a cidade e o homem - posciencialit.letras.ufrj.br · ricciotto canudo. in: enciclopedia del cinema...
TRANSCRIPT
PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO
A CIDADE E O HOMEM:
BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES
Rio de Janeiro
2016
PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO
A CIDADE E O HOMEM:
BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em Ciência da Literatura
(Literatura Comparada), sob orientação da Profa. Dra.
Danielle Corpas.
Rio de Janeiro
2016
PALMIRENO COUTO MOREIRA NETO
A CIDADE E O HOMEM:
BORGES, INVASIÓN E O SONHO DE AQUILES
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos para a obtenção do grau
de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), aprovada pela Banca
Examinadora constituída pelos seguintes professores:
_______________________________________
Profa. Dra. Danielle Corpas, orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Prof. Dr. José Carlos Monteiro
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, _____ de _______________ de 2016
Para meus pais
Para Joana, rara joia rara
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo apoio e compreensão.
A Danielle Corpas, pela orientação precisa.
A José Carlos Monteiro, Eduardo Coutinho, Ricardo Pinto de Souza, Flavia Trocoli e Alberto
Pucheu, pelos comentários valiosos.
Chaque chose est un infini.
Gustave Flaubert
MOREIRA NETO, Palmireno Couto. A cidade e o homem: Borges, Invasión e o sonho de
Aquiles. Rio de Janeiro, 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –
Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RESUMO
“Invasión é a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida
por uns quantos homens, que talvez nem sejam heróis. Lutam até o fim, sem suspeitar que sua
batalha é infinita.” Essa sinopse, escrita por Jorge Luis Borges, apresenta Invasión, filme cujo
roteiro foi escrito por Borges e Hugo Santiago. Lançada em 1969, a obra exibe as ações de
um grupo que tenta impedir uma invasão estrangeira. Entretanto, mais do que um simples ato
de resistência, a defesa da terra natal expõe valores individuais e coletivos e mobiliza os
homens na construção de um ideal de cidade. Para compreender alguns aspectos do enredo e
da trajetória dos personagens principais do filme, a interpretação elaborada neste ensaio
recorre ao imaginário sobre cidade, homem e coragem presente na obra de Borges.
Palavras-chave: Invasión; Jorge Luis Borges; Adolfo Bioy Casares; Hugo Santiago; Cidade e
modernidade; Cinema e literatura.
MOREIRA NETO, Palmireno Couto. A cidade e o homem: Borges, Invasión e o sonho de
Aquiles. Rio de Janeiro, 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –
Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
ABSTRACT
“Invasión is the legend of a city, imaginary or real, besieged by powerful enemies and
defended by a handful of people who may or may not be heroes. They will fight to the end
without suspecting that their battle is endless.” This synopsis, written by Jorge Luis Borges,
describes Invasión, a film whose screenplay was written by Borges and Hugo Santiago.
Released in 1969, the movie presents the actions of a group that tries to prevent a foreign
invasion. Nevertheless, the defense of their homeland is not only a simple act of resistance,
but also expresses individual and collective values and involves the people in the construction
of a city ideal. To understand some aspects of the plot and the trajectory of the main
characters of the film, the interpretation elaborated in this essay explores ideas about city,
man and courage discernible in Borges’ works.
Keywords: Invasión; Jorge Luis Borges; Adolfo Bioy Casares; Hugo Santiago; City and
modernity; Cinema and literature.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Cartão-postal do Hipódromo Argentino de Palermo 17
Figura 2 - Cartaz de Juan sin ropa 17
Figura 3 - Fotografia de Francisco Borges Lafinur 27
Figura 4 - Fotografia de Jorge Guillermo Borges e amigos 27
Figura 5 - Fotografia de Jorge Luis Borges 36
Figura 6 - Capa de Fervor de Buenos Aires 36
Figura 7 - Fotografia de Joseph von Sternberg 50
Figura 8 - Cartaz de Underworld 50
Figura 9 - Fotografia de Borges e Hugo Santiago 56
Figura 10 - Fotografia de Hugo Santiago e Adolfo Bioy Casares 56
Figura 11 - Cartaz de Invasión [1] 57
Figura 12 - Cartaz de Invasión [2] 57
Figura 13 - Fotograma de Invasión (Aquilea) [1] 63
Figura 14 - Fotograma de Invasión (Aquilea) [2] 63
Figura 15 - Fotograma de Invasión (Irene) 64
Figura 16 - Fotograma de Invasión (Herrera) 64
Figura 17 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio) [1] 65
Figura 18 - Fotograma de Invasión (Silva) 65
Figura 19 - Fotograma de Invasión (Herrera e o grupo de resistentes) 66
Figura 20 - Fotograma de Invasión (cartaz) 66
Figura 21 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio) [2] 67
Figura 22 - Fotograma de Invasión (Don Porfirio e Irene) 67
SUMÁRIO
Introdução 11
1 Da literatura ao cinema 13
1.1 O milagre da tela 13
1.2 Os três Borges 18
1.3 A invenção de um escritor 28
1.4 A magia do relato 37
2 Um filme de Borges 51
2.1 A trama de um roteiro 51
2.2 Um traçado de Invasión 58
2.3 Fábulas kafkianas 68
2.4 Uma cidade maior que os homens 73
Conclusão 87
Bibliografia 90
Anexos 100
11
INTRODUÇÃO
‟Vocês, que escrevem, tomem um tema adequado a suas forças; ponderem
longamente o que seus ombros se recusem a carregar, o que aguentem. A quem domina o
assunto escolhido não faltará eloquência, nem lúcida ordenação.” O conselho de Horacio,
valioso há mais de dois milênios, parece feito para aqueles que se dispõe a percorrer os
corredores universitários e acrescentar algo ao debate acadêmico.
A proposta inicial deste trabalho era estudar a relação entre literatura e cinema na obra
de Jorge Luis Borges levando em consideração uma ideia de épico constantemente evocada
pelo escritor argentino. O projeto de pesquisa, desdobramento de um artigo escrito ao final de
uma disciplina sobre a história do cinema mundial, logo cobrou os custos da sua ambição:
além da amplitude daquilo normalmente chamado de obra de Borges (à qual poderíamos
acrescentar, sem muito esforço, uma lista aparentemente infindável de entrevistas,
declarações, aulas e palestras), a fortuna crítica do autor se expande assustadoramente. Sobre
Borges, há de tudo: Borges y el tango, Borges y la física cuántica, Borges y la Cábala, etc.
Até mesmo Borges y la nada.
Ainda que a definição a respeito do épico e da aproximação entre cinema e literatura
permitisse contornar parcialmente o problema (evidentemente, Borges y el cine, livro de
Edgardo Cozarinsky, foi uma leitura fundamental), os entrecruzamentos de diferentes
matérias e textos (visto que a intertextualidade é uma característica marcante da produção
literária de Borges) indicavam a necessidade de uma restrição ainda maior. Essa dificuldade
se tornou ainda mais clara após três meses de pesquisa em Buenos Aires. Na realidade,
forçosamente reduzidos a dois após a descoberta de que a maioria dos museus, arquivos e
bibliotecas da capital argentina fecham durante janeiro, ápice do intenso e surpreendente
verão portenho.
Diante do volume de artigos e livros que me acompanharam na volta ao Rio de
Janeiro, reunidos com a ajuda imprescindível de argentinos sempre solícitos às demandas
pouco usuais de um brasileiro, a redefinição, ou melhor, o estreitamento do tema foi
inevitável. O resultado toca o que foi pretendido inicialmente, mas está delimitado a um
objeto mais restrito: Invasión (1969), filme cujo roteiro foi escrito por Jorge Luis Borges e
Hugo Santiago Muchnik a partir de um argumento desenvolvido por Borges e Adolfo Bioy
Casares.
12
Com o propósito de abordar o novo objeto e manter a perspectiva original da pesquisa,
o projeto se voltou para a maneira como pontos centrais da narrativa do filme reverberam
questões recorrentes no trabalho de Borges. Para tanto, são tratados inicialmente assuntos que
possibilitam estabelecer essa vinculação: a noção de coragem, considerada especialmente a
partir da narrativa autobiográfica do escritor (‟Os três Borges”); a construção de uma primeira
literatura durante os anos 20 na qual desponta um cenário urbano perdido (‟A invenção de um
escritor”); e finalmente as múltiplas relações entre Borges e o cinematógrafo (‟A magia do
relato”).
Por último, uma breve nota sobre a forma. Como o primeiro capítulo é composto por
ensaios voltados para questões mobilizadas na elaboração da interpretação do filme, restam
pontas aparentemente soltas após a conclusão de cada parte. Todavia, elas serão entretecidas
ao final. Pelo menos, assim espera o autor.
13
1- Da literatura ao cinema
1.1 - O milagre da tela
Em uma conversa com Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges sentenciou: “En
cinematógrafo somos lectores de Madame Delly.” Embora a referência à obra dos irmãos
Petitjean de La Rosière soe como uma condenação, o próprio Bioy Casares indica que o
interesse de Borges pelo cinema permite interpretá-la “como un juicio sobre el cine que se
había hecho, no sobre el cine posible”.1
Frequentador constante de salas de cinema, Borges demonstrava o fascínio
característico de uma geração que acompanhava os desdobramentos de uma linguagem logo
comparada a outras formas de expressão artística. Em um artigo publicado em 1908, o italiano
Ricciotto Canudo, um dos primeiros teóricos do cinema, já apontava para a possibilidade de
constituição, através do cinematógrafo, de uma nova arte que conciliasse os ritmos do espaço
e do tempo, uma “arte plastica in movimento”.2 Ainda que a produção da época pudesse estar
distante desse ideal, Canudo, tal como Borges, percebia a possibilidade de desenvolvimento
de uma arte cinematográfica a partir da realização das potencialidades do cinematógrafo.
Nesse período, o cinema, uma nova experiência estética da virada do séc. XX,
começava a se destacar entre as formas de entretenimento características do cenário urbano,
expressando algumas transformações culturais e subjetivas da modernidade.3 A impressão de
realidade, repetidamente atribuída à projeção cinematográfica (tanto pela definição atingida
pelo aprimoramento dos processos fotográficos quanto pela impressão de movimento
provocada pela projeção seriada de fotogramas), correspondia às expectativas de uma nova
forma de representação que, apenas algumas décadas após a sua invenção, se transformaria na
grande arte da cultura de massa da sociedade moderna. Inicialmente uma atração de cafés e
restaurantes, o cinema passou a ocupar diversas salas de exibição nos centros urbanos e,
apoiado pela multiplicação de cineclubes e publicações dedicadas à produção
cinematográfica, colocou em cena novas narrativas em meio a disputas econômicas e debates
sobre as identidades nacionais.
1 CASARES, Adolfo Bioy. Prólogo. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 7. Com o
pseudônimo de M. Delly, os irmãos Petitjean de La Rosière publicaram, no início do séc. XX, diversos romances
à l'eau de rose, bastante populares pelo caráter moralizante e frequentemente recomendados para a educação
sentimental das jovens da época. 2 Cf. BOSCHI, Alberto. Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. 3 Sobre cinema e modernidade, cf. CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa (org.). O cinema e a
invenção da vida moderna.
14
Em Buenos Aires, o Cinématographe Lumière foi apresentado pela primeira vez no
teatro Odeón em julho de 1896, alguns meses após a célebre exibição dos irmãos Lumière no
Grand Café, em Paris. Pouco tempo depois, em 1900, foi inaugurado o Salón Nacional, a
primeira sala de cinema da capital argentina. Nos anos seguintes, novas salas podiam ser
vistas em diferentes regiões da cidade e a projeção dos trabalhos realizados pelos irmãos
Lumière e por seus operadores foi substituída pela exibição de filmes europeus, americanos e
argentinos.4
Nesse primeiro momento, a produção local dependia principalmente do belga Enrique
Lepage, proprietário de uma loja de material fotográfico localizada próximo a Belgrano. Entre
os funcionários da Casa Lepage, que também importava câmeras e projetores da Europa,
estava o francês Eugenio Py, camarógrafo de alguns dos primeiros filmes rodados em Buenos
Aires: La bandera argentina (1897), Operaciones del Dr. Posadas (1899-1900) e Viaje del
Dr. Campos Salles a Buenos Aires (1900), que documentava a viagem do presidente
brasileiro. Seguindo essa linha documental, Py realizou outros curtas-metragens, tais como La
revista de la escuadra argentina (1901) e Visita del general Mitre al Museo Histórico (1901),
no qual atribuía “al estupendo milagro de la pantalla” a possibilidade de ver, “desde el mundo
de las sombras”, a imagem animada do General Mitre. Ainda em 1901, Eugenio Cardini
dirigiu o curta-metragem Escenas callejeras, a primeira experiência ficcional do cinema
argentino.5
A popularização do cinema ocorreu em meio ao processo de modernização
atravessado pela Argentina desde a segunda metade do séc. XIX. A consolidação do Estado e
a expansão da agricultura e da pecuária, atividades amplamente favorecidas pela associação
comercial com a Grã-Bretanha, bem como os investimentos realizados no sistema portuário e
ferroviário, permitiram a integração e o desenvolvimento da economia e redefiniram a
sociedade local. Diante da escassez de mão-de-obra no país e da crise das economias agrárias
tradicionais da Europa, houve um aumento significativo da imigração. Ao mesmo tempo, a
urbanização e a industrialização decorrentes da ampliação do mercado interno intensificavam
as mudanças e criavam novas oportunidades para os estrangeiros, inclusive no cinema, onde
vários imigrantes viriam a compor o quadro técnico e artístico dedicado à exibição e à
produção cinematográfica.
4 O Teatrógrafo de Robert William Paul e o Vitascópio de Thomas Edison também foram apresentados em
Buenos Aires nesse período. Cf. MARANGHELLO, César. Panorama del cine mudo argentino. In: MOSAICO
CRIOLLO: primera antología del cine mudo argentino, p. 9. 5 Sobre o primeiro cinema na Argentina, cf. DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino
I: la época de oro, p. 11-12; e MAHIEU, José Agustín. Breve historia del cine argentino, p. 4-6.
15
Por outro lado, a necessidade de acomodar os imigrantes no modelo de sociedade
idealizado pela elite política, que buscava formar um consenso e legitimar o projeto
implementado pelo Estado, levantava questões sobre a identidade nacional argentina. A
organização da sociedade também dependia da definição de uma língua, uma cultura e uma
arte. Em um debate que mobilizava muitos intelectuais, eram estabelecidas, a partir de
diferentes doutrinas europeias, especialmente o positivismo, as ideias que orientavam a classe
dirigente.
Embora o novo ordenamento da sociedade possibilitasse a ascensão social, as
desigualdades econômicas e as condições de vida dos trabalhadores, tanto imigrantes quanto
criollos, acentuaram os conflitos sociais. O cinema também representou essa tensão em filmes
como Nobleza gaucha (1915) e Juan sin ropa (1920). Este, dirigido por Héctor Quiroga e
Georges Benoît, apresentava trabalhadores de um frigorífico lutando, através da mobilização
grevista e da organização sindical, contra a exploração capitalista, simbolizada por um patrão
ganancioso e inescrupuloso que utilizava a força policial para defender seus interesses.6
Ao mesmo tempo, as diferenças culturais e linguísticas entre estrangeiros (em sua
maioria italianos, espanhóis e franceses) e criollos foram lentamente abrandadas pela
experiência cotidiana, que aproximava grupos de origens distintas. Essas novas relações
promoveram uma mezcla que resultou na criação de formas culturais híbridas, algumas das
quais, tais como o tango e o lunfardo, se tornariam posteriormente símbolos da cultura
argentina.7
O tango, especialmente, foi um tema recorrente da produção cinematográfica local
ainda durante o cinema mudo. Entre os primeiros experimentos de Eugenio Py, está registrado
um curta-metragem chamado Tango Argentino (1900). O mesmo ocorreu com o
desenvolvimento do cinema falado. Desde o início da década de 30, em uma série de curtas-
metragens produzidos por Federico Valle, era possível escutar a voz de Carlos Gardel nas
salas de cinema. Nessa época, também foi realizado ¡Tango! (1933), o primeiro grande
sucesso de público do cinema sonoro nacional.
6 Cf. DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino I: la época de oro. Buenos Aires, p. 24-
27. Di Núbila nota também que Juan sin ropa é um documento cinematográfico a respeito dos processos sociais
relacionados à ascensão de Hipólito Yrigoyen à presidência da república e às dificuldades enfrentadas pelo
governo para implementar medidas que contrariavam os interesses dos grandes grupos econômicos privados.
Além disso, após o fim da Primeira Guerra Mundial, as tensões sociais foram acentuadas pelo fechamento de
indústrias voltadas para a substituição de importações. Em 1919, o país registrou mais de 300 greves e o embate
mais grave: durante a Semana Trágica, reivindicações pela redução da jornada de trabalho e pelo pagamento de
horas extras escalaram para conflitos nas ruas que terminaram com cerca de 700 mortos e 4.000 feridos. 7 A respeito das transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas na Argentina nesse período, cf.
ROMERO, Luis Alberto. 1916. In: Breve historia contemporánea de la Argentina, edição digital.
16
Durante o processo de modernização, a capital argentina foi remodelada a partir de
padrões europeus. Entre as novas avenidas, edifícios e lojas da Buenos Aires da Belle Époque,
olhares atentos voltavam-se para o “milagro de la pantalla”. Um desses olhares era o do
escritor uruguaio Horacio Quiroga, radicado em Buenos Aires desde 1902. Entre 1918 e 1931,
Quiroga se dedicou à crítica cinematográfica em diversos periódicos portenhos. A nova arte
também foi tematizada por ele em seu trabalho literário. Em “Miss Dorothy Phillips, mi
esposa”, um dos contos nos quais aborda o cinema, ele narra o envolvimento afetivo de um
espectador por atrizes famosas: “Yo pertenezco al grupo de los pobres diablos que salen
noche a noche del cinematógrafo enamorados de una estrella”, diz o protagonista.8 Além da
atividade crítica e do tratamento do cinema através da literatura, Quiroga também tentou
realizar uma adaptação cinematográfica de “La gallina degollada”, estória publicada em
Cuentos de amor de locura y de muerte (1917), e aventurou-se na escrita de La jangada,
roteiro baseado nos contos “La bofetada”, do mesmo livro, e “Los mensú”, de El salvaje
(1920).9
A aproximação de Quiroga ao cinema expressa uma mudança de sensibilidade que
marcou o imaginário e algumas produções intelectuais da época. Entretanto, o cinema
também enfrentava resistência. Em um artigo publicado na revista Atlántida em 1922, o
próprio Quiroga comenta o distanciamento mantido pelos intelectuais, que frequentemente
desprezavam a produção cinematográfica. Um dos motivos desse desdém seria exatamente a
popularidade da nova arte: “Acaso el intelectual cultive furtivamente los solitarios cines de su
barrio; pero no confesará jamás su debilidad por un espectáculo del que su cocinera gusta
tanto como él, y el chico de la cocinera tanto como ambos juntos.”10
Não obstante essa rejeição inicial, a “décima musa”, segundo a expressão de Jean
Cocteau, começou a despertar o interesse de intelectuais e a conquistar alguns escritores
argentinos. Jorge Luis Borges e o seu amigo Adolfo Bioy Casares estavam justamente entre
aqueles que foram seduzidos pelo cinema.
8 QUIROGA, Horacio. Miss Dorothy Phillips, mi esposa. In: Selección de cuentos I, p. 31. 9 Sobre a relação entre Horacio Quiroga e o cinema, cf. MARTÍNEZ, Carlos Dámaso. Estudio preliminar. In:
QUIROGA, Horacio. Arte y lenguaje del cine, p. 15-37. 10 QUIROGA, Horacio apud MARTÍNEZ, Carlos Dámaso, op. cit., p. 30-31.
17
A elite portenha em uma cena da Buenos Aires da Belle Époque (cartão-postal do
hipódromo de Palermo) e a representação cinematográfica das tensões sociais do
período (cartaz de Juan sin ropa, filme argentino lançado em 1919).
18
1.2- Os três Borges
Contemporâneo das transformações que redefiniam a Argentina e do momento inicial
de afirmação do cinema, Borges, nascido na casa dos avós maternos no centro de Buenos
Aires em 1899, cresceu em Palermo, naquele momento um bairro pobre de imigrantes
italianos situado nos limites da cidade. Em Evaristo Carriego (1930), um dos seus primeiros
livros, ele realiza um breve levantamento dos acontecimentos que transformaram a
propriedade de Domínguez Palermo (um siciliano que, segundo a fonte consultada por
Borges, era um dos fornecedores de carne da cidade entre 1605 e 1614) na “despreocupada
pobreza” do bairro popular do final do séc. XIX, em cujas fronteiras amalgamavam-se
Buenos Aires e la pampa: “Hacia el poniente quedaba la miseria gringa del barrio. El término
‘las orillas’ cuadra con sobrenatural precisión a esas puntas ralas, en que la tierra asume lo
indeterminado del mar y parece digna de comentar la insinuación de Shakespeare: ‘La tierra
tiene burbujas, como las tiene el agua.’”11
Em um ensaio autobiográfico publicado originalmente em inglês em 1970, Borges
descreve alguns aspectos do bairro da sua infância, no qual conviviam trabalhadores e
pequenos criminosos:
Palermo at that time – the Palermo where we lived, Serrano and Guatemala –
was on the shabby northern outskirts of town, and many people, ashamed of
saying they lived there, spoke in a dim way of living on the Northside. We
lived in one of the few two-story homes on our street; the rest of the
neighborhood was made up of low houses and vacant lots. I have often
spoken of this area as a slum, but I do not quite mean that in the American
sense of the word. In Palermo lived shabby, genteel people as well as more
undesirable sorts.12
O bairro também era conhecido pela presença dos compadritos, um tipo social do
subúrbio vinculado ao tango e muitas vezes associado à criminalidade: “There was also a
Palermo of hoodlums, called compadritos, famed for their knife fights, but this Palermo was
only later to capture my imagination, since we did our best – our successful best – to ignore
it.” Além de apontar o distanciamento mantido pela família, Borges circunscreve o mundo da
sua infância aos limites da casa de dois andares que contrastava com as casas mais simples do
bairro: “As for myself, I was hardly aware of the existence of compadritos, since I lived
essentially indoors.”13
11 BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego, p. 21 e 24. 12 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 135-136. 13 Ibid., p. 136.
19
Esses limites começavam com a construção de uma tradição familiar orientada pela
valorização dos seus antepassados militares. Um trabalho realizado cuidadosamente por sua
mãe, Leonor Acevedo, neta do coronel Isidoro Suárez, um combatente da guerra de
independência. O panteão familiar estendia-se também pela genealogia paterna, na qual a
reverência era direcionada à memória do avô do escritor, o coronel Francisco Borges Lafinur,
morto durante uma guerra civil. Jorge Luis Borges, segundo Emir Monegal, um dos seus
principais biógrafos, “nació y fue criado en una casa que era hasta cierto punto un museo
familiar”, onde “estuvo rodeado por los objetos sagrados de la historia familiar y por la
repetición ritual de las hazañas de sus heroicos antepasados”.14 Em uma entrevista concedida
a Ronald Christ em 1966, Borges associa o seu interesse pela poesia épica a essa tradição:
RONALD CHRIST
Epic literature has always interested you very much, hasn’t it?
BORGES
Always, yes. For example, there are many people who go to the cinema and
cry. That has always happened: It has happened to me also. But I have never
cried over sob stuff, or the pathetic episodes. But, for example, when I saw
the first gangster films of Joseph von Sternberg, I remember that when there
was anything epic about them – I mean Chicago gangsters dying bravely –
well, I felt that my eyes were full of tears. I have felt epic poetry far more
than lyric or elegy. I always felt that. Now that may be, perhaps, because I
come from military stock. My grandfather, Colonel Francisco Borges
Lafinur, fought in the border warfare with the Indians, and he died in a
revolution; my great-grandfather, Colonel Suárez, led a Peruvian cavalry
charge in one of the last great battles against the Spaniards; another great-
great-uncle of mine led the vanguard of San Martin’s army – that kind of
thing. And I had, well, one of my great-great-grandmothers was a sister of
Rosas – I’m not especially proud of that relationship because I think of
Rosas as being a kind of Perón in his day; but still all those things link me
with Argentine history and also with the idea of a man's having to be brave,
no?15
Além de justificar a sua atração pela épica e traçar a genealogia militar da família,
evocando as proezas atribuídas a alguns dos seus antepassados (incluindo um tio-bisavô que
teria participado das campanhas militares de José de San Martín), Borges estabelece uma
relação entre a literatura e o cinema e menciona Joseph von Sternberg, diretor austro-húngaro
que havia construído uma carreira nos Estados Unidos. O paralelo é realizado a partir de uma
noção de épico associada à demonstração de coragem durante um confronto: Borges confessa
se emocionar ao ver gangsters morrendo bravamente em cenas “épicas” de filmes de von
Sternberg.
14 MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 12. 15 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.
Entrevista realizada por Ronald Christ.
20
Na mesma entrevista, ele aponta algumas razões pelas quais desenvolvia o tema da
bravura em seu trabalho literário:
RONALD CHRIST
Would you say that your own stories have their point of origin in a situation,
not in a character?
BORGES
In a situation, right. Except for the idea of bravery, of which I’m very fond.
Bravery, perhaps, because I’m not very brave myself.
RONALD CHRIST
Is that why there are so many knives and swords and guns in your stories?
BORGES
Yes, that may be. Oh, but there are two causes there: first, seeing the swords
at home because of my grandfather and my great-grandfather and so on.
Seeing all those swords. Then I was bred in Palermo; it all was a slum then,
and people always thought of themselves – I don't say that it was true but
that they always thought of themselves – as being better than the people who
lived on a different side of the town, as being better fighters and that kind of
thing. Of course, that may have been rubbish. I don't think they were
especially brave. To call a man, or to think of him, as a coward – that was
the last thing; that's the kind of thing he couldn't stand. I have even known of
a case of a man coming from the southern side of the town in order to pick a
quarrel with somebody who was famous as a knifer on the north side and
getting killed for his pains. They had no real reason to quarrel: They had
never seen each other before; there was no question of money or women or
anything of the kind. I suppose it was the same thing in the West in the
States. Here the thing wasn’t done with guns, but with knives.16
Ao expressar o seu interesse pelo tema da coragem, Borges indica que a escolha
poderia estar relacionado à sua falta de bravura. A confissão é seguida por uma justificativa a
respeito da sua preferência. A recorrência de armas em seus contos remeteria à recordação das
espadas dos seus antepassados militares guardadas no “museu familiar” e aos anos vividos em
Palermo. Crescer nesse bairro pobre da periferia da cidade, significaria, mesmo para uma
criança distante das ruas e dos temidos compadritos, estar ligado a um imaginário onde o
domínio das armas era basilar. Além de articular tradição militar e cultura local, ele aproxima
o modo de vida em Palermo, onde os homens se consideravam mais corajosos que em outras
partes da cidade, da conquista do oeste norte-americano. Tanto no bairro italiano de Buenos
Aires quanto nas fronteiras dos Estados Unidos, os confrontos possuíam um valor per se e, a
partir de um ideal de coragem, definiriam o valor de cada indivíduo. A diferença estaria no
método: enquanto os cowboys do Far West usavam revólveres, os compadritos de Palermo
lançavam mão de facas na definição cotidiana do mérito pessoal.
16 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.
Entrevista realizada por Ronald Christ.
21
Esse ideal de coragem estaria vinculado a um código de comportamento de uma
formação social mais antiga, segundo o qual a proximidade física dos enfrentamentos com
facas e punhais aumentaria o valor pessoal:
RONALD CHRIST
Using the knife takes the deed back to an older form of behavior?
BORGES
An older form, yes. Also, it is a more personal idea of courage. Because you
can be a good marksman and not especially brave. But if you’re going to
fight your man at close quarters, and you have knives... [...] I remember that
a brave man, when I was a young man in the slums, he was always supposed
to carry a short dagger, and it was worn here. Like this (pointing to his
armpit), so it could be taken out at moment’s notice, and the slum word for
the knife – or one of the slum words – well, one was el fierro, but of course
that means nothing special. But one of the names, and that has been quite
lost – it’s a pity – was el vaivén, the “come and go”. In the word come-and-
go (making gesture) you see the flash of the knife, the sudden flash.17
Borges parece fascinado pelo brilho das lâminas dos punhais. Nesse exercício
imaginativo, que contrasta sutilmente com a afirmação de que teria crescido distante do
cotidiano de Palermo, os enfrentamentos nas ruas do bairro figuram o ideal de coragem
identificado no passado da família. Assim, Palermo e a tradição familiar são entretecidos na
composição de uma narrativa a respeito de uma sociedade pré-moderna fundamentada em um
valor estável de bravura que definia a honra masculina. Esse mundo, devido aos antepassados
militares do escritor, teria lhe oferecido a visão de um destino pessoal que, no entanto, não se
concretizaria: “So, on both sides of my family, I have military forebears; this may account for
my yearning after that epic destiny which my gods denied me, no doubt wisely.”18
Os deuses o afastaram do seu desejo, mas Borges se mostra resignado, quase
agradecido: certamente, afirma, foi uma decisão sábia. Além da suposta falta de coragem do
escritor, havia outra justificativa para a sua incompatibilidade com um “destino épico”:
I was always very nearsighted and wore glasses, and I was rather frail. As
most of my people had been soldiers – even my father’s brother had been a
naval officer – and I knew I would never be, I felt ashamed, quite early, to
be a bookish kind of person and not a man of action. Throughout my
boyhood, I thought that to be loved would have amounted to an injustice. I
did not feel I deserved any particular love, and I remember my birthdays
filled me with shame, because everyone heaped gifts on me when I thought
that I had done nothing to deserve them – that I was a kind of fake. After the
age of thirty or so, I got over the feeling.19
17 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.
Entrevista realizada por Ronald Christ. 18 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 140. 19 Ibid., loc. cit.
