a cidade e o homem - posciencialit.letras.ufrj.br · ricciotto canudo. in: enciclopedia del cinema...

121
PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO A CIDADE E O HOMEM: BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES Rio de Janeiro 2016

Upload: truongkhue

Post on 17-Feb-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO

A CIDADE E O HOMEM:

BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES

Rio de Janeiro

2016

Page 2: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO

A CIDADE E O HOMEM:

BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação da Faculdade de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos para a

obtenção do grau de Mestre em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada), sob orientação da Profa. Dra.

Danielle Corpas.

Rio de Janeiro

2016

Page 3: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO

A CIDADE E O HOMEM:

BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras

da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos para a obtenção do grau

de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), aprovada pela Banca

Examinadora constituída pelos seguintes professores:

_______________________________________

Profa. Dra. Danielle Corpas, orientadora

Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________

Prof. Dr. José Carlos Monteiro

Universidade Federal Fluminense

_______________________________________

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, _____ de _______________ de 2016

Page 4: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

Para meus pais

Para Joana, rara joia rara

Page 5: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo apoio e compreensão.

A Danielle Corpas, pela orientação precisa.

A José Carlos Monteiro, Eduardo Coutinho, Ricardo Pinto de Souza, Flavia Trocoli e Alberto

Pucheu, pelos comentários valiosos.

Page 6: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

Chaque chose est un infini.

Gustave Flaubert

Page 7: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

MOREIRA NETO, Palmireno Couto. A cidade e o homem: Borges, Invasión e o sonho de

Aquiles. Rio de Janeiro, 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –

Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO

“Invasión é a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida

por uns quantos homens, que talvez nem sejam heróis. Lutam até o fim, sem suspeitar que sua

batalha é infinita.” Essa sinopse, escrita por Jorge Luis Borges, apresenta Invasión, filme cujo

roteiro foi escrito por Borges e Hugo Santiago. Lançada em 1969, a obra exibe as ações de

um grupo que tenta impedir uma invasão estrangeira. Entretanto, mais do que um simples ato

de resistência, a defesa da terra natal expõe valores individuais e coletivos e mobiliza os

homens na construção de um ideal de cidade. Para compreender alguns aspectos do enredo e

da trajetória dos personagens principais do filme, a interpretação elaborada neste ensaio

recorre ao imaginário sobre cidade, homem e coragem presente na obra de Borges.

Palavras-chave: Invasión; Jorge Luis Borges; Adolfo Bioy Casares; Hugo Santiago; Cidade e

modernidade; Cinema e literatura.

Page 8: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

MOREIRA NETO, Palmireno Couto. A cidade e o homem: Borges, Invasión e o sonho de

Aquiles. Rio de Janeiro, 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –

Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

“Invasión is the legend of a city, imaginary or real, besieged by powerful enemies and

defended by a handful of people who may or may not be heroes. They will fight to the end

without suspecting that their battle is endless.” This synopsis, written by Jorge Luis Borges,

describes Invasión, a film whose screenplay was written by Borges and Hugo Santiago.

Released in 1969, the movie presents the actions of a group that tries to prevent a foreign

invasion. Nevertheless, the defense of their homeland is not only a simple act of resistance,

but also expresses individual and collective values and involves the people in the construction

of a city ideal. To understand some aspects of the plot and the trajectory of the main

characters of the film, the interpretation elaborated in this essay explores ideas about city,

man and courage discernible in Borges’ works.

Keywords: Invasión; Jorge Luis Borges; Adolfo Bioy Casares; Hugo Santiago; City and

modernity; Cinema and literature.

Page 9: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Cartão-postal do Hipódromo Argentino de Palermo 17

Figura 2 - Cartaz de Juan sin ropa 17

Figura 3 - Fotografia de Francisco Borges Lafinur 27

Figura 4 - Fotografia de Jorge Guillermo Borges e amigos 27

Figura 5 - Fotografia de Jorge Luis Borges 36

Figura 6 - Capa de Fervor de Buenos Aires 36

Figura 7 - Fotografia de Joseph von Sternberg 50

Figura 8 - Cartaz de Underworld 50

Figura 9 - Fotografia de Borges e Hugo Santiago 56

Figura 10 - Fotografia de Hugo Santiago e Adolfo Bioy Casares 56

Figura 11 - Cartaz de Invasión [1] 57

Figura 12 - Cartaz de Invasión [2] 57

Figura 13 - Fotograma de Invasión (Aquilea) [1] 63

Figura 14 - Fotograma de Invasión (Aquilea) [2] 63

Figura 15 - Fotograma de Invasión (Irene) 64

Figura 16 - Fotograma de Invasión (Herrera) 64

Figura 17 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio) [1] 65

Figura 18 - Fotograma de Invasión (Silva) 65

Figura 19 - Fotograma de Invasión (Herrera e o grupo de resistentes) 66

Figura 20 - Fotograma de Invasión (cartaz) 66

Figura 21 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio) [2] 67

Figura 22 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio e Irene) 67

Page 10: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

SUMÁRIO

Introdução 11

1 Da literatura ao cinema 13

1.1 O milagre da tela 13

1.2 Os três Borges 18

1.3 A invenção de um escritor 28

1.4 A magia do relato 37

2 Um filme de Borges 51

2.1 A trama de um roteiro 51

2.2 Um traçado de Invasión 58

2.3 Fábulas kafkianas 68

2.4 Uma cidade maior que os homens 73

Conclusão 87

Bibliografia 90

Anexos 100

Page 11: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

11

INTRODUÇÃO

‟Vocês, que escrevem, tomem um tema adequado a suas forças; ponderem

longamente o que seus ombros se recusem a carregar, o que aguentem. A quem domina o

assunto escolhido não faltará eloquência, nem lúcida ordenação.” O conselho de Horacio,

valioso há mais de dois milênios, parece feito para aqueles que se dispõe a percorrer os

corredores universitários e acrescentar algo ao debate acadêmico.

A proposta inicial deste trabalho era estudar a relação entre literatura e cinema na obra

de Jorge Luis Borges levando em consideração uma ideia de épico constantemente evocada

pelo escritor argentino. O projeto de pesquisa, desdobramento de um artigo escrito ao final de

uma disciplina sobre a história do cinema mundial, logo cobrou os custos da sua ambição:

além da amplitude daquilo normalmente chamado de obra de Borges (à qual poderíamos

acrescentar, sem muito esforço, uma lista aparentemente infindável de entrevistas,

declarações, aulas e palestras), a fortuna crítica do autor se expande assustadoramente. Sobre

Borges, há de tudo: Borges y el tango, Borges y la física cuántica, Borges y la Cábala, etc.

Até mesmo Borges y la nada.

Ainda que a definição a respeito do épico e da aproximação entre cinema e literatura

permitisse contornar parcialmente o problema (evidentemente, Borges y el cine, livro de

Edgardo Cozarinsky, foi uma leitura fundamental), os entrecruzamentos de diferentes

matérias e textos (visto que a intertextualidade é uma característica marcante da produção

literária de Borges) indicavam a necessidade de uma restrição ainda maior. Essa dificuldade

se tornou ainda mais clara após três meses de pesquisa em Buenos Aires. Na realidade,

forçosamente reduzidos a dois após a descoberta de que a maioria dos museus, arquivos e

bibliotecas da capital argentina fecham durante janeiro, ápice do intenso e surpreendente

verão portenho.

Diante do volume de artigos e livros que me acompanharam na volta ao Rio de

Janeiro, reunidos com a ajuda imprescindível de argentinos sempre solícitos às demandas

pouco usuais de um brasileiro, a redefinição, ou melhor, o estreitamento do tema foi

inevitável. O resultado toca o que foi pretendido inicialmente, mas está delimitado a um

objeto mais restrito: Invasión (1969), filme cujo roteiro foi escrito por Jorge Luis Borges e

Hugo Santiago Muchnik a partir de um argumento desenvolvido por Borges e Adolfo Bioy

Casares.

Page 12: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

12

Com o propósito de abordar o novo objeto e manter a perspectiva original da pesquisa,

o projeto se voltou para a maneira como pontos centrais da narrativa do filme reverberam

questões recorrentes no trabalho de Borges. Para tanto, são tratados inicialmente assuntos que

possibilitam estabelecer essa vinculação: a noção de coragem, considerada especialmente a

partir da narrativa autobiográfica do escritor (‟Os três Borges”); a construção de uma primeira

literatura durante os anos 20 na qual desponta um cenário urbano perdido (‟A invenção de um

escritor”); e finalmente as múltiplas relações entre Borges e o cinematógrafo (‟A magia do

relato”).

Por último, uma breve nota sobre a forma. Como o primeiro capítulo é composto por

ensaios voltados para questões mobilizadas na elaboração da interpretação do filme, restam

pontas aparentemente soltas após a conclusão de cada parte. Todavia, elas serão entretecidas

ao final. Pelo menos, assim espera o autor.

Page 13: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

13

1- Da literatura ao cinema

1.1 - O milagre da tela

Em uma conversa com Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges sentenciou: “En

cinematógrafo somos lectores de Madame Delly.” Embora a referência à obra dos irmãos

Petitjean de La Rosière soe como uma condenação, o próprio Bioy Casares indica que o

interesse de Borges pelo cinema permite interpretá-la “como un juicio sobre el cine que se

había hecho, no sobre el cine posible”.1

Frequentador constante de salas de cinema, Borges demonstrava o fascínio

característico de uma geração que acompanhava os desdobramentos de uma linguagem logo

comparada a outras formas de expressão artística. Em um artigo publicado em 1908, o italiano

Ricciotto Canudo, um dos primeiros teóricos do cinema, já apontava para a possibilidade de

constituição, através do cinematógrafo, de uma nova arte que conciliasse os ritmos do espaço

e do tempo, uma “arte plastica in movimento”.2 Ainda que a produção da época pudesse estar

distante desse ideal, Canudo, tal como Borges, percebia a possibilidade de desenvolvimento

de uma arte cinematográfica a partir da realização das potencialidades do cinematógrafo.

Nesse período, o cinema, uma nova experiência estética da virada do séc. XX,

começava a se destacar entre as formas de entretenimento características do cenário urbano,

expressando algumas transformações culturais e subjetivas da modernidade.3 A impressão de

realidade, repetidamente atribuída à projeção cinematográfica (tanto pela definição atingida

pelo aprimoramento dos processos fotográficos quanto pela impressão de movimento

provocada pela projeção seriada de fotogramas), correspondia às expectativas de uma nova

forma de representação que, apenas algumas décadas após a sua invenção, se transformaria na

grande arte da cultura de massa da sociedade moderna. Inicialmente uma atração de cafés e

restaurantes, o cinema passou a ocupar diversas salas de exibição nos centros urbanos e,

apoiado pela multiplicação de cineclubes e publicações dedicadas à produção

cinematográfica, colocou em cena novas narrativas em meio a disputas econômicas e debates

sobre as identidades nacionais.

1 CASARES, Adolfo Bioy. Prólogo. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 7. Com o

pseudônimo de M. Delly, os irmãos Petitjean de La Rosière publicaram, no início do séc. XX, diversos romances

à l'eau de rose, bastante populares pelo caráter moralizante e frequentemente recomendados para a educação

sentimental das jovens da época. 2 Cf. BOSCHI, Alberto. Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa (org.). O cinema e a

invenção da vida moderna.

Page 14: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

14

Em Buenos Aires, o Cinématographe Lumière foi apresentado pela primeira vez no

teatro Odeón em julho de 1896, alguns meses após a célebre exibição dos irmãos Lumière no

Grand Café, em Paris. Pouco tempo depois, em 1900, foi inaugurado o Salón Nacional, a

primeira sala de cinema da capital argentina. Nos anos seguintes, novas salas podiam ser

vistas em diferentes regiões da cidade e a projeção dos trabalhos realizados pelos irmãos

Lumière e por seus operadores foi substituída pela exibição de filmes europeus, americanos e

argentinos.4

Nesse primeiro momento, a produção local dependia principalmente do belga Enrique

Lepage, proprietário de uma loja de material fotográfico localizada próximo a Belgrano. Entre

os funcionários da Casa Lepage, que também importava câmeras e projetores da Europa,

estava o francês Eugenio Py, camarógrafo de alguns dos primeiros filmes rodados em Buenos

Aires: La bandera argentina (1897), Operaciones del Dr. Posadas (1899-1900) e Viaje del

Dr. Campos Salles a Buenos Aires (1900), que documentava a viagem do presidente

brasileiro. Seguindo essa linha documental, Py realizou outros curtas-metragens, tais como La

revista de la escuadra argentina (1901) e Visita del general Mitre al Museo Histórico (1901),

no qual atribuía “al estupendo milagro de la pantalla” a possibilidade de ver, “desde el mundo

de las sombras”, a imagem animada do General Mitre. Ainda em 1901, Eugenio Cardini

dirigiu o curta-metragem Escenas callejeras, a primeira experiência ficcional do cinema

argentino.5

A popularização do cinema ocorreu em meio ao processo de modernização

atravessado pela Argentina desde a segunda metade do séc. XIX. A consolidação do Estado e

a expansão da agricultura e da pecuária, atividades amplamente favorecidas pela associação

comercial com a Grã-Bretanha, bem como os investimentos realizados no sistema portuário e

ferroviário, permitiram a integração e o desenvolvimento da economia e redefiniram a

sociedade local. Diante da escassez de mão-de-obra no país e da crise das economias agrárias

tradicionais da Europa, houve um aumento significativo da imigração. Ao mesmo tempo, a

urbanização e a industrialização decorrentes da ampliação do mercado interno intensificavam

as mudanças e criavam novas oportunidades para os estrangeiros, inclusive no cinema, onde

vários imigrantes viriam a compor o quadro técnico e artístico dedicado à exibição e à

produção cinematográfica.

4 O Teatrógrafo de Robert William Paul e o Vitascópio de Thomas Edison também foram apresentados em

Buenos Aires nesse período. Cf. MARANGHELLO, César. Panorama del cine mudo argentino. In: MOSAICO

CRIOLLO: primera antología del cine mudo argentino, p. 9. 5 Sobre o primeiro cinema na Argentina, cf. DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino

I: la época de oro, p. 11-12; e MAHIEU, José Agustín. Breve historia del cine argentino, p. 4-6.

Page 15: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

15

Por outro lado, a necessidade de acomodar os imigrantes no modelo de sociedade

idealizado pela elite política, que buscava formar um consenso e legitimar o projeto

implementado pelo Estado, levantava questões sobre a identidade nacional argentina. A

organização da sociedade também dependia da definição de uma língua, uma cultura e uma

arte. Em um debate que mobilizava muitos intelectuais, eram estabelecidas, a partir de

diferentes doutrinas europeias, especialmente o positivismo, as ideias que orientavam a classe

dirigente.

Embora o novo ordenamento da sociedade possibilitasse a ascensão social, as

desigualdades econômicas e as condições de vida dos trabalhadores, tanto imigrantes quanto

criollos, acentuaram os conflitos sociais. O cinema também representou essa tensão em filmes

como Nobleza gaucha (1915) e Juan sin ropa (1920). Este, dirigido por Héctor Quiroga e

Georges Benoît, apresentava trabalhadores de um frigorífico lutando, através da mobilização

grevista e da organização sindical, contra a exploração capitalista, simbolizada por um patrão

ganancioso e inescrupuloso que utilizava a força policial para defender seus interesses.6

Ao mesmo tempo, as diferenças culturais e linguísticas entre estrangeiros (em sua

maioria italianos, espanhóis e franceses) e criollos foram lentamente abrandadas pela

experiência cotidiana, que aproximava grupos de origens distintas. Essas novas relações

promoveram uma mezcla que resultou na criação de formas culturais híbridas, algumas das

quais, tais como o tango e o lunfardo, se tornariam posteriormente símbolos da cultura

argentina.7

O tango, especialmente, foi um tema recorrente da produção cinematográfica local

ainda durante o cinema mudo. Entre os primeiros experimentos de Eugenio Py, está registrado

um curta-metragem chamado Tango Argentino (1900). O mesmo ocorreu com o

desenvolvimento do cinema falado. Desde o início da década de 30, em uma série de curtas-

metragens produzidos por Federico Valle, era possível escutar a voz de Carlos Gardel nas

salas de cinema. Nessa época, também foi realizado ¡Tango! (1933), o primeiro grande

sucesso de público do cinema sonoro nacional.

6 Cf. DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino I: la época de oro. Buenos Aires, p. 24-

27. Di Núbila nota também que Juan sin ropa é um documento cinematográfico a respeito dos processos sociais

relacionados à ascensão de Hipólito Yrigoyen à presidência da república e às dificuldades enfrentadas pelo

governo para implementar medidas que contrariavam os interesses dos grandes grupos econômicos privados.

Além disso, após o fim da Primeira Guerra Mundial, as tensões sociais foram acentuadas pelo fechamento de

indústrias voltadas para a substituição de importações. Em 1919, o país registrou mais de 300 greves e o embate

mais grave: durante a Semana Trágica, reivindicações pela redução da jornada de trabalho e pelo pagamento de

horas extras escalaram para conflitos nas ruas que terminaram com cerca de 700 mortos e 4.000 feridos. 7 A respeito das transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas na Argentina nesse período, cf.

ROMERO, Luis Alberto. 1916. In: Breve historia contemporánea de la Argentina, edição digital.

Page 16: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

16

Durante o processo de modernização, a capital argentina foi remodelada a partir de

padrões europeus. Entre as novas avenidas, edifícios e lojas da Buenos Aires da Belle Époque,

olhares atentos voltavam-se para o “milagro de la pantalla”. Um desses olhares era o do

escritor uruguaio Horacio Quiroga, radicado em Buenos Aires desde 1902. Entre 1918 e 1931,

Quiroga se dedicou à crítica cinematográfica em diversos periódicos portenhos. A nova arte

também foi tematizada por ele em seu trabalho literário. Em “Miss Dorothy Phillips, mi

esposa”, um dos contos nos quais aborda o cinema, ele narra o envolvimento afetivo de um

espectador por atrizes famosas: “Yo pertenezco al grupo de los pobres diablos que salen

noche a noche del cinematógrafo enamorados de una estrella”, diz o protagonista.8 Além da

atividade crítica e do tratamento do cinema através da literatura, Quiroga também tentou

realizar uma adaptação cinematográfica de “La gallina degollada”, estória publicada em

Cuentos de amor de locura y de muerte (1917), e aventurou-se na escrita de La jangada,

roteiro baseado nos contos “La bofetada”, do mesmo livro, e “Los mensú”, de El salvaje

(1920).9

A aproximação de Quiroga ao cinema expressa uma mudança de sensibilidade que

marcou o imaginário e algumas produções intelectuais da época. Entretanto, o cinema

também enfrentava resistência. Em um artigo publicado na revista Atlántida em 1922, o

próprio Quiroga comenta o distanciamento mantido pelos intelectuais, que frequentemente

desprezavam a produção cinematográfica. Um dos motivos desse desdém seria exatamente a

popularidade da nova arte: “Acaso el intelectual cultive furtivamente los solitarios cines de su

barrio; pero no confesará jamás su debilidad por un espectáculo del que su cocinera gusta

tanto como él, y el chico de la cocinera tanto como ambos juntos.”10

Não obstante essa rejeição inicial, a “décima musa”, segundo a expressão de Jean

Cocteau, começou a despertar o interesse de intelectuais e a conquistar alguns escritores

argentinos. Jorge Luis Borges e o seu amigo Adolfo Bioy Casares estavam justamente entre

aqueles que foram seduzidos pelo cinema.

8 QUIROGA, Horacio. Miss Dorothy Phillips, mi esposa. In: Selección de cuentos I, p. 31. 9 Sobre a relação entre Horacio Quiroga e o cinema, cf. MARTÍNEZ, Carlos Dámaso. Estudio preliminar. In:

QUIROGA, Horacio. Arte y lenguaje del cine, p. 15-37. 10 QUIROGA, Horacio apud MARTÍNEZ, Carlos Dámaso, op. cit., p. 30-31.

Page 17: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

17

A elite portenha em uma cena da Buenos Aires da Belle Époque (cartão-postal do

hipódromo de Palermo) e a representação cinematográfica das tensões sociais do

período (cartaz de Juan sin ropa, filme argentino lançado em 1919).

Page 18: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

18

1.2- Os três Borges

Contemporâneo das transformações que redefiniam a Argentina e do momento inicial

de afirmação do cinema, Borges, nascido na casa dos avós maternos no centro de Buenos

Aires em 1899, cresceu em Palermo, naquele momento um bairro pobre de imigrantes

italianos situado nos limites da cidade. Em Evaristo Carriego (1930), um dos seus primeiros

livros, ele realiza um breve levantamento dos acontecimentos que transformaram a

propriedade de Domínguez Palermo (um siciliano que, segundo a fonte consultada por

Borges, era um dos fornecedores de carne da cidade entre 1605 e 1614) na “despreocupada

pobreza” do bairro popular do final do séc. XIX, em cujas fronteiras amalgamavam-se

Buenos Aires e la pampa: “Hacia el poniente quedaba la miseria gringa del barrio. El término

‘las orillas’ cuadra con sobrenatural precisión a esas puntas ralas, en que la tierra asume lo

indeterminado del mar y parece digna de comentar la insinuación de Shakespeare: ‘La tierra

tiene burbujas, como las tiene el agua.’”11

Em um ensaio autobiográfico publicado originalmente em inglês em 1970, Borges

descreve alguns aspectos do bairro da sua infância, no qual conviviam trabalhadores e

pequenos criminosos:

Palermo at that time – the Palermo where we lived, Serrano and Guatemala –

was on the shabby northern outskirts of town, and many people, ashamed of

saying they lived there, spoke in a dim way of living on the Northside. We

lived in one of the few two-story homes on our street; the rest of the

neighborhood was made up of low houses and vacant lots. I have often

spoken of this area as a slum, but I do not quite mean that in the American

sense of the word. In Palermo lived shabby, genteel people as well as more

undesirable sorts.12

O bairro também era conhecido pela presença dos compadritos, um tipo social do

subúrbio vinculado ao tango e muitas vezes associado à criminalidade: “There was also a

Palermo of hoodlums, called compadritos, famed for their knife fights, but this Palermo was

only later to capture my imagination, since we did our best – our successful best – to ignore

it.” Além de apontar o distanciamento mantido pela família, Borges circunscreve o mundo da

sua infância aos limites da casa de dois andares que contrastava com as casas mais simples do

bairro: “As for myself, I was hardly aware of the existence of compadritos, since I lived

essentially indoors.”13

11 BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego, p. 21 e 24. 12 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 135-136. 13 Ibid., p. 136.

Page 19: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

19

Esses limites começavam com a construção de uma tradição familiar orientada pela

valorização dos seus antepassados militares. Um trabalho realizado cuidadosamente por sua

mãe, Leonor Acevedo, neta do coronel Isidoro Suárez, um combatente da guerra de

independência. O panteão familiar estendia-se também pela genealogia paterna, na qual a

reverência era direcionada à memória do avô do escritor, o coronel Francisco Borges Lafinur,

morto durante uma guerra civil. Jorge Luis Borges, segundo Emir Monegal, um dos seus

principais biógrafos, “nació y fue criado en una casa que era hasta cierto punto un museo

familiar”, onde “estuvo rodeado por los objetos sagrados de la historia familiar y por la

repetición ritual de las hazañas de sus heroicos antepasados”.14 Em uma entrevista concedida

a Ronald Christ em 1966, Borges associa o seu interesse pela poesia épica a essa tradição:

RONALD CHRIST

Epic literature has always interested you very much, hasn’t it?

BORGES

Always, yes. For example, there are many people who go to the cinema and

cry. That has always happened: It has happened to me also. But I have never

cried over sob stuff, or the pathetic episodes. But, for example, when I saw

the first gangster films of Joseph von Sternberg, I remember that when there

was anything epic about them – I mean Chicago gangsters dying bravely –

well, I felt that my eyes were full of tears. I have felt epic poetry far more

than lyric or elegy. I always felt that. Now that may be, perhaps, because I

come from military stock. My grandfather, Colonel Francisco Borges

Lafinur, fought in the border warfare with the Indians, and he died in a

revolution; my great-grandfather, Colonel Suárez, led a Peruvian cavalry

charge in one of the last great battles against the Spaniards; another great-

great-uncle of mine led the vanguard of San Martin’s army – that kind of

thing. And I had, well, one of my great-great-grandmothers was a sister of

Rosas – I’m not especially proud of that relationship because I think of

Rosas as being a kind of Perón in his day; but still all those things link me

with Argentine history and also with the idea of a man's having to be brave,

no?15

Além de justificar a sua atração pela épica e traçar a genealogia militar da família,

evocando as proezas atribuídas a alguns dos seus antepassados (incluindo um tio-bisavô que

teria participado das campanhas militares de José de San Martín), Borges estabelece uma

relação entre a literatura e o cinema e menciona Joseph von Sternberg, diretor austro-húngaro

que havia construído uma carreira nos Estados Unidos. O paralelo é realizado a partir de uma

noção de épico associada à demonstração de coragem durante um confronto: Borges confessa

se emocionar ao ver gangsters morrendo bravamente em cenas “épicas” de filmes de von

Sternberg.

14 MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 12. 15 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.

Entrevista realizada por Ronald Christ.

Page 20: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

20

Na mesma entrevista, ele aponta algumas razões pelas quais desenvolvia o tema da

bravura em seu trabalho literário:

RONALD CHRIST

Would you say that your own stories have their point of origin in a situation,

not in a character?

BORGES

In a situation, right. Except for the idea of bravery, of which I’m very fond.

Bravery, perhaps, because I’m not very brave myself.

RONALD CHRIST

Is that why there are so many knives and swords and guns in your stories?

BORGES

Yes, that may be. Oh, but there are two causes there: first, seeing the swords

at home because of my grandfather and my great-grandfather and so on.

Seeing all those swords. Then I was bred in Palermo; it all was a slum then,

and people always thought of themselves – I don't say that it was true but

that they always thought of themselves – as being better than the people who

lived on a different side of the town, as being better fighters and that kind of

thing. Of course, that may have been rubbish. I don't think they were

especially brave. To call a man, or to think of him, as a coward – that was

the last thing; that's the kind of thing he couldn't stand. I have even known of

a case of a man coming from the southern side of the town in order to pick a

quarrel with somebody who was famous as a knifer on the north side and

getting killed for his pains. They had no real reason to quarrel: They had

never seen each other before; there was no question of money or women or

anything of the kind. I suppose it was the same thing in the West in the

States. Here the thing wasn’t done with guns, but with knives.16

Ao expressar o seu interesse pelo tema da coragem, Borges indica que a escolha

poderia estar relacionado à sua falta de bravura. A confissão é seguida por uma justificativa a

respeito da sua preferência. A recorrência de armas em seus contos remeteria à recordação das

espadas dos seus antepassados militares guardadas no “museu familiar” e aos anos vividos em

Palermo. Crescer nesse bairro pobre da periferia da cidade, significaria, mesmo para uma

criança distante das ruas e dos temidos compadritos, estar ligado a um imaginário onde o

domínio das armas era basilar. Além de articular tradição militar e cultura local, ele aproxima

o modo de vida em Palermo, onde os homens se consideravam mais corajosos que em outras

partes da cidade, da conquista do oeste norte-americano. Tanto no bairro italiano de Buenos

Aires quanto nas fronteiras dos Estados Unidos, os confrontos possuíam um valor per se e, a

partir de um ideal de coragem, definiriam o valor de cada indivíduo. A diferença estaria no

método: enquanto os cowboys do Far West usavam revólveres, os compadritos de Palermo

lançavam mão de facas na definição cotidiana do mérito pessoal.

16 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.

Entrevista realizada por Ronald Christ.

Page 21: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

21

Esse ideal de coragem estaria vinculado a um código de comportamento de uma

formação social mais antiga, segundo o qual a proximidade física dos enfrentamentos com

facas e punhais aumentaria o valor pessoal:

RONALD CHRIST

Using the knife takes the deed back to an older form of behavior?

BORGES

An older form, yes. Also, it is a more personal idea of courage. Because you

can be a good marksman and not especially brave. But if you’re going to

fight your man at close quarters, and you have knives... [...] I remember that

a brave man, when I was a young man in the slums, he was always supposed

to carry a short dagger, and it was worn here. Like this (pointing to his

armpit), so it could be taken out at moment’s notice, and the slum word for

the knife – or one of the slum words – well, one was el fierro, but of course

that means nothing special. But one of the names, and that has been quite

lost – it’s a pity – was el vaivén, the “come and go”. In the word come-and-

go (making gesture) you see the flash of the knife, the sudden flash.17

Borges parece fascinado pelo brilho das lâminas dos punhais. Nesse exercício

imaginativo, que contrasta sutilmente com a afirmação de que teria crescido distante do

cotidiano de Palermo, os enfrentamentos nas ruas do bairro figuram o ideal de coragem

identificado no passado da família. Assim, Palermo e a tradição familiar são entretecidos na

composição de uma narrativa a respeito de uma sociedade pré-moderna fundamentada em um

valor estável de bravura que definia a honra masculina. Esse mundo, devido aos antepassados

militares do escritor, teria lhe oferecido a visão de um destino pessoal que, no entanto, não se

concretizaria: “So, on both sides of my family, I have military forebears; this may account for

my yearning after that epic destiny which my gods denied me, no doubt wisely.”18

Os deuses o afastaram do seu desejo, mas Borges se mostra resignado, quase

agradecido: certamente, afirma, foi uma decisão sábia. Além da suposta falta de coragem do

escritor, havia outra justificativa para a sua incompatibilidade com um “destino épico”:

I was always very nearsighted and wore glasses, and I was rather frail. As

most of my people had been soldiers – even my father’s brother had been a

naval officer – and I knew I would never be, I felt ashamed, quite early, to

be a bookish kind of person and not a man of action. Throughout my

boyhood, I thought that to be loved would have amounted to an injustice. I

did not feel I deserved any particular love, and I remember my birthdays

filled me with shame, because everyone heaped gifts on me when I thought

that I had done nothing to deserve them – that I was a kind of fake. After the

age of thirty or so, I got over the feeling.19

17 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.

Entrevista realizada por Ronald Christ. 18 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 140. 19 Ibid., loc. cit.

