massa assumem um papel de altíssima

relevância para o sistema, porque, além de formarem um poderoso instrumento de divulgação

das mercadorias produzidas, poderiam manipular a consciência dos consumidores, divulgando a

lógica da realidade repressiva, mesmo fora do ambiente repressor por excelência: as linhas de

produção. Portanto, o espaço que seria reservado para o descanso do trabalho pesado e para o

ócio, quando as pessoas poderiam voltar o pensamento para si, fora ocupado por toda uma

indústria de entretenimento, que nada mais fazia além de renovar a repressão ao criar toda uma

cultura de consumo. Não foi à toa que os meios de comunicação de massa foram denominados

de Indústria Cultural por um grupo de estudiosos preocupados com esta configuração da

realidade. Com a missão de desinformar e desensibilizar a população, o espaço da fantasia

individual fora preenchido por uma produção de materiais culturais difundidos a fim de

defender uma nova lógica que vendia uma estética voltada ao lucro, e as fantasias individuais

foram substituídas por outras mais interessantes aos poderosos. As necessidades instintivas são

trocadas por necessidades fabricadas. O grande sonho da liberdade é trocado pelo sonho de se

ter uma roupa nova, um carro, uma casa mais aconchegante, todas mercadorias geradas pela

indústria capitalista. Rodrigo Duarte apresenta uma noção bem apropriada ao conceito de

Indústria Cultural. Segundo ele, este termo

“evoca a idéia, intencionalmente polêmica, de que a cultura deixou de ser uma decorrência espontânea da condição humana, na qual se expressaram tradicionalmente, em termos estéticos, seus

21 MARCUSE, Herbert. 1999. p. 13.

35

anseios e projeções mais recônditos, para se tornar mais um campo de exploração econômica, administrado de cima para baixo e voltado apenas para os objetivos supramencionados de produzir lucros e garantir adesão ao sistema capitalista por parte do público”.22

Nesta nova sociedade, a cultura, que sempre foi à busca de uma unidade entre os povos a

partir de representações humanamente mais autênticas, agora, está sendo fabricada e

transformada em espetáculo. O espetáculo da sociedade moldada. Os meios de comunicação de

massa elegem os modelos de comportamento (traduzido na figura das celebridades) e o novo

estilo de vida e os divulgam através da fotografia, do cinema e da televisão para prover a

manutenção do que fora estabelecido. A cultura vira também mercadoria. E com a evolução dos

tempos assistimos ao poder que os produtos pseudoculturais, já que cultura seria uma

representação natural e não imposta, alcançaram em nossa comunidade e transformaram na

principal fonte de riqueza para os empresários.

No início da ascensão dos meios de comunicação de massa, estes se mostravam, até

meados do século XX, ainda como monopólios culturais que serviam de âncora para os

interesses dos setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade, química. Hoje,

dividem com estes setores o ramo de maior prestígio na sociedade, assim como já era esperado

por Debord na década de sessenta quando escreveu seu livro “A Sociedade do Espetáculo”:

“A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados dessa tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos já açambarca anualmente 29% do produto nacional dos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade do século XX o papel motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século XIX”.23

O que torna os meios de comunicação de massa e, conseqüentemente, os bens culturais

por eles produzidos tão eficientes é o fato deles reproduzirem um tipo de realidade que condiz

22 DUARTE, Rodrigo. 2003. p. 09. 23 DEBORD, Guy. 1997. p. 126.

36

com os interesses dos poderosos, moldando as pessoas para desenvolver seu papel de

trabalhador, consumidor e defensor da realidade. O jornal seleciona, divulga e oferece uma

interpretação aos fatos de modo conveniente para a manutenção de um status quo; o rádio

divulga canções de fácil recepção e aceitação ao promover uma nova estética musical baseada

na repetição, o trabalho de criação do músico é o de desenvolver uma canção que alcance

sucesso perante o gosto da massa que poderá recebê-la de modo distraído e assim poder utilizá-

la para a divulgação das mercadorias; o cinema, que segundo Benjamin seria o grande

responsável pela democratização artística, por se tratar de um veículo de reprodução mais

completo e capaz de atingir um número muito grande de telespectadores, ao invés de produzir

bens capazes de satisfazer aos verdadeiros anseios da comunidade, transmite produtos

massificados que nada mais são do que a reprodução da lógica da sociedade capitalista; o

mesmo ocorre com a televisão, mais um meio interessado em proporcionar no receptor uma

imediata identificação com a realidade; em um grau ainda maior, as novas tecnologias digitais

(computação, realidade virtual, tv digital, internet) onde esta realidade parece cada vez mais

perfeita. Segundo Adorno, “cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais

como as modelou a indústria em seu todo”.24 Os bens da indústria cultural fazem o público ver

que a sua vida é igual ao que foi retratado e não sobra espaço para sua capacidade cognitiva,

pois a velocidade dos fatos não deixa espaço para o pensamento agir e, assim, a mente é

facilmente manipulada por quem está por trás:

“A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o expectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais

24 ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. 1985. p. 119.

37

característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. O esforço, contudo, está tão profundamente inculcado que não precisa ser atualizado em cada caso para recalcar a imaginação”.25

O sentido almejado pelos meios de comunicação é o de repetir, durante o descanso do

trabalho na fábrica, a realidade fatigante do dia-a-dia.

Mais de um século depois do surgimento das indústrias pesadas, concluímos que a

possibilidade de reverter este quadro está muito longe de ser alcançada, apesar de estarmos

trabalhando cada vez mais e, conseqüentemente, mais infelizes, pois a promessa feita no início

do processo de industrialização até hoje não fora cumprida, e o principal bem produzido pelo

sistema é um mundo cheio de neuroses, guerras, insatisfações e stress, já que a ciência e

tecnologia prometem um mundo perfeito, mas não conseguem cumprir.

Como o ser humano é um ser social por natureza e já está embutido na cabeça da maioria

a lógica do sistema, fica difícil encontrarmos uma saída, pois quem não se enquadra no esquema

é rejeitado não apenas pelos detentores do poder, como também pelos próprios semelhantes que,

acostumados com a realidade, discriminam quem não coopera:

“O povo, a maioria das pessoas na sociedade afluente, está do lado daquilo que é – não com o que podia e devia ser. E a ordem estabelecida é suficientemente forte e eficiente para justificar essa adesão e garantir a sua continuidade”.26

Hoje, com aparatos técnicos mais modernos e capazes de reproduzir a realidade de modo

cada vez mais eficiente, trabalha-se para aproximar o mundo virtual daquilo que se

convencionou chamar de realidade. Quando isso acontece, entramos em um estágio ainda mais

desesperador, pois perdemos a referência do que é realidade social e realidade virtual. No

momento que realidade e ficção se misturam, acabamos abandonados num mundo onde a 25 Idem. p. 119. 26 MARCUSE, Herbert. 1999. p. 21.

38

natureza se perdeu e a arte deixou de existir. Nem natureza, nem representação, apenas

aparência.

Rodrigo Duarte ressalta que neste nosso século, a tendência da indústria cultural é

“a de um controle crescente sobre a percepção que seus consumidores têm de seu meio ambiente, objetivando um envolvimento cada vez maior nos menores detalhes de sua vida, de modo a conquistá-los, seja para a compra do lançamento da semana ou para a aquisição da certeza de que não é possível viver de uma forma fundamentalmente diferente do que aquela na qual eles estão vivendo”.27

Marcuse acredita que, assim como foi preciso uma série de revoluções capazes de

proporcionar um maior desenvolvimento das forças produtivas, uma verdadeira revolução hoje

seria aquela capaz de se guiar no sentido inverso, ou seja, acabar com o crescente

superdesenvolvimento e com a mentalidade excessivamente repressiva:

“A civilização ocidental sempre glorificou o herói, o sacrifício da vida pela cidade, o Estado, a nação; raramente indagou se a cidade estabelecida, o Estado ou a nação eram dignos de sacrifício.(...) A questão está sendo agora formulada – formulada de fora – e entendida por aqueles que se recusam a fazer o jogo dos afluentes; é a questão de saber se a abolição desse todo não será uma precondição para a emergência de uma cidade, Estado, nação, verdadeiramente humanos”.28

O problema é que estes que se recusam a entrar na dança não passam de uma minoria

esmagadora e sem força, e para despertar a atenção de uma parcela cada vez maior de

seguidores é necessário criar novas experiências capazes de despertar na maioria um reencontro

com sua verdadeira natureza.

27 DUARTE, Rodrigo. 2003. p. 182. 28 MARCUSE, Herbert. 1999. p. 19.

39

2.3 O PAPEL DA ARTE NO CAPITALISMO

Os estudos da psicologia freudiana renderam muitas contribuições para podermos

entender melhor como a mente individual vai se modelando pelo ambiente social. Segundo ele,

a evolução histórica da mente humana é marcada por uma crescente repressão. Para que uma

civilização tenha êxito é necessário que os homens deixem de dar valor a seus objetivos

primários, ou seja, a busca pelas suas necessidades básicas naturais, em favor da realidade

externa. A partir daí, sua mente, que estava voltada apenas a satisfazer seus gostos, vai cedendo

um espaço para o que vem de fora. Freud declara que a mente humana é composta por processos

inconscientes e conscientes. O inconsciente é governado pelo que se chama de princípio de

prazer. Tudo que é capaz de satisfazer os instintos e vontades próprias do ser humano está

vinculado a esta parte do cérebro. Aqui também é o espaço onde se coloca pra fora tudo que

causa insatisfação, como a dor, por exemplo. Com o advento do mundo civilizado, o indivíduo

começa a perceber de forma traumática que é impossível a satisfação total de seus prazeres e

começa a trabalhar uma nova forma de comportamento. Para isso é preciso que algo bloqueie o

inconsciente e não deixe escapar aspectos de sua intimidade que atrapalham sua vida social. Sua

mente então vai sendo modelada também pelo que se apresenta a ela de fora. Isto se denomina

princípio de realidade, que é manipulado pelo consciente, que bloqueia ou não os prazeres

guardados no inconsciente. Estas duas instâncias são responsáveis pela identidade do ser social:

o que psicologicamente se denomina de ego.

Numa sociedade extremamente repressiva, como a industrial, que a todo tempo impõe

modos de agir e pensar, o indivíduo esquece de suas necessidades inconscientes e passa a ser

modelado pela racionalidade do sistema. Segundo Marcuse,

40

“Com o estabelecimento do princípio de realidade, o ser humano que, sob o princípio de prazer, dificilmente pouco mais seria do que um feixe de impulsos animais, converte-se num ego organizado. Esforça-se por obter ‘o que é útil’ e o que pode ser obtido sem prejuízo para si próprio e para o seu meio vital. Sob o princípio de realidade, o ser humano desenvolve a função da razão: aprende a ‘examinar’ a realidade, a distinguir entre bom e mau, verdadeiro e falso, útil e prejudicial. O homem adquire as faculdades de atenção, memória e discernimento. Torna-se um sujeito consciente, pensante, equipado para uma racionalidade que lhe é imposta de fora. Apenas um modo de atividade mental é ‘separado’ da nova organização do aparelho mental e conserva-se livre do domínio do princípio de realidade: é a fantasia, que está ‘protegida das alterações culturais’ e mantém-se vinculada ao princípio de prazer”.29

Se concordamos com este autor sobre o que foi dito anteriormente a respeito do fato de

escapar desta realidade opressora a partir de um novo tipo de revolução, devemos buscar

medidas que fujam ao controle da sociedade. Esta revolução para ser eficiente deve percorrer o

caminho contrário do superdesenvolvimento. Porém, no momento em que realidade e ficção se

confundem, pois já não se pode determinar onde começa uma e termina outra, a consciência da

população se mostra modelada pelos interesses do sistema e o inconsciente coletivo esquecido

em algum lugar distante, a idéia de qualquer tipo de revolução é praticamente incompatível com

o presente.

Desse modo, a revolução começa quando conseguimos ativar o inconsciente das pessoas

e fazer florescer novamente seus prazeres instintivos. O primeiro passo para isso seria conceder

um lugar maior à fantasia, ao escape da realidade fabricada para colocá-la em cheque. Esse

papel que anteriormente era desempenhado pela arte, hoje, quando os bens culturais estão

ocupando seu lugar, é imprescindível uma nova tática de defesa: fazer com que a atividade

artística seja mais penetrante na realidade a fim de libertar o princípio de prazer.

Segundo Adorno, existe uma enorme diferença entre a verdadeira obra de arte e as obras

medíocres da indústria cultural. E isto se revela no estilo. Para a obra de arte autêntica o estilo

nada mais é que uma promessa que nunca será alcançada, já que os produtores e receptores dos

29 MARCUSE, Herbert. 1999. p. 35

41

bens são plurais em sua essência. Alcançar um estilo único seria incompatível com a verdadeira

universalidade. Ao contrário da obra medíocre, que em conjunto com as demais busca o estilo

uno da realidade fabricada, o que faz dela apenas uma imitação. Assim fica reduzida ao estilo,

enquanto a verdadeira arte se mostra perdida na busca do estilo:

“(...) é tão somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade -, mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade. Ao invés de se expor a esse fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto é, ao sucedâneo da identidade (...) Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre contrário à cultura. O denominador comum ‘cultura’ já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração. Só a subsunção industrializada e conseqüente é inteiramente adequada a esse conceito de cultura”.30

Como fazer para despertar no público o gosto pela verdadeira arte, já que esta necessita

de um esforço intelectual por parte de um receptor que já não está mais acostumado a

desenvolver a faculdade de pensar por si próprio?

As obras medíocres foram eficazes em fazer regredir a característica humana

responsável por nos diferenciar das outras espécies animais: exercer o pensamento. Rodrigo

Duarte relata de modo bem apropriado como os bens culturais desenvolvidos pela mídia

conseguiram destruir nossa capacidade cognitiva. O autor toma como base de sua análise o texto

de Kant sobre a faculdade de julgar os objetos externos: “esquematismo dos conceitos puros do

entendimento”. Quando julgamos os objetos externos buscando uma explicação total, isto é,

uma análise empírica, um entendimento que precise ser comprovado, deixamos de exercer nossa

faculdade primordial, pois, em tais objetos , ou categorias de objetos, nada há de propriamente

empírico, ou seja, um bem cultural deve ser aberto por natureza, não precisa ser comprovado, o

30 ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. 1985. p. 123.

42

que geraria uma heterogeneidade de julgamentos cuja confluência levaria a uma forma de

conhecimento objetivo do mundo externo ao sujeito. O esquema que o sujeito utiliza para julgar

estes objetos é a soma de duas coisas: sensibilidade (faculdade da intuição) e entendimento

(conceitos apreendidos). O meio termo entre os dois traria o resultado do julgamento. Quando

este esquema é usurpado por um agente externo ao sujeito, o mesmo perde sua capacidade de

interpretar os dados fornecidos pelos sentidos de modo autêntico. Segundo Duarte, a indústria

cultural é responsável pela “expropriação do esquematismo”. Exemplificando este fenômeno, o

autor toma como base o cinema:

“O pressuposto técnico da usurpação do esquematismo, no caso do cinema, foi a invenção do filme sonoro na década de 20, a qual permitiu que a mercadoria cultural se tornasse mais e mais um prolongamento da vida cotidiana e dela não se distinguisse mais. Isso contribuiu para o aparecimento do que os autores (Adorno e Horkheimer) chamam de uma ‘reprodução simples do espírito’, que – numa paráfrase ao conceito econômico de Marx para uma reprodução apenas rotineira do capital – significa o preenchimento daquela necessidade de ‘transcendência’ mencionada anteriormente, sem que ocorra qualquer amadurecimento, qualquer crescimento espiritual dos indivíduos”.31

A indústria produz o que se espera e o consumidor fica feliz quando o objeto analisado é

o que ele prevê. O papel da arte dentro desta realidade seria o de produzir o imprevisto, aquilo

que o indivíduo não espera. Portanto, a verdadeira obra de arte é aquela que choca a expectativa

do sujeito e o faz transcender esta reprodução simples do espírito, fornecendo um crescimento

espiritual aos indivíduos.

Acredito que várias foram as obras que buscaram tal fim. Desde aquelas no início do

capitalismo, na virada do século XIX para o XX, passando pelos movimentos de vanguarda de

meados do século XX, até a poesia marginal do final do século passado. Porém, apesar do

extremo valor que estas obras representaram para a crítica ao sistema, hoje, já em outro estágio

do capitalismo, as obras precisam driblar uma indústria muito mais fortalecida que assimilou

31 DUARTE, Rodrigo. 2003. p. 56.

43

todas as linguagens possíveis. Penso que a obra de arte de hoje deva ser aquela que se apropria

da mesma linguagem para despertar no receptor uma sensação inesperada, capaz de libertar seu

inconsciente. Apesar de contarmos com poucos exemplos perto da mega produção da indústria

cultural, a poesia de Tarso de Melo e Sebastião Uchoa Leite mostra-se eficaz nesta batalha.