22
Os problemas de visão e a fragilidade corporal teriam impedido Borges, desde muito
cedo, de pretender fazer parte das fileiras militares. Entretanto, embora revele o seu
sentimento de culpa por aquilo que seria um “desvio literário”, a aproximação do escritor aos
livros começou em sua própria casa. A consulta frequente à vasta biblioteca do pai, Jorge
Guillermo Borges, advogado e professor de psicologia, foi determinante para a sua formação
intelectual: “If I were asked to name the chief event in my life, I should say my father's
library. In fact, I sometimes think I have never strayed outside that library. I can still picture
it. It was in a room of its own, with glass-fronted shelves, and must have contained several
thousand volumes.”20
No prólogo de Evaristo Carriego, acrescentado ao livro na década de 50, Borges já
ressaltava a importância dessa biblioteca na construção do seu imaginário infantil, marcado
pela presença de personagens literários:
Yo creí, durante años, haberme criado en un suburbio de Buenos Aires, un
suburbio de calles aventuradas y de ocasos visibles. Lo cierto es que me crié
en un jardín, detrás de una verja con lanzas, y en una biblioteca de ilimitados
libros ingleses. Palermo del cuchillo y de la guitarra andaba (me aseguran)
por las esquinas, pero quienes poblaron mis mañanas y dieron agradable
horror a mis noches fueron el bucanero ciego de Stevenson, agonizando bajo
las patas de los caballos, y el traidor que abandonó a su amigo en la luna y el
viajero del tiempo, que trajo del porvenir una flor marchita, y el genio
encarcelado durante siglos en el cántaro salomónico y el profeta velado del
Jorasan, que detrás de las piedras y de la seda ocultaba la lepra.21
A biblioteca do pai pode ser considerada um símbolo do conflito entre armas e letras
reivindicado por Borges. Essa tensão, como aponta Emir Monegal, se tornou um dos pontos
centrais do mito pessoal que o escritor construiu ao longo da vida: “El mito personal de
Borges comienza aquí: es, a un mismo tiempo, un mito de desesperanza por no haber sido un
hombre de armas y también un mito de compensación.” A compensação viria inicialmente
através das leituras realizadas em casa: “El lector y el escritor encontraron en los libros, en el
deseo y en la culpa que los libros despertaban, lo que faltaba en su vida ‘real’.” Entretanto, a
escolha de Borges não era original: seu pai, intelectual e aspirante a escritor, o havia
precedido nesse movimento de ruptura.22
20 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 140. 21 BORGES, Jorge Luis. Evaristo Carriego, p. 9. 22 Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 19. Monegal prossegue com um exemplo
interessante de psicologia de autor: “Como Padre le había precedido en esa senda – también fue un descendiente
de guerreros, que eligió los libros y la ley – Borges debió encontrar, muchos años después, una solución del
latente conflicto edípico. En su caso, el parricidio llegaría a asumir un disfraz paradójico: la sumisión total a la
voluntad de su padre.”
23
Além da precessão, Jorge Guillermo Borges (que um dia disse ao filho que soldados,
uniformes, quartéis e bandeiras em breve seriam coisas do passado)23 pretendia mantê-lo
afastado da tradição militar da família: “From the time I was a boy, when blindness came to
him, it was tacitly understood that I had to fulfill the literary destiny that circumstances had
denied my father. This was something that was taken for granted (and such things are far
more important than things that are merely said). I was expected to be a writer.”24
O incentivo de Jorge Guillermo Borges à carreira literária do filho seria expresso
através de uma educação voltada para a cultura geral (Borges teria herdado a paixão pelos
dicionários e enciclopédias) e fundamentada no hábito de leitura e no diálogo. O
desenvolvimento da sua escrita, no entanto, teria ocorrido sem a orientação paterna: “My
father never interfered. He wanted me to commit all my own mistakes, and once said,
‘Children educate their parents, not the other way around.’”25
Na narrativa autobiográfica de Borges, às vezes tratada com esmero literário, a
trajetória do pai pode ser considerada um elemento de antecipação. Esse aspecto do relato foi
desenvolvido no ensaio autobiográfico através da definição de alguns precursores de Jorge
Guillermo Borges. Embora ofuscada pela tradição militar, Borges traça também uma tradição
literária familiar:
A tradition of literature ran through my father’s family. His great-uncle Juan
Crisóstomo Lafinur was one of the first Argentine poets, and he wrote an
ode on the death of his friend General Manuel Belgrano, in 1820. One of my
father’s cousins, Álvaro Melián Lafinur, whom I knew from childhood, was
a leading minor poet and later found his way into the Argentine Academy of
Letters. My father’s maternal grandfather, Edward Young Haslam, edited
one of the first English papers in Argentina, the Southern Cross, and was a
Doctor of Philosophy or Letters, I’m not sure which, of the University of
Heidelberg.26
Se o pai havia projetado desde cedo um destino literário para o filho, a frustração
expressa por Borges devido à não realização de um destino épico poderia estar relacionada às
expectativas da mãe, a guardiã do relicário militar da família. Talvez Leonor Acevedo tivesse
sonhado em algum momento com um Borges coronel. Ainda assim, a decisão do filho de
seguir uma carreira literária provavelmente não representaria uma ruptura tão surpreendente
para ela, casada com um intelectual que recebia frequentemente a visita de amigos escritores.
23 A lista, na verdade, é mais longa: “My father was very intelligent and, like all intelligent men, very kind.
Once, he told me that I should take a good look at soldiers, uniforms, barracks, flags, churches, priests and
butcher shops, since all these things were about to disappear, and I could tell my children I had actually seen
them.” BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 138. 24 Ibid., p. 142. 25 Ibid., loc. cit. 26 Ibid., p. 141-142.
24
Curiosamente, em alguns momentos o próprio Borges parece esquecer do seu desejo
por um outro destino. Durante uma entrevista a Richard Burgin, ele se refere à carreira
literária como um projeto de toda a sua vida. O mundo das letras não seria um refúgio, mas
um território a ser conquistado:
RICHARD BURGIN
Was there ever a time when you didn’t love literature?
BORGES
No, I always knew. I always thought of myself as a writer, even before I
wrote a book. Let me say that even when I had written nothing, I knew that I
would. I do not think of myself as a good writer but I knew that my destiny
or my fate was a literary one, no? I never thought of myself as being
anything else.
RICHARD BURGIN
You never thought about taking up any career? I mean, your father was a
lawyer.
BORGES
Yes. But after all, he had tried to be a literary man and failed. He wrote some
very nice sonnets. But he thought that I should fulfill that destiny, no? And
he told me not to rush into print.27
Comparada com a afirmação do ensaio autobiográfico publicado pouco tempo depois,
a resposta de Borges sobressai pela forma como ele ressalta a sua vocação literária, sem
nenhuma referência à pretendida carreira militar. Por outro lado, assim como o fez no ensaio,
ele vincula a sua escolha pelas letras ao desejo paterno. Borges, o filho, deveria realizar aquilo
que o destino negou a Borges, o pai.
A decepção de Jorge Guillermo Borges, impossibilitado de seguir uma carreira
literária, era ainda mais acentuada pela sua própria posição na família: um intelectual que
precisava lidar com a sombra de um outro pai, o coronel Francisco Lafinur. Ao analisar o
romance El caudillo, escrito por Jorge Guillermo e publicado em 1921, Monegal aponta para
a presença de um tema (desenvolvido também por Borges) que expressaria essa tensão: a
disputa entre homens fortes ligados à natureza e homens frágeis sensibilizados pela educação
e pela cultura. Jorge Guillermo Borges, confrontado com a figura heroica do pai, não
conseguiria evitar um sentimento de limitação e inadequação que, por sua vez, teria sido
herdado por Borges. 28
27 Cf. BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges, p. 1. 28 Monegal apresenta bons argumentos biográficos e literários para defender a sua posição: “Es fácil reconocer
en el protagonista de El caudillo, en ese Carlos semieuropeo, un alter ego del autor. En muchos sentidos, eran
similares. Pero lo realmente importante es que al tratar de describir su propio predicamento, Padre se preocupa
también por comprender la psicología del caudillo. Al confrontar a Carlos con éste, Padre estaba explorando una
de sus obsesiones privadas: el sentimiento de inadecuación que experimentaba al confrontar su destino con el de
su propio padre. Una de las obras que había proyectado y que aparentemente hasta llegó a escribir, según
25
Ainda que não houvesse de fato um vínculo afetivo dessa natureza entre as três
gerações, o interesse de Borges pela literatura épica, o desenvolvimento do tema da bravura
no seu trabalho literário e as referências recorrentes aos seus antepassados militares e à vida
em Palermo demonstram a valorização de um ideal de coragem. Dito de outra forma, mesmo
que o seu desejo pelo que chama de um destino épico não fosse “autêntico”, Borges precisou
inventá-lo na sua narrativa autobiográfica. Nela, a perda das armas (perda que implicava uma
queda) é compensada pelo refúgio encontrado na biblioteca do pai, na qual Borges
reencontrava o mundo pré-moderno do panteão militar da família (a preferência pela épica
aponta para isso) por meio de uma tradição cultural distinta.
Essa cultura livresca era representada especialmente pelo inglês, primeira língua na
qual Borges foi alfabetizado. Contudo, não se tratava de uma excentricidade literária. Na casa
em Palermo, onde também morava Frances Haslam (a avó paterna nascida na Inglaterra), o
idioma era comum. Borges foi inclusive educado por uma preceptora inglesa até os nove
anos, quando finalmente ingressou em uma escola pública: “I did not start school until I was
nine. This was because my father, as an anarchist, distrusted all enterprises run by the State.”
A transição para a educação do Estado teria sido difícil: “As I wore spectacles and
dressed in an Eton collar and tie, I was jeered at and bullied at by most of my schoolmates,
who were amateur hooligans.”29 Na entrevista realizada por Richard Burgin, Borges é
questionado a respeito desse período e revela as dificuldades de adaptação que enfrentou:
RICHARD BURGIN
You never got into any fights in childhood?
BORGES
Yes, I did. But that was a code. I had to do it. Well, my eyesight was bad; it
was very weak and I was usually defeated. But it had to be done. Because
there was a code and, in fact, when I was a boy, there was even a code of
dueling. But I think dueling is a very stupid custom, no? After all, it’s quite
irrelevant. If you quarrel with me and I quarrel with you, what has our
swordsmanship or our marksmanship to do with it? Nothing – unless you
have the mystical idea that God will punish the wrong. I don’t think anybody
has that kind of idea, no? Well, suppose we get back to more... because, I
don’t know why, I seem to be rambling on.30
Como observa Monegal, é irônico notar que Borges, o garoto de Eton humilhado
repetidamente na escola pública, tenha se tornado muito tempo depois no escritor que
destacava, no seu trabalho literário, o conflito, a força na luta corpo a corpo e a destreza no
Borges, era el drama Hacia la nada, ‘sobre la desilusión de un hombre ante su hijo’. En el argumento de ese
drama es posible leer un reconocimiento de sus limitaciones como hombre, cuando se mide contra las heroicas
proporciones del coronel Borges.” Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 79. 29 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 143. 30 Cf. BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges, p. 28-29.
26
manuseio de armas brancas e armas de fogo. Na resposta a Richard Burgin, não há nenhum
sinal do entusiasmo demonstrado por Borges ao discorrer sobre os personagens e as batalhas
que representavam a tradição militar da família ou a respeito dos compadritos e dos
confrontos que animavam o cotidiano de Palermo.31 Há claramente uma desvinculação entre a
realidade vivenciada pelo jovem incapaz de se adaptar às normas de um ambiente escolar
hostil e o imaginário construído pelo escritor a respeito da violência, uma cisão que permite a
Borges preservar o seu mito pessoal.
Por outro lado, a descrição dos embates escolares, ainda que atravessada pela crítica
ao duelo (“um costume bastante estúpido” e “irrelevante”, cuja única justificativa possível
seria a crença em uma ideia mística de punição divina), também demonstra a aceitação de um
código de honra. Mesmo que o desfecho das disputas estivesse determinado de antemão pela
sua fragilidade corporal e falta de habilidade física, Borges afirma ter seguido as regras que
norteavam os duelos juvenis (“But it had to be done”), uma atitude que ressoava a moral das
ruas de Palermo: tomar parte nesses rituais de iniciação ao universo masculino poderia
evidenciar a sua fraqueza e inaptidão, mas comprovaria a sua coragem.
Além disso, a sua concordância o aproximava de um outro Borges, o coronel
Francisco Borges Lafinur, aquele que Jorge Guillermo Borges, o intelectual aspirante a
escritor, talvez tenha desiludido: o reconhecimento da necessidade de cumprimento de uma
norma de conduta relacionada ao combate é uma característica de estruturas hierárquicas
militares que, em nome da preservação de algo considerado maior do que aqueles que as
constituem, valorizam discursivamente a sujeição, a conformidade e o sacrifício.
31 Cf. MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria, p. 92.
27
Dois Borges: o militar Francisco Borges Lafinur (acima) e Jorge Guillermo Borges
(abaixo, no centro), cercado por amigos intelectuais
28
1.3- A invenção de um escritor
O pesadelo escolar de Borges não duraria muito. Em 1914, seu pai, já com graves
problemas de visão, se aposentou e levou a família para uma temporada na Europa. Segundo
o escritor, a viagem não implicava em uma despesa muito elevada devido à valorização do
peso argentino. Depois de uma passagem pela França, a família se estabeleceu em Genebra,
onde o pai iniciou um tratamento com um oftalmologista enquanto Borges e a irmã, Norah,
retomaram os estudos.
Devido ao início da Primeira Guerra Mundial, que limitou o deslocamento pela
Europa, a família precisou redefinir os planos de viagem. Durante esses anos, Borges recorda
apenas ter cruzado os Alpes para visitar o norte da Itália. Em 1919, depois do término do
conflito, a família deixou a Suíça e seguiu para a Espanha: Barcelona, Maiorca, Sevilha e,
finalmente, Madri. A passagem pela Andaluzia foi marcada pela publicação do primeiro
poema de Borges (“Himno del mar”) na revista Grecia e pelo seu envolvimento com o
movimento ultraísta, reforçado após a ida à capital espanhola e a sua aproximação com o
andaluz Rafael Cansinos Assens, que reunia um círculo literário em torno das suas tertúlias
semanais: “Every Saturday I would go to the Café Colonial, where we met at midnight, and
the conversation lasted until daybreak. Sometimes there were as many as twenty or thirty of
us. The group despised all Spanish local color – cante jongo and bullfights. They admired
American jazz, and were more interested in being Europeans than Spaniards.”32
Em 1921, ao retornar à Argentina, Borges teria destruído dois livros escritos nesse
período: Los Naipes del Tahúr, de ensaios políticos e literários (“I was still an anarchist and a
freethinker and in favor of pacifism”, escreve em seu ensaio autobiográfico), e The Red
Psalms ou The Red Rhythms, com cerca de vinte poemas escritos em versos livres que,
segundo o escritor, louvavam a Revolução Russa, a irmandade entre os homens e o
pacifismo.33
A Buenos Aires encontrada por Borges no seu retorno havia certamente mudado. O
crescimento demográfico e urbano redefinira os limites da cidade, que avançava sobre a
planície do pampa:
32 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 151. “I still
like to think of myself as his disciple”, escreve Borges no início da década de 70. Cf. ibid., loc. cit. 33 Cf. ibid., p. 153. Borges recorda nesse ensaio o nome de alguns poemas de The Red Psalms ou The Red
Rhythms que teriam sido publicados em revistas literárias: Épica Bolchevique, Trinchera e Rusia. Os dois
últimos foram incluídos posteriormente em BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1919-1929), edição
digital.
29
It came to me as a surprise, after living in so many European cities – after so
many memories of Geneva, Zurich, Nîmes, Córdoba, and Lisbon – to find
that my native town had grown, and that it was now a very large, sprawling,
and almost endless city of low buildings with flat roofs, stretching west
toward what geographers and literary hands call the pampa.34
A volta de Borges e a surpresa com a nova paisagem urbana redefiniram a sua relação
com a cidade: “It was more than a homecoming; it was a rediscovery. I was able to see
Buenos Aires keenly and eagerly because I had been away from it for a long time. Had I
never gone abroad, I wonder whether I would ever have seen it with the peculiar shock and
glow that it now gave me.” Rever aquela cidade, que era e, ao mesmo tempo, não era a cidade
na qual havia crescido, provocou uma reação poética no jovem escritor ansioso por conquistar
um espaço na terra natal. O seu primeiro livro, publicado em 1923, pode ser considerado uma
resposta literária ao espanto experimentado na sua chegada: “The city – not the whole city, of
course, but a few places in it that became emotionally significant to me – inspired the poems
of my first published book, Fervor de Buenos Aires.” O livro também possuía para ele um
caráter seminal: “And yet, looking back on it now, I think I have never strayed beyond that
book. I feel that all my subsequent writing has only developed themes first taken up there; I
feel that all during my lifetime I have been rewriting that one book.”35 Distribuído com a
ajuda de amigos, Fervor de Buenos Aires foi seguido por Luna de enfrente (1925),
Inquisiciones (1925), El tamaño de mi esperanza (1926), El idioma de los argentinos (1928),
Cuaderno San Martín (1929) e Evaristo Carriego (1930), além de publicações em jornais e
revistas:
This period, from 1921 to 1930, was one of great activity, but much of it was
perhaps reckless and even pointless. I wrote and published no less than
seven books – four of them essays and three of them verse. I also founded
three magazines and contributed with fair frequency to nearly a dozen other
periodicals, among them La Prensa, Nosotros, Inicial, Criterio, and Síntesis.
This productivity now amazes me as much as the fact that I feel only the
remotest kinship with the work of these years. Three of the four essay
collections – whose names are best forgotten – I have never allowed to be
reprinted.36
Além da intensa produção literária, com a qual o Borges do início dos anos 70 afirma
sentir apenas uma remota proximidade (Fervor de Buenos Aires é uma notável exceção), a
década de 20 também é lembrada pela amizade com Macedonio Fernández, uma relação que
34 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 153. 35 Ibid., p. 153, 153-154 e 155. Esse último comentário confirma a observação feita por Borges no prólogo do
livro, incluído na publicação em 1969: “Para mí, ‘Fervor de Buenos Aires’ prefigura todo lo que haría
después.” Cf. BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: Poesía completa, edição digital. 36 Ibid., p. 159.
30
teria sido determinante na sua trajetória intelectual: “Perhaps the major event of my return
was Macedonio Fernández. Of all the people I have met in my life – and I have met some
quite remarkable men – no one has ever made so deep and so lasting an impression on me as
Macedonio.”37
Amigo de Jorge Guillermo, Macedonio estava no porto de Buenos Aires esperando
pelo retorno da família à Argentina em 1921. Algum tempo depois, se tornaria o substituto
portenho de Cansinos Assens:
We met on Saturday evening at a café – the Perla, in the Plaza del Once.
There we would talk till daybreak, Macedonio presiding. As in Madrid
Cansinos had stood for all learning, Macedonio now stood for pure thinking.
At the time, I was a great reader and went out very seldom (almost every
night after dinner, I used to go to bed and read), but my whole week was lit
up with the expectation that on Saturday I’d be seeing and hearing
Macedonio.38
Além das reflexões de Macedonio Fernández, que ponderava sobre problemas
filosóficos (tais como a natureza onírica da realidade ou a impossibilidade de comunicação da
verdade), Borges também seria influenciado por outros temas do debate intelectual portenho
desse período. Nas primeiras décadas do séc. XX, a cultura dos intelectuais em Buenos Aires
era pautada pelas diversas reações às mudanças resultantes do processo de modernização. A
alteração da paisagem urbana e a constituição de novas formas de sociabilidade provocavam
respostas que combinavam modernidade europeia e especificidade regional. A partir desses
eixos, eram definidas as posições em relação a novos e velhos problemas que caracterizavam
as discussões culturais a respeito da defesa da identidade local e da recepção de ideias e
práticas vindas da Europa. 39
Além disso, as transformações que reordenavam o campo intelectual também
produziam uma cisão mais ampla no imaginário portenho. A cidade na qual se vivia (o
presente das eternas mudanças) não correspondia mais à cidade recordada, agora o cenário
perdido da infância ou da juventude.40
Os intelectuais, inseridos em um processo de profissionalização e especialização cada
vez mais acentuado, tentavam definir os limites estéticos e políticos legítimos, estabelecendo
assim novos espaços de leitura, crítica e produção.41 Nesse reordenamento, atravessado por
37 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 156. 38 Ibid., p. 156-157. 39 Cf. SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 15. 40 Cf. ibid., p. 17. 41 Sarlo relaciona os principais pontos desse debate: “La cuestión de la lengua (quiénes hablan y escriben un
castellano ‘aceptable’); de las traducciones (quienes están autorizados y por cuáles motivos a traducir);
del cosmopolitismo (cuál es el internacionalismo legítimo y cuál una perversión de tendencias que
31
uma configuração espacial e social instável e acompanhado pela formação de uma nova
sensibilidade, a cidade era apontada ora como a origem irrecuperável, ora como o destino
aguardado. Entre a celebração e a denúncia da modernização, entre a busca de um passado
perdido e a visão sedutora do cenário internacional, a própria cidade se tornaria um tema do
debate estético-ideológico. Nessa modernidade periférica, tal como é referida por Beatriz
Sarlo, os projetos renovadores (lastreados na importação de bens, discursos e práticas)
concorriam com aspectos defensivos e residuais vinculados à formação criolla. Esse embate
favoreceu a constituição de uma cultura de mezcla permeada pelo choque entre a
representação do futuro e a da história. Uma cultura que incorporava o novo ao mesmo tempo
que lamentava a irreversibilidade das mudanças: “La modernidad es un escenario de pérdida
pero también de fantasías reparadoras. El futuro era hoy.”42
O programa literário de Borges nos anos 20 entrelaça a lembrança de uma cidade
encoberta e a imagem da nova cidade fundada pelos processos modernizadores. Nessa junção,
para a qual a experiência proporcionada pelo envolvimento com as vanguardas artísticas
europeias foi decisiva, ele realiza uma leitura nostálgica de um espaço urbano que
materializava o território perdido da infância (o ubi sunt do sentimentalismo autobiográfico
identificado por Sarlo). Essa leitura é o ponto de partida para a elaboração do passado da sua
modernidade estética e para a estruturação de uma posição como escritor, um locus literário
que será expresso através do que Sarlo chama de “criollismo urbano de vanguardia” e
defendido a partir da profícua produção escrita de Borges durante essa década. Ainda que o
escritor “maduro” recuse posteriormente os excessos ultraístas do jovem poeta que retornava
da Europa, bem como os seus desenvolvimentos criollistas, o projeto que assume nos anos 20
está ligado à constituição de uma língua literária para Buenos Aires e à instauração de uma
dimensão mítica para a cidade.
Esse programa implicava uma reinterpretação das tradições culturais do rio da Prata
desvinculadas das transformações provocadas pela modernização e pela imigração. Matizada
pelas estéticas vanguardistas, a releitura e a intervenção de Borges renova a língua literária
local e promove o encontro de autores regionais com uma seleção particular de escritores
falsamente se reivindican universales); del criollismo (cuáles formas responden a la nueva estética y
cuáles a las desviaciones pintoresquistas o folklóricas); de la política (qué posición del arte frente a las
grandes transformaciones, cuál es la función del intelectual, qué significa la responsabilidad pública de
los escritores) son algunos de los tópicos presentes en el debate. Tras ellos, y ya entrada la década del
treinta, las inevitables preguntas sobre la Argentina: como se traicionaron las promesas fundadoras, cuál
es el origen y la naturaleza del mal que nos afecta y, en todo caso, si se trata de un fracaso basado
en límites internos o resulta de una operación planeada más allá de nuestras fronteras, en los grandes
centros imperiales.” SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, p. 27-28. 42 Cf. ibid., p. 28-29.
32
ligados à chamada literatura universal. Ainda que resultasse em uma combinação conflitiva
(especialmente devido ao contraste entre a poética borgiana desse período e a poética realista,
representativa e costumbrista associada ao criollismo), a reivindicação da literatura gauchesca
permitiu a Borges estabelecer um acercamento com a tradição que, apesar de inicialmente
marcado pelo vanguardismo, possibilitará a ele definir posteriormente a sua oposição aos
escritores ligados ao modernismo: “Al mismo tiempo que Borges realiza estos movimientos,
se distancia de su primer e incondicional fervor ultraísta y, en los mismos libros en que
despliega una poética de la imagen, comienza a criticarla.”43
O olhar nostálgico de Borges para a cidade também concorre para a elaboração de
uma topologia mítica que será utilizada na demarcação de um espaço de criação literária
original. A contemplação do escritor busca na paisagem os elementos que reforçam a
insularidade do poeta e legitimam o seu canto: “la ciudad criolla que persiste en la ciudad
moderna, la llanura pampeana que se refleja en el patio, en los cercos vivos del suburbio, en
las calles ‘sin vereda de enfrente’, es decir las calles que tocan la pampa y se pierden en la
extensión de un paisaje familiar.”44
Na sua lanterna mágica poética, Borges projeta a amplitude da planície pampiana
adentrando as casas nas fronteiras da cidade e estendendo sobre ela a sombra também mítica
de um mundo agora ameaçado pelas transformações econômicas e sociais e pelo avanço
vertiginoso da urbe:
En este mito, el pasado es un espacio donde se reinventa la llanura heroica
de las guerras del siglo XIX, la violencia que es la madre del coraje suicida o
resignado del gaucho, los códigos de honor de una sociedad rural
premoderna. Sin esa dimensión cultural, Buenos Aires moderna sería una
ciudad sin raíces, producida por la abundancia económica, la inmigración,
las instituciones de las elites letradas. Para Borges, en cambio, es una ciudad
que muestra su mapa histórico, al que corresponden distintas intensidades de
sentimiento.45
Nesse ponto, as asserções sociológicas de Beatriz Sarlo tocam as considerações
psicanalíticas de Emir Monegal. O sentimento nostálgico que leva Borges a reivindicar um
passado heroico para Buenos Aires também o leva a selecionar alguns elementos da sociedade
argentina pré-moderna para compor uma narrativa autobiográfica que reclama um código de
honra que abarca as guerras do séc. XIX, conflitos aos quais os seus antepassados militares
43 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 149-150. Como aponta
Sarlo nesse mesmo trecho, a rejeição de Borges à sua obra dos anos 20 não indica necessariamente uma ruptura:
“Las consecuencias de los libros que Borges publica en estos años son fundamentales para su obra futura, aun
cuando no siga recorriendo exclusivamente las líneas trazadas en ellos.” 44 Cf. ibid., p. 150. 45 Ibid., loc. cit.
33
estavam vinculados.46 Desse modo, Borges alinha a história familiar, mobilizada para a
construção do seu mito pessoal, ao seu projeto literário.
Por outro lado, a imagem de Buenos Aires desenhada pelo primeiro Borges não é
unívoca. A cidade hispano-criolla que persiste apesar da mudanças, também evocada como
cidade perdida, convive com a cidade moderna em construção, cenário que possibilita o olhar
nostálgico do poeta. Borges se movimenta entre esses dois tempos e registra o
desaparecimento de uma cidade que precisa ser esquecida para que a nova cidade, a cidade
moderna, possa realizar a sua vocação: “Capta la desaparición, el momento en que la ciudad
olvida su pasado, porque ese olvido es también una condición de su modernidad. Borges
comprende que esa condición debe ser problematizada, y se hace cargo de la gran paradoja: la
modernidad es (también) una relación con el pasado.”47
O mosaico trabalhado a partir da diferença entre a cidade recordada e a Buenos Aires
reluzente do seu retorno definia também uma cartografia na qual eram sobrepostas diferentes
camadas da cidade (“estados de ciudad”, na expressão de Sarlo) representativos da
recordação/imaginação do passado e da observação do presente. Os marcos da paisagem
resultante dessa construção poética possibilitam um itinerário estético e compõem o cenário a
partir do qual Borges pode desenvolver a sua escrita. No roteiro do escritor pelo traçado
urbano, Sarlo identifica o predomínio de um horizonte uniforme e a ausência de traços
pitorescos e sinais históricos destacados, uma quase paisagem na qual a planície desponta
como a principal característica geográfica, definindo um formato e inscrevendo na cidade um
sinal das suas margens (“las orillas”), ponto fulcral da intervenção poética do escritor: “En la
llanura está la forma de la ciudad, su destino de orilla; la pampa es la orilla lábil de la ciudad
que se deshace en la llanura, una extensión sin cualidades que la poesía de Borges presenta
como su invención de comienzos en la literatura argentina.”48
O passado estruturado por Borges não é apenas recordado, mas também percorrido
nessa paisagem frágil e expresso nostalgicamente nas fronteiras da cidade moderna. Em seu
percurso, ele é atravessado por um sentimento de incompletude: “hay algo en el presente que
ya no está”, nota Sarlo. Essa condição é temporariamente suprimida pelo encontro com “las
46 O movimento é ainda mais amplo. Através da literatura épica, Borges desdobrará o estandarte da coragem e do
heroísmo sobre os séculos anteriores. 47 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 150-151. 48 Cf. ibid., p. 151-152. Sarlo ressalta as características dessa imagem da cidade: “Las campañas de Borges no
son fúnebres sino introvertidas y discretas. Rodean la ciudad como una extensión que casi no tiene ni las
cualidades de un paisaje; sobre todo, son la prefiguración ‘natural’ de lo que iba a ser la Buenos Aires moderna:
una extensión definida por la geometría de un horizonte invariable, lejos de todo pintoresquismo, sin variaciones
topográficas, ni fuertes marcas históricas, sin monumentos, espacio vacío para los recorridos a caballo, con
huellas que deben descifrarse, indeciso entre la tierra y el río, entre el cielo y su límite en el horizonte.”
34
orillas”, representação do éthos hispano-criollo desaparecido e ponto de articulação entre o
presente (urbano e moderno) e o passado (rural e arcaico). Em suas bordas, a cidade (também
uma orilla do rio da Prata e da Europa) é invadida pela fantasmagoria do pampa,
especialmente pela figura do gaucho e pelo seu ideal de coragem, manifestos na imagem do
compadrito orillero.49 As orillas são os limites indefinidos da cidade e, devido à sua fluidez,
promovem o reencontro da cidade com o seu outro, a planície pampiana.
Evitando a cidade moderna, Borges caminha em direção aos bairros nos quais irá
revisitar a cidade que deixou ainda jovem, quando partiu com a família para a Europa. Bairros
que, apesar de terem surgido devido às transformações modernizadoras que soterraram a
cidade antiga, trazem a marca daquilo que a imaginação do escritor atribui a um mundo
perdido. E o que perdeu, ou o que sente ter perdido, é encontrado exatamente no outro da
cidade moderna: “La nostalgia de Borges es por aquello de campo que encuentra en los
barrios”. Ao longo do trajeto pelas ruas de Buenos Aires, Borges particulariza o cenário
através da nominação, seja lançando mão de nomes próprios (Palermo é evidentemente um
deles), seja através de referências aos pontos cardeais.50 Elabora, dessa forma, uma verdadeira
cartografia poética da cidade.