Page 22: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

22

Os problemas de visão e a fragilidade corporal teriam impedido Borges, desde muito

cedo, de pretender fazer parte das fileiras militares. Entretanto, embora revele o seu

sentimento de culpa por aquilo que seria um “desvio literário”, a aproximação do escritor aos

livros começou em sua própria casa. A consulta frequente à vasta biblioteca do pai, Jorge

Guillermo Borges, advogado e professor de psicologia, foi determinante para a sua formação

intelectual: “If I were asked to name the chief event in my life, I should say my father's

library. In fact, I sometimes think I have never strayed outside that library. I can still picture

it. It was in a room of its own, with glass-fronted shelves, and must have contained several

thousand volumes.”20

No prólogo de Evaristo Carriego, acrescentado ao livro na década de 50, Borges já

ressaltava a importância dessa biblioteca na construção do seu imaginário infantil, marcado

pela presença de personagens literários:

Yo creí, durante años, haberme criado en un suburbio de Buenos Aires, un

suburbio de calles aventuradas y de ocasos visibles. Lo cierto es que me crié

en un jardín, detrás de una verja con lanzas, y en una biblioteca de ilimitados

libros ingleses. Palermo del cuchillo y de la guitarra andaba (me aseguran)

por las esquinas, pero quienes poblaron mis mañanas y dieron agradable

horror a mis noches fueron el bucanero ciego de Stevenson, agonizando bajo

las patas de los caballos, y el traidor que abandonó a su amigo en la luna y el

viajero del tiempo, que trajo del porvenir una flor marchita, y el genio

encarcelado durante siglos en el cántaro salomónico y el profeta velado del

Jorasan, que detrás de las piedras y de la seda ocultaba la lepra.21

A biblioteca do pai pode ser considerada um símbolo do conflito entre armas e letras

reivindicado por Borges. Essa tensão, como aponta Emir Monegal, se tornou um dos pontos

centrais do mito pessoal que o escritor construiu ao longo da vida: “El mito personal de

Borges comienza aquí: es, a un mismo tiempo, un mito de desesperanza por no haber sido un

hombre de armas y también un mito de compensación.” A compensação viria inicialmente

através das leituras realizadas em casa: “El lector y el escritor encontraron en los libros, en el

deseo y en la culpa que los libros despertaban, lo que faltaba en su vida ‘real’.” Entretanto, a

escolha de Borges não era original: seu pai, intelectual e aspirante a escritor, o havia

precedido nesse movimento de ruptura.22

20 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 140. 21 BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego, p. 9. 22 Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 19. Monegal prossegue com um exemplo

interessante de psicologia de autor: “Como Padre le había precedido en esa senda – también fue un descendiente

de guerreros, que eligió los libros y la ley – Borges debió encontrar, muchos años después, una solución del

latente conflicto edípico. En su caso, el parricidio llegaría a asumir un disfraz paradójico: la sumisión total a la

voluntad de su padre.”

Page 23: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

23

Além da precessão, Jorge Guillermo Borges (que um dia disse ao filho que soldados,

uniformes, quartéis e bandeiras em breve seriam coisas do passado)23 pretendia mantê-lo

afastado da tradição militar da família: “From the time I was a boy, when blindness came to

him, it was tacitly understood that I had to fulfill the literary destiny that circumstances had

denied my father. This was something that was taken for granted (and such things are far

more important than things that are merely said). I was expected to be a writer.”24

O incentivo de Jorge Guillermo Borges à carreira literária do filho seria expresso

através de uma educação voltada para a cultura geral (Borges teria herdado a paixão pelos

dicionários e enciclopédias) e fundamentada no hábito de leitura e no diálogo. O

desenvolvimento da sua escrita, no entanto, teria ocorrido sem a orientação paterna: “My

father never interfered. He wanted me to commit all my own mistakes, and once said,

‘Children educate their parents, not the other way around.’”25

Na narrativa autobiográfica de Borges, às vezes tratada com esmero literário, a

trajetória do pai pode ser considerada um elemento de antecipação. Esse aspecto do relato foi

desenvolvido no ensaio autobiográfico através da definição de alguns precursores de Jorge

Guillermo Borges. Embora ofuscada pela tradição militar, Borges traça também uma tradição

literária familiar:

A tradition of literature ran through my father’s family. His great-uncle Juan

Crisóstomo Lafinur was one of the first Argentine poets, and he wrote an

ode on the death of his friend General Manuel Belgrano, in 1820. One of my

father’s cousins, Álvaro Melián Lafinur, whom I knew from childhood, was

a leading minor poet and later found his way into the Argentine Academy of

Letters. My father’s maternal grandfather, Edward Young Haslam, edited

one of the first English papers in Argentina, the Southern Cross, and was a

Doctor of Philosophy or Letters, I’m not sure which, of the University of

Heidelberg.26

Se o pai havia projetado desde cedo um destino literário para o filho, a frustração

expressa por Borges devido à não realização de um destino épico poderia estar relacionada às

expectativas da mãe, a guardiã do relicário militar da família. Talvez Leonor Acevedo tivesse

sonhado em algum momento com um Borges coronel. Ainda assim, a decisão do filho de

seguir uma carreira literária provavelmente não representaria uma ruptura tão surpreendente

para ela, casada com um intelectual que recebia frequentemente a visita de amigos escritores.

23 A lista, na verdade, é mais longa: “My father was very intelligent and, like all intelligent men, very kind.

Once, he told me that I should take a good look at soldiers, uniforms, barracks, flags, churches, priests and

butcher shops, since all these things were about to disappear, and I could tell my children I had actually seen

them.” BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 138. 24 Ibid., p. 142. 25 Ibid., loc. cit. 26 Ibid., p. 141-142.

Page 24: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

24

Curiosamente, em alguns momentos o próprio Borges parece esquecer do seu desejo

por um outro destino. Durante uma entrevista a Richard Burgin, ele se refere à carreira

literária como um projeto de toda a sua vida. O mundo das letras não seria um refúgio, mas

um território a ser conquistado:

RICHARD BURGIN

Was there ever a time when you didn’t love literature?

BORGES

No, I always knew. I always thought of myself as a writer, even before I

wrote a book. Let me say that even when I had written nothing, I knew that I

would. I do not think of myself as a good writer but I knew that my destiny

or my fate was a literary one, no? I never thought of myself as being

anything else.

RICHARD BURGIN

You never thought about taking up any career? I mean, your father was a

lawyer.

BORGES

Yes. But after all, he had tried to be a literary man and failed. He wrote some

very nice sonnets. But he thought that I should fulfill that destiny, no? And

he told me not to rush into print.27

Comparada com a afirmação do ensaio autobiográfico publicado pouco tempo depois,

a resposta de Borges sobressai pela forma como ele ressalta a sua vocação literária, sem

nenhuma referência à pretendida carreira militar. Por outro lado, assim como o fez no ensaio,

ele vincula a sua escolha pelas letras ao desejo paterno. Borges, o filho, deveria realizar aquilo

que o destino negou a Borges, o pai.

A decepção de Jorge Guillermo Borges, impossibilitado de seguir uma carreira

literária, era ainda mais acentuada pela sua própria posição na família: um intelectual que

precisava lidar com a sombra de um outro pai, o coronel Francisco Lafinur. Ao analisar o

romance El caudillo, escrito por Jorge Guillermo e publicado em 1921, Monegal aponta para

a presença de um tema (desenvolvido também por Borges) que expressaria essa tensão: a

disputa entre homens fortes ligados à natureza e homens frágeis sensibilizados pela educação

e pela cultura. Jorge Guillermo Borges, confrontado com a figura heroica do pai, não

conseguiria evitar um sentimento de limitação e inadequação que, por sua vez, teria sido

herdado por Borges. 28

27 Cf. BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges, p. 1. 28 Monegal apresenta bons argumentos biográficos e literários para defender a sua posição: “Es fácil reconocer

en el protagonista de El caudillo, en ese Carlos semieuropeo, un alter ego del autor. En muchos sentidos, eran

similares. Pero lo realmente importante es que al tratar de describir su propio predicamento, Padre se preocupa

también por comprender la psicología del caudillo. Al confrontar a Carlos con éste, Padre estaba explorando una

de sus obsesiones privadas: el sentimiento de inadecuación que experimentaba al confrontar su destino con el de

su propio padre. Una de las obras que había proyectado y que aparentemente hasta llegó a escribir, según

Page 25: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

25

Ainda que não houvesse de fato um vínculo afetivo dessa natureza entre as três

gerações, o interesse de Borges pela literatura épica, o desenvolvimento do tema da bravura

no seu trabalho literário e as referências recorrentes aos seus antepassados militares e à vida

em Palermo demonstram a valorização de um ideal de coragem. Dito de outra forma, mesmo

que o seu desejo pelo que chama de um destino épico não fosse “autêntico”, Borges precisou

inventá-lo na sua narrativa autobiográfica. Nela, a perda das armas (perda que implicava uma

queda) é compensada pelo refúgio encontrado na biblioteca do pai, na qual Borges

reencontrava o mundo pré-moderno do panteão militar da família (a preferência pela épica

aponta para isso) por meio de uma tradição cultural distinta.

Essa cultura livresca era representada especialmente pelo inglês, primeira língua na

qual Borges foi alfabetizado. Contudo, não se tratava de uma excentricidade literária. Na casa

em Palermo, onde também morava Frances Haslam (a avó paterna nascida na Inglaterra), o

idioma era comum. Borges foi inclusive educado por uma preceptora inglesa até os nove

anos, quando finalmente ingressou em uma escola pública: “I did not start school until I was

nine. This was because my father, as an anarchist, distrusted all enterprises run by the State.”

A transição para a educação do Estado teria sido difícil: “As I wore spectacles and

dressed in an Eton collar and tie, I was jeered at and bullied at by most of my schoolmates,

who were amateur hooligans.”29 Na entrevista realizada por Richard Burgin, Borges é

questionado a respeito desse período e revela as dificuldades de adaptação que enfrentou:

RICHARD BURGIN

You never got into any fights in childhood?

BORGES

Yes, I did. But that was a code. I had to do it. Well, my eyesight was bad; it

was very weak and I was usually defeated. But it had to be done. Because

there was a code and, in fact, when I was a boy, there was even a code of

dueling. But I think dueling is a very stupid custom, no? After all, it’s quite

irrelevant. If you quarrel with me and I quarrel with you, what has our

swordsmanship or our marksmanship to do with it? Nothing – unless you

have the mystical idea that God will punish the wrong. I don’t think anybody

has that kind of idea, no? Well, suppose we get back to more... because, I

don’t know why, I seem to be rambling on.30

Como observa Monegal, é irônico notar que Borges, o garoto de Eton humilhado

repetidamente na escola pública, tenha se tornado muito tempo depois no escritor que

destacava, no seu trabalho literário, o conflito, a força na luta corpo a corpo e a destreza no

Borges, era el drama Hacia la nada, ‘sobre la desilusión de un hombre ante su hijo’. En el argumento de ese

drama es posible leer un reconocimiento de sus limitaciones como hombre, cuando se mide contra las heroicas

proporciones del coronel Borges.” Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 79. 29 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 143. 30 Cf. BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges, p. 28-29.

Page 26: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

26

manuseio de armas brancas e armas de fogo. Na resposta a Richard Burgin, não há nenhum

sinal do entusiasmo demonstrado por Borges ao discorrer sobre os personagens e as batalhas

que representavam a tradição militar da família ou a respeito dos compadritos e dos

confrontos que animavam o cotidiano de Palermo.31 Há claramente uma desvinculação entre a

realidade vivenciada pelo jovem incapaz de se adaptar às normas de um ambiente escolar

hostil e o imaginário construído pelo escritor a respeito da violência, uma cisão que permite a

Borges preservar o seu mito pessoal.

Por outro lado, a descrição dos embates escolares, ainda que atravessada pela crítica

ao duelo (“um costume bastante estúpido” e “irrelevante”, cuja única justificativa possível

seria a crença em uma ideia mística de punição divina), também demonstra a aceitação de um

código de honra. Mesmo que o desfecho das disputas estivesse determinado de antemão pela

sua fragilidade corporal e falta de habilidade física, Borges afirma ter seguido as regras que

norteavam os duelos juvenis (“But it had to be done”), uma atitude que ressoava a moral das

ruas de Palermo: tomar parte nesses rituais de iniciação ao universo masculino poderia

evidenciar a sua fraqueza e inaptidão, mas comprovaria a sua coragem.

Além disso, a sua concordância o aproximava de um outro Borges, o coronel

Francisco Borges Lafinur, aquele que Jorge Guillermo Borges, o intelectual aspirante a

escritor, talvez tenha desiludido: o reconhecimento da necessidade de cumprimento de uma

norma de conduta relacionada ao combate é uma característica de estruturas hierárquicas

militares que, em nome da preservação de algo considerado maior do que aqueles que as

constituem, valorizam discursivamente a sujeição, a conformidade e o sacrifício.

31 Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 92.

Page 27: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

27

Dois Borges: o militar Francisco Borges Lafinur (acima) e Jorge Guillermo Borges

(abaixo, no centro), cercado por amigos intelectuais

Page 28: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

28

1.3- A invenção de um escritor

O pesadelo escolar de Borges não duraria muito. Em 1914, seu pai, já com graves

problemas de visão, se aposentou e levou a família para uma temporada na Europa. Segundo

o escritor, a viagem não implicava em uma despesa muito elevada devido à valorização do

peso argentino. Depois de uma passagem pela França, a família se estabeleceu em Genebra,

onde o pai iniciou um tratamento com um oftalmologista enquanto Borges e a irmã, Norah,

retomaram os estudos.

Devido ao início da Primeira Guerra Mundial, que limitou o deslocamento pela

Europa, a família precisou redefinir os planos de viagem. Durante esses anos, Borges recorda

apenas ter cruzado os Alpes para visitar o norte da Itália. Em 1919, depois do término do

conflito, a família deixou a Suíça e seguiu para a Espanha: Barcelona, Maiorca, Sevilha e,

finalmente, Madri. A passagem pela Andaluzia foi marcada pela publicação do primeiro

poema de Borges (“Himno del mar”) na revista Grecia e pelo seu envolvimento com o

movimento ultraísta, reforçado após a ida à capital espanhola e a sua aproximação com o

andaluz Rafael Cansinos Assens, que reunia um círculo literário em torno das suas tertúlias

semanais: “Every Saturday I would go to the Café Colonial, where we met at midnight, and

the conversation lasted until daybreak. Sometimes there were as many as twenty or thirty of

us. The group despised all Spanish local color – cante jongo and bullfights. They admired

American jazz, and were more interested in being Europeans than Spaniards.”32

Em 1921, ao retornar à Argentina, Borges teria destruído dois livros escritos nesse

período: Los Naipes del Tahúr, de ensaios políticos e literários (“I was still an anarchist and a

freethinker and in favor of pacifism”, escreve em seu ensaio autobiográfico), e The Red

Psalms ou The Red Rhythms, com cerca de vinte poemas escritos em versos livres que,

segundo o escritor, louvavam a Revolução Russa, a irmandade entre os homens e o

pacifismo.33

A Buenos Aires encontrada por Borges no seu retorno havia certamente mudado. O

crescimento demográfico e urbano redefinira os limites da cidade, que avançava sobre a

planície do pampa:

32 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 151. “I still

like to think of myself as his disciple”, escreve Borges no início da década de 70. Cf. ibid., loc. cit. 33 Cf. ibid., p. 153. Borges recorda nesse ensaio o nome de alguns poemas de The Red Psalms ou The Red

Rhythms que teriam sido publicados em revistas literárias: Épica Bolchevique, Trinchera e Rusia. Os dois

últimos foram incluídos posteriormente em BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1919-1929), edição

digital.

Page 29: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

29

It came to me as a surprise, after living in so many European cities – after so

many memories of Geneva, Zurich, Nîmes, Córdoba, and Lisbon – to find

that my native town had grown, and that it was now a very large, sprawling,

and almost endless city of low buildings with flat roofs, stretching west

toward what geographers and literary hands call the pampa.34

A volta de Borges e a surpresa com a nova paisagem urbana redefiniram a sua relação

com a cidade: “It was more than a homecoming; it was a rediscovery. I was able to see

Buenos Aires keenly and eagerly because I had been away from it for a long time. Had I

never gone abroad, I wonder whether I would ever have seen it with the peculiar shock and

glow that it now gave me.” Rever aquela cidade, que era e, ao mesmo tempo, não era a cidade

na qual havia crescido, provocou uma reação poética no jovem escritor ansioso por conquistar

um espaço na terra natal. O seu primeiro livro, publicado em 1923, pode ser considerado uma

resposta literária ao espanto experimentado na sua chegada: “The city – not the whole city, of

course, but a few places in it that became emotionally significant to me – inspired the poems

of my first published book, Fervor de Buenos Aires.” O livro também possuía para ele um

caráter seminal: “And yet, looking back on it now, I think I have never strayed beyond that

book. I feel that all my subsequent writing has only developed themes first taken up there; I

feel that all during my lifetime I have been rewriting that one book.”35 Distribuído com a

ajuda de amigos, Fervor de Buenos Aires foi seguido por Luna de enfrente (1925),

Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926), El idioma de los argentinos (1928),

Cuaderno San Martín (1929) e Evaristo Carriego (1930), além de publicações em jornais e

revistas:

This period, from 1921 to 1930, was one of great activity, but much of it was

perhaps reckless and even pointless. I wrote and published no less than

seven books – four of them essays and three of them verse. I also founded

three magazines and contributed with fair frequency to nearly a dozen other

periodicals, among them La Prensa, Nosotros, Inicial, Criterio, and Síntesis.

This productivity now amazes me as much as the fact that I feel only the

remotest kinship with the work of these years. Three of the four essay

collections – whose names are best forgotten – I have never allowed to be

reprinted.36

Além da intensa produção literária, com a qual o Borges do início dos anos 70 afirma

sentir apenas uma remota proximidade (Fervor de Buenos Aires é uma notável exceção), a

década de 20 também é lembrada pela amizade com Macedonio Fernández, uma relação que

34 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 153. 35 Ibid., p. 153, 153-154 e 155. Esse último comentário confirma a observação feita por Borges no prólogo do

livro, incluído na publicação em 1969: “Para mí, ‘Fervor de Buenos Aires’ prefigura todo lo que haría

después.” Cf. BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: Poesía completa, edição digital. 36 Ibid., p. 159.

Page 30: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

30

teria sido determinante na sua trajetória intelectual: “Perhaps the major event of my return

was Macedonio Fernández. Of all the people I have met in my life – and I have met some

quite remarkable men – no one has ever made so deep and so lasting an impression on me as

Macedonio.”37

Amigo de Jorge Guillermo, Macedonio estava no porto de Buenos Aires esperando

pelo retorno da família à Argentina em 1921. Algum tempo depois, se tornaria o substituto

portenho de Cansinos Assens:

We met on Saturday evening at a café – the Perla, in the Plaza del Once.

There we would talk till daybreak, Macedonio presiding. As in Madrid

Cansinos had stood for all learning, Macedonio now stood for pure thinking.

At the time, I was a great reader and went out very seldom (almost every

night after dinner, I used to go to bed and read), but my whole week was lit

up with the expectation that on Saturday I’d be seeing and hearing

Macedonio.38

Além das reflexões de Macedonio Fernández, que ponderava sobre problemas

filosóficos (tais como a natureza onírica da realidade ou a impossibilidade de comunicação da

verdade), Borges também seria influenciado por outros temas do debate intelectual portenho

desse período. Nas primeiras décadas do séc. XX, a cultura dos intelectuais em Buenos Aires

era pautada pelas diversas reações às mudanças resultantes do processo de modernização. A

alteração da paisagem urbana e a constituição de novas formas de sociabilidade provocavam

respostas que combinavam modernidade europeia e especificidade regional. A partir desses

eixos, eram definidas as posições em relação a novos e velhos problemas que caracterizavam

as discussões culturais a respeito da defesa da identidade local e da recepção de ideias e

práticas vindas da Europa. 39

Além disso, as transformações que reordenavam o campo intelectual também

produziam uma cisão mais ampla no imaginário portenho. A cidade na qual se vivia (o

presente das eternas mudanças) não correspondia mais à cidade recordada, agora o cenário

perdido da infância ou da juventude.40

Os intelectuais, inseridos em um processo de profissionalização e especialização cada

vez mais acentuado, tentavam definir os limites estéticos e políticos legítimos, estabelecendo

assim novos espaços de leitura, crítica e produção.41 Nesse reordenamento, atravessado por

37 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 156. 38 Ibid., p. 156-157. 39 Cf. SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 15. 40 Cf. ibid., p. 17. 41 Sarlo relaciona os principais pontos desse debate: “La cuestión de la lengua (quiénes hablan y escriben un

castellano ‘aceptable’); de las traducciones (quienes están autorizados y por cuáles motivos a traducir);

del cosmopolitismo (cuál es el internacionalismo legítimo y cuál una perversión de tendencias que

Page 31: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

31

uma configuração espacial e social instável e acompanhado pela formação de uma nova

sensibilidade, a cidade era apontada ora como a origem irrecuperável, ora como o destino

aguardado. Entre a celebração e a denúncia da modernização, entre a busca de um passado

perdido e a visão sedutora do cenário internacional, a própria cidade se tornaria um tema do

debate estético-ideológico. Nessa modernidade periférica, tal como é referida por Beatriz

Sarlo, os projetos renovadores (lastreados na importação de bens, discursos e práticas)

concorriam com aspectos defensivos e residuais vinculados à formação criolla. Esse embate

favoreceu a constituição de uma cultura de mezcla permeada pelo choque entre a

representação do futuro e a da história. Uma cultura que incorporava o novo ao mesmo tempo

que lamentava a irreversibilidade das mudanças: “La modernidad es un escenario de pérdida

pero también de fantasías reparadoras. El futuro era hoy.”42

O programa literário de Borges nos anos 20 entrelaça a lembrança de uma cidade

encoberta e a imagem da nova cidade fundada pelos processos modernizadores. Nessa junção,

para a qual a experiência proporcionada pelo envolvimento com as vanguardas artísticas

europeias foi decisiva, ele realiza uma leitura nostálgica de um espaço urbano que

materializava o território perdido da infância (o ubi sunt do sentimentalismo autobiográfico

identificado por Sarlo). Essa leitura é o ponto de partida para a elaboração do passado da sua

modernidade estética e para a estruturação de uma posição como escritor, um locus literário

que será expresso através do que Sarlo chama de “criollismo urbano de vanguardia” e

defendido a partir da profícua produção escrita de Borges durante essa década. Ainda que o

escritor “maduro” recuse posteriormente os excessos ultraístas do jovem poeta que retornava

da Europa, bem como os seus desenvolvimentos criollistas, o projeto que assume nos anos 20

está ligado à constituição de uma língua literária para Buenos Aires e à instauração de uma

dimensão mítica para a cidade.

Esse programa implicava uma reinterpretação das tradições culturais do rio da Prata

desvinculadas das transformações provocadas pela modernização e pela imigração. Matizada

pelas estéticas vanguardistas, a releitura e a intervenção de Borges renova a língua literária

local e promove o encontro de autores regionais com uma seleção particular de escritores

falsamente se reivindican universales); del criollismo (cuáles formas responden a la nueva estética y

cuáles a las desviaciones pintoresquistas o folklóricas); de la política (qué posición del arte frente a las

grandes transformaciones, cuál es la función del intelectual, qué significa la responsabilidad pública de

los escritores) son algunos de los tópicos presentes en el debate. Tras ellos, y ya entrada la década del

treinta, las inevitables preguntas sobre la Argentina: como se traicionaron las promesas fundadoras, cuál

es el origen y la naturaleza del mal que nos afecta y, en todo caso, si se trata de un fracaso basado

en límites internos o resulta de una operación planeada más allá de nuestras fronteras, en los grandes

centros imperiales.” SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 27-28. 42 Cf. ibid., p. 28-29.

Page 32: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

32

ligados à chamada literatura universal. Ainda que resultasse em uma combinação conflitiva

(especialmente devido ao contraste entre a poética borgiana desse período e a poética realista,

representativa e costumbrista associada ao criollismo), a reivindicação da literatura gauchesca

permitiu a Borges estabelecer um acercamento com a tradição que, apesar de inicialmente

marcado pelo vanguardismo, possibilitará a ele definir posteriormente a sua oposição aos

escritores ligados ao modernismo: “Al mismo tiempo que Borges realiza estos movimientos,

se distancia de su primer e incondicional fervor ultraísta y, en los mismos libros en que

despliega una poética de la imagen, comienza a criticarla.”43

O olhar nostálgico de Borges para a cidade também concorre para a elaboração de

uma topologia mítica que será utilizada na demarcação de um espaço de criação literária

original. A contemplação do escritor busca na paisagem os elementos que reforçam a

insularidade do poeta e legitimam o seu canto: “la ciudad criolla que persiste en la ciudad

moderna, la llanura pampeana que se refleja en el patio, en los cercos vivos del suburbio, en

las calles ‘sin vereda de enfrente’, es decir las calles que tocan la pampa y se pierden en la

extensión de un paisaje familiar.”44

Na sua lanterna mágica poética, Borges projeta a amplitude da planície pampiana

adentrando as casas nas fronteiras da cidade e estendendo sobre ela a sombra também mítica

de um mundo agora ameaçado pelas transformações econômicas e sociais e pelo avanço

vertiginoso da urbe:

En este mito, el pasado es un espacio donde se reinventa la llanura heroica

de las guerras del siglo XIX, la violencia que es la madre del coraje suicida o

resignado del gaucho, los códigos de honor de una sociedad rural

premoderna. Sin esa dimensión cultural, Buenos Aires moderna sería una

ciudad sin raíces, producida por la abundancia económica, la inmigración,

las instituciones de las elites letradas. Para Borges, en cambio, es una ciudad

que muestra su mapa histórico, al que corresponden distintas intensidades de

sentimiento.45

Nesse ponto, as asserções sociológicas de Beatriz Sarlo tocam as considerações

psicanalíticas de Emir Monegal. O sentimento nostálgico que leva Borges a reivindicar um

passado heroico para Buenos Aires também o leva a selecionar alguns elementos da sociedade

argentina pré-moderna para compor uma narrativa autobiográfica que reclama um código de

honra que abarca as guerras do séc. XIX, conflitos aos quais os seus antepassados militares

43 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 149-150. Como aponta

Sarlo nesse mesmo trecho, a rejeição de Borges à sua obra dos anos 20 não indica necessariamente uma ruptura:

“Las consecuencias de los libros que Borges publica en estos años son fundamentales para su obra futura, aun

cuando no siga recorriendo exclusivamente las líneas trazadas en ellos.” 44 Cf. ibid., p. 150. 45 Ibid., loc. cit.

Page 33: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

33

estavam vinculados.46 Desse modo, Borges alinha a história familiar, mobilizada para a

construção do seu mito pessoal, ao seu projeto literário.

Por outro lado, a imagem de Buenos Aires desenhada pelo primeiro Borges não é

unívoca. A cidade hispano-criolla que persiste apesar da mudanças, também evocada como

cidade perdida, convive com a cidade moderna em construção, cenário que possibilita o olhar

nostálgico do poeta. Borges se movimenta entre esses dois tempos e registra o

desaparecimento de uma cidade que precisa ser esquecida para que a nova cidade, a cidade

moderna, possa realizar a sua vocação: “Capta la desaparición, el momento en que la ciudad

olvida su pasado, porque ese olvido es también una condición de su modernidad. Borges

comprende que esa condición debe ser problematizada, y se hace cargo de la gran paradoja: la

modernidad es (también) una relación con el pasado.”47

O mosaico trabalhado a partir da diferença entre a cidade recordada e a Buenos Aires

reluzente do seu retorno definia também uma cartografia na qual eram sobrepostas diferentes

camadas da cidade (“estados de ciudad”, na expressão de Sarlo) representativos da

recordação/imaginação do passado e da observação do presente. Os marcos da paisagem

resultante dessa construção poética possibilitam um itinerário estético e compõem o cenário a

partir do qual Borges pode desenvolver a sua escrita. No roteiro do escritor pelo traçado

urbano, Sarlo identifica o predomínio de um horizonte uniforme e a ausência de traços

pitorescos e sinais históricos destacados, uma quase paisagem na qual a planície desponta

como a principal característica geográfica, definindo um formato e inscrevendo na cidade um

sinal das suas margens (“las orillas”), ponto fulcral da intervenção poética do escritor: “En la

llanura está la forma de la ciudad, su destino de orilla; la pampa es la orilla lábil de la ciudad

que se deshace en la llanura, una extensión sin cualidades que la poesía de Borges presenta

como su invención de comienzos en la literatura argentina.”48

O passado estruturado por Borges não é apenas recordado, mas também percorrido

nessa paisagem frágil e expresso nostalgicamente nas fronteiras da cidade moderna. Em seu

percurso, ele é atravessado por um sentimento de incompletude: “hay algo en el presente que

ya no está”, nota Sarlo. Essa condição é temporariamente suprimida pelo encontro com “las

46 O movimento é ainda mais amplo. Através da literatura épica, Borges desdobrará o estandarte da coragem e do

heroísmo sobre os séculos anteriores. 47 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 150-151. 48 Cf. ibid., p. 151-152. Sarlo ressalta as características dessa imagem da cidade: “Las campañas de Borges no

son fúnebres sino introvertidas y discretas. Rodean la ciudad como una extensión que casi no tiene ni las

cualidades de un paisaje; sobre todo, son la prefiguración ‘natural’ de lo que iba a ser la Buenos Aires moderna:

una extensión definida por la geometría de un horizonte invariable, lejos de todo pintoresquismo, sin variaciones

topográficas, ni fuertes marcas históricas, sin monumentos, espacio vacío para los recorridos a caballo, con

huellas que deben descifrarse, indeciso entre la tierra y el río, entre el cielo y su límite en el horizonte.”

Page 34: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

34

orillas”, representação do éthos hispano-criollo desaparecido e ponto de articulação entre o

presente (urbano e moderno) e o passado (rural e arcaico). Em suas bordas, a cidade (também

uma orilla do rio da Prata e da Europa) é invadida pela fantasmagoria do pampa,

especialmente pela figura do gaucho e pelo seu ideal de coragem, manifestos na imagem do

compadrito orillero.49 As orillas são os limites indefinidos da cidade e, devido à sua fluidez,

promovem o reencontro da cidade com o seu outro, a planície pampiana.