44

3 ARTE E INDÚSTRIA CULTURAL NA LITERATURA DO SÉCULO XIX .

Já no século XIX, no início do processo de industrialização, assistimos a mudanças bem

significativas dos bens culturais. Tanto na música, quanto na pintura, na escultura, no teatro e na

literatura começam a aparecer formas de expressão que deixam a desejar quanto a riqueza

expressiva, pois, com o crescimento de uma cultura de massa, tais bens começaram a se

distanciar do princípio da arte descompromissada para ser direcionada a nova massa que se

concentrava nos grandes centros urbanos. Tal classe operária, seguindo uma certa lógica de

pensamento, não teria condições, durante o ócio, de entrar em contato com uma forma artística

mais rica que exigisse um esforço maior do indivíduo, já que este tinha se desgastado muito

durante o trabalho nas linhas de produção. Porém, ao mesmo tempo, principalmente após o

advento e ascensão dos grandes meios de comunicação de massa e as novas descobertas

tecnológicas, como a fotografia, por exemplo, a classe burguesa sentiu que os bens culturais

teriam uma grande valia naquele cenário. Era preciso distrair aquela massa no momento do ócio

para ocupar o pensamento e não fornecer a possibilidade de algum tipo de resistência que

poderia advir da liberdade fora do trabalho nas fábricas. Por isso houve um desenvolvimento na

produção de bens culturais que desempenhariam tal fim. Estes bens eram cada vez mais

numerosos, porém, ao mesmo tempo, deixavam a desejar no quesito qualidade. A música

erudita que tinha seu caráter multiforme, pouco a pouco foi cedendo lugar para um outro tipo

musical, que Adorno chamou de música leve ou ligeira, em meados do século XX, onde se

selecionava apenas a parte mais fácil de uma obra musical que seria agradável aos ouvidos tal

qual “era” o novo mundo que se instalava. Deste modo, as velhas categorias musicais que

respeitavam a subjetividade, o encanto e a profanação, vão sendo digeridas pela nova forma

45

musical massificada. Assim, a liberdade musical do ouvinte vai se desmoronando e cede lugar

apenas àqueles momentos onde a música passa a ser considerada mais agradável. Toda

“variedade” da música leve capitalista não passa de variações superficiais dentro de um

esquema pré-concebido. Desta forma, acaba com a liberdade característica da obra de arte

autêntica. Em relação a isso, Adorno ressalta que,

“o prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo. Os momentos parciais já não exercem função crítica em relação ao todo pré-fabricado, mas suspendem a crítica que a autêntica globalidade estética exerce em relação aos males da sociedade. A unidade estética é sacrificada aos momentos parciais, que já não produzem nenhum outro momento próprio a não ser os codificados, e mostram-se condescendentes a estes últimos. Os momentos de encantamento demonstram-se irreconciliáveis com a constituição imanente da obra de arte, e esta última sucumbe àqueles toda vez que a obra artística tenta elevar-se para a transcendência. Os referidos momentos isolados de encantamento não são reprováveis em si mesmo, mas tão somente na medida em que cegam a vista. Colocam-se a serviço do sucesso, renunciam ao impulso insubordinado e rebelde que lhes era próprio, conjuram-se para aprovar e sancionar tudo o que um momento isolado é capaz de oferecer a um indivíduo isolado, que há muito tempo já deixou completamente de existir”.32

Esta técnica pré-fabricada dos produtos culturais promove a padronização do indivíduo e

o transforma em mero consumidor pronto a adquirir o mesmo produto “necessário” a todo

cidadão. Àquele que percebe este fato, prefere continuar calado e seguir o padrão imposto para

poder viver mais tranqüilo, do que buscar novas formas de expressão. É por isso que Adorno

fala de regressão da audição musical moderna. “Os ouvintes e consumidores em geral precisam

e exigem exatamente aquilo que lhes é imposto insistentemente”.33 Assim, o próprio conceito de

gosto deixa de fazer sentido, pois o que faz uma canção ter ou não sucesso não é sua qualidade

estética superior, mas o fato da mesma poder ser reconhecida por todos, ao seguir o padrão

imposto.

32 ADORNO, Theodor W. 1980. p. 168. 33 Idem. p. 181.

46

Isso tudo relatado fez com que Adorno acreditasse que a força artística moderna só seria

alcançada naqueles momentos onde acontece a discrepância com tal padrão estabelecido. Ainda

em relação à música diz que

“A força de sedução do encanto e do prazer sobrevive somente onde as forças de renúncia são maiores, ou seja: na dissonância, que nega fé à fraude da harmonia existente. O próprio conceito de ascética é dialético na música. Se em outros tempos a ascese derrotou as exigências estéticas reacionárias, nos dias que ocorrem ela se transformou em característica e bandeira da arte avançada. Obviamente tal não acontece em virtude de sua deficiência arcaizante de meios, na qual a miséria e a pobreza são inaltecidas, mas antes por rigorosa exclusão de tudo o que é culinarmente gostoso e que deseja ser consumido de imediato, como se na arte os valores dos sentidos não fossem portadores dos valores do espírito, que somente se revela e se degusta no todo, e não em momentos isolados da matéria artística”.34

A mesma problemática verifica-se também em outras formas artísticas. Porém, a

literatura talvez tenha sofrido deste mal num estágio inferior ao da música, devido ao fato de

que os primeiros grandes meios massivos a surgir, a imprensa e os periódicos de massa, estão

mais diretamente ligados à arte da escrita. Os grandes jornais conseguiram um êxito realmente

massivo ainda no início do processo de industrialização, no começo do século XIX. O rádio, por

exemplo, só foi alcançar um alcance expressivo um século depois.

Com o intuito de divulgar e vender informações a uma massa crescente foi preciso eleger

uma forma de linguagem capaz de ser entendida e codificada da maneira mais eficaz para o

sistema. A propaganda publicitária se utiliza muito de uma técnica que progressivamente foi se

desenvolvendo no mundo industrializado. Tal técnica pode ser chamada de processos de

comunicação “eficiente”. Com o intuito de alcançar uma comunicação com o consumidor para

que este possa se interessar pelos produtos oferecidos, a comunicação social é, talvez hoje,um

dos fenômenos de maior valor para os empresários, tanto do setor de produtos, como no de

serviços. Com isso surge o interesse pelos processos de comunicação social: o estudo que busca

34 Ibidem. p. 168.

47

uma técnica que deve ser apreendida por quem detém o poder para melhor conseguir manipular

uma organização social.

David K. Berlo, no seu livro “O Processo da Comunicação”, nos deixa claro quais são os

objetivos quando ocorre um processo de comunicação. O autor declara que

“todo comportamento de comunicação tem um objetivo, uma meta, que é produzir certa reação. Quando aprendermos a exprimir nossos objetivos em termos de respostas específicas da parte daqueles que recebem nossas mensagens, teremos dado o primeiro passo para a comunicação positiva e eficiente.(...) Uma das principais tarefas do consultor de comunicação é fazer com que as pessoas analisem seus objetivos ao se comunicarem e os especifiquem em termos das reações que pretendam obter.(...) Dissemos que o objetivo da comunicação é influenciar”.35

As grandes empresas começaram então a apostar grande força nesse novo processo.

Desenvolveram estudos para conseguir alcançar uma tática comunicativa tão eficiente que fosse

capaz de obter uma reação massiva direcionada a satisfazer seus interesses. Deste modo, houve

um investimento no estudo da comunicação eficiente.

Estes estudos partiram de um princípio de que toda comunicação depende de alguns

ingredientes necessários e imprescindíveis. Segundo Berlo, um processo de comunicação

compõe de uma fonte que quer exprimir seu objetivo comunicativo. Esta fonte tem que ter a sua

disposição um código eficaz para criar o terceiro ingrediente que seria uma mensagem também

eficaz. Esta mensagem é direcionada a partir de um canal (a voz, uma carta, um jornal, etc.) para

o receptor ou grupo de receptores, que têm que decodificar esta mensagem a partir de um

decodificador.

Mesmo que o processo de comunicação não seja reduzido necessariamente nesta ordem,

estes são, em resumo, os ingredientes básicos para que se ocorra uma comunicação. Para que

esta comunicação seja eficiente, ou melhor, capaz de influenciar o receptor, muitos elementos

estão em jogo: a fonte precisa escolher um código que seja eficiente na composição da

35 BERLO, David Kenneth. 1991. p. 22.

48

mensagem e, ao mesmo tempo, compartilhe do mesmo código que o receptor usará para

decodificar a mensagem, senão igual à da emissão, pelo menos que atinja os objetivos previstos.

O canal utilizado não pode dificultar a fidelidade da mensagem. Esta deve chegar limpa ao

consumidor final. Portanto, para que os meios massivos consigam uma eficácia comunicativa é

preciso que se utilize um código conhecido por todos e que a mensagem seja direcionada com o

mínimo de distúrbios possíveis. Deve-se eliminar as dissonâncias, os ruídos, as fragmentações,

ou seja, tudo que forneça abertura para novas significações. Ainda segundo Berlo, “a eliminação

do ruído aumenta a fidelidade; a produção de ruído reduz a fidelidade”. 36

É claro que, para que os objetivos do sistema industrial sejam atingidos, foram

necessários todos aqueles aparatos já discutidos anteriormente, como uma educação

direcionada, a partir das instituições familiares e escolares, a ensinar e disseminar um estilo de

vida conveniente. Os processos de comunicação seriam um aperfeiçoamento e auxílio para estas

instituições. É claro também que, dentro deste contexto, a arte seria incompatível com os

processos de comunicação eficiente, pois, como já fora destacado por Adorno na passagem

citada acima, a arte na sociedade industrial capitalista deve se guiar exatamente por aquilo que a

comunicação social deseja extinguir: os ruídos, as dissonâncias, os mistérios, a criação de novos

códigos, o desdobramento crítico, etc. A comunicação elege um código como padrão, assim

como um estilo de vida, uma passagem da música erudita mais encantadora, uma informação

mais valiosa, assim como uma decodificação e um consumidor mais convenientes ao sistema.

Desta forma, embotam o indivíduo e este passa a aceitar estes estigmas e a condenar outros. O

público vai se distanciando da autêntica obra de arte em busca de um produto cultural mais

36 Idem. p. 49.

49

comunicativo, loquaz, engraçado, informal. O que não contivesse tais características seria

considerado chato e não alcançaria sucesso.

O estudo profissional da comunicação social só foi grandemente desenvolvido a partir de

meados do século XX, porém é possível verificar em alguns autores ainda do final do século

XIX, que tal objetivo já estava sendo buscado no início do processo de industrialização e dos

grandes meios de comunicação, como os jornais, revistas, livros de ficção, entre outros. A obra

de Henry James pode nos dar testemunho de tal fato. Deste autor, destaca-se um conto que

exemplifica bem o que já acontecia naquela época e que viria se aprimorando com o passar dos

anos. Já nas primeiras páginas do conto “The Next Time”, o narrador da história ressalta que

estamos vivendo na “época do lixo triunfante”,37 ao relatar que as pessoas estavam a fim de

produções literárias vulgares e que era preciso que se criasse este lixo para adquirir sucesso.

Porém, ainda na mesma página, ressaltava que ainda era melhor alcançar um “fracasso

maravilhoso” que um “sucesso prosaico”:

“A success was as prosaic as a good dinner: there was nothing more to be says about it than that you had had it. Who but vulgar people, in such a case, made gloating remarks about the courses? It was often by such vulgar people that a success was attested. It made, if you came to look at it, nothing but money; that is it made so much that any other result showed small in comparison. A failure now could make – oh with the aid of immense talent of course, for there were failures and failures – such a reputation!”38

Este início serviu de base para a narração da trajetória de um verdadeiro artista literário

dividido entre produzir uma autêntica obra de arte literária ou fabricar livros de sucesso para

poder proporcionar uma vida melhor para sua família. O personagem é Ralph Limbert, um

exímio escritor do final do século XIX, que após casar com Maud Stannace, que tinha como

37 JAMES, Henry. 1986. p. 309. 38 Idem. p. 308. “Um sucesso era tão prosaico quanto um bom jantar: Nada mais havia a dizer sobre isto, além de que você tivera um. Quem a não ser pessoas vulgares, num caso destes, faria observações lúbricas sobre os pratos? Pessoas vulgares deste tipo eram as que freqüentemente confirmavam um sucesso. Um sucesso não produzia nada, pensando melhor sobre isso, além de dinheiro; e tanto dele, que qualquer outro resultado parecia menor em comparação. Um fracasso poderia conseguir – oh com a ajuda de imenso talento, é claro, pois havia fracassos e fracassos – tamanha reputação” (tradução minha).

50

mãe uma mulher que prezava por um futuro exuberante de riquezas para si e para sua filha,

sentiu a necessidade de utilizar sua profissão de artista literário para ganhar dinheiro e

proporcionar um bem estar para toda sua família. Contava com a ajuda de seu amigo, o

narrador, que, como já podemos notar na pequena passagem acima, sempre cultivou a idéia de

que melhor um fracasso maravilhoso que um sucesso vazio, e de sua cunhada, Jane Highmore,

uma escritora que tinha alcançado uma boa reputação no mercado, mas que reconhecia nele uma

possibilidade em adquirir também um status profissional. Com a ajuda dela, ele encontrou seu

primeiro emprego na coluna literária de um jornal chamado “The Blackport Beacon” que

serviria como âncora para futuramente poder publicar seu próximo livro e fornecer aos

familiares uma vida mais cômoda. Ele sabia que não poderia ser tão literário em um jornal e

trabalhou duro para isso. Porém, por mais que ele tentasse não conseguia oferecer ao jornal

aquilo que o mesmo necessitava: uma grande aceitação pública. Tudo que ele escrevia, apesar

de tentar ser menos artístico e mais informal, acabava ficando muito bom e o jornal perdeu o

interesse. Por quê? Num diálogo em que sua esposa discute o caso com o narrador isso é

explicado:

“‘Then what style of thing, in God’s name, do they want?’ ‘Something more chatty.’ ‘More?’ I cried, aghast. ‘More gossipy, more personal. They want ‘journalism.’ They want tremendous trash.’ ‘Why, that’s just what his letter have been!’ I broke out. This was strong, and I caught myself up, but the girl offered me the pardon of a beautiful wan smile. ‘So Ray himself declares. He says he has stooped so low.’ ‘Very well—he must stoop lower. He must keep the place.’ ‘He can’t!’ poor Maud wailed. ‘He says he has tried all he knows, has been abject, has gone on all-fours, has crawled like a worm; and that if they don’t like that’- (…) ‘He wrote to them that such work as he has done is the very worst he can do for the money.’ ‘Therefore’, I pressed with a flash of hope, ‘they’ll offer him more for worse?’ ‘No indeed’, she answered, ‘they haven’t even offered him to go on at a reduction. He isn’t funny enough’”.39

39 Ibidem. p. 318. “‘Qual o estilo de coisa, em nome de Deus, que eles realmente querem?’ ‘Algo mais loquaz/conversador/informal’ ‘Mais? Eu gritei, agoniado.’ ‘Mais informal, mais pessoal. Eles querem jornalismo. Eles querem tremendos lixos.’

51

Dispensado do jornal, Limbert parte para uma próxima vez: a publicação de seu livro

“The Major Key”, com a aceitação do editor de Jane Highmore. Ele entendeu que para fazer

sucesso teria que abrir mão de sua veia artística e produzir algo mais “chatty”, loquaz,

comunicativo, informal, ou seja, popular. Necessitaria de um processo comunicativo mais

eficiente para provocar uma reação satisfatória e assim colocar na cabeça do público que o que

ele publicava era realmente literatura. Algo que a verdadeira arte literária não era mais capaz.

“The Major Key”, apesar de toda tentativa, não teve um alcance do grande público por ter sido

considerado bom demais para o entendimento corrente:

“The Major Key was rather a great performance than a great success. It converted readers into friends and friends into lovers; it placed the author, as the phrase is—placed him all too definitely; but it shrank to obscurity in the account of sales eventually rendered”.40

Deste modo, ele partiu para sua terceira vez. Suas contas estavam se amontoando e ele

precisava urgentemente achar um modo de ganhar dinheiro. Neste momento, ele recebeu uma

proposta do senhor Bousefield, proprietário de uma revista mensal direcionada à classe alta, de

ser o editor, pois estava querendo publicar a mais pura literatura, que não representasse apenas

“tagarelice”. Limbert decidiu então buscar não a mais pura literatura, mas o que o sr. Bousefield

entendia por isso. A partir daí, o seu futuro empreendimento residia não em fazer seu trabalho

‘Porque isto é tudo que a matéria dele tem sido!’ Eu ressaltei Isto foi forte, e eu me surpreendi comigo mesmo, mas a garota me ofereceu o perdão de um belo sorriso pálido. ‘Então Ray mesmo declarou. Ele disse que ele tinha se rebaixado ao nível mais vulgar’. ‘Muito bem – ele deve se rebaixar mais vulgar ainda. Ele precisa manter o lugar’ ‘Ele não pode!’ Lamentou a pobre Maud. ‘Ele disse que ele tinha tentado tudo que ele sabe, tinha sido rejeitado, tinha continuado todos os quatro, tinha rastejado como um verme; e pra que isto se eles não gostam disto’(...) ‘Ele escreveu para eles que o trabalho que ele tinha desenvolvido é o pior que ele pode fazer por dinheiro’. ‘Portanto’, eu imprimi com um flash de esperança, ‘eles oferecerão a ele mais por menos’ ‘Não realmente’, ela respondeu, ‘eles nem mesmo têm oferecido a ele continuar com uma redução. Ele não é engraçado o suficiente’”. (tradução minha) 40 Ibidem. p. 324. “The Major Key foi antes uma grande performance que um grande sucesso. Converteu os leitores em amigos e amigos em amantes; colocou o autor, como a frase é – situou ele todo tão definitivamente; mas isto encolheu para o obscuridade na conta das vendas rendidas eventualmente” (tradução minha).