A vivência nostálgica de Buenos Aires e a aproximação de Borges à literatura regional
também se apoiam em uma leitura diferenciada de autores estrangeiros. Combinando a
tradição literária argentina (tanto erudita quanto popular) com a Weltliteratur, o escritor
define um repertório de autores e estabelece entre eles um diálogo original: “Su criollismo es
un capítulo del internacionalismo estético: desde esa inflexión menor del español rioplatense,
que ha consolidado en sus primeros libros, leerá, traducirá y reescribirá las tradiciones
literarias extranjeras.”51
Além da originalidade na mezcla entre literatura regional e universal, Borges também
fixa um cânone literário local que permite reforçar o seu distanciamento do modernismo,
estratégia que culminou na publicação de Evaristo Carriego (1930), uma falsa biografia de
um poeta argentino considerado na época pouco importante.52 No entanto, apesar da falta de
reconhecimento, Evaristo Carriego, amigo de Jorge Guillermo e frequentador da casa da
família antes da primeira viagem dos Borges à Europa, teria sido uma referência recorrente
durante os anos vividos longe da terra natal: “In 1912, at the age of twenty-nine, he died of
tuberculosis, leaving behind a single volume of his work. I remember that a copy of it,
49 Cf. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 152-154. 50 Cf. ibid., p. 154 e 156. 51 Cf. ibid., p. 157-158. 52 Cf. ibid., p. 158-159.
35
inscribed to my father, was one of several Argentine books we had taken to Geneva and that I
read and reread there.”53
Entretanto, a própria família estranhou a escolha desse “poeta menor” de Palermo
como tema do novo livro de Borges:
My mother wanted me to write about any of three really worthwhile poets –
Ascasubi, Almafuerte, or Lugones. Instead, I chose to write about a nearly
invisible popular poet, Evaristo Carriego. My mother and father pointed out
that his poems were not good. “But he was a friend and neighbor of ours”, I
said. “Well, if you think that qualifies him as the subject for a book, go
ahead”, they said.54
A preferência de Borges pode ser compreendida a partir daquilo que Evaristo
Carriego representava para o jovem escritor: a possibilidade de uma atuação literária a partir
das margens:55 “Carriego was the man who discovered the literary possibilities of the run-
down and ragged outskirts of the city – the Palermo of my boyhood.” Contudo, o novo livro
de Borges logo se tornou um ensaio sobre a própria cidade: “The more I wrote, the less I
cared about my hero. I had started out to do a straight biography, but on the way I became
more and more interested in old-time Buenos Aires.”56
Dessa forma, articulando um passado criollo, uma cidade perdida, uma poética das
margens e um repertório de autores original, Borges define os principais traços do projeto
literário que defende nesse período. Inventa um passado, uma cidade, alguns precursores.
Constrói um espaço e um tempo para a sua literatura e, nesse movimento, cria a si mesmo
como escritor.
53 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 162. 54 Ibid., loc. cit. 55 O que Sarlo denomina de “arte poética de las orillas”. Beatriz Sarlo. SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en
las orillas, disponível on-line. 56 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 162 e 162-
163.
36
O jovem Jorge Luis Borges
Fervor de Buenos Aires (1923)
37
1.4- A magia do relato
As referências ao cinema aparecem muito cedo na obra de Borges. Em 1920, ainda
durante a viagem da família à Europa, as qualidades de um “film cinemático” são evocadas
em uma metáfora no poema Insomnio, impresso na revista Grecia. Nos anos seguintes, o
cinema é mencionado em diversos artigos. No principal deles, “El cinematógrafo, el
biógrafo”, publicado em 1929, Borges debate, a partir de uma questão semântica, as
possibilidades de representação através da nova arte.
Definindo o cinematógrafo como “la grafía del movimiento, señaladamente en sus
énfasis de rapidez, de solemnidad, de tumulto”, Borges associa o termo às primeiras
experiências cinematográficas, “cuya sola materia fue la velocidad”, e ao cinema de
vanguarda, “institución que se reduce a alimentar, con más enriquecidos medios, el mismo
azoramiento antiguo”. Ainda que a produção vanguardista pudesse ser considerada mais
elaborada, Borges identifica a mesma deficiência na utilização da imagem. A origem dessa
falha seria a vertigem provocada pelo novo aparelho de projeção de imagens:
Al espectador primitivo lo pudo maravillar un solo jinete; a su equivalente
de ahora le basta con muchísimos o con la superpuesta visión de un
ferrocarril, de una columna de trabajadores, de un barco. La sustancia de la
emoción es igual: es de pasmo burgués ante las diabluras que hacen las
máquinas, es la que inventó el nombre desproporcionado “linterna mágica”
para el juguete presentado por Atanasio Kircher en su “Ars magna lucis et
umbrae”. Para el espectador, es mero azoramiento bobo de técnica; para el
fabricante es una holgazanería de la invención, un aprovechar la fluencia de
imágenes.57
Essa limitação teria sido superada pelos filmes que figuravam a concepção de cinema
que Borges identifica no termo biógrafo. Embora a denominação já estivesse em desuso no
momento da escrita do artigo, Borges estabelece uma diferença que possibilita definir outra
vocação para a produção fílmica:
Eliminado para nuestro alivio el cinematógrafo, lo sucede el biógrafo.
¿Cómo reconocerlo, entreverado en muchedumbre inferior? El
procedimiento más rápido es el de buscar los nombres de Charlie Chaplin,
de Emil Jannings, de George Bancroft, de algunos dolorosos rusos. Es
eficiente, aunque demasiado contemporáneo, circunstancial. El de aplicación
general (aunque no adivinador como el otro) puede ser formulado así.
Biógrafo es el que nos descubre destinos, el presentador de almas al alma.58
57 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 58 Ibid.
38
O biógrafo, segundo Borges, não apenas representaria o movimento, mas também
desvelaria destinos. Considerando os nomes dos atores citados (Chaplin, Emil Jannings e
George Bancroft), podemos compreender esse desvelamento de trajetórias de vida, essa
apresentação de “almas al alma”, como uma alusão ao desenvolvimento de personagens no
cinema narrativo. Esse seria o ponto de inflexão a partir do qual o cinema começaria a
adquirir relevância artística.
Enquanto o cinematógrafo expressaria o encanto com uma nova forma de
representação da realidade (confundida muitas vezes com a própria reprodução do real) e
apresentaria os milagres da modernidade (“las diabluras que hacen las máquinas”, diz o
escritor), o biógrafo utilizaria a “fluencia de imágenes” para provocar outro efeito, superando
aquilo que Borges chama de “azoramiento bobo de técnica”. A velocidade daria lugar à
construção de um relato. Nesse ponto, ele mobiliza algumas referências literárias na sua
argumentação:
La definición es breve; su prueba (la de sentir o no una presencia, un
acuerdo humano) es acto elemental. Es la reacción que todos nosotros
usamos para juzgar libros de invención. Novela es presentación de muchos
destinos, verso o ensayo es presentación de uno solo. (El poeta o escritor de
ensayos es novelista de un solo personaje que es él; los doce volúmenes de
Enrique Heine sólo están habitados por Enrique Heine, la obra de Unamuno
por Unamuno. En cuanto a los poetas dramáticos – Browning, Shakespeare –
y los ensayistas de modo narrativo – Lytton Strachey, Macaulay – son
novelistas íntegramente, sin otra diferencia que su menos disimulada
pasión). Repito, biógrafo es el que nos agrega personas. El otro, el no
biógrafo, el cinematógrafo, está desierto, sin otro sucedáneo de vidas, que
fábricas, maquinaria, palacios, cargas de caballería y otras alusiones a la
realidad o generalidades fáciles. Es zona inhabitable, cargosa.59
O “sentimento de uma presença”, característica apontada como distintiva do biógrafo,
pode ser interpretado como uma referência aos processos de identificação entre
leitor/espectador e personagem atribuídos à recepção da narrativa. Entretanto, Borges maneja
uma ideia de narração abrangente que encerra aspectos narrativos de obras literárias
normalmente não associadas ao gênero épico.60 De acordo com o escritor, o critério utilizado
para reconhecer esse traço narrativo na literatura poderia ser empregado também para
identificar os filmes do biógrafo: tanto o cinema quanto a literatura propiciariam aquilo que
ele denomina um “acuerdo humano”.
59 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 60 Essa identidade narrativa de formas literárias de gêneros distintos possibilita ao escritor aproximá-las e reuni-
las em uma supracategoria chamada de “libros de invención”.
39
No cinema, somente esse “agregar de pessoas” promoveria a superação do fascínio
estéril provocado pela nova tecnologia da imagem em movimento, deslumbramento que
resultava no emprego ingênuo da câmera e na representação insistente de signos da
modernidade: uma filmografia “cargosa”, uma “zona inhabitable”.
Na sua defesa do biógrafo, Borges cita algumas cenas de Em busca do ouro (The gold
rush, 1925), exemplo que contrastaria com a aridez da produção do cinematógrafo. No
mesmo comentário, aponta também para uma peculiaridade do filme de Chaplin: “el destino
de Chaplin no es allí el único y eso lo diferencia de los otros puro monólogos de su inventor”.
Os outros destinos seriam apresentados através do desenvolvimento de personagens
secundários:
“El pibe, el circo”, Jim, el descubridor de una montaña de oro y que ya no
sabe dónde es y que atorra por los burdeles con ese trastornado recuerdo e
insobornable olvido; Georgia, la bailarina sin otra fidelidad que su imperiosa
belleza, leve sobre la tierra; Larsen, el hombre cuyo saludo es una descarga,
el hombre resignado a ser malo, el hombre poseído por esa inocencia mortal
de la depravación, son enteros destinos.61
A diferenciação entre Em busca do ouro e os “puro monólogos” de Chaplin possibilita
compreender um outro aspecto do vínculo que Borges estabelece entre o cinema e a literatura.
A sua breve teorização sobre as formas literárias, na qual vincula o romance à apresentação de
vários destinos e o poema e o ensaio à exposição de apenas um (o destino do próprio poeta ou
ensaísta), é mobilizada na comparação entre os estilos de atuação de Chaplin e do ator suíço
Emil Jannings. Assim, Borges descobre no biógrafo um “poeta” e um “romancista”:
Chaplin es el narrador de sí mismo, vale decir el poeta, que tiene el biógrafo;
Jannings, su novelista múltiple. No puedo trascribir nada de él: su
vocabulario vivo de gestos, su directo idioma facial, no me parece traducible
a otro alguno. Jannings, además de las agonías de la tragedia, sabe rendir
estrictamente lo cotidiano. Sabe no sólo agonizar (tarea fácil o de fácil
simulación, por ser de verificación improbable) sino vivir. Su estilo, hecho
incesantemente de realizaciones minúsculas, es tan sin ostentación y tan
eficaz como el de Cervantes o Butler. Sus personajes – el opaco montón de
sensualidad en “Tartufo”, siempre con el breviario pequeñísimo ante los ojos
como un antifaz irrisorio; el emperador en “Quo Vadis”, aborrecible de
afeminamiento y gruesa vanidad; el varón justo de la metódica dicha, el
cajero Schilling, el gran señor en “La última orden”, no menos devoto de la
patria que sabedor de su flaqueza y enredos – son caracteres diversísimos,
tan incomunicados entre sí que ni podemos imaginarlos comprendiéndose.
¡Qué irónico desinterés del general por la tragedia chabacana de Schilling:
qué anatemas proféticos (redactados en el heroico alemán de Martín Lutero)
no le arrojaría éste a Nerón!62
61 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 62 Ibid.
40
Enquanto Chaplin elaboraria constantemente o mesmo personagem em seus filmes,
revelando, tal como um poeta, apenas um destino,63 os diversos personagens compostos pelo
versátil Emil Jannings levam Borges a apontá-lo como um romancista do cinema, um ator
capaz de produzir, através de um estilo de interpretação apoiado na valorização do detalhe,
um efeito tão eficaz quanto aquele atingido na literatura por Miguel de Cervantes e Samuel
Butler.
Na ideia de cinema defendida por Borges em “El cinematógrafo, el biógrafo” também
sobressai a preferência pela apresentação de trajetórias individuais. Essa posição define a sua
crítica a respeito da cinematografia alemã, marcada pela representação de coletividades que
não despertariam a identificação do espectador: “Quiere conmovernos con el general fracaso
o martirio de muchedumbres que antes no hemos visto vivir y que están desfamiliarizadas aún
más por su aspecto de bajo relieve y su proporción.” A vindicação do individual vai além: “[o
cinema alemão] ignora que la muchedumbre es menos que el hombre, levanta un bosque para
disimular la falta de un árbol.” A narrativa, indica o escritor, não poderia prescindir da
centralidade do indivíduo. Ao final, Borges se vale do Antigo Testamento e de Daniel Defoe
para reforçar a sua posição: “Pero en el arte, como en la narración diluviana, no importa la
perdición de la humanidad, siempre que la pareja humana concreta se quede con el mundo.
Defoe dividiría por dos este ejemplo y reemplazaría: Siempre que Robinson.” Contra os
tormentos das multidões, bastaria um homem para salvar o relato.64
O tratamento de questões relacionadas aos aspectos narrativos do cinema não foi
pontual. Entre 1931 e 1945, em diversas resenhas publicadas em Sur,65 revista fundada por
Victoria Ocampo, Borges aborda temas relacionados à narrativa cinematográfica. De certa
forma, ele recorre ao cinema nesses artigos para abordar problemas relacionados à própria
narração. É o que nota Edgardo Cozarinsky: “El cine (más bien una idea de cine) aparece
asociado en Borges a la práctica de la narración, aun a la posibilidad misma de abordar la
narración.”66 Desse modo, Borges, no papel de crítico de cinema, entretece textos fílmicos
com referências literárias e analisa procedimentos envolvidos na construção de um relato.
A primeira resenha sobre cinema publicada na revista começa com um breve
comentário sobre Karamazoff (Der Mörder Dimitri Karamasoff, 1931), uma produção alemã
dirigida pelo russo Fedor Ozep. Para elogiar a adaptação da obra de Dostoiévski, Borges
63 Evidentemente, o destino do Vagabundo (the Tramp), personagem clássico de Chaplin. 64 BORGES, Jorge Luis. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929), edição digital. 65 Borges também publicou breves notas sobre cinema em Selección em junho e julho de 1933. 66 COZARINSKY, Edgardo. Magias parciales del relato. In: Borges en/y/sobre cine, p. 13.
41
ressalta o distanciamento entre o filme e a cinematografia alemã, desta vez condenada devido
à “simbología lóbrega, la tautología o vana repetición de imágenes equivalentes, la
obscenidad, las aficiones teratológicas, el satanismo”. Ozep tampouco incorreria nos erros
comuns das produções russas: “la omisión absoluta de caracteres, la mera antología
fotográfica, las burdas seducciones del comité.” Por último, o escritor estende o anátema ao
cinema francês: “De los franceses no hablo: su mero y pleno afán hasta ahora, es el de no
parecer norteamericanos – riesgo que les prometo no corren.” Mais do que apontar o êxito de
El asesino Karamazoff, Borges delimita, através da censura a três influentes cinematografias
europeias, uma perspectiva na qual está implícita a prevalência do cinema americano.67
Ainda comentando o filme de Ozep, ele refuta um questionamento normalmente
levantado pela adaptação de uma obra literária ao cinema. Primeiramente, confessa não ter
lido “la espaciosa novela” de Dostoiévski, fato que teria lhe permitido apreciar El asesino
Karamazoff sem nenhuma preocupação com a correspondência entre o filme e o livro. Em
seguida, defende o valor do filme independentemente de supostas analogias com a obra
adaptada: “Así, con inmaculada prescindencia de sus profanaciones nefandas y de sus
meritorias fidelidades – ambas inimportantes –, el presente film es poderosísimo.” O mérito
de El asesino Karamazoff estaria na elaboração de uma realidade convincente, capaz de
revelar de modo crível o destino do protagonista: “Su realidad, aunque puramente
alucinatoria, sin subordinación ni cohesión, no es menos torrencial que la de Los muelles de
Nueva York, de Joseph von Sternberg. Su presentación de una genuina, candorosa felicidad
después de un asesinato, es uno de sus altos momentos.” Além da construção de um universo
diegético crível, o filme de Ozep possuiria virtudes cinematográficas que potencializavam a
narrativa: “Las fotografías – la del amanecer ya preciso, la de las bolas monumentales de
billar aguardando el impacto, la de la mano clerical de Smerdiakov, retirando el dinero – son
excelentes, de invención y de ejecución.” 68
No mesmo artigo, Borges reprova Luzes da cidade (City lights, 1931), chamado por
ele de “una lánguida antología de pequeños percances, impuestos a una historia sentimental”.
Diferenciando filmes “reales” daqueles que apresentariam uma “voluntaria irrealidad” (entre
os quais estariam os trabalhos de Buster Keaton, Sergei Eisenstein e mesmo “las travesuras
primitivas de Chaplin”), situa Luces de la ciudad em um curioso limbo representacional: “Su
carencia de realidad sólo es comparable a su carencia, también desesperante, de irrealidad.”
67 BORGES, Jorge Luis. Films. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 30. 68 Ibid., p. 30-31.
42
Por fim, rejeita também Marrocos (Morocco, 1930), dirigido por um Joseph von
Sternberg que começava a incomodá-lo: “El laconismo fotográfico, la organización exquisita,
los procedimientos oblicuos y suficientes de La ley del hampa, han sido reemplazados aquí
por la mera cumulación de comparsas, por los brochazos de excesivo color local.” A
reprovação inclui ainda algumas escolhas artísticas do diretor: “Sternberg, para significar
Marruecos, no ha imaginado un medio menos brutal que la trabajosa falsificación de una
ciudad mora en suburbios de Hollywood, con lujo de albornoces y piletas y altos muecines
guturales que preceden el alba y camellos con sol.” No entanto, Borges elogia o argumento do
filme e, seguindo um procedimento característico do seu trabalho, articula referências
literárias regionais e universais em um comentário a respeito do desfecho da trama: “En
cambio, su argumento general es bueno, y su resolución en claridad, en desierto, en punto de
partida otra vez, es la de nuestro primer Martín Fierro o la de la novela Sanin del ruso
Arzibáshef.”69
Nessa primeira resenha, é possível identificar alguns dos principais pontos que
norteiam a crítica cinematográfica de Borges: a consideração sobre a independência estética
do cinema, a problematização de elementos constitutivos do relato e a avaliação a respeito da
eficácia da representação. Essas questões atravessam seus comentários e permitem delinear a
noção de cinema que fundamenta as suas observações.
A afirmação da autonomia do cinema, explicitada no comentário sobre a adaptação de
Ozep, é retomada em diversos artigos. A respeito de Crime e castigo (Crime and punishment,
1935), escreve: “De una intensísima novela, Sternberg ha extraído un film nulo; de una novela
de aventuras del todo lánguida – Los treinta y nueve escalones de John Buchan – Hitchcock
ha sacado un buen film. Ha inventado episodios. Ha puesto felicidades y travesuras donde el
original sólo contenía heroísmo.”70 As “infidelidades”, em alguns casos, seriam até mesmo
bem-vindas. Um “buen film” dependeria da exploração de recursos que fortalecessem a
narrativa cinematográfica.
Além de considerar o sucesso ou o fracasso da adaptação de uma obra literária
resultado exclusivo da habilidade do realizador para construir um relato próprio, Borges
enfatiza a especificidade da palavra e da imagem. Ao comentar a publicação do roteiro de
Daqui a cem anos (Things to come, 1936), compara novamente o cinema com a literatura e,
recorrendo à teoria estética alemã do séc. XVIII, declara a independência das duas formas de
expressão artística:
69 BORGES, Jorge Luis. Films. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 31-32. 70 Id. Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 42.
43
[...] las líneas memorables del libro no corresponden (no pueden
corresponder) a los instantes memorables del film. En la página 19, Wells
habla “de un entrevero de instantáneas que muestren la confusa eficacia
inadecuada de nuestro mundo.” Como era de prever, el contraste de las
palabras confusión y eficacia (para no mencionar el dictamen que hay en el
epíteto inadecuada) no ha sido traducido en imágenes. En la página 56,
Wells habla del aviador enmascarado Cabal, “destacándose contra el cielo,
un alto prodigio”. La frase es bella, su versión fotográfica no lo es. (Aunque
lo hubiera sido, no correspondería nunca a la frase, ya que las artes del
retórico y del fotógrafo, son ¡oh clásico fantasma de Efraim Lessing! del
todo incomparables). Hay acertadas fotografías, en cambio, que nada deben
a las indicaciones del texto.71
As artes do retórico e do fotógrafo seriam únicas, “incomparáveis”. O roteiro
adaptado de Things to come, escrito por H. G. Wells a partir do seu romance The shape of
things to come, revelaria essa dissociação. As passagens memoráveis do “libro
cinematográfico” não correspondiam (e não poderiam corresponder, ressalta Borges) às cenas
mais marcantes do filme, que por sua vez contaria com “acertadas fotografías” não indicadas
no roteiro. Palavra e imagem possuiriam naturezas distintas intraduzíveis: o belo literário e o
cinematográfico jamais seriam equivalentes.
Alguns problemas estéticos da “arte do fotógrafo” também são abordados em um
comentário sobre Film and theatre, estudo de cinema comparado publicado por Allardyce
Nicoll em 1936. Inusitadamente, um Borges “cinéfilo” inicia o artigo condenando o
acadêmico Allardyce Nicoll: “hombre versado en bibliotecas, docto en ficheros y absoluto en
catálogos, es casi analfabeto en boleterías”, escreve o jovem escritor argentino. Rejeitando a
seleção de filmes que fundamenta a argumentação do professor de história do drama da
“sapiente” Universidade de Yale, Borges questiona a posição de Nicoll a respeito do “relato
retrospectivo”.72 Embora concorde com a necessidade de privilegiar a imagem em detrimento
da palavra (segundo um trecho do livro citado no artigo, o “primordial debe proponerse a los
ojos; el oficio de las palabras es subalterno”), considerar o relato retrospectivo um recurso de
natureza dramática que deveria ser evitado no cinema, tal como afirma o “profesor Nicoll”,
seria “una verdadera apoteosis de la pedantería y del formalismo”.73 A refutação é seguida por
uma breve exposição sobre o problema do tempo cinematográfico, debatido no capítulo “más
interesante” do livro:
71 BORGES, Jorge Luis. Wells, Previsor. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 47. 72 Trata-se da exposição, através de palavras, de eventos anteriores ao tempo presente da diegese, um
“procedimiento literario que abunda en las epopeyas homéricas”, lembra Borges. Realizada através de imagens,
é o conhecido flashback da linguagem cinematográfica. 73 BORGES, Jorge Luis. Film and theatre. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 49-50.
44
¿Debe corresponder el tiempo del arte al tiempo de la realidad? Las
contestaciones son múltiples. Shakespeare – según su propia metáfora –
puso en la vuelta de un reloj de arena las obras de los años; Joyce invierte el
procedimiento y despliega el único día de Mr. Leopold Bloom y Stephen
Dedalus sobre los días y las noches de su lector. Más grato que el empeño de
abreviar o alargar una sucesión es el de trastornarla, barajando tiempos
distintos. En el terreno de la novela, Faulkner y Joseph Conrad son los
autores que mejor han jugado a esas inversiones, en el del film (que, según
observa muy justamente Allardyce Nicoll, es singularmente capaz de tales
laberintos y anacronismos) no recuerdo sino El Poder y la Gloria, de
Spencer Tracy. Ese film es la biografía de un hombre, con omisión
deliberada, y conmovedora, del orden cronológico. La primera escena es la
de su entierro.74
Borges, que comparara o cinema e a literatura para sentenciar, evocando Lessing, que
são “incomparáveis”, recorre ao tempo da narrativa, um dos fundamentos do relato, para
transitar fluentemente entre Shakespeare e Spencer Tracy.
A problematização do enredo e do modo de construção dos personagens, outra marca
da crítica cinematográfica de Borges, é evidente em um comentário sobre O delator (The
informer, 1935). Borges censura “la excesiva motivación” que justificam os atos do
protagonista e ensina: “Entiendo que el objeto perseguido es la verosimilitud, pero los
directores cinematográficos – y los novelistas – suelen olvidar que las muchas justificaciones
(y los muchos pormenores circunstanciales) son contraproducentes.” Ao final, retoma a teoria
da tragédia de Aristóteles (ou uma determinada leitura dessa teoria) e descobre no cinema a
possibilidade de construção de uma estrutura dramática que prescinda da unidade de espaço:
“De las tres unidades trágicas, dos han sido observadas, las de acción y de tiempo; la
negligencia de la tercera, la de lugar, no puede ser motivo de queja. El cinematógrafo por su
mismo carácter, parece rechazar esa tercer norma y requerir continuos desplazamientos.”75
Em outras resenhas, seguindo suas considerações sobre as tramas apresentadas nas
salas de projeção, Borges denuncia as imitações que identifica nas fábulas cinematográficas:
“El argumento de La fuga es, mutatis mutandis, el del famoso film The preacher de Chaplin”,
comenta a respeito do filme argentino lançado em 1937. Alguns anos depois, acusa o cansaço
com a repetição de fábulas que assolava o cinema americano: “En efecto, hace muchos años
que Hollywood (a semejanza de los trágicos griegos) se atiene a diez o doce argumentos.”76
A respeito da avaliação da eficácia da representação, outra constante na sua crítica,
Borges recusa especialmente a artificialidade de ambientes construídos a partir de
74 BORGES, Jorge Luis. Film and theatre. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 51. 75 Id. El delator. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 38 e 39-40. 76 Id. La fuga; Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 58 e 74.
45
estereótipos. A sua condenação ao que considera excesso de cor local é explicitada na resenha
de O Delator:
Otra debilidad de “El delator” es la de su principio y su fin. Los episodios
preliminares parecen falsos. Ello se debe, en parte, a esa calle demasiado
típica, demasiado europea (en el sentido californiano de la palabra) que nos
proponen. Es innegable que una calle de Dublín no es absolutamente igual a
una calle de San Francisco, pero se parece más a esta calle – por ser
auténtica las dos – que a un evidente simulacro, abarrotado de cargoso color
local. Las diferencias locales parecen haber impresionado más a Hollywood
que el parecido universal: no hay director americano que ante el imaginario
problema de presentar un paso a nivel español o un terreno baldío austro
húngaro, no se resuelva por una construcción especial, cuyo único mérito
debe ser el alarde de un gasto...77
Da mesma forma, o tom normativo marca um comentário depreciativo sobre Los
muchachos de antes no usaban gomina (1937), filme argentino dirigido por Manuel Romero:
“El diálogo es del todo increíble. Los personajes – doctores, patoteros, y compadrones de
1906 – hablan y viven en función de su diferencia con el año 1937. No existen fuera del color
local y del color temporal.”78
O modo de representação “adequado” ao tratamento de aspectos locais teria sido
encontrado por Luis Saslavsky em La fuga, filme que realizaria um ideal de cinema
americano nunca abandonado pelo escritor argentino:
La fuga, en cambio, fluye límpidamente como los films americano. Buenos
Aires, pero Saslavsky nos perdona el Congreso, el Puerto del Riachuelo y el
Obelisco; una estancia entrerriana, pero Saslavsky nos perdona las domas de
potros, las yerras, las carreras cuadreras, las payadas de contrapunto y los
muy previsibles gauchos ladinos a cargo de italianos auténticos.79
Ainda pior que os exageros da cor local seria a deformação provocada pela introdução
de um elemento exótico ao filme. Borges é um crítico contundente do recurso que permitiu a
popularização do cinema falado no mercado mundial: a dublagem. Condenada como
“maligno artificio”, que propunha “monstruos que combinan las ilustres facciones de Greta
Garbo con la voz de Aldonza Lorenzo”, a dublagem, além de implicar uma nefasta
77 BORGES, Jorge Luis. El delator. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 39. 78 Id. Dos films. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 55. Um chiste que antecede a avaliação do filme
expressa a visão de Borges sobre o cinema argentino da época: “Este – Los muchachos de antes, etcétera – es
indudablemente uno de los mejores films argentinos que he visto: vale decir, uno de los peores del mundo.” 79 Id. La fuga. In: COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 57. Por se tratar de um filme argentino, Borges deixa
claro (como se fosse necessário) que o seu juízo está isento de qualquer conotação nacionalista: “Entrar en un
cinematógrafo de la calle Lavalle y encontrarme (no sin sorpresa) en el Golfo de Bengala o en Wabash Avenue
me parece muy preferible a entrar en ese mismo cinematógrafo y encontrarme (no sin sorpresa) en la calle
Lavalle. Hago esta confesión liminar para que nadie achaque a turbios sentimientos patrióticos esta vindicación
de un film argentino. Idolatrar un adefesio porque es autóctono, dormir por la patria, agradecer el tedio cuando
es de elaboración nacional, me parece un absurdo.”