Evitando a cidade moderna, Borges caminha em direção aos bairros nos quais irá

revisitar a cidade que deixou ainda jovem, quando partiu com a família para a Europa. Bairros

que, apesar de terem surgido devido às transformações modernizadoras que soterraram a

cidade antiga, trazem a marca daquilo que a imaginação do escritor atribui a um mundo

perdido. E o que perdeu, ou o que sente ter perdido, é encontrado exatamente no outro da

cidade moderna: “La nostalgia de Borges es por aquello de campo que encuentra en los

barrios”. Ao longo do trajeto pelas ruas de Buenos Aires, Borges particulariza o cenário

através da nominação, seja lançando mão de nomes próprios (Palermo é evidentemente um

deles), seja através de referências aos pontos cardeais.50 Elabora, dessa forma, uma verdadeira

cartografia poética da cidade.

A vivência nostálgica de Buenos Aires e a aproximação de Borges à literatura regional

também se apoiam em uma leitura diferenciada de autores estrangeiros. Combinando a

tradição literária argentina (tanto erudita quanto popular) com a Weltliteratur, o escritor

define um repertório de autores e estabelece entre eles um diálogo original: “Su criollismo es

un capítulo del internacionalismo estético: desde esa inflexión menor del español rioplatense,

que ha consolidado en sus primeros libros, leerá, traducirá y reescribirá las tradiciones

literarias extranjeras.”51

Além da originalidade na mezcla entre literatura regional e universal, Borges também

fixa um cânone literário local que permite reforçar o seu distanciamento do modernismo,

estratégia que culminou na publicação de Evaristo Carriego (1930), uma falsa biografia de

um poeta argentino considerado na época pouco importante.52 No entanto, apesar da falta de

reconhecimento, Evaristo Carriego, amigo de Jorge Guillermo e frequentador da casa da

família antes da primeira viagem dos Borges à Europa, teria sido uma referência recorrente

durante os anos vividos longe da terra natal: “In 1912, at the age of twenty-nine, he died of

tuberculosis, leaving behind a single volume of his work. I remember that a copy of it,

49 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 152-154. 50 Cf. ibid., p. 154 e 156. 51 Cf. ibid., p. 157-158. 52 Cf. ibid., p. 158-159.

Page 35: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

35

inscribed to my father, was one of several Argentine books we had taken to Geneva and that I

read and reread there.”53

Entretanto, a própria família estranhou a escolha desse “poeta menor” de Palermo

como tema do novo livro de Borges:

My mother wanted me to write about any of three really worthwhile poets –

Ascasubi, Almafuerte, or Lugones. Instead, I chose to write about a nearly

invisible popular poet, Evaristo Carriego. My mother and father pointed out

that his poems were not good. “But he was a friend and neighbor of ours”, I

said. “Well, if you think that qualifies him as the subject for a book, go

ahead”, they said.54

A preferência de Borges pode ser compreendida a partir daquilo que Evaristo

Carriego representava para o jovem escritor: a possibilidade de uma atuação literária a partir

das margens:55 “Carriego was the man who discovered the literary possibilities of the run-

down and ragged outskirts of the city – the Palermo of my boyhood.” Contudo, o novo livro

de Borges logo se tornou um ensaio sobre a própria cidade: “The more I wrote, the less I

cared about my hero. I had started out to do a straight biography, but on the way I became

more and more interested in old-time Buenos Aires.”56

Dessa forma, articulando um passado criollo, uma cidade perdida, uma poética das

margens e um repertório de autores original, Borges define os principais traços do projeto

literário que defende nesse período. Inventa um passado, uma cidade, alguns precursores.

Constrói um espaço e um tempo para a sua literatura e, nesse movimento, cria a si mesmo

como escritor.

53 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 162. 54 Ibid., loc. cit. 55 O que Sarlo denomina de “arte poética de las orillas”. Beatriz Sarlo. SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en

las orillas, disponível on-line. 56 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 162 e 162-

163.

Page 36: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

36

O jovem Jorge Luis Borges

Fervor de Buenos Aires (1923)

Page 37: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

37

1.4- A magia do relato

As referências ao cinema aparecem muito cedo na obra de Borges. Em 1920, ainda

durante a viagem da família à Europa, as qualidades de um “film cinemático” são evocadas

em uma metáfora no poema Insomnio, impresso na revista Grecia. Nos anos seguintes, o

cinema é mencionado em diversos artigos. No principal deles, “El cinematógrafo, el

biógrafo”, publicado em 1929, Borges debate, a partir de uma questão semântica, as

possibilidades de representação através da nova arte.

Definindo o cinematógrafo como “la grafía del movimiento, señaladamente en sus

énfasis de rapidez, de solemnidad, de tumulto”, Borges associa o termo às primeiras

experiências cinematográficas, “cuya sola materia fue la velocidad”, e ao cinema de

vanguarda, “institución que se reduce a alimentar, con más enriquecidos medios, el mismo

azoramiento antiguo”. Ainda que a produção vanguardista pudesse ser considerada mais

elaborada, Borges identifica a mesma deficiência na utilização da imagem. A origem dessa

falha seria a vertigem provocada pelo novo aparelho de projeção de imagens:

Al espectador primitivo lo pudo maravillar un solo jinete; a su equivalente

de ahora le basta con muchísimos o con la superpuesta visión de un

ferrocarril, de una columna de trabajadores, de un barco. La sustancia de la

emoción es igual: es de pasmo burgués ante las diabluras que hacen las

máquinas, es la que inventó el nombre desproporcionado “linterna mágica”

para el juguete presentado por Atanasio Kircher en su “Ars magna lucis et

umbrae”. Para el espectador, es mero azoramiento bobo de técnica; para el

fabricante es una holgazanería de la invención, un aprovechar la fluencia de

imágenes.57

Essa limitação teria sido superada pelos filmes que figuravam a concepção de cinema

que Borges identifica no termo biógrafo. Embora a denominação já estivesse em desuso no

momento da escrita do artigo, Borges estabelece uma diferença que possibilita definir outra

vocação para a produção fílmica:

Eliminado para nuestro alivio el cinematógrafo, lo sucede el biógrafo.

¿Cómo reconocerlo, entreverado en muchedumbre inferior? El

procedimiento más rápido es el de buscar los nombres de Charlie Chaplin,

de Emil Jannings, de George Bancroft, de algunos dolorosos rusos. Es

eficiente, aunque demasiado contemporáneo, circunstancial. El de aplicación

general (aunque no adivinador como el otro) puede ser formulado así.

Biógrafo es el que nos descubre destinos, el presentador de almas al alma.58

57 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 58 Ibid.

Page 38: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

38

O biógrafo, segundo Borges, não apenas representaria o movimento, mas também

desvelaria destinos. Considerando os nomes dos atores citados (Chaplin, Emil Jannings e

George Bancroft), podemos compreender esse desvelamento de trajetórias de vida, essa

apresentação de “almas al alma”, como uma alusão ao desenvolvimento de personagens no

cinema narrativo. Esse seria o ponto de inflexão a partir do qual o cinema começaria a

adquirir relevância artística.

Enquanto o cinematógrafo expressaria o encanto com uma nova forma de

representação da realidade (confundida muitas vezes com a própria reprodução do real) e

apresentaria os milagres da modernidade (“las diabluras que hacen las máquinas”, diz o

escritor), o biógrafo utilizaria a “fluencia de imágenes” para provocar outro efeito, superando

aquilo que Borges chama de “azoramiento bobo de técnica”. A velocidade daria lugar à

construção de um relato. Nesse ponto, ele mobiliza algumas referências literárias na sua

argumentação:

La definición es breve; su prueba (la de sentir o no una presencia, un

acuerdo humano) es acto elemental. Es la reacción que todos nosotros

usamos para juzgar libros de invención. Novela es presentación de muchos

destinos, verso o ensayo es presentación de uno solo. (El poeta o escritor de

ensayos es novelista de un solo personaje que es él; los doce volúmenes de

Enrique Heine sólo están habitados por Enrique Heine, la obra de Unamuno

por Unamuno. En cuanto a los poetas dramáticos – Browning, Shakespeare –

y los ensayistas de modo narrativo – Lytton Strachey, Macaulay – son

novelistas íntegramente, sin otra diferencia que su menos disimulada

pasión). Repito, biógrafo es el que nos agrega personas. El otro, el no

biógrafo, el cinematógrafo, está desierto, sin otro sucedáneo de vidas, que

fábricas, maquinaria, palacios, cargas de caballería y otras alusiones a la

realidad o generalidades fáciles. Es zona inhabitable, cargosa.59

O “sentimento de uma presença”, característica apontada como distintiva do biógrafo,

pode ser interpretado como uma referência aos processos de identificação entre

leitor/espectador e personagem atribuídos à recepção da narrativa. Entretanto, Borges maneja

uma ideia de narração abrangente que encerra aspectos narrativos de obras literárias

normalmente não associadas ao gênero épico.60 De acordo com o escritor, o critério utilizado

para reconhecer esse traço narrativo na literatura poderia ser empregado também para

identificar os filmes do biógrafo: tanto o cinema quanto a literatura propiciariam aquilo que

ele denomina um “acuerdo humano”.

59 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 60 Essa identidade narrativa de formas literárias de gêneros distintos possibilita ao escritor aproximá-las e reuni-

las em uma supracategoria chamada de “libros de invención”.

Page 39: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

39

No cinema, somente esse “agregar de pessoas” promoveria a superação do fascínio

estéril provocado pela nova tecnologia da imagem em movimento, deslumbramento que

resultava no emprego ingênuo da câmera e na representação insistente de signos da

modernidade: uma filmografia “cargosa”, uma “zona inhabitable”.

Na sua defesa do biógrafo, Borges cita algumas cenas de Em busca do ouro (The gold

rush, 1925), exemplo que contrastaria com a aridez da produção do cinematógrafo. No

mesmo comentário, aponta também para uma peculiaridade do filme de Chaplin: “el destino

de Chaplin no es allí el único y eso lo diferencia de los otros puro monólogos de su inventor”.

Os outros destinos seriam apresentados através do desenvolvimento de personagens

secundários:

“El pibe, el circo”, Jim, el descubridor de una montaña de oro y que ya no

sabe dónde es y que atorra por los burdeles con ese trastornado recuerdo e

insobornable olvido; Georgia, la bailarina sin otra fidelidad que su imperiosa

belleza, leve sobre la tierra; Larsen, el hombre cuyo saludo es una descarga,

el hombre resignado a ser malo, el hombre poseído por esa inocencia mortal

de la depravación, son enteros destinos.61

A diferenciação entre Em busca do ouro e os “puro monólogos” de Chaplin possibilita

compreender um outro aspecto do vínculo que Borges estabelece entre o cinema e a literatura.

A sua breve teorização sobre as formas literárias, na qual vincula o romance à apresentação de

vários destinos e o poema e o ensaio à exposição de apenas um (o destino do próprio poeta ou

ensaísta), é mobilizada na comparação entre os estilos de atuação de Chaplin e do ator suíço

Emil Jannings. Assim, Borges descobre no biógrafo um “poeta” e um “romancista”:

Chaplin es el narrador de sí mismo, vale decir el poeta, que tiene el biógrafo;

Jannings, su novelista múltiple. No puedo trascribir nada de él: su

vocabulario vivo de gestos, su directo idioma facial, no me parece traducible

a otro alguno. Jannings, además de las agonías de la tragedia, sabe rendir

estrictamente lo cotidiano. Sabe no sólo agonizar (tarea fácil o de fácil

simulación, por ser de verificación improbable) sino vivir. Su estilo, hecho

incesantemente de realizaciones minúsculas, es tan sin ostentación y tan

eficaz como el de Cervantes o Butler. Sus personajes – el opaco montón de

sensualidad en “Tartufo”, siempre con el breviario pequeñísimo ante los ojos

como un antifaz irrisorio; el emperador en “Quo Vadis”, aborrecible de

afeminamiento y gruesa vanidad; el varón justo de la metódica dicha, el

cajero Schilling, el gran señor en “La última orden”, no menos devoto de la

patria que sabedor de su flaqueza y enredos – son caracteres diversísimos,

tan incomunicados entre sí que ni podemos imaginarlos comprendiéndose.

¡Qué irónico desinterés del general por la tragedia chabacana de Schilling:

qué anatemas proféticos (redactados en el heroico alemán de Martín Lutero)

no le arrojaría éste a Nerón!62

61 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 62 Ibid.

Page 40: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

40

Enquanto Chaplin elaboraria constantemente o mesmo personagem em seus filmes,

revelando, tal como um poeta, apenas um destino,63 os diversos personagens compostos pelo

versátil Emil Jannings levam Borges a apontá-lo como um romancista do cinema, um ator

capaz de produzir, através de um estilo de interpretação apoiado na valorização do detalhe,

um efeito tão eficaz quanto aquele atingido na literatura por Miguel de Cervantes e Samuel

Butler.

Na ideia de cinema defendida por Borges em “El cinematógrafo, el biógrafo” também

sobressai a preferência pela apresentação de trajetórias individuais. Essa posição define a sua

crítica a respeito da cinematografia alemã, marcada pela representação de coletividades que

não despertariam a identificação do espectador: “Quiere conmovernos con el general fracaso

o martirio de muchedumbres que antes no hemos visto vivir y que están desfamiliarizadas aún

más por su aspecto de bajo relieve y su proporción.” A vindicação do individual vai além: “[o

cinema alemão] ignora que la muchedumbre es menos que el hombre, levanta un bosque para

disimular la falta de un árbol.” A narrativa, indica o escritor, não poderia prescindir da

centralidade do indivíduo. Ao final, Borges se vale do Antigo Testamento e de Daniel Defoe

para reforçar a sua posição: “Pero en el arte, como en la narración diluviana, no importa la

perdición de la humanidad, siempre que la pareja humana concreta se quede con el mundo.

Defoe dividiría por dos este ejemplo y reemplazaría: Siempre que Robinson.” Contra os

tormentos das multidões, bastaria um homem para salvar o relato.64

O tratamento de questões relacionadas aos aspectos narrativos do cinema não foi

pontual. Entre 1931 e 1945, em diversas resenhas publicadas em Sur,65 revista fundada por

Victoria Ocampo, Borges aborda temas relacionados à narrativa cinematográfica. De certa

forma, ele recorre ao cinema nesses artigos para abordar problemas relacionados à própria

narração. É o que nota Edgardo Cozarinsky: “El cine (más bien una idea de cine) aparece

asociado en Borges a la práctica de la narración, aun a la posibilidad misma de abordar la

narración.”66 Desse modo, Borges, no papel de crítico de cinema, entretece textos fílmicos

com referências literárias e analisa procedimentos envolvidos na construção de um relato.

A primeira resenha sobre cinema publicada na revista começa com um breve

comentário sobre Karamazoff (Der Mörder Dimitri Karamasoff, 1931), uma produção alemã

dirigida pelo russo Fedor Ozep. Para elogiar a adaptação da obra de Dostoiévski, Borges

63 Evidentemente, o destino do Vagabundo (the Tramp), personagem clássico de Chaplin. 64 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 65 Borges também publicou breves notas sobre cinema em Selección em junho e julho de 1933. 66 COZARINSKY, Edgardo. Magias parciales del relato. In: Borges en/y/sobre cine, p. 13.

Page 41: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

41

ressalta o distanciamento entre o filme e a cinematografia alemã, desta vez condenada devido

à “simbología lóbrega, la tautología o vana repetición de imágenes equivalentes, la

obscenidad, las aficiones teratológicas, el satanismo”. Ozep tampouco incorreria nos erros

comuns das produções russas: “la omisión absoluta de caracteres, la mera antología

fotográfica, las burdas seducciones del comité.” Por último, o escritor estende o anátema ao

cinema francês: “De los franceses no hablo: su mero y pleno afán hasta ahora, es el de no

parecer norteamericanos – riesgo que les prometo no corren.” Mais do que apontar o êxito de

El asesino Karamazoff, Borges delimita, através da censura a três influentes cinematografias

europeias, uma perspectiva na qual está implícita a prevalência do cinema americano.67

Ainda comentando o filme de Ozep, ele refuta um questionamento normalmente

levantado pela adaptação de uma obra literária ao cinema. Primeiramente, confessa não ter

lido “la espaciosa novela” de Dostoiévski, fato que teria lhe permitido apreciar El asesino

Karamazoff sem nenhuma preocupação com a correspondência entre o filme e o livro. Em

seguida, defende o valor do filme independentemente de supostas analogias com a obra

adaptada: “Así, con inmaculada prescindencia de sus profanaciones nefandas y de sus

meritorias fidelidades – ambas inimportantes –, el presente film es poderosísimo.” O mérito

de El asesino Karamazoff estaria na elaboração de uma realidade convincente, capaz de

revelar de modo crível o destino do protagonista: “Su realidad, aunque puramente

alucinatoria, sin subordinación ni cohesión, no es menos torrencial que la de Los muelles de

Nueva York, de Joseph von Sternberg. Su presentación de una genuina, candorosa felicidad

después de un asesinato, es uno de sus altos momentos.” Além da construção de um universo

diegético crível, o filme de Ozep possuiria virtudes cinematográficas que potencializavam a

narrativa: “Las fotografías – la del amanecer ya preciso, la de las bolas monumentales de

billar aguardando el impacto, la de la mano clerical de Smerdiakov, retirando el dinero – son

excelentes, de invención y de ejecución.” 68

No mesmo artigo, Borges reprova Luzes da cidade (City lights, 1931), chamado por

ele de “una lánguida antología de pequeños percances, impuestos a una historia sentimental”.

Diferenciando filmes “reales” daqueles que apresentariam uma “voluntaria irrealidad” (entre

os quais estariam os trabalhos de Buster Keaton, Sergei Eisenstein e mesmo “las travesuras

primitivas de Chaplin”), situa Luces de la ciudad em um curioso limbo representacional: “Su

carencia de realidad sólo es comparable a su carencia, también desesperante, de irrealidad.”

67 BORGES, Jorge Luis. Films. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 30. 68 Ibid., p. 30-31.

Page 42: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

42

Por fim, rejeita também Marrocos (Morocco, 1930), dirigido por um Joseph von

Sternberg que começava a incomodá-lo: “El laconismo fotográfico, la organización exquisita,

los procedimientos oblicuos y suficientes de La ley del hampa, han sido reemplazados aquí

por la mera cumulación de comparsas, por los brochazos de excesivo color local.” A

reprovação inclui ainda algumas escolhas artísticas do diretor: “Sternberg, para significar

Marruecos, no ha imaginado un medio menos brutal que la trabajosa falsificación de una

ciudad mora en suburbios de Hollywood, con lujo de albornoces y piletas y altos muecines

guturales que preceden el alba y camellos con sol.” No entanto, Borges elogia o argumento do

filme e, seguindo um procedimento característico do seu trabalho, articula referências

literárias regionais e universais em um comentário a respeito do desfecho da trama: “En

cambio, su argumento general es bueno, y su resolución en claridad, en desierto, en punto de

partida otra vez, es la de nuestro primer Martín Fierro o la de la novela Sanin del ruso

Arzibáshef.”69

Nessa primeira resenha, é possível identificar alguns dos principais pontos que

norteiam a crítica cinematográfica de Borges: a consideração sobre a independência estética

do cinema, a problematização de elementos constitutivos do relato e a avaliação a respeito da

eficácia da representação. Essas questões atravessam seus comentários e permitem delinear a

noção de cinema que fundamenta as suas observações.

A afirmação da autonomia do cinema, explicitada no comentário sobre a adaptação de

Ozep, é retomada em diversos artigos. A respeito de Crime e castigo (Crime and punishment,

1935), escreve: “De una intensísima novela, Sternberg ha extraído un film nulo; de una novela

de aventuras del todo lánguida – Los treinta y nueve escalones de John Buchan – Hitchcock

ha sacado un buen film. Ha inventado episodios. Ha puesto felicidades y travesuras donde el

original sólo contenía heroísmo.”70 As “infidelidades”, em alguns casos, seriam até mesmo

bem-vindas. Um “buen film” dependeria da exploração de recursos que fortalecessem a

narrativa cinematográfica.

Além de considerar o sucesso ou o fracasso da adaptação de uma obra literária

resultado exclusivo da habilidade do realizador para construir um relato próprio, Borges

enfatiza a especificidade da palavra e da imagem. Ao comentar a publicação do roteiro de

Daqui a cem anos (Things to come, 1936), compara novamente o cinema com a literatura e,

recorrendo à teoria estética alemã do séc. XVIII, declara a independência das duas formas de

expressão artística:

69 BORGES, Jorge Luis. Films. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 31-32. 70 Id. Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 42.

Page 43: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

43

[...] las líneas memorables del libro no corresponden (no pueden

corresponder) a los instantes memorables del film. En la página 19, Wells

habla “de un entrevero de instantáneas que muestren la confusa eficacia

inadecuada de nuestro mundo.” Como era de prever, el contraste de las

palabras confusión y eficacia (para no mencionar el dictamen que hay en el

epíteto inadecuada) no ha sido traducido en imágenes. En la página 56,

Wells habla del aviador enmascarado Cabal, “destacándose contra el cielo,

un alto prodigio”. La frase es bella, su versión fotográfica no lo es. (Aunque

lo hubiera sido, no correspondería nunca a la frase, ya que las artes del

retórico y del fotógrafo, son ¡oh clásico fantasma de Efraim Lessing! del

todo incomparables). Hay acertadas fotografías, en cambio, que nada deben

a las indicaciones del texto.71

As artes do retórico e do fotógrafo seriam únicas, “incomparáveis”. O roteiro

adaptado de Things to come, escrito por H. G. Wells a partir do seu romance The shape of

things to come, revelaria essa dissociação. As passagens memoráveis do “libro

cinematográfico” não correspondiam (e não poderiam corresponder, ressalta Borges) às cenas

mais marcantes do filme, que por sua vez contaria com “acertadas fotografías” não indicadas

no roteiro. Palavra e imagem possuiriam naturezas distintas intraduzíveis: o belo literário e o

cinematográfico jamais seriam equivalentes.

Alguns problemas estéticos da “arte do fotógrafo” também são abordados em um

comentário sobre Film and theatre, estudo de cinema comparado publicado por Allardyce

Nicoll em 1936. Inusitadamente, um Borges “cinéfilo” inicia o artigo condenando o

acadêmico Allardyce Nicoll: “hombre versado en bibliotecas, docto en ficheros y absoluto en

catálogos, es casi analfabeto en boleterías”, escreve o jovem escritor argentino. Rejeitando a

seleção de filmes que fundamenta a argumentação do professor de história do drama da

“sapiente” Universidade de Yale, Borges questiona a posição de Nicoll a respeito do “relato

retrospectivo”.72 Embora concorde com a necessidade de privilegiar a imagem em detrimento

da palavra (segundo um trecho do livro citado no artigo, o “primordial debe proponerse a los

ojos; el oficio de las palabras es subalterno”), considerar o relato retrospectivo um recurso de

natureza dramática que deveria ser evitado no cinema, tal como afirma o “profesor Nicoll”,

seria “una verdadera apoteosis de la pedantería y del formalismo”.73 A refutação é seguida por

uma breve exposição sobre o problema do tempo cinematográfico, debatido no capítulo “más

interesante” do livro:

71 BORGES, Jorge Luis. Wells, Previsor. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 47. 72 Trata-se da exposição, através de palavras, de eventos anteriores ao tempo presente da diegese, um

“procedimiento literario que abunda en las epopeyas homéricas”, lembra Borges. Realizada através de imagens,

é o conhecido flashback da linguagem cinematográfica. 73 BORGES, Jorge Luis. Film and theatre. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 49-50.

Page 44: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

44

¿Debe corresponder el tiempo del arte al tiempo de la realidad? Las

contestaciones son múltiples. Shakespeare – según su propia metáfora –

puso en la vuelta de un reloj de arena las obras de los años; Joyce invierte el

procedimiento y despliega el único día de Mr. Leopold Bloom y Stephen

Dedalus sobre los días y las noches de su lector. Más grato que el empeño de

abreviar o alargar una sucesión es el de trastornarla, barajando tiempos

distintos. En el terreno de la novela, Faulkner y Joseph Conrad son los

autores que mejor han jugado a esas inversiones, en el del film (que, según

observa muy justamente Allardyce Nicoll, es singularmente capaz de tales

laberintos y anacronismos) no recuerdo sino El Poder y la Gloria, de

Spencer Tracy. Ese film es la biografía de un hombre, con omisión

deliberada, y conmovedora, del orden cronológico. La primera escena es la

de su entierro.74

Borges, que comparara o cinema e a literatura para sentenciar, evocando Lessing, que

são “incomparáveis”, recorre ao tempo da narrativa, um dos fundamentos do relato, para

transitar fluentemente entre Shakespeare e Spencer Tracy.

A problematização do enredo e do modo de construção dos personagens, outra marca

da crítica cinematográfica de Borges, é evidente em um comentário sobre O delator (The

informer, 1935). Borges censura “la excesiva motivación” que justificam os atos do

protagonista e ensina: “Entiendo que el objeto perseguido es la verosimilitud, pero los

directores cinematográficos – y los novelistas – suelen olvidar que las muchas justificaciones

(y los muchos pormenores circunstanciales) son contraproducentes.” Ao final, retoma a teoria

da tragédia de Aristóteles (ou uma determinada leitura dessa teoria) e descobre no cinema a

possibilidade de construção de uma estrutura dramática que prescinda da unidade de espaço:

“De las tres unidades trágicas, dos han sido observadas, las de acción y de tiempo; la

negligencia de la tercera, la de lugar, no puede ser motivo de queja. El cinematógrafo por su

mismo carácter, parece rechazar esa tercer norma y requerir continuos desplazamientos.”75

Em outras resenhas, seguindo suas considerações sobre as tramas apresentadas nas

salas de projeção, Borges denuncia as imitações que identifica nas fábulas cinematográficas:

“El argumento de La fuga es, mutatis mutandis, el del famoso film The preacher de Chaplin”,

comenta a respeito do filme argentino lançado em 1937. Alguns anos depois, acusa o cansaço

com a repetição de fábulas que assolava o cinema americano: “En efecto, hace muchos años

que Hollywood (a semejanza de los trágicos griegos) se atiene a diez o doce argumentos.”76

A respeito da avaliação da eficácia da representação, outra constante na sua crítica,

Borges recusa especialmente a artificialidade de ambientes construídos a partir de

74 BORGES, Jorge Luis. Film and theatre. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 51. 75 Id. El delator. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 38 e 39-40. 76 Id. La fuga; Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 58 e 74.

Page 45: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

45

estereótipos. A sua condenação ao que considera excesso de cor local é explicitada na resenha

de O Delator:

Otra debilidad de “El delator” es la de su principio y su fin. Los episodios

preliminares parecen falsos. Ello se debe, en parte, a esa calle demasiado

típica, demasiado europea (en el sentido californiano de la palabra) que nos

proponen. Es innegable que una calle de Dublín no es absolutamente igual a

una calle de San Francisco, pero se parece más a esta calle – por ser

auténtica las dos – que a un evidente simulacro, abarrotado de cargoso color

local. Las diferencias locales parecen haber impresionado más a Hollywood

que el parecido universal: no hay director americano que ante el imaginario

problema de presentar un paso a nivel español o un terreno baldío austro

húngaro, no se resuelva por una construcción especial, cuyo único mérito

debe ser el alarde de un gasto...77

Da mesma forma, o tom normativo marca um comentário depreciativo sobre Los

muchachos de antes no usaban gomina (1937), filme argentino dirigido por Manuel Romero:

“El diálogo es del todo increíble. Los personajes – doctores, patoteros, y compadrones de

1906 – hablan y viven en función de su diferencia con el año 1937. No existen fuera del color

local y del color temporal.”78

O modo de representação “adequado” ao tratamento de aspectos locais teria sido

encontrado por Luis Saslavsky em La fuga, filme que realizaria um ideal de cinema

americano nunca abandonado pelo escritor argentino:

La fuga, en cambio, fluye límpidamente como los films americano. Buenos

Aires, pero Saslavsky nos perdona el Congreso, el Puerto del Riachuelo y el

Obelisco; una estancia entrerriana, pero Saslavsky nos perdona las domas de

potros, las yerras, las carreras cuadreras, las payadas de contrapunto y los

muy previsibles gauchos ladinos a cargo de italianos auténticos.79

Ainda pior que os exageros da cor local seria a deformação provocada pela introdução

de um elemento exótico ao filme. Borges é um crítico contundente do recurso que permitiu a

popularização do cinema falado no mercado mundial: a dublagem. Condenada como

“maligno artificio”, que propunha “monstruos que combinan las ilustres facciones de Greta

Garbo con la voz de Aldonza Lorenzo”, a dublagem, além de implicar uma nefasta

77 BORGES, Jorge Luis. El delator. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 39. 78 Id. Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 55. Um chiste que antecede a avaliação do filme

expressa a visão de Borges sobre o cinema argentino da época: “Este – Los muchachos de antes, etcétera – es

indudablemente uno de los mejores films argentinos que he visto: vale decir, uno de los peores del mundo.” 79 Id. La fuga. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 57. Por se tratar de um filme argentino, Borges deixa

claro (como se fosse necessário) que o seu juízo está isento de qualquer conotação nacionalista: “Entrar en un

cinematógrafo de la calle Lavalle y encontrarme (no sin sorpresa) en el Golfo de Bengala o en Wabash Avenue

me parece muy preferible a entrar en ese mismo cinematógrafo y encontrarme (no sin sorpresa) en la calle

Lavalle. Hago esta confesión liminar para que nadie achaque a turbios sentimientos patrióticos esta vindicación

de un film argentino. Idolatrar un adefesio porque es autóctono, dormir por la patria, agradecer el tedio cuando

es de elaboración nacional, me parece un absurdo.”

