cinema português

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Biblioteca Breve SÉRIE ARTES VISUAIS VINTE ANOS DE CINEMA PORTUGUÊS (1962- 1982)

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Page 1: Cinema Português

Biblioteca BreveSÉRIE ARTES VISUAIS

VINTE ANOS

DE CINEMA PORTUGUÊS

(1962- 1982)

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COMISSÃO CONSULTIVA

FERNANDO NAMORAEscritor

JOÃO DE FREITAS BRANCOHistoriador e crítico musical

JOSÉ-AUGUSTO FRANÇAProf. da Universidade Nova de Lisboa

JOSÉ BLANC DE PORTUGALEscritor e Cientista

HUMBERTO BAQUERO MORENOProf. da Universidade do Porto

JUSTINO MENDES DE ALMEIDADoutor em Filologia Clássica pela Univ. de Lisboa

DIRECTOR DA PUBLICAÇÃO

ÁLVARO SALEMA

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EDUARDO PRADO COELHO

Vinte anosde

Cinema Português(1962 - 1982)

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

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TítuloVinte anos de Cinema Português(1962 - 1982)___________________________________________Biblioteca Breve /Volume 78_________________________________________1.ª edição — 1983___________________________________________Instituto de Cultura e Língua PortuguesaMinistério da Educação e Cultura___________________________________________© Instituto de Cultura e Língua PortuguesaDivisão de PublicaçõesPraça do Príncipe Real, 14-1.º, 1200 LisboaDireitos de tradução, reprodução e adaptação,reservados para todos os países__________________________________________Tiragem5000 exemplares___________________________________________Coordenação GeralBeja Madeira___________________________________________Orientação GráficaLuís Correia___________________________________________Distribuição ComercialLivraria Bertrand, SARLApartado 37, Amadora — Portugal__________________________________________Composição e impressãoOficinas Gráficas da Minerva do Comérciode Veiga & Antunes, ldaTrv. da Oliveira à estrela, 10 - Lisboa

Dezembro 1983

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ÍNDICE

I / INTRODUÇÃO ........................................................... 7

II/ OS FILMES ................................................................ 13— Dom Roberto ............................................................ 13— Os verdes anos ........................................................... 15— Belarmino ................................................................. 18— Domingo à tarde ....................................................... 20— Mudar de Vida ........................................................ 23— O Cerco .................................................................... 25— O passado e o presente ............................................... 27— O Recado .................................................................. 31— Uma abelha na chuva ................................................ 34— Perdido por cem… .................................................... 39— A Promessa .............................................................. 43— O mal amado ............................................................ 45— Fragmentos de um filme-esmola: A Sagrada Família . 49— Meus Amigos ............................................................ 51— Brandos Costumes ..................................................... 54— Benilde ou a virgem-mãe ............................................ 59— Jaime ......................................................................... 62— Os demónios de Alcácer-Kibir ................................... 66— Trás-os-Montes ......................................................... 70— As Ruínas no Interior ............................................... 73— Nós por cá todos bem ................................................ 77

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— Veredas ..................................................................... 80— A Confederação ........................................................ 82— A Santa Aliança ...................................................... 86— A Fuga ..................................................................... 88— Nem pássaro nem peixe ............................................ 91— Amor de perdição ...................................................... 95— Kilas, o mau da fita ................................................. 117— Cerromaior ............................................................. 120— Oxalá! .................................................................... 126— Manhã submersa ..................................................... 131— Bom povo português ................................................. 134— Passagem ou a meio Caminho .................................. 137— Silvestre ................................................................... 140— Conversa acabada .................................................... 143— Francisca ................................................................. 148— Guerra do Mirandum ............................................. 152— Um S. Marginal ..................................................... 155— Sem sombra de pecado ............................................. 159— A Estrangeira ......................................................... 163— Ana ........................................................................ 168— A ilha dos amores ................................................... 171

III/ PARA NÃO CONCLUIR .................................... 176

ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES ................................... 182

ÍNDICE DOS REALIZADORES ESTUDADOS . 184

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I /INTRODUÇÃO

Este livro prossegue o trabalho iniciado por AlvesCosta noutro volume desta mesma colecção, e que tem otítulo de Breve História do cinema português — 1896-1962. Aímesmo se reconhece que 1962 foi um ano de ruptura.É dessa ruptura que procurámos retirar todas asconsequências — ao abordarmos os vinte anos seguintes,de 1962 a 1982. Consequências que, como veremos,atingem a própria índole da exposição.