46
recomposição dos signos cinematográficos (“La voz de Hepburn o de Garbo no es
contingente; es, para el mundo, uno de los atributos que las definen”, diz Borges), provocaria
a fragmentação da diegese e uma percepção inelutável de falsificação: “peor que el doblaje,
peor que la sustitución que importa el doblaje, es la conciencia general de una sustitución, de
un engaño.”80
Durante esses anos, as referências de Borges ao cinematógrafo ultrapassam as
resenhas escritas especificamente sobre o assunto. Como também nota Cozarinsky,
ocasionalmente o escritor argentino recorre ao cinema “como material de lectura, uno entre
innumerables motivos de reflexión que prodiga el universo”.81 Em Nuestras imposibilidades,
o desinteresse do público argentino por Aleluia (Hallelujah, 1929) e a reação da plateia local
diante de uma cena de Paixão e sangue (Underworld, 1927) são apontados por Borges como
exemplos de alguns traços daquilo que considera como o “argentino ejemplar” dos centros
urbanos.82 Do mesmo modo, em Historia de la eternidad (ensaio publicado no livro
homônimo em 1936), a atriz americana Miriam Hopkins é elencada em uma explicação sobre
o mundo das ideias de Platão, a cuja filosofia seria possível remontar a primeira noção de
eternidade discutida no artigo: “Miriam Hopkins está hecha de Miriam Hopkins, no de los
principios nitrogenados o minerales, hidratos de carbono, alcaloides y grasas neutras, que
forman la sustancia transitoria de ese fino espectro de plata o esencia inteligible de
Hollywood.”83 Já em Los traductores de las 1001 noches, publicado no mesmo livro, Borges
compara um dos tradutores de “las Noches” à censura norte-americana: “Lane es un virtuoso
del subterfugio, un indudable precursor de los pudores más extraños de Hollywood.”84
Além dessas remissões, Borges inclui o cinema no debate de questões literárias. Em
“La postulación de la realidad”, publicado em Discusión, trata de diferentes métodos de
apresentação da realidade através da literatura e inclui Joseph von Sternberg entre os
representantes do modo mais difícil e eficiente: “Asevero lo mismo de las novelas
cinematográficas de Joseph von Sternberg, hechas también de significativos momentos.”85
Por sua vez, em “El arte narrativo y la magia”, do mesmo livro, Borges identifica a
causalidade como o problema central da novelística e descobre uma analogia entre o
procedimento mágico (tal como descrito por James Frazer) e a forma de construção do relato
80 BORGES, Jorge Luis. Sobre el doblaje. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 77 e 78. 81 COZARINSKY, Edgardo, op. cit., p. 13. 82 Cf. BORGES, Jorge Luis. Nuestras imposibilidades. In: Miscelánea, edição digital. Publicado em Sur em
1931 e incluído no ano seguinte em Discusión, o ensaio foi retirado do livro na edição de 1955. 83 Cf. id. Historia de la eternidad. In: Historia de la eternidad, edição digital. 84 Cf. id. Los traductores de las 1001 noches. In: Historia de la eternidad, edição digital. 85 Cf. id. La postulación de la realidad. In: Discusión, p. 79.
47
no romance de aventura (“la novela de continuas vicisitudes”) e no cinema americano (“la
infinita novela espectacular que compone Hollywood con los plateados ídola de Joan
Crawford y que las ciudades releen”). Essa ordem mágica, caracterizada pelo estabelecimento
de um vínculo “inevitable entre cosas distantes”, diferiria da ordem do “mundo real” que a
“novela de caracteres” buscaria imitar. A diferença, entretanto, não seria de natureza. A
magia, explica Borges, não contradiz a causalidade, mas a exacerba: “El milagro no es menos
forastero en ese universo que en el de los astrónomos. Todas las leyes naturales lo rigen, y
otras imaginarias. Para el supersticioso, hay una necesaria conexión no sólo entre un balazo y
un muerto, sino entre un muerto y una maltratada efigie de cera”. E aponta: “Esa peligrosa
armonía, esa frenética y precisa causalidad, manda en la novela también.” A semelhança
poderia ser notada na disposição dos episódios em um romance: “Todo episodio, en un
cuidadoso relato, es de proyección ulterior.”86 Finalmente, através desse procedimento
mágico que caracterizaria o relato, Borges reitera a aproximação entre a literatura e o cinema:
Esa teleología de palabras y de episodios es omnipresente también en los
buenos films. Al principiar A cartas vistas (The Showdown), unos
aventureros se juegan a los naipes una prostituta, o su turno; al terminar, uno
de ellos ha jugado la posesión de la mujer que quiere. El diálogo inicial de
La ley del hampa versa sobre la delación, la primera escena es un tiroteo en
una avenida; esos rasgos resultan premonitorios del asunto central. En
Fatalidad (Dishonored) hay temas recurrentes: la espada, el beso, el gato, la
traición, las uvas, el piano. Pero la ilustración más cabal de un orden
autónomo de corroboraciones, de presagios, de monumentos, es el
predestinado Ulises de Joyce. Basta el examen del libro expositivo de
Gilbert o, en su defecto, de la vertiginosa novela.87
Um outro aspecto do diálogo que Borges trava com o cinema é o emprego de métodos
cinematográficos na sua escrita. Em Evaristo Carriego, ao refletir sobre como poderia
construir uma imagem que representasse o passado de Palermo, ele sugere: “Lo más directo,
según el proceder cinematográfico, sería proponer una continuidad de figuras que cesan.”88 E
prossegue com uma série de “figuras” que compõem a sua descrição do bairro. Cinco anos
mais tarde, no prólogo de Historia universal de la infamia, comenta:
Los ejercicios de prosa narrativa que integran este libro fueron ejecutados de
1933 a 1934. Derivan, creo, de mis relecturas de Stevenson y de Chesterton
y aun de los primeros films de Von Sternberg y tal vez de cierta biografía de
Evaristo Carriego. Abusan de algunos procedimientos: las enumeraciones
86 Cf. BORGES, Jorge Luis. El arte narrativo y la magia. In: Discusión, p. 93-95. 87 Ibid., p. 96. 88 Cf. id. Evaristo Carriego, p. 16-17.
48
dispares, la brusca solución de continuidad, la reducción de la vida entera de
un hombre a dos o tres escenas.89
Já na década de 40, Borges finaliza com uma confissão a breve nota autobiográfica
(redigida em terceira pessoa) que antecede “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” na Antología de la
literatura fantástica: “Escribe en vano argumentos para el cinematógrafo.”90 De fato, o desejo
de escrever para o cinema o levou a participar de diversos projetos cinematográficos. Em
1940, aceita o convite para escrever, ao lado de Ulyses Petit de Murat e Manuel Peyrou, o
roteiro de Suburbio. O filme, entretanto, nunca foi rodado. Em seguida, é contratado para
trabalhar em Pago Chico, uma adaptação da obra de Roberto J. Payró. Além de Borges,
faziam parte da equipe de escritores Bioy Casares, Manuel Peyrou e Enrique Mallea Abarca.
De acordo com Bioy Casares, o grupo interrompeu o trabalho devido à interferência do
governo militar.91 Também fracassaram as tentativas de adaptação para o cinema de Evaristo
Carriego e “Hombre de la esquina rosada” (conto publicado em Historia universal de la
infamia), projetos que envolveram Borges e Bioy Casares. Ainda nesse período, escreve com
Bioy Casares dois roteiros originais: Los orilleros e El paraíso de los creyentes. Novamente,
não obtém sucesso.92
A concretização do seu primeiro projeto para o cinema ocorreu com Días de odio
(1954), uma adaptação de “Emma Zunz” (conto incluído em El Aleph) dirigida por Leopoldo
Torre Nilsson. Contudo, embora tenha participado da elaboração do roteiro, Borges não
hesitou em condenar o resultado: “realmente no creo que [Torre Nilsson] lo hiciera bien.
Agregó una historia sentimental que no tenía por qué figurar, y lo llenó de toda suerte de
89 BORGES, Jorge Luis. Historia universal de la infamia. In: Cuentos completos, edição digital. No prólogo da
edição de 1954, Borges acrescenta: “Los doctores del Gran Vehículo enseñan que lo esencial del universo es la
vacuidad. Tienen plena razón en lo referente a esa mínima parte del universo que es este libro. Patíbulos y
piratas lo pueblan y la palabra infamia aturde en el título, pero bajo los tumultos no hay nada. No es otra cosa
que apariencia, que una superficie de imágenes; por eso mismo puede acaso agradar.” Ibid., grifo nosso. 90 Id. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius [nota preliminar]. In: _____ (org.); BIOY CASARES, Adolfo (org.);
OCAMPO, Silvina (org.). Antología de la literatura fantástica, p. 71. 91 “Cuando descubrimos que había que modificar el final del film [...] de modo de adular al gobierno, no
volvimos a las reuniones”. BIOY CASARES, Adolfo apud MARTINO, Daniel. Magias parciales de Pago Chico:
un guión perdido de Borges, Bioy Casares, Peyrou y Mallea Abarca. Film, disponível on-line. 92 Carlos Martínez oferece uma explicação para a falta de êxito de Borges no cinema durante esse período:
“Tales fracasos singulares como escritor de guiones durante los comienzos de la década del cuarenta se harán
frecuentes a partir de 1946 con la hegemonía oficial del cine argentino, inscripto en la política cultural del
gobierno peronista, cuyas medidas favorecen, por medio del otorgamiento de créditos, un cine híbrido, en el que
predominan géneros como la comedia rosa y el melodrama comercial […] Sólo en los años 50 y de un modo más
intenso en los 60, los vínculos entre la ficción literaria y el relato cinematográfico se establecerán más
estrechamente y en una dimensión de índole estética más deliberada. Esta relación puede ser caracterizada por la
irrupción de una visión crítica y la apertura de un horizonte de rupturas estéticas que se dan tanto en la literatura
como en el cine.” MARTÍNEZ, Carlos. Borges: la narración literaria y el cine. Orillas, disponível on-line.
Gonzalo Aguilar e Emiliano Jelicié comentam dois outros roteiros inconclusos de Borges e Bioy Casares: La isla
o Del amor, a partir de uma ideia proposta por Bioy Casares, e uma adaptação de Martín Fierro. Cf. AGUILAR,
Gonzalo; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos Aires: Libraria, 2010, p. 146-150.
49
detalles sentimentales que parecen contradecir la historia, que es una historia dura. Yo le
aconsejé a él que no podía hacerse un film con ‘Emma Zunz’.”93
A reparação por essa primeira desilusão cinematográfica só viria com a aproximação
do diretor Hugo Santiago e a realização de Invasión (1969). O cinema, “arte do fotógrafo”, da
imagem em movimento, na qual o primordial deveria ser oferecido aos olhos e o “ofício das
palavras” era subalterno, finalmente permitiria a Borges (não mais jovem e já com graves
problemas de visão) exercer a sua magia.
93 BORGES, Jorge Luis. In: SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 96.
50
Josef von Sternberg, uma das influências reivindicadas por
Borges no prefácio de Historia universal de la infamia (1935)
Cartaz de Paixão e sangue (Underworld / La ley del hampa, 1927),
filme de von Sternberg constantemente referido por Borges
51
2 - Um filme de Borges
2.1 – A trama de um roteiro
“Retenido en Buenos Aires por el compromiso de escribir un argumento para Hugo
Santiago Muchnik. Borges me ha anunciado jubiloso su casamiento, diciéndome que en
septiembre seré su padrino (o testigo). En el ínterin, nos han propuesto que escribamos el
argumento de un film y nos ofrecen dinero, bastante dinero.”1 Desse modo, Adolfo Bioy
Casares registra em seu diário, no início de junho de 1967, o início da colaboração com Hugo
Santiago. Após alguns dias, comenta: “Esta noche no pudimos escribir, por falta de ideas; o
mejor dicho: de idea del episodio a escribir. BORGES: ‘No es fácil pensar por encargo.
Cuando a uno se le ocurre una idea, se le ocurre con su expresión. Aquí tenemos la idea, pero
no sabemos con qué situación expresarla.’” A escrita do argumento, que deveria ser entregue
em setembro daquele ano, começava a provocar irritação. Pouco tempo depois, a insatisfação
de Borges aumenta: “Esto es lo más subalterno que hemos hecho: episodios de Rocambole,
aunque no sé muy bien cómo era Rocambole.”2 Finalmente, em 3 de julho, tomam uma
decisão:
Tomamos una resolución heroica: no escribiremos el argumento
cinematográfico. El contrato al que renunciaremos, que no firmaremos:
trescientos mil pesos de adelanto, antes de entregar el trabajo; setecientos
mil en cuotas ulteriores, hasta el estreno del film. Entregaremos el resumen
del film, en versión corregida. Nos veremos libres de ese yugo. Los
productores no comprenderán nuestra resistencia, nuestra poca disposición a
firmar y a cobrar.
O trabalho subalterno ao qual se refere Borges e o jugo mencionado por Bioy Casares
(além, é claro, das dificuldades encontradas no desenvolvimento da ideia) pareciam condenar
mais um projeto cinematográfico dos dois escritores ao fracasso. Em 8 de julho, comunicam a
desistência a Hugo Santiago. A reação do diretor é admirável:
Comen en casa Borges y Hugo Santiago Muchnik. A Muchnik le digo:
‘Tengo, para usted, una buena y una mala noticia. La buena es que hemos
concluido el resumen del film y que se lo regalamos para que haga lo que
quiera. La mala es que no haremos el libreto.’ Como un caballero, como un
buen perdedor, Muchnik acepta mis palabras. Dice que esas diez páginas que
le hemos hecho son lo esencial y que gracias a ellas podrán seguir adelante
con el film.
1 Os trechos do diário de Bioy Casares citados neste subcapítulo foram publicados separadamente em
INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 58-60. 2 Borges se refere aos enredos repletos de peripécias (“rocambolescos”) protagonizados por Rocambole,
personagem criado pelo Visconde Ponson du Terrail.
52
Após o comunicado, os três se reúnem no escritório de Bioy Casares para a leitura do
“resumo”. Bioy descreve a satisfação de Santiago e o título sugerido pelo diretor: Invasión.
Borges se impressiona: “Es un caballero. No flaqueó en ningún momento. Cuando esté solo
en su cuarto se pondrá a llorar.”
Contudo, os acontecimentos subsequentes são ainda mais surpreendentes que a reação
de Hugo Santiago. Um dia após a desistência, os três se encontram novamente: “Comen en
casa Borges y Hugo Santiago Muchnik. Con Borges, felices de vernos libres del compromiso
del film, sin un pensamiento por el dinero que no ganaremos.” Alguns dias depois, sobre uma
reunião com Borges, anota: “Escribimos un episodio para el film (un episodio que ha de
sustituir a uno del resumen que entregamos a Hugo Santiago).” Já no dia seguinte,
compreendemos que algo havia mudado: “Como en casa Borges. Trabajamos en las nuevas
escenas de Invasión.” O registro de 18 de julho confirma a impressão: “Hugo Santiago
Muchnik mandó el nuevo contrato para Invasión. BORGES: ‘Qué extraordinario es el
muchacho... La bondad es admirable.’” A próxima referência ao filme é feita somente em
maio do ano seguinte: “Viene a tomar el té Hugo Santiago Muchnik. Empezará a filmar
Invasión en 27.” Nesse intervalo, o trabalho havia sido concluído.
A razão para a mudança de postura dos escritores em relação ao projeto não é
explicitada no diário. Talvez o gesto de Hugo Santiago tenha tranquilizado os dois. É mais
fácil compreender o motivo da súbita interrupção da “trama” contada por Bioy Casares. Em 4
de agosto de 1967, ele parte para um longa viagem à Europa. Caberá a Borges continuar o
trabalho com o jovem diretor.
Entretanto, não foi a primeira vez que os dois estiveram juntos sem a intermediação de
Bioy. Nascido em Buenos Aires em 1939, Hugo Santiago conhecera Borges na década de 50,
quando estudou filosofia e letras na Universidade de Buenos Aires.3 Ainda no primeiro ano
do curso, foi aluno do escritor, que ministrava a disciplina de Literatura Inglesa. Logo se
aproximou do professor e leu para ele os poemas de Estancia en Buenos Aires, livro dedicado
“Al definitivo Jorge Luis Borges”.4 Em 1958, escreveu uma série para a televisão, da qual
codirigiu três episódios com Lautaro Murúa, recebendo por esse trabalho uma bolsa do Fondo
Nacional de las Artes para ir a Paris. Antes da viagem, visitou Borges na Biblioteca Nacional:
“Nos estamos viendo”, disse o diretor da instituição.
3 A breve apresentação biográfica seguinte é baseada em INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 131-
135; e OUBIÑA, David (org.). El cine de Hugo Santiago, p 115-118. As declarações de Hugo Santiago citadas
podem ser conferidas em BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 4 Segundo Hugo Santiago, Borges sugeriu um outro título, Capital de mi canto, e afirmou que ajudaria na
publicação da obra. O livro, entretanto, não foi editado. Cf. BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión.
Alejo Moguillansky (diretor).
53
Na Europa, com uma carta de recomendação de Ramón Gómez de la Serna, Hugo
Santiago se aproximou de Jean Cocteau e, através dele, de Robert Bresson, com o qual viria a
trabalhar durante sete anos e do qual seria assistente de direção em O processo de Joana
d’Arc (Procès de Jeanne d'Arc, 1962). No início da década de 60, também realizou estudos de
literatura francesa, filosofia comparada e estética na Sorbonne e escreveu dois roteiros nunca
filmados. Em 1966, durante uma viagem à Argentina, trabalhou no roteiro de El hombre del
bandoneón em parceria com a poetisa Olga Orozco. No entanto, o projeto foi interrompido
após o golpe de Estado de Juan Carlos Onganía. No ano seguinte, novamente em Buenos
Aires, dirigiu o média-metragem Los contrabandistas (1967). A proposta a Bioy Casares e
Borges foi realizada em seguida.
Embora ainda mantivesse contato com Borges, Hugo Santiago apresentou a ideia
inicialmente a Bioy Casares: “Yo pensé que era hábil pasar por Bioy, que era más fácil [...]
Yo me tuteaba con Bioy”, diz. Para tanto, foi à casa do escritor:
Lo fui a ver a Bioy, una mañana, y le dije: “Tengo una idea y entonces
quería que juntos se la presentáramos a Borges. En realidad, pensé en
ustedes porqué si yo hago solo [...] esta idea va a ser un film a la manera de
Borges y Bioy Casares. Y como Borges y Bioy Casares están en Buenos
Aires y yo también, ¿cómo no le voy a traer la idea?” Le dije eso a Bioy. Y
Bioy me dijo: “Contame la idea.” Y yo le dije la idea: “Una ciudad, con
invasores. Eso.”5
Diante dos questionamentos de Bioy Casares, ele insiste: “No es más que eso: una
ciudad sitiada y un grupo que la defiende.” Bioy telefonou para Borges e, à tarde, levou Hugo
Santiago à Biblioteca Nacional, onde o ex-aluno contou a ideia ao antigo mestre: “Borges, es
una ciudad, un poco ovalada, que está sitiada, y hay un grupo de defensores. Y los otros
entran, ganan. Y se llama Invasión.” O comentário de Borges deixou o diretor atônito: “Claro,
es un sistema leibniziano con un doble sistema de entradas y salidas.” A observação foi
acompanhada pelo silêncio de Hugo Santiago. Borges então pergunta: “Cuándo empezamos?”
No mesmo dia, os três conversam sobre os projetos cinematográficos fracassados de Borges e
Bioy e combinam um novo encontro. Dessa vez, os dois escritores o interrogam acerca da
remuneração e ouvem a promessa de que não trabalhariam de graça. Aceitam e decidem
começar a escrever o argumento. Contudo, Hugo Santiago não participaria dessa etapa.6
5 A ideia fazia parte do imaginário portenho. Alguns anos antes, havia sido o tema de El Eternauta, um romance
gráfico que marcou o ambiente intelectual local. Cf. ÁLVAREZ, José Manuel González. ¡Buenos Aires
invadida! Sobre el leitmotiv del asedio en la ficción especulativa argentina (1950-2000). Ciberletras, disponível
on-line. 6 Há pelo menos uma contradição entre a versão de Hugo Santiago e a de Bioy Casares. De acordo com o diário
de Bioy, o título teria sido revelado pelo diretor posteriormente, durante a conversa ocorrida em 8 de julho de
1967.
54
Os acontecimentos seguintes já foram mencionados: a entrega do resumo, o recuo, a
volta ao projeto e a viagem de Bioy Casares. Na véspera da partida, Hugo Santiago conversa
com Bioy sobre o texto e aponta os problemas que havia identificado. À noite, o escritor lhe
pede que encontre Borges. No dia seguinte, após se despedir de Bioy, Hugo Santiago,
tremendo, bate na porta do escritório do diretor da Biblioteca Nacional: “Aquí estamos los
dos para algo que nos interesa a ambos”, diz Borges ao vê-lo. Conversam longamente sobre o
resumo (“Yo le decía que no había una continuidad de un film”, comenta Santiago) e, ao
final, Borges concorda e decreta: “Entonces, empezamos mañana.” No segundo dia de
trabalho, Hugo Santiago pediu que Borges definisse o início e o fim da estória, dois marcos
que permitiriam ao cineasta prosseguir sozinho caso houvesse nova desistência. Entretanto,
Borges não abandonou o projeto. Trabalhou com Hugo Santiago durante oito meses em
Buenos Aires. O roteiro estava quase pronto quando o escritor precisou viajar aos Estados
Unidos. Ainda assim, durante dois meses, tratou por correspondência de questões
relacionadas ao filme. Ao retornar, realizou com Santiago as últimas modificações no roteiro.
Invasión foi rodado logo em seguida.
Em relação à colaboração com Borges, Hugo Santiago ressalta o bom humor e a
dedicação do escritor. Debatiam cada ideia, atentos aos detalhes:
Lo que había detrás era un compromiso de una seriedad absoluta en relación
con ese guión que había que hacer. Pero quiero decir total. [...] Más allá de
cualquier reivindicación personal, más allá de cualquier orgullo, más allá...
Su único orgullo, que era total, era de que el guión fuera lo mejor posible. Y
esos diálogos iban a ser lo mejor posible. Fuera de eso, si uno le decía algo a
Borges y entonces él daba una idea y uno decía: “Claro, es eso Borges”, y
uno no se la criticaba en seguida, se enojaba, se enojaba. Porqué creía que
uno estaba le diciendo que sí por cualquier cosa. Había que pasar por una
crítica profunda de como era tal cosa, con sus variantes posibles, para
eventualmente volver a la idea justa que había tenido.7
A ênfase no diálogo e no trabalho coletivo é confirmada por uma afirmação de Borges
durante uma entrevista a Fernando Sorrentino:
Es decir, nos olvidamos de que somos tres personas, y pensamos con plena
libertad. Nadie se siente ligeramente entristecido si una sugestión suya ha
sido rechazada; nadie acepta, por cortesía o resignación, lo que dicen los
otros. No: es como si los tres fuéramos los tres una sola persona; una sola
persona que trabajara con plena libertad y que no tiene por qué sentirse
desairada si los otros desaprueban algo que se le ha ocurrido a él y que no se
7 Hugo Santiago também destaca o conhecimento de Borges sobre cinema: “La película Invasión le debe a
Borges [...] de ponerse al servicio de un film como un guionista de un director y que participaba, un guionista
viejo cinéfilo, que se acordaba muy bien de los filmes que le había gustado en su juventud, muy bien”.
55
aplaude a si misma si se le ocurre algo bueno.8
Embora o processo tenha sido marcado por referências literárias, a escrita do roteiro,
especialmente a elaboração dos diálogos, também foi norteada pelas restrições que a
decupagem realizada por Hugo Santiago impunha: “El film fue dialogado al final, cuando la
continuidad y las secuencias ya estaban decididas, y el encuadre casi acabado. Yo decía, por
ejemplo: ‘Herrera va hasta el fondo, se inclina y habla.’ Borges preguntaba: ‘¿Cuánto?’. Y yo:
‘No mucho.’ Entonces él me dictaba.”9 Dessa forma, foi possível seguir em linhas gerais as
indicações do texto durante as filmagens: “El film respeta escrupulosamente el guión – y el
encuadre – secuencia por secuencia, toma por toma. Muy a menudo, los planos minuciosos
fueron descriptos antes de encontrar el decorado: la busca se propuso en cada ocasión
someterse a la cosa imaginada.”10
O resultado do trabalho parece ter comovido o escritor argentino. Em 1969, ano de
lançamento do filme, Borges declara: “Dos experiencias de carácter análogo, lejanas en el
tiempo, conviven ahora en mi memoria. La antigua me acompaña desde 1923; estoy hablando
de esa tarde en que tuve en las manos el primer ejemplar de mi primer libro. La otra, la
reciente, es la de la emoción que sentí al ver en la pantalla el film Invasión.” Por fim,
completa: “Un libro impreso no difiere demasiado de un manuscrito; un film es la proyección
visible, detallada, escuchada, enriquecida y mágica, de algo soñado, apenas entrevisto.”11
8 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 101. 9 SANTIAGO, Hugo. Partituras. In: AGUILAR, Gonzalo (org.); OUBIÑA, David (org.). El guión
cinematográfico, p. 127. 10 Entretanto, algumas “infidelidades” foram cometidas: “Hay contadas excepciones. Si existe en el film un
cementerio de trenes, por ejemplo, es porque el ‘cementerio de tranvías’ no lo encontramos.” Mais importante do
que a mudança de uma locação, foi a decisão do diretor de excluir uma cena: “Un único corte, no sólo en la
trama sino también en el guión ya encuadrado. Y en esta excepción, el episodio fue de todos modos filmado,
montado, sonorizado. Existía incluso en las primeras copias de clasificación técnica. Sólo casi a ‘film terminado’
tomé la decisión de cortar la secuencia, pasando de su comienzo a su final.” Cf. SANTIAGO, Hugo apud
INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago, p. 49. 11 BORGES, Jorge Luis apud HUGO Santiago y su película Invasión. La Nación, 14 ago. 1969, página não
identificada.
56
Borges e Hugo Santiago
Hugo Santiago e Bioy Casares
57
Cartazes do filme
58
2.2 – Um traçado de Invasión
Aquilea, 1957. A legenda se sobrepõe à paisagem, definindo o tempo e o espaço da
narrativa. O cenário é apresentado através de um plano geral: casas e edifícios compõem um
aglomerado urbano cujos limites são indiscerníveis. O corte seguinte aproxima o olhar.
Algumas construções modestas, o entulho e a vegetação sugerem que estamos agora na
periferia da cidade, onde assistimos a um homem de terno escuro caminhando por uma rua
deserta e mal iluminada. O percurso do personagem é interrompido bruscamente por um ruído
e pelo som de passos acelerados de uma pessoa em fuga. Ele descobre que alguém o
observava. O espectador, inicialmente cúmplice inconsciente desse observador secreto,
compartilha a percepção do personagem, que segue inabalável. Após caminhar um pouco
mais, para e, com um binóculo, examina o lugar. Seu olhar não nos é revelado. O timbre
inconfundível do bandoneón, que acompanha os últimos instantes da cena, evoca o ambiente
portenho.
A cena inicial de Invasión estabelece uma atmosfera enigmática, efeito reforçado pelas
sequências seguintes: num dia luminoso na frontera sur da cidade, um grupo de homens,
todos usando ternos claros padronizados, executa uma tarefa misteriosa em um estádio de
futebol. Um deles dá uma ordem a respeito de um carregamento. A sua expressão indica o
pertencimento a uma instância superior. Após um corte direto, acompanhamos um caminhão
percorrendo as ruas quase vazias da cidade. A suspeita sobre alguma atividade ilícita logo se
confirma. Na saída do porto, após carregar o caminhão, eles escapam da fiscalização
enganando e atirando em dois funcionários. Novamente, somos confrontados com o som do
bandoneón.
Ainda durante a abertura, cenas externas filmadas em Buenos Aires são entretecidas
aos detalhes de um mapa que apresenta o traçado urbano labiríntico de Aquilea. Ao mesmo
tempo, os créditos do filme, sobrepostos a essas imagens, nos informam, entre outras coisas, a
respeito da autoria do argumento e do roteiro. Logo seremos apresentados a Don Porfirio
(Juan Carlos Paz), um personagem indiferente às inquietações dos homens comuns. Na cena,
enquanto alguns amigos o questionam sobre o resultado de uma partida de futebol, Don
Porfirio compra sua hierba e recusa o açúcar oferecido pelo merceeiro: “No se tome el
trabajo, Don Jesús. Yo ya estoy hecho a la amargura.” Esse personagem taciturno,
descobriremos em seguida, é o líder de um grupo secreto local que, ciente da ameaça de uma
invasão estrangeira, se dispõe a enfrentá-la. Ao voltar para casa, Don Porfirio telefona para
Herrera (Lautaro Murúa), o personagem misterioso que caminhava por uma rua deserta na
59
cena inicial. Ao telefone, Don Porfirio anuncia: “Tantos años sin salir de las vísperas… Ahora
ellos están por entrar. Éste día es hoy.” E escuta: “Mejor así. Uno se cansa de esperar. Voy
para allá.” Percebemos que a cidade está cindida. O cotidiano permanece inalterado e a
maioria dos habitantes ignora a ocupação iminente. Antes de sair para atender a convocação
de Don Porfirio, Herrera conversa com Irene (Olga Zubarry), sua esposa. Preocupada, ela
percebe que algo grave o aflige, mas não obtém respostas. Ao se despedir, Herrera a conforta:
“No tome tan en serio mis ausencias, señora. Le cuento un secreto: a mí me gusta jugar a los
misterios.” A resposta da esposa também é hermética: “Sí, ya sé que es un juego.” A
compreensão de Irene oculta um outro segredo: logo após a saída de Herrera, ela deixa a casa
para buscar um objeto misterioso e entregá-lo a um grupo de jovens. Assim que a tarefa é
executada, eles se dispersam. Sobre o objeto e os jovens, nada sabemos.
Nesse ponto, as duas tramas principais do filme estão estabelecidas: o espectador irá
acompanhar agora o desenrolar de cada uma delas. A mais desenvolvida, que abarca Don
Porfirio e Herrera, será composta também por outros personagens: Vildrac (Jorge Cano),
Silva (Roberto Villanueva), Irala (Martín Adjemián), Lebendiger (Daniel Fernández),
Cachorro (Ricardo Ormellos) e Moon (Leal Rey). Juntos, precisam destruir o carregamento e
impedir a instalação de um comando estrangeiro na cidade. Para isso, Don Porfirio pede a
Herrera que vá a um depósito onde um grupo de invasores, após receber instruções em um
café, encontrará o grupo envolvido com o transporte da carga. E alerta: “Al café, no vaya.” A
restrição soa a Herrera como uma convocatória. No café, ele espera pelos invasores ao lado de
Irala e Silva. Ao perceber o cansaço deste, sugere: “¿Tenés sueño, Dr. Silva? ¿Por qué no vas
a dormir un rato? Aquí no va a pasar nada. Y de todos modos, Irala, que es un tigre, me va a
cuidar. ¿No es cierto, Irala?” O olhar desconfortável do “tigre” Irala confirma a ironia do
comentário. Ao contrário dos demais, ele é um personagem marcado pela ausência de
coragem: “Siempre con su dolor de muelas”, afirma Herrera. Pelo menos no café, o receio
desse se justifica. Irala foge e o deixa só após a chegada dos estrangeiros.