Page 46: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

46

recomposição dos signos cinematográficos (“La voz de Hepburn o de Garbo no es

contingente; es, para el mundo, uno de los atributos que las definen”, diz Borges), provocaria

a fragmentação da diegese e uma percepção inelutável de falsificação: “peor que el doblaje,

peor que la sustitución que importa el doblaje, es la conciencia general de una sustitución, de

un engaño.”80

Durante esses anos, as referências de Borges ao cinematógrafo ultrapassam as

resenhas escritas especificamente sobre o assunto. Como também nota Cozarinsky,

ocasionalmente o escritor argentino recorre ao cinema “como material de lectura, uno entre

innumerables motivos de reflexión que prodiga el universo”.81 Em Nuestras imposibilidades,

o desinteresse do público argentino por Aleluia (Hallelujah, 1929) e a reação da plateia local

diante de uma cena de Paixão e sangue (Underworld, 1927) são apontados por Borges como

exemplos de alguns traços daquilo que considera como o “argentino ejemplar” dos centros

urbanos.82 Do mesmo modo, em Historia de la eternidad (ensaio publicado no livro

homônimo em 1936), a atriz americana Miriam Hopkins é elencada em uma explicação sobre

o mundo das ideias de Platão, a cuja filosofia seria possível remontar a primeira noção de

eternidade discutida no artigo: “Miriam Hopkins está hecha de Miriam Hopkins, no de los

principios nitrogenados o minerales, hidratos de carbono, alcaloides y grasas neutras, que

forman la sustancia transitoria de ese fino espectro de plata o esencia inteligible de

Hollywood.”83 Já em Los traductores de las 1001 noches, publicado no mesmo livro, Borges

compara um dos tradutores de “las Noches” à censura norte-americana: “Lane es un virtuoso

del subterfugio, un indudable precursor de los pudores más extraños de Hollywood.”84

Além dessas remissões, Borges inclui o cinema no debate de questões literárias. Em

“La postulación de la realidad”, publicado em Discusión, trata de diferentes métodos de

apresentação da realidade através da literatura e inclui Joseph von Sternberg entre os

representantes do modo mais difícil e eficiente: “Asevero lo mismo de las novelas

cinematográficas de Joseph von Sternberg, hechas también de significativos momentos.”85

Por sua vez, em “El arte narrativo y la magia”, do mesmo livro, Borges identifica a

causalidade como o problema central da novelística e descobre uma analogia entre o

procedimento mágico (tal como descrito por James Frazer) e a forma de construção do relato

80 BORGES, Jorge Luis. Sobre el doblaje. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 77 e 78. 81 COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 13. 82 Cf. BORGES, Jorge Luis. Nuestras imposibilidades. In: Miscelánea, edição digital. Publicado em Sur em

1931 e incluído no ano seguinte em Discusión, o ensaio foi retirado do livro na edição de 1955. 83 Cf. id. Historia de la eternidad. In: Historia de la eternidad, edição digital. 84 Cf. id. Los traductores de las 1001 noches. In: Historia de la eternidad, edição digital. 85 Cf. id. La postulación de la realidad. In: Discusión, p. 79.

Page 47: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

47

no romance de aventura (“la novela de continuas vicisitudes”) e no cinema americano (“la

infinita novela espectacular que compone Hollywood con los plateados ídola de Joan

Crawford y que las ciudades releen”). Essa ordem mágica, caracterizada pelo estabelecimento

de um vínculo “inevitable entre cosas distantes”, diferiria da ordem do “mundo real” que a

“novela de caracteres” buscaria imitar. A diferença, entretanto, não seria de natureza. A

magia, explica Borges, não contradiz a causalidade, mas a exacerba: “El milagro no es menos

forastero en ese universo que en el de los astrónomos. Todas las leyes naturales lo rigen, y

otras imaginarias. Para el supersticioso, hay una necesaria conexión no sólo entre un balazo y

un muerto, sino entre un muerto y una maltratada efigie de cera”. E aponta: “Esa peligrosa

armonía, esa frenética y precisa causalidad, manda en la novela también.” A semelhança

poderia ser notada na disposição dos episódios em um romance: “Todo episodio, en un

cuidadoso relato, es de proyección ulterior.”86 Finalmente, através desse procedimento

mágico que caracterizaria o relato, Borges reitera a aproximação entre a literatura e o cinema:

Esa teleología de palabras y de episodios es omnipresente también en los

buenos films. Al principiar A cartas vistas (The Showdown), unos

aventureros se juegan a los naipes una prostituta, o su turno; al terminar, uno

de ellos ha jugado la posesión de la mujer que quiere. El diálogo inicial de

La ley del hampa versa sobre la delación, la primera escena es un tiroteo en

una avenida; esos rasgos resultan premonitorios del asunto central. En

Fatalidad (Dishonored) hay temas recurrentes: la espada, el beso, el gato, la

traición, las uvas, el piano. Pero la ilustración más cabal de un orden

autónomo de corroboraciones, de presagios, de monumentos, es el

predestinado Ulises de Joyce. Basta el examen del libro expositivo de

Gilbert o, en su defecto, de la vertiginosa novela.87

Um outro aspecto do diálogo que Borges trava com o cinema é o emprego de métodos

cinematográficos na sua escrita. Em Evaristo Carriego, ao refletir sobre como poderia

construir uma imagem que representasse o passado de Palermo, ele sugere: “Lo más directo,

según el proceder cinematográfico, sería proponer una continuidad de figuras que cesan.”88 E

prossegue com uma série de “figuras” que compõem a sua descrição do bairro. Cinco anos

mais tarde, no prólogo de Historia universal de la infamia, comenta:

Los ejercicios de prosa narrativa que integran este libro fueron ejecutados de

1933 a 1934. Derivan, creo, de mis relecturas de Stevenson y de Chesterton

y aun de los primeros films de Von Sternberg y tal vez de cierta biografía de

Evaristo Carriego. Abusan de algunos procedimientos: las enumeraciones

86 Cf. BORGES, Jorge Luis. El arte narrativo y la magia. In: Discusión, p. 93-95. 87 Ibid., p. 96. 88 Cf. id. Evaristo Carriego, p. 16-17.

Page 48: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

48

dispares, la brusca solución de continuidad, la reducción de la vida entera de

un hombre a dos o tres escenas.89

Já na década de 40, Borges finaliza com uma confissão a breve nota autobiográfica

(redigida em terceira pessoa) que antecede “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” na Antología de la

literatura fantástica: “Escribe en vano argumentos para el cinematógrafo.”90 De fato, o desejo

de escrever para o cinema o levou a participar de diversos projetos cinematográficos. Em

1940, aceita o convite para escrever, ao lado de Ulyses Petit de Murat e Manuel Peyrou, o

roteiro de Suburbio. O filme, entretanto, nunca foi rodado. Em seguida, é contratado para

trabalhar em Pago Chico, uma adaptação da obra de Roberto J. Payró. Além de Borges,

faziam parte da equipe de escritores Bioy Casares, Manuel Peyrou e Enrique Mallea Abarca.

De acordo com Bioy Casares, o grupo interrompeu o trabalho devido à interferência do

governo militar.91 Também fracassaram as tentativas de adaptação para o cinema de Evaristo

Carriego e “Hombre de la esquina rosada” (conto publicado em Historia universal de la

infamia), projetos que envolveram Borges e Bioy Casares. Ainda nesse período, escreve com

Bioy Casares dois roteiros originais: Los orilleros e El paraíso de los creyentes. Novamente,

não obtém sucesso.92

A concretização do seu primeiro projeto para o cinema ocorreu com Días de odio

(1954), uma adaptação de “Emma Zunz” (conto incluído em El Aleph) dirigida por Leopoldo

Torre Nilsson. Contudo, embora tenha participado da elaboração do roteiro, Borges não

hesitou em condenar o resultado: “realmente no creo que [Torre Nilsson] lo hiciera bien.

Agregó una historia sentimental que no tenía por qué figurar, y lo llenó de toda suerte de

89 BORGES, Jorge Luis. Historia universal de la infamia. In: Cuentos completos, edição digital. No prólogo da

edição de 1954, Borges acrescenta: “Los doctores del Gran Vehículo enseñan que lo esencial del universo es la

vacuidad. Tienen plena razón en lo referente a esa mínima parte del universo que es este libro. Patíbulos y

piratas lo pueblan y la palabra infamia aturde en el título, pero bajo los tumultos no hay nada. No es otra cosa

que apariencia, que una superficie de imágenes; por eso mismo puede acaso agradar.” Ibid., grifo nosso. 90 Id. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius [nota preliminar]. In: _____ (org.); BIOY CASARES, Adolfo (org.);

OCAMPO, Silvina (org.). Antología de la literatura fantástica, p. 71. 91 “Cuando descubrimos que había que modificar el final del film [...] de modo de adular al gobierno, no

volvimos a las reuniones”. BIOY CASARES, Adolfo apud MARTINO, Daniel. Magias parciales de Pago Chico:

un guión perdido de Borges, Bioy Casares, Peyrou y Mallea Abarca. Film, disponível on-line. 92 Carlos Martínez oferece uma explicação para a falta de êxito de Borges no cinema durante esse período:

“Tales fracasos singulares como escritor de guiones durante los comienzos de la década del cuarenta se harán

frecuentes a partir de 1946 con la hegemonía oficial del cine argentino, inscripto en la política cultural del

gobierno peronista, cuyas medidas favorecen, por medio del otorgamiento de créditos, un cine híbrido, en el que

predominan géneros como la comedia rosa y el melodrama comercial […] Sólo en los años 50 y de un modo más

intenso en los 60, los vínculos entre la ficción literaria y el relato cinematográfico se establecerán más

estrechamente y en una dimensión de índole estética más deliberada. Esta relación puede ser caracterizada por la

irrupción de una visión crítica y la apertura de un horizonte de rupturas estéticas que se dan tanto en la literatura

como en el cine.” MARTÍNEZ, Carlos. Borges: la narración literaria y el cine. Orillas, disponível on-line.

Gonzalo Aguilar e Emiliano Jelicié comentam dois outros roteiros inconclusos de Borges e Bioy Casares: La isla

o Del amor, a partir de uma ideia proposta por Bioy Casares, e uma adaptação de Martín Fierro. Cf. AGUILAR,

Gonzalo; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos Aires: Libraria, 2010, p. 146-150.

Page 49: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

49

detalles sentimentales que parecen contradecir la historia, que es una historia dura. Yo le

aconsejé a él que no podía hacerse un film con ‘Emma Zunz’.”93

A reparação por essa primeira desilusão cinematográfica só viria com a aproximação

do diretor Hugo Santiago e a realização de Invasión (1969). O cinema, “arte do fotógrafo”, da

imagem em movimento, na qual o primordial deveria ser oferecido aos olhos e o “ofício das

palavras” era subalterno, finalmente permitiria a Borges (não mais jovem e já com graves

problemas de visão) exercer a sua magia.

93 BORGES, Jorge Luis. In: SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 96.

Page 50: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

50

Josef von Sternberg, uma das influências reivindicadas por

Borges no prefácio de Historia universal de la infamia (1935)

Cartaz de Paixão e sangue (Underworld / La ley del hampa, 1927),

filme de von Sternberg constantemente referido por Borges

Page 51: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

51

2 - Um filme de Borges

2.1 – A trama de um roteiro

“Retenido en Buenos Aires por el compromiso de escribir un argumento para Hugo

Santiago Muchnik. Borges me ha anunciado jubiloso su casamiento, diciéndome que en

septiembre seré su padrino (o testigo). En el ínterin, nos han propuesto que escribamos el

argumento de un film y nos ofrecen dinero, bastante dinero.”1 Desse modo, Adolfo Bioy

Casares registra em seu diário, no início de junho de 1967, o início da colaboração com Hugo

Santiago. Após alguns dias, comenta: “Esta noche no pudimos escribir, por falta de ideas; o

mejor dicho: de idea del episodio a escribir. BORGES: ‘No es fácil pensar por encargo.

Cuando a uno se le ocurre una idea, se le ocurre con su expresión. Aquí tenemos la idea, pero

no sabemos con qué situación expresarla.’” A escrita do argumento, que deveria ser entregue

em setembro daquele ano, começava a provocar irritação. Pouco tempo depois, a insatisfação

de Borges aumenta: “Esto es lo más subalterno que hemos hecho: episodios de Rocambole,

aunque no sé muy bien cómo era Rocambole.”2 Finalmente, em 3 de julho, tomam uma

decisão:

Tomamos una resolución heroica: no escribiremos el argumento

cinematográfico. El contrato al que renunciaremos, que no firmaremos:

trescientos mil pesos de adelanto, antes de entregar el trabajo; setecientos

mil en cuotas ulteriores, hasta el estreno del film. Entregaremos el resumen

del film, en versión corregida. Nos veremos libres de ese yugo. Los

productores no comprenderán nuestra resistencia, nuestra poca disposición a

firmar y a cobrar.

O trabalho subalterno ao qual se refere Borges e o jugo mencionado por Bioy Casares

(além, é claro, das dificuldades encontradas no desenvolvimento da ideia) pareciam condenar

mais um projeto cinematográfico dos dois escritores ao fracasso. Em 8 de julho, comunicam a

desistência a Hugo Santiago. A reação do diretor é admirável:

Comen en casa Borges y Hugo Santiago Muchnik. A Muchnik le digo:

‘Tengo, para usted, una buena y una mala noticia. La buena es que hemos

concluido el resumen del film y que se lo regalamos para que haga lo que

quiera. La mala es que no haremos el libreto.’ Como un caballero, como un

buen perdedor, Muchnik acepta mis palabras. Dice que esas diez páginas que

le hemos hecho son lo esencial y que gracias a ellas podrán seguir adelante

con el film.

1 Os trechos do diário de Bioy Casares citados neste subcapítulo foram publicados separadamente em

INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 58-60. 2 Borges se refere aos enredos repletos de peripécias (“rocambolescos”) protagonizados por Rocambole,

personagem criado pelo Visconde Ponson du Terrail.

Page 52: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

52

Após o comunicado, os três se reúnem no escritório de Bioy Casares para a leitura do

“resumo”. Bioy descreve a satisfação de Santiago e o título sugerido pelo diretor: Invasión.

Borges se impressiona: “Es un caballero. No flaqueó en ningún momento. Cuando esté solo

en su cuarto se pondrá a llorar.”

Contudo, os acontecimentos subsequentes são ainda mais surpreendentes que a reação

de Hugo Santiago. Um dia após a desistência, os três se encontram novamente: “Comen en

casa Borges y Hugo Santiago Muchnik. Con Borges, felices de vernos libres del compromiso

del film, sin un pensamiento por el dinero que no ganaremos.” Alguns dias depois, sobre uma

reunião com Borges, anota: “Escribimos un episodio para el film (un episodio que ha de

sustituir a uno del resumen que entregamos a Hugo Santiago).” Já no dia seguinte,

compreendemos que algo havia mudado: “Como en casa Borges. Trabajamos en las nuevas

escenas de Invasión.” O registro de 18 de julho confirma a impressão: “Hugo Santiago

Muchnik mandó el nuevo contrato para Invasión. BORGES: ‘Qué extraordinario es el

muchacho... La bondad es admirable.’” A próxima referência ao filme é feita somente em

maio do ano seguinte: “Viene a tomar el té Hugo Santiago Muchnik. Empezará a filmar

Invasión en 27.” Nesse intervalo, o trabalho havia sido concluído.

A razão para a mudança de postura dos escritores em relação ao projeto não é

explicitada no diário. Talvez o gesto de Hugo Santiago tenha tranquilizado os dois. É mais

fácil compreender o motivo da súbita interrupção da “trama” contada por Bioy Casares. Em 4

de agosto de 1967, ele parte para um longa viagem à Europa. Caberá a Borges continuar o

trabalho com o jovem diretor.

Entretanto, não foi a primeira vez que os dois estiveram juntos sem a intermediação de

Bioy. Nascido em Buenos Aires em 1939, Hugo Santiago conhecera Borges na década de 50,

quando estudou filosofia e letras na Universidade de Buenos Aires.3 Ainda no primeiro ano

do curso, foi aluno do escritor, que ministrava a disciplina de Literatura Inglesa. Logo se

aproximou do professor e leu para ele os poemas de Estancia en Buenos Aires, livro dedicado

“Al definitivo Jorge Luis Borges”.4 Em 1958, escreveu uma série para a televisão, da qual

codirigiu três episódios com Lautaro Murúa, recebendo por esse trabalho uma bolsa do Fondo

Nacional de las Artes para ir a Paris. Antes da viagem, visitou Borges na Biblioteca Nacional:

“Nos estamos viendo”, disse o diretor da instituição.

3 A breve apresentação biográfica seguinte é baseada em INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 131-

135; e OUBIÑA, David (org.). El cine de Hugo Santiago, p 115-118. As declarações de Hugo Santiago citadas

podem ser conferidas em BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 4 Segundo Hugo Santiago, Borges sugeriu um outro título, Capital de mi canto, e afirmou que ajudaria na

publicação da obra. O livro, entretanto, não foi editado. Cf. BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión.

Alejo Moguillansky (diretor).

Page 53: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

53

Na Europa, com uma carta de recomendação de Ramón Gómez de la Serna, Hugo

Santiago se aproximou de Jean Cocteau e, através dele, de Robert Bresson, com o qual viria a

trabalhar durante sete anos e do qual seria assistente de direção em O processo de Joana

d’Arc (Procès de Jeanne d'Arc, 1962). No início da década de 60, também realizou estudos de

literatura francesa, filosofia comparada e estética na Sorbonne e escreveu dois roteiros nunca

filmados. Em 1966, durante uma viagem à Argentina, trabalhou no roteiro de El hombre del

bandoneón em parceria com a poetisa Olga Orozco. No entanto, o projeto foi interrompido

após o golpe de Estado de Juan Carlos Onganía. No ano seguinte, novamente em Buenos

Aires, dirigiu o média-metragem Los contrabandistas (1967). A proposta a Bioy Casares e

Borges foi realizada em seguida.

Embora ainda mantivesse contato com Borges, Hugo Santiago apresentou a ideia

inicialmente a Bioy Casares: “Yo pensé que era hábil pasar por Bioy, que era más fácil [...]

Yo me tuteaba con Bioy”, diz. Para tanto, foi à casa do escritor:

Lo fui a ver a Bioy, una mañana, y le dije: “Tengo una idea y entonces

quería que juntos se la presentáramos a Borges. En realidad, pensé en

ustedes porqué si yo hago solo [...] esta idea va a ser un film a la manera de

Borges y Bioy Casares. Y como Borges y Bioy Casares están en Buenos

Aires y yo también, ¿cómo no le voy a traer la idea?” Le dije eso a Bioy. Y

Bioy me dijo: “Contame la idea.” Y yo le dije la idea: “Una ciudad, con

invasores. Eso.”5

Diante dos questionamentos de Bioy Casares, ele insiste: “No es más que eso: una

ciudad sitiada y un grupo que la defiende.” Bioy telefonou para Borges e, à tarde, levou Hugo

Santiago à Biblioteca Nacional, onde o ex-aluno contou a ideia ao antigo mestre: “Borges, es

una ciudad, un poco ovalada, que está sitiada, y hay un grupo de defensores. Y los otros

entran, ganan. Y se llama Invasión.” O comentário de Borges deixou o diretor atônito: “Claro,

es un sistema leibniziano con un doble sistema de entradas y salidas.” A observação foi

acompanhada pelo silêncio de Hugo Santiago. Borges então pergunta: “Cuándo empezamos?”

No mesmo dia, os três conversam sobre os projetos cinematográficos fracassados de Borges e

Bioy e combinam um novo encontro. Dessa vez, os dois escritores o interrogam acerca da

remuneração e ouvem a promessa de que não trabalhariam de graça. Aceitam e decidem

começar a escrever o argumento. Contudo, Hugo Santiago não participaria dessa etapa.6

5 A ideia fazia parte do imaginário portenho. Alguns anos antes, havia sido o tema de El Eternauta, um romance

gráfico que marcou o ambiente intelectual local. Cf. ÁLVAREZ, José Manuel González. ¡Buenos Aires

invadida! Sobre el leitmotiv del asedio en la ficción especulativa argentina (1950-2000). Ciberletras, disponível

on-line. 6 Há pelo menos uma contradição entre a versão de Hugo Santiago e a de Bioy Casares. De acordo com o diário

de Bioy, o título teria sido revelado pelo diretor posteriormente, durante a conversa ocorrida em 8 de julho de

1967.

Page 54: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

54

Os acontecimentos seguintes já foram mencionados: a entrega do resumo, o recuo, a

volta ao projeto e a viagem de Bioy Casares. Na véspera da partida, Hugo Santiago conversa

com Bioy sobre o texto e aponta os problemas que havia identificado. À noite, o escritor lhe

pede que encontre Borges. No dia seguinte, após se despedir de Bioy, Hugo Santiago,

tremendo, bate na porta do escritório do diretor da Biblioteca Nacional: “Aquí estamos los

dos para algo que nos interesa a ambos”, diz Borges ao vê-lo. Conversam longamente sobre o

resumo (“Yo le decía que no había una continuidad de un film”, comenta Santiago) e, ao

final, Borges concorda e decreta: “Entonces, empezamos mañana.” No segundo dia de

trabalho, Hugo Santiago pediu que Borges definisse o início e o fim da estória, dois marcos

que permitiriam ao cineasta prosseguir sozinho caso houvesse nova desistência. Entretanto,

Borges não abandonou o projeto. Trabalhou com Hugo Santiago durante oito meses em

Buenos Aires. O roteiro estava quase pronto quando o escritor precisou viajar aos Estados

Unidos. Ainda assim, durante dois meses, tratou por correspondência de questões

relacionadas ao filme. Ao retornar, realizou com Santiago as últimas modificações no roteiro.

Invasión foi rodado logo em seguida.

Em relação à colaboração com Borges, Hugo Santiago ressalta o bom humor e a

dedicação do escritor. Debatiam cada ideia, atentos aos detalhes:

Lo que había detrás era un compromiso de una seriedad absoluta en relación

con ese guión que había que hacer. Pero quiero decir total. [...] Más allá de

cualquier reivindicación personal, más allá de cualquier orgullo, más allá...

Su único orgullo, que era total, era de que el guión fuera lo mejor posible. Y

esos diálogos iban a ser lo mejor posible. Fuera de eso, si uno le decía algo a

Borges y entonces él daba una idea y uno decía: “Claro, es eso Borges”, y

uno no se la criticaba en seguida, se enojaba, se enojaba. Porqué creía que

uno estaba le diciendo que sí por cualquier cosa. Había que pasar por una

crítica profunda de como era tal cosa, con sus variantes posibles, para

eventualmente volver a la idea justa que había tenido.7

A ênfase no diálogo e no trabalho coletivo é confirmada por uma afirmação de Borges

durante uma entrevista a Fernando Sorrentino:

Es decir, nos olvidamos de que somos tres personas, y pensamos con plena

libertad. Nadie se siente ligeramente entristecido si una sugestión suya ha

sido rechazada; nadie acepta, por cortesía o resignación, lo que dicen los

otros. No: es como si los tres fuéramos los tres una sola persona; una sola

persona que trabajara con plena libertad y que no tiene por qué sentirse

desairada si los otros desaprueban algo que se le ha ocurrido a él y que no se

7 Hugo Santiago também destaca o conhecimento de Borges sobre cinema: “La película Invasión le debe a

Borges [...] de ponerse al servicio de un film como un guionista de un director y que participaba, un guionista

viejo cinéfilo, que se acordaba muy bien de los filmes que le había gustado en su juventud, muy bien”.

Page 55: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

55

aplaude a si misma si se le ocurre algo bueno.8

Embora o processo tenha sido marcado por referências literárias, a escrita do roteiro,

especialmente a elaboração dos diálogos, também foi norteada pelas restrições que a

decupagem realizada por Hugo Santiago impunha: “El film fue dialogado al final, cuando la

continuidad y las secuencias ya estaban decididas, y el encuadre casi acabado. Yo decía, por

ejemplo: ‘Herrera va hasta el fondo, se inclina y habla.’ Borges preguntaba: ‘¿Cuánto?’. Y yo:

‘No mucho.’ Entonces él me dictaba.”9 Dessa forma, foi possível seguir em linhas gerais as

indicações do texto durante as filmagens: “El film respeta escrupulosamente el guión – y el

encuadre – secuencia por secuencia, toma por toma. Muy a menudo, los planos minuciosos

fueron descriptos antes de encontrar el decorado: la busca se propuso en cada ocasión

someterse a la cosa imaginada.”10

O resultado do trabalho parece ter comovido o escritor argentino. Em 1969, ano de

lançamento do filme, Borges declara: “Dos experiencias de carácter análogo, lejanas en el

tiempo, conviven ahora en mi memoria. La antigua me acompaña desde 1923; estoy hablando

de esa tarde en que tuve en las manos el primer ejemplar de mi primer libro. La otra, la

reciente, es la de la emoción que sentí al ver en la pantalla el film Invasión.” Por fim,

completa: “Un libro impreso no difiere demasiado de un manuscrito; un film es la proyección

visible, detallada, escuchada, enriquecida y mágica, de algo soñado, apenas entrevisto.”11

8 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 101. 9 SANTIAGO, Hugo. Partituras. In: AGUILAR, Gonzalo (org.); OUBIÑA, David (org.). El guión

cinematográfico, p. 127. 10 Entretanto, algumas “infidelidades” foram cometidas: “Hay contadas excepciones. Si existe en el film un

cementerio de trenes, por ejemplo, es porque el ‘cementerio de tranvías’ no lo encontramos.” Mais importante do

que a mudança de uma locação, foi a decisão do diretor de excluir uma cena: “Un único corte, no sólo en la

trama sino también en el guión ya encuadrado. Y en esta excepción, el episodio fue de todos modos filmado,

montado, sonorizado. Existía incluso en las primeras copias de clasificación técnica. Sólo casi a ‘film terminado’

tomé la decisión de cortar la secuencia, pasando de su comienzo a su final.” Cf. SANTIAGO, Hugo apud

INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 49. 11 BORGES, Jorge Luis apud HUGO Santiago y su película Invasión. La Nación, 14 ago. 1969, página não

identificada.

Page 56: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

56

Borges e Hugo Santiago

Hugo Santiago e Bioy Casares

Page 57: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

57

Cartazes do filme

Page 58: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

58

2.2 – Um traçado de Invasión

Aquilea, 1957. A legenda se sobrepõe à paisagem, definindo o tempo e o espaço da

narrativa. O cenário é apresentado através de um plano geral: casas e edifícios compõem um

aglomerado urbano cujos limites são indiscerníveis. O corte seguinte aproxima o olhar.

Algumas construções modestas, o entulho e a vegetação sugerem que estamos agora na

periferia da cidade, onde assistimos a um homem de terno escuro caminhando por uma rua

deserta e mal iluminada. O percurso do personagem é interrompido bruscamente por um ruído

e pelo som de passos acelerados de uma pessoa em fuga. Ele descobre que alguém o

observava. O espectador, inicialmente cúmplice inconsciente desse observador secreto,

compartilha a percepção do personagem, que segue inabalável. Após caminhar um pouco

mais, para e, com um binóculo, examina o lugar. Seu olhar não nos é revelado. O timbre

inconfundível do bandoneón, que acompanha os últimos instantes da cena, evoca o ambiente

portenho.

A cena inicial de Invasión estabelece uma atmosfera enigmática, efeito reforçado pelas

sequências seguintes: num dia luminoso na frontera sur da cidade, um grupo de homens,

todos usando ternos claros padronizados, executa uma tarefa misteriosa em um estádio de

futebol. Um deles dá uma ordem a respeito de um carregamento. A sua expressão indica o

pertencimento a uma instância superior. Após um corte direto, acompanhamos um caminhão

percorrendo as ruas quase vazias da cidade. A suspeita sobre alguma atividade ilícita logo se

confirma. Na saída do porto, após carregar o caminhão, eles escapam da fiscalização

enganando e atirando em dois funcionários. Novamente, somos confrontados com o som do

bandoneón.

Ainda durante a abertura, cenas externas filmadas em Buenos Aires são entretecidas

aos detalhes de um mapa que apresenta o traçado urbano labiríntico de Aquilea. Ao mesmo

tempo, os créditos do filme, sobrepostos a essas imagens, nos informam, entre outras coisas, a

respeito da autoria do argumento e do roteiro. Logo seremos apresentados a Don Porfirio

(Juan Carlos Paz), um personagem indiferente às inquietações dos homens comuns. Na cena,

enquanto alguns amigos o questionam sobre o resultado de uma partida de futebol, Don

Porfirio compra sua hierba e recusa o açúcar oferecido pelo merceeiro: “No se tome el

trabajo, Don Jesús. Yo ya estoy hecho a la amargura.” Esse personagem taciturno,

descobriremos em seguida, é o líder de um grupo secreto local que, ciente da ameaça de uma

invasão estrangeira, se dispõe a enfrentá-la. Ao voltar para casa, Don Porfirio telefona para

Herrera (Lautaro Murúa), o personagem misterioso que caminhava por uma rua deserta na

Page 59: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

59

cena inicial. Ao telefone, Don Porfirio anuncia: “Tantos años sin salir de las vísperas… Ahora

ellos están por entrar. Éste día es hoy.” E escuta: “Mejor así. Uno se cansa de esperar. Voy

para allá.” Percebemos que a cidade está cindida. O cotidiano permanece inalterado e a

maioria dos habitantes ignora a ocupação iminente. Antes de sair para atender a convocação

de Don Porfirio, Herrera conversa com Irene (Olga Zubarry), sua esposa. Preocupada, ela

percebe que algo grave o aflige, mas não obtém respostas. Ao se despedir, Herrera a conforta:

“No tome tan en serio mis ausencias, señora. Le cuento un secreto: a mí me gusta jugar a los

misterios.” A resposta da esposa também é hermética: “Sí, ya sé que es un juego.” A

compreensão de Irene oculta um outro segredo: logo após a saída de Herrera, ela deixa a casa

para buscar um objeto misterioso e entregá-lo a um grupo de jovens. Assim que a tarefa é

executada, eles se dispersam. Sobre o objeto e os jovens, nada sabemos.