52

em si, mas aquilo que os outros entendiam por isto. Buscou o caminho para isso, desenvolveu

um “segundo estilo” e, ao contrário de tentar melhorar seu desempenho, fez o inverso:

“Success be hanged!—I want to sell. It’s a question of life and death. I must study the way. I’ve studied too much the other way—I know the other way now, every inch of it. I must cultivate the market—it’s a science like another. I must go in for an infernal cunning. It will be very amusing, I foresee that; I shall lead a dashing life and drive a roaring trade. I haven’t been obvious—I must be obvious. I haven’t been popular—I must be popular. It’s another art—or perhaps it isn’t an art at all (…) Of course I’ve everything to unlearn; but what’s life, as Jane Highmore says, but a lesson?”41

Porém, Ray não conseguiu aprender a lição. Ele estava disposto a se humilhar e

contrabalancear com matérias de outros escritores que ele considerava bons, mas tudo foi por

água abaixo. A novela que ele publicara nesta revista era esplêndida:

“Was it a monstrous joke, his second manner—was this the new line, the desperate bid, the scheme for more general acceptance and the remedy for material failure? Had he made a fool of his following, or had he more injuriously made a still bigger fool of himself? Obvious?—where the deuce was it obvious? Popular—how on earth could it be popular? The thing was charming with all his charm and powerful with all his power: it was an unscrupulous, an unsparing, a shameless merciless masterpiece. It was, no doubt, like the old letters to the Beacon, the worst he could do; but the perversity of the effort, even though heroic, had been frustrated by the purity of the gift. Under what illusion had he laboured, with what wavering treacherous compass had he steered? His honour was inviolable, his measurements were all wrong”.42

O Sr. Bousefield percebeu o fracasso de seu editor e o obrigou a desistir de suas novelas

e buscar profissionais mais competentes. Ele achava sua produção chata. Sugeriu uma tal de

Minnie Meadows, uma nova humorística que tinha atingido o gosto popular e que produzia uma

41 Ibidem. p. 331. “Que seja enforcado o sucesso! – eu quero vender. Esta é uma questão de vida ou morte. Eu preciso estudar o jeito – eu conheço o outro caminho agora, cada polegada disto. Eu preciso cultivar o mercado – isto é uma ciência como qualquer outra. Eu preciso dominar uma habilidade infernal. Isto será muito divertido, eu prevejo; eu conduzirei uma vida com estilo e dirigirei um exuberante negócio. Eu não tenho sido óbvio – eu preciso ser óbvio. Eu não tenho sido popular – eu preciso ser popular. É outra arte – ou talvez isto não seja uma arte de jeito nenhum (...) É claro que eu tenho que desaprender tudo; mas o que é a vida, como Jane Highmore diz, senão uma lição?” (tradução minha). 42 Ibidem. p. 336. “Seu segundo estilo era uma piada monstruosa – isto era o novo estilo, a desesperada tentativa, o esquema para uma maior aceitação geral e o remédio para o material falho? Ele tinha feito todo mundo que o seguiu de imbecil ou ele tinha feito de modo mais injuriado ele mesmo ainda mais imbecil? Óbvio? Onde estava isto docilmente óbvio? Popular? – Como meu Deus poderia isso ser popular? A coisa estava charmosa com todo charme dele e estava poderosa com todo o poder dele: isto foi um inescrupuloso, um severo, uma vergonhosa e misericordiosa obra prima. Isto era, sem dúvida, como a velha carta do Beacon, o pior que ele poderia fazer; mas a perversidade do esforço, mesmo embora heróico, tinha sido frustrada pela pureza do presente. Abaixo de qual ilusão ele tinha trabalhado, com qual hesitante bússola traiçoeira ele tinha se guiado? Sua honra era inviolável, suas medidas estavam todas erradas” (tradução minha).

53

série de “screaming sketches”, estilo do qual Limbert deveria almejar para todas as matérias da

revista. Ray se recusou e novamente foi dispensado.

O narrador percebeu que Ray era uma pessoa persistente e que jamais desistiria.

Novamente haveria uma próxima vez e o caso sempre iria se repetir:

“his achievement of his necessity, his hope of a market, will continue to attach itself to the future. But the next time will disappoint him as each last time has done—and then the next and the next and the next!”43

Limbert se mudou para um lugar mais barato, desapontou sua sogra e partiu em busca de

uma vida mais simples. Depois de tanto tentar satisfazer o mercado, desistiu da empreitada e

construiu grandes obras de arte. O preço que ele pagou foi morrer na miséria, vivendo à custa de

pouco dinheiro e de doações dos amigos que reconheciam seu valor, porém dono de uma

produção inigualável:

“The voice of the market had suddenly grown faint and far: he had come back at last, as people so often do, to one of the moods, the sincerities of his prime. Was he really, with a blurred sense of the urgent, doing something now only for himself? We wondered and waited—we felt he was a little confused. What had happened, I was afterwards satisfied, was that he had quite forgotten whether he generally sold or not”.44

O problema do personagem foi o fato dele ter nascido num mundo onde se paga mais por

menos. Onde o artista é colocado num outro plano de existência que não condiz com os

objetivos do sistema. O próprio narrador percebe isso:

43 Ibidem. p. 343. “o acabamento de sua necessidade, sua esperança de um mercado, continuará seduzindo em si mesmo para o futuro. Mas a próxima vez o desapontará tal como tem sido a última vez – e então a próxima e a próxima e a próxima!” (tradução minha) 44 Ibidem. p. 352. “A voz do mercado tinha de repente se tornado fraca e rápida: ele tinha voltado finalmente, como as pessoas faziam tão freqüentemente, para um de seus humores/mal humores, as sinceridades de seu auge. Estava ele realmente, com um embaraçado senso do urgente, fazendo algo agora apenas para si mesmo? Nós ficamos admirados e esperamos – nós sentimos que ele estava um pouco confuso. O que tinha acontecido, eu mais tarde fiquei satisfeito, era que ele tinha esquecido tranqüilamente se ele geralmente vendia ou não” (tradução minha)

54

“It happens not to be given to Limbert to fall. He belongs to the heights—he breathes there, he lives there”.45 “We had all turned it over till we were tired of it, threshing out the question of why the note he strained very chord to pitch for common ears should invariably insist on addressing itself to the angels”.46

Ou talvez, o seu problema tenha se residido no fato de que, no século XIX a ciência da

comunicação ainda estava se engatinhando e não tinha um teórico da comunicação como David

K. Berlo para ensinar o pobre Limbert a ser mais “Chatty”. Talvez ele ainda estivesse sobre as

influências dos primeiros românticos que acreditavam que a arte pode ser compreendida em si

mesma, através da contemplação e, ao mesmo tempo, esqueceu que a obra não faz sentido numa

sociedade que não consegue pensar por si mesma. Que tudo para ser direcionada a ela deve ser

estudado a fim de que se obtenha a reação esperada.

É por isso que a obra de arte no capitalismo precisa trilhar outros caminhos. Deve sim

ser contemplada, mas para isto precisa despertar as pessoas para si. É, por isso, que deve buscar

sempre sua expressão na discrepância e nos ruídos da própria linguagem do sistema. Deve

confundir o público dentro da própria linguagem a que está acostumado.

Henry James percebeu esta deficiência do sistema precocemente, talvez devido ao fato

dele ter nascido nos Estados Unidos, país onde o capitalismo estava num estágio mais avançado,

mas fora ainda jovem para a Europa, onde o sistema industrial ainda estava em fase de

implantação. Hoje, com a globalização do mundo, não se encontra mais esta vantagem e a arte

encontra-se num terreno pouco produtivo e mais difícil.

45 Ibidem. p. 343. “O que acontece é que não foi dado a Limbert a queda. Ele pertence às alturas – ele respira lá, ele vive lá” (tradução minha) 46 Ibidem. p. 349. “Nós todos revisamos isto até o momento em que ficamos cansados disto, deixando de lado a questão do porque a nota que ele esforçava todo acorde para lançar aos ouvidos comuns deveria invariavelmente insistir em direcioná-lo aos anjos” (tradução minha)

55

4 A POESIA CONCRETA BRASILEIRA

Mesmo antes do processo de globalização e ainda no final do século XIX ,é possível

encontrar outros sinais dos caminhos que o mundo estava trilhando. O exemplo do conto do

norte-americano Henry James não se limitou a um caso isolado no cenário mundial. Aqui

mesmo, no Brasil, houve produções de grande valor que denunciaram o que então se

configurava. Lima Barreto, por exemplo, no seu livro “Recordações do Escrivão Isaías

Caminha” denunciava a apatia da sociedade carioca da época que se apoiava nos ditames da

nova cultura industrial que por aqui se apresentava. Tanto por parte da massa em si:

“Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia!”47

como por parte dos ícones sociais elegidos pela elite cultural carioca, como os literatos que

assumiam o papel de verdadeiras celebridades do sistema:

“São em geral de uma lastimável limitação de idéias, cheios de fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos detalhados e impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às idéias vencedoras, e antigas, adstritos a um infantil fetichismo do estilo e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério de beleza.”48

A poesia já tinha sentido os efeitos da nova sociedade no início do século XIX, no

começo da modernidade. Neste momento a vida humana passou por profundas modificações.

Com a migração humana do campo para a cidade, as novas formas de trabalho nos meios de

produção, o avanço da imprensa e, conseqüentemente, dos meios de comunicação de massa e o

desenvolvimento econômico, o ar bucólico campestre vai cedendo lugar para um novo estilo de

vida nas metrópoles. O mesmo ocorre no campo das artes. A poesia, assim como as outras

47 BARRETO, Lima. 1989. p. 67. 48 Idem. p. 84.

56

formas de literatura e de arte, que até o modernismo expressava um estado de alma do poeta,

onde era possível retratar seus sentimentos mais elevados como a alegria, o amor, os bons

modos, etc., vai-se distanciando da linguagem comum da prosa e começa a chamar atenção para

o que está oculto atrás do “ideal universal” desenvolvido pela classe burguesa. Os maiores

poetas do período Romântico começam a abandonar tal ideal e vão buscar no incomum a

inspiração para a expressão poética. Percebem que o que até então era objeto da poesia, ou seja,

a ilusão dos ideais de vida construída pela burguesia não adquire mais um valor expressivo e

começam a achar interessante, categorias como o destrutivo, a morte, a prostituição, o mórbido,

o criminal, etc. Friedrich, ao comparar a poesia anterior ao romantismo relata que:

“Para a civilização antiga e pós-antiga, até o século XVIII, a alegria era aquele sumo valor espiritual que indicava a perfeição alcançada pelo sábio e pelo crente, pelo cavaleiro, pelo homem da corte, pelo erudito da elite social. A dor, a não ser que fosse passageira, era considerada um valor negativo e pelos teólogos, uma culpa. A partir das tendências para a dor dos pré-românticos do século XVIII, estas relações se invertem. A alegria e a serenidade desaparecem da literatura. A melancolia e a dor cósmica ocuparam o seu lugar”.49

Com o intuito de separar o belo, a moral e o normal do essencialmente real, os poetas

começam a se interessar mais naquilo que destoa daquela pseudo-realidade e assim poderem dar

mais atenção para outras formas de vida que até então viviam na obscuridade. Desde então,

perceberam que a realidade fabricada não podia ser vivida pela poesia, esta estaria mais

relacionada à fantasia. Era preciso fugir desta realidade e criar a sua própria, mais autêntica e

verdadeira. Começou pelos românticos alemães, com Novalis e Schlegel, que se deslocavam ao

infinito para buscarem no caos do excêntrico e monstruoso os pressupostos para seus

fragmentos poéticos; passou pelo romantismo francês, como Chateaubriand e Victor Hugo e

uma poética que parte da linguagem para retratar o obscuro, a angústia e a dor, depois por

49 FRIEDRICH, Hugo. 1978. p. 30.

57

Baudelaire, o “poeta da modernidade”, Rimbaud, Mallarmé, até os surrealistas e poetas mais

recentes como Ungaretti, T.S. Eliot, Valery, entre outros.

Todos eles perceberam, principalmente do Romantismo francês pra cá, que seria

impossível buscar uma nova forma de realidade através de uma lírica que compartilhasse da

mesma linguagem corrente, e, para isso, começaram a valorizar a força da palavra, seu impulso

sonoro, sua facilidade de criar novos sentidos através da forma que é empregada. Victor Hugo,

relatou que

“a palavra é um ser vivente, mais poderosa que aquele que a usa; nascida da escuridão, cria o sentido que quer; ela própria é o que o pensamento, a visão, o tato externo esperam – e muito mais ainda: é cor, noite, alegria, sonho, amargura, oceano, infinidade; é o ‘logos’ de Deus”.50

As características da poesia moderna começam a se delinear. Os artistas trabalham no

intuito de criar uma poesia onde a palavra possa se libertar do seu significado corrente e

construa novos sentidos através da forma. Já que a realidade aspirada pela poesia é construída

em tudo que é estranho para a realidade corrente, a linguagem poética vai trabalhar no sentido

de criar um estranhamento na linguagem do discurso habitual para poder criar um efeito de

choque no leitor moderno. Este estranhamento é causado pelas dissonâncias poéticas, cujo

intuito é misturar incompreensibilidade com fascinação ao elevar as coisas mais autênticas à

linguagem do imediatamente incompreensível; pelo poder de transformar a realidade, além de

sentir e observar; por uma linguagem sem um objeto comunicável, pois busca atrair e perturbar;

pela dramaticidade agressiva capaz de chocar o leitor e pela separação do signo e significado ao

gerar combinações que não são pretendidas pelo significado, mas que cria, através delas, novos

significados. Não se pode mais compreender o poema a partir dos conteúdos das palavras,

50 Idem. p. 32.

58

porque seu conteúdo só tem valor na totalidade da obra, na dramaticidade das forças formais

tanto internas quanto externas.

Os poetas que seguiram esta linha de raciocínio partiram então para um lado mais

obscuro do dicionário que, ancorado num conflito formal entre as experiências herdadas e o

novo, produziram uma crise das categorias ideológico-formais do verso. Segundo Aguillar,

“A harmonia entre poeta, palavra e mundo – da qual o verso seria um agente – entra em uma crise irreversível: o lugar social do poeta já não é o mesmo, nem tampouco o é a nova paisagem que enfrenta. As reflexões dos poetas franceses da segunda metade do século XIX sobre a persistência do verso como forma giram, freqüentemente, em torno desse problema, e vários deles abandonam o verso metrificado pelo verso livre, pelo poema em prosa ou – como no caso de Um Coup de Dês, de Stéphane Mallarmé, em 1897 – por novas formas que quebram e disseminam o verso no espaço da página.”51

Estas novas experimentações poético-formais se mostraram necessárias naquele

momento histórico já que, como já fora destacado, a atividade estética tradicional não dava

conta dos impulsos estéticos numa sociedade completamente diferente. Aliás, como bem

declarou Ferreira Gullar, a ligação poética com os princípios tradicionais não faz mais sentido

numa sociedade em constante mudança e que adquire características bem diversas da época dos

grandes poetas da Grécia Clássica e da Idade Média:

“A sociedade de massa, que ameaça submergir o indivíduo no anonimato, estimula o individualismo e a originalidade a qualquer preço. Tais fatores teriam que determinar o comportamento dos poetas e afastá-los das concepções do passado. O abandono das formas clássicas – das estrofes regulares, do verso metrificado e rimado – não resultou de mero capricho mas de uma exigência da própria vida. A poesia grega e a latina falavam uma língua diversa da prosa, refletindo a condição do poeta ligado à corte e a condição da cultura apropriada por uma elite econômica e intelectual. Na sociedade moderna, o sistema de produção e o crescimento das cidades obrigaram à democratização do conhecimento que, se não chega a todos e em igual nível, gerou o consumidor massivo de arte e literatura, que o escritor não pode ignorar. A linguagem da poesia confunde-se então com a da prosa, do mesmo modo que o poeta confunde-se com o homem da rua e já não pode nem deseja reivindicar para si a condição de eleito dos deuses.”52

51 AGUILAR, Gonzalo. 2008. p. 177. 52 GULLAR, Ferreira. 1989. p. 14.

59

Nos esquemas herdados, o verso desempenhava um trabalho que pudesse compor uma

idéia de ordem e harmonia nos poemas, o que para a modernidade não tinha mais sentido, pois

ordem e harmonia não faziam mais parte do cotidiano. Ainda segundo Gullar, “os movimentos

de vanguarda expressam no campo das artes a crise de uma visão de mundo e a necessidade de

renovação e progresso que o dinamismo social impõe.”53 Este fator gerou grandes

experimentações poéticas a fim de alcançar um novo estilo de poema que melhor satisfizesse a

época em questão. Começaram a surgir as vanguardas artísticas, os movimentos de vanguarda

como destacou Gullar, que se baseavam numa linha de raciocínio capaz de desenvolver uma

forma verdadeiramente nova e mais condizente. Formalismo, futurismo, modernismo,

dadaísmo, surrealismo, etc., foram movimentos deste tipo que assumiram um papel importante

nesta busca. Marcaram o abandono da tradição através da busca de novos procedimentos e,

conseqüentemente, o desvinculo total das regras que administravam a atividade artística. Por

serem movimentos de ruptura, deveriam se ancorar num tipo de texto que pudesse delimitar o

novo terreno de ação. Deste modo, assumem grande papel os manifestos:

“Entre o fazer do hábito (reprodução das sujeições da tradição) e a promessa de uma prática desvinculada das regras, produz se um intervalo que só pode ser anulado por um gênero fundacional e de ruptura como o manifesto. Ruptura com a tradição e produção de novas condições de trabalho têm sua estréia em um tipo de texto (a favor e contra) escrito em colunas, que distribui forças antagonicamente e é atravessado pela temporalidade (antes e agora, o velho e o novo). O manifesto apresenta as condições da experimentação (do que ainda não é) e aspira a destruir-se nesse mundo em que sua lógica já não será possível.”54

Como bem relatou acima Aguilar, o manifesto foi necessário para poder proporcionar

um possível entendimento de uma ruptura repentina e que não cedesse espaço para um intervalo

maior entre o velho e o novo, já que as vanguardas almejavam uma mudança mais urgente.

53 Idem. p. 22. 54 AGUILAR, Gonzalo. 2008. p. 33.

60

No Brasil, o primeiro grande movimento de vanguarda foi o modernismo, que teve seu

marco inicial na semana de arte moderna de 1922, em São Paulo. È claro que sofreu influência

das vanguardas européias, mas conseguiu dar uma dinâmica própria com relação à realidade

sócio-política e cultural brasileira. Os modernistas brasileiros desenvolveram novas formas

poéticas que estimulassem sentimentos nativistas e culto ao pitoresco, fato este que distanciava

um pouco da vanguarda européia, cujo objetivo principal seria delimitar uma nova forma

poética eficaz numa sociedade em constante progresso e o retorno para um certo nativismo não

seria condizente com seus pressupostos vanguardistas. É por isso que o conceito de vanguarda

não pode apenas se guiar pelo fato de ser um fenômeno regido unicamente por contingências

estéticas, sem dar atenção à diversidade cultural.