O medo, contudo, é um sentimento que precisa ser enfrentado por todos os membros
da resistência, inclusive pelo líder do grupo. Em casa, Don Porfirio escreve um inusitado
bilhete para Wenceslao N., seu gato: “¿Tiene miedo, Don Wenceslao? Le encuentro razón: la
cosa es como para meter miedo a cualquiera. Y el más fácil: miedo de que te peguen y te
duela. Ese miedo es capaz de hacerte olvidar todo. Hasta olvidar que los otros están ahí afuera
y que van a entrar, si nadie se les anima.” O diálogo imaginário, acompanhado pelo olhar do
animal, termina com o semblante grave de Don Porfirio e a destruição da anotação. Enquanto
isso, os preparativos para o ataque ao caminhão continuam. Ao encontrar Vildrac no depósito
60
na frontera norte, Herrera alerta: “Irala se esfumó. Esperaba encontrarlo con usted.” Vildrac
defende o amigo: “El pobre tiene las mejores intenciones. Pero cuando llegue el momento...”
Após verem fracassar o estratagema para destruir a carga, descobrem que os invasores estão
reunidos em um sítio, a Quinta de Los Laureles. Aguardando para atacar o local, o grupo se
reúne. Embora ainda não conheçamos o desfecho da nova investida, uma nota local prenuncia
os próximos acontecimentos. Silva, com um violão, entoa a “Milonga de Manuel Flores”:
Para los otros, la fiebre
y el sudor de la agonía.
Y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
Manuel Flores va a morir,
eso es moneda corriente.
Morir es una costumbre
que sabe tener la gente.
Mañana vendrá la bala,
y con la bala, el olvido.
Lo dijo el sabio Merlín:
morir es haber nacido.
Y sin embargo, me cuesta
decirle adiós a la vida,
esa cosa tan de siempre,
tan dulce y tan conocida.
Miro en el alba mi mano,
Miro, en la mano, las venas.
Con extrañeza las miro,
como si fueran ajenas.
¡Cuántas cosas estos ojos
en su camino habrán visto!
¿Quién sabe lo que verán
después que me juzgue Cristo?
Para los otros, la fiebre
y el sudor de la agonía.
Y para mí, cuatro balas
cuando esté clareando el día.
A canção, que alterna primeira e terceira pessoas, descreve os últimos momentos de
um homem consciente da proximidade da morte e antecipa o destino dos personagens. O
primeiro a cumprir a predição da milonga é Irala, aquele a quem falta bravura. No entanto,
durante a operação, que resulta na destruição da carga, o personagem se redime. Percebendo a
necessidade do sacrifício individual de um membro do grupo para o êxito da ação, ele se
oferece: “Herrera, para entrar en la casa, lo estuve pensando. Ya sé quien es el más indicado:
61
soy yo, precisamente. Si alguien ha de morir, el más indicado soy yo. Ustedes pueden ofrecer
su valentía y su destreza; yo sólo puedo ofrecer mi muerte.”
A ação também resulta em outras baixas. Além da morte de Irala, eles perdem Vildrac,
enquanto Herrera e Silva são feitos prisioneiros e levados para a frontera suroeste para serem
interrogados. Na prisão, os invasores tentam descobrir quem é o líder da resistência, quais são
os nomes dos participantes e onde estão guardadas as armas do grupo. Logo o método que
utilizam para conseguir informações é anunciado a Herrera: “El límite del sufrimiento físico
ha sido establecido. No hay razón para llegar al último termo. Más vale declarar en seguida,
ya que tarde o temprano tendrá que hacerlo.” Herrera resiste. Sabe que de qualquer modo não
será poupado. A tentativa de convencimento persiste: “Mejor que abandone, Herrera. ¿Por
qué nos resiste, si la gente está esperando lo que le vamos a vender?” A contestação também:
“La gente no se da cuenta. Y los que se dan cuenta tienen miedo, como yo.” Mesmo com a
promessa de uma morte rápida, ele se recusa a falar. Entretanto, antes de ser confrontado com
o momento decisivo, escapa. Na fuga, luta contra um dos invasores e o mata. Nessa cena,
também está explícito o valor da coragem. Após um confronto at close quarters, como se
referiu Borges a respeito das disputas com facas, Herrera toma o revólver do sentinela e
pergunta: “¿Qué haría usted si tuviera el revólver?”. “Lo mataría.”, ele responde. “Está bien.
Usted es un hombre valiente. Te merece que lo mate.” Herrera atira e foge. A sorte de Silva
não é a mesma. Após ser torturado, informa que as armas estão localizadas em uma ilha e é
morto pelos invasores. Entretanto, ao reencontrar Don Porfirio, Herrera descobre a artimanha
adotada pelo comandante: para proteger a organização, Don Porfirio havia mentido para todos
acerca da localização do armamento. A informação revelada por Silva era, portanto, falsa.
O grupo só volta a se encontrar no velório de Vildrac, durante o qual Don Porfirio
envia Lebendiger e Moon ao Hotel Unión na fronteira noroeste para despachar as armas a
outra parte da cidade. Enquanto isso, Herrera e Cachorro devem descansar. Inusitadamente,
Cachorro deixa o local e, ao passar por uma sala de cinema, decide assistir a um western.
Acompanhamos algumas cenas de Along the Rio Grande (1941), um faroeste dirigido por
Edward Killy, e a satisfação quase infantil do personagem ao longo da sessão. Após o término
do filme, ele permanece na sala, estático. Descobrimos que está morto. Provavelmente, foi
assassinado por um dos invasores.
O mesmo fim terão Moon e Lebendiger. Após despachar as armas, este é atraído por
uma desconhecida para uma emboscada. Ao perceber o erro, confessa: “La verdad es que yo
esperaba otra cosa, otra cosa más agradable, pero que hubiera sido una mera repetición. En
cambio, ahora puedo satisfacer una curiosidad que siempre me inquietó: la de saber si soy
62
valiente. Parece que sí.” Resignado, aceita seu destino. Moon, por sua vez, é confrontado com
um invasor no hotel. Diante de uma arma apontada para ele, caminha em direção ao inimigo,
que lhe pergunta após atirar: “¿No vio el revólver?”. “No, yo era ciego”, responde.
Além da morte dos membros da resistência, surge um novo obstáculo. Don Porfirio
descobre que os invasores conseguiram instalar uma estação de transmissão em um campo de
futebol. De lá, pretendem ordenar o ataque. Para impedi-los, pede a Herrera que vá ao local e
destrua o transmissor. Exausto, Herrera o questiona: “Quedamos nosotros dos, Don Porfirio.
¿A qué seguir peleando?”. “Siempre vale la pena seguir”, retruca o comandante. “Así será,
pero ahora sin mí. Don Porfirio, yo cumplí siempre lo que usted me mandó, pero esta ciudad
no tiene remedio. ¿A qué morir por gente que no quiere defenderse? Ya no cuente conmigo.”
A resposta de Don Porfirio revela um dos temas do filme: “La ciudad es más que la gente.”
Ao final, Herrera se recusa a cumprir a ordem: “No voy a ir.” No entanto, segue para o
estádio, onde é capturado antes de destruir a estação de transmissão.
Paralelamente a essa trama, acompanhamos as ações de Irene e de um grupo de
jovens. Apesar de os personagens que a acompanham nunca serem nomeados, essa parte do
relato adquire importância durante o filme. Percebemos que também participam de uma
organização secreta e se preparam para uma luta. Contudo, podemos apenas suspeitar que
suas ações estejam relacionadas à trama que envolve o grupo de Herrera. Apenas nas últimas
cenas, com o desaparecimento desse, a conexão entre as duas tramas é estabelecida. Em um
diálogo envolvendo Irene e Don Porfirio, descobrimos que ela pertencia a uma outra célula da
resistência. Ao vê-la preocupada com o marido, o comandante lhe diz que Herrera havia
recusado a missão: “Me aseguró que no iba a ir. Anda a esperarlo a tu casa.” Ela não acredita:
“Don Porfirio, él necesita ser valiente. Iré a mi casa y él no va a llegar.” O pressentimento de
Irene se confirma. Don Porfirio recebe uma ligação e vai ao estádio, onde encontra o corpo
de Herrera.
Finalmente, a invasão começa: em aviões, barcos, caminhões, carros e cavalos, os
estrangeiros avançam sobre Aquilea. Com a derrota do núcleo principal, o grupo de jovens
adquire protagonismo. Don Porfirio anuncia: “Tantos años estuve preparándolos. Ellos ya
están adentro. Ahora la resistencia empieza. Ahora les toca a ustedes, los del sur.” E sinaliza a
Irene para começar a distribuir as armas. A ordem indica também uma sucessão de gerações.
Agora, os mais jovens assumem a responsabilidade pelos destinos da cidade. Porém, como
afirma um deles na cena final, a continuidade implica renovação e traz a marca da diferença:
“Ahora nos toca a nosotros, pero tendrá que ser de otra manera.”
63
Imagens de Aquilea
64
Irene (Olga Zubarry)
Herrera (Lautaro Murúa)
65
Don Porfirio (Juan Carlos Paz) e o mapa de Aquilea
Silva (Roberto Villanueva) canta a Milonga de Manuel Flores
66
Cartaz anuncia um western em exibição
A resistência, com Herrera (Lautaro Murúa) no centro
67
Don Porfirio (Juan Carlos Paz)
Don Porfirio (Juan Carlos Paz) e Irene (Olga Zubarry) coordenam a nova resistência
68
2.3- Fábulas kafkianas
“En todo caso, se trata de un film fantástico y de un tipo de fantasía que puede
calificarse de nueva. No se trata de una ficción científica a la manera de Wells o Bradbury.
Tampoco hay elementos sobrenaturales. Los invasores no llegan de otro mundo; y tampoco es
psicológicamente fantástico: los personajes no actúan – como suele ocurrir en las obras de
Henry James o Kafka - de un modo contrario a la conducta general de los hombres”. Assim,
Borges, em sua conversa com Fernando Sorrentino, descreve Invasión. E acrescenta: “Se trata
de una situación fantástica: la situación de una ciudad (la cual, a pesar de su muy distinta
topografía, es evidentemente Buenos Aires) que está sitiada por invasores poderosos y
defendida – no se sabe por qué – por un grupo de civiles.”12
Essa “situação fantástica” que instituiria a diegese do filme e diferiria das narrativas
mais populares do gênero (estabelecidas, segundo o escritor, a partir da projeção do futuro, da
intromissão de elementos sobrenaturais na realidade ou da elaboração de personagens
orientados por uma lógica incomum) possibilitava o desenvolvimento de um tema recorrente
na obra do escritor argentino: o conflito e a luta. O assunto é realçado na sinopse do filme
escrita por Borges: “Invasión es la leyenda de una ciudad, imaginaria o real, sitiada por
fuertes enemigos y defendida por unos pocos hombres, que acaso no son héroes. Luchan hasta
el fin, sin sospechar que su batalla es infinita.”13
Além da exposição da matéria, a síntese dos argumentistas apresenta um elemento
importante do enredo: a infinitude da luta.14 Em Invasión, assistimos a um estado de sítio
velado e à ameaça constante de um ataque, enquanto a resistência, renovada pela chegada de
novas gerações, persiste mesmo diante de uma derrota iminente. A ausência de um desfecho
para o conflito central da narrativa é um dos aspectos que distanciam o filme dos relatos
tradicionais do cinema. Contudo, não se trata apenas da omissão do ato correspondente à
resolução da estória, mas da construção de uma estrutura que projeta a ação ad infinitum.
Nesse ponto, a trama de Invasión reverbera especialmente a interpretação de Borges
da obra de Franz Kafka, a quem ele cita no início da resposta a Fernando Sorrentino como
uma referência para a definição do gênero do filme. Na leitura dos relatos de Kafka realizada
12 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97. A afirmação de Borges confirma um
comentário realizado pelo autor no ano de lançamento do filme: “Ya que soy uno de los autores, no debo
permitirme su elogio. Quiero dejar escrito, sin embargo, que Invasión no se parece a ningún otro film, y que bien
puede ser el primer ejemplo de un nuevo género fantástico.” Cf. BORGES, Jorge Luis apud HUGO Santiago y
su película Invasión. La nación, página não identificada. 13 Cf. COZARINSKY, Edgardo. Borges en / y / sobre cine, p. 86. 14 Esse aspecto da estória difere da ideia original proposta por Santiago, segundo a qual os invasores venceriam.
69
pelo escritor argentino, é possível descobrir o mecanismo fundamental da fábula de Invasión.
Alguns anos antes da sua morte, Borges anota: “Habla un discípulo de Kafka, un
tardío discípulo de Kafka, pero que sigue sintiéndolo y agradeciendo lo mucho que él le ha
dado y lo poco que él ha podido hacer con ese espléndido regalo de su obra.”15 A observação
abre o ensaio introdutório incluído em uma edição de A Metamorfose publicada na Argentina
em 1982. Nele, Borges propõe o exame de dois temas do trabalho do escritor tcheco: o
labirinto e a tarefa impossível. No entanto, antes de comentá-los, discute o modus operandi
kafkiano, um procedimento que poderia ser associado ao que os escolásticos denominaram
regresus in infinitum, “un proceso intelectual bastante común tratándose de etiología o
metafísica, pero raro tratándose de literatura”. E completa: “podríamos decir que fuera de
algunos precursores, que de algún modo fueron inventados por él, fue inaugurado por
Kafka.”16 A exposição remete diretamente ao ensaio “Kafka y sus precursores”, publicado em
La nación em 1951 e incluído no ano seguinte em Otras inquisiciones, no qual Borges
delineia uma história dos predecessores de Kafka: “Yo premedité alguna vez un examen de
los precursores de Kafka. A éste, al principio, lo pensé tan singular como el fénix de las
alabanzas retóricas; a poco de frecuentarlo, creí reconocer su voz, o sus hábitos, en textos de
diversas literaturas y de diversas épocas. Registraré unos pocos aquí, en orden cronológico.”17
A lista proposta não é extensa, mas é certamente bastante heterogênea. Inclui um
apólogo de Han Yu (um prosador chinês do séc. IX), duas parábolas do filósofo e teólogo
dinamarquês Sören Kierkegaard (“una fuente más previsible”, reconhece Borges), o poema
“Fears and Scruples” de Robert Browning, um conto de Léon Bloy e outro de Lord Dunsany.
Entretanto, é na filosofia eleata pré-socrática que Borges descobre o primeiro antecessor do
escritor tcheco:
El primero es la paradoja de Zenón contra el movimiento. Un móvil que está
en A (declara Aristóteles) no podrá alcanzar el punto B, porque antes deberá
recorrer la mitad del camino entre los dos, y antes, la mitad de la mitad, y así
hasta lo infinito; la forma de este ilustre problema es, exactamente, la de El
castillo, y el móvil y la flecha y Aquiles son los primeros personajes
kafkianos de la literatura.18
15 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La metamorfosis, p.
5. 16 Ibid., loc. cit. 17 BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. In: Inquisiciones / Otras inquisiciones, edição digital. 18 Ibid. Podemos recorrer a outro trecho de Borges para uma explicação distinta a respeito da dificuldade
decorrente do raciocínio apresentado no paradoxo de Zenão: “Aquiles corre diez veces más ligero que la tortuga
y le da una ventaja de diez metros. Aquiles corre esos diez metros, la tortuga corre uno; Aquiles corre ese metro,
la tortuga corre un decímetro; Aquiles corre ese decímetro, la tortuga corre un centímetro; Aquiles corre ese
centímetro, la tortuga un milímetro; Aquiles Piesligeros el milímetro, la tortuga un décimo de milímetro y así
infinitamente, sin alcanzarla... Tal es la versión habitual.” Essa exposição foi publicada em Discusión (1932). Na
70
Na argumentação aporética de Zenão, elaborada para contestar aqueles que defendiam
teses contrárias às de Parmênides, Borges reconhece a voz de Kafka. Essa associação também
é mencionada em agosto de 1937, em uma resenha de O processo publicada na revista El
hogar. Inicialmente, Borges compara os argumentos das narrativas de Kafka:
El argumento, como el de todos los relatos de Kafka, es de una terrible
simplicidad. El héroe, abrumado sin saber cómo por un disparatado proceso,
no logra averiguar el delito de que lo acusan, ni siquiera enfrentarse con el
invisible tribunal que debe juzgarlo; éste, sin juicio previo, acaba por hacerlo
degollar. En otra de las narraciones de Kafka, el héroe es un agrimensor
llamado a un castillo, que no logra jamás penetrar en él ni ser reconocido por
las autoridades que lo gobiernan. En otra, el tema es un mensaje imperial
que no llega nunca, debido a las personas que entorpecen el trayecto del
mensajero; en otra, un hombre que se muere sin haber conseguido visitar un
pueblito próximo... 19
Por fim, cita a observação de um amigo a respeito da analogia entre Zenão e Kafka:
“Un amigo me indica un precursor de sus ficciones de imposible fracaso y de obstáculos
mínimos e infinitos: el eleata Zenón, inventor del certamen interminable de Aquiles y la
tortuga.”20
No ano seguinte, no prólogo de uma tradução de A metamorfose frequentemente
atribuída ao escritor argentino,21 ele aponta a subordinação e o infinito como “obsessões”
kafkianas materializadas na composição de hierarquias infinitas (“En casi todas sus ficciones
hay jerarquías y esas jerarquías son infinitas”, afirma Borges) que se desdobrariam a partir da
eterna postergação do desenlace da trama. Por sua vez, essa seria marcada pela eliminação de
eventos que normalmente são incorporados ao relato. O motivo para a supressão seria
justamente a impossibilidade de, tal como no paradoxo de Zenão, descrever os inumeráveis
pontos existentes entre a meta traçada pelo protagonista e a efetiva realização do seu objetivo:
La crítica deplora que en las tres novelas de Kafka falten muchos capítulos
intermedios, pero reconoce que esos capítulos no son imprescindibles. Yo
tengo para mí que esa queja indica un desconocimiento esencial del arte de
Kafka. El pathos de esas “inconclusas” novelas nace precisamente del
número infinito de obstáculos que detienen y vuelven a detener a sus héroes
idénticos. Franz Kafka no las terminó, porque lo primordial era que fuesen
abertura do ensaio, Borges afirma que Zenão poderia ser incluído (como Kafka) em uma história do infinito. Cf.
BORGES, Jorge Luis. Avatares de la tortuga. Discusión, p. 135-136. 19 BORGES, Jorge Luis. The trial, de Franz Kafka. In: Miscelánea, edição digital. 20 Ibid. Em outubro do mesmo ano, em uma nota biográfica sobre Kafka também escrita para El hogar, Borges
destaca: “América, la más esperanzada de sus novelas, es acaso la menos característica. Las otras dos – El
proceso (1925), El castillo (1926) – tienen un mecanismo de todo igual al de las paradojas interminables del
eleata Zenón.” BORGES, Jorge Luis. Franz Kafka. In: Miscelánea, edição digital. 21 Essa versão em espanhol de A Metamorfose foi publicada originalmente na Revista de Occidente em 1933 sem
a identificação do tradutor. Em 1938, foi editada pela Editorial Losada e a tradução foi atribuída a Jorge Luis
Borges. No entanto, essa atribuição é questionável. Cf. FLÓ, Juan. Jorge Luis Borges traductor de Die
Verwandlung. Anales de literatura hispanoamericana, p. 215-240.
71
interminables. Recordáis la primera y la más clara de las paradojas de
Zenón? El movimiento es imposible, pues antes de llegar a B deberemos
atravesar el punto intermedio C, pero antes de llegar a C, deberemos
atravesar el punto intermedio D, pero antes de llegar a D... El griego no
enumera todos los puntos; Franz Kafka no tiene por qué enumerar todas las
vicisitudes. Bástenos comprender que son infinitas como el Infierno.22
A questão reaparece no ensaio publicado em 1982. Desta vez, Borges revela o nome
do amigo que teria indicado a aproximação entre Kafka e Zenão: “Y quiero recordar a mi
amigo Carlos Mastronardi, el gran poeta de Entre Ríos [...] Yo recuerdo que él había iniciado
la lectura de ‘El proceso’ y me dijo lacónicamente: ‘Franz Kafka, Zenón de Elea’.”23 Em
seguida, aprofunda a associação ilustrando o procedimento literário kafkiano com os
paradoxos de Zenão:
Y ahora se preguntarán ustedes qué es el ‟regresus in infinitum”, para mí
una de las grandes innovaciones de Kafka: es un proceso lógico, conocido
por los escolásticos. Comenzaré por uno de los ejemplos más amenos de este
método y tema de Kafka. El “regresus in infinitum” puede ilustrarse, creo
que del modo más vívido posible, mediante las paradojas de Zenón de Elea,
que dijo que si creíamos en la realidad del tiempo como hecho de instantes y
la del espacio como hecho de puntos, el transcurso del tiempo y el
movimiento son imposibles, e ilustra esto mediante varias paradojas que
fueron refutadas por Aristóteles y comentadas por toda la filosofía después,
pero recordaré dos simplemente, ya que en ellas se ve claramente cuál es el
modo de Kafka y me permite recordar a mi padre.24
Demonstrando afeto a um problema literário e filosófico, Borges prossegue
descrevendo um dos paradoxos do discípulo de Parmênides através de uma breve narrativa
familiar. Ainda criança, quando morava nas orillas de Buenos Aires, teria escutado do pai o
argumento formulado pelo filósofo eleata no séc. V a.C. para defender a indivisibilidade do
ser:
Mi padre – yo tendría 9 o 10 años entonces –, en una casa por las orillas de
Palermo una noche después de comer me mostró el tablero de ajedrez y me
dijo, señalándome las casillas: Vamos a poner a una persona que está en esta
casilla – y me señaló la casilla de la torre, la de la izquierda – y quiere ir a la
22 BORGES, Jorge Luis. Franz Kafka: La metamorfosis. In: Miscelánea, edição digital. O prefácio foi publicado
novamente em 1979 com algumas mudanças. Nessa reedição, Borges recorda: “No olvidaré mi primer lectura de
Kafka en cierta publicación profesionalmente moderna de 1917. [...] Entre tanto estrépito impreso, un apólogo
que llevaba la firma de Franz Kafka me pareció, a pesar de mi docilidad de joven lector, inexplicablemente
insípido. Al cabo de los años me atrevo a confesar mi imperdonable insensibilidad literaria; pasé frente a la
revelación y no me di cuenta.” Cf. BORGES, Jorge Luis. Prólogo. In: El buitre. Embora convincente, a
“confissão” pode não ser verdadeira. Em 1983, Borges apresenta uma outra versão: “Mi primer recuerdo de
Kafka es del año 1916, cuando decidí aprender el idioma alemán. [...] Fue entonces cuando leí el primer libro de
Kafka que, aunque no lo recuerdo ahora exactamente, creo que se llamaba Once cuentos.” BORGES, Jorge Luis.
Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados (1956-1986), edição
digital. 23 Id. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis, p. 5-6. 24 Ibid., p. 6.
72
casilla de la derecha. Pues bien, tendría que pasar antes por la casilla de la
reina. Yo dije, naturalmente, que sí. Y él me dijo: Pero antes tendrá que
pasar por la casilla del caballo. Yo afirmé nuevamente. Y él me dijo: Bueno,
aquí tenemos 8 casillas, ya que se trata de 64 casillas, que forman el tablero.
Supongamos un tablero más largo, con un número indefinido de casillas.
Para llegar de la primera a la última habrá que pasar por todas las casillas
intermedias. Dije que sí y él me dijo: Muy bien, pero entonces, antes de
llegar a la meta habrá que pasar por la casilla del medio, antes por la del
medio del medio, antes por la del medio del medio del medio y así
sucesivamente, es decir, que no se llegará nunca de una casilla a otra.25
Perplexo, somente alguns dias depois Borges ouviria do pai a estória da corrida entre
Aquiles e a tartaruga: Aquiles, “o de pés ligeiros”, dando uma vantagem ao seu oponente,
jamais conseguiria alcançá-lo. Após a historieta familiar, Borges conclui: “Ahora bien, ese
procedimiento que se llama ‘regresus in infinitum’ fue aplicado para refutar pensamientos,
muchas veces lógicamente, pero Kafka fue el primero, o uno de los primeros, que lo aplicó a
la literatura.”26
A partir desse método e de alguns temas (subordinação, hierarquia, postergação,
infinito, labirinto e tarefa impossível), Borges, “discípulo de Kafka”, define a escritura do
mestre. A ascendência dessa leitura da obra do escritor tcheco está presente no trabalho de
Borges como roteirista em Invasión. O regresus in infinitum é mobilizado na construção de
um relato sobre homens que defendem a sua cidade e lutam “hasta el fin, sin sospechar que su
batalla es infinita”.
Borges já havia recorrido a Kafka anteriormente. Pelo menos, é o que reconhece em
1983, ano do centenário do nascimento do autor de A Metamorfose: “Yo he escrito también
algunos cuentos en los cuales traté ambiciosa e inútilmente de ser Kafka. Hay uno, titulado La
biblioteca de Babel y algún otro, que fueron ejercicios en donde traté de ser Kafka.”27 A
construção de uma narrativa cinematográfica kafkiana tampouco seria inovadora. Em um das
resenhas escritas para Sur, Borges identifica em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) um
argumento que aproxima Orson Welles do escritor tcheco.28 Embora condene o filme, juízo
que será revisto anos depois, Borges já demonstrava estar atento à possibilidade de
composição de uma trama kafkiana no cinema.
25 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis, p.
6-7. 26 Ibid., p. 9-10. 27 Id. Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados (1956-1986), edição
digital. 28 Id. Un film abrumador. In: COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 68.
73
2.4- Uma cidade maior que os homens
“Cualquier destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de un solo
momento: el momento en que el hombre sabe para siempre quien es.” A afirmação é realizada
no conto “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz”, publicado em El Aleph (1949). No relato, o
protagonista, um gaucho formado em um “mundo de barbarie monótona”, decide a sua sorte
durante a perseguição a um desertor: “Cuéntase que Alejandro de Macedonia vio reflejado su
futuro de hierro en la fabulosa historia de Aquiles; Carlos XII de Suecia, en la de Alejandro.
A Tadeo Isidoro Cruz, que no sabía leer, ese conocimiento no le fue revelado en un libro; se
vio a si mismo en un entrevero y un hombre.” Para o personagem borgiano, o momento de
reconhecimento e aceitação da sua ventura viria em uma noite de junho de 1870: “Lo
esperaba, secreta en el porvenir, una lúcida noche fundamental: la noche en que por fin vio su
propia cara, la noche en que por fin oyó su nombre. Bien entendida, esa noche agota su
historia, mejor dicho un instante de esa noche, un acto de esa noche, porque los actos son
nuestro símbolo.” Nesse ato logo tornado símbolo, Tadeo Isidoro Cruz conhece a si mesmo
através da imagem do outro:
Éste [Teodoro Cruz], mientras combatía en la oscuridad (mientras su cuerpo
combatía en la oscuridad), empezó a comprender. Comprendió que un
destino no es mejor que otro, pero que todo hombre debe acatar el que lleva
adentro. Comprendió que las jinetas y el uniforme ya lo estorbaban.
Comprendió su íntimo destino de lobo, no de perro gregario; comprendió
que el otro era él. Amanecía en la desaforada llanura; Cruz arrojó por tierra
el quepís, gritó que no iba a consentir el delito de que se matara a un valiente
y se puso a pelar contra los soldados, junto al desertor Martín Fierro.29
Através desse breve relato sobre um gaucho que descobre a si mesmo afirmando a sua
coragem, Borges revela a fortuna de um personagem. Da mesma forma, ele apresentará em
Invasión os destinos dos defensores de Aquilea, realizando assim o ideal de cinema que
defendia: “Biógrafo es el que nos descubre destinos”, diz o escritor, ainda no final da década
de 20, na sua vindicação do cinema narrativo.
Segundo Hugo Santiago, quase todos os personagens do núcleo principal do filme
foram delineados no argumento entregue por Borges e Bioy Casares: Don Porfirio, Herrera,
Lebendiger, Moon, Irala, Silva e Vildrac (Cachorro, o membro da resistência que morre
durante uma sessão de cinema, teria sido o único criado posteriormente).30 Como na
29 BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição digital. 30 Don Porfirio seria uma ficcionalização de Macedonio Fernández: “Yo sé que cuando, con Adolfito, cuando
decidieron como sería Don Porfirio, Borges llamó a su mamá y le dijo: Madre, hoy pusimos a Macedonio en la
película”, afirma Hugo Santiago. Sobre Moon e Lebendiger, o diretor relembra: “Ya se decía que había un
74
“Biografía de Tadeo Isidoro Cruz”, a história dos comandados por Don Porfirio também é
marcada por um momento decisivo. Diante da morte, descobrem o valor individual e, através
desse último ato, definem a si mesmos.
Para compreender o significado dessa definição, é necessário considerar a natureza
civil dos participantes da resistência, aspecto ressaltado pelo próprio Borges: “Esos civiles no
son desde luego esa nueva versión de Douglas Fairbanks que se llama James Bond. No: son
hombres como todos los hombres; no son especialmente valientes, ni, salvo uno,
excepcionalmente fuertes. Son gente que trata simplemente de salvar a su patria de ese peligro
y que van muriendo o haciéndose matar sin mayor énfasis épico.”31 Devido ao desafio que a
tarefa assumida pela resistência acarreta, a principal implicação dessa condição é a
necessidade de reestabelecer o domínio sobre o mundo das armas, um movimento que
representa um retorno à tradição militar. Nesse regresso, os membros da resistência são
lançados na trajetória que determinará o valor de cada um deles.32 Apesar de caírem
sucessivamente combatendo o inimigo, superam a fragilidade da condição civil original
através daquilo que Borges considera uma ação épica:
Pero yo he querido que el film sea finalmente épico; es decir, lo que los
hombres hacen es épico, pero ellos no son héroes. Y creo que en esto
consiste la épica; porque, si los personajes de la épica son personas dotadas
de fuerzas excepcionales o de virtudes mágicas, entonces lo que hacen no
tiene mayor valor. En cambio, aquí tenemos a un grupo de hombres, no
todos jóvenes, bastante banales algunos, hay alguno que es padre de familia,
y esta gente está a la altura de esa misión que han elegido.33
Entre esses “hombres como todos los hombres”, o primeiro destino a ser revelado é o
de Irala, cuja notória falta de coragem (qualidade que, como visto, também era admitida por
Borges) é ironizada por Herrera. No entanto, na operação organizada por Don Porfirio na
personaje como Bioy y otro como Borges, por la vista y por el Don Juan.” Embora os personagens estivessem
esboçados no “resumo”, surpreendentemente faltava ao argumento a estrutura de um relato: “Lo que pasaba es
que no parecía escrito por Borges y Bioy porque Borges y Bioy saben armar un cuento. [...] Cuando Silvina
[Ocampo] le reprochaba y le decía: ‘¿Jorge, por qué aquí no está... por qué falta lo que hizo el personaje de aquí
a ahí?’ Y Borges le decía: ‘Porque no lo sé, Silvina.’ Pero en la prosa de ahí a ahí pasaba a la perfección. Este
primer texto, no. No había eso. En realidad, era de una modernidad... [risos] Porque había... Los personajes
aparecían apenas con descripciones a pincelazos y había unas secuencias en veinte y pico de páginas.” Cf.
BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 31 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97. 32 Como nota David Oubiña, “Invasión es en cierto modo una colección de diferentes modos de enfrentarse con
la muerte.” OUBIÑA, David. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología urbana de Invasión.
Variaciones Borges, p. 80. A preocupação em estabelecer esses “diferentes modos” também é comentada por
Borges: “Y creo que, además de lo raro de esta fábula, hemos resuelto bien el gran problema técnico que
teníamos (que supongo que es el problema que enfrentan quienes dirigen ‘westerns’): el hecho de que tiene que
haber muchas muertes violentas (esto ocurría antes con los films de ‘gangsters’, que no sé si se hacen todavía:
creo que no) [...] y que esas muertes violentas tienen, sin embargo, que ser distintas: no pueden ser repetidas y
monótonas.” Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 98. 33 Cf. SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges, p. 97-98.
75
Quinta de Los Laureles, Irala, imolando-se, restabelece a sua honra. Sua renúncia é um ato
final de coragem que possibilita a ele recuperar um valor fundamental: o personagem
descobre, no momento da morte, a sua bravura. Na mesma operação, para proteger Herrera,
Silva, Cachorro e Moon, que fugiam com o caminhão no qual estava a estação de transmissão,
Vildrac não hesita em lançar-se contra os inimigos que perseguiam os quatro: “Aquí!”, grita
para desviar a atenção dos invasores. Uma demonstração de coragem inquestionável do
discreto farmacêutico, que é atingido e morre após a ação.
Por sua vez, Silva, capturado depois da destruição do transmissor, é torturado e
assassinado. Ainda na cela, antes de ser interrogado, ele repete alguns versos da “Milonga de
Manuel Flores”, construindo inicialmente uma estrofe singular:
Esa cosa tan de siempre
tan dulce y tan conocida.
Y con la bala, el olvido.
Lo dijo el sabio Merlín:
morir es haber nacido.
Em seguida, declama a sétima e a sexta estrofes. Os versos finais, proferidos com uma
voz embargada, são entretecidos com o som da abertura da porta e o ruído de passos que
indicam a chegada do algoz e a proximidade da morte:
¡Cuántas cosas estos ojos
en su camino habrán visto!
¿Quién sabe lo que verán
después que me juzgue Cristo?
A angústia do personagem remete diretamente a “La espera”, conto de Borges
publicado no jornal La Nación em 1950 e posteriormente incluído em El Aleph. No relato, o
protagonista tenta escapar dos assassinos que o perseguem, embora saiba intimamente que a
sua sorte já está definida.34 Do mesmo modo, Silva, aguardando a vinda do carrasco, já
conhece o seu fim: ao entoar os versos da milonga, somente antecipa a sua morte. Embora
revele o local onde acredita estarem escondidas as armas do grupo de Don Porfirio, sabemos
que não se dobrou facilmente. Ao escapar do edifício, Herrera, que também havia sido
capturado, é informado sobre a delação: “[...] él otro señor les dijo donde están las armas. Eso
sí les dio trabajo. Lo mataron para escarmiento de una descarga en el oído.” Dessa forma, é
destacada a tentativa de resistência (e, de certo modo, a bravura) do personagem, que teria
recebido como punição uma morte atroz.
O próximo resistente a tombar é Cachorro. Apesar de as circunstâncias da sua morte
não serem tão claras, o prazer que demonstra na sala de exibição durante a sessão de Along 34 BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição digital.
76
the Rio Grande pode ser compreendido como a realização de um desejo épico através da
projeção cinematográfica.35 Pelo menos, essa era a função cumprida, segundo Borges, pelos
westerns. A Ronald Christ, o escritor afirma: “I think nowadays, while literary men seem to
have neglected their epic duties, the epic has been saved for us, strangely enough, by the
Westerns.” Em seguida, completa:
When I went to Paris, I felt I wanted to shock people, and when they asked
me – they knew that I was interested in the films, or that I had been, because
my eyesight is very dim now – and they asked me, “What kind of film do
you like?” And I said, “Candidly, what I most enjoy are the Westerns.” They
were all Frenchmen; they fully agreed with me. They said, “Of course we
see such films as Hiroshima mon amour or L'année dernière à Marienbad
out of a sense of duty, but when we want to amuse ourselves, when we want
to enjoy ourselves, when we want, well, to get a real kick, then we see
American films.”36
Assim, a morte de Cachorro, provavelmente assassinado durante a exibição, também
pode ser compreendida como o cumprimento de uma trajetória épica, como a realização
imaginária de um destino negado a ele. Esse desejo por uma vida orientada a partir de um
ideal de coragem (constantemente referido por Borges ao comentar a sua própria escolha por
uma carreira literária) seria atendido através do filme assistido pelo personagem em meio ao
confronto que decide os rumos da cidade.
A próxima morte é a de Lebendiger. Após enviar as armas da resistência para Don
Porfirio, o “Don Juan” do grupo é seduzido e levado para uma casa. Ao perceber o engodo,
enfrenta a sua sina sem digressões, uma atitude austera diante da morte que comprovaria a sua
valentia. É o que diz o próprio personagem: “La verdad es que yo esperaba otra cosa, otra
cosa más agradable, pero que hubiera sido una mera repetición. En cambio, ahora puedo
35 A cena também retoma um elemento de “La espera”. No conto, o protagonista frequenta um cinematógrafo:
“El señor Villari, al principio, no dejaba la casa; cumplidas unas cuantas semanas, dio en salir, un rato, al
oscurecer. Alguna noche entró en el cinematógrafo que había a las tres cuadras. No pasó nunca de la última fila;
siempre se levantaba un poco antes del fin de la función. Vio trágicas historias del hampa; éstas, sin duda,
incluían errores; éstas sin duda, incluían imágenes que también lo eran de su vida anterior; Villari no los advirtió
porque la idea de una coincidencia entre el arte y la realidad era ajena a él. Dócilmente trataba de que le gustaran
las cosas; quería adelantarse a la intención con que se las mostraban. A diferencia de quienes han leído novelas,
no se veía nunca a sí mismo como un personaje del arte.” BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos
completos, edição digital. 36 BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, disponível on-line.
Entrevista realizada por Ronald Christ. Como aponta o crítico francês André Bazin em um prefácio publicado
em 1953, o western era eventualmente associado à poesia épica devido a algumas características do gênero: “O
western é épico, pensa-se geralmente, pela escala sobre-humana de seus heróis, pela extensão de suas proezas.
Billy the Kid é invulnerável como Aquiles, e seu revólver, infalível. O cowboy é um cavaleiro. Ao caráter do
herói corresponde um estilo de mise-en-scène, em que a transposição épica aparece desde a composição da
imagem, sua predileção pelos vastos horizontes, os grandes planos de conjunto, que sempre lembram o confronto
do Homem e da Natureza. O western ignora praticamente o primeiro plano, um pouco menos o plano americano;
ele se prende, em compensação, ao travelling e à panorâmica, que negam o quadro de tela e restituem a plenitude
do espaço.” BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. In: O cinema: ensaios, p. 206.
77
satisfacer una curiosidad que siempre me inquietó: la de saber si soy valiente. Parece que sí.”
Do mesmo modo, Moon, atingido por um inimigo no interior do hotel, aceita
impassivelmente o seu fim. A morte, no seu caso, significa também uma revelação e uma
libertação que podem ser compreendidas pelo sentido metafórico das últimas palavras do
personagem: “Yo era ciego.”
Por último, Herrera, o único do grupo cuja força física sobressai, é cercado por
invasores ao tentar destruir a estação de transmissão instalada em um estádio de futebol.
Recusando-se a obedecer aos inimigos, é morto no local. A sua atitude reverbera uma frase
dita por Irene na cena anterior: “Don Porfirio, él [Herrera] necesita ser valiente.” A sentença é
confirmada pelo próprio Don Porfirio ao encontrar o corpo do comandado no campo do
estádio: “Claro, yo sabía que vos no fallás.” O líder do grupo confiava que, mesmo com o
questionamento de Herrera a respeito do valor da resistência, o seu combatente mais valoroso
tentaria cumprir a missão. Nesse caso, a morte do personagem não revela, mas apenas
confirma um destino previsto.
Em um breve comentário a respeito de Herrera, Hugo Santiago cita o primeiro verso
de “El compadre”: “Hombre de las orillas: perdurable”.37 O poema, publicado por Borges em
1943 com o pseudônimo de Manuel Pinedo, trata da permanência do compadrito orillero na
cultura portenha.38 A aproximação apontada por Santiago pode ser compreendida pela
coragem característica do personagem, cujo comportamento representa um contraponto à
conduta de Irala. Entretanto, Herrera, como os demais, não desconhece o medo. Diante de um
invasor que tenta dissuadi-lo argumentando que os próprios habitantes de Aquilea se
opunham à resistência, ele contesta: “La gente no se da cuenta. Y los que se dan cuenta tienen
miedo, como yo.” Para Herrera, aquele que necessita ser valente, o ato de coragem não
pressupõe a ausência do medo, mas sim o seu enfrentamento, embate que faz parte de um
sistema de valores no qual a morte é, em certa medida, dignificada. A um inimigo, Herrera
sentencia: “Usted es un hombre valiente. Te merece que lo mate.”
Além de definirem os destinos individuais dos personagens, os exercícios de coragem
realizados pelos membros da resistência são articulados em torno da defesa de um bem
comum: a cidade. Se a trajetória dos resistentes é determinada por um momento decisivo,39 a
37 Cf. BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). 38 BORGES, Jorge Luis. El compadre. In: Textos recobrados (1931-1955), edição digital. 39 Há neles algo do sentimento que atravessa Johannes Dahlmann, protagonista de “El Sur”, conto de Borges
publicado em La Nación em 1953 e incorporado a Ficciones: “Salieron, y si en Dahlmann no había esperanza,
tampoco había temor. Sintió, al atravesar el umbral, que morir en una pelea a cuchillo, a cielo abierto y
acometiendo, hubiera sido una liberación para él, una felicidad y una fiesta, en la primera noche del sanatorio,
cuando le clavaron la aguja. Sintió que si él, entonces, hubiera podido elegir o soñar su muerte, ésta es la muerte
78
atuação do grupo é motivada pela necessidade de preservar a ordem simbólica representada
pela urbe, expondo um conjunto de atitudes que reverberam outros aspectos da literatura de
Borges. A relação entre o homem e a cidade, tema que perpassa a sua obra, é desenvolvida
especialmente nos seus primeiros livros, que compõem um olhar intelectual e afetivo sobre
Buenos Aires e estabelecem os fundamentos da sua produção literária.40 Em Fervor de
Buenos Aires, livro preservado da censura do escritor maduro, é possível descobrir algumas
ideias seminais que possibilitam compreender alguns pontos da vinculação entre Borges e a
sua terra natal. O primeiro poema, “Las calles”, retirado da publicação a partir de 1977,
apresenta o cenário a partir do qual será desdobrada aquilo que Beatriz Sarlo chama de uma
“arte poética de las orillas”:41
Las calles de Buenos Aires
ya son la entraña de mi alma.
No las calles enérgicas
molestadas de prisas y ajetreos,
sino la dulce calle de arrabal
enternecida de árboles y ocasos
y aquellas más afuera
ajenas de piadosos arbolados
donde austeras casitas apenas se aventuran
hostilizadas por inmortales distancias
a entrometerse en la honda visión
hecha de gran llanura y mayor cielo.
[...]
Hacia los cuatro puntos cardinales
se van desplegando como banderas las calles;
ojalá en mis versos enhiestos
vuelen esas banderas.42
O olhar de Borges também se desloca para lugares mais definidos da cidade, buscando
estabelecer nos espaços públicos, tal como em “La plaza San Martín”, aquilo que aproxima os
habitantes:
que hubiera elegido o soñado.” BORGES, Jorge Luis. Ficciones. In: Cuentos completos, edição digital. 40 “Con Evaristo Carriego, Borges ha completado los movimientos de escritura poética y de invención de
ficciones que fundan su literatura. Nunca dejará de corregir y criticar esta primera etapa de su obra a la que, años
después, atribuye un excesivo pintoresquismo criollista y un deslumbramiento también excesivo con el ethos
suburbano que él mismo había inventado. Sin embargo, los libros del Borges joven conservan hasta hoy su
potencia de imaginación poética y ficcional. Casi no es posible pensar la obra de Borges, incluso aquella que
parece más cosmopolita y menos referencial, sin una relación con estos primeros textos.” SARLO, Beatriz. Jorge
Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina, p. 159. 41 Id. Borges, un escritor en las orillas, disponível on-line. 42 De forma mais sutil, “Calle desconocida” expressa essa mezlca entre o poeta e a cidade: “En esa hora de fina
luz arenosa / mis andanzas dieron con una calle ignorada, / abierta en noble anchura de terraza / mostrando en las
cornisas y en las paredes / colores blandos como el mismo cielo / que conmovía el fondo. / Todo – honesta
medianía de las casas austeras, / travesuras de columnitas y aldabas, / tal vez una esperanza de niña en los
balcones – / se me adentró en el corazón anhelante / con limpidez de lágrima.” BORGES, Jorge Luis. Fervor de
Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p. 271-273 e 279-
281.
79
¡Qué bien se ve la tarde
desde el fácil sosiego de los bancos!
Ahincado en la revuelta de un declive
el puerto dice de comarcas hurañas
y la honda plaza igualadora de almas
ábrese como pecho generoso
que derrama confianza.43
A praza iguala as almas e amplifica o triunfo do espaço urbano, remodelado e
transformado em símbolo do processo de modernização que havia se intensificado nas
primeiras décadas dos séc. XX. Entretanto, por trás do êxito e da confiança ostentados nesse
cenário, o poeta tateia, em “Ciudad”, a pátria perdida:
Anuncios luminosos tironeando el cansancio.
Charras algarabías
entran a saco en la quietud del alma.
Colores impetuosos
escalan las atónitas fachadas.
De las plazas hendidas
rebosan ampliamente las distancias.
El ocaso arrasado
que se acurruca tras los arrabales
es escarnio de sombras despeñadas.
Yo atravieso las calles desalmado
por la insolencia de las luces falsas
y es tu recuerdo como un ascua viva
que nunca suelto
aunque me quema las manos.44
As luzes falsas que encontra ao cruzar as ruas, também repletas de “anuncios
luminosos” e “colores impetuosos”, representam as transformações que inquietam Borges em
suas caminhadas, mudanças que levam o poeta a questionar, em “Vanilocuencia”, o próprio
valor do fazer poético:
La ciudad está en mí como un poema
que aún no he logrado detener en palabras.
[...]
¿Para qué esta porfía
de clavar con dolor un claro verso
de pie como una lanza sobre el tiempo
si mi calle, mi casa,
desdeñosas de plácemes verbales,
me gritarán su novedad mañana?45
A instabilidade das formas descoberta pelo escritor na paisagem urbana, que grita suas
43 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor
de Buenos Aires, p. 289-291. O poema é dedicado a Macedonio Fernández, “espectador apasionado de Buenos
Aires”. 44 Ibid., p. 298 e 299. 45 Ibid., p. 306 e 307.
80
novidades diariamente, perturba e desanima. Entretanto, Borges prossegue a sua caminhada
íntima. Como descreve em “Arrabal”, sente a cidade ao percorrer o subúrbio, exatamente
onde os signos da modernidade se desfazem:
El arrabal es el reflejo
de la fatiga del viandante.
Mis pasos claudicaron
cuando iban a pisar el horizonte
y estuve entre las casas
miedosas y humilladas
juiciosas cual ovejas en manada,
encarceladas en manzanas
diferentes e iguales
como si fueran todas ellas
recuerdos superpuestos, barajados
de una sola manzana.
El pastito precario
desesperadamente esperanzado
salpicaba las piedras de la calle
y mis miradas comprobaron
gesticulante y vano
el cartel del poniente
en su fracaso cotidiano
y sentí Buenos Aires
y literaturicé en la hondura del alma
la viacrucis inmóvil
de la calle sufrida
y el caserío sosegado.46
Assim, o subúrbio é transformado em literatura. Posteriormente, Borges alterou o final
do poema, destacando a permanência da cidade durante os anos em que a deixou: “esta ciudad
que yo creí mi pasado / es mi porvenir, mi presente; / los años que he vivido en Europa son
ilusorios, / yo he estado siempre (y estaré) en Buenos Aires.” O seu retorno à cidade é
justamente o tema de “La vuelta”:
Después de muchos años de ausencia
busqué la casa primordial de la infancia
y aún persevera forastero su ámbito.
[...]
¡Qué caterva de cielos
vinculará entre sus paredes el patio,
cuánto heroico poniente
militará en la hondura de la calle
y cuánta quebradiza luna nueva
infundirá al jardín su dulcedumbre
antes que llegue a reconocerme la casa
y torne a ser una provincia de mi alma!47
46 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor
de Buenos Aires, p. 322-325. 47 Ibid., p. 334 e 335.
81
O jovem poeta, desassossegado por aquilo que não reconhece, demanda tempo para
envolver a paisagem novamente em sua alma. Nem mesmo os indícios que remetem ao
heroico passado militar da família, descritos em “El Sur”, oferecem conforto:
En estos aledaños
hay vislumbres de sitios de batalla:
tenaces terraplenes
que abaten alrededor los campos serviles,
charcas abandonadas
que las puestas de sol criminan de sangre,
zanjones, humaredas, puentes, clangores
y el tajo renegrido de los rieles
apartando las casas
y una precisión militar de tiempo y señales
y un militar desorden de alternativas de lucha.
Todo ello deja un sabor amargo en el alma.48
A mesma inquietação perpassa a sua segunda obra lírica, Luna de enfrente. Em um
dos poemas do livro, Borges atravessa o rio da Prata e descobre em Montevidéu, assim como
havia feito nos subúrbios de Buenos Aires, a cidade perdida: “Eres el Buenos Aires que
tuvimos, el que en los años se alejó quietamente. / Eres nuestra y fiestera, como la estrella que
duplican las aguas.”49 Finalmente, em Cuaderno San Martín, lançado quase dez anos após o
retorno do escritor à Argentina, Borges revisita, em “Fundación Mitológica de Buenos”, as
narrativas de origem da capital portenha, decretando nos versos finais do poema a eternidade
da cidade: “A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: / la juzgo tan eterna como el
agua y el aire.”50
Diversos aspectos do olhar do jovem Borges sobre a paisagem urbana repercutem na
trama construída em Invasión. Os destinos apresentados no filme expõem o sentimento de
perda que caracteriza o reencontro do escritor com a cidade e evidenciam o desejo de
recuperar aquilo que foi tomado indevidamente. A cidade sitiada também impõe aos membros
da resistência, assim como a Buenos Aires moderna ao poeta, uma nova condição que
redefine as expectativas e reorienta a ação. Para os que resistem, o impedimento da invasão e
o término do cerco significam um retorno à posição original: “Algún día, señora, usted va a
ser feliz a cada rato”, diz Herrera a Irene. Um pouco depois, completa: “El día que podamos
vivir como toda la gente.” Ao jovem poeta, entretanto, a reconquista só é possível pelo verso,
48 BORGES, Jorge Luis. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor
de Buenos Aires, p. 348-349. Borges dedica um poema do livro, “Inscripción Sepulcral”, ao coronel Isidoro
Suárez, e outro, homônimo, ao coronel Francisco Borges Lafinur. Cf. ibid., p. 314, 315, 386 e 387. 49 Id. Luna de enfrente. In: Poesía completa, edição digital. 50 Id. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa, edição digital. O poema foi rebatizado de “Fundación Mítica de
Buenos Aires”.
82
através do qual Borges, de fato, retorna a Buenos Aires.
À primeira vista, Invasión (segundo o próprio escritor, um filme que apresenta um
novo tipo de fantasia) se distancia tematicamente da sua obra poética da década de 1920.
Entretanto, a abordagem de Borges ao fantástico não representa uma ruptura com a sua
produção literária desvinculada desse gênero. Pelo contrário, através do fantástico ele trata de
questões relacionadas a um dos aspectos fundamentais do seu trabalho,51 aquilo que Beatriz
Sarlo define como “la problemática filosófica y moral sobre el destino de los hombres y las
formas de relación en sociedad.”52 A preocupação também atravessa a poesia do jovem
Borges, tal como nos lembra o escritor maduro em um comentário já citado a respeito de
Fervor de Buenos Aires: “I feel that all my subsequent writing has only developed themes
first taken up there; I feel that all during my lifetime I have been rewriting that one book.”53 O
roteiro de Invasión pode ser considerado como parte dessa reescrita.
A morte é um dos temas presentes em Fervor de Buenos Aires que são revisitados
constantemente por Borges. Em “La Recoleta”, o segundo poema do livro, ele reflete sobre a
sua própria condição a partir das impressões sentidas ao percorrer “las veredas” do conhecido
cemitério da cidade:
Convencidos de caducidad
vueltos un poco irreales por el morir altivado en tanto sepulcro
irrealizados por tanta grave certidumbre de muerte,
nos demoramos en las veredas
que apartan los panteones enfilados54
O local, onde Borges imagina que será enterrado, é abordado novamente em “Muertes
de Buenos Aires”, publicado em Cuaderno San Martín:
Aquí es pundonorosa la muerte,
aquí es la recatada muerte porteña,
la consanguínea de la duradera luz venturosa
del atrio del Socorro
y de la ceniza minuciosa de los braseros
y del fino dulce de leche de los cumpleaños
y de las hondas dinastías de los patios.
Se acuerdan bien con ella
esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.55
No poema, Borges compara o cemitério da Recoleta, sítio da “recatada muerte
51 “Los temas fantásticos de Borges son la arquitectura que organiza dilemas filosóficos e ideológicos”, nota
Beatriz Sarlo. SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas, disponível on-line. 52 Ibid. 53 BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969, p. 155. 54 Id. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p.
348-349. 55 Id. Cuaderno San Martín In: Poesía completa, edição digital.
83
porteña”, ao de Chacarita, vizinho a Palermo:
Porque la entraña del cementerio del Sur
fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;
porque los conventillos hondos del Sur
mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires
y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,
a paladas te abrieron
en la punta perdida del Oeste,
detrás de las tormentas de tierra
y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.56
Construído “en la punta perdida del Oeste”, o cemitério de Chacarita representa para o
escritor a necrópole das “orillas”:
Trapacerías de la muerte – sucia como el nacimiento del hombre –
siguen multiplicando tu subsuelo y así reclutas
tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos
que caen al fondo de tu noche enterrada
lo mismo que a la hondura de un mar,
hacia una muerte sin inmortalidad y sin honra.
Una dura vegetación de sobras en pena
hace fuerza contra tus paredones interminables
cuyo sentido es perdición,
y convencidas de mortalidad las orillas
apuran su caliente vida a tus pies
en calles traspasadas por una llamarada baja de barro
o se aturden con desgano de bandoneones
o con balidos de cornetas sonsas en carnaval.
(El fallo de destino más para siempre,
que dura en mí lo escuché esa noche en tu noche
cuando la guitarra bajo la mano del orillero
dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:
La muerte es vida vivida,
la vida es muerte que viene;
la vida no es otra cosa
que muerte que anda luciendo.)57
A sentença do destino que permanece em Borges, revelada pela “guitarra bajo la mano
del orillero” e transposta para palavras pelo poeta, é fatal: “La muerte es vida vivida”. É
exatamente o que escutamos em um verso da “Milonga de Manuel Flores”: “morir es haber
nacido.” Essa é uma das notas da poética do jovem Borges que ressoa em Invasión: a
fatalidade do destino, o caráter irrevogável do fluxo de acontecimentos que envolve os
homens, um processo cuja efemeridade é conhecida de antemão. A finitude da condição
humana, expressa no filme pela milonga composta por Borges e pela trajetória dos
personagens, só é compensada pela tarefa assumida por aqueles que resistem à invasão: a
56 BORGES, Jorge Luis. Cuaderno San Martín In: Poesía completa, edição digital. 57 Ibid.
84
tentativa de preservação de um bem maior que a própria vida. Como diz Don Porfirio a
Herrera: “La ciudad es más que la gente.”
A inserção de uma milonga em Invasión também pode ser considerada uma
característica da mezcla que caracteriza o trabalho do escritor desde os anos 1920, do
entrelaçamento original de uma versão da tradição literária argentina com uma seleção
particular de obras da Weltliteratur. Em Invasión, esse movimento possibilita a incorporação
da canção popular portenha na construção de um relato que renovaria a tradição na qual
estariam inscritos H. G. Wells, Bradbury, Henry James e Kafka. Da mesma forma, essa
mezcla legitima a aproximação a outros relatos que tematizaram a cidade. Um deles é
indicado por Bioy Casares: “Invasión renueva el tema de la Ilíada, pero no canta la astucia ni
la eficacia del vencedor, sino el coraje de unos pocos defensores de una Troya muy parecida a
Buenos Aires. Allí no faltan la barra de amigos ni los tangos o milongas. Homero me
disculpe: el corazón está siempre de parte de los defensores.”58
Além de renovar o tema da Ilíada, a narrativa de Invasión aborda a questão central de
O deserto dos tártaros, publicado por Dino Buzzati em 1940. O romance do escritor italiano
tematiza a angústia que assola um grupo de homens que aguarda um ataque cada vez mais
improvável.59 Entretanto, em Invasión a angústia é rompida ainda no início da trama pela
chegada dos invasores: “Tantos años sin salir de las vísperas… Ahora ellos están por entrar.
Éste día es hoy.” Por sua vez, a reação de Herrera após ouvir a revelação de Don Porfirio
indica que, tal como no forte Bastiani do romance de Buzzati, os resistentes anelavam o
confronto: “Mejor así. Uno se cansa de esperar.”60
Se em O deserto dos tártaros o afastamento do grupo de militares em relação à
comunidade é justificada pelo isolamento do forte onde se encontram, em Invasión a razão
para o distanciamento dos combatentes civis não é tão clara. Enquanto lutam contra os
invasores na própria cidade, a população segue indiferente à ameaça. Aparentemente, ignora o
cerco. Além do desconhecimento, da incerteza ou do temor dos habitantes, ou mesmo da
58 BIOY CASARES, Adolfo apud OUBIÑA, David. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología
urbana de Invasión. Variaciones Borges, p. 70. 59 A analogia entre o filme envolve o próprio procedimento literário utilizado em Invasión. O regresus in
infinitum também é identificado por Borges na obra de Buzzati: “Este libro, que es acaso su obra maestra y que
ha inspirado un hermoso film de Valerio Zurlini, está regido por el método de la postergación indefinida y casi
infinita, caro a los eleatas y a Kafka. El ámbito de las ficciones de Kafka es deliberadamente gris y mediocre y
sabe a burocracia y a tedio. Tal no es el caso de esta obra. Hay una víspera, pero es la de una enorme batalla,
temida y esperada. Dino Buzzati, en estas páginas, retrotrae la novela a la epopeya, que fue su manantial. El
desierto es real y es simbólico. Está vacío y el héroe espera muchedumbres.” BORGES, Jorge Luis. Dino
Buzzati: El desierto de los tártaros. In: Miscelánea, edição digital. 60 A frase ressoa um comentário do narrador de “La espera”: “[...] es menos duro sobrellevar un acontecimiento
espantoso que imaginarlo y aguardarlo sin fin”. BORGES, Jorge Luis. El Aleph. In: Cuentos completos, edição
digital.
85
simples aceitação fatalista do destino, essa atitude também pode ocultar um desejo velado a
favor da conquista: “¿Por qué nos resiste, si la gente está esperando lo que le vamos a
vender?”, diz um dos invasores a Herrera, que discorda.61 Contudo, em uma das cena finais, o
próprio Herrera questiona o seu papel: “Don Porfirio, yo cumplí siempre lo que usted me
mandó, pero esta ciudad no tiene remedio. ¿A qué morir por gente que no quiere defenderse?”
Talvez a própria resistência seja indesejada.62
A resposta de Don Porfirio, afirmando a necessidade do prosseguimento da luta e da
preservação da cidade, revela que o combate é travado não pela defesa do espaço urbano ou
dos seus habitantes, mas pelo que Aquilea representa para os combatentes. Don Porfirio, que
combina qualidades de oráculo e estrategista militar, parece compreender aquilo que Marco
Polo, em As cidades Invisíveis, diz a Kublai Khan: “Não faz sentido dividir as cidades nessas
duas categorias [felizes ou infelizes], mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo
dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem
cancelar a cidade ou são por esta cancelados.”63 Não importa que os habitantes de Aquilea
estejam felizes com a chegada dos invasores. Para os resistentes, é necessário perpetuar aquilo
que dá forma aos seus desejos. Ao final e a seu modo, Herrera também compreende isso.
Durante a defesa de Aquilea, uma Buenos Aires desrealizada (“La ciudad que el film
explora es como una taquigrafía de signos más complejos, ausentes, pero al mismo tiempo
suscita en quienes conocen Buenos Aires un doble asombro de reconocimiento y extrañeza”,
diz Cozarinsky)64 cujo nome remonta à antiga cidade romana que foi sitiada e saqueada pelos
61 Tal como em “À Espera dos Bárbaros”: “Sem bárbaros o que será de nós? / Ah! eles eram uma solução.”
KAVÁFIS, Konstantinos apud Candido, Antonio. Quatro esperas. Novos estudos Cebrap, p. 50. Nesse ensaio,
Antonio Candido utiliza o poema de Kaváfis para introduzir “o mundo das esperas angustiadas, dos atos sem
sentido lógico, da surda aspiração à morte individual e social, que formam alguns dos fios mais trágicos do
mundo contemporâneo”. Entre as representações escolhidas por Candido, estão duas que também são caras a
Borges: “A construção da muralha da China”, de Kafka, e O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati. Cf. Candido,
Antonio, op. cit., p. 53. 62 Para Silvia Schwarzböck, o isolamento do grupo define o caráter trágico da sua ação: “Los individuos rebeldes
actúan en nombre de la comunidad, pero lo hacen a espaldas de ella y en secreto. Esa falta de consentimiento los
aísla del entorno y convierte su acción inconsulta en trágica. La necesidad que los mueve es la misma que los ha
separado del entorno. Son individuos trágicos, no épicos, sólo que ellos mismos no lo saben. Han sido elegidos
para la desdicha, porque sus acciones sólo puede legitimarse dentro del orden proscripto (un orden en el que
creen como vanguardia iluminada, no como miembros de la comunidad). Para las leyes del Estado, ellos son
delincuentes. Su coraje es por esencia clandestino y está destinado a no conocer la luz del día.”