Nesse ponto, as duas tramas principais do filme estão estabelecidas: o espectador irá

acompanhar agora o desenrolar de cada uma delas. A mais desenvolvida, que abarca Don

Porfirio e Herrera, será composta também por outros personagens: Vildrac (Jorge Cano),

Silva (Roberto Villanueva), Irala (Martín Adjemián), Lebendiger (Daniel Fernández),

Cachorro (Ricardo Ormellos) e Moon (Leal Rey). Juntos, precisam destruir o carregamento e

impedir a instalação de um comando estrangeiro na cidade. Para isso, Don Porfirio pede a

Herrera que vá a um depósito onde um grupo de invasores, após receber instruções em um

café, encontrará o grupo envolvido com o transporte da carga. E alerta: “Al café, no vaya.” A

restrição soa a Herrera como uma convocatória. No café, ele espera pelos invasores ao lado de

Irala e Silva. Ao perceber o cansaço deste, sugere: “¿Tenés sueño, Dr. Silva? ¿Por qué no vas

a dormir un rato? Aquí no va a pasar nada. Y de todos modos, Irala, que es un tigre, me va a

cuidar. ¿No es cierto, Irala?” O olhar desconfortável do “tigre” Irala confirma a ironia do

comentário. Ao contrário dos demais, ele é um personagem marcado pela ausência de

coragem: “Siempre con su dolor de muelas”, afirma Herrera. Pelo menos no café, o receio

desse se justifica. Irala foge e o deixa só após a chegada dos estrangeiros.

O medo, contudo, é um sentimento que precisa ser enfrentado por todos os membros

da resistência, inclusive pelo líder do grupo. Em casa, Don Porfirio escreve um inusitado

bilhete para Wenceslao N., seu gato: “¿Tiene miedo, Don Wenceslao? Le encuentro razón: la

cosa es como para meter miedo a cualquiera. Y el más fácil: miedo de que te peguen y te

duela. Ese miedo es capaz de hacerte olvidar todo. Hasta olvidar que los otros están ahí afuera

y que van a entrar, si nadie se les anima.” O diálogo imaginário, acompanhado pelo olhar do

animal, termina com o semblante grave de Don Porfirio e a destruição da anotação. Enquanto

isso, os preparativos para o ataque ao caminhão continuam. Ao encontrar Vildrac no depósito

Page 60: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

60

na frontera norte, Herrera alerta: “Irala se esfumó. Esperaba encontrarlo con usted.” Vildrac

defende o amigo: “El pobre tiene las mejores intenciones. Pero cuando llegue el momento...”

Após verem fracassar o estratagema para destruir a carga, descobrem que os invasores estão

reunidos em um sítio, a Quinta de Los Laureles. Aguardando para atacar o local, o grupo se

reúne. Embora ainda não conheçamos o desfecho da nova investida, uma nota local prenuncia

os próximos acontecimentos. Silva, com um violão, entoa a “Milonga de Manuel Flores”:

Para los otros, la fiebre

y el sudor de la agonía.

Y para mí, cuatro balas

cuando esté clareando el día.

Manuel Flores va a morir,

eso es moneda corriente.

Morir es una costumbre

que sabe tener la gente.

Mañana vendrá la bala,

y con la bala, el olvido.

Lo dijo el sabio Merlín:

morir es haber nacido.

Y sin embargo, me cuesta

decirle adiós a la vida,

esa cosa tan de siempre,

tan dulce y tan conocida.

Miro en el alba mi mano,

Miro, en la mano, las venas.

Con extrañeza las miro,

como si fueran ajenas.

¡Cuántas cosas estos ojos

en su camino habrán visto!

¿Quién sabe lo que verán

después que me juzgue Cristo?

Para los otros, la fiebre

y el sudor de la agonía.

Y para mí, cuatro balas

cuando esté clareando el día.

A canção, que alterna primeira e terceira pessoas, descreve os últimos momentos de

um homem consciente da proximidade da morte e antecipa o destino dos personagens. O

primeiro a cumprir a predição da milonga é Irala, aquele a quem falta bravura. No entanto,

durante a operação, que resulta na destruição da carga, o personagem se redime. Percebendo a

necessidade do sacrifício individual de um membro do grupo para o êxito da ação, ele se

oferece: “Herrera, para entrar en la casa, lo estuve pensando. Ya sé quien es el más indicado:

Page 61: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

61

soy yo, precisamente. Si alguien ha de morir, el más indicado soy yo. Ustedes pueden ofrecer

su valentía y su destreza; yo sólo puedo ofrecer mi muerte.”

A ação também resulta em outras baixas. Além da morte de Irala, eles perdem Vildrac,

enquanto Herrera e Silva são feitos prisioneiros e levados para a frontera suroeste para serem

interrogados. Na prisão, os invasores tentam descobrir quem é o líder da resistência, quais são

os nomes dos participantes e onde estão guardadas as armas do grupo. Logo o método que

utilizam para conseguir informações é anunciado a Herrera: “El límite del sufrimiento físico

ha sido establecido. No hay razón para llegar al último termo. Más vale declarar en seguida,

ya que tarde o temprano tendrá que hacerlo.” Herrera resiste. Sabe que de qualquer modo não

será poupado. A tentativa de convencimento persiste: “Mejor que abandone, Herrera. ¿Por

qué nos resiste, si la gente está esperando lo que le vamos a vender?” A contestação também:

“La gente no se da cuenta. Y los que se dan cuenta tienen miedo, como yo.” Mesmo com a

promessa de uma morte rápida, ele se recusa a falar. Entretanto, antes de ser confrontado com

o momento decisivo, escapa. Na fuga, luta contra um dos invasores e o mata. Nessa cena,

também está explícito o valor da coragem. Após um confronto at close quarters, como se

referiu Borges a respeito das disputas com facas, Herrera toma o revólver do sentinela e

pergunta: “¿Qué haría usted si tuviera el revólver?”. “Lo mataría.”, ele responde. “Está bien.

Usted es un hombre valiente. Te merece que lo mate.” Herrera atira e foge. A sorte de Silva

não é a mesma. Após ser torturado, informa que as armas estão localizadas em uma ilha e é

morto pelos invasores. Entretanto, ao reencontrar Don Porfirio, Herrera descobre a artimanha

adotada pelo comandante: para proteger a organização, Don Porfirio havia mentido para todos

acerca da localização do armamento. A informação revelada por Silva era, portanto, falsa.

O grupo só volta a se encontrar no velório de Vildrac, durante o qual Don Porfirio

envia Lebendiger e Moon ao Hotel Unión na fronteira noroeste para despachar as armas a

outra parte da cidade. Enquanto isso, Herrera e Cachorro devem descansar. Inusitadamente,

Cachorro deixa o local e, ao passar por uma sala de cinema, decide assistir a um western.

Acompanhamos algumas cenas de Along the Rio Grande (1941), um faroeste dirigido por

Edward Killy, e a satisfação quase infantil do personagem ao longo da sessão. Após o término

do filme, ele permanece na sala, estático. Descobrimos que está morto. Provavelmente, foi

assassinado por um dos invasores.

O mesmo fim terão Moon e Lebendiger. Após despachar as armas, este é atraído por

uma desconhecida para uma emboscada. Ao perceber o erro, confessa: “La verdad es que yo

esperaba otra cosa, otra cosa más agradable, pero que hubiera sido una mera repetición. En

cambio, ahora puedo satisfacer una curiosidad que siempre me inquietó: la de saber si soy

Page 62: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

62

valiente. Parece que sí.” Resignado, aceita seu destino. Moon, por sua vez, é confrontado com

um invasor no hotel. Diante de uma arma apontada para ele, caminha em direção ao inimigo,

que lhe pergunta após atirar: “¿No vio el revólver?”. “No, yo era ciego”, responde.

Além da morte dos membros da resistência, surge um novo obstáculo. Don Porfirio

descobre que os invasores conseguiram instalar uma estação de transmissão em um campo de

futebol. De lá, pretendem ordenar o ataque. Para impedi-los, pede a Herrera que vá ao local e

destrua o transmissor. Exausto, Herrera o questiona: “Quedamos nosotros dos, Don Porfirio.

¿A qué seguir peleando?”. “Siempre vale la pena seguir”, retruca o comandante. “Así será,

pero ahora sin mí. Don Porfirio, yo cumplí siempre lo que usted me mandó, pero esta ciudad

no tiene remedio. ¿A qué morir por gente que no quiere defenderse? Ya no cuente conmigo.”

A resposta de Don Porfirio revela um dos temas do filme: “La ciudad es más que la gente.”

Ao final, Herrera se recusa a cumprir a ordem: “No voy a ir.” No entanto, segue para o

estádio, onde é capturado antes de destruir a estação de transmissão.

Paralelamente a essa trama, acompanhamos as ações de Irene e de um grupo de

jovens. Apesar de os personagens que a acompanham nunca serem nomeados, essa parte do

relato adquire importância durante o filme. Percebemos que também participam de uma

organização secreta e se preparam para uma luta. Contudo, podemos apenas suspeitar que

suas ações estejam relacionadas à trama que envolve o grupo de Herrera. Apenas nas últimas

cenas, com o desaparecimento desse, a conexão entre as duas tramas é estabelecida. Em um

diálogo envolvendo Irene e Don Porfirio, descobrimos que ela pertencia a uma outra célula da

resistência. Ao vê-la preocupada com o marido, o comandante lhe diz que Herrera havia

recusado a missão: “Me aseguró que no iba a ir. Anda a esperarlo a tu casa.” Ela não acredita:

“Don Porfirio, él necesita ser valiente. Iré a mi casa y él no va a llegar.” O pressentimento de

Irene se confirma. Don Porfirio recebe uma ligação e vai ao estádio, onde encontra o corpo

de Herrera.

Finalmente, a invasão começa: em aviões, barcos, caminhões, carros e cavalos, os

estrangeiros avançam sobre Aquilea. Com a derrota do núcleo principal, o grupo de jovens

adquire protagonismo. Don Porfirio anuncia: “Tantos años estuve preparándolos. Ellos ya

están adentro. Ahora la resistencia empieza. Ahora les toca a ustedes, los del sur.” E sinaliza a

Irene para começar a distribuir as armas. A ordem indica também uma sucessão de gerações.

Agora, os mais jovens assumem a responsabilidade pelos destinos da cidade. Porém, como

afirma um deles na cena final, a continuidade implica renovação e traz a marca da diferença:

“Ahora nos toca a nosotros, pero tendrá que ser de otra manera.”

Page 63: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

63

Imagens de Aquilea

Page 64: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

64

Irene (Olga Zubarry)

Herrera (Lautaro Murúa)

Page 65: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

65

Don Porfirio (Juan Carlos Paz) e o mapa de Aquilea

Silva (Roberto Villanueva) canta a Milonga de Manuel Flores

Page 66: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

66

Cartaz anuncia um western em exibição

A resistência, com Herrera (Lautaro Murúa) no centro

Page 67: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

67

Don Porfirio (Juan Carlos Paz)

Don Porfirio (Juan Carlos Paz) e Irene (Olga Zubarry) coordenam a nova resistência

Page 68: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

68

2.3- Fábulas kafkianas

“En todo caso, se trata de un film fantástico y de un tipo de fantasía que puede

calificarse de nueva. No se trata de una ficción científica a la manera de Wells o Bradbury.

Tampoco hay elementos sobrenaturales. Los invasores no llegan de otro mundo; y tampoco es

psicológicamente fantástico: los personajes no actúan – como suele ocurrir en las obras de

Henry James o Kafka - de un modo contrario a la conducta general de los hombres”. Assim,

Borges, em sua conversa com Fernando Sorrentino, descreve Invasión. E acrescenta: “Se trata

de una situación fantástica: la situación de una ciudad (la cual, a pesar de su muy distinta

topografía, es evidentemente Buenos Aires) que está sitiada por invasores poderosos y

defendida – no se sabe por qué – por un grupo de civiles.”12

Essa “situação fantástica” que instituiria a diegese do filme e diferiria das narrativas

mais populares do gênero (estabelecidas, segundo o escritor, a partir da projeção do futuro, da

intromissão de elementos sobrenaturais na realidade ou da elaboração de personagens

orientados por uma lógica incomum) possibilitava o desenvolvimento de um tema recorrente

na obra do escritor argentino: o conflito e a luta. O assunto é realçado na sinopse do filme

escrita por Borges: “Invasión es la leyenda de una ciudad, imaginaria o real, sitiada por

fuertes enemigos y defendida por unos pocos hombres, que acaso no son héroes. Luchan hasta

el fin, sin sospechar que su batalla es infinita.”13

Além da exposição da matéria, a síntese dos argumentistas apresenta um elemento

importante do enredo: a infinitude da luta.14 Em Invasión, assistimos a um estado de sítio

velado e à ameaça constante de um ataque, enquanto a resistência, renovada pela chegada de

novas gerações, persiste mesmo diante de uma derrota iminente. A ausência de um desfecho

para o conflito central da narrativa é um dos aspectos que distanciam o filme dos relatos

tradicionais do cinema. Contudo, não se trata apenas da omissão do ato correspondente à

resolução da estória, mas da construção de uma estrutura que projeta a ação ad infinitum.

Nesse ponto, a trama de Invasión reverbera especialmente a interpretação de Borges

da obra de Franz Kafka, a quem ele cita no início da resposta a Fernando Sorrentino como

uma referência para a definição do gênero do filme. Na leitura dos relatos de Kafka realizada

12 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97. A afirmação de Borges confirma um

comentário realizado pelo autor no ano de lançamento do filme: “Ya que soy uno de los autores, no debo

permitirme su elogio. Quiero dejar escrito, sin embargo, que Invasión no se parece a ningún otro film, y que bien

puede ser el primer ejemplo de un nuevo género fantástico.” Cf. BORGES, Jorge Luis apud HUGO Santiago y

su película Invasión. La nación, página não identificada. 13 Cf. COZARINSKY, Edgardo. Borges en / y / sobre cine, p. 86. 14 Esse aspecto da estória difere da ideia original proposta por Santiago, segundo a qual os invasores venceriam.

Page 69: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

69

pelo escritor argentino, é possível descobrir o mecanismo fundamental da fábula de Invasión.

Alguns anos antes da sua morte, Borges anota: “Habla un discípulo de Kafka, un

tardío discípulo de Kafka, pero que sigue sintiéndolo y agradeciendo lo mucho que él le ha

dado y lo poco que él ha podido hacer con ese espléndido regalo de su obra.”15 A observação

abre o ensaio introdutório incluído em uma edição de A Metamorfose publicada na Argentina

em 1982. Nele, Borges propõe o exame de dois temas do trabalho do escritor tcheco: o

labirinto e a tarefa impossível. No entanto, antes de comentá-los, discute o modus operandi

kafkiano, um procedimento que poderia ser associado ao que os escolásticos denominaram

regresus in infinitum, “un proceso intelectual bastante común tratándose de etiología o

metafísica, pero raro tratándose de literatura”. E completa: “podríamos decir que fuera de

algunos precursores, que de algún modo fueron inventados por él, fue inaugurado por

Kafka.”16 A exposição remete diretamente ao ensaio “Kafka y sus precursores”, publicado em

La nación em 1951 e incluído no ano seguinte em Otras inquisiciones, no qual Borges

delineia uma história dos predecessores de Kafka: “Yo premedité alguna vez un examen de

los precursores de Kafka. A éste, al principio, lo pensé tan singular como el fénix de las

alabanzas retóricas; a poco de frecuentarlo, creí reconocer su voz, o sus hábitos, en textos de

diversas literaturas y de diversas épocas. Registraré unos pocos aquí, en orden cronológico.”17

A lista proposta não é extensa, mas é certamente bastante heterogênea. Inclui um

apólogo de Han Yu (um prosador chinês do séc. IX), duas parábolas do filósofo e teólogo

dinamarquês Sören Kierkegaard (“una fuente más previsible”, reconhece Borges), o poema

“Fears and Scruples” de Robert Browning, um conto de Léon Bloy e outro de Lord Dunsany.

Entretanto, é na filosofia eleata pré-socrática que Borges descobre o primeiro antecessor do

escritor tcheco:

El primero es la paradoja de Zenón contra el movimiento. Un móvil que está

en A (declara Aristóteles) no podrá alcanzar el punto B, porque antes deberá

recorrer la mitad del camino entre los dos, y antes, la mitad de la mitad, y así

hasta lo infinito; la forma de este ilustre problema es, exactamente, la de El

castillo, y el móvil y la flecha y Aquiles son los primeros personajes

kafkianos de la literatura.18

15 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La metamorfosis, p.

5. 16 Ibid., loc. cit. 17 BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. In: Inquisiciones / Otras inquisiciones, edição digital. 18 Ibid. Podemos recorrer a outro trecho de Borges para uma explicação distinta a respeito da dificuldade

decorrente do raciocínio apresentado no paradoxo de Zenão: “Aquiles corre diez veces más ligero que la tortuga

y le da una ventaja de diez metros. Aquiles corre esos diez metros, la tortuga corre uno; Aquiles corre ese metro,

la tortuga corre un decímetro; Aquiles corre ese decímetro, la tortuga corre un centímetro; Aquiles corre ese

centímetro, la tortuga un milímetro; Aquiles Piesligeros el milímetro, la tortuga un décimo de milímetro y así

infinitamente, sin alcanzarla... Tal es la versión habitual.” Essa exposição foi publicada em Discusión (1932). Na

Page 70: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

70

Na argumentação aporética de Zenão, elaborada para contestar aqueles que defendiam

teses contrárias às de Parmênides, Borges reconhece a voz de Kafka. Essa associação também

é mencionada em agosto de 1937, em uma resenha de O processo publicada na revista El

hogar. Inicialmente, Borges compara os argumentos das narrativas de Kafka:

El argumento, como el de todos los relatos de Kafka, es de una terrible

simplicidad. El héroe, abrumado sin saber cómo por un disparatado proceso,

no logra averiguar el delito de que lo acusan, ni siquiera enfrentarse con el

invisible tribunal que debe juzgarlo; éste, sin juicio previo, acaba por hacerlo

degollar. En otra de las narraciones de Kafka, el héroe es un agrimensor

llamado a un castillo, que no logra jamás penetrar en él ni ser reconocido por

las autoridades que lo gobiernan. En otra, el tema es un mensaje imperial

que no llega nunca, debido a las personas que entorpecen el trayecto del

mensajero; en otra, un hombre que se muere sin haber conseguido visitar un

pueblito próximo... 19

Por fim, cita a observação de um amigo a respeito da analogia entre Zenão e Kafka:

“Un amigo me indica un precursor de sus ficciones de imposible fracaso y de obstáculos

mínimos e infinitos: el eleata Zenón, inventor del certamen interminable de Aquiles y la

tortuga.”20

No ano seguinte, no prólogo de uma tradução de A metamorfose frequentemente

atribuída ao escritor argentino,21 ele aponta a subordinação e o infinito como “obsessões”

kafkianas materializadas na composição de hierarquias infinitas (“En casi todas sus ficciones

hay jerarquías y esas jerarquías son infinitas”, afirma Borges) que se desdobrariam a partir da

eterna postergação do desenlace da trama. Por sua vez, essa seria marcada pela eliminação de

eventos que normalmente são incorporados ao relato. O motivo para a supressão seria

justamente a impossibilidade de, tal como no paradoxo de Zenão, descrever os inumeráveis

pontos existentes entre a meta traçada pelo protagonista e a efetiva realização do seu objetivo:

La crítica deplora que en las tres novelas de Kafka falten muchos capítulos

intermedios, pero reconoce que esos capítulos no son imprescindibles. Yo

tengo para mí que esa queja indica un desconocimiento esencial del arte de

Kafka. El pathos de esas “inconclusas” novelas nace precisamente del

número infinito de obstáculos que detienen y vuelven a detener a sus héroes

idénticos. Franz Kafka no las terminó, porque lo primordial era que fuesen

abertura do ensaio, Borges afirma que Zenão poderia ser incluído (como Kafka) em uma história do infinito. Cf.

BORGES, Jorge Luis. Avatares de la tortuga. Discusión, p. 135-136. 19 BORGES, Jorge Luis. The trial, de Franz Kafka. In: Miscelánea, edição digital. 20 Ibid. Em outubro do mesmo ano, em uma nota biográfica sobre Kafka também escrita para El hogar, Borges

destaca: “América, la más esperanzada de sus novelas, es acaso la menos característica. Las otras dos – El

proceso (1925), El castillo (1926) – tienen un mecanismo de todo igual al de las paradojas interminables del

eleata Zenón.” BORGES, Jorge Luis. Franz Kafka. In: Miscelánea, edição digital. 21 Essa versão em espanhol de A Metamorfose foi publicada originalmente na Revista de Occidente em 1933 sem

a identificação do tradutor. Em 1938, foi editada pela Editorial Losada e a tradução foi atribuída a Jorge Luis

Borges. No entanto, essa atribuição é questionável. Cf. FLÓ, Juan. Jorge Luis Borges traductor de Die

Verwandlung. Anales de literatura hispanoamericana, p. 215-240.

Page 71: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

71

interminables. Recordáis la primera y la más clara de las paradojas de

Zenón? El movimiento es imposible, pues antes de llegar a B deberemos

atravesar el punto intermedio C, pero antes de llegar a C, deberemos

atravesar el punto intermedio D, pero antes de llegar a D... El griego no

enumera todos los puntos; Franz Kafka no tiene por qué enumerar todas las

vicisitudes. Bástenos comprender que son infinitas como el Infierno.22

A questão reaparece no ensaio publicado em 1982. Desta vez, Borges revela o nome

do amigo que teria indicado a aproximação entre Kafka e Zenão: “Y quiero recordar a mi

amigo Carlos Mastronardi, el gran poeta de Entre Ríos [...] Yo recuerdo que él había iniciado

la lectura de ‘El proceso’ y me dijo lacónicamente: ‘Franz Kafka, Zenón de Elea’.”23 Em

seguida, aprofunda a associação ilustrando o procedimento literário kafkiano com os

paradoxos de Zenão:

Y ahora se preguntarán ustedes qué es el ‟regresus in infinitum”, para mí

una de las grandes innovaciones de Kafka: es un proceso lógico, conocido

por los escolásticos. Comenzaré por uno de los ejemplos más amenos de este

método y tema de Kafka. El “regresus in infinitum” puede ilustrarse, creo

que del modo más vívido posible, mediante las paradojas de Zenón de Elea,

que dijo que si creíamos en la realidad del tiempo como hecho de instantes y

la del espacio como hecho de puntos, el transcurso del tiempo y el

movimiento son imposibles, e ilustra esto mediante varias paradojas que

fueron refutadas por Aristóteles y comentadas por toda la filosofía después,

pero recordaré dos simplemente, ya que en ellas se ve claramente cuál es el

modo de Kafka y me permite recordar a mi padre.24

Demonstrando afeto a um problema literário e filosófico, Borges prossegue

descrevendo um dos paradoxos do discípulo de Parmênides através de uma breve narrativa

familiar. Ainda criança, quando morava nas orillas de Buenos Aires, teria escutado do pai o

argumento formulado pelo filósofo eleata no séc. V a.C. para defender a indivisibilidade do

ser:

Mi padre – yo tendría 9 o 10 años entonces –, en una casa por las orillas de

Palermo una noche después de comer me mostró el tablero de ajedrez y me

dijo, señalándome las casillas: Vamos a poner a una persona que está en esta

casilla – y me señaló la casilla de la torre, la de la izquierda – y quiere ir a la

22 BORGES, Jorge Luis. Franz Kafka: La metamorfosis. In: Miscelánea, edição digital. O prefácio foi publicado

novamente em 1979 com algumas mudanças. Nessa reedição, Borges recorda: “No olvidaré mi primer lectura de

Kafka en cierta publicación profesionalmente moderna de 1917. [...] Entre tanto estrépito impreso, un apólogo

que llevaba la firma de Franz Kafka me pareció, a pesar de mi docilidad de joven lector, inexplicablemente

insípido. Al cabo de los años me atrevo a confesar mi imperdonable insensibilidad literaria; pasé frente a la

revelación y no me di cuenta.” Cf. BORGES, Jorge Luis. Prólogo. In: El buitre. Embora convincente, a

“confissão” pode não ser verdadeira. Em 1983, Borges apresenta uma outra versão: “Mi primer recuerdo de

Kafka es del año 1916, cuando decidí aprender el idioma alemán. [...] Fue entonces cuando leí el primer libro de

Kafka que, aunque no lo recuerdo ahora exactamente, creo que se llamaba Once cuentos.” BORGES, Jorge Luis.

Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados (1956-1986), edição

digital. 23 Id. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis, p. 5-6. 24 Ibid., p. 6.

Page 72: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

72

casilla de la derecha. Pues bien, tendría que pasar antes por la casilla de la

reina. Yo dije, naturalmente, que sí. Y él me dijo: Pero antes tendrá que

pasar por la casilla del caballo. Yo afirmé nuevamente. Y él me dijo: Bueno,

aquí tenemos 8 casillas, ya que se trata de 64 casillas, que forman el tablero.

Supongamos un tablero más largo, con un número indefinido de casillas.

Para llegar de la primera a la última habrá que pasar por todas las casillas

intermedias. Dije que sí y él me dijo: Muy bien, pero entonces, antes de

llegar a la meta habrá que pasar por la casilla del medio, antes por la del

medio del medio, antes por la del medio del medio del medio y así

sucesivamente, es decir, que no se llegará nunca de una casilla a otra.25

Perplexo, somente alguns dias depois Borges ouviria do pai a estória da corrida entre

Aquiles e a tartaruga: Aquiles, “o de pés ligeiros”, dando uma vantagem ao seu oponente,

jamais conseguiria alcançá-lo. Após a historieta familiar, Borges conclui: “Ahora bien, ese

procedimiento que se llama ‘regresus in infinitum’ fue aplicado para refutar pensamientos,

muchas veces lógicamente, pero Kafka fue el primero, o uno de los primeros, que lo aplicó a

la literatura.”26

A partir desse método e de alguns temas (subordinação, hierarquia, postergação,

infinito, labirinto e tarefa impossível), Borges, “discípulo de Kafka”, define a escritura do

mestre. A ascendência dessa leitura da obra do escritor tcheco está presente no trabalho de

Borges como roteirista em Invasión. O regresus in infinitum é mobilizado na construção de

um relato sobre homens que defendem a sua cidade e lutam “hasta el fin, sin sospechar que su

batalla es infinita”.

Borges já havia recorrido a Kafka anteriormente. Pelo menos, é o que reconhece em

1983, ano do centenário do nascimento do autor de A Metamorfose: “Yo he escrito también

algunos cuentos en los cuales traté ambiciosa e inútilmente de ser Kafka. Hay uno, titulado La

biblioteca de Babel y algún otro, que fueron ejercicios en donde traté de ser Kafka.”27 A

construção de uma narrativa cinematográfica kafkiana tampouco seria inovadora. Em um das

resenhas escritas para Sur, Borges identifica em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) um

argumento que aproxima Orson Welles do escritor tcheco.28 Embora condene o filme, juízo

que será revisto anos depois, Borges já demonstrava estar atento à possibilidade de

composição de uma trama kafkiana no cinema.

25 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis, p.

6-7. 26 Ibid., p. 9-10. 27 Id. Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados (1956-1986), edição

digital. 28 Id. Un film abrumador. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 68.

Page 73: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

73

2.4- Uma cidade maior que os homens

“Cualquier destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de un solo

momento: el momento en que el hombre sabe para siempre quien es.” A afirmação é realizada

no conto “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz”, publicado em El Aleph (1949). No relato, o

protagonista, um gaucho formado em um “mundo de barbarie monótona”, decide a sua sorte

durante a perseguição a um desertor: “Cuéntase que Alejandro de Macedonia vio reflejado su

futuro de hierro en la fabulosa historia de Aquiles; Carlos XII de Suecia, en la de Alejandro.

A Tadeo Isidoro Cruz, que no sabía leer, ese conocimiento no le fue revelado en un libro; se

vio a si mismo en un entrevero y un hombre.” Para o personagem borgiano, o momento de

reconhecimento e aceitação da sua ventura viria em uma noite de junho de 1870: “Lo

esperaba, secreta en el porvenir, una lúcida noche fundamental: la noche en que por fin vio su

propia cara, la noche en que por fin oyó su nombre. Bien entendida, esa noche agota su

historia, mejor dicho un instante de esa noche, un acto de esa noche, porque los actos son

nuestro símbolo.” Nesse ato logo tornado símbolo, Tadeo Isidoro Cruz conhece a si mesmo

através da imagem do outro:

Éste [Teodoro Cruz], mientras combatía en la oscuridad (mientras su cuerpo

combatía en la oscuridad), empezó a comprender. Comprendió que un

destino no es mejor que otro, pero que todo hombre debe acatar el que lleva

adentro. Comprendió que las jinetas y el uniforme ya lo estorbaban.

Comprendió su íntimo destino de lobo, no de perro gregario; comprendió

que el otro era él. Amanecía en la desaforada llanura; Cruz arrojó por tierra

el quepís, gritó que no iba a consentir el delito de que se matara a un valiente

y se puso a pelar contra los soldados, junto al desertor Martín Fierro.29

Através desse breve relato sobre um gaucho que descobre a si mesmo afirmando a sua

coragem, Borges revela a fortuna de um personagem. Da mesma forma, ele apresentará em

Invasión os destinos dos defensores de Aquilea, realizando assim o ideal de cinema que

defendia: “Biógrafo es el que nos descubre destinos”, diz o escritor, ainda no final da década

de 20, na sua vindicação do cinema narrativo.

Segundo Hugo Santiago, quase todos os personagens do núcleo principal do filme

foram delineados no argumento entregue por Borges e Bioy Casares: Don Porfirio, Herrera,

Lebendiger, Moon, Irala, Silva e Vildrac (Cachorro, o membro da resistência que morre

durante uma sessão de cinema, teria sido o único criado posteriormente).30 Como na

29 BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição digital. 30 Don Porfirio seria uma ficcionalização de Macedonio Fernández: “Yo sé que cuando, con Adolfito, cuando

decidieron como sería Don Porfirio, Borges llamó a su mamá y le dijo: Madre, hoy pusimos a Macedonio en la

película”, afirma Hugo Santiago. Sobre Moon e Lebendiger, o diretor relembra: “Ya se decía que había un

Page 74: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

74

“Biografía de Tadeo Isidoro Cruz”, a história dos comandados por Don Porfirio também é

marcada por um momento decisivo. Diante da morte, descobrem o valor individual e, através

desse último ato, definem a si mesmos.