Depois da experiência da segunda guerra mundial, o mundo que apresentava um certo

distanciamento entre a natureza humana e realidade social, se complicou ainda mais e muitos

artistas começaram a buscar nas experiências estéticas tradicionais uma tentativa de recuperar a

harmonia perdida. Foi o caso, por exemplo, da Geração de 45 brasileira, onde percebemos um

certo retorno às formas regulares, distanciando-se um pouco da continuidade evolutiva criada

pelas vanguardas. Bosi descreveu da seguinte forma o aparecimento desta geração poética

brasileira:

“herdeiros maduros da experiência formal simbolista, continua de certo modo em poetas da década de 40, dentre os quais emergiu um grupo que deu um tom polêmico à própria consciência de já não mais repetir traços acidentais do Modernismo. É a chamada ‘geração de 45’, na qual se tem incluído nomes díspares que apresentaram em comum apenas o pendor para certa dicção nobre e a volta, nem sempre sistemática, a metros e a formas fixas de cunho clássico: o soneto, ode, elegia...”55

Este fato fez surgir no Brasil um novo tipo de vanguarda que não se contentava com este

retorno às formas arcaicas da arte e propunha uma evolução poética baseada a partir da técnica

55 BOSI, Alfredo. 1994. p. 438.

61

formal. Deste modo, recupera-se as aspirações das vanguardas modernas do início do século

para criar uma obra mais dinâmica e atual, ao contrário da recente recuperação da obra

tradicional. O grupo Noigandres começou a aparecer em 1952 e foi formado por Haroldo de

Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari e ainda produziam poemas com uma certa

preocupação estilística presente na geração de 45, mas que já apresentavam um maior

desembaraço na temática, até que, a partir de 1955, estas diferenças se aprofundaram e criaram

uma sintaxe espacial cujo objetivo era o abandono do verso.

Aguilar ressalta que

“A recuperação das formas regulares teve lugar no pós-guerra e encontrou seu correlato ideológico na aspiração de reconstruir ou recuperar um mundo perdido de harmonia. No Brasil, a reinstalação do verso tradicional teve representantes nos poetas da Geração de 45, mas também em quase todos os poetas modernistas que adotaram, com uma organicidade muito própria do campo poético brasileiro, esta nova orientação. Os poetas que se juntaram a esse retorno ao verso regular selecionaram seus procedimentos do repertório de formas, segundo um critério de homogeneidade (o ‘decorum’ e o ‘clima’ que apontou Haroldo de Campos), mas deixando de lado o de evolução (que era associado ao progresso, à tecnologia e, em última instância, à sociedade desumanizada da guerra). Daí que os poetas do grupo Noigandres tenham acentuado o critério de evolução, que servia para excluir seus antecessores imediatos e que recolocava um conceito tipicamente moderno: o de técnica.”56

O grupo buscou principalmente em Mallarmé, Pound, Joyce a inspiração para o

aperfeiçoamento técnico-formal de suas obras. Os concretos pretendiam criar um novo tipo de

poética diversa daquelas que recheava o terreno estético do país. Segundo Haroldo de Campos,

os dois tipos de estética que vigoravam com mais freqüência no país eram atrasados e não

sustentavam uma postura digna das práticas culturais correntes. Uma era baseada na nostalgia

de conteúdos tradicionais e outra no exótico:

“O lirismo anônimo e inódino, o amor às formas fixas do vago, que explica, em muitos casos, a ‘redescoberta’ do soneto à guisa de dernier cri, são manifestações sobejamente conhecidas desse preguiçoso anseio em prol do domingo das artes, remanso onde a poesia, perfeitamente codificada em pequeninas regras métricas e ajustada a um sereno bom-tom formal, aparelhada de um patrimônio de metáforas prudentemente controlado em sua abastança pequeno-burguesa por um curioso poder morigerador – o ‘clima’ do poema – pudesse ficar à margem do processo cultural, garantida por um seguro de vida fiduciado à eternidade(...) Outro tipo de estética, que se pretende revolucionária sob o

56 AGUILLAR, Gonzalo. 2005. p. 179.

62

ponto de vista conteudístico, constrói, com ligeiras modificações, seu paraíso doméstico, negando pura e simplesmente qualquer integração da literatura brasileira num plano de experiência internacional, por razões de tropicalismo porquemeufanista, como se lhe fosse destinado, sem remissão, o papel de literatura exótica ou de exceção.”57

Era preciso uma estética mais ligada ao estilo dos novos tempos; uma época onde

vigoravam a técnica e a comunicação massiva que mudaram toda uma percepção da realidade.

Portanto, tempos em que não faria sentido a utilização da frase e do verso tradicionais. Assim,

proporcionaram uma quebra na noção de tempo evolutivo, transfigurado em uma noção de

progresso, mas qualitativo. Deve-se buscar as criações poéticas passadas que proporcionaram

para as artes uma dinâmica qualitativa de formas e não pura e simplesmente evolutiva. Baseados

em Pound, elegeram o conceito de Paideuma literário, onde criaram um cânone de poetas que

partiram em busca de “elementos puros” em literatura e que ajudavam a formular o novo de

acordo com a época em questão. Tal paideuma foi necessário para a criação do movimento de

cujo principal objetivo era se fundar na reorganização/desorganização poética, com a crise dos

elementos tradicionais do poema, principalmente do verso. Tal paideuma foi habitado

principalmente por Mallarmé, Pierre Boulez, Michel Fano, Apollinaire, Pound, Cummings,

Joyce que somados a idéia de palavras em liberdade do Futurismo e Dadaísmo, configuravam o

conceito de poesia concreta.

Deste modo, vão desenvolver uma técnica artística voltada a encarar a atividade do poeta

em trabalhar as palavras enquanto coisas e não como signos, buscando uma utilização dinâmica

dos recursos tipográficos para compor o poema como um ideograma (som e imagem, tal e qual

numa partitura musical) produzindo um efeito sintético-ideográfico em lugar do analítico-

discursivo. Uma poesia que tem como objetivo libertar a palavra de sua característica de veículo

indiferente à informação, para por si só comunicar através da forma com que é trabalhada no 57 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de. 2006. p. 45.

63

poema. Assim como foi necessário criar uma nova evolução poética a partir da criação de um

novo cânone que ultrapassa as barreiras do tempo evolutivo, o tempo da poesia concreta

também abandona a evolução do discurso corrente, que parte de um início, meio e alcança um

fim, e não se deixa estender, reduzido a uma estrutura circular, onde o poema começa, acaba e

recomeça novamente sempre no ato da leitura.

Neste contexto, o conceito de estrutura, já presente em Mallarmé no final do século XIX,

adquire um valor de extrema importância ao movimento. As partes não sobrevivem isoladas, só

fazem sentido no todo do poema e este não se configura apenas pela soma das partes, mas como

algo totalmente diferente do que cada pedaço isolado. O poema seria como o ideograma chinês,

onde cada desenho só faz sentido no conjunto dos traços (outro recurso inspirado em Ezra

Pound). Seria uma analogia ao que ocorre com a música eletrônica e o cinema de Eisenstein.

Além disso, o espaço de utilização desempenha um fator decisivo para o poema. O papel

deixa de ser apenas um suporte e passa a fazer parte do todo, aproximando a poesia concreta de

outras manifestações artísticas, principalmente daquelas mais em voga na época, como o design,

a arquitetura e o urbanismo:

“O poema deixa de ser um discurso que admite qualquer versão tipográfica ou reprodutiva, e passa a ser um objeto que ocupa um lugar no espaço e que visualiza uma série de relações estruturais. Como tal, a noção de design permite pensar seu processo de composição e sua inserção social. No primeiro caso, o principal é a defesa dos protótipos poéticos e de uma produção na qual o elemento mecânico desloca o expressivo. No segundo, os conceitos de ‘função’ e ‘utilidade’ explicam a inserção social e cultural do poema: ‘o poema – diz Haroldo de Campos – passa a ser um objeto útil, consumível, como um objeto plástico.”58

Um poema concreto estabelece uma comunicação de formas e não de modo discursivo,

assim como no design e na arquitetura: “Dizemos que a poesia concreta visa como nenhuma

outra à comunicação. Não nos referimos, porém, à comunicação-signo, mas à comunicação de

58 AGUILLAR, Gonzalo. 2005. p. 77.

64

formas.”59 Este procedimento é facilmente percebido em vários poemas do grupo concreto da

época, como por exemplo, no intitulado “Velocidade” de Ronaldo Azeredo:

V V V V V V V V V V V V V V V V V V V E V V V V V V V V E L V V V V V V V E L O V V V V V V E L O C V V V V V E L O C I V V V V E L O C I D V V V E L O C I D A V V E L O C I D A D V E L O C I D A D E60

A disposição das letras da palavra “velocidade” na página fornece um efeito que pode

traduzir o conteúdo do poema, mesmo por quem desconhece o significado abstrato da palavra.

Este recurso visual, muito utilizado pelo design, unido à sonorização proporcionada pela

estrutura e, em igual instância, ao significado atribuído, competem de igual para igual, tanto na

composição da obra, quanto no momento de sua recepção.

Dispensando igual atenção em todas as dimensões da palavra, ou seja, na sua dimensão

gráfico-visual, acústico-oral e conteudística, a poesia concreta apresenta o objeto em destaque

em suas diferentes facetas, coisa que não acontece na prosa cotidiana, cujo conteúdo da palavra

assume uma posição de destaque, deixando de lado as demais dimensões e utilizando a palavra

como simples veículo de suporte. Desta forma, este tipo de poesia consegue estabelecer uma

59 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de. 2006. p. 79. 60 AGUILLAR, Gonzalo. 2005. p. 201.

65

relação mais direta com a real estrutura das coisas, um contato direto com o mundo real objetivo

e livre de toda carga simbólica que possa ter atrelado ao objeto de modo subjetivo. A poesia

quer o objeto tal qual ele é e, deste modo, é mais eficiente na comunicação do que uma estrutura

discursiva que depende de uma interpretação subjetiva, fora do objeto em si. Ao criar uma

forma com seu material, a palavra, em toda sua dimensão espaço-temporal e acústico-visual cria

um mundo paralelo ao mundo das coisas, adquirindo uma certa “utilidade”61 na era

contemporânea que a poesia tradicional não consegue mais dar conta, ao trabalhar com uma

forma baseada dentro de uma estrutura fechada e conteúdos estabelecidos. O conteúdo do

poema concreto é dado a partir de uma relação de estruturas posicionadas livremente. Sua

estrutura cria seu verdadeiro significado. Não que no poema, todo conteúdo histórico-cultural

estabelecido à palavra seja de repente esquecido. Isto é impossível. Porém, ele se torna apático

quando posicionado numa estrutura concreta e concorre em pé de igualdade com os outros

aspectos da palavra em si. Pound atentou para isto no seu livro “ABC da Literatura”, quando

destacou que

“o bom escritor escolhe as palavras pelo seu ‘significado’. Mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge com raízes, com associações, e depende de como e quando a palavra é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante ou memoravelmente.”62

Esta é a principal diferença entre a comunicação discursiva e a comunicação estabelecida

a partir de uma relação “verbivocovisual” da poesia concreta. A primeira se disfarça em

linguagem para falar sobre alguma coisa além da linguagem em si. A poesia concreta é a

realidade em si. Deste modo, denuncia aspectos de nossa realidade que são abafados pela 61 Por utilidade não se quer dizer que a poesia deva seguir os princípios utilitários conforme a arquitetura, o design e o urbanismo, mas apenas para formar uma linguagem comum com seu tempo. Uma poesia mais participativa como objeto de crítica do processo de modernização. Diferente da arquitetura, do urbanismo e do design, que se tornam úteis para o sistema de dominação, a poesia concreta consegue escapar a isto, pois apesar de seu conteúdo útil e funcional, não apresenta nenhuma finalidade determinada, como nos casos das artes visuais citadas. 62 POUND, Ezra. 2002. p. 40.

66

linguagem estabelecida. Atrás de um texto publicitário, por exemplo, esconde o interesse pela

ação em obter algo que não está implícito na linguagem. A poesia traz essa ação para si, para ser

consumida no momento da leitura. Ela não deixa nada pra depois. Tudo deve ser decodificado e

“consumido” no momento da leitura, diferente de um texto publicitário, por exemplo, onde o

texto esconde uma ação de compra. E é esta a característica mais marcante do movimento

concreto. Com uma estrutura mais próxima da linguagem utilizada pela indústria cultural, pois

explora som e imagem, assim como o jornal, a revista e, principalmente, a publicidade, deixa

escapar aspectos deste tipo de estrutura comunicativa que são abafados pela mídia,

principalmente a propaganda. Bosi destaca que

“não é difícil reconhecer nos poemas concretos o universo referencial que a sua estrutura propõe comunicar: aspectos da sociedade contemporânea, assentada no regime capitalista e na burocracia, e saturada de objetos mercáveis, de imagens de propaganda, de erotismo e sentimentalismo comerciais, de lugares-comuns díspares que entravam a linguagem amenizando-lhe o tônus crítico e criador.”63

O poema “Terra” de Décio Pignatari nos fornece um exemplo frutífero de como a

estrutura da poesia concreta deixa escapar os desvios de linguagem da qual a prosa

comunicativa quer se desvencilhar:

64

63 BOSI, Alfredo. 1994. p. 482. 64 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de. 2006. p. 111.

67

Num primeiro momento, o leitor percebe que se trata de uma variação da palavra terra

numa estrutura espacial qualquer. Porém, quando se começa a dar mais atenção ao poema, logo

na segunda linha percebemos a formação de uma nova palavra “erra” que já aponta para um erro

da repetição da palavra “terra”, produzindo uma nova estrutura comunicativa diferente do

esperado. O mesmo acontece ao percebermos que de “terra”, se formou “ter”, “ara terra”, “rara

terra”, “erra ara terra” e “terra ara terra”. De uma simples palavra como no caso “terra” o poema

deixa explodir significados que causam uma estranheza no indivíduo acostumado com uma

linguagem mais abstrata da comunicação e o transfere para outras possibilidades inesperadas,

porém decodificadas no ato da leitura.

Na propaganda o processo total de decodificação só vai ocorrer depois que o receptor

parte para a ação de consumo. Ao ler uma revista, por exemplo, e se defrontar com um anúncio

que diz “Beba Coca-cola” ao lado de uma imagem de um modelo feliz ao saborear o

refrigerante, o receptor percebe que o entendimento daquele texto só fará sentido a partir do

momento em que ele adquirir este produto para poder se sentir tal qual o modelo. E, geralmente,

vai com tanta sede ao pote que dificilmente terá uma reação diferente da esperada pelo

fabricante no momento em que veiculou este anuncio.

Um poema concreto não deixa espaço para este tipo de ação. O poeta satisfaz seu

interlocutor no momento do poema, não deixando espaço para depois. Demonstra que na

comunicação a partir da forma, a ação a ser desempenhada não precisa ser postergada. O tempo

do poema é o ato da leitura e o depois se configura apenas numa possível outra leitura, como,

por exemplo, no poema de Décio Pignatari:

68

beba coca cola babe coca cola beba coca babe cola caco caco cola c l o a c a65

Nessa construção que parte do slogan de um anúncio de Coca-cola, o poeta faz um jogo

com as letras de “beba coca cola” formando palavras como “babe”, “caco” e “cola” que permite

ao leitor um estranhamento do que ele está acostumado a visualizar gerando interpretações que

não corresponde ao ato de compra, mas o lança no mundo das formas, onde a palavra só faz

sentido naquele exato momento e através de toda a estrutura. Ao terminar o poema com

“cloaca”, este estranhamento é levado às últimas conseqüências e através de um ruído criado na

comunicação habitual o ato da compra é deixado para trás, cedendo lugar à beleza do poema e

toda sua carga de fascinação. Utiliza o método da forma que disforma, para transformar o

imediatamente conhecido em uma experiência outra, tal qual outra construção poética do

período concreto: “forma disforma transforma”. Assim, o poema “Beba coca cola” acima

citado, como vários outros concretos, propõe um novo tipo de propaganda ou “antipropaganda”

a partir de criações sintáticas e semânticas novas:

“o estímulo imediato que um poema concreto pode trazer para a clarificação dos hábitos mentais, para a criação de reações semânticas novas, que, por contágio, agucem no leitor a percepção da real estrutura da linguagem de comunicação cotidiana e o preparem (...) para sistemas não-aristotélicos de comunicação de idéias, capazes de não escamotear a estrutura do mundo em que vivemos”66

65 Idem. p. 124. 66 Idem. p. 122.

69

Muitas foram as críticas ao movimento concreto. Alguns acusavam de não ser poesia,

pois se a obra poética não tem sentido sem a colaboração da linguagem na prática, ou seja, da

oralidade corrente, a poesia concreta, com sua apelação ao estritamente visual, estaria mais

ligada a uma atividade decorativa, que poderia estar simplesmente vinculada ao design e não à

literatura. Outros, como Gullar, por exemplo, destacaram que a poesia concreta estava se

desviando de seu caminho no momento em que começou a se basear numa equação matemática

ou modelo matemático. Segundo ele, o número e a palavra pertencem a universos simbólicos

distintos.67

Não quero entrar nessa discussão. Apenas acredito que o principal problema de todos os

movimentos de vanguarda reside no fato de terem se baseado na estrutura delimitada de um

manifesto que determinava até que ponto podia ir a atividade criadora que, por si só, teria que

ser livre para buscar apresentar, da melhor maneira, sua intenção. O mesmo manifesto

necessário para a ruptura brusca com as regras da tradição anterior, também foi responsável em

criar novas regras de atuação da atividade criadora de seus membros. A obra de arte caracteriza-

se por uma liberdade expressiva que era dificultada pelas normas do manifesto que não a

deixava progredir. Assim como a indústria cultural renova sua forma de comunicação (apesar de

seu fim ser sempre o mesmo) a poesia também teve que passar por uma reestruturação que fosse

mais condizente com os dias atuais, e aquelas estruturas concretas começaram a não gerar tanto

efeito quanto a que conseguiram na década de 50 e início de 60, devido ao fato de terem sido

apropriadas pelos meios de comunicação de massa. Ela alcançou uma certa saturação que

permitiu um processo de assimilação e se perdeu entre os conceitos que a delimitavam. Gonzalo

destaca que as

67 GULLAR, Ferreira. 1989. p. 31.

70

“experimentações com a forma artística, tal como as vanguardas a conceberam, foram restringindo-se cada vez mais, à medida que essas renovações formais eram velozmente apropriadas pelos meios de comunicação de massa (embora o fossem com um nível de densidade mais baixo) e que as possibilidades de uma transformação social integral ou revolucionária se encerravam. No Brasil, isso ocorreu aproximadamente no final de 1969, quando o regime militar instituiu os atos repressivos que frustraram toda possibilidade de mudança.”68

Com o passar dos anos, a atividade poética vai se renovando e busca uma estrutura

sintática nem tão radical quanto os concretos, nem tão vazia quanto o discurso da mídia. Parte

para uma linha mais tênue e ao mesmo tempo mais agressiva ao utilizar a linguagem normativa

da comunicação para “descomunicar” e gerar uma estética mais dinâmica e eficiente.