SCHWARZBÖCK, Silvia. Micenas y Aquilea: figuras del trágico en el cine de Hugo Santiago. In: OUBIÑA,
David. (org.). El cine de Hugo Santiago, p. 85-90. 63 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis, edição digital. 64 Cozarinsky prossegue: “compararla con el simulacro urbano de ‘La muerte y la brújula’ no es inapropiado.”
COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine, p. 125. A comparação entre o filme e o conto é feita pelo
próprio Borges: “Con Hugo Santiago y Adolfo Bioy Casares hemos escrito el libreto de un film, de índole
fantástica, que se titulará Invasión. Transcurre en Buenos Aires, pero es un Buenos Aires como el del cuento mío
titulado ‘La muerte y la brújula’, un Buenos Aires de sueños y pesadillas. El argumento pertenece a Santiago y él
será el director.” BORGES, Jorge Luis. In: MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges, p. 89.
86
hunos (e que também ecoa a argumentação de Zenão), assistimos à exposição controlada de
alguns aspectos das relações humanas estabelecidas durante um conflito. Entretanto, nesse
cenário que oscila entre a realidade e a irrealidade, nessa batalha onde as ações humanas são
orientadas por um sentimento de pertencimento a uma exterioridade superior, não podemos
contemplar o último lance. Embora o grupo de Herrera seja liquidado, a resistência é reposta
pelos jovens comandados por Don Porfirio e Irene. A cena final estabelece aquilo que é
definido claramente na sinopse: a infinitude da luta. Vislumbramos aqui a série contínua do
paradoxo de Zenão.65
A trama de Invasión, intencionalmente inconclusa, é construída como uma aporia
sobre a impossibilidade de reconquista da pátria, de restituição da ordem desestabilizada pela
chegada dos invasores. Embora a luta pela cidade ofereça um vestígio de realização plena de
um éthos de bravura e coragem, o desdobramento eterno do embate revela a inviabilidade da
tarefa. Os próprios personagens parecem perceber isso. Nos seus atos, há uma velada ironia
que implica em admiração e descrença, desejo e desesperança. Ainda assim, as gerações
prosseguem, como Aquiles em sua corrida, e o relato permanece suspenso no infinito.
Embora outra, Aquilea persiste. Como também persiste a eterna, embora outra,
Buenos Aires de Borges: “He nacido en otra ciudad que también se llamaba Buenos Aires.”
Entretanto, Aquilea é mais do que uma cidade criolla perdida (a Buenos Aires elusiva dos
arrabales idealizada pelo escritor argentino), é uma cidade metafísica. A impossível
recuperação de Aquilea é a impossível recuperação dessa cidade, dificuldade que atravessa a
obra de Borges. Ainda assim, ele prossegue a sua escritura, como Aquiles em sua corrida.
Talvez como um sacrifício ao passado, um desejo de retorno às formas estáveis. Ou talvez
porque saiba “que los únicos paraísos no vedados al hombre son los paraísos perdidos.”66
65 A analogia também é notada por Marcelo Cerdá: “El lector fantástico agradecerá que Invasión le dé la
oportunidad de encontrar al fin la puesta en escena de la paradoja de Aquiles y la tortuga”. CERDÁ, Marcelo.
Invasión: el sitio del lector. El matadero, p. 173. 66 BORGES, Jorge Luis. La cifra. In: Poesía completa, edição digital.
87
CONCLUSÃO
No primeiro capítulo de um livro sobre Franz Kafka publicado em 1975, Gilles
Deleuze e Félix Guattari perguntam: “Como entrar na obra de Kafka?” O questionamento,
bastante repetido desde então, pode ser adaptado por todo crítico literário que se debruça
sobre o trabalho de um autor. Para abordar a obra do “discípulo” argentino do escritor tcheco,
já foram elaboradas inúmeras estratégias.
À primeira vista, o cinema pode parecer uma alternativa inusitada. A popularidade de
Borges se deve certamente à sua produção ficcional em prosa, especialmente aos contos
publicados na década de 40 em Ficciones e El Aleph. No entanto, para além da surpresa
inicial, a reflexão provocada na sua obra pelo cinematógrafo oferece a possibilidade de
acompanhar os desdobramentos de uma vertente menos conhecida do trabalho do escritor a
partir de uma perspectiva comparativa, privilegiando os seus apontamentos sobre as
aproximações entre a literatura e o cinema e a respeito das singularidades irredutíveis da
palavra e da imagem.
Borges, que mesmo após o agravamento dos problemas de visão seguiu frequentando
as salas de projeção,1 explorou, em diversos momentos, os aspectos estéticos e culturais da
grande arte do séc. XX. A escrita do roteiro de Invasión, embora não seja o último instante da
trajetória que descreve as suas múltiplas relações com o cinema, é certamente o momento
decisivo dessa trama particular, do destino cinematográfico do escritor.
O filme traz, é claro, marcas que podem ser vinculadas à produção de Adolfo Bioy
Casares e de Hugo Santiago. Decerto guarda os signos da colaboração. Entretanto, a eleição
de traços que reverberam pontos específicos da poética de Borges foi orientada pela tentativa
de construção de uma leitura na qual convergissem algumas das principais questões
mobilizadas durante a escrita do roteiro. Ainda assim, devido ao escopo deste projeto, outros
temas presentes em Invasión facilmente associáveis ao universo borgiano e igualmente
pertinentes para a compreensão da trama, tais como o amor e a amizade, não puderam ser
aprofundados.
1 “Voy al cine a escuchar el diálogo y me cuentan si las fotografías son buenas o malas. Esto, para mí, es como
un acto de fe”. Borges, Jorge Luis apud MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges, p. 90.
88
O debate a respeito do gênero do filme, particularmente o modo como Invasión pode
ser comparado a outros relatos literários ou cinematográficos associados à narrativa fantástica
(filiação identificada pelo próprio Borges), também não foi examinado mais detidamente
devido à amplitude do assunto, que movimenta uma rica bibliografia e certamente poderia ser
tratado em um outro trabalho dedicado exclusivamente ao problema. O mesmo poderia ser
dito sobre a recepção do filme em diferentes contextos e sobre as discussões relacionadas às
interpretações alegóricas suscitadas por ele.
Por outro lado, a consideração dos temas da cidade e da coragem em Invasión permite
não apenas associar a obra literária de Borges com essa experiência cinematográfica do
escritor, mas também possibilita uma melhor compreensão do eixo central da fábula do filme,
moto-contínuo no qual urbe e bravura são articulados na construção de um olhar sobre
algumas dificuldades da modernidade. A primeira incursão de Borges pela “arte do fotógrafo”
ao lado de Hugo Santiago (os dois viriam a trabalhar juntos novamente no roteiro de Les
autres, lançado em 1974), quase perdida após o roubo de oito rolos do negativo original do
filme durante o governo ditatorial de Jorge Rafael Videla, desdobra um leitmotiv que perpassa
o longo texto que poderíamos chamar de obra de Borges: a tensão entre o desejo de formas
estáveis de uma realidade perdida e a percepção de que tal mundo de fato nunca tenha
existido, ou que tenha existido apenas como um “sonho”. De certo modo, o próprio autor
aponta para a recorrência dessa questão em um comentário autobiográfico publicado no
epílogo da primeira edição das suas obras completas: “Era de estirpe militar y sintió la
nostalgia del destino épico de sus mayores. Pensaba que el valor es una de las pocas virtudes
de que son capaces los hombres, pero su culto lo llevó, como a tantos otros, a la veneración
atolondrada de los hombres del hampa.”2
Através do cinema, certa vez definido por Borges como uma arte “bastarda”,3 o
escritor compôs com Bioy Casares e Hugo Santiago uma trama na qual expressa a sua
admiração pelo ideal de coragem que identificava no passado familiar, nos compadritos de
Palermo, na poesia épica, na literatura gauchesca, nos filmes de gangsters e nos westerns.
Uma mezcla que, resultando na criação de um repertório épico original, não fundamentava
uma veneração ingênua pela bravura, mas apoiava um sentimento vacilante em relação à
tradição épica que o escritor relê e recria. Nesse procedimento, a própria cidade natal é
2 BORGES, Jorge Luis. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972), p. 1144. 3 “Lo vi [o cinema] siempre desde su costado narrativo. Como arte es bastardo, porque necesita apoyarse en
otros que lo son menos, o depende de técnicas muy definidas, como la fotografía. A lo mejor digo que es
bastardo como un consuelo, porque hace ya mucho que no puedo verlo, pero creo que en realidad todas las artes,
salvo la música, adolecen de ese carácter dependiente.” BORGES, Jorge Luis. Conversación con Borges. Sur,
Buenos Aires, n. 334-335, p. 133. Entrevista.
89
reconstruída. No epílogo citado anteriormente, Borges também indica como a “veneración
atolondrada de los hombres del hampa” resultou na criação de uma Buenos Aires particular:
“Su secreto y acaso inconsciente afán fue tramar la mitología de un Buenos Aires, que jamás
existió. Así, a lo largo de los años, contribuyó, sin saberlo y sin sospecharlo a esa exaltación
de la barbarie que culminó en culto del gaucho, de Artigas y de Rosas.”4 De modo peculiar,
Invasión expressa a ambivalência da invenção borgiana sobre a coragem e a cidade.
Evidentemente, não se tentou esgotar aqui as referências sobre bravura, urbe ou
mesmo cinema na obra de Borges. A seleção de textos poderia ter sido bastante diversa, ou a
interpretação daqueles que foram escolhidos poderia ter sugerido outros caminhos para entrar
na obra do escritor argentino. O autor deste ensaio espera tão somente que o leitor, perdoando
as repetidas fraquezas da exposição, possa considerar esta breve jornada algo relevante.
4 BORGES, Jorge Luis. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972), p. 1144.
90
BIBLIOGRAFIA
AGUILAR, Gonzalo. Alegoría y enigma: Invasión, según Borges y Jugo Santiago. Cine
argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las
Artes, 2005, p. 547-551.
_____. Invasión, en defensa de los mapas afectivos. Leer cine, [s.l.]: [s.n.], n. 2, nov. 2005, p.
36-39.
_____. La Generación de 60: la gran transformación del modelo. In: ESPAÑA, Claudio
(org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo
Nacional de las Artes, 2005, p. 83-97.
_____. Tiempos de la literatura, tiempos de cine: escritores y guionistas. In: ESPAÑA,
Claudio (org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo
Nacional de las Artes, 2005, p. 306-323.
_____; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos Aires: Libraria, 2010.
ÁLVAREZ, José Manuel González. ¡Buenos Aires invadida! Sobre el leitmotiv del asedio en
la ficción especulativa argentina (1950-2000). Ciberletras, [s.l.]: [s.n.], n. 30, jul. 2013.
Disponível em:
< http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v30.html>. Acesso em: 07 dez. 2015.
AMADO, Ana. Hugo Santiago: una poética fílmica de la tragedia. Teatro XXI, Buenos Aires:
Universidad de Buenos Aires, n. 18, p. 22-25, outono 2004.
ARONOVICH, Ricardo. Ricardo Aronovich. Generaciones 60/90: cine argentino
independiente, Buenos Aires: Malba, 2003, p. 48-53. Entrevista.
BALAREZO, Jorge Zavaleta. Borges y el cine: imaginería visual y estrategia creativa.
Mester, [s.l.]: UCLA, v. 39, n. 1, p. 111-130, 2010. Disponível em:
< https://escholarship.org/uc/item/25z3t02m>. Acesso em: 22 jun. 2015.
BALDERSTON, Daniel. De la antología de la literatura fantástica y sus alrededores. In:
Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999,
p. 217-227.
_____. Políticas de la vanguardia: Borges en la década del veinte. In: Jorge Luis Borges:
política de la literatura. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2008,
p. 31-42.
BARRENECHEA, Ana María et al. Borges y la crítica. Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1992.
BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. In: O cinema: ensaios. São
Paulo: Brasiliense, 1991, p. 199-208.
91
BERNSTEIN, Ariel. España en Borges. Clarín: Revista de Nueva Literatura, [s.l.: s.n.], maio
2007. Disponível em:
< http://www.revistaclarin.com/569/espana-en-borges/>. Acesso em: 19 jun. 2015.
BORGES, Jorge Luis. An autobiographical essay. In: The aleph and other stories 1933-1969.
Nova York: Bantam, 1971, p. 135-185.
_____. Aspectos de la literatura gauchesca. Montevideo: [s.n.], 1950.
_____. Cinco breves noticias [1]. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random
House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Cinco breves noticias [2]. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random
House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Conversación con Borges. Sur, Buenos Aires, n. 334-335, p. 133-135, 1974.
Entrevista.
_____. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Dino Buzzati: El desierto de los tártaros. In: Miscelánea. Barcelona: Random House
Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Discusión. Buenos Aires: Debolsillo, 2012.
_____. El Aleph. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição
digital.
_____. El cinematógrafo, el biógrafo. In: Textos recobrados (1919-1929). Barcelona: Random
House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. El compadre. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random House
Mondadori, 2011, edição digital.
_____. El hacedor. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição
digital.
_____. El informe de Brodie. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Elogio de la sombra. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. El oro de los tigres. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. El otro, el mismo. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,
edição digital.
92
_____. El tamaño de mi esperanza / El idioma de los argentinos. Buenos Aires: Debolsillo,
2012.
_____. Epílogo. In: Obras Completas (1923-1972). Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 1141-
1145.
_____. Evaristo Carriego. Buenos Aires: Emecé, 1955.
_____. Fervor de Buenos Aires. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Fervor de Buenos Aires. In: VÁZQUEZ, Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor
de Buenos Aires. México, D. F., 2006. 423 f. Tese (Doutorado em Literatura Hispânica) - El
Colegio de México, p. 255-397.
_____. Ficciones. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,
edição digital.
_____. Foreword. In: Franz Kafka Stories 1904-1924. London: Abacus, 1995.
_____. Franz Kafka. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição
digital.
_____. Franz Kafka: América / Relatos breves. In: Miscelánea. Barcelona: Random House
Mondadori, 2011, edição digital.
_____ Franz Kafka: La metamorfosis. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Historia de la eternidad. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Historia universal de la infamia. In: Cuentos completos. Barcelona: Random House
Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Inquisiciones / Otras inquisiciones. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,
edição digital.
_____. Introducción. In: WELSH, Emilio Villalba. Del arte de escribir para el cine y la
televisión. Buenos Aires: Editorial Schapire, 1964, p. 13-14.
_____. Jorge Luis Borges, The art of fiction No. 39. The Paris review, Paris: inverno-
primavera 1967. Entrevista concedida a Ronald Christ. Disponível em:
<http://www.theparisreview.org/interviews/4331/the-art-of-fiction-no-39-jorge-luis-borges>.
Acesso em: 26 jul. 2015.
_____. Jorge Luis Borges habla del mundo de Kafka. In: KAFKA, Franz. La Metamorfosis.
Buenos Aires: Orión, 1982.
_____. La cifra. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição
digital.
93
_____. Las pesadillas y Franz Kafka. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Random
House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. Luna de enfrente. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori, 2011,
edição digital.
_____. Nuestras imposibilidades. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Para las seis cuerdas. In: Poesía completa. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Poetas de Buenos Aires. In: ZANGRANDI, Marcos (org.). La ciudad viva: Buenos
Aires, 1963. Buenos Aires: Dirección General Patrimonio e Instituto Histórico, 2009, p. 68-
69.
_____. Prólogo. In: El buitre. Buenos Aires: Ediciones Librería La Ciudad, 1979.
_____. Tareas y destino de Buenos Aires. In: Textos recobrados (1931-1955). Barcelona:
Random House Mondadori, 2011, edição digital.
_____. The trial, de Franz Kafka. In: Miscelánea. Barcelona: Random House Mondadori,
2011, edição digital.
_____. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: _____ (org.); BIOY CASARES, Adolfo (org.);
OCAMPO, Silvina (org.). Antología de la literatura fantástica. Buenos Aires: Sudamericana,
1940, p. 71-88.
_____. Un sueño eterno: palabras grabadas en el centenario de Kafka. In: Textos recobrados
(1956-1986). Barcelona: Random House Mondadori, 2011, edição digital.
BORGES/SANTIAGO: Variaciones sobre un guión. Alejo Moguillansky (diretor). Buenos
Aires: MALBA, 2008.
BOSCHI, Alberto. Ricciotto Canudo. In: Enciclopedia del cinema Treccani. Disponível em:
<http://www.treccani.it/enciclopedia/ricciotto-canudo_(Enciclopedia_del_Cinema)/>. Acesso
em: 06 out. 2015.
BOSETTI, Oscar. Hugo Santiago: un borgeano imaginando el cine. In: WOLF, Sergio (org.).
Cine argentino: la otra historia. Buenos Aires: Letra Buena, 1994, p. 91-101.
BOSI, Alfredo. A parábola das vanguardas latino-americanas. In: SCHWARTZ, Jorge.
Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp,
1995, p. 19-28.
BRESCIA, Pablo. El cine como precursor: von Sternberg y Borges. Espacios, Buenos Aires:
Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 17, p. 64-70, nov.-dez.
1995.
94
BURGIN, Richard. Conversations with Jorge Luis Borges. Nova York: Holt, Rinehart and
Winston, 1969.
BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, edição
digital.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição
digital.
CANDIDO, Antonio. Quatro esperas. Novos estudos Cebrap, [s.l.]: Cebrap, n. 26, p. 49-76,
mar. 1990. Disponível em: < http://novosestudos.org.br/v1/contents/view/380>. Acesso em:
17 jan. 2016.
CAPALBO, Armando. El grupo de los cinco: iconos y emblemas de la experimentación y la
extravagancia. In: ESPAÑA, Claudio (org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias
(1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes, 2005, p. 532-543.
_____. Hugo Santiago e Invasión: el sexto de los cinco. In: ESPAÑA, Claudio (org.). Cine
argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo Nacional de las
Artes, 2005, 544-546.
CERDÁ, Marcelo. Invasión: el sitio del lector. El matadero, Buenos Aires: Universidad de
Buenos Aires, n. 7, p. 161-181, [s. d.].
_____. La política de las formas neutras. Acerca de Invasión, de Hugo Santiago. In:
LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine político y social en
Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2009, p.
439-446.
_____. Los directores de la Generación del 60 y las relaciones permeables frente al contexto
político y social. In: LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine
político y social en Argentina: formas, estilos y registros (1896-1969). Buenos Aires: Nueva
Librería, 2009, p. 311-346.
CHARNEY, Leo (org.); SCHWARTZ, Vanessa (org.). O cinema e a invenção da vida
moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
CHIAPPINI, Julio. Borges y Kafka. Buenos Aires: Zeus, 1991.
CLARA, Kriger. Estudios sobre cine clásico en Argentina: de la perspectiva nacional a la
comparada. AdVersus, Buenos Aires: Istituto Italo-Argentino de Ricerca Sociale, n. 26, p.
133-150, jun. 2014.
_____. Problemas historiográficos en la producción teórica sobre cine argentino. Cuadernos
AsAECA, Buenos Aires: AsAECA, n. 1, p. 159-169, inverno 2010.
_____. Un recorrido bibliográfico por el cine argentino. Imagofagia. Buenos Aires: AsAECA,
n. 2, out. 2010. Disponível em:
95
<http://www.asaeca.org/imagofagia/index.php?option=com_content&view=article&id=110%
3Aun-recorrido-bibliografico-por-el-cine-argentino&catid=35&Itemid=71>. Acesso em: 17
jun. 2015.
CORRÊA DO LAGO, Pedro. Três encontros com Borges. piauí, Rio de Janeiro, n. 14, nov.
2007. Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/materia/tres-encontros-com-
borges/>. Acesso em: 16 dez. 2015.
COZARINSKY, Edgardo. Borges en/y/sobre cine. Madrid: Fundamentos, 1981.
_____. Borges em/e/sobre cinema. São Paulo: Iluminuras, 2000.
DE RIVERO, Gloria Videla. Anticipos del mundo literario de Borges en su prehistoria
ultraísta. Iberomania, Madrid: Alcalá, n. 3, p. 173-195, 1975.
_____. La dirección criollista de la vanguardia. In: Direcciones del vanguardismo hispano-
americano. Mendoza: EDIUNC, 2011, p. 105-118.
DI NÚBILA, Domingo. 1896-1932. In: Historia del cine argentino I: la época de oro. Buenos
Aires: Ediciones del Jilguero, 1998, p. 10-66.
ESPAÑA, Claudio. Cine subterráneo: la complicidad de la estética con la política. In: _____
(org.). Cine argentino: modernidad y vanguardias (1957-1983). Buenos Aires: Fondo
Nacional de las Artes, 2005, 552-559.
FERREIRA-PINTO, Cristina. La narrativa cinematográfica de Borges. Revista
Iberoamericana, [s.l.: s.n.], v. 57, n. 155-156, p. 495-506, abril-set. 1991. Disponível em:
<http://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/issue/view/187/showTo
c>. Acesso em: 22 jun. 15.
FLEISCHER, Ariel. Borges: sus primeros poemas publicados en Buenos Aires. Esperando a
Godot, [s.n.t.], n. 3. Disponível em:
< http://www.revistagodot.com.ar/num3/3_fleischer.html>. Acesso em: 19 jun. 2015.
FLÓ, Juan. Jorge Luis Borges traductor de Die Verwandlung: fechas, textos conjeturas.
Anales de literatura hispanoamericana, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, n. 42,
p. 215-240, 2013.
Disponível em: <http://revistas.ucm.es/index.php/ALHI/article/view/43665/41271>. Acesso
em: 28 nov. 2015.
GONZÁLEZ, José Eduardo. Borges and the classical Hollywood cinema. Style, [s.l.: s.n.], v.
32, n. 3, p. 486-499, outono 1998. Disponível em:
<http://www.borges.pitt.edu/sites/default/files/Gonzalez,%20Jose%20Eduardo%20Borges%2
0and%20the%20Classical.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2015.
GRAMUGLIO, María Teresa. Posiciones de Sur en el espacio literario: una política de la
cultura. In: Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires:
Emecé, 1999, p. 93-123.
96
HUGO Santiago y su película Invasión. La Nación, Buenos Aires, 14 ago. 1969, páginas não
identificadas.
INVASIÓN: Borges / Bioy Casares / Santiago. Buenos Aires: MALBA, 2008.
JOZEF, Bella. A crítica cinematográfica de Jorge Luis Borges. Aletria, [s.l.: s.n.], v. 8, n. 1,
2001, p. 279-286. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1290/1387>. Acesso em:
19 jun. 2015.
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.
_____. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.
_____. Narrativas do espólio. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.
_____. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.
_____. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição digital.
_____. O veredicto / Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição
digital.
_____. Um artista da fome / A construção. São Paulo: Companhia das Letras, [s.d.], edição
digital.
KANG, Jung Ha. La forma es el mensaje: alrededor de Invasión, de Hugo Santiago. In:
GONZÁLEZ, Horacio (org.); RINESI, Eduardo (org.). Decorados: apuntes para una historia
social del cine argentino. Buenos Aires: Manuel Suárez Editor, 1993, p. 179-182.
LAFON, Michel. Algunos ejercicios de escritura en colaboración. In: Historia crítica de la
literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 65-90.
LEDESMA, Jerónimo. Rupturas de vanguardia en la década del 20: ultraísmo,
martinfierrismo. In: MANZONI, Celina (org.). Historia crítica de la literatura argentina VII:
rupturas. Buenos Aires: Emecé: 2009, p. 167-199.
LESPADA, Gustavo. Horacio Quiroga: signos de la modernidad. Zama, Buenos Aires:
Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 3, p. 203-
211, 2011.
LLAHÍ, Marcos. Tema del sitiador y del sitiado: sobre Invasión, de Hugo Santiago. In:
LUSNICH, Ana (org.); PIEDRAS, Pablo (org.). Una historia del cine político y social en
Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2009, p.
447-452.
LONA, Horacio. Reflexiones sobre el tema del coraje en la obra de Borges. Variaciones
Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 153-165, jan. 1999. Disponível em:
< http://www.borges.pitt.edu/journal/variaciones-borges-8>. Acesso em: 08 dez. 2015.
97
MAHIEU, José Agustín. Breve historia del cine argentino. Buenos Aires: Editorial
Universitaria de Buenos Aires, 1966.
MARTÍN, Jorge. Hugo Santiago. In: _____. Diccionario de realizadores contemporáneos.
Buenos Aires: INC, 1987, p.170.
MARTÍNEZ, Adolfo. Hugo Santiago. In: _____. Diccionario de directores del cine
argentino. Buenos Aires: Corregidor, 2004, p. 175.
MARTÍNEZ, Carlos Dámaso. Borges: la narración literaria y el cine. Orillas, Padova: Padova
University Press, n. 1, 2012. Disponível em:
<http://orillas.cab.unipd.it/orillas/index.php/en/component/content/article?id=54>. Acesso
em: 10 jun. 2015.
_____. De la literatura al cine: Borges y Santiago. Espacios, Buenos Aires: Facultad de
Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 17, p. 51-54, nov.-dez. 1995.
_____. Estudio preliminar. In: QUIROGA, Horacio. Arte y lenguaje del cine. Buenos Aires:
Losada, 1997, p. 15-37.
_____. La irrupción de la dimensión fantástica. In: Historia crítica de la literatura argentina
IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 171-193.
_____. Literatura / cine: tensiones y desencuentros. In: Historia crítica de la literatura
argentina X: la irrupción de la crítica. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 275-293.
MARTINO, Daniel. Magias parciales de Pago Chico: un guión perdido de Borges, Bioy
Casares, Peyrou y Mallea Abarca. Film, Buenos Aires: [s.n.], n. 1, 1993. Disponível em
<http://www.borgesdebioycasares.com.ar/images/07%20a_Pago%20Chico.pdf>. Acesso em
17 nov. 2015.
MOLACHINO, Justo; PRIETO, Jorge. En torno a Borges. Buenos Aires: Hachette, 1984.
MOLLOY, Silvia. Flâneries textuales: Borges, Benjamin y Baudelaire. Variaciones
Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 16-29, jan. 1999. Disponível em:
< http://www.borges.pitt.edu/bsol/documents/0806.pdf>. Acesso em: 31 out. 2015.
MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: una biografía literaria. México, D. F.: Fondo de
Cultura Económica, 1987.
MONTALDO, Graciela. Los ensayos del joven Borges. Espacios de crítica y producción,
Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 6, p. 20-
22, out./nov. 1987.
MOSAICO CRIOLLO: primera antología del cine mudo argentino. Buenos Aires: Museo del
Cine Pablo Ducrós Hicken, [s.d.].
MUSCHIETTI, Delfina. La poesía de Borges: un fracaso dorado. Espacios de crítica y
producción, Buenos Aires: Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires,
n. 6, p. 44-48, out./nov. 1987.
98
OUBIÑA, David. Del sueño tecnológico a la escritura audiovisual: literatura y cine (1920-
1960). In: MANZONI, Celina (org.). Historia crítica de la literatura argentina VII: rupturas.
Buenos Aires: Emecé: 2009, p. 343-368.
_____ (org.). El cine de Hugo Santiago. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 2002.
_____. El espectador corto de vista: Borges y el cine. Variaciones Borges, Pittsburgh:
University of Pittsburgh, n. 24, p. 133-152, out. 2010. Disponível em:
< http://www.borges.pitt.edu/journal/variaciones-borges-24>. Acesso em: 22 jun. 2015.
_____. Monstrorum Artifex: Borges, Hugo Santiago y la teratología urbana de Invasión.
Variaciones Borges, Pittsburgh: University of Pittsburgh, n. 8, p. 69-81, jan. 1999.
Disponível em:
< http://www.borges.pitt.edu/bsol/documents/0806.pdf>. Acesso em: 31 out. 2015.
QUIROGA, Horacio. Cuentos de amor de locura y de muerte. In: Todos los cuentos. Madrid:
ALLCA XX, 1996, p. 3-174.
_____. Miss Dorothy Phillips, mi esposa. In: Selección de cuentos I. Montevideo: Ministerio
de Instrucción Pública y Previsión Social, 1966, p. 31-70.
ROMERO, Luis Alberto. 1916. In: Breve historia contemporánea de la Argentina. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012, edição digital.
SANTIAGO, Hugo. Con libro de Borges y Bioy Casares, encara Hugo Santiago su primera
aventura en el largometraje. Clarín, Buenos Aires, 30 jul. 1969. Entrevista.
_____. Hugo Santiago. Generaciones 60/90: cine argentino independiente, Buenos Aires:
Malba, 2003, p. 246-255. Entrevista.
_____. Partituras. In: AGUILAR, Gonzalo (org.); OUBIÑA, David (org.). El guión
cinematográfico. Buenos Aires: Paidós, 1997, p. 111-134.
SANZ, María. Invasión: una inquietante ficción de Hugo Santiago y Borges. [S.l.: s.n.], n. 7,
nov. 2009. Disponível em:
<http://www.revistaafuera.com/NumAnteriores/pagina.php?seccion=Cine&page=04.Cine.San
z.htm>. Acesso em: 31 out. 2015.
SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. [S. l.]: Borges Studies Online, 2001.
Disponível em:
< http://www.borges.pitt.edu/bsol/bse0.php>. Acesso em: 18 jun. 2015.
_____. El surgimiento de la ficción. Espacios de crítica y producción, Buenos Aires: Facultad
de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires, n. 6, p. 8-12, out./nov. 1987.
_____. Jorge Luis Borges. In: Escritos sobre literatura argentina. Buenos Aires: Siglo XXI
Editores, 2007, p. 147-212.
99
_____. La perspectiva americana en los primeros años de Sur. In: ALTAMIRANO, Carlos;
_____. Ensayos argentinos: de Sarmiento a la vanguardia. Buenos Aires: Ariel, 1997, p. 261-
268.