Para compreender o significado dessa definição, é necessário considerar a natureza

civil dos participantes da resistência, aspecto ressaltado pelo próprio Borges: “Esos civiles no

son desde luego esa nueva versión de Douglas Fairbanks que se llama James Bond. No: son

hombres como todos los hombres; no son especialmente valientes, ni, salvo uno,

excepcionalmente fuertes. Son gente que trata simplemente de salvar a su patria de ese peligro

y que van muriendo o haciéndose matar sin mayor énfasis épico.”31 Devido ao desafio que a

tarefa assumida pela resistência acarreta, a principal implicação dessa condição é a

necessidade de reestabelecer o domínio sobre o mundo das armas, um movimento que

representa um retorno à tradição militar. Nesse regresso, os membros da resistência são

lançados na trajetória que determinará o valor de cada um deles.32 Apesar de caírem

sucessivamente combatendo o inimigo, superam a fragilidade da condição civil original

através daquilo que Borges considera uma ação épica:

Pero yo he querido que el film sea finalmente épico; es decir, lo que los

hombres hacen es épico, pero ellos no son héroes. Y creo que en esto

consiste la épica; porque, si los personajes de la épica son personas dotadas

de fuerzas excepcionales o de virtudes mágicas, entonces lo que hacen no

tiene mayor valor. En cambio, aquí tenemos a un grupo de hombres, no

todos jóvenes, bastante banales algunos, hay alguno que es padre de familia,

y esta gente está a la altura de esa misión que han elegido.33

Entre esses “hombres como todos los hombres”, o primeiro destino a ser revelado é o

de Irala, cuja notória falta de coragem (qualidade que, como visto, também era admitida por

Borges) é ironizada por Herrera. No entanto, na operação organizada por Don Porfirio na

personaje como Bioy y otro como Borges, por la vista y por el Don Juan.” Embora os personagens estivessem

esboçados no “resumo”, surpreendentemente faltava ao argumento a estrutura de um relato: “Lo que pasaba es

que no parecía escrito por Borges y Bioy porque Borges y Bioy saben armar un cuento. [...] Cuando Silvina

[Ocampo] le reprochaba y le decía: ‘¿Jorge, por qué aquí no está... por qué falta lo que hizo el personaje de aquí

a ahí?’ Y Borges le decía: ‘Porque no lo sé, Silvina.’ Pero en la prosa de ahí a ahí pasaba a la perfección. Este

primer texto, no. No había eso. En realidad, era de una modernidad... [risos] Porque había... Los personajes

aparecían apenas con descripciones a pincelazos y había unas secuencias en veinte y pico de páginas.” Cf.

BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 31 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97. 32 Como nota David Oubiña, “Invasión es en cierto modo una colección de diferentes modos de enfrentarse con

la muerte.” OUBIÑA, David. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología urbana de Invasión.

Variaciones Borges, p. 80. A preocupação em estabelecer esses “diferentes modos” também é comentada por

Borges: “Y creo que, además de lo raro de esta fábula, hemos resuelto bien el gran problema técnico que

teníamos (que supongo que es el problema que enfrentan quienes dirigen ‘westerns’): el hecho de que tiene que

haber muchas muertes violentas (esto ocurría antes con los films de ‘gangsters’, que no sé si se hacen todavía:

creo que no) [...] y que esas muertes violentas tienen, sin embargo, que ser distintas: no pueden ser repetidas y

monótonas.” Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 98. 33 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97-98.

Page 75: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

75

Quinta de Los Laureles, Irala, imolando-se, restabelece a sua honra. Sua renúncia é um ato

final de coragem que possibilita a ele recuperar um valor fundamental: o personagem

descobre, no momento da morte, a sua bravura. Na mesma operação, para proteger Herrera,

Silva, Cachorro e Moon, que fugiam com o caminhão no qual estava a estação de transmissão,

Vildrac não hesita em lançar-se contra os inimigos que perseguiam os quatro: “Aquí!”, grita

para desviar a atenção dos invasores. Uma demonstração de coragem inquestionável do

discreto farmacêutico, que é atingido e morre após a ação.

Por sua vez, Silva, capturado depois da destruição do transmissor, é torturado e

assassinado. Ainda na cela, antes de ser interrogado, ele repete alguns versos da “Milonga de

Manuel Flores”, construindo inicialmente uma estrofe singular:

Esa cosa tan de siempre

tan dulce y tan conocida.

Y con la bala, el olvido.

Lo dijo el sabio Merlín:

morir es haber nacido.

Em seguida, declama a sétima e a sexta estrofes. Os versos finais, proferidos com uma

voz embargada, são entretecidos com o som da abertura da porta e o ruído de passos que

indicam a chegada do algoz e a proximidade da morte:

¡Cuántas cosas estos ojos

en su camino habrán visto!

¿Quién sabe lo que verán

después que me juzgue Cristo?

A angústia do personagem remete diretamente a “La espera”, conto de Borges

publicado no jornal La Nación em 1950 e posteriormente incluído em El Aleph. No relato, o

protagonista tenta escapar dos assassinos que o perseguem, embora saiba intimamente que a

sua sorte já está definida.34 Do mesmo modo, Silva, aguardando a vinda do carrasco, já

conhece o seu fim: ao entoar os versos da milonga, somente antecipa a sua morte. Embora

revele o local onde acredita estarem escondidas as armas do grupo de Don Porfirio, sabemos

que não se dobrou facilmente. Ao escapar do edifício, Herrera, que também havia sido

capturado, é informado sobre a delação: “[...] él otro señor les dijo donde están las armas. Eso

sí les dio trabajo. Lo mataron para escarmiento de una descarga en el oído.” Dessa forma, é

destacada a tentativa de resistência (e, de certo modo, a bravura) do personagem, que teria

recebido como punição uma morte atroz.

O próximo resistente a tombar é Cachorro. Apesar de as circunstâncias da sua morte

não serem tão claras, o prazer que demonstra na sala de exibição durante a sessão de Along 34 BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição digital.

Page 76: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

76

the Rio Grande pode ser compreendido como a realização de um desejo épico através da

projeção cinematográfica.35 Pelo menos, essa era a função cumprida, segundo Borges, pelos

westerns. A Ronald Christ, o escritor afirma: “I think nowadays, while literary men seem to

have neglected their epic duties, the epic has been saved for us, strangely enough, by the

Westerns.” Em seguida, completa:

When I went to Paris, I felt I wanted to shock people, and when they asked

me – they knew that I was interested in the films, or that I had been, because

my eyesight is very dim now – and they asked me, “What kind of film do

you like?” And I said, “Candidly, what I most enjoy are the Westerns.” They

were all Frenchmen; they fully agreed with me. They said, “Of course we

see such films as Hiroshima mon amour or L'année dernière à Marienbad

out of a sense of duty, but when we want to amuse ourselves, when we want

to enjoy ourselves, when we want, well, to get a real kick, then we see

American films.”36

Assim, a morte de Cachorro, provavelmente assassinado durante a exibição, também

pode ser compreendida como o cumprimento de uma trajetória épica, como a realização

imaginária de um destino negado a ele. Esse desejo por uma vida orientada a partir de um

ideal de coragem (constantemente referido por Borges ao comentar a sua própria escolha por

uma carreira literária) seria atendido através do filme assistido pelo personagem em meio ao

confronto que decide os rumos da cidade.

A próxima morte é a de Lebendiger. Após enviar as armas da resistência para Don

Porfirio, o “Don Juan” do grupo é seduzido e levado para uma casa. Ao perceber o engodo,

enfrenta a sua sina sem digressões, uma atitude austera diante da morte que comprovaria a sua

valentia. É o que diz o próprio personagem: “La verdad es que yo esperaba otra cosa, otra

cosa más agradable, pero que hubiera sido una mera repetición. En cambio, ahora puedo

35 A cena também retoma um elemento de “La espera”. No conto, o protagonista frequenta um cinematógrafo:

“El señor Villari, al principio, no dejaba la casa; cumplidas unas cuantas semanas, dio en salir, un rato, al

oscurecer. Alguna noche entró en el cinematógrafo que había a las tres cuadras. No pasó nunca de la última fila;

siempre se levantaba un poco antes del fin de la función. Vio trágicas historias del hampa; éstas, sin duda,

incluían errores; éstas sin duda, incluían imágenes que también lo eran de su vida anterior; Villari no los advirtió

porque la idea de una coincidencia entre el arte y la realidad era ajena a él. Dócilmente trataba de que le gustaran

las cosas; quería adelantarse a la intención con que se las mostraban. A diferencia de quienes han leído novelas,

no se veía nunca a sí mismo como un personaje del arte.” BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos

completos, edição digital. 36 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.

Entrevista realizada por Ronald Christ. Como aponta o crítico francês André Bazin em um prefácio publicado

em 1953, o western era eventualmente associado à poesia épica devido a algumas características do gênero: “O

western é épico, pensa-se geralmente, pela escala sobre-humana de seus heróis, pela extensão de suas proezas.

Billy the Kid é invulnerável como Aquiles, e seu revólver, infalível. O cowboy é um cavaleiro. Ao caráter do

herói corresponde um estilo de mise-en-scène, em que a transposição épica aparece desde a composição da

imagem, sua predileção pelos vastos horizontes, os grandes planos de conjunto, que sempre lembram o confronto

do Homem e da Natureza. O western ignora praticamente o primeiro plano, um pouco menos o plano americano;

ele se prende, em compensação, ao travelling e à panorâmica, que negam o quadro de tela e restituem a plenitude

do espaço.” BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. In: O cinema: ensaios, p. 206.

Page 77: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

77

satisfacer una curiosidad que siempre me inquietó: la de saber si soy valiente. Parece que sí.”

Do mesmo modo, Moon, atingido por um inimigo no interior do hotel, aceita

impassivelmente o seu fim. A morte, no seu caso, significa também uma revelação e uma

libertação que podem ser compreendidas pelo sentido metafórico das últimas palavras do

personagem: “Yo era ciego.”

Por último, Herrera, o único do grupo cuja força física sobressai, é cercado por

invasores ao tentar destruir a estação de transmissão instalada em um estádio de futebol.

Recusando-se a obedecer aos inimigos, é morto no local. A sua atitude reverbera uma frase

dita por Irene na cena anterior: “Don Porfirio, él [Herrera] necesita ser valiente.” A sentença é

confirmada pelo próprio Don Porfirio ao encontrar o corpo do comandado no campo do

estádio: “Claro, yo sabía que vos no fallás.” O líder do grupo confiava que, mesmo com o

questionamento de Herrera a respeito do valor da resistência, o seu combatente mais valoroso

tentaria cumprir a missão. Nesse caso, a morte do personagem não revela, mas apenas

confirma um destino previsto.

Em um breve comentário a respeito de Herrera, Hugo Santiago cita o primeiro verso

de “El compadre”: “Hombre de las orillas: perdurable”.37 O poema, publicado por Borges em

1943 com o pseudônimo de Manuel Pinedo, trata da permanência do compadrito orillero na

cultura portenha.38 A aproximação apontada por Santiago pode ser compreendida pela

coragem característica do personagem, cujo comportamento representa um contraponto à

conduta de Irala. Entretanto, Herrera, como os demais, não desconhece o medo. Diante de um

invasor que tenta dissuadi-lo argumentando que os próprios habitantes de Aquilea se

opunham à resistência, ele contesta: “La gente no se da cuenta. Y los que se dan cuenta tienen

miedo, como yo.” Para Herrera, aquele que necessita ser valente, o ato de coragem não

pressupõe a ausência do medo, mas sim o seu enfrentamento, embate que faz parte de um

sistema de valores no qual a morte é, em certa medida, dignificada. A um inimigo, Herrera

sentencia: “Usted es un hombre valiente. Te merece que lo mate.”

Além de definirem os destinos individuais dos personagens, os exercícios de coragem

realizados pelos membros da resistência são articulados em torno da defesa de um bem

comum: a cidade. Se a trajetória dos resistentes é determinada por um momento decisivo,39 a

37 Cf. BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 38 BORGES, Jorge Luis. El compadre. In: Textos recobrados (1931-1955), edição digital. 39 Há neles algo do sentimento que atravessa Johannes Dahlmann, protagonista de “El Sur”, conto de Borges

publicado em La Nación em 1953 e incorporado a Ficciones: “Salieron, y si en Dahlmann no había esperanza,

tampoco había temor. Sintió, al atravesar el umbral, que morir en una pelea a cuchillo, a cielo abierto y

acometiendo, hubiera sido una liberación para él, una felicidad y una fiesta, en la primera noche del sanatorio,

cuando le clavaron la aguja. Sintió que si él, entonces, hubiera podido elegir o soñar su muerte, ésta es la muerte

Page 78: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

78

atuação do grupo é motivada pela necessidade de preservar a ordem simbólica representada

pela urbe, expondo um conjunto de atitudes que reverberam outros aspectos da literatura de

Borges. A relação entre o homem e a cidade, tema que perpassa a sua obra, é desenvolvida

especialmente nos seus primeiros livros, que compõem um olhar intelectual e afetivo sobre

Buenos Aires e estabelecem os fundamentos da sua produção literária.40 Em Fervor de

Buenos Aires, livro preservado da censura do escritor maduro, é possível descobrir algumas

ideias seminais que possibilitam compreender alguns pontos da vinculação entre Borges e a

sua terra natal. O primeiro poema, “Las calles”, retirado da publicação a partir de 1977,

apresenta o cenário a partir do qual será desdobrada aquilo que Beatriz Sarlo chama de uma

“arte poética de las orillas”:41

Las calles de Buenos Aires

ya son la entraña de mi alma.

No las calles enérgicas

molestadas de prisas y ajetreos,

sino la dulce calle de arrabal

enternecida de árboles y ocasos

y aquellas más afuera

ajenas de piadosos arbolados

donde austeras casitas apenas se aventuran

hostilizadas por inmortales distancias

a entrometerse en la honda visión

hecha de gran llanura y mayor cielo.

[...]

Hacia los cuatro puntos cardinales

se van desplegando como banderas las calles;

ojalá en mis versos enhiestos

vuelen esas banderas.42

O olhar de Borges também se desloca para lugares mais definidos da cidade, buscando

estabelecer nos espaços públicos, tal como em “La plaza San Martín”, aquilo que aproxima os

habitantes:

que hubiera elegido o soñado.” BORGES, Jorge Luis. Ficciones. In: Cuentos completos, edição digital. 40 “Con Evaristo Carriego, Borges ha completado los movimientos de escritura poética y de invención de

ficciones que fundan su literatura. Nunca dejará de corregir y criticar esta primera etapa de su obra a la que, años

después, atribuye un excesivo pintoresquismo criollista y un deslumbramiento también excesivo con el ethos

suburbano que él mismo había inventado. Sin embargo, los libros del Borges joven conservan hasta hoy su

potencia de imaginación poética y ficcional. Casi no es posible pensar la obra de Borges, incluso aquella que

parece más cosmopolita y menos referencial, sin una relación con estos primeros textos.” SARLO, Beatriz. Jorge

Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 159. 41 Id. Borges, un escritor en las orillas, disponível on-line. 42 De forma mais sutil, “Calle desconocida” expressa essa mezlca entre o poeta e a cidade: “En esa hora de fina

luz arenosa / mis andanzas dieron con una calle ignorada, / abierta en noble anchura de terraza / mostrando en las

cornisas y en las paredes / colores blandos como el mismo cielo / que conmovía el fondo. / Todo – honesta

medianía de las casas austeras, / travesuras de columnitas y aldabas, / tal vez una esperanza de niña en los

balcones – / se me adentró en el corazón anhelante / con limpidez de lágrima.” BORGES, Jorge Luis. Fervor de

Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p. 271-273 e 279-

281.

Page 79: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

79

¡Qué bien se ve la tarde

desde el fácil sosiego de los bancos!

Ahincado en la revuelta de un declive

el puerto dice de comarcas hurañas

y la honda plaza igualadora de almas

ábrese como pecho generoso

que derrama confianza.43

A praza iguala as almas e amplifica o triunfo do espaço urbano, remodelado e

transformado em símbolo do processo de modernização que havia se intensificado nas

primeiras décadas dos séc. XX. Entretanto, por trás do êxito e da confiança ostentados nesse

cenário, o poeta tateia, em “Ciudad”, a pátria perdida:

Anuncios luminosos tironeando el cansancio.

Charras algarabías

entran a saco en la quietud del alma.

Colores impetuosos

escalan las atónitas fachadas.

De las plazas hendidas

rebosan ampliamente las distancias.

El ocaso arrasado

que se acurruca tras los arrabales

es escarnio de sombras despeñadas.

Yo atravieso las calles desalmado

por la insolencia de las luces falsas

y es tu recuerdo como un ascua viva

que nunca suelto

aunque me quema las manos.44

As luzes falsas que encontra ao cruzar as ruas, também repletas de “anuncios

luminosos” e “colores impetuosos”, representam as transformações que inquietam Borges em

suas caminhadas, mudanças que levam o poeta a questionar, em “Vanilocuencia”, o próprio

valor do fazer poético:

La ciudad está en mí como un poema

que aún no he logrado detener en palabras.

[...]

¿Para qué esta porfía

de clavar con dolor un claro verso

de pie como una lanza sobre el tiempo

si mi calle, mi casa,

desdeñosas de plácemes verbales,

me gritarán su novedad mañana?45

A instabilidade das formas descoberta pelo escritor na paisagem urbana, que grita suas

43 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor

de Buenos Aires, p. 289-291. O poema é dedicado a Macedonio Fernández, “espectador apasionado de Buenos

Aires”. 44 Ibid., p. 298 e 299. 45 Ibid., p. 306 e 307.

Page 80: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

80

novidades diariamente, perturba e desanima. Entretanto, Borges prossegue a sua caminhada

íntima. Como descreve em “Arrabal”, sente a cidade ao percorrer o subúrbio, exatamente

onde os signos da modernidade se desfazem:

El arrabal es el reflejo

de la fatiga del viandante.

Mis pasos claudicaron

cuando iban a pisar el horizonte

y estuve entre las casas

miedosas y humilladas

juiciosas cual ovejas en manada,

encarceladas en manzanas

diferentes e iguales

como si fueran todas ellas

recuerdos superpuestos, barajados

de una sola manzana.

El pastito precario

desesperadamente esperanzado

salpicaba las piedras de la calle

y mis miradas comprobaron

gesticulante y vano

el cartel del poniente

en su fracaso cotidiano

y sentí Buenos Aires

y literaturicé en la hondura del alma

la viacrucis inmóvil

de la calle sufrida

y el caserío sosegado.46

Assim, o subúrbio é transformado em literatura. Posteriormente, Borges alterou o final

do poema, destacando a permanência da cidade durante os anos em que a deixou: “esta ciudad

que yo creí mi pasado / es mi porvenir, mi presente; / los años que he vivido en Europa son

ilusorios, / yo he estado siempre (y estaré) en Buenos Aires.” O seu retorno à cidade é

justamente o tema de “La vuelta”:

Después de muchos años de ausencia

busqué la casa primordial de la infancia

y aún persevera forastero su ámbito.

[...]

¡Qué caterva de cielos

vinculará entre sus paredes el patio,

cuánto heroico poniente

militará en la hondura de la calle

y cuánta quebradiza luna nueva

infundirá al jardín su dulcedumbre

antes que llegue a reconocerme la casa

y torne a ser una provincia de mi alma!47

46 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor

de Buenos Aires, p. 322-325. 47 Ibid., p. 334 e 335.

Page 81: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

81

O jovem poeta, desassossegado por aquilo que não reconhece, demanda tempo para

envolver a paisagem novamente em sua alma. Nem mesmo os indícios que remetem ao

heroico passado militar da família, descritos em “El Sur”, oferecem conforto:

En estos aledaños

hay vislumbres de sitios de batalla:

tenaces terraplenes

que abaten alrededor los campos serviles,

charcas abandonadas

que las puestas de sol criminan de sangre,

zanjones, humaredas, puentes, clangores

y el tajo renegrido de los rieles

apartando las casas

y una precisión militar de tiempo y señales

y un militar desorden de alternativas de lucha.

Todo ello deja un sabor amargo en el alma.48

A mesma inquietação perpassa a sua segunda obra lírica, Luna de enfrente. Em um

dos poemas do livro, Borges atravessa o rio da Prata e descobre em Montevidéu, assim como

havia feito nos subúrbios de Buenos Aires, a cidade perdida: “Eres el Buenos Aires que

tuvimos, el que en los años se alejó quietamente. / Eres nuestra y fiestera, como la estrella que

duplican las aguas.”49 Finalmente, em Cuaderno San Martín, lançado quase dez anos após o

retorno do escritor à Argentina, Borges revisita, em “Fundación Mitológica de Buenos”, as

narrativas de origem da capital portenha, decretando nos versos finais do poema a eternidade

da cidade: “A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: / la juzgo tan eterna como el

agua y el aire.”50

Diversos aspectos do olhar do jovem Borges sobre a paisagem urbana repercutem na

trama construída em Invasión. Os destinos apresentados no filme expõem o sentimento de

perda que caracteriza o reencontro do escritor com a cidade e evidenciam o desejo de

recuperar aquilo que foi tomado indevidamente. A cidade sitiada também impõe aos membros

da resistência, assim como a Buenos Aires moderna ao poeta, uma nova condição que

redefine as expectativas e reorienta a ação. Para os que resistem, o impedimento da invasão e

o término do cerco significam um retorno à posição original: “Algún día, señora, usted va a

ser feliz a cada rato”, diz Herrera a Irene. Um pouco depois, completa: “El día que podamos

vivir como toda la gente.” Ao jovem poeta, entretanto, a reconquista só é possível pelo verso,

48 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor

de Buenos Aires, p. 348-349. Borges dedica um poema do livro, “Inscripción Sepulcral”, ao coronel Isidoro

Suárez, e outro, homônimo, ao coronel Francisco Borges Lafinur. Cf. ibid., p. 314, 315, 386 e 387. 49 Id. Luna de enfrente. In: Poesía completa, edição digital. 50 Id. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa, edição digital. O poema foi rebatizado de “Fundación Mítica de

Buenos Aires”.

Page 82: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

82

através do qual Borges, de fato, retorna a Buenos Aires.

À primeira vista, Invasión (segundo o próprio escritor, um filme que apresenta um

novo tipo de fantasia) se distancia tematicamente da sua obra poética da década de 1920.

Entretanto, a abordagem de Borges ao fantástico não representa uma ruptura com a sua

produção literária desvinculada desse gênero. Pelo contrário, através do fantástico ele trata de

questões relacionadas a um dos aspectos fundamentais do seu trabalho,51 aquilo que Beatriz

Sarlo define como “la problemática filosófica y moral sobre el destino de los hombres y las

formas de relación en sociedad.”52 A preocupação também atravessa a poesia do jovem

Borges, tal como nos lembra o escritor maduro em um comentário já citado a respeito de

Fervor de Buenos Aires: “I feel that all my subsequent writing has only developed themes

first taken up there; I feel that all during my lifetime I have been rewriting that one book.”53 O

roteiro de Invasión pode ser considerado como parte dessa reescrita.

A morte é um dos temas presentes em Fervor de Buenos Aires que são revisitados

constantemente por Borges. Em “La Recoleta”, o segundo poema do livro, ele reflete sobre a

sua própria condição a partir das impressões sentidas ao percorrer “las veredas” do conhecido

cemitério da cidade:

Convencidos de caducidad

vueltos un poco irreales por el morir altivado en tanto sepulcro

irrealizados por tanta grave certidumbre de muerte,

nos demoramos en las veredas

que apartan los panteones enfilados54

O local, onde Borges imagina que será enterrado, é abordado novamente em “Muertes

de Buenos Aires”, publicado em Cuaderno San Martín:

Aquí es pundonorosa la muerte,

aquí es la recatada muerte porteña,

la consanguínea de la duradera luz venturosa

del atrio del Socorro

y de la ceniza minuciosa de los braseros

y del fino dulce de leche de los cumpleaños

y de las hondas dinastías de los patios.

Se acuerdan bien con ella

esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.55

No poema, Borges compara o cemitério da Recoleta, sítio da “recatada muerte

51 “Los temas fantásticos de Borges son la arquitectura que organiza dilemas filosóficos e ideológicos”, nota

Beatriz Sarlo. SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas, disponível on-line. 52 Ibid. 53 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 155. 54 Id. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p.

348-349. 55 Id. Cuaderno San Martín In: Poesía completa, edição digital.

Page 83: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

83

porteña”, ao de Chacarita, vizinho a Palermo:

Porque la entraña del cementerio del Sur

fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;

porque los conventillos hondos del Sur

mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires

y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,

a paladas te abrieron

en la punta perdida del Oeste,

detrás de las tormentas de tierra

y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.56

Construído “en la punta perdida del Oeste”, o cemitério de Chacarita representa para o

escritor a necrópole das “orillas”:

Trapacerías de la muerte – sucia como el nacimiento del hombre –

siguen multiplicando tu subsuelo y así reclutas

tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos

que caen al fondo de tu noche enterrada

lo mismo que a la hondura de un mar,

hacia una muerte sin inmortalidad y sin honra.

Una dura vegetación de sobras en pena

hace fuerza contra tus paredones interminables

cuyo sentido es perdición,

y convencidas de mortalidad las orillas

apuran su caliente vida a tus pies

en calles traspasadas por una llamarada baja de barro

o se aturden con desgano de bandoneones

o con balidos de cornetas sonsas en carnaval.

(El fallo de destino más para siempre,

que dura en mí lo escuché esa noche en tu noche

cuando la guitarra bajo la mano del orillero

dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:

La muerte es vida vivida,

la vida es muerte que viene;

la vida no es otra cosa

que muerte que anda luciendo.)57

A sentença do destino que permanece em Borges, revelada pela “guitarra bajo la mano

del orillero” e transposta para palavras pelo poeta, é fatal: “La muerte es vida vivida”. É

exatamente o que escutamos em um verso da “Milonga de Manuel Flores”: “morir es haber

nacido.” Essa é uma das notas da poética do jovem Borges que ressoa em Invasión: a

fatalidade do destino, o caráter irrevogável do fluxo de acontecimentos que envolve os

homens, um processo cuja efemeridade é conhecida de antemão. A finitude da condição

humana, expressa no filme pela milonga composta por Borges e pela trajetória dos

personagens, só é compensada pela tarefa assumida por aqueles que resistem à invasão: a

56 BORGES, Jorge Luis. Cuaderno San Martín In: Poesía completa, edição digital. 57 Ibid.

Page 84: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

84

tentativa de preservação de um bem maior que a própria vida. Como diz Don Porfirio a

Herrera: “La ciudad es más que la gente.”

A inserção de uma milonga em Invasión também pode ser considerada uma

característica da mezcla que caracteriza o trabalho do escritor desde os anos 1920, do

entrelaçamento original de uma versão da tradição literária argentina com uma seleção

particular de obras da Weltliteratur. Em Invasión, esse movimento possibilita a incorporação

da canção popular portenha na construção de um relato que renovaria a tradição na qual

estariam inscritos H. G. Wells, Bradbury, Henry James e Kafka. Da mesma forma, essa

mezcla legitima a aproximação a outros relatos que tematizaram a cidade. Um deles é

indicado por Bioy Casares: “Invasión renueva el tema de la Ilíada, pero no canta la astucia ni

la eficacia del vencedor, sino el coraje de unos pocos defensores de una Troya muy parecida a

Buenos Aires. Allí no faltan la barra de amigos ni los tangos o milongas. Homero me

disculpe: el corazón está siempre de parte de los defensores.”58

Além de renovar o tema da Ilíada, a narrativa de Invasión aborda a questão central de

O deserto dos tártaros, publicado por Dino Buzzati em 1940. O romance do escritor italiano

tematiza a angústia que assola um grupo de homens que aguarda um ataque cada vez mais

improvável.59 Entretanto, em Invasión a angústia é rompida ainda no início da trama pela

chegada dos invasores: “Tantos años sin salir de las vísperas… Ahora ellos están por entrar.

Éste día es hoy.” Por sua vez, a reação de Herrera após ouvir a revelação de Don Porfirio

indica que, tal como no forte Bastiani do romance de Buzzati, os resistentes anelavam o

confronto: “Mejor así. Uno se cansa de esperar.”60

Se em O deserto dos tártaros o afastamento do grupo de militares em relação à

comunidade é justificada pelo isolamento do forte onde se encontram, em Invasión a razão

para o distanciamento dos combatentes civis não é tão clara. Enquanto lutam contra os

invasores na própria cidade, a população segue indiferente à ameaça. Aparentemente, ignora o

cerco. Além do desconhecimento, da incerteza ou do temor dos habitantes, ou mesmo da

58 BIOY CASARES, Adolfo apud OUBIÑA, David. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología

urbana de Invasión. Variaciones Borges, p. 70. 59 A analogia entre o filme envolve o próprio procedimento literário utilizado em Invasión. O regresus in

infinitum também é identificado por Borges na obra de Buzzati: “Este libro, que es acaso su obra maestra y que

ha inspirado un hermoso film de Valerio Zurlini, está regido por el método de la postergación indefinida y casi

infinita, caro a los eleatas y a Kafka. El ámbito de las ficciones de Kafka es deliberadamente gris y mediocre y

sabe a burocracia y a tedio. Tal no es el caso de esta obra. Hay una víspera, pero es la de una enorme batalla,

temida y esperada. Dino Buzzati, en estas páginas, retrotrae la novela a la epopeya, que fue su manantial. El

desierto es real y es simbólico. Está vacío y el héroe espera muchedumbres.” BORGES, Jorge Luis. Dino

Buzzati: El desierto de los tártaros. In: Miscelánea, edição digital. 60 A frase ressoa um comentário do narrador de “La espera”: “[...] es menos duro sobrellevar un acontecimiento

espantoso que imaginarlo y aguardarlo sin fin”. BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição

digital.

Page 85: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

85

simples aceitação fatalista do destino, essa atitude também pode ocultar um desejo velado a

favor da conquista: “¿Por qué nos resiste, si la gente está esperando lo que le vamos a

vender?”, diz um dos invasores a Herrera, que discorda.61 Contudo, em uma das cena finais, o

próprio Herrera questiona o seu papel: “Don Porfirio, yo cumplí siempre lo que usted me

mandó, pero esta ciudad no tiene remedio. ¿A qué morir por gente que no quiere defenderse?”