A principal contribuição da poesia concreta foi identificar, através da forma ,que o “eu”

lírico tradicional não fazia mais sentido em um mundo onde a mídia cada vez mais exibia sua

força e o inimigo já não eram mais somente os patrões que exploravam o trabalhador, mas

também os objetos que desfilavam nas vitrines contemporâneas a fim de serem consumidos. Era

preciso que aquele “eu” lírico fosse abandonado e o sujeito das obras fosse transferido para os

produtos de consumo, que assumiam uma participação marcante na contemporaneidade. Desta

forma, a atividade artística não pode mais se contentar ao que está por trás da mercadoria, mas

aproveitar-se dela para adquirir experiência. Na época da composição do poema “Beba coca

cola” de Décio Pignatari os slogans publicitários estavam em fase de constante desenvolvimento

e o poema, segundo Aguilar, teve

“la virtud de incluir em la serie poética la publicidad y los slogans cada vez más presentes em la vida cotidiana, el poema – paradójicamente – invocaba a um sujeto que, em términos teóricos, había sido proscripto (...) La ‘disaparición elocutoria del yo’ que se había cumplido según el precepto de Mallarmé em los otros poemas, volvia a ingresar em ‘Beba coca cola’ mediante la banalidad del consumo (...) el poema puede prescindir del sujeto humanista pero no puede resistirse a la mercancía como sujeto.”69

68 AGUILLAR, Gonzalo. 2005. p. 45. . 69 AGUILAR, Gonzalo. 2006. p. 3.

71

A eliminação de qualquer sujeito que as obras concretas tinham abandonado, volta neste poema,

porém não como recuperação de um “eu” perdido, mas como invocação de um imperativo

direcionado na segunda pessoa do singular (“Beba”) que vem reforçar o produto como sujeito.

Desta forma, uma evolução dos procedimentos concretos consiste em abrir caminho para

a inserção da atividade artística na linguagem da comunicação e encontrar na mercadoria um

caráter outro que não seja o de utilidade e consumo. Muitas obras tomaram este rumo, como o

caso da série “Cosmococas” de Hélio Oiticica que criou a dubiedade da palavra “coca” de

“coca-cola” com a redução de “cocaína”, destacando que não é mais preciso, talvez nem

possível, intervir no objeto, mas buscar nele novas possibilidades. Aguilar, ao comparar tal obra

de Oiticica com uma outra de Meirelles onde este cola um adesivo em garrafas de Coca-cola

com a mensagem “Yankees go home” e depois a redistribui, ressalta que

“Oiticica, a diferencia de Meireles, no interviene el objeto: el mundo de la reproducción técnica asume su proprio automatismo y la mercancía continúa circulando, como lo hace habitualmente, impasible e indiferente. Ya no es la naturaleza de la mercancía develada de Meireles, sino el objeto por el que hay que pasar para adquirir uma experiencia y que abre la posibilidad de um nuevo sublime. El afuera, que unos pocos años antes era factibile, ahora estaba definitivamente clausurado: ya no hay lugar desde donde desenmascarar a la mercancía.”70

Oiticica, ao contrário de Meirelles, não modifica o objeto, mas passa através dele para

mostrar o que ele possui de mais inesperado. O ato revolucionário de Meireles em modificar o

rótulo do refrigerante para depois redistribuí-lo abriu caminhos para o campo crítico da arte,

porém não adquire um poder tão desmistificador do objeto devido ao seu reduzido espaço de

atuação, pois nunca conseguiria disputar com o sistema de distribuição de uma mega indústria

como a da Coca-cola. Além do mais, a mercadoria já alcançou seu status de objeto presente no

cotidiano e não necessita mais desmascará-lo. Já a atitude de Oiticica em criar a dubiedade

70 Idem. p. 04.

72

presente no produto a partir de seus elementos comunicativos (coca-cola/cocaína) assume um

caráter transgressor e viável ao mesmo tempo.

Visto isto, o importante é reforçar que os concretos já nos precaviam nas décadas de

cinqüenta e sessenta de que a mercadoria se encontrava em presença maciça no cotidiano e uma

atividade estética atuando naquele período e nos que viriam a suceder não poderia deixar de

levar em consideração o princípio de que estes produtos representavam o momento presente e

que não era possível abstraí-los ou simplesmente denunciá-los. Hoje, como já era naquela

época, não devemos esquecer o fato de que a mesma indústria que possibilita a criação do

cinema, da pintura, da escultura, da literatura, entre outras formas verdadeiramente artísticas é a

mesma que produz o “cinemão” enlatado, a pintura dos painéis publicitários de produtos

massificados, os tecidos que compõem a moda dominante e o papel necessário para a produção

das revistas, jornais e livros de caráter manipulador e, conseqüentemente, repressivo.

É preciso reforçar a idéia de que não se tem mais como escapar da presença das

mercadorias em nosso cotidiano. Elas representam, mais que nunca, a atualidade. E a verdadeira

obra de arte deve levar isso em consideração e trabalhar no seio do mercado para atingir um

grau verdadeiramente revolucionário. A obra poética decisiva nos dias de hoje deve destacar, a

partir da linguagem que os meios de comunicação de massa atribuem aos seus produtos, os

momentos em que esta linguagem apresenta algo de inesperado. Seu lado negativo e oculto deve

ser salientado e colocado em exibição.

Muitos são os poetas que partiram para esse novo tipo de experiência. Partem da

linguagem habitual da comunicação discursiva em geral para criação de seus poemas a partir

daqueles elementos que a torna mais fragilizada. Criam uma nova sintaxe em torno da sintaxe

corrente, elegem palavras que são deixadas de lado pela mídia e abandonam um “eu” emotivo

73

para, através de uma linguagem mais objetiva, comover o receptor ao contrário de expor seus

sentimentos mais subjetivos. É esta a linha que os poetas de que pretendo falar vão percorrer.

Com o passar dos anos a linguagem desenvolvida pelos concretos vai perdendo sua força e se

faz necessário uma construção lingüística mais eficaz e mais próxima desta linguagem fabricada

pelos meios de comunicação de massa.

Porém, outra contribuição, que não se pode deixar de suscitar com relação ao movimento

concreto, reside no fato de ter retomado as discussões formais, que podem ter sofrido um recuo

pela geração de 45, e apresentado novos caminhos ao romper as barreiras tradicionais entre as

diversas formas de arte e propor uma percepção mais rica do todo espaciotemporal de que faz

parte nossa sensibilidade que se encontra em constante contato com uma cultural áudio-visual

proporcionada pelas novas tecnologias da comunicação. Muitos poetas incorporaram em sua

produção alguns destes aspectos da poesia concreta, como veremos no caso de Sebastião Uchoa

Leite, onde, principalmente em seu livro Antilogias, utiliza-se dos recursos do concretismo,

porém de um modo muito particular e irônico.

74

5 POESIA NO CAPITALISMO AVANÇADO .

A poesia concreta foi promissora para a atividade poética brasileira no sentido de ter

direcionado um campo de ação mais atual e fornecido as bases da estrutura formal que uma arte

literária deveria dispor no momento de embate, ou seja, quando estamos constantemente em

contato com a linguagem em seus formatos mais diversificados. O problema é que os elementos

acústico-visuais que predominavam no concretismo foram facilmente assimilados pela mídia e,

como o forte das obras concretas residia nisto, houve uma vulgarização de seus procedimentos

e, conseqüentemente, seu enfraquecimento.

Baseado nisso, é preciso destacar outra característica muito importante para o melhor

entendimento deste trabalho. A poesia que se diz verdadeiramente moderna é inassimilável por

natureza. O mundo obscuro habitado por aquelas categorias buscadas pelos primeiros

românticos como o mórbido, o destrutivo, o anormal podem facilmente serem assimiladas pela

sociedade de consumo, transformandos-os apenas em desvios do que seria normal para ela. Tais

distúrbios sociais podem ser tratados pelos psicólogos, da mesma forma como a arte antiga pode

ser vendida ao lado dos bestsellers e compreendida com a consciência do ser industrial, aquele

produzido pela sociedade capitalista. A poesia moderna não. Pelo simples motivo de que ela

trabalha com uma linguagem que difere da habitual, da comunicação pura e simples. A obra

poética trabalha com os desvios da linguagem e não fornece nenhum entendimento preciso, dá

margem à fantasia e ativa novas formas de pensar e perceber. Isso a torna irreconciliável com a

sociedade industrial. Quando esta linguagem ativa as categorias negativas da sociedade, passa a

oferecer resistência a ela e adquire um grau de periculosidade ao status quo. É por isso que

acredito ser a forma mais eficiente de negação. A poesia transforma o pensamento discursivo da

75

prosa em um pensamento visual. Aproxima-se, assim, das artes plásticas: a palavra, como

pintura e o poema, como quadro. Todo conteúdo poético é dado pelo conjunto da obra. A

palavra não pode ser diagnosticada apenas com seu significado primeiro. Isto confunde o leitor,

mas, ao mesmo tempo, ativa nele novas sensibilidades desconhecidas pela prosa corrente. Na

prosa, a imagem gráfica nos conduz a outra coisa que não a ela própria, é abstrata, uma coisa

quer dizer outra diferente daquela coisa em si. A diferença da poesia é que as imagens do poema

não nos conduzem a outra coisa, mas nos colocam diante de uma coisa concreta. A prosa

consegue explicar um mesmo fato de várias maneiras. Na poesia, existe apenas uma maneira de

explicar aquele fato. É por isso que só através dela conseguimos, muitas vezes, entender coisas

que não se consegue delimitar precisamente pela linguagem corrente, pois a poesia é concreta,

nos faz captar o conteúdo com o sentimento e não a partir de explicações abstratas. Quando

Celan quer demonstrar os horrores causados pelo Holocausto, não os faz a partir da descrição

abstrata da prosa. Este processo, para ele, seria impossível, pois como poderia dar nome a esta

experiência de perda tão degradante? Deste modo, ele vai nos fornecer, a partir de sua obra

poética, a imagem da guerra e de seus horrores. Esta experiência não pode ser apresentada a

partir de coisas heterogêneas com múltiplos significados, ela tem de ser original e isto só pode

ser alcançado por sensações possíveis apenas através da arte, aqui, especificamente, o poema.

No caso da poesia concreta, a forma espaciotemporal composta de modo similar a forma

do design proporcionou uma importante abertura para a poesia brasileira em geral. Porém,

apesar da atividade poética do movimento apresentar, como qualquer obra verdadeiramente

artística, nenhuma finalidade específica determinada o que dificulta sofrer um processo de

assimilação pelos meios massivos, sua estrutura formal foi aglutinada pela estética da

propaganda e não consegue mais surtir um efeito tão devastador quanto fora na sua época de

76

criação, apesar de ter deixado como herança aos seus sucessores a importância do caráter visual

da linguagem poética. Augusto de Campos continuou a trilhar este caminho e produziu poemas

interessantes no novo contexto cultural, já que, com o avanço das novas tecnologias digitais da

informática, o efeito do poema concreto teria um novo espaço mais produtivo e adequado.

Porém, seus “Morfogramas” publicados em cd junto ao livro de poemas “Não” de 2003

adquirem um valor extraordinário devido, mais à sua habilidade no trato com as palavras e com

a linguagem de expressão, do que simplesmente pelas características digitais do meio, pois

estamos constantemente expostos a ele. É válida a produção nestes meios porque dialoga

diretamente com o que de mais recente as novas tecnologias têm criado, porém deixa de adquirir

tanto poder quanto à época do surgimento do concretismo e até mesmo um fracasso total se não

trabalhado de modo eficiente. O modelo de poesia mais eficaz agora, já que somos diariamente

bombardeados pela linguagem dos meios de comunicação de massa, seria aquele que busca

nesta linguagem o pouco de indizível que o discurso dominante não consegue ou não quer

expressar, independente do meio a que vai se dispor. Estas categorias não devem apenas ser

descritas, mas apresentadas pela linguagem poética.

É normal encontrarmos produções artísticas que perseguem o ruído da linguagem

habitual quando estamos em constante contato com discursos corriqueiros através de programas,

principalmente, televisivos responsáveis pela vulgarização da fala. Quando chegamos em casa,

ligamos o aparelho de televisão e entramos em contato com revelações cotidianas que, por

serem tão banais, bloqueiam nossa vontade de expressão naquele idioma, é natural que os

artistas partam para um processo de criação diferente para poderem melhor se expressar. Este

procedimento faz com que surjam novas possibilidades de linguagem e se produza uma obra

poética mais difícil e obscura, através de uma sintaxe mais quebrada e menos discursiva, pelo

77

menos do modo que estamos habituado. Marjorie Perlof também segue esta mesma linha de

raciocínio e exemplifica de modo mais claro este procedimento:

“essa explosão de talk shows horríveis como Donna Hill, Geraldo, Arsênio Hall, Donahue Show, que abordam diariamente todo tipo de tema, adultério, incesto, pais gays com filhos, masoquismo, e onde são discutidos os detalhes mais íntimos da vida privada. Como a de um pai que praticou incesto com as filhas, e a mãe e as filhas apareciam também no programa, falando sobre isso. Então, quando se tem este tipo de atmosfera isso faz com que os poetas se movam num terreno mais artificial, no sentido positivo: reintroduzir na poesia um tipo de dificuldade e artifício que permita se afastar deste tipo de revelação íntima, de auto-consciência, bem como da fala, da noção de uma poética baseada na fala. A noção é que quando você ouve tanta fala degradada você não quer imitar todos esses padrões.”71

Portanto, a construção de uma poesia mais difícil e, ao mesmo tempo, eficaz neste

contexto de empobrecimento do discurso, tem aparecido e é preciso que adquira um espaço de

destaque perante a circulação dos produtos culturais fabricados pelo sistema.

Neste trabalho, procurar-se-á demonstrar que os dois poetas em questão trabalham nesse

caminho e são importantes por exemplificar que, apesar de nossa regressão estética

proporcionada pela cultura industrial, ainda mais no capitalismo tardio onde temos a disposição

mecanismos técnicos tão eficientes para o controle da população, ainda podemos contar com

representantes desta “outra voz”, como diz Otávio Paz em relação a verdadeira obra poética.

Tarso de Melo cria um poema que não “descreve” a realidade de uma grande cidade pura e

simples, mas, através de seus poemas, apresenta a realidade de maneira concreta, onde

possamos senti-la. Sebastião Uchoa Leite mostra, de maneira interessante, como é possível fazer

poesia a partir dos próprios aparatos da Indústria Cultural, se utilizando da ironia e da expulsão

do ego.

Tarso de Melo, que nasceu em Santo André, região metropolitana da grande São Paulo, e

viveu no clima da maior cidade brasileira, é um dos poucos casos de poetas brasileiros que vai

71 LOPES, Rodrigo Garcia. 1996. p. 5.

78

denunciar esta realidade cinza e consumida pelos males provocados pela modernidade em uma

grande metrópole. A obra do autor retrata a atmosfera urbana, mas procura atribuir ao universo

da cidade uma realidade fora da habitual, construindo uma nova paisagem, aquela que

normalmente não se diz. Seus poemas parecem ser um local, um oásis de palavras e livros, em

meio ao caos. Se a realidade circundante não é assunto direto, é, pelo menos, clima, paisagem,

mas com algo de ruína. A cidade que ele quer retratar é “pintada” sobre a folha e não, descrita.

É necessário um exercício de distração da realidade aparente para criar uma outra, mais original,

a realidade da negação:

“(escravo exercício de distração

anotar as coisas que não o jamais dos dias

o nunca a falta o oco)”72

Em “Carbono”, por exemplo, o poeta, através do gás tóxico, símbolo do progresso e da

modernização, pois se trata daquilo que é liberado pelos automóveis, pelas indústrias pesadas e

por várias outras máquinas modernas, pinta uma cidade mais cinza e sombria capaz de

demonstrar, de uma maneira mais instigante, o preço que pagamos pelo desenvolvimento

urbano nas grandes cidades:

“um dia igual aos outros olhos vermelhos, boca

seca, respiração frustrada : vivo (treze de junho de

dois mil e um) asfixias, monóxidos, dióxidos –

sua asma agora é minha”73

72 MELO, Tarso. 2002. p. 58. 73 Idem. p. 13.

79

A cidade, como matéria prima de sua obra, como paisagem de fundo que se configura

em personagem principal, serve de apoio para que Tarso construa sua poesia crítica da

atualidade de um modo bastante peculiar. Nos poemas nem sempre fica fácil saber do que

exatamente o poeta está falando. Há um jogo de palavras, imagens, símbolos que pedem uma

decifração lenta e cautelosa, como toda boa obra poética exige do leitor. Mas o mínimo contato

já cria uma sensação de melancolia, de angústia, de fragmentação do indivíduo e de tensão. E

isto se dá a partir da construção sensível dos versos concisos e fragmentados. É através de uma

sintaxe anômala que o autor procura criar no leitor uma sensação de incertezas e incompletude.