_____. Modernidad y mezcla cultural: el caso de Buenos Aires. In: BELLUZZO, Ana Maria
de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo:
Memorial; UNESP, 1990, p. 31-43.
_____. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: Nueva Visión,
2003.
_____. Una poética de la ficción. In: Historia crítica de la literatura argentina IX: el oficio se
afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 19-38.
SCHEJTMAN, Natali. El Camino de Santiago. Página|12, Buenos Aires, 8 abr. 2007.
Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-3730-2007-04-
08.html>. Acesso em: 11 out. 2014.
SCHWARTZ, Jorge. Introdução. In: _____. Vanguardas latino-americanas: polêmicas,
manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 29-71.
SORRENTINO, Fernando. Siete conversaciones con Borges. Buenos Aires: Losada, 2007.
STORTINI, Carlos. Cine. In: El diccionario de Borges. Buenos Aires: Miscelánea, 1989, p.
46-47.
STRATTA, Isabel. Documentos para una poética del relato. In: Historia crítica de la
literatura argentina IX: el oficio se afirma. Buenos Aires: Emecé, 1999, p. 39-63.
VÁZQUEZ, María Esther. Cómo nació en 1923 “Fervor de Buenos Aires”. La Nación, [s.l.:
s.n.], nov. 2003. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/541800-como-nacio-en-1923-
fervor-de-buenos-aires>. Acesso em: 06 out. 2015.
100
ANEXOS
101
El cinematógrafo, el biógrafo
Alguna vez algunos dijimos biógrafo; ahora, generalmente, el cinematógrafo. El
término primero murió; acaso lo quería mas ruidoso la notoriedad, acaso lo amenazaba la
insinuación de Boswell o de Voltaire, peligrosa de alta. No lamentaría yo ese fallecimiento
(similar a miles de otros en la necrología continua de la semántica) si las palabras fueran
símbolos desinteresados. Desconfío que no lo son, que hacen contrabando de pareceres, de
consejos, de condenaciones. Toda palabra implica un argumento que es posiblemente un
sofisma. Aquí, sin entrar a discutir cuál es el mejor, es fácil observar que el proyecto de la
palabra ‟cinematógrafo” es mejor que el de ‟biógrafo”. Éste, si mi griego adivinatorio no me
traiciona, quiere ser escritura de la vida; aquél, sólo del movimiento. Las dos ideas, aunque
reducibles a identidad por tarea dialéctica, implican orientaciones distintas; diversidad que me
autoriza a diferenciarlas y a significar una cosa por cinematógrafo y otra por biógrafo.
Aseguro a mi lector que esa distinción, limitada a esta página, no es mayormente perjudicial.
Cinematógrafo es la grafía del movimiento, señaladamente en sus énfasis de rapidez,
de solemnidad, de tumulto. Esa operación fue propia de los orígenes, cuya sola materia fue la
velocidad; irrisoria en el aturdido infeliz que al disparar sabía llevarse por delante andamios y
muebles, épica en la polvareda de ‟cowboys”. Es peculiar también, por malicia paradójica de
los hechos, del llamado cinematógrafo de vanguardia; institución que se reduce a alimentar,
con más enriquecidos medios, el mismo azoramiento antiguo. Al espectador primitivo lo pudo
maravillar un solo jinete; a su equivalente de ahora le basta con muchísimos o con la
superpuesta visión de un ferrocarril, de una columna de trabajadores, de un barco. La
sustancia de la emoción es igual: es de pasmo burgués ante las diabluras que hacen las
máquinas, es la que inventó el nombre desproporcionado ‟linterna mágica” para el juguete
presentado por Atanasio Kircher en su ‟Ars magna lucis et umbrae”. Para el espectador, es
mero azoramiento bobo de técnica; para el fabricante es una holgazanería de la invención, un
aprovechar la fluencia de imágenes. Su inercia es comparable a la de los escritores métricos,
tan auxiliados por la continuidad sintáctica, por la escalonada deducción de una frase de otra.
De esa continuidad se valen los payadores también. Escribo sin mayor desprecio: no se puede
probar decisivamente que el pensamiento – el nuestro, el de Schopenhauer, el de Shaw – sea
de más independiente albedrío. A Federico Mauthuer creo deber la posesión de esta duda.
Eliminado para nuestro alivio el cinematógrafo, lo sucede el biógrafo. ¿Cómo
reconocerlo, entreverado en muchedumbre inferior? El procedimiento más rápido es el de
102
buscar los nombres de Charlie Chaplin, de Emil Jannings, de George Bancroft, de algunos
dolorosos rusos. Es eficiente, aunque demasiado contemporáneo, circunstancial. El de
aplicación general (aunque no adivinador como el otro) puede ser formulado así. Biógrafo es
el que nos descubre destinos, el presentador de almas al alma. La definición es breve; su
prueba (la de sentir o no una presencia, un acuerdo humano) es acto elemental. Es la reacción
que todos nosotros usamos para juzgar libros de invención. Novela es presentación de muchos
destinos, verso o ensayo es presentación de uno solo. (El poeta o escritor de ensayos es
novelista de un solo personaje que es él; los doce volúmenes de Enrique Heine sólo están
habitados por Enrique Heine, la obra de Unamuno por Unamuno. En cuanto a los poetas
dramáticos – Browning, Shakespeare – y los ensayistas de modo narrativo – Lytton Strachey,
Macaulay – son novelistas íntegramente, sin otra diferencia que su menos disimulada pasión).
Repito, biógrafo es el que nos agrega personas. El otro, el no biógrafo, el cinematógrafo, está
desierto, sin otro sucedáneo de vidas, que fábricas, maquinaria, palacios, cargas de caballería
y otras alusiones a la realidad o generalidades fáciles. Es zona inhabitable, cargosa.
Recurrir a Chaplin, para la vindicación perfecta del biógrafo, es obligación que me
gusta. No creo haya invenciones más agraciadas. Ahí está su temblorosa epopeya ‟The gold
rush”, título bien repetido en francés por ‟La ruée vers l’or” y mal en español por ‟La
quimera del oro”. Recoge uno de tantos minutos. Chaplin, fino compadrito judío, sigue
vertiginosamente un camino estrecho, con la pared de la montaña de un lado y el despeñadero
del otro. Surge todo un oso y lo sigue. Chaplin, distraído angelicalmente, no se ha fijado.
Continúan así unos pocos segundos, que son insostenibles: la fiera casi husmeándole los
talones, el hombre haciendo equilibrio con el bastón, con la requintada galera y casi con el
negro bigote lineal. El espectador está viendo venir un zarpazo y el despertar despavorido de
Chaplin. En eso llega el oso a su cueva y el hombre sigue su camino sin haber visto nada. La
situación ha sido resuelta - o disuelta - mágicamente: eran dos los distraídos en lugar de uno.
Dios esta vez no ha sido menos delicado que Chaplin. Escribo otro incidente, edificado
también sobre la distracción. Chaplin, enlevitado, incómodo, vuelve millonario de Alaska.
Hay peligro de que lo sintamos demasiado triunfal, demasiado parecido a sus dólares. Lo
recibe un vapor que parece estar tripulado exclusivamente por fotógrafos adulones. Sobre la
cubierta, Chaplin cruza entre filas admirativas. De golpe, ángel guarango, advierte un pucho
retorcido en el suelo: se inclina y lo recoge. ¿No es de santo esa distracción? Cada escena de
‟La quimera del oro” esta así cargada. Además, el destino de Chaplin no es allí el único y eso
lo diferencia de los otros puro monólogos de su inventor: ‟El pibe, el circo”, Jim, el
descubridor de una montaña de oro y que ya no sabe dónde es y que atorra por los burdeles
103
con ese trastornado recuerdo e insobornable olvido; Georgia, la bailarina sin otra fidelidad
que su imperiosa belleza, leve sobre la tierra; Larsen, el hombre cuyo saludo es una descarga,
el hombre resignado a ser malo, el hombre poseído por esa inocencia mortal de la
depravación, son enteros destinos.
Chaplin es el narrador de sí mismo, vale decir el poeta, que tiene el biógrafo; Jannings,
su novelista múltiple. No puedo trascribir nada de él: su vocabulario vivo de gestos, su directo
idioma facial, no me parece traducible a otro alguno. Jannings, además de las agonías de la
tragedia, sabe rendir estrictamente lo cotidiano. Sabe no sólo agonizar (tarea fácil o de fácil
simulación, por ser de verificación improbable) sino vivir. Su estilo, hecho incesantemente de
realizaciones minúsculas, es tan sin ostentación y tan eficaz como el de Cervantes o Butler.
Sus personajes – el opaco montón de sensualidad en ‟Tartufo”, siempre con el breviario
pequeñísimo ante los ojos como un antifaz irrisorio; el emperador en ‟Quo Vadis”,
aborrecible de afeminamiento y gruesa vanidad; el varón justo de la metódica dicha, el cajero
Schilling, el gran señor en ‟La última orden”, no menos devoto de la patria que sabedor de su
flaqueza y enredos – son caracteres diversísimos, tan incomunicados entre sí que ni podemos
imaginarlos comprendiéndose. ¡Qué irónico desinterés del general por la tragedia chabacana
de Schilling: qué anatemas proféticos (redactados en el heroico alemán de Martín Lutero) no
le arrojaría éste a Nerón!
Para morir no se necesita más que estar vivo, le oí decir con indiscutibilidad a una
criolla. Añado que ese preliminar es indispensable y que la cinematografía alemana - tan
desinteresada de personas como buscadora de simetrías y de símbolos - suele omitirlo con
ligereza mortal. Quiere conmovernos con el general fracaso o martirio de muchedumbres que
antes no hemos visto vivir y que están desfamiliarizadas aún más por su aspecto de bajo
relieve y su proporción. Ignora que la muchedumbre es menos que el hombre, levanta un
bosque para disimular la falta de un árbol. Pero en el arte, como en la narración diluviana, no
importa la perdición de la humanidad, siempre que la pareja humana concreta se quede con el
mundo. Defoe dividiría por dos este ejemplo y reemplazaría: Siempre que Robinson.
La Prensa, Buenos Aires, 28 de abril de 1929
104
Films
Escribo mi opinión de unos films estrenados últimamente.
El mejor, a considerable distancia de los otros: El asesino Karamazoff (Filmreich). Su
director (Ozep) ha eludido sin visible incomodidad los aclamados y vigentes errores de la
producción alemana – la simbología lóbrega, la tautología o vana repetición de imágenes
equivalentes, la obscenidad, las aficiones teratológicas, el satanismo – sin tampoco incurrir en
los todavía menos esplendorosos de la escuela soviética: la omisión absoluta de caracteres, la
mera antología fotográfica, las burdas seducciones del comité. (De los franceses no hablo: su
mero y pleno afán hasta ahora, es el de no parecer norteamericanos – riesgo que les prometo
no corren). Yo desconozco la espaciosa novela de la que fue excavado este film: culpa feliz
que me ha permitido gozarlo, sin la continua tentación de superponer el espectáculo actual
sobre la recordada lectura, a ver si coincidían. Así, con inmaculada prescindencia de sus
profanaciones nefandas y de sus meritorias fidelidades – ambas inimportantes –, el presente
film es poderosísimo. Su realidad, aunque puramente alucinatoria, sin subordinación ni
cohesión, no es menos torrencial que la de Los muelles de Nueva York, de Joseph von
Sternberg. Su presentación de una genuina, candorosa felicidad después de un asesinato, es
uno de sus altos momentos. Las fotografías – la del amanecer ya preciso, la de las bolas
monumentales de billar aguardando el impacto, la de la mano clerical de Smerdiakov,
retirando el dinero – son excelentes, de invención y de ejecución.
Paso a otro film. El que misteriosamente se nombra Luces de la ciudad, de Chaplin, ha
conocido el aplauso incondicional de todos nuestros críticos; verdad es que su impresa
aclamación es más bien una prueba de nuestros irreprochables servicios telegráficos y
postales, que un acto personal, presuntuoso. ¿Quién iba a atreverse a ignorar que Charlie
Chaplin es uno de los dioses más seguros de la mitología de nuestro tiempo, un colega de las
inmóviles pesadillas de Chirico, de las fervientes ametralladoras de Scarface Al, del universo
finito aunque ilimitado, de las espaldas cenitales de Greta Garbo, de los tapiados ojos de
Gandhi? ¿Quién a desconocer que su novísima comédie larmoyante era de antemano
asombrosa? En realidad, en la que creo realidad, este visitadísimo film del espléndido
inventor y protagonista de La quimera del oro, no pasa de una lánguida antología de pequeños
percances, impuestos a una historia sentimental. Alguno de estos episodios es nuevo; otro,
como el de la alegría técnica del basurero ante el providencial (y luego falaz) elefante que
debe suministrarle una dosis de raison d'être, es una reedición facsimilar del incidente del
basurero troyano y del falso caballo de los griegos, del preterido film La vida privada de
105
Elena de Troya. Objeciones más generales pueden aducirse también contra City Lights. Su
carencia de realidad sólo es comparable a su carencia, también desesperante, de irrealidad.
Hay películas reales – El acusador de sí mismo, Los pequeros, Y el mundo marcha, hasta La
melodía de Broadway –; las hay de voluntaria irrealidad: las individualísimas de Borzage, las
de Harry Langdon, las de Buster Keaton, las de Eisenstein. A este segundo género
correspondían las travesuras primitivas de Chaplin, apoyadas sin duda por la fotografía
superficial, por la espectral velocidad de la acción, y por los fraudulentos bigotes, insensatas
barbas postizas, agitadas pelucas y levitones portentosos de los actores. City lights no
consigue esa irrealidad, y se queda inconvincente. Salvo la ciega luminosa, que tiene lo
extraordinario de la hermosura, y salvo el mismo Charlie, siempre tan disfrazado y tan tenue,
todos sus personajes son temerariamente normales. Su destartalado argumento pertenece a la
difusa técnica conjuntiva de hace veinte años. Arcaísmo y anacronismo son también géneros
literarios, lo sé; pero su manejo deliberado es cosa distinta de su perpetración infeliz.
Consigno mi esperanza – demasiadas veces satisfecha – de no tener razón.
En Marruecos, de Sternberg, también es perceptible el cansancio, si bien en grado
menos todopoderoso y suicida. El laconismo fotográfico, la organización exquisita, los
procedimientos oblicuos y suficientes de La ley del hampa, han sido reemplazados aquí por la
mera cumulación de comparsas, por los brochazos de excesivo color local. Sternberg, para
significar Marruecos, no ha imaginado un medio menos brutal que la trabajosa falsificación
de una ciudad mora en suburbios de Hollywood, con lujo de albornoces y piletas y altos
muecines guturales que preceden el alba y camellos con sol. En cambio, su argumento general
es bueno, y su resolución en claridad, en desierto, en punto de partida otra vez, es la de
nuestro primer Martín Fierro o la de la novela Sanin del ruso Arzibáshef. Marruecos se deja
ver con simpatía, pero no con el goce intelectual que causan la visión (y la revisión) de obras
anteriores de Sternberg. No con el justo goce intelectual que produce La batida, la heroica.
Sur Nº 3, inverno de 1931
106
Las Calles1
Las calles de Buenos Aires
ya son la entraña de mi alma.
No las calles enérgicas
molestadas de prisas y ajetreos,
sino la dulce calle de arrabal
enternecida de árboles y ocasos
y aquellas más afuera
ajenas de piadosos arbolados
donde austeras casitas apenas se aventuran
hostilizadas por inmortales distancias
a entrometerse en la honda visión
hecha de gran llanura y mayor cielo.
Son todas ellas para el codicioso de almas
una promesa de ventura
pues a su amparo hermánanse tantas vidas
desmintiendo la reclusión de las casas
y por ellas con voluntad heroica de engaño
anda nuestra esperanza.
Hacia los cuatro puntos cardinales
se van desplegando como banderas las calles;
ojalá en mis versos enhiestos
vuelen esas banderas.
Fervor de Buenos Aires, 1923
1 Os poemas de Fervor de Buenos Aires apresentados a seguir seguem a versão estabelecida por VÁZQUEZ,
Antonio. Estudio y edición crítica de Fervor de Buenos Aires, p. 255-397.
107
La Recoleta
Convencidos de caducidad
vueltos un poco irreales por el morir altivado en tanto sepulcro
irrealizados por tanta grave certidumbre de muerte,
nos demoramos en las veredas
que apartan los panteones enfilados
cuya vanilocuencia
hecha de mármol, de rectitud y sombra interior
equivale a sentencias axiomáticas y severas
de Manrique o de Fray Luis de Granada.
Hermosa es la serena decisión de las tumbas,
su arquitectura sin rodeos
y las plazuelas donde hay frescura de patio
y el aislamiento y la individuación eternales;
cada cual fue contemplador de su muerte
única y personal como un recuerdo.
Nos place la quietud,
equivocamos tal paz de vida con el morir
y mientras creemos anhelar el no-ser
lanzamos jaculatorias a la vida apacible.
Vehemente en las batallas y remansado en las losas
sólo el vivir existe.
Son aledaños suyos tiempo y espacio,
son arrabales de alma
son las herramientas y son las manos del alma
y en desbaratándose ésta,
juntamente caducan el espacio, el tiempo, el morir,
como al cesar la luz
se acalla el simulacro de los espejos
que ya la tarde fue entristeciendo.
Sombra sonora de los árboles,
viento rico en pájaros que sobre las ramas ondea,
alma mía que se desparrama por corazones y calles,
fuera milagro que alguna vez dejaran de ser,
milagro incomprensible, inaudito
aunque su presunta repetición abarque con grave horror la existencia.
Lo anterior: escuchado, leído, meditado
lo realicé en la Recoleta,
junto al propio lugar donde han de enterrarme.
Fervor de Buenos Aires, 1923
108
Calle Desconocida
Penumbra de la paloma
llamaron los judíos a la iniciación de la tarde
cuando la sombra aún no entorpece los pasos
y la venida de la noche se advierte
antes como advenimiento de música esperada
que como enorme símbolo de nuestra primordial nadería.
En esa hora de fina luz arenosa
mis andanzas dieron con una calle ignorada,
abierta en noble anchura de terraza
mostrando en las cornisas y en las paredes
colores blandos como el mismo cielo
que conmovía el fondo.
Todo – honesta medianía de las casas austeras,
Travesuras de columnitas y aldabas,
tal vez una esperanza de niña en los balcones –
se me adentró en el corazón anhelante
con limpidez de lágrima.
Quizá esa hora única
aventajaba con prestigio la calle
dándole privilegios de ternura
haciéndola real como una leyenda o un verso;
lo cierto es que la sentí lejanamente cercana
como recuerdo que si parece llegar cansado de lejos
es porque viene de la propia hondura del alma.
Íntimo y entrañable
era el milagro de la calle clara
y sólo después
entendí que aquel lugar era extraño,
que es toda casa un candelabro
donde arden con aislada llama las vidas,
que todo inmediato paso nuestro
camina sobre Gólgotas ajenos.
Fervor de Buenos Aires, 1923
109
La Plaza San Martín
A Macedonio Fernández, espectador
apasionado de Buenos Aires.
En busca de la tarde
fui apurando en vano las calles.
Ya estaban los zaguanes entorpecidos de sombra.
Con fino bruñimiento de caoba
la tarde toda se había remansado en la plaza,
serena y sazonada
bienhechora y sutil como una lámpara,
clara como una frente
grave como ademán de hombre enlutado.
Todo sentir se aquieta
bajo la rumorosa absolución de sus árboles
– jacarandá o acacia –
cuyas piadosas combaduras
amortecen la rigidez pueril de la estatua
y en cuya excelsitud se altiva
la gloria vespertina de las luces
a igual distancia
del leve azul y de la tierra rojiza.
¡Qué bien se ve la tarde
desde el fácil sosiego de los bancos!
Ahincado en la revuelta de un declive
el puerto dice de comarcas hurañas
y la honda plaza igualadora de almas
ábrese como pecho generoso
que derrama confianza.
Fervor de Buenos Aires, 1923
110
Ciudad
Anuncios luminosos tironeando el cansancio.
Charras algarabías
entran a saco en la quietud del alma.
Colores impetuosos
escalan las atónitas fachadas.
De las plazas hendidas
rebosan ampliamente las distancias.
El ocaso arrasado
que se acurruca tras los arrabales
es escarnio de sombras despeñadas.
Yo atravieso las calles desalmado
por la insolencia de las luces falsas
y es tu recuerdo como un ascua viva
que nunca suelto
aunque me quema las manos.
Fervor de Buenos Aires, 1923
111
Vanilocuencia
La ciudad está en mí como un poema
que aún no he logrado detener en palabras.
A un lado hay la excepción de algunos versos
y al otro, arrinconándolos,
la vida se adelanta sobre el tiempo
como terror
que usurpa toda el alma.
Siempre hay otros ocasos, otra gloria;
yo siento el rendimiento del espejo
que no descansa en una imagen sola.
¿Para qué esta porfía
de clavar con dolor un claro verso
de pie como una lanza sobre el tiempo
si mi calle, mi casa,
desdeñosas de plácemes verbales,
me gritarán su novedad mañana?
Nuevas
como una novia no besada.
Fervor de Buenos Aires, 1923
112
Inscripción Sepulcral
Para el coronel Don Isidoro Suárez, mi bisabuelo.
Dilató su valor allende los Andes.
Contrastó ejércitos y montes.
La audacia fue impetuosa costumbre de su espada.
Impuso en Junín término formidable a la lucha
y a las lanzas del Perú dio sangre española.
Escribió su censo de hazañas
en prosa rígida como los clarines belísonos.
Murió cercado de un destierro implacable.
Hoy es orilla de tanta gloria el olvido.
Fervor de Buenos Aires, 1923
113
Arrabal
El arrabal es el reflejo
de la fatiga del viandante.
Mis pasos claudicaron
cuando iban a pisar el horizonte
y estuve entre las casas
miedosas y humilladas
juiciosas cual ovejas en manada,
encarceladas en manzanas
diferentes e iguales
como si fueran todas ellas
recuerdos superpuestos, barajados
de una sola manzana.
El pastito precario
desesperadamente esperanzado
salpicaba las piedras de la calle
y mis miradas comprobaron
gesticulante y vano
el cartel del poniente
en su fracaso cotidiano
y sentí Buenos Aires
y literaturicé en la hondura del alma
la viacrucis inmóvil
de la calle sufrida
y el caserío sosegado.
Fervor de Buenos Aires, 1923
114
La Vuelta
Después de muchos años de ausencia
busqué la casa primordial de la infancia
y aún persevera forastero su ámbito.
Mis manos han tanteado los árboles
como quien besa a un durmiente
y he copiado andanzas de antaño
como quien practica un verso olvidado
y advertí al desparramarse la tarde
la frágil luna nueva
que se arrimó al amparo benigno
de la palmera pródiga de hojas excelsas,
como avecilla que a la nidada se acoge.
¡Qué caterva de cielos
vinculará entre sus paredes el patio,
cuánto heroico poniente
militará en la hondura de la calle
y cuánta quebradiza luna nueva
infundirá al jardín su dulcedumbre
antes que llegue a reconocerme la casa
y torne a ser una provincia de mi alma!
Fervor de Buenos Aires, 1923
115
El Sur
Juntamente
caducan la población y la tarde.
Semejantes a ejércitos
por aquí discurren los trenes
evidenciando con rudo herraje oficioso
la inmóvil pobrería de las casas
polvorientas de tedio,
que al pie del claro cielo
vertiginosamente dilatado
insinúan a la oración su rígida sombra.
¡Qué lastimosas las enaltecidas barreras
sobre la herrumbre del poniente!
En estos aledaños
hay vislumbres de sitios de batalla:
tenaces terraplenes
que abaten alrededor los campos serviles,
charcas abandonadas
que las puestas de sol criminan de sangre,
zanjones, humaredas, puentes, clangores
y el tajo renegrido de los rieles
apartando las casas
y una precisión militar de tiempo y señales
y un militar desorden de alternativas de lucha.
Todo ello deja un sabor amargo en el alma.
Fervor de Buenos Aires, 1923
116
Inscripción Sepulcral
Para el coronel Don Francisco Borges, mi abuelo
Las cariñosas lomas orientales,
los ardientes esteros paraguayos
y la pampa rendida
fueron ante tu alma
una solo violencia continuada.
En el combate de La Verde
desbarató tanto valor de muerte.
Si esta vida contigo fue acerada
y el corazón, airada muchedumbre
se te agolpó en el pecho,
ruego al justo destino
aliste para ti toda la dicha
y que toda la inmortalidad sea contigo.
Fervor de Buenos Aires, 1923
117
Montevideo2
Resbalo por tu tarde como el cansancio por la piedad de un declive.
La noche nueva es como un ala sobre tus azoteas.
Eres el Buenos Aires que tuvimos, el que en los años se alejó quietamente.
Eres nuestra y fiestera, como la estrella que duplican las aguas.
Puerta falsa en el tiempo, tus calles miran al pasado más leve.
Claror de donde la mañana nos llega, sobre las dulces aguas turbias.
Antes de iluminar mi celosía tu bajo sol bienaventura tus quintas.
Ciudad que se oye como un verso.
Calles con luz de patio.
Luna de enfrente, 1925
2 BORGES, Jorge Luis. Luna de enfrente. In: Poesía completa, edição digital.
118
Fundación Mítica de Buenos Aires3
¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
Irían a los tumbos los barquitos pintados
entre los camalotes de la corriente zaina.
Pensando bien la cosa, supondremos que el río
era azulejo entonces como oriundo del cielo
con su estrellita roja para marcar el sitio
en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.
Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron
por un mar que tenía cinco lunas de anchura
y aún estaba poblado de sirenas y endriagos
y de piedras imanes que enloquecen la brújula.
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.
Una manzana entera pero en mitá del campo
expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.
La manzana pareja que persiste en mi barrio:
Guatemala, Serrano, Paraguay, Gurruchaga.
Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.
El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba Yrigoyen,
algún piano mandaba tangos de Saborido.
Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.
A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
la juzgo tan eterna como el agua y el aire.
Cuaderno San Martín, 1929
3 Versão publicada em BORGES, Jorge Luis. Cuaderno San Martín. In: Poesía completa, edição digital. O
poema chamava-se originalmente Fundación Mitológica de Buenos Aires. O próximo poema apresentado segue
a mesma edição.
119
Muertes de Buenos Aires
I
La Chacarita
Porque la entraña del cementerio del Sur
fue saciada por la fiebre amarilla hasta decir basta;
porque los conventillos hondos del Sur
mandaron muerte sobre la cara de Buenos Aires
y porque Buenos Aires no pudo mirar esa muerte,
a paladas te abrieron
en la punta perdida del Oeste,
detrás de las tormentas de tierra
y del barrial pesado y primitivo que hizo a los cuarteadores.
Allí no había más que el mundo
y las costumbres de las estrellas sobre unas chacras,
y el tren salía de un galpón en Bermejo
con los olvidos de la muerte:
muertos de barba derrumbada y ojos en vela,
muertas de carne desalmada y sin magia.
Trapacerías de la muerte – sucia como el nacimiento del hombre –
siguen multiplicando tu subsuelo y así reclutas
tu conventillo de ánimas, tu montonera clandestina de huesos
que caen al fondo de tu noche enterrada
lo mismo que a la hondura de un mar,
hacia una muerte sin inmortalidad y sin honra.
Una dura vegetación de sobras en pena
hace fuerza contra tus paredones interminables
cuyo sentido es perdición,
y convencidas de mortalidad las orillas
apuran su caliente vida a tus pies
en calles traspasadas por una llamarada baja de barro
o se aturden con desgano de bandoneones
o con balidos de cornetas sonsas en carnaval.
(El fallo de destino más para siempre,
que dura en mí lo escuché esa noche en tu noche
cuando la guitarra bajo la mano del orillero
dijo lo mismo que las palabras, y ellas decían:
La muerte es vida vivida,
la vida es muerte que viene;
la vida no es otra cosa
que muerte que anda luciendo.)
Mono del cementerio, la Quema
gesticula advenediza muerte a tus pies.
120
Gastamos y enfermamos la realidad: 210 carros
infaman las mañanas, llevando
a esa necrópolis de humo
las cotidianas cosas que hemos contagiado de muerte.
Cúpulas estrafalarias de madera y cruces en alto
se mueven – piezas negras de un ajedrez final – por tus calles
y su achacosa majestad va encubriendo
las vergüenzas de nuestras muertes.
En tu disciplinado recinto
la muerte es incolora, hueca, numérica;
se disminuye a fechas y a nombres,
muertes de la palabra.
Chacarita:
desaguadero de esa patria de Buenos Aires, cuesta final,
barrio que sobrevives a los otros, que sobremueres,
lazareto que estás en esta muerte no en la otra vida,
he oído tu palabra de caducidad y no creo en ella,
porque tu misma convicción de angustia es acto de vida
y porque la plenitud de una sola rosa es más que tus mármoles.
II
La Recoleta
Aquí es pundonorosa la muerte,
aquí es la recatada muerte porteña,
la consanguínea de la duradera luz venturosa
del atrio del Socorro
y de la ceniza minuciosa de los braseros
y del fino dulce de leche de los cumpleaños
y de las hondas dinastías de los patios.
Se acuerdan bien con ella
esas viejas dulzuras y también los viejos rigores.
Tu frente es el pórtico valeroso
y la generosidad de ciego del árbol
y la dicción de pájaros que aluden, sin saberla, a la muerte
y el redoble, endiosador de pechos, de los tambores
en los entierros militares;
tu espalda, los tácitos conventillos del Norte
y el paredón de las ejecuciones de Rosas.
Crece en disolución bajo los sufragios de mármol
la nación irrepresentable de muertos
que se deshumanizaron en tu tiniebla
desde que María de los Dolores Maciel, niña del Uruguay
– simiente de tu jardín para el cielo –
se durmió, tan poca cosa, en tu descampado.
121
Pero yo quiero demorarme en el pensamiento
de las livianas flores que son tu comentario piadoso
– suelo amarillo bajo las acacias de tu costado,
flores izadas a conmemoración en tus mausoleos –
y en el porqué de su vivir gracioso y dormido
junto a las atroces reliquias de los que amamos.
Dije el enigma y diré también su palabra:
siempre las flores vigilaron la muerte,
porque siempre los hombres incomprensiblemente supimos
que su existir dormido y gracioso
es el que mejor puede acompañar a los que murieron
sin ofenderlos con soberbia de vida,
sin ser más vida que ellos.
Cuaderno San Martín, 1929