Talvez a própria resistência seja indesejada.62

A resposta de Don Porfirio, afirmando a necessidade do prosseguimento da luta e da

preservação da cidade, revela que o combate é travado não pela defesa do espaço urbano ou

dos seus habitantes, mas pelo que Aquilea representa para os combatentes. Don Porfirio, que

combina qualidades de oráculo e estrategista militar, parece compreender aquilo que Marco

Polo, em As cidades Invisíveis, diz a Kublai Khan: “Não faz sentido dividir as cidades nessas

duas categorias [felizes ou infelizes], mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo

dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem

cancelar a cidade ou são por esta cancelados.”63 Não importa que os habitantes de Aquilea

estejam felizes com a chegada dos invasores. Para os resistentes, é necessário perpetuar aquilo

que dá forma aos seus desejos. Ao final e a seu modo, Herrera também compreende isso.

Durante a defesa de Aquilea, uma Buenos Aires desrealizada (“La ciudad que el film

explora es como una taquigrafía de signos más complejos, ausentes, pero al mismo tiempo

suscita en quienes conocen Buenos Aires un doble asombro de reconocimiento y extrañeza”,

diz Cozarinsky)64 cujo nome remonta à antiga cidade romana que foi sitiada e saqueada pelos

61 Tal como em “À Espera dos Bárbaros”: “Sem bárbaros o que será de nós? / Ah! eles eram uma solução.”

KAVÁFIS, Konstantinos apud Candido, Antonio. Quatro esperas. Novos estudos Cebrap, p. 50. Nesse ensaio,

Antonio Candido utiliza o poema de Kaváfis para introduzir “o mundo das esperas angustiadas, dos atos sem

sentido lógico, da surda aspiração à morte individual e social, que formam alguns dos fios mais trágicos do

mundo contemporâneo”. Entre as representações escolhidas por Candido, estão duas que também são caras a

Borges: “A construção da muralha da China”, de Kafka, e O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Cf. Candido,

Antonio, op. cit., p. 53. 62 Para Silvia Schwarzböck, o isolamento do grupo define o caráter trágico da sua ação: “Los individuos rebeldes

actúan en nombre de la comunidad, pero lo hacen a espaldas de ella y en secreto. Esa falta de consentimiento los

aísla del entorno y convierte su acción inconsulta en trágica. La necesidad que los mueve es la misma que los ha

separado del entorno. Son individuos trágicos, no épicos, sólo que ellos mismos no lo saben. Han sido elegidos

para la desdicha, porque sus acciones sólo puede legitimarse dentro del orden proscripto (un orden en el que

creen como vanguardia iluminada, no como miembros de la comunidad). Para las leyes del Estado, ellos son

delincuentes. Su coraje es por esencia clandestino y está destinado a no conocer la luz del día.”

SCHWARZBÖCK, Silvia. Micenas y Aquilea: figuras del trágico en el cine de Hugo Santiago. In: OUBIÑA,

David. (org.). El cine de Hugo Santiago, p. 85-90. 63 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis, edição digital. 64 Cozarinsky prossegue: “compararla con el simulacro urbano de ‘La muerte y la brújula’ no es inapropiado.”

COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 125. A comparação entre o filme e o conto é feita pelo

próprio Borges: “Con Hugo Santiago y Adolfo Bioy Casares hemos escrito el libreto de un film, de índole

fantástica, que se titulará Invasión. Transcurre en Buenos Aires, pero es un Buenos Aires como el del cuento mío

titulado ‘La muerte y la brújula’, un Buenos Aires de sueños y pesadillas. El argumento pertenece a Santiago y él

será el director.” BORGES, Jorge Luis. In: MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges, p. 89.

Page 86: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

86

hunos (e que também ecoa a argumentação de Zenão), assistimos à exposição controlada de

alguns aspectos das relações humanas estabelecidas durante um conflito. Entretanto, nesse

cenário que oscila entre a realidade e a irrealidade, nessa batalha onde as ações humanas são

orientadas por um sentimento de pertencimento a uma exterioridade superior, não podemos

contemplar o último lance. Embora o grupo de Herrera seja liquidado, a resistência é reposta

pelos jovens comandados por Don Porfirio e Irene. A cena final estabelece aquilo que é

definido claramente na sinopse: a infinitude da luta. Vislumbramos aqui a série contínua do

paradoxo de Zenão.65

A trama de Invasión, intencionalmente inconclusa, é construída como uma aporia

sobre a impossibilidade de reconquista da pátria, de restituição da ordem desestabilizada pela

chegada dos invasores. Embora a luta pela cidade ofereça um vestígio de realização plena de

um éthos de bravura e coragem, o desdobramento eterno do embate revela a inviabilidade da

tarefa. Os próprios personagens parecem perceber isso. Nos seus atos, há uma velada ironia

que implica em admiração e descrença, desejo e desesperança. Ainda assim, as gerações

prosseguem, como Aquiles em sua corrida, e o relato permanece suspenso no infinito.

Embora outra, Aquilea persiste. Como também persiste a eterna, embora outra,

Buenos Aires de Borges: “He nacido en otra ciudad que también se llamaba Buenos Aires.”

Entretanto, Aquilea é mais do que uma cidade criolla perdida (a Buenos Aires elusiva dos

arrabales idealizada pelo escritor argentino), é uma cidade metafísica. A impossível

recuperação de Aquilea é a impossível recuperação dessa cidade, dificuldade que atravessa a

obra de Borges. Ainda assim, ele prossegue a sua escritura, como Aquiles em sua corrida.

Talvez como um sacrifício ao passado, um desejo de retorno às formas estáveis. Ou talvez

porque saiba “que los únicos paraísos no vedados al hombre son los paraísos perdidos.”66

65 A analogia também é notada por Marcelo Cerdá: “El lector fantástico agradecerá que Invasión le dé la

oportunidad de encontrar al fin la puesta en escena de la paradoja de Aquiles y la tortuga”. CERDÁ, Marcelo.

Invasión: el sitio del lector. El matadero, p. 173. 66 BORGES, Jorge Luis. La cifra. In: Poesía completa, edição digital.

Page 87: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

87

CONCLUSÃO

No primeiro capítulo de um livro sobre Franz Kafka publicado em 1975, Gilles

Deleuze e Félix Guattari perguntam: “Como entrar na obra de Kafka?” O questionamento,

bastante repetido desde então, pode ser adaptado por todo crítico literário que se debruça

sobre o trabalho de um autor. Para abordar a obra do “discípulo” argentino do escritor tcheco,

já foram elaboradas inúmeras estratégias.

À primeira vista, o cinema pode parecer uma alternativa inusitada. A popularidade de

Borges se deve certamente à sua produção ficcional em prosa, especialmente aos contos

publicados na década de 40 em Ficciones e El Aleph. No entanto, para além da surpresa

inicial, a reflexão provocada na sua obra pelo cinematógrafo oferece a possibilidade de

acompanhar os desdobramentos de uma vertente menos conhecida do trabalho do escritor a

partir de uma perspectiva comparativa, privilegiando os seus apontamentos sobre as

aproximações entre a literatura e o cinema e a respeito das singularidades irredutíveis da

palavra e da imagem.

Borges, que mesmo após o agravamento dos problemas de visão seguiu frequentando

as salas de projeção,1 explorou, em diversos momentos, os aspectos estéticos e culturais da

grande arte do séc. XX. A escrita do roteiro de Invasión, embora não seja o último instante da

trajetória que descreve as suas múltiplas relações com o cinema, é certamente o momento

decisivo dessa trama particular, do destino cinematográfico do escritor.

O filme traz, é claro, marcas que podem ser vinculadas à produção de Adolfo Bioy

Casares e de Hugo Santiago. Decerto guarda os signos da colaboração. Entretanto, a eleição

de traços que reverberam pontos específicos da poética de Borges foi orientada pela tentativa

de construção de uma leitura na qual convergissem algumas das principais questões

mobilizadas durante a escrita do roteiro. Ainda assim, devido ao escopo deste projeto, outros

temas presentes em Invasión facilmente associáveis ao universo borgiano e igualmente

pertinentes para a compreensão da trama, tais como o amor e a amizade, não puderam ser

aprofundados.

1 “Voy al cine a escuchar el diálogo y me cuentan si las fotografías son buenas o malas. Esto, para mí, es como

un acto de fe”. Borges, Jorge Luis apud MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges, p. 90.

Page 88: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

88

O debate a respeito do gênero do filme, particularmente o modo como Invasión pode

ser comparado a outros relatos literários ou cinematográficos associados à narrativa fantástica

(filiação identificada pelo próprio Borges), também não foi examinado mais detidamente

devido à amplitude do assunto, que movimenta uma rica bibliografia e certamente poderia ser

tratado em um outro trabalho dedicado exclusivamente ao problema. O mesmo poderia ser

dito sobre a recepção do filme em diferentes contextos e sobre as discussões relacionadas às

interpretações alegóricas suscitadas por ele.

Por outro lado, a consideração dos temas da cidade e da coragem em Invasión permite

não apenas associar a obra literária de Borges com essa experiência cinematográfica do

escritor, mas também possibilita uma melhor compreensão do eixo central da fábula do filme,

moto-contínuo no qual urbe e bravura são articulados na construção de um olhar sobre

algumas dificuldades da modernidade. A primeira incursão de Borges pela “arte do fotógrafo”

ao lado de Hugo Santiago (os dois viriam a trabalhar juntos novamente no roteiro de Les

autres, lançado em 1974), quase perdida após o roubo de oito rolos do negativo original do

filme durante o governo ditatorial de Jorge Rafael Videla, desdobra um leitmotiv que perpassa

o longo texto que poderíamos chamar de obra de Borges: a tensão entre o desejo de formas

estáveis de uma realidade perdida e a percepção de que tal mundo de fato nunca tenha

existido, ou que tenha existido apenas como um “sonho”. De certo modo, o próprio autor

aponta para a recorrência dessa questão em um comentário autobiográfico publicado no

epílogo da primeira edição das suas obras completas: “Era de estirpe militar y sintió la

nostalgia del destino épico de sus mayores. Pensaba que el valor es una de las pocas virtudes

de que son capaces los hombres, pero su culto lo llevó, como a tantos otros, a la veneración

atolondrada de los hombres del hampa.”2

Através do cinema, certa vez definido por Borges como uma arte “bastarda”,3 o

escritor compôs com Bioy Casares e Hugo Santiago uma trama na qual expressa a sua

admiração pelo ideal de coragem que identificava no passado familiar, nos compadritos de

Palermo, na poesia épica, na literatura gauchesca, nos filmes de gangsters e nos westerns.

Uma mezcla que, resultando na criação de um repertório épico original, não fundamentava

uma veneração ingênua pela bravura, mas apoiava um sentimento vacilante em relação à

tradição épica que o escritor relê e recria. Nesse procedimento, a própria cidade natal é

2 BORGES, Jorge Luis. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972), p. 1144. 3 “Lo vi [o cinema] siempre desde su costado narrativo. Como arte es bastardo, porque necesita apoyarse en

otros que lo son menos, o depende de técnicas muy definidas, como la fotografía. A lo mejor digo que es

bastardo como un consuelo, porque hace ya mucho que no puedo verlo, pero creo que en realidad todas las artes,

salvo la música, adolecen de ese carácter dependiente.” BORGES, Jorge Luis. Conversación con Borges. Sur,

Buenos Aires, n. 334-335, p. 133. Entrevista.

Page 89: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

89

reconstruída. No epílogo citado anteriormente, Borges também indica como a “veneración

atolondrada de los hombres del hampa” resultou na criação de uma Buenos Aires particular:

“Su secreto y acaso inconsciente afán fue tramar la mitología de un Buenos Aires, que jamás

existió. Así, a lo largo de los años, contribuyó, sin saberlo y sin sospecharlo a esa exaltación

de la barbarie que culminó en culto del gaucho, de Artigas y de Rosas.”4 De modo peculiar,

Invasión expressa a ambivalência da invenção borgiana sobre a coragem e a cidade.

Evidentemente, não se tentou esgotar aqui as referências sobre bravura, urbe ou

mesmo cinema na obra de Borges. A seleção de textos poderia ter sido bastante diversa, ou a

interpretação daqueles que foram escolhidos poderia ter sugerido outros caminhos para entrar

na obra do escritor argentino. O autor deste ensaio espera tão somente que o leitor, perdoando

as repetidas fraquezas da exposição, possa considerar esta breve jornada algo relevante.

4 BORGES, Jorge Luis. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972), p. 1144.

Page 90: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

90

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR, Gonzalo. Alegoría y enigma: Invasión, según Borges y Jugo Santiago. Cine

argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las

Artes, 2005, p. 547-551.

_____. Invasión, en defensa de los mapas afectivos. Leer cine, [s.l.]: [s.n.], n. 2, nov. 2005, p.

36-39.

_____. La Generación de 60: la gran transformación del modelo. In: ESPAÑA, Claudio

(org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo

Nacional de las Artes, 2005, p. 83-97.

_____. Tiempos de la literatura, tiempos de cine: escritores y guionistas. In: ESPAÑA,

Claudio (org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo

Nacional de las Artes, 2005, p. 306-323.

_____; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos Aires: Libraria, 2010.

ÁLVAREZ, José Manuel González. ¡Buenos Aires invadida! Sobre el leitmotiv del asedio en

la ficción especulativa argentina (1950-2000). Ciberletras, [s.l.]: [s.n.], n. 30, jul. 2013.

Disponível em:

< http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v30.html>. Acesso em: 07 dez. 2015.

AMADO, Ana. Hugo Santiago: una poética fílmica de la tragedia. Teatro XXI, Buenos Aires:

Universidad de Buenos Aires, n. 18, p. 22-25, outono 2004.

ARONOVICH, Ricardo. Ricardo Aronovich. Generaciones 60/90: cine argentino

independiente, Buenos Aires: Malba, 2003, p. 48-53. Entrevista.

BALAREZO, Jorge Zavaleta. Borges y el cine: imaginería visual y estrategia creativa.

Mester, [s.l.]: UCLA, v. 39, n. 1, p. 111-130, 2010. Disponível em:

< https://escholarship.org/uc/item/25z3t02m>. Acesso em: 22 jun. 2015.

BALDERSTON, Daniel. De la antología de la literatura fantástica y sus alrededores. In:

Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999,

p. 217-227.

_____. Políticas de la vanguardia: Borges en la década del veinte. In: Jorge Luis Borges:

política de la literatura. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2008,

p. 31-42.

BARRENECHEA, Ana María et al. Borges y la crítica. Buenos Aires: Centro Editor de

América Latina, 1992.

BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. In: O cinema: ensaios. São

Paulo: Brasiliense, 1991, p. 199-208.

Page 91: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

91

BERNSTEIN, Ariel. España en Borges. Clarín: Revista de Nueva Literatura, [s.l.: s.n.], maio

2007. Disponível em:

< http://www.revistaclarin.com/569/espana-en-borges/>. Acesso em: 19 jun. 2015.

BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969.

Nova York: Bantam, 1971, p. 135-185.

_____. Aspectos de la literatura gauchesca. Montevideo: [s.n.], 1950.

_____. Cinco breves noticias [1]. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random

House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Cinco breves noticias [2]. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random

House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Conversación con Borges. Sur, Buenos Aires, n. 334-335, p. 133-135, 1974.

Entrevista.

_____. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Dino Buzzati: El desierto de los tártaros. In: Miscelánea. Barcelona: Random House

Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Discusión. Buenos Aires: Debolsillo, 2012.

_____. El Aleph. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição

digital.

_____. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929). Barcelona: Random

House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. El compadre. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random House

Mondadori, 2011, edição digital.

_____. El hacedor. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição

digital.

_____. El informe de Brodie. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Elogio de la sombra. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. El oro de los tigres. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. El otro, el mismo. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,

edição digital.

Page 92: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

92

_____. El tamaño de mi esperanza / El idioma de los argentinos. Buenos Aires: Debolsillo,

2012.

_____. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972). Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 1141-

1145.

_____. Evaristo Carriego. Buenos Aires: Emecé, 1955.

_____. Fervor de Buenos Aires. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor

de Buenos Aires. México, D. F., 2006. 423 f. Tese (Doutorado em Literatura Hispânica) - El

Colegio de México, p. 255-397.

_____. Ficciones. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,

edição digital.

_____. Foreword. In: Franz Kafka Stories 1904-1924. London: Abacus, 1995.

_____. Franz Kafka. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição

digital.

_____. Franz Kafka: América / Relatos breves. In: Miscelánea. Barcelona: Random House

Mondadori, 2011, edição digital.

_____ Franz Kafka: La metamorfosis. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Historia de la eternidad. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Historia universal de la infamia. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House

Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Inquisiciones / Otras inquisiciones. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,

edição digital.

_____. Introducción. In: WELSH, Emilio Villalba. Del arte de escribir para el cine y la

televisión. Buenos Aires: Editorial Schapire, 1964, p. 13-14.

_____. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, Paris: inverno-

primavera 1967. Entrevista concedida a Ronald Christ. Disponível em:

<http://www.theparisreview.org/interviews/4331/the-art-of-fiction-no-39-jorge-luis-borges>.

Acesso em: 26 jul. 2015.

_____. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis.

Buenos Aires: Orión, 1982.

_____. La cifra. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição

digital.

Page 93: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

93

_____. Las pesadillas y Franz Kafka. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random

House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. Luna de enfrente. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,

edição digital.

_____. Nuestras imposibilidades. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Para las seis cuerdas. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Poetas de Buenos Aires. In: ZANGRANDI, Marcos (org.). La ciudad viva: Buenos

Aires, 1963. Buenos Aires: Dirección General Patrimonio e Instituto Histórico, 2009, p. 68-

69.

_____. Prólogo. In: El buitre. Buenos Aires: Ediciones Librería La Ciudad, 1979.

_____. Tareas y destino de Buenos Aires. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona:

Random House Mondadori, 2011, edição digital.

_____. The trial, de Franz Kafka. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,

2011, edição digital.

_____. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: _____ (org.); BIOY CASARES, Adolfo (org.);

OCAMPO, Silvina (org.). Antología de la literatura fantástica. Buenos Aires: Sudamericana,

1940, p. 71-88.

_____. Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados

(1956-1986). Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição digital.

BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). Buenos

Aires: MALBA, 2008.

BOSCHI, Alberto. Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. Disponível em:

<http://www.treccani.it/enciclopedia/ricciotto-canudo_(Enciclopedia_del_Cinema)/>. Acesso

em: 06 out. 2015.

BOSETTI, Oscar. Hugo Santiago: un borgeano imaginando el cine. In: WOLF, Sergio (org.).

Cine argentino: la otra historia. Buenos Aires: Letra Buena, 1994, p. 91-101.

BOSI, Alfredo. A parábola das vanguardas latino-americanas. In: SCHWARTZ, Jorge.

Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp,

1995, p. 19-28.

BRESCIA, Pablo. El cine como precursor: von Sternberg y Borges. Espacios, Buenos Aires:

Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 17, p. 64-70, nov.-dez.

1995.

Page 94: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

94

BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges. Nova York: Holt, Rinehart and

Winston, 1969.

BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, edição

digital.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição

digital.

CANDIDO, Antonio. Quatro esperas. Novos estudos Cebrap, [s.l.]: Cebrap, n. 26, p. 49-76,

mar. 1990. Disponível em: < http://novosestudos.org.br/v1/contents/view/380>. Acesso em:

17 jan. 2016.

CAPALBO, Armando. El grupo de los cinco: iconos y emblemas de la experimentación y la

extravagancia. In: ESPAÑA, Claudio (org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias

(1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes, 2005, p. 532-543.

_____. Hugo Santiago e Invasión: el sexto de los cinco. In: ESPAÑA, Claudio (org.). Cine

argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las

Artes, 2005, 544-546.

CERDÁ, Marcelo. Invasión: el sitio del lector. El matadero, Buenos Aires: Universidad de

Buenos Aires, n. 7, p. 161-181, [s. d.].

_____. La política de las formas neutras. Acerca de Invasión, de Hugo Santiago. In:

LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine político y social en

Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2009, p.

439-446.

_____. Los directores de la Generación del 60 y las relaciones permeables frente al contexto

político y social. In: LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine

político y social en Argentina: formas, estilos y registros (1896-1969). Buenos Aires: Nueva

Librería, 2009, p. 311-346.

CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa (org.). O cinema e a invenção da vida

moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

CHIAPPINI, Julio. Borges y Kafka. Buenos Aires: Zeus, 1991.

CLARA, Kriger. Estudios sobre cine clásico en Argentina: de la perspectiva nacional a la

comparada. AdVersus, Buenos Aires: Istituto Italo-Argentino de Ricerca Sociale, n. 26, p.

133-150, jun. 2014.

_____. Problemas historiográficos en la producción teórica sobre cine argentino. Cuadernos

AsAECA, Buenos Aires: AsAECA, n. 1, p. 159-169, inverno 2010.

_____. Un recorrido bibliográfico por el cine argentino. Imagofagia. Buenos Aires: AsAECA,

n. 2, out. 2010. Disponível em:

Page 95: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

95

<http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php?option=com_content&view=article&id=110%

3Aun-recorrido-bibliografico-por-el-cine-argentino&catid=35&Itemid=71>. Acesso em: 17

jun. 2015.

CORRÊA DO LAGO, Pedro. Três encontros com Borges. piauí, Rio de Janeiro, n. 14, nov.

2007. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/tres-encontros-com-

borges/>. Acesso em: 16 dez. 2015.

COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine. Madrid: Fundamentos, 1981.

_____. Borges em/e/sobre cinema. São Paulo: Iluminuras, 2000.

DE RIVERO, Gloria Videla. Anticipos del mundo literario de Borges en su prehistoria

ultraísta. Iberomania, Madrid: Alcalá, n. 3, p. 173-195, 1975.

_____. La dirección criollista de la vanguardia. In: Direcciones del vanguardismo hispano-

americano. Mendoza: EDIUNC, 2011, p. 105-118.

DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino I: la época de oro. Buenos

Aires: Ediciones del Jilguero, 1998, p. 10-66.

ESPAÑA, Claudio. Cine subterráneo: la complicidad de la estética con la política. In: _____

(org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo

Nacional de las Artes, 2005, 552-559.

FERREIRA-PINTO, Cristina. La narrativa cinematográfica de Borges. Revista

Iberoamericana, [s.l.: s.n.], v. 57, n. 155-156, p. 495-506, abril-set. 1991. Disponível em:

<http://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/issue/view/187/showTo

c>. Acesso em: 22 jun. 15.

FLEISCHER, Ariel. Borges: sus primeros poemas publicados en Buenos Aires. Esperando a

Godot, [s.n.t.], n. 3. Disponível em:

< http://www.revistagodot.com.ar/num3/3_fleischer.html>. Acesso em: 19 jun. 2015.

FLÓ, Juan. Jorge Luis Borges traductor de Die Verwandlung: fechas, textos conjeturas.

Anales de literatura hispanoamericana, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, n. 42,

p. 215-240, 2013.

Disponível em: <http://revistas.ucm.es/index.php/ALHI/article/view/43665/41271>. Acesso

em: 28 nov. 2015.

GONZÁLEZ, José Eduardo. Borges and the classical Hollywood cinema. Style, [s.l.: s.n.], v.

32, n. 3, p. 486-499, outono 1998. Disponível em:

<http://www.borges.pitt.edu/sites/default/files/Gonzalez,%20Jose%20Eduardo%20Borges%2

0and%20the%20Classical.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2015.

GRAMUGLIO, María Teresa. Posiciones de Sur en el espacio literario: una política de la

cultura. In: Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires:

Emecé, 1999, p. 93-123.

Page 96: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

96

HUGO Santiago y su película Invasión. La Nación, Buenos Aires, 14 ago. 1969, páginas não

identificadas.

INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago. Buenos Aires: MALBA, 2008.

JOZEF, Bella. A crítica cinematográfica de Jorge Luis Borges. Aletria, [s.l.: s.n.], v. 8, n. 1,

2001, p. 279-286. Disponível em:

<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1290/1387>. Acesso em:

19 jun. 2015.

KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.

_____. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.

_____. Narrativas do espólio. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.

_____. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.

_____. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.

_____. O veredicto / Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição

digital.

_____. Um artista da fome / A construção. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição

digital.

KANG, Jung Ha. La forma es el mensaje: alrededor de Invasión, de Hugo Santiago. In:

GONZÁLEZ, Horacio (org.); RINESI, Eduardo (org.). Decorados: apuntes para una historia

social del cine argentino. Buenos Aires: Manuel Suárez Editor, 1993, p. 179-182.

LAFON, Michel. Algunos ejercicios de escritura en colaboración. In: Historia crítica de la

literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 65-90.

LEDESMA, Jerónimo. Rupturas de vanguardia en la década del 20: ultraísmo,

martinfierrismo. In: MANZONI, Celina (org.). Historia crítica de la literatura argentina VII:

rupturas. Buenos Aires: Emecé: 2009, p. 167-199.

LESPADA, Gustavo. Horacio Quiroga: signos de la modernidad. Zama, Buenos Aires:

Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 3, p. 203-

211, 2011.

LLAHÍ, Marcos. Tema del sitiador y del sitiado: sobre Invasión, de Hugo Santiago. In:

LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine político y social en

Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2009, p.

447-452.

LONA, Horacio. Reflexiones sobre el tema del coraje en la obra de Borges. Variaciones

Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 153-165, jan. 1999. Disponível em:

< http://www.borges.pitt.edu/journal/variaciones-borges-8>. Acesso em: 08 dez. 2015.

Page 97: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

97

MAHIEU, José Agustín. Breve historia del cine argentino. Buenos Aires: Editorial

Universitaria de Buenos Aires, 1966.

MARTÍN, Jorge. Hugo Santiago. In: _____. Diccionario de realizadores contemporáneos.

Buenos Aires: INC, 1987, p.170.

MARTÍNEZ, Adolfo. Hugo Santiago. In: _____. Diccionario de directores del cine

argentino. Buenos Aires: Corregidor, 2004, p. 175.

MARTÍNEZ, Carlos Dámaso. Borges: la narración literaria y el cine. Orillas, Padova: Padova

University Press, n. 1, 2012. Disponível em:

<http://orillas.cab.unipd.it/orillas/index.php/en/component/content/article?id=54>. Acesso

em: 10 jun. 2015.

_____. De la literatura al cine: Borges y Santiago. Espacios, Buenos Aires: Facultad de

Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 17, p. 51-54, nov.-dez. 1995.

_____. Estudio preliminar. In: QUIROGA, Horacio. Arte y lenguaje del cine. Buenos Aires:

Losada, 1997, p. 15-37.

_____. La irrupción de la dimensión fantástica. In: Historia crítica de la literatura argentina

IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 171-193.

_____. Literatura / cine: tensiones y desencuentros. In: Historia crítica de la literatura

argentina X: la irrupción de la crítica. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 275-293.

MARTINO, Daniel. Magias parciales de Pago Chico: un guión perdido de Borges, Bioy

Casares, Peyrou y Mallea Abarca. Film, Buenos Aires: [s.n.], n. 1, 1993. Disponível em

<http://www.borgesdebioycasares.com.ar/images/07%20a_Pago%20Chico.pdf>. Acesso em

17 nov. 2015.

MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges. Buenos Aires: Hachette, 1984.

MOLLOY, Silvia. Flâneries textuales: Borges, Benjamin y Baudelaire. Variaciones

Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 16-29, jan. 1999. Disponível em:

< http://www.borges.pitt.edu/bsol/documents/0806.pdf>. Acesso em: 31 out. 2015.

MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria. México, D. F.: Fondo de

Cultura Económica, 1987.

MONTALDO, Graciela. Los ensayos del joven Borges. Espacios de crítica y producción,

Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 6, p. 20-

22, out./nov. 1987.

MOSAICO CRIOLLO: primera antología del cine mudo argentino. Buenos Aires: Museo del

Cine Pablo Ducrós Hicken, [s.d.].

MUSCHIETTI, Delfina. La poesía de Borges: un fracaso dorado. Espacios de crítica y

producción, Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires,

n. 6, p. 44-48, out./nov. 1987.

Page 98: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

98

OUBIÑA, David. Del sueño tecnológico a la escritura audiovisual: literatura y cine (1920-

1960). In: MANZONI, Celina (org.). Historia crítica de la literatura argentina VII: rupturas.

Buenos Aires: Emecé: 2009, p. 343-368.

_____ (org.). El cine de Hugo Santiago. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 2002.

_____. El espectador corto de vista: Borges y el cine. Variaciones Borges, Pittsburgh:

University of Pittsburgh, n. 24, p. 133-152, out. 2010. Disponível em:

< http://www.borges.pitt.edu/journal/variaciones-borges-24>. Acesso em: 22 jun. 2015.

_____. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología urbana de Invasión.

Variaciones Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 69-81, jan. 1999.

Disponível em:

< http://www.borges.pitt.edu/bsol/documents/0806.pdf>. Acesso em: 31 out. 2015.

QUIROGA, Horacio. Cuentos de amor de locura y de muerte. In: Todos los cuentos. Madrid:

ALLCA XX, 1996, p. 3-174.

_____. Miss Dorothy Phillips, mi esposa. In: Selección de cuentos I. Montevideo: Ministerio

de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966, p. 31-70.

ROMERO, Luis Alberto. 1916. In: Breve historia contemporánea de la Argentina. Buenos

Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012, edição digital.

SANTIAGO, Hugo. Con libro de Borges y Bioy Casares, encara Hugo Santiago su primera

aventura en el largometraje. Clarín, Buenos Aires, 30 jul. 1969. Entrevista.

_____. Hugo Santiago. Generaciones 60/90: cine argentino independiente, Buenos Aires:

Malba, 2003, p. 246-255. Entrevista.

_____. Partituras. In: AGUILAR, Gonzalo (org.); OUBIÑA, David (org.). El guión

cinematográfico. Buenos Aires: Paidós, 1997, p. 111-134.

SANZ, María. Invasión: una inquietante ficción de Hugo Santiago y Borges. [S.l.: s.n.], n. 7,

nov. 2009. Disponível em:

<http://www.revistaafuera.com/NumAnteriores/pagina.php?seccion=Cine&page=04.Cine.San

z.htm>. Acesso em: 31 out. 2015.

SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. [S. l.]: Borges Studies Online, 2001.

Disponível em:

< http://www.borges.pitt.edu/bsol/bse0.php>. Acesso em: 18 jun. 2015.

_____. El surgimiento de la ficción. Espacios de crítica y producción, Buenos Aires: Facultad

de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 6, p. 8-12, out./nov. 1987.

_____. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina. Buenos Aires: Siglo XXI

Editores, 2007, p. 147-212.