É o elemento surpresa de quem está acostumado a ver a cidade como símbolo do progresso da

humanidade e de libertação do homem. São Paulo deixa de ser a capital econômica que facilitou

ao homem o acesso a todas as suas vontades e, conseqüentemente, à liberdade, para, ao

contrário, ser vista como símbolo maior da escravidão humana pelas máquinas modernas. Isto

pode ser observado tanto em “Carbono”, como já fora dito acima, como na sua obra mais

recente: “Planos de Fuga e Outros Poemas”. Nesta obra o autor relata a impossibilidade de

escapar do cotidiano vazio e solitário da cidade para exercer sua individualidade,

individualidade que se encontra escondida atrás de tudo que está aparente. A grande dificuldade

do poeta é a de exercer seu ofício e seu pensamento num local que vigia o homem o tempo todo,

a dificuldade cada vez maior da negação. Assim, esboça planos para escapar da realidade

massacrante da metrópole e desta forma vai construindo seu pensamento crítico a partir dos

impulsos causados pelas frestas entre uma palavra e outra:

“daqui, anotações para um mapa qualquer – perder-se, sempre. A esta luz. Janelas podem estar abertas ou, cer- radas, fundir o espaço. Pouco. Tudo se comporta como

ameaça, indício, grade. Falta pouco. Os punhos da cami- sa; os últimos indícios de um sol distante, íntimos. Uma pés-

soa que entra, sua conversa. Perfura a fala, estaca entre sílabas, o medo. Sem direção. Lembrar visita as horas,

80

vitima. Como os ponteiros voltando rápidos ao mesmo ponto, como os limites de uma cicatriz se expandindo,...”74

Neste poema, a fuga do poeta vai se dando a partir da construção das frases. Pouco a

pouco, através da forma do poema, o poeta vai conseguindo se destacar daquela realidade

infame e dar movimento ao pensar. Isto lembra um pouco o conceito de ensaio esboçado por

Adorno no seu texto “o ensaio como forma”. Neste, o autor destaca que a análise das obras do

espírito deve ser criada não só pelos conteúdos, como quer a ciência e, nem apenas pela forma.

É preciso que a forma movimente os conteúdos no mesmo fluxo do pensamento. Nada mais

comum quando se trata de um poema de crítica social da realidade fabricada pelo sistema, aliás,

como já fora relatado anteriormente com a análise do texto de Adorno “Palestra sobre Lírica e

Sociedade”, a poesia já é crítica por natureza desta realidade. O poeta entendeu que não seria

preciso criar uma nova poesia, pois a poesia de ruptura, de conteúdos negativos, como definiu

Friedrich na sua “Estrutura da Lírica Moderna”, com a qual trabalha é uma característica que

veio sendo trabalhada pelos poetas modernos desde Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, mas que,

para alcançar tal ruptura, é preciso ampliar e reforçar a forma do poema, para fazer jus a uma

sociedade que desgastou o valor do signo lingüístico. Este é o seu principal trabalho: criar uma

nova ordem, uma nova linguagem de sentido obscuro, que afaste do simplesmente

comunicativo. É neste mesmo fluxo que o autor vai denunciando a cidade em que vive e seus

costumes. O espaço urbano deixa de ser sinônimo de construção e passa a ser de destruição de

toda paisagem:

“a cidade que usamos, nossas roupas, esses carros – dentro da máquina surda há a paisagem se desfazendo (...) não costumam ser assim – parece agora, que sempre vestiram aquele azul rústico, aquele cinza ao redor, aquele branco”75

74 MELO, Tarso. 2005. p. 08. 75 Idem. p. 09 e 10.

81

A musicalidade do poema é apática e dissonante, quase nula, não oferecendo ao leitor a

possibilidade de repouso ou oxigênio diante do novo cenário da cidade. Nada mais comum para

um poeta moderno, cercado por barulhos de todos os tipos (ônibus, tiros, latidos, vizinhos), criar

uma música mais tímida e silenciosa. Aliás, num século em que a própria música rebelou-se

contra as convenções musicais, como John Cage que se dedicou em explorar o ruído e o silêncio

nas suas composições, não espanta que também a poesia a tratasse com certa distância. Este é

outro fator que Tarso de Melo utiliza como apoio para sua crítica. A partir dele, vai seguindo

seu fluxo e denunciando o modo inumano que estamos acostumados a levar nossas vidas.

Porém, apesar do relógio empírico não parar de girar, o autor suspende o tempo para denunciar

a estaticidade dos dias:

“(...) o álbum dos cartazes fechado: um eco decreta a noite. Ou saber-se sem saída, durante a lágrima, breve. A escada turva que leva ao dia seguinte, à próxima ilusão, ao instante que basta: cacos - e vasto. O labirinto nascendo à passagem – os olhos

fixos, mecânicos, movendo as estruturas, algumas luas, singrando a parede e a perspectiva das sombras que se retiram. A partir delas. Mesmas. O quadro nasce com-

pleto: outra janela que se fecha”76

O mundo é um círculo vicioso. O dia nasce completo, a noite é uma escada turva que

leva ao dia seguinte, impossibilitando o plano de fuga do autor. O tempo mecânico é odiado

pelo poeta como já fora outrora odiado pelos seus predecessores, como Baudelaire, por

exemplo, pois oferece resistência ao seu tempo interior, que constitui o refúgio para a

constituição de sua obra, o refúgio para o que está nas sombras. Mas Tarso resiste e continua

sua busca por uma outra realidade:

“(...) A saída, a clama, a alegria: nada disso foi encontrado. Impossível, ainda, domar o caminho. Tampouco estio, sombra, silêncio. O

76 Ibidem. p. 11.

82

abate da fera, sonho, continua sonho. Nem o poema vio- lentou, enfim, seu alvo ou a ilusão, completa, se satisfez.

(...) A esquina, a mente, o ônibus: idêntico estado de coisas”77

Outra dificuldade: a palavra. Como trabalhar com um elemento desgastado pela

racionalidade científica? A palavra perdeu sua autenticidade e se transformou em objeto de

apoio para a informação. Como esvaziá-la de todo significado pré-concebido? Como alcançar a

sua verdadeira natureza? O poema cria novos sentidos às palavras, pouco a pouco, vê-se que é

preciso esvaziá-las para aproximá-las do ponto e o dicionário vai-se tornando um estranho.

Nada é o que é a primeira vista:

“o assunto parece ser política, o que se espera do outro, se insuperáveis os limites, o que representa isto, isso, aquilo.

De repente muda. Certo apego pela dúvida, um incons- tante visitar a margem das palavras, do que imaginava- mos ser o sentido delas. E das coisas através delas, do constrangimento a elas, dos contextos a que estão sub- metidas. Mas não se aproxima do ponto, o vento canta nas frestas, a única ração já não é mais suficiente – e o

dicionário é um estranho. Já não há sombra dos poemas, a cada certeza que os desescreve”78

E a informação que se diz relatar uma verdadeira história humana que não precisa ser

criada, pois já viera pronta? Pronta para ser retratada, descrita e esquecida. Walter Benjamin em

“Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política” ressaltou que o tempo do capitalismo

proporciona a ausência do novo, pois os fatos entram num círculo vicioso. Não existe a

inovação, apenas a repetição. Se nada se renova ficando estagnado, deixa de existir também a

história. A impossibilidade de história pode ser verificada na banalidade das reportagens e

noticiários sobre desrespeito com o homem. Os crimes que acabam com a vida de um ser

humano, pouco a pouco se naturalizam por serem freqüentes e já não nos causam espanto, pois

77 Ibidem. p. 12. 78 Ibidem. p. 14.

83

passaram a ser corriqueiros. E assim, vamos morrendo junto com o assassinado até que mais um

dia surja e seguimos nossa vidinha estagnada:

“(...) Três: morto, veste folhas de jornal, tinge-as, fede enquanto a viatura não chega; ninguém viu nada. O destino, decerto, deixou rastro. Ou quem não partici- pou dos crimes. Talvez entender seus conceitos – justi- ça, direito, lei: gravando nos livros as notícias de jornal

ainda inscritas nas pontas dos dedos – não seja o trabalho para esta hora. Para a próxima. Um outro objeto quer a

atenção, e se cala (...) O que leva, o que deixa, o que some. Não há mais do que isso

a desenhar a história”79

No meio de todo este caos, surge enfim a experiência artística como uma espécie de

vertigem capaz de desconstruir num flash toda a noção de tempo do calendário, da entrada e

saída das fábricas, dos compromissos, dos sentidos abstratos das palavras. Tudo fica suspenso.

Eis o mundo das sombras. A música “penetra na gente por um tempo que é não apenas o seu

tempo empírico, mas o tempo do não-tempo, uma espécie de experiência da eternidade”.80

Assim, a experiência reflete e dá asas ao processo criativo do poeta: “a experiência reflete: uma

biblioteca feita a juros. Atento ao silêncio, encaixo as peças que faltam ao horizonte, busco sua

música, usufruo de sua violência”.81 Porém, logo a experiência se vê por vencida e a rotina

abate novamente a vida cotidiana. Toda a sensação daquele instante é interrompida pelas

notícias que não nos levam mais a comoção:

“Os olhos se levantam do amplo quadrilátero – repleto de tragédias, fofocas, pechinchas – e estão secos. O tempo

passa assim: trens explodem, o time perde novamente, as chuvas devem voltar. Passamos assim: há poucos lugares aonde ir, nenhuma direção. Novas denúncias, suspeitas, investigações. Lavamos as mãos: o mundo acompanha a

tinta pelo ralo”82

79 Ibidem. p. 15 e 16. 80 Ibidem. p. 17. 81 Ibidem. p. 18. 82 Ibidem. p. 21.

84

Depois da rápida fuga, tudo volta ao normal: “(...) vai ficando cinza. Os livros já

fechados, teclas ainda quentes, o rádio mais e mais mudo. A noite não sabe por onde

começar”.83

São vários os pontos que denunciam o caos causado pelo advento da modernidade na

vida humana. Este poema nos permite desenvolver uma análise crítica nada promissora da

realidade.Pelo contrário, pouco a pouco vamos esquecendo cada vez mais de nossa natureza

humana em favor da manutenção da lógica do sistema. É a cidade grande, a palavra desgastada,

o dia a dia estático que dificulta o estado poético e, conseqüentemente, uma vida mais autêntica.

Desde o início da modernidade, já muito se falava da solidão e da angústia que causava

no indivíduo a formação das grandes cidades. Poe e Baudelaire, ainda no século XIX nos

chamava a atenção para este fato. Mal sabiam eles que o mundo rumava por caminhos bem mais

tortuosos. Naquela época, o ser humano, como hoje ainda, estava perdido no meio de uma

multidão e se sentia mais solitário, apesar da grande proximidade com as pessoas. A figura do

flâneur em Baudelaire e do assassino dos romances policiais de Poe deixavam se perder no

meio daquela multidão. Porém, o desaparecimento do humano, da individualidade e sua

conseqüente escravidão eram proporcionados por uma massa de pessoas aparentemente

idênticas. No meio do tumulto das ruas, o indivíduo deixa de ser homem e passa a ser mais um

no exército de escravos da cidade. Hoje, este exército é escravizado pelas máquinas. Seja

liberando gás tóxico, seja nos atropelando ou nos dando um tiro. Nas ruas, a multidão cede lugar

para as máquinas que tomam conta da cidade cinza, barulhenta e angustiante. Se naquela época

eram os homens que criavam as máquinas para facilitar nos seus afazeres, hoje a máquina é que

fabrica o homem, ou melhor o consumidor, sempre pronto a consumi-la.

83 Ibidem. p. 23.

85

Estas mesmas máquinas são responsáveis em produzir as informações que devem ser

divulgadas, digeridas e esquecidas, assim como nosso dia-a-dia: acordamos, trabalhamos e

dormimos com a sensação de que o dia não aconteceu. Sempre as mesmas coisas, os mesmos

acontecimentos narrados da mesma forma a partir de uma linguagem também estagnada pela

mídia, o que aumenta mais a nossa pobreza de experiência, pois nada acontece, tudo em nosso

cotidiano é banal.

Marjorie Perloff, numa entrevista cedida a Rodrigo Garcia Lopes, ao falar sobre seu

livro “Radical Artifice – Writing Poetry em the Age of Media” defende a idéia de que, ao

levarmos em conta que vivemos numa cultura dominada pelos meios de comunicação de massa,

aonde a linguagem vem sendo cada vez mais vulgarizada, é preciso criar artifícios lingüísticos

capazes de descrever uma outra realidade, menos representativa e mais real. Assim, esta

linguagem precisa enfrentar a difícil barreira de abandonar toda carga de imagens a que estamos

acostumados e criar um passaporte para o mundo autêntico. A esse respeito, Vera Lins em

“Poesia e Crítica: Uns e Outros” ressalta que

“o ato poético é a recusa violenta de um tipo de representação, um afastamento radical do familiar, um reencontro a partir da negação e do exílio, distância ou terra estranha. O poema não representa, mas passa a encenar a quebra de um mundo para poder fazer emergir o ainda não dito. A linguagem volta a ser hieróglifo”.84

Aqui, Tarso de Mello consegue dar este sentido a sua linguagem. Com sua sintaxe

quebrada e não linear, foge da representação da linguagem da comunicação e constrói uma

poesia da apresentação. Não representa uma realidade, mas apresenta, traz a tona o

desconhecido, demonstra a verdadeira realidade por traz de toda fabricação. Por tudo isso é que

talvez possamos citá-lo como o poeta lírico do mundo contemporâneo. Se o papel do artista na

atualidade é o de denunciar a falsa realidade e de mostrar o preço que estamos pagando por ela, 84 LINS, Vera. 2005. p. 33.

86

Tarso de Mello desempenha seu papel de maneira exemplar a partir de seu lirismo intenso e, por

isso mesmo, social.

Esta falsa realidade se problematizou ainda mais depois da segunda guerra mundial e da

derrubada simbólica e concreta do muro de Berlim. A experiência da guerra e os horrores de

Holocausto iniciaram um novo tipo de modernidade, onde a vida do homem em si não se

distingue de toda a sociedade. O humano agora vive em blocos e o fato de não ser reduzido a

apenas um bloco, antes se devia ao fato da cisão entre capitalismo e socialismo. Atualmente,

com o fim das grandes potências socialista, devido a dissolução do muro de Berlim, estes blocos

se reconfiguraram. Temos um bloco gigantesco dominado pelo pensamento científico-capitalista

e outro representado pelo pouco de contra cultura que pode ser encontrada na figura do artista.

O verdadeiro artista nega tudo que é determinado, todo sentido pré-configurado da mercadoria e

alcança o prazer nos momentos em que protesta contra tudo que fora pré-fabricado. O objetivo

da poesia reside no seu poder de desobjetivar toda a objetividade da ciência. Ora, a vida não

pode ser reduzida aos gráficos científicos, dessa forma pára com o andar da história e o mundo

fica estagnado e sem sentido. A poesia procura refazer a história, as paisagens, tentando abrir

tudo que está fechado, os sentidos fixos e as formas determinadas. É por isso que não procura

mais a luz, o belo, o educado, mas fala através das sombras, do sublime, das feras, do vampiro,

da negação de tudo que permita uma identificação prescrita do sujeito com o objeto. É por isso

que Sebastião Uchoa Leite vai criar uma poesia que parte da dissolução do “eu” lírico e de

“todas as cargas simbólicas” presentes no mundo contemporâneo. Em toda a sua obra pós-início

da década de 60, nos permite observar que, aos poucos, o artista vai se desligando de uma

linguagem melódica e encantadora, ainda presente nas obras “Dez Sonetos sem Matéria” e “Dez

Exercícios numa Mesa sobre o Tempo e o Espaço”, e vai optar por uma posição política de

87

contravenção a tudo que é belo, partindo da linguagem. Começa a construir uma poética de

negação até mesmo do signo confortante, dos processos de comunicação eficiente. Isto é que o

torna muito significativo para a poesia nos tempos de hoje. O “eu” lírico é abandonado em favor

apenas de um algo que diz, sem nome, sem nada, sem buscar nenhuma explicação plausível,

apenas apresenta uma realidade outra que não aquela forçada pelo sistema. Não procura um

encontro com o mundo tal e qual ele se apresenta, mas um mundo outro, sem normas prescritas,

mas que possibilite uma redescoberta do “eu” íntimo, que fora, definitivamente, excluído depois

da segunda guerra mundial.