Page 99: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

99

_____. La perspectiva americana en los primeros años de Sur. In: ALTAMIRANO, Carlos;

_____. Ensayos argentinos: de Sarmiento a la vanguardia. Buenos Aires: Ariel, 1997, p. 261-

268.

_____. Modernidad y mezcla cultural: el caso de Buenos Aires. In: BELLUZZO, Ana Maria

de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo:

Memorial; UNESP, 1990, p. 31-43.

_____. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: Nueva Visión,

2003.

_____. Una poética de la ficción. In: Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se

afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 19-38.

SCHEJTMAN, Natali. El Camino de Santiago. Página|12, Buenos Aires, 8 abr. 2007.

Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-3730-2007-04-

08.html>. Acesso em: 11 out. 2014.

SCHWARTZ, Jorge. Introdução. In: _____. Vanguardas latino-americanas: polêmicas,

manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 29-71.

SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges. Buenos Aires: Losada, 2007.

STORTINI, Carlos. Cine. In: El diccionario de Borges. Buenos Aires: Miscelánea, 1989, p.

46-47.

STRATTA, Isabel. Documentos para una poética del relato. In: Historia crítica de la

literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 39-63.

VÁZQUEZ, María Esther. Cómo nació en 1923 “Fervor de Buenos Aires”. La Nación, [s.l.:

s.n.], nov. 2003. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/541800-como-nacio-en-1923-

fervor-de-buenos-aires>. Acesso em: 06 out. 2015.

Page 100: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

100

ANEXOS

Page 101: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

101

El cinematógrafo, el biógrafo

Alguna vez algunos dijimos biógrafo; ahora, generalmente, el cinematógrafo. El

término primero murió; acaso lo quería mas ruidoso la notoriedad, acaso lo amenazaba la

insinuación de Boswell o de Voltaire, peligrosa de alta. No lamentaría yo ese fallecimiento

(similar a miles de otros en la necrología continua de la semántica) si las palabras fueran

símbolos desinteresados. Desconfío que no lo son, que hacen contrabando de pareceres, de

consejos, de condenaciones. Toda palabra implica un argumento que es posiblemente un

sofisma. Aquí, sin entrar a discutir cuál es el mejor, es fácil observar que el proyecto de la

palabra ‟cinematógrafo” es mejor que el de ‟biógrafo”. Éste, si mi griego adivinatorio no me

traiciona, quiere ser escritura de la vida; aquél, sólo del movimiento. Las dos ideas, aunque

reducibles a identidad por tarea dialéctica, implican orientaciones distintas; diversidad que me

autoriza a diferenciarlas y a significar una cosa por cinematógrafo y otra por biógrafo.

Aseguro a mi lector que esa distinción, limitada a esta página, no es mayormente perjudicial.

Cinematógrafo es la grafía del movimiento, señaladamente en sus énfasis de rapidez,

de solemnidad, de tumulto. Esa operación fue propia de los orígenes, cuya sola materia fue la

velocidad; irrisoria en el aturdido infeliz que al disparar sabía llevarse por delante andamios y

muebles, épica en la polvareda de ‟cowboys”. Es peculiar también, por malicia paradójica de

los hechos, del llamado cinematógrafo de vanguardia; institución que se reduce a alimentar,

con más enriquecidos medios, el mismo azoramiento antiguo. Al espectador primitivo lo pudo

maravillar un solo jinete; a su equivalente de ahora le basta con muchísimos o con la

superpuesta visión de un ferrocarril, de una columna de trabajadores, de un barco. La

sustancia de la emoción es igual: es de pasmo burgués ante las diabluras que hacen las

máquinas, es la que inventó el nombre desproporcionado ‟linterna mágica” para el juguete

presentado por Atanasio Kircher en su ‟Ars magna lucis et umbrae”. Para el espectador, es

mero azoramiento bobo de técnica; para el fabricante es una holgazanería de la invención, un

aprovechar la fluencia de imágenes. Su inercia es comparable a la de los escritores métricos,

tan auxiliados por la continuidad sintáctica, por la escalonada deducción de una frase de otra.

De esa continuidad se valen los payadores también. Escribo sin mayor desprecio: no se puede

probar decisivamente que el pensamiento – el nuestro, el de Schopenhauer, el de Shaw – sea

de más independiente albedrío. A Federico Mauthuer creo deber la posesión de esta duda.

Eliminado para nuestro alivio el cinematógrafo, lo sucede el biógrafo. ¿Cómo

reconocerlo, entreverado en muchedumbre inferior? El procedimiento más rápido es el de

Page 102: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

102

buscar los nombres de Charlie Chaplin, de Emil Jannings, de George Bancroft, de algunos

dolorosos rusos. Es eficiente, aunque demasiado contemporáneo, circunstancial. El de

aplicación general (aunque no adivinador como el otro) puede ser formulado así. Biógrafo es

el que nos descubre destinos, el presentador de almas al alma. La definición es breve; su

prueba (la de sentir o no una presencia, un acuerdo humano) es acto elemental. Es la reacción

que todos nosotros usamos para juzgar libros de invención. Novela es presentación de muchos

destinos, verso o ensayo es presentación de uno solo. (El poeta o escritor de ensayos es

novelista de un solo personaje que es él; los doce volúmenes de Enrique Heine sólo están

habitados por Enrique Heine, la obra de Unamuno por Unamuno. En cuanto a los poetas

dramáticos – Browning, Shakespeare – y los ensayistas de modo narrativo – Lytton Strachey,

Macaulay – son novelistas íntegramente, sin otra diferencia que su menos disimulada pasión).

Repito, biógrafo es el que nos agrega personas. El otro, el no biógrafo, el cinematógrafo, está

desierto, sin otro sucedáneo de vidas, que fábricas, maquinaria, palacios, cargas de caballería

y otras alusiones a la realidad o generalidades fáciles. Es zona inhabitable, cargosa.

Recurrir a Chaplin, para la vindicación perfecta del biógrafo, es obligación que me

gusta. No creo haya invenciones más agraciadas. Ahí está su temblorosa epopeya ‟The gold

rush”, título bien repetido en francés por ‟La ruée vers l’or” y mal en español por ‟La

quimera del oro”. Recoge uno de tantos minutos. Chaplin, fino compadrito judío, sigue

vertiginosamente un camino estrecho, con la pared de la montaña de un lado y el despeñadero

del otro. Surge todo un oso y lo sigue. Chaplin, distraído angelicalmente, no se ha fijado.

Continúan así unos pocos segundos, que son insostenibles: la fiera casi husmeándole los

talones, el hombre haciendo equilibrio con el bastón, con la requintada galera y casi con el

negro bigote lineal. El espectador está viendo venir un zarpazo y el despertar despavorido de

Chaplin. En eso llega el oso a su cueva y el hombre sigue su camino sin haber visto nada. La

situación ha sido resuelta - o disuelta - mágicamente: eran dos los distraídos en lugar de uno.

Dios esta vez no ha sido menos delicado que Chaplin. Escribo otro incidente, edificado

también sobre la distracción. Chaplin, enlevitado, incómodo, vuelve millonario de Alaska.

Hay peligro de que lo sintamos demasiado triunfal, demasiado parecido a sus dólares. Lo

recibe un vapor que parece estar tripulado exclusivamente por fotógrafos adulones. Sobre la

cubierta, Chaplin cruza entre filas admirativas. De golpe, ángel guarango, advierte un pucho

retorcido en el suelo: se inclina y lo recoge. ¿No es de santo esa distracción? Cada escena de

‟La quimera del oro” esta así cargada. Además, el destino de Chaplin no es allí el único y eso

lo diferencia de los otros puro monólogos de su inventor: ‟El pibe, el circo”, Jim, el

descubridor de una montaña de oro y que ya no sabe dónde es y que atorra por los burdeles

Page 103: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

103

con ese trastornado recuerdo e insobornable olvido; Georgia, la bailarina sin otra fidelidad

que su imperiosa belleza, leve sobre la tierra; Larsen, el hombre cuyo saludo es una descarga,

el hombre resignado a ser malo, el hombre poseído por esa inocencia mortal de la

depravación, son enteros destinos.

Chaplin es el narrador de sí mismo, vale decir el poeta, que tiene el biógrafo; Jannings,

su novelista múltiple. No puedo trascribir nada de él: su vocabulario vivo de gestos, su directo

idioma facial, no me parece traducible a otro alguno. Jannings, además de las agonías de la

tragedia, sabe rendir estrictamente lo cotidiano. Sabe no sólo agonizar (tarea fácil o de fácil

simulación, por ser de verificación improbable) sino vivir. Su estilo, hecho incesantemente de

realizaciones minúsculas, es tan sin ostentación y tan eficaz como el de Cervantes o Butler.

Sus personajes – el opaco montón de sensualidad en ‟Tartufo”, siempre con el breviario

pequeñísimo ante los ojos como un antifaz irrisorio; el emperador en ‟Quo Vadis”,

aborrecible de afeminamiento y gruesa vanidad; el varón justo de la metódica dicha, el cajero

Schilling, el gran señor en ‟La última orden”, no menos devoto de la patria que sabedor de su

flaqueza y enredos – son caracteres diversísimos, tan incomunicados entre sí que ni podemos

imaginarlos comprendiéndose. ¡Qué irónico desinterés del general por la tragedia chabacana

de Schilling: qué anatemas proféticos (redactados en el heroico alemán de Martín Lutero) no

le arrojaría éste a Nerón!

Para morir no se necesita más que estar vivo, le oí decir con indiscutibilidad a una

criolla. Añado que ese preliminar es indispensable y que la cinematografía alemana - tan

desinteresada de personas como buscadora de simetrías y de símbolos - suele omitirlo con

ligereza mortal. Quiere conmovernos con el general fracaso o martirio de muchedumbres que

antes no hemos visto vivir y que están desfamiliarizadas aún más por su aspecto de bajo

relieve y su proporción. Ignora que la muchedumbre es menos que el hombre, levanta un

bosque para disimular la falta de un árbol. Pero en el arte, como en la narración diluviana, no

importa la perdición de la humanidad, siempre que la pareja humana concreta se quede con el

mundo. Defoe dividiría por dos este ejemplo y reemplazaría: Siempre que Robinson.

La Prensa, Buenos Aires, 28 de abril de 1929

Page 104: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

104

Films

Escribo mi opinión de unos films estrenados últimamente.

El mejor, a considerable distancia de los otros: El asesino Karamazoff (Filmreich). Su

director (Ozep) ha eludido sin visible incomodidad los aclamados y vigentes errores de la

producción alemana – la simbología lóbrega, la tautología o vana repetición de imágenes

equivalentes, la obscenidad, las aficiones teratológicas, el satanismo – sin tampoco incurrir en

los todavía menos esplendorosos de la escuela soviética: la omisión absoluta de caracteres, la

mera antología fotográfica, las burdas seducciones del comité. (De los franceses no hablo: su

mero y pleno afán hasta ahora, es el de no parecer norteamericanos – riesgo que les prometo

no corren). Yo desconozco la espaciosa novela de la que fue excavado este film: culpa feliz

que me ha permitido gozarlo, sin la continua tentación de superponer el espectáculo actual

sobre la recordada lectura, a ver si coincidían. Así, con inmaculada prescindencia de sus

profanaciones nefandas y de sus meritorias fidelidades – ambas inimportantes –, el presente

film es poderosísimo. Su realidad, aunque puramente alucinatoria, sin subordinación ni

cohesión, no es menos torrencial que la de Los muelles de Nueva York, de Joseph von

Sternberg. Su presentación de una genuina, candorosa felicidad después de un asesinato, es

uno de sus altos momentos. Las fotografías – la del amanecer ya preciso, la de las bolas

monumentales de billar aguardando el impacto, la de la mano clerical de Smerdiakov,

retirando el dinero – son excelentes, de invención y de ejecución.

Paso a otro film. El que misteriosamente se nombra Luces de la ciudad, de Chaplin, ha

conocido el aplauso incondicional de todos nuestros críticos; verdad es que su impresa

aclamación es más bien una prueba de nuestros irreprochables servicios telegráficos y

postales, que un acto personal, presuntuoso. ¿Quién iba a atreverse a ignorar que Charlie

Chaplin es uno de los dioses más seguros de la mitología de nuestro tiempo, un colega de las

inmóviles pesadillas de Chirico, de las fervientes ametralladoras de Scarface Al, del universo

finito aunque ilimitado, de las espaldas cenitales de Greta Garbo, de los tapiados ojos de

Gandhi? ¿Quién a desconocer que su novísima comédie larmoyante era de antemano

asombrosa? En realidad, en la que creo realidad, este visitadísimo film del espléndido

inventor y protagonista de La quimera del oro, no pasa de una lánguida antología de pequeños

percances, impuestos a una historia sentimental. Alguno de estos episodios es nuevo; otro,

como el de la alegría técnica del basurero ante el providencial (y luego falaz) elefante que

debe suministrarle una dosis de raison d'être, es una reedición facsimilar del incidente del

basurero troyano y del falso caballo de los griegos, del preterido film La vida privada de

Page 105: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

105

Elena de Troya. Objeciones más generales pueden aducirse también contra City Lights. Su

carencia de realidad sólo es comparable a su carencia, también desesperante, de irrealidad.

Hay películas reales – El acusador de sí mismo, Los pequeros, Y el mundo marcha, hasta La

melodía de Broadway –; las hay de voluntaria irrealidad: las individualísimas de Borzage, las

de Harry Langdon, las de Buster Keaton, las de Eisenstein. A este segundo género

correspondían las travesuras primitivas de Chaplin, apoyadas sin duda por la fotografía

superficial, por la espectral velocidad de la acción, y por los fraudulentos bigotes, insensatas

barbas postizas, agitadas pelucas y levitones portentosos de los actores. City lights no

consigue esa irrealidad, y se queda inconvincente. Salvo la ciega luminosa, que tiene lo

extraordinario de la hermosura, y salvo el mismo Charlie, siempre tan disfrazado y tan tenue,

todos sus personajes son temerariamente normales. Su destartalado argumento pertenece a la

difusa técnica conjuntiva de hace veinte años. Arcaísmo y anacronismo son también géneros

literarios, lo sé; pero su manejo deliberado es cosa distinta de su perpetración infeliz.

Consigno mi esperanza – demasiadas veces satisfecha – de no tener razón.

En Marruecos, de Sternberg, también es perceptible el cansancio, si bien en grado

menos todopoderoso y suicida. El laconismo fotográfico, la organización exquisita, los

procedimientos oblicuos y suficientes de La ley del hampa, han sido reemplazados aquí por la

mera cumulación de comparsas, por los brochazos de excesivo color local. Sternberg, para

significar Marruecos, no ha imaginado un medio menos brutal que la trabajosa falsificación

de una ciudad mora en suburbios de Hollywood, con lujo de albornoces y piletas y altos

muecines guturales que preceden el alba y camellos con sol. En cambio, su argumento general

es bueno, y su resolución en claridad, en desierto, en punto de partida otra vez, es la de

nuestro primer Martín Fierro o la de la novela Sanin del ruso Arzibáshef. Marruecos se deja

ver con simpatía, pero no con el goce intelectual que causan la visión (y la revisión) de obras

anteriores de Sternberg. No con el justo goce intelectual que produce La batida, la heroica.

Sur Nº 3, inverno de 1931

Page 106: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

106

Las Calles1

Las calles de Buenos Aires

ya son la entraña de mi alma.

No las calles enérgicas

molestadas de prisas y ajetreos,

sino la dulce calle de arrabal

enternecida de árboles y ocasos

y aquellas más afuera

ajenas de piadosos arbolados

donde austeras casitas apenas se aventuran

hostilizadas por inmortales distancias

a entrometerse en la honda visión

hecha de gran llanura y mayor cielo.

Son todas ellas para el codicioso de almas

una promesa de ventura

pues a su amparo hermánanse tantas vidas

desmintiendo la reclusión de las casas

y por ellas con voluntad heroica de engaño

anda nuestra esperanza.

Hacia los cuatro puntos cardinales

se van desplegando como banderas las calles;

ojalá en mis versos enhiestos

vuelen esas banderas.

Fervor de Buenos Aires, 1923

1 Os poemas de Fervor de Buenos Aires apresentados a seguir seguem a versão estabelecida por VÁZQUEZ,

Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p. 255-397.

Page 107: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

107

La Recoleta

Convencidos de caducidad

vueltos un poco irreales por el morir altivado en tanto sepulcro

irrealizados por tanta grave certidumbre de muerte,

nos demoramos en las veredas

que apartan los panteones enfilados

cuya vanilocuencia

hecha de mármol, de rectitud y sombra interior

equivale a sentencias axiomáticas y severas

de Manrique o de Fray Luis de Granada.

Hermosa es la serena decisión de las tumbas,

su arquitectura sin rodeos

y las plazuelas donde hay frescura de patio

y el aislamiento y la individuación eternales;

cada cual fue contemplador de su muerte

única y personal como un recuerdo.

Nos place la quietud,

equivocamos tal paz de vida con el morir

y mientras creemos anhelar el no-ser

lanzamos jaculatorias a la vida apacible.

Vehemente en las batallas y remansado en las losas

sólo el vivir existe.

Son aledaños suyos tiempo y espacio,

son arrabales de alma

son las herramientas y son las manos del alma

y en desbaratándose ésta,

juntamente caducan el espacio, el tiempo, el morir,

como al cesar la luz

se acalla el simulacro de los espejos

que ya la tarde fue entristeciendo.

Sombra sonora de los árboles,

viento rico en pájaros que sobre las ramas ondea,

alma mía que se desparrama por corazones y calles,

fuera milagro que alguna vez dejaran de ser,

milagro incomprensible, inaudito

aunque su presunta repetición abarque con grave horror la existencia.

Lo anterior: escuchado, leído, meditado

lo realicé en la Recoleta,

junto al propio lugar donde han de enterrarme.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 108: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

108

Calle Desconocida

Penumbra de la paloma

llamaron los judíos a la iniciación de la tarde

cuando la sombra aún no entorpece los pasos

y la venida de la noche se advierte

antes como advenimiento de música esperada

que como enorme símbolo de nuestra primordial nadería.

En esa hora de fina luz arenosa

mis andanzas dieron con una calle ignorada,

abierta en noble anchura de terraza

mostrando en las cornisas y en las paredes

colores blandos como el mismo cielo

que conmovía el fondo.

Todo – honesta medianía de las casas austeras,

Travesuras de columnitas y aldabas,

tal vez una esperanza de niña en los balcones –

se me adentró en el corazón anhelante

con limpidez de lágrima.

Quizá esa hora única

aventajaba con prestigio la calle

dándole privilegios de ternura

haciéndola real como una leyenda o un verso;

lo cierto es que la sentí lejanamente cercana

como recuerdo que si parece llegar cansado de lejos

es porque viene de la propia hondura del alma.

Íntimo y entrañable

era el milagro de la calle clara

y sólo después

entendí que aquel lugar era extraño,

que es toda casa un candelabro

donde arden con aislada llama las vidas,

que todo inmediato paso nuestro

camina sobre Gólgotas ajenos.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 109: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

109

La Plaza San Martín

A Macedonio Fernández, espectador

apasionado de Buenos Aires.

En busca de la tarde

fui apurando en vano las calles.

Ya estaban los zaguanes entorpecidos de sombra.

Con fino bruñimiento de caoba

la tarde toda se había remansado en la plaza,

serena y sazonada

bienhechora y sutil como una lámpara,

clara como una frente

grave como ademán de hombre enlutado.

Todo sentir se aquieta

bajo la rumorosa absolución de sus árboles

– jacarandá o acacia –

cuyas piadosas combaduras

amortecen la rigidez pueril de la estatua

y en cuya excelsitud se altiva

la gloria vespertina de las luces

a igual distancia

del leve azul y de la tierra rojiza.

¡Qué bien se ve la tarde

desde el fácil sosiego de los bancos!

Ahincado en la revuelta de un declive

el puerto dice de comarcas hurañas

y la honda plaza igualadora de almas

ábrese como pecho generoso

que derrama confianza.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 110: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

110

Ciudad

Anuncios luminosos tironeando el cansancio.

Charras algarabías

entran a saco en la quietud del alma.

Colores impetuosos

escalan las atónitas fachadas.

De las plazas hendidas

rebosan ampliamente las distancias.

El ocaso arrasado

que se acurruca tras los arrabales

es escarnio de sombras despeñadas.

Yo atravieso las calles desalmado

por la insolencia de las luces falsas

y es tu recuerdo como un ascua viva

que nunca suelto

aunque me quema las manos.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 111: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

111

Vanilocuencia

La ciudad está en mí como un poema

que aún no he logrado detener en palabras.

A un lado hay la excepción de algunos versos

y al otro, arrinconándolos,

la vida se adelanta sobre el tiempo

como terror

que usurpa toda el alma.

Siempre hay otros ocasos, otra gloria;

yo siento el rendimiento del espejo

que no descansa en una imagen sola.

¿Para qué esta porfía

de clavar con dolor un claro verso

de pie como una lanza sobre el tiempo

si mi calle, mi casa,

desdeñosas de plácemes verbales,

me gritarán su novedad mañana?

Nuevas

como una novia no besada.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 112: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

112

Inscripción Sepulcral

Para el coronel Don Isidoro Suárez, mi bisabuelo.

Dilató su valor allende los Andes.

Contrastó ejércitos y montes.

La audacia fue impetuosa costumbre de su espada.

Impuso en Junín término formidable a la lucha

y a las lanzas del Perú dio sangre española.

Escribió su censo de hazañas

en prosa rígida como los clarines belísonos.

Murió cercado de un destierro implacable.

Hoy es orilla de tanta gloria el olvido.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 113: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

113

Arrabal

El arrabal es el reflejo

de la fatiga del viandante.

Mis pasos claudicaron

cuando iban a pisar el horizonte

y estuve entre las casas

miedosas y humilladas

juiciosas cual ovejas en manada,

encarceladas en manzanas

diferentes e iguales

como si fueran todas ellas

recuerdos superpuestos, barajados

de una sola manzana.

El pastito precario

desesperadamente esperanzado

salpicaba las piedras de la calle

y mis miradas comprobaron

gesticulante y vano

el cartel del poniente

en su fracaso cotidiano

y sentí Buenos Aires

y literaturicé en la hondura del alma

la viacrucis inmóvil

de la calle sufrida

y el caserío sosegado.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 114: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

114

La Vuelta

Después de muchos años de ausencia

busqué la casa primordial de la infancia

y aún persevera forastero su ámbito.

Mis manos han tanteado los árboles

como quien besa a un durmiente

y he copiado andanzas de antaño

como quien practica un verso olvidado

y advertí al desparramarse la tarde

la frágil luna nueva

que se arrimó al amparo benigno

de la palmera pródiga de hojas excelsas,

como avecilla que a la nidada se acoge.

¡Qué caterva de cielos

vinculará entre sus paredes el patio,

cuánto heroico poniente

militará en la hondura de la calle

y cuánta quebradiza luna nueva

infundirá al jardín su dulcedumbre

antes que llegue a reconocerme la casa

y torne a ser una provincia de mi alma!

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 115: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

115

El Sur

Juntamente

caducan la población y la tarde.

Semejantes a ejércitos

por aquí discurren los trenes

evidenciando con rudo herraje oficioso

la inmóvil pobrería de las casas

polvorientas de tedio,

que al pie del claro cielo

vertiginosamente dilatado

insinúan a la oración su rígida sombra.

¡Qué lastimosas las enaltecidas barreras

sobre la herrumbre del poniente!

En estos aledaños

hay vislumbres de sitios de batalla:

tenaces terraplenes

que abaten alrededor los campos serviles,

charcas abandonadas

que las puestas de sol criminan de sangre,

zanjones, humaredas, puentes, clangores

y el tajo renegrido de los rieles

apartando las casas

y una precisión militar de tiempo y señales

y un militar desorden de alternativas de lucha.

Todo ello deja un sabor amargo en el alma.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 116: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

116

Inscripción Sepulcral

Para el coronel Don Francisco Borges, mi abuelo

Las cariñosas lomas orientales,

los ardientes esteros paraguayos

y la pampa rendida

fueron ante tu alma

una solo violencia continuada.

En el combate de La Verde

desbarató tanto valor de muerte.

Si esta vida contigo fue acerada

y el corazón, airada muchedumbre

se te agolpó en el pecho,

ruego al justo destino

aliste para ti toda la dicha

y que toda la inmortalidad sea contigo.

Fervor de Buenos Aires, 1923

Page 117: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

117

Montevideo2

Resbalo por tu tarde como el cansancio por la piedad de un declive.

La noche nueva es como un ala sobre tus azoteas.

Eres el Buenos Aires que tuvimos, el que en los años se alejó quietamente.

Eres nuestra y fiestera, como la estrella que duplican las aguas.

Puerta falsa en el tiempo, tus calles miran al pasado más leve.

Claror de donde la mañana nos llega, sobre las dulces aguas turbias.

Antes de iluminar mi celosía tu bajo sol bienaventura tus quintas.

Ciudad que se oye como un verso.

Calles con luz de patio.

Luna de enfrente, 1925

2 BORGES, Jorge Luis. Luna de enfrente. In: Poesía completa, edição digital.

Page 118: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

118

Fundación Mítica de Buenos Aires3

¿Y fue por este río de sueñera y de barro

que las proas vinieron a fundarme la patria?

Irían a los tumbos los barquitos pintados

entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río

era azulejo entonces como oriundo del cielo

con su estrellita roja para marcar el sitio

en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron

por un mar que tenía cinco lunas de anchura

y aún estaba poblado de sirenas y endriagos

y de piedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,

durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,

pero son embelecos fraguados en la Boca.

Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Una manzana entera pero en mitá del campo

expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.

La manzana pareja que persiste en mi barrio:

Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe

brilló y en la trastienda conversaron un truco;

el almacén rosado floreció en un compadre,

ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte

con su achacoso porte, su habanera y su gringo.

El corralón seguro ya opinaba Yrigoyen,

algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa

el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,

los hombres compartieron un pasado ilusorio.

Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:

la juzgo tan eterna como el agua y el aire.

Cuaderno San Martín, 1929

3 Versão publicada em BORGES, Jorge Luis. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa, edição digital. O

poema chamava-se originalmente Fundación Mitológica de Buenos Aires. O próximo poema apresentado segue

a mesma edição.

Page 119: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

119

Muertes de Buenos Aires

I

La Chacarita

Porque la entraña del cementerio del Sur

fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;

porque los conventillos hondos del Sur

mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires

y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,

a paladas te abrieron

en la punta perdida del Oeste,

detrás de las tormentas de tierra

y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.

Allí no había más que el mundo

y las costumbres de las estrellas sobre unas chacras,

y el tren salía de un galpón en Bermejo

con los olvidos de la muerte:

muertos de barba derrumbada y ojos en vela,

muertas de carne desalmada y sin magia.

Trapacerías de la muerte – sucia como el nacimiento del hombre –

siguen multiplicando tu subsuelo y así reclutas

tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos

que caen al fondo de tu noche enterrada

lo mismo que a la hondura de un mar,

hacia una muerte sin inmortalidad y sin honra.

Una dura vegetación de sobras en pena

hace fuerza contra tus paredones interminables

cuyo sentido es perdición,

y convencidas de mortalidad las orillas

apuran su caliente vida a tus pies

en calles traspasadas por una llamarada baja de barro

o se aturden con desgano de bandoneones

o con balidos de cornetas sonsas en carnaval.

(El fallo de destino más para siempre,

que dura en mí lo escuché esa noche en tu noche

cuando la guitarra bajo la mano del orillero

dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:

La muerte es vida vivida,

la vida es muerte que viene;

la vida no es otra cosa

que muerte que anda luciendo.)

Mono del cementerio, la Quema

gesticula advenediza muerte a tus pies.

Page 120: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

120

Gastamos y enfermamos la realidad: 210 carros

infaman las mañanas, llevando

a esa necrópolis de humo

las cotidianas cosas que hemos contagiado de muerte.

Cúpulas estrafalarias de madera y cruces en alto

se mueven – piezas negras de un ajedrez final – por tus calles

y su achacosa majestad va encubriendo

las vergüenzas de nuestras muertes.

En tu disciplinado recinto

la muerte es incolora, hueca, numérica;

se disminuye a fechas y a nombres,

muertes de la palabra.

Chacarita:

desaguadero de esa patria de Buenos Aires, cuesta final,

barrio que sobrevives a los otros, que sobremueres,

lazareto que estás en esta muerte no en la otra vida,

he oído tu palabra de caducidad y no creo en ella,

porque tu misma convicción de angustia es acto de vida

y porque la plenitud de una sola rosa es más que tus mármoles.

II

La Recoleta

Aquí es pundonorosa la muerte,

aquí es la recatada muerte porteña,

la consanguínea de la duradera luz venturosa

del atrio del Socorro

y de la ceniza minuciosa de los braseros

y del fino dulce de leche de los cumpleaños

y de las hondas dinastías de los patios.

Se acuerdan bien con ella

esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.

Tu frente es el pórtico valeroso

y la generosidad de ciego del árbol

y la dicción de pájaros que aluden, sin saberla, a la muerte

y el redoble, endiosador de pechos, de los tambores

en los entierros militares;

tu espalda, los tácitos conventillos del Norte

y el paredón de las ejecuciones de Rosas.

Crece en disolución bajo los sufragios de mármol

la nación irrepresentable de muertos

que se deshumanizaron en tu tiniebla

desde que María de los Dolores Maciel, niña del Uruguay

– simiente de tu jardín para el cielo –

se durmió, tan poca cosa, en tu descampado.

Page 121: A CIDADE E O HOMEM - posciencialit.letras.ufrj.br · Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa

121

Pero yo quiero demorarme en el pensamiento

de las livianas flores que son tu comentario piadoso

– suelo amarillo bajo las acacias de tu costado,

flores izadas a conmemoración en tus mausoleos –

y en el porqué de su vivir gracioso y dormido

junto a las atroces reliquias de los que amamos.

Dije el enigma y diré también su palabra:

siempre las flores vigilaron la muerte,

porque siempre los hombres incomprensiblemente supimos

que su existir dormido y gracioso

es el que mejor puede acompañar a los que murieron

sin ofenderlos con soberbia de vida,

sin ser más vida que ellos.

Cuaderno San Martín, 1929