Primeiro passo do Sebastião moderno: se afastar da exaltação romântica do “eu”,

acompanhado por um distanciamento da linguagem normativa do soneto. Não que não exista

alguém que fale, mas esse alguém só aparece devido a pressões estéticas sociais, ou seja, como

a voz de um certo autor que fora eleito para apresentar sua tarefa. Não um “eu” que deva ser

exaltado, mas apenas um nada que apresenta seu discurso. Vários são os poemas que se pode

indicar esse sintoma em sua obra após os dois primeiros livros citados. Talvez o mais primitivo

e claro seria “Metassombro”:

“eu não sou eu nem o meu reflexo especulo-me na meia sombra que é meta de claridade distorço-me de intermédio estou fora de foco atrás de minha voz perdi todo o discurso minha língua é ofídica minha figura é a elipse”85

Essa aniquilação do eu é sintoma recorrente numa poesia que preza pela atonicidade dos

versos. A poética átona é utilizada como forma de agressão aos ouvidos acostumados ao louvor

85 LEITE, Sebastião Uchoa. 1988. p. 132.

88

do encanto e da rima sonora. Como fora dito acima, isto é recorrente neste tipo de poesia da

negação, tal como fora demonstrado na obra de Tarso de Melo, quando temos a nossa

disposição imediata um mundo repleto de barulhos por todos os lados, onde o silêncio e a

dissonância encontram-se em extinção. Costa Lima, relata que a atonicidade do poema é

responsável também pela destruição do ego. O poema dissonante, aliado a estética da negação,

age

“contra o eu, espécie de homólogo interno do mercado liberalmente deificado; o eu e o mercado, espaços em que a liberdade de cada um se cultiva. Contra pois a linguagem do sublime, a dizer dos sentimentos rarefeitos das almas eleitas, presentes mesmo em alguns dos mais cultuados ‘marginais’, fascinados com a contemplação do próprio umbigo”.86

O egocentrismo está presente no mercado, mesmo sendo em si ausente enquanto “eu”

autônomo, excluído da sociedade de massa. Apesar do eu biológico há muito tempo ter deixado

de existir, se aglutinou ao eu público, egocêntrico e a frente de todas as necessidades alheias. É

por isso que Costa Lima remete até mesmo a poética átona à destruição do eu que agora é

público. Tal poética age pela agressão, incomoda ao se manifestar no bem-estar da sociedade,

tal qual uma mosca, bem relatada na poesia de Sebastião, destacada pelo autor:

“as moscas pernambucanas nem místicas nem metafóricas são indiferentes: com certo método espicaçam a classe média dos aflitos os proletários do alto pascoal nem históricas nem marxistas na impertinência estilística mas ainda mais fino ou mais zombeteiro é o método das muriçocas seja dos mangues ou casa forte: zumbem não apocalípticas monótonas e metálicas com picadas de agulha numa espécie de poética átona”.87

86 LIMA, Luiz Costa. 1991. p. 172. 87 Idem. p. 171.

89

Neste poema é possível notar que sua lírica está presente com a missão de incomodar e o

incômodo não poupa ninguém, nem a classe média moradora dos bairros de Aflitos e Casa

Forte, nem os pobres do Alto Pascoal. A sua voz se configura numa outra, como uma mosca

átona que fere todas as classes, seja elas capitalistas ou marxistas. O eu se esconde atrás do

poema não apenas para se impessoalizar, mas para banir um eu a serviço do sistema. Deste

modo, essa “dissolução do ego”, à qual nos remete Costa Lima, está a serviço não apenas para

fornecer o efeito de sombra na lírica, mas também como um distanciamento crítico do poeta,

que percebe o mundo de soslaio, como figura bem coadjuvante. Álvaro Cardoso Gomes, resume

bem este procedimento utilizado por Sebastião para construir uma crítica baseada na dissolução

da realidade imediata e apresentação de uma outra:

“Esse desenraizamento da pessoa lírica por Sebastião Uchoa Leite faz parte não só de um programa de “obscurecimento” da lírica, como também de um distanciamento crítico do poeta. A poesia configura-se assim como um objeto que supõe não a elevação do “eu” ou a ordenação do mundo, mas como uma sombra intervalar, que questiona esse mesmo mundo com o olhar irônico, de viés. Desse modo, o poema, projetando-se como o espaço de palavras entre o “eu” ofuscado por sua própria sombra e o mundo banalizado pelo cotidiano, constrói-se como um autêntico objeto com peso, densidade e forma. O real deixa de ser apenas um mais-além, que se atinge pelo corredor transparente da palavra, na medida em que o poema, alimentando-se dele e, acima de tudo, subvertendo-o, ganha a própria dimensão de realidade. Poesia que incomoda, devido ao constante processo de desenigmação das coisas”.88

Tal dissolução do ego de Uchoa também não demonstra uma postura apolítica do poeta,

como alguém pode vir a indagar. Primeiro, que sua poesia da negação já expressa seu caráter

político-social por natureza; segundo, porque claramente se percebe em alguns de seus poemas

uma preocupação com os terrores que abate a sociedade. Em “Métodos e Estilos” nos faz notar

as injustiças do mundo. Enquanto uns pagam por crimes isolados, outros continuam livres

fornecendo doses diárias nas veias das inumeráveis vítimas:

88 GOMES, Álvaro Cardoso.

90

“beatrice cenci (16 anos) usou o seguinte método: pregos enfiados no olho e garganta do tirano francesco cenci (o pai) ela mesma instruindo os sicários lucrezia petroni (a mãe) beatrice e giacomo cenci (o irmão) foram condenados ao cadafalso pelo crime exato dos pregos há vários métodos: marteladas enxadadas peixeiradas são os chamados estilos diretos cada método tem sua classe o método por exemplo classe A doses diárias nas veias das vítimas tem alta cotação no mercado e ignora cadafalsos”89

Porém, a poética átona do autor não se reduz apenas ao campo do diretamente político.

Age mais como um poeta que desconfia do mundo e tenta esvaziá-lo com novos significados,

abrir o olho é apenas uma tática para o escape desta realidade injusta. O forte de sua poesia

reside no fato de que, mais do que literalmente política, é antes contraventora, refuta toda a

ordem a partir do esvaziamento de todo significado conhecido da palavra. Parte naquela linha

que Valery tanto ressalta em “Poesia e Pensamento Abstrato”. A palavra poética deve ser um

constante pêndulo que conjuga forma e conteúdo para, no final, alcançar uma significação

concreta, o que difere de um pensamento abstrato, onde a palavra designa uma outra coisa que

nada remete a sua materialidade. O aspecto em que mais se notará este efeito em seus poemas,

será no valor que a ironia assume em sua obra. Porém, deixemos este fato para mais adiante. Por

ora, o importante é ficar claro que a postura social do poeta está mais atrelada à linguagem em

si, que ao caráter panfletário de alguns dos seus poemas.

89 LEITE, Sebastião Uchoa. 1988. p. 94.

91

Outra característica marcante desta linguagem é uma constante prosificação do poema.

Isto é importante à medida que o liberta daqueles métodos de regulação da rima que a torna

mais harmônica e melódica, mas, ao mesmo tempo, permanece em sua estrutura obscura,

diferente da prosa da comunicação que se encontra cada vez mais presente em nosso dia-a-dia.

A vantagem da prosa poética reside na possibilidade de recusa total, tanto às normas que

comprimiam o poema, as regras formais, quanto na dissolução do significado dos signos

lingüísticos, obscurecendo os espaços de manutenção do poder. A prosificação do poema,

segundo Costa Lima, é notada tanto a partir do poema em prosa, como em “Reflexos”:

“Acordo de repente e reajo com mal-estar ao relógio virado para o lado em cima do móvel, porque traz a idéia da indiferença. Se, quase, virado de costas, traria a idéia da morte. Os relógios me olham e fiscalizam o meu tempo. Também os fiscalizo, porque encarnam a idéia de provisoriedade. Óculos que caem trazem também a idéia mortal da cegueira. E quadros tortos na parede refletem a idéia de desequilíbrio, de todas a que mais perturba. A desordem não é meu forte. Se as coisas se desequilibram, isso equivale a negar a vida? Mas, o que ela é, senão a desordem?”90

Quanto a partir dos versos desiguais de “Os Críticos Panópticos”, por exemplo:

“eles discursam eles mentem no lugar da mensagem mas essa história de códigos confundidos com linguagem nada tem a ver eles dizem que são funcionários mas o discurso é claro: que tem o poder do espaço tem o espaço do poder”91

Sebastião segue a linha de desintegração deste espaço do poder que perturba o poeta,

perturbando, assim, os detentores deste mesmo poder. As grandes corporações, principalmente

do campo das comunicações, confundem seus códigos com a linguagem e reduz o espaço crítico

do poeta. Assim como o relógio, que organiza a vida rumo à morte. Mas, segundo o poeta, não

90 Idem. p. 45. 91 Idem. p. 65.

92

seria a vida uma desordem? Abaixo todo equilíbrio, pois a essência vital está no desequilíbrio,

na ausência de padrões e normas. A poesia tem por fim apresentar outra realidade e este

“apresentar” se glorifica na estética do poema como quadro. A dificuldade seria construir uma

poética que busca uma imagem que não retrata nada, mas demonstra esta outra realidade.

Porém, o grande problema que se apresenta nos dias de hoje está no fato de como construir este

quadro imagético numa sociedade que vive de imagem? A sociedade do espetáculo só se

preserva devido ao grande investimento em produção e difusão de imagens que integram todo o

sistema: temos imagens do “justo” comportamento, nas figuras dos objetos a serem consumidos,

das celebridades a serem seguidas e da vida harmoniosa que devemos construir e consumir: uma

determinada casa, com um carro, uma família feliz, etc. No meio desse bombardeio de imagens

construídas, a poesia deve criar meios para produzir imagens outras que não as eleitas pelo

sistema, pois, como bem ressalta Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas

uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.92 A poesia deve procurar, no conjunto

das imagens disponíveis, aquelas que não condizem com esta relação pessoal fabricada. Porém,

com o avanço das novas tecnologias da comunicação e a fabricação massiva de imagens,

perdemos a referência em diferenciar o que é imagem virtual e o que é real. Até que ponto nosso

cérebro é capaz de produzir uma imaginação criadora quando estamos acostumados a receber de

fora todo tipo de criação imagética? Deste modo, não temos mais capacidade de saber quais

imagens são realmente criadas por nós e quais são aquelas que condicionam nossa experiência.

O próprio conceito de realidade se confunde no meio desta miscelânea. Costa Lima ressalta este

fato ao relatar que “estamos em um impasse em que a própria relação entre imaginação e

92 DEBORD, Guy. 1997. p. 14.

93

realidade parece não só invertida, mas totalmente subvertida.”93 Ao diagnosticar esta passagem,

se apropria do poema “Questões de Método” de Sebastião, para ilustrar a problemática:

“um monte de cadáveres em el salvador no fundo da foto carros e ônibus indiferentes será isso a realidade? degolas na América central presuntos desovados na baixada as teorias do state department uma nova linha de tordesilhas qual a linha divisória do real e do não real? questão de método: a realidade é igual ao real? o homem dos lobos foi real? o panopticum? o que é mais real: a leitura do jornal ou as aventuras de indiana Jones? o monólogo do pentágono ou orson welles atirando contra os espelhos?”94

O mundo se tornou espetáculo e já não se sabe delimitar até onde vai o real e quando

começa a ficção. Assistimos hoje a uma inversão de papéis. A ficção assume o papel de

realidade e esta se encontra em processo de extinção. Estamos constantemente em contato com

crimes e horrores através da tela da televisão e não sabemos se realidade ou ficção. Neste

cenário, as notícias são passageiras e muito do que entramos em contato deixa de ser real, mas o

autor nos lembra de que o crime não deixa também de ser texto, não precisa de explicação,

descarta as notícias, se diz por si só:

“em 1836 frança o chamado pierre rivière degolou mãe irmã e irmão menor os saberes institucionais entraram em contradição 140 anos depois um filósofo descobriu o texto assassinado um crime explicado pelo texto um texto explicado pelo crime

93 LIMA, Luiz Costa. 1991. p. 178. 94 Idem. p. 178.

94

em 1980 méier jovem médica liquidou a tiros pai irmã menor e matou-se tiro no ouvido o revólver cabo de madrepérola fora fabricado pelo pai não deixou explicações não houve mais notícias mas o crime não deixa de ser um texto”95

Na sua obra artística, Sebastião vai-se apropriar da figura da ironia para apresentar a

verdadeira realidade. Ironiza o mundo agradável a partir das imagens descartadas, como do

vampiro, do assassino, dos seres repugnantes, de substâncias tóxicas, vermes, lesmas, etc., isto o

aproxima de poetas como Poe, Augusto dos Anjos, Baudelaire, entre outros. Estas imagens, que

chama de amigos ocultos, pois estão banidos do sistema, são resgatadas para causar um impacto

no leitor e fornecê-los a chave para uma dimensão outra, como se percebe no poema “V

Internacional” que já no título se apresenta de forma irônica:

“antes que eles destruam vocês atenção amigos ocultos drácula nosferatu frankenstein mr hyde jack the ripper m – o vampiro de dusseldorf monstros do mundo inteiro: uni-vos!”96

Traz todas as figuras horripilantes de outras dimensões para os seres que convivem com

o mundo da técnica e da “bela” imagem. Abandona o belo eleito pela sociedade do espetáculo e

cede lugar ao sublime, que se converte em pesadelo sem sublimar, pois como vimos

anteriormente na obra de Marcuse, a sublimação está sempre acompanhada do perigo da

95 LEITE, Sebastião Uchoa. 1988. p. 83. 96 Idem. p. 136.

95

dessublimação. O motivo pelo qual estas imagens estão a salvo do perigo da dessublimação está

no princípio de Sebastião trabalhar todas elas a partir da ironia. A forma irônica corrói o

sublime e este é utilizado para alcançar uma linguagem diversa, a do medo, do perigo, de

constante ameaça à linguagem da comunicação. Esta ironização da linguagem apresenta-se nos

paradoxos com o qual trabalha o autor e nas antíteses que escapam da norma poética de outrora

e criam uma certa indecifração, causando uma insegurança presente. A linguagem da negação

de tudo, do horror e da anti-matéria, bem delineada no poema “Gênero Vitríolo”:

“do outro lado é o meu não-corpo uns tomam éter outros vitríolo eu bebo o possível bebo os mordentes sou todo intestino com fome de corrosão bebo o anti-leite com gosto de anti-matéria salto para o lado do meu outro aperto a mão do anti-sebastião u leite e explodo”97 (Idem, p. 133)

Observa-se aqui que as antíteses adquirem um valor diferente do que possuíam no

período Barroco. Se naquela época elas eram utilizadas para proporcionar uma sensação de

divisão entre uma cultura mística cristã e a recém inaugurada cultura científica, aqui a antítese

trabalha a serviço da ironia para trazer à tona uma realidade escondida por trás da ficção. A

antítese barroca criava uma tensão de escolha entre dois pólos opostos: o bem e o mal, o céu e o

inferno, o bonito e o feito. Sebastião suspende estas dicotomias para buscar um sentimento

diverso do bem e do mal, do céu e do inferno. Todos os seres repugnantes resgatados pelo poeta

estão a serviço de criar esta realidade escondida, nas sombras, nas dobras e nos lugares mais

obscuros. Sebastião se utiliza destas imagens para alcançar seu objetivo através de um

97 Ibidem. p. 133.

96

sentimento novo. Cria uma linguagem da ameaça, do sentimento que a vítima sente quando ao

encontro da fera, um sentimento acima do bem e do mal, pois estes seres ficam perdidos entre as

duas condições possíveis para fazer emergir um estado de tensão, uma nova dimensão da

linguagem que pode se perceber na figura da felinidade no poema em prosa “A Linguagem do

Susto”:

“Em Meu tio o Iauaretê Guimarães Rosa disse mais do que disse. Não falou apenas de onças, mas dos felinos. Não da individualidade, mas da espécie. Não apenas isso, porque não só dos felinos, mas da felinidade. Pois falando de onças estava falando também, sem dizer, da pantera, do leopardo ou do tigre. Isto é, do brilho dos animais noturnos, mesmo à luz do dia. Apenas falando de onças parece como se fosse só dos sertões das gerais. Mas se fala também da África ou de qualquer Lugar, onde passeiam os felinos. Ou do Tigre de William Blake ou da Pantera do Jardim des Plantes de Rainer Maria Rilke, ou ainda, por que não, do Black Cat de Edgar Poe e dos gatos que passeiam no cérebro de Baudelaire, e mesmo do pequeno gato preto e imóvel do ‘Olympia’ de Manet. Enfim, de uma certa dimensão à parte do universo, onde se confundem noções como elasticidade de corpos elétricos, toques rápidos na superfície, luz incandescente nos olhos, maciez, astúcia e crueldade. Ou melhor, a linguagem da felinidade, cheia de silêncios, de saltos e sobressaltos. A linguagem do susto e da atenção. Do que se abate sobre algo e do que sabe ficar agachado, à espreita.”98

Aqui está a chave que desvenda o fascínio do autor pela fera. Mas não pela onça, ou

tigre, ou pantera, em si, mas pela linguagem felina, tão próxima da estética de sua poesia. O

poema resgata a linguagem à parte do universo, cheia de silêncios, de saltos e sobressaltos, a

estética do susto e da atenção, capaz de apresentar o mundo das sombras e da noite, mesmo

durante o dia ensolarado. A figura da pantera deixa de ser matéria e se torna idéia:

“negra e inalterada por trás das grades lembro seus olhos parados não era mais um olhar era uma idéia”99

Portanto, todos estes seres têm um objetivo que complementa os objetivos do artista.

Somados à dissolução do ego, à atonicidade do poema e à prosificação o poema vai construindo

98 Ibidem. p. 40. 99 Ibidem. p. 100.

97

sua crítica baseado na ironia e apresentando novas possibilidades de leitura do real. O poeta

fascinado pela força expressiva da palavra e de tais figuras busca uma inverdade, um silêncio,

um nada, que desmistifica tudo. Cria o embate entre realidade construída, a ficção vida, e um

mundo que se preenche a partir das palavras que não denotam nada:

“ao fascínio do poeta pela palavra só iguala o da víbora pela sua presa as idéias são/não são o forte dos poetas idéias-dentes que mordem e se remordem: os poemas são o remorso dos códigos e/ou a poesia é o perfeito vazio absoluto os poemas são ecos de uma cisterna sem fundo ou erupções sem larva e ejaculações sem esperma ou canhões que denotam em silêncio: as palavras são denotações do nada ou serpentes que mordem a sua própria cauda”100

A palavra esvaziada de todo significado pré-concebido esboça o quadro irônico da

miséria humana. Porém, existe um fato muito presente na poética de Sebastião Uchoa Leite que

merece destaque. Além de construir uma poética própria a partir da linguagem já danificada

pela técnica científica, o autor se supera e consegue fazer brotar da obscuridade, o real da vida a

partir dos aparatos criados pela própria Indústria Cultural. Nota-se nas constantes referências às

invenções da indústria pesada da comunicação, como no poema “Nós (Pós-Zamiatin)”, onde o

poeta denúncia o atraso de nossa posição de países subdesenvolvidos em relação às descobertas

dos ditos menos de 10 “avançados”:

“Enquanto o clube dos menos de 10 opera tecnologias de ponta estamos no páreo: fibras óticas geradores-receptores de raios laser transmissões simultâneas etc. Quando menos você esperar já se fez o anel perimetral de fibras óticas interligando centrais da zona sul à periferia

100 Ibidem. p. 115.

98

correio eletrônico tevês interativas-bidirecionais sinais de vídeo e áudio intermetropolitanos sem diafonias etc. Enquanto isso operamos nossos velhos sistemas psi afônicos e diafônicos.”101

Como se não bastasse, Sebastião brinca ainda mais com a fera. Abala as estruturas

mesmo nos produtos da Indústria Cultural, como o filme, por exemplo. Pode-se facilmente notar

pelas diversas referências a personagens de filmes produzidos pela indústria da cultura nos

poemas já citados: Jack the ripper, Indiana Jones e Orson Welles. O poeta busca, nestas

referências, táticas para inverter a ordem da razão quando as traz para dentro da poesia. Indiana

Jones nunca foi poético, pelo contrário, sempre esteve a serviço da técnica. Existe uma

transfiguração do valor cinematográfico quando o mesmo é jogado sobre a folha em branco do

autor. Sebastião Uchoa Leite se apropria do cinema para levantar um questionamento tão

relevante nos dias atuais: até onde começa e termina o que é real e o que é ficcional? No poema

“Um Encontro no Dia 30”, esta questão é levantada e o autor se utiliza de um recurso

cinematográfico para problematizar:

“O enigma do que acontece e do que NÂO acontece. Um balanço filosófico da vida tête-à-tête numa varanda para o mar. No calçadão da Atlântica vem o homem com o mico que parece dar dentadas. Mas o mico é falso. Isso NÂO é a realidade que bate como um boxeur cego e dá dentadas de raiva mas não falsas. Fingimos que NADA aqui é real. Conversa e civilização

101 Ibidem. p. 13.

99

no meio do burburinho. Corta”102

Neste poema os limites de território do real e do ficcional desaparecem. Estas duas

instâncias tão enigmáticas, ora parece mais próximo da realidade (“Um balanço filosófico da

vida”), pois parece o autor pensar sobre algo real e que, no final, nos coloca em cheque ao se

utilizar o recurso cinematográfico “Corta”. A partir daí, não se consegue mais saber ao certo se

quem nos fala é o autor ou um ator que representa um determinado texto ficcional. Segundo

Costa Lima, no mundo que ele diz “sério” os homens sentem uma necessidade de uma verdade

consistente e acaba dando mais atenção a categorias que de tão reais se tornam ficcionais. Isto

segundo o autor aparece claro se levarmos em conta não a verdade em si, mas o que se

convencionou chamar de verdade. Os modos de verdade que não passam de ilusão. O exemplo

de Costa Lima deixa mais clara esta problemática de maneira simples. Ele ressalta que, quando

encontramos uma pessoa conhecida na rua e lhe dizemos “Bom dia”, não necessariamente

estamos querendo que se tenha um bom dia em si, porém trata-se mais por um ato que se

convencionou para representar que se conhece aquela pessoa. Deste modo, supõe o uso

naturalizado de uma ficção. Quando trazemos, através da poesia, questionamentos que

desestabilizam esta naturalização, estamos dando aos fatos um movimento outro que os

problematizam. O mesmo acontece às ficções reconhecidas como tais. O poema lhe fornece um

ar de verdade, a partir da ironia, a fim de levantar a discussão de toda uma problemática do que

é real e do que não é. Segundo Costa Lima, “essa experiência desestabilizadora pode-nos deixar

em pânico ou anestesiados para o próprio esforço de diferenciação”.103 Este é o impacto que a

poesia de Sebastião apresenta quando utiliza recursos do cinema onde parece estar falando de

102 Ibidem. p. 44. 103 LIMA, Luiz Costa. 1991. p. 181.

100

realidade, como no poema citado acima, ou o contrário, quando traz o cinema para a folha de

papel, tirando proveito de algum fundo de verdade. Isto não quer dizer que o poeta parte em

busca de uma verdade, pelo contrário, joga com os conceitos para alcançar um efeito produtivo.

Como podemos perceber no poema em prosa “Ela, A Pantera”. O poeta trás à tona referências

do filme “A Marca da Pantera” (“Cat People”) para identificar a imagem da fera com a essência

verdadeiramente humana:

“Em Cat People a heroína, Simone Simon, está sempre voltando para ver a pantera na jaula. Desde a primeira cena em que ela desenha diante da jaula, sabemos que é ela a pantera. Ela é suave e sinuosa. O herói se enamora, não por ela, mas pela sua felinidade. É este princípio o que o envolve e o que envolve o filme nas sombras. Quando a rival da heroína sente-se seguida, ela não vê nada. É apenas a sombra que a persegue entre as folhas que se mexem. Quando a rival mergulha numa piscina, o ambiente está envolto em sombras. Não se vê a pantera, mas se ouvem os rugidos em volta. A heroína se esgueira por entre as sombras como na floresta, rapidamente entrevista por entre as árvores. Se a pantera é uma metáfora, ela é ambígua, pois tanto pode ser da voracidade quanto da sedução. Ela é fascinadora justamente por ser perigosa. Temos aqui uma ambivalência básica, pois subterraneamente se identifica a ferocidade com o fascínio da beleza felina. Mas ela não quer ser feroz. Se ataca os outros, ela o faz porque isso é da sua natureza. E no fim de tudo realmente nos seduz, pois todos nos identificamos com a solidão da fera, que não ataca por maldade, mas porque deve.”104

A dualidade destacada da figura da pantera, felina e sedutora, é trazida para a essência

do poema para demonstrar a verdadeira essência das coisas. Todo ser vivente tem seu lado

positivo e negativo e um compõe o outro. No caso da pantera o seu negativo por ser portadora

de perigo é complementado pelo positivo: ser fascinadora. Porém, como nos ensina o poeta:

“Ela é fascinadora justamente por ser perigosa”. Do mesmo modo, procura isto na poesia,

quanto mais obscura, mais ela nos fascina e quando ataca a realidade, não é por maldade, mas

porque é seu dever.

Quando Sebastião se apropria do filme sonoro, principalmente, em sua poesia, seja ela

em prosa ou em verso, o faz sempre ressaltando uma certa ambigüidade. Seja no caso da

pantera, seja nos poemas “Espelho Obscuro” que tem como pano de fundo o filme “Espelho

104 LEITE, Sebastião Uchoa. 1988. p. 32.

101

d’Alma” e “As Relações Perigosas” onde parte do filme “Black Widow”. Tal ambigüidade é a

mesma que se faz presente no nosso dia-a-dia quando não sabemos mais delimitar o que é real e

o que é ficcional.

A dissolução do ego, a atonicidade do poema, a prosificação, a ironia e a

problematização entre a ficção e a vida foram recursos que o poeta buscou ao longo de sua obra

para construir uma poesia mais presente na atualidade. No seu livro “A Espreita” de 2000,

Sebastião se dispõe de todos estes recursos para elaborar uma obra que acentua ainda mais a

marginalização da realidade, assim como a marginalização da atividade poética. O real

encontra-se nas sombras da ficção e só a linguagem poética é capaz de capturá-lo e, assim,

adquire o status de veiculo de representação desta realidade escondida. Em “A Espreita” a

consciência do papel da poesia enquanto buscar o que está nas sombras a partir da luminosidade

das palavras é um fenômeno que, apesar de colocar a poesia numa posição marginalizada e isto

não é nenhuma novidade, destaca que ainda existe e é possível uma poesia que consiga se fiar

por entre as pregas do tecido comunicativo da prosa discursiva corrente. Os poemas presentes

neste livro destacam ainda mais a linguagem de uma felinidade que faz questão de estar

presente para dar o bote:

“É uma espécie de Cérebro Ninguém passa Não escapa nada Olho central Fixo À espreita Boca disfarçada Que engole rápido Sem dar tempo Depois dorme Aplacado”105

105 LEITE, Sebastião Uchoa. 2000. p. 51.

102

Uma linguagem que parece ausente, mas que sempre está pronta a atacar. Por isso é que

João Alexandre Barbosa no prefácio do livro ressalta que o título do livro não quer dizer que o

poeta encontra-se à espreita,

“mas uma poesia de espreita, isto é, uma poesia que existe, ainda existe, por entre as frestas da história de desastres e ruínas que é a da poesia depois de Celan, de Trakl ou da literatura em geral após as sombrias meditações de Dostoievski – que comparece em um poema deste livro -, bastando para isso, enviesar um modo de olhar e de criar relações que não se pretendem de antemão poéticas.”106

Este tipo de atividade poética é conseqüência de um último respiro de uma humanidade

que está se esvaindo, que se vê esquecida atrás de uma realidade fabricada pela crescente

racionalização do sistema que constrói uma técnica de linguagem cada vez mais poderosa e

eficaz aos seus princípios. Esta poesia precisa driblar esta linguagem para despertar no leitor seu

verdadeiro ser. E não se pode mais alcançar este objetivo a partir da linguagem banalizada, mas

destacar dela seus mínimos momentos de obscurecimento.

Proust descobriu sua verdadeira essência ao recuperar momentos passados e esquecidos

na memória a partir de algumas sensações presentes que o conduziam ao que de mais humano

existia em si e fora esquecido. Mais que apenas um passado comum ao presente, e sim uma

coisa mais essencial que ambos. O humano em estado puro que se escondia nas garras do

esquecimento e fora encontrado a partir do momento em que se consegue romper o tempo do

relógio para alcançar uma temporalidade puramente verdadeira a partir de um cheiro, uma

irregularidade no chão ou um ruído de encanamento capaz de despertar sensações que há muito

se encontravam esquecidas atrás da lógica cotidiana. Da mesma forma a atividade poética deve

percorrer as irregularidades da ordem do discurso que poderiam possibilitar, mesmo se por um

minuto, o reencontro da verdadeira essência humana, esquecida em favor de uma racionalidade

106 Idem. p. 27.

103

irracional. E assim como aquelas sensações de que fala Proust acontecem apenas em alguns

momentos isolados da vida, devido a dificuldade de se escapar das sensações cotidianas

banalizadas, a poesia tem como função ativar novamente estas sensações deixando aparente os

ruídos, dissonâncias e obscurecimento da linguagem da comunicação. Isto faz com que a

atividade poética se apresente numa linguagem mais difícil, pois conjuga em pé de igualdade

forma e conteúdo obscuros, do que aquela a qual estamos acostumados. Porém, como nos

ensina Proust,

“as verdades direta e claramente apreendidas pela inteligência no mundo da plena luz são de qualquer modo mais superficiais do que as que a vida nos comunica à nossa revelia numa impressão física, já que entrou pelos sentidos, mas da qual podemos extrair o espírito.”107

107 POUST, Marcel. 2001. p. 158.

104

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início do capitalismo, vários intelectuais apontaram críticas a este sistema que

se diz capaz de fornecer à humanidade uma vida mais justa e libertadora. Seja em Marx, na sua

crítica sobre o fetichismo da mercadoria em “O Capital”, e Lukács em “História e Consciência

de Classe”, passando por Benjamin e Adorno. Na literatura, autores como Henry James e Lima

Barreto, ainda no final do século XIX, também não viam com bons olhos a crescente

industrialização e mercantilização da cultura. Basta fazer uma análise mais cuidadosa das obras

“The Next Time” e “A Morte do Leão” de James e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”

de Barreto. No início do século XX, os movimentos de vanguarda propuseram uma

radicalização da linguagem poética e, conseqüentemente, um abandono das categorias

tradicionais a fim de alcançar uma dissolução da cultura que então se expandia. Porém, também

muitos críticos, de lá pra cá, defendem a idéia de que o novo sistema possibilitaria mais

liberdade para a sociedade moderna através da criação de mais empregos que pudessem

possibilitar iguais direitos aos homens. Mas, o que se observa é que tais direitos nunca foram

iguais, pois existe uma discrepância dos salários recebidos pelo trabalho desenvolvido entre um

tipo de atividade e outra. Além disso, tal recompensa recebida não facilitou ao homem a

satisfação de seus reais desejos, mas o transformou em consumidor.

Recentemente, Richard Sennett lançou o livro “A Cultura do Novo Capitalismo” para

analisar se realmente o trabalho dos críticos favoráveis ao sistema apresentava algum grau de

veracidade em relação à melhoria da vida humana e chegou à conclusão de que houve diversas

modificações desde o início da implantação do sistema. As instituições, as capacidades e os

padrões de consumo efetivamente mudaram, porém estas mudanças estão longe de proporcionar

105

maior felicidade ao ser humano. Pelo contrário, a dependência cada vez maior dos meios

técnicos faz com que o homem se sinta cada vez mais ansioso, impaciente e egoísta, já que as

máquinas nem sempre conseguem cumprir aquilo que prometem. Saorín, na ficção “A Curiosa

História do Editor Partido ao Meio na Era dos Robôs Escritores”, demonstra numa linguagem

simples e objetiva tais conseqüências. Sennett conclui sua obra apontando que “a deriva

antiprogressista da nova cultura decorre da maneira como lida com o tempo”,108 pois uma

comunidade organizada precisa contar com relações continuadas e experiências acumuladas.

Ora, o que mais podemos notar atualmente é que a mesmice do dia-a-dia rompe com a relação

de continuidade, destruindo toda e qualquer possibilidade do novo.

Conforme se tem defendido ao longo deste trabalho, somente a arte é capaz de produzir

uma outra relação temporal e a aquisição de experiências. Porém, a indústria cultural tem

dificultado o trabalho artístico através de procedimentos como a difusão da informação, o

consumo e a produção de consciência através da mídia.

Necessitamos de uma arte capaz de proporcionar um estranhamento do corriqueiro e que

desperte no receptor novas possibilidades de experiência. Segundo Gorelik, “o estranhamento é

uma ‘instância crítica’ que ‘busca as bases da verdadeira naturalidade que se perdeu na

metrópole caótica’”.109

Atualmente, a possibilidade de mudança de perspectiva está cada vez mais distante da

nossa realidade. Carecemos de profissionais que consigam identificar, no meio de uma

infinidade de produtos que se dizem artísticos, a verdadeira arte. Por isso que, quando aparecem

artistas como Tarso de Melo e Sebastião Uchoa Leite, é preciso explorá-los e trazê-los à tona

108 SENNETT, Richard. 2006. p. 162. 109 AGUILAR, Gonzalo. 2005. p. 2005.

106

para não deixá-los esquecidos nas estantes de uma biblioteca qualquer. Este é o verdadeiro

trabalho da crítica literária que se preocupa com o social.

107

7 BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos

Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

ADORNO, Theodor W., Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.

_______. O fetichismo na música e a regressão da audição In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

AGUILAR, Gonzalo. Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas na Encruzilhada Modernista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

AGUILAR, Gonzalo. Os Filhos de Che e da Coca-cola: Serialidade, Ícones e Práticas Artísticas. Rio de Janeiro: Texto apresentado no Seminário Internacional Poéticas do Inventário: Coleções, Listas, Séries e Arquivos na Cultura Contemporânea, realizado entre 29/05 a 02/06 de 2006.

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1989.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1985.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. In Obras Escolhidas; vol I. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo. In Obras Escolhidas; vol III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BERLO, David Kenneth. O Processo da Comunicação: Introdução à Teoria e à Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.

CAMPOS, Augusto de. Não Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2006.

108

CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. Cotia-SP: Ateliê Editorial. 2006.

CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde – Antologia Poética. Lisboa: Cotovia, 1996.

COUTINHO, Eduardo F. Literatura Comparada na América Latina: Ensaios. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

CRIPPA, Giulia. Reflexões Acerca do Espetáculo como Fundamento Cultural do Ocidente. In: EccoS Rev. Cient. UNINOVE. São Paulo: n 1, vol. 03, 2001.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo.Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

_______. Theoria Aesthetica: Em Comemoração ao Centenário de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Escritos Editora, 2005.

ENGELS, Friedrich. Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem. Disponívelbem: http://www.marxists.org/portugues/marx/1876/otrabalhonatransformacaodomacacoemhome.htm, 1999.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da Metade do Século XIX a Meados do Século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Marca Registrada de Uchoa Leite. In: Jornal de Poesia. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/alcar03c.html

GULLAR, Ferreira. Indagações de Hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

JAMES, Henry. A Morte do Leão: Histórias de Artistas e Escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

109

________. The Figure in the Carpet and Other Stories. Londres: Pinguin Books, 1986.

LEITE, Sebastião Uchoa. A Ficção Vida. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

________. A Espreita. São Paulo: Perspectiva, 2000.

________. Obra em Dobras, 1960-1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988.

________. A Uma Incógnita. São Paulo: Iluminuras, 1991.

LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

________. Pensando nos Trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

LINS, Vera. Poesia e Crítica: Uns e Outros. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

LOPES, Rodrigo Garcia. Marjorie Perloff: A Detetive das Letras Norte Americanas. 1996. Disponível em: http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/perloff.htm. Acesso em 20 Abril 2006.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: Estudo Sobre a Dialética Marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.

_______. Eros e Civilização: Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1999.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MELO, Tarso de. A Lapso. Santo André, SP: Alpharrabio Edições, 1999.

________. Carbono. São Paulo: Nankin Editorial: Santo André, SP: Alpharrabio, 2002.

110

________. Planos de Fuga e Outros Poemas. São Paulo: Cosac e Naify; Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005.

NOVALIS, Friedrich Von Hardenberg. Pólen – Fragmentos, Diálogos, Monólogo. São Paulo: Iluminuras, 2001.

PAZ, Octávio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PERLOFF, Marjorie. Radical Artifice: Writing Poetry in the Age of Media. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2002.

PROUST, Marcel. O Tempo Redescoberto. São Paulo: Globo, 2001.

SAORÍN, José Luis. A Curiosa História do Editor Partido ao Meio na Era dos Robôs Escritores. Rio de Janeiro: Relume, 2005.

SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999.

111