A época de 1962-1982 é extremamente complexa. Asrazões de tal complexidade são várias. A primeira, a maisóbvia, é a da própria proximidade que nos prende aoperíodo considerado, e impede a sedimentação, aliásperigosa, de várias evidências e estabilizações de ordemcrítica. Mas outras se podem indicar: o facto de ser umafase marcada por mutações radicais de ordem política (25de Abril, concepções de cinema como resistênciaantifascista ou como militância política, passagem de umasituação de censura para uma situação de liberdade,discussões em torno de uma política cultural); o facto deser uma época em que o cinema português, mobilizadopor projectos estéticos extremamente ambiciosos earriscados, acabou por obter, nos circuitos internacionais,

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uma imagem de prestígio (que alguns julgarãoexcessiva…), que corresponde a certos aspectos insólitosda sua configuração cultural.

Tudo isto significa que os últimos vinte anos do cinemaportuguês constituem um período fortemente polémico.1962 assinala uma data importante porque, em torno deuma iniciativa de Ernesto de Sousa, mas também de obrasde Manoel de Oliveira, Artur Ramos, Paulo Rocha eoutros, se iniciou um processo de reabilitação do cinemaportuguês depois de alguns anos daquilo que Alves Costamuito justamente caracteriza como «um cinema comercial,anódino, trôpego, com mais caspa do que miolos, parentepróximo da foto-novela e da farsa trôpega». Mas estemovimento de grande importância teve um preço: o deuma aura de incomunicabilidade que se veio a associar a umcinema que, para muitos, passou a ser demasiado literário,cerebral, experimentalista, intelectualizado ou politicizado.Daí que os anos mais recentes tenham visto o agitar deum novo mito cinematográfico: o da necessidade de umareconciliação do público com o cinema português. Esteprocesso, não isento de ambiguidades é de desastrosasrecaídas, procura encontrar uma via intermédia entre avanguarda, a ruptura, o arrojo, a não-contemporaneidadeinerente a qualquer obra de arte e o empreendimentocomercial, feito de reconhecimentos fáceis, de empatia,cumplicidade, aconchego de sentimentos e ideias.Retomam-se aqui alguns tópicos da antiquíssima discussãoentre o cinema como arte e o cinema como indústria,entre o cinema como escrita e o cinema como espectáculo.Mas é possível que a própria deslocação dos cenáriostecnológicos e culturais vá alterando, à revelia dosprotagonistas, os termos do debate. De qualquer modo,

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os anos 80 constituíram indiscutivelmente um ponto deeuforia que resultou, por um lado, da consagraçãointernacional da obra de Manoel de Oliveira e doreconhecimento da existência de um «cinema português»culturalmente caracterizável e representativo (fenómenoque, justa ou injustamente, se não verifica em qualqueroutra das nossas actividades artísticas, seja a literatura, asartes plásticas ou a música), e que, por outro lado, seapoiou no indesmentível sucesso comercial de algumasobras que vieram criar uma efectiva disponibilidade dopúblico para um cinema nacional. É certo que estaeuforia se fundamenta num nó de equívocos que osdeslumbramentos do momento tenderam a escamotear.Mas a verdade é que algo se modificou no clima docinema português — e, apesar de se ter passado porfases de gestão confusa e até funesta, ele ainda se nãodesvaneceu por inteiro.

Toda esta rede complexa de factores desaconselhava aadopção de uma síntese histórica à maneira tradicional— feita de uma concatenação de factos acompanhada dealguns juízos estéticos mais ou menos ligeiros ou levianos.Tentar a articulação das várias tarefas de estudo que éurgente levar à prática poderia muito facilmente conduzirao fracasso de todas elas. Optou-se, portanto, por umafórmula que, naturalmente, vem privilegiar, até pormotivos de ordem subjectiva, uma certa maneira de abordar ocinema português. Ela não é de modo algum exclusiva, e surgena plena consciência das suas limitações e arbitrariedades.Mas julga-se complementar de outros trabalhos járealizados, ou em vias de elaboração, para os quais seremete o leitor: estão neste caso as sínteses de Luís dePina, em particular A Aventura do cinema português, publicada

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pela editora Vega em 1977, e onde se faz umrecenseamento de factos, obras e autores, de grandeutilidade para o leitor menos informado; os trabalhos deíndole filológica a que, com extrema atenção e minúcia,se tem dedicado José de Matos-Cruz (em especial O caisdo olhar — fonocinema português, edição de InstitutoPortuguês de Cinema, 1981, e Anos de Abril, Cinemaportuguês — 1974-1982, igualmente edição do InstitutoPortuguês de Cinema; a segunda edição é de 1982);algumas publicações monográficas editadas pela Direcção-Geral de Acção Cultural; um volume recente dedicado aManoel de Oliveira, numa iniciativa da Cinemateca; asfichas críticas que Jorge Leitão Ramos tem vindo a publicarno Diário de Lisboa; ou ainda a recolha de dados feita porEduardo Geada em O imperialismo e o fascismo no cinema,Moraes Editores, 1977.

Em relação ao cinema português contemporâneo éimprescindível que se venha a realizar um estudo sobre assuas estruturas e políticas enquanto indústria cultural. É nesseâmbito que deverá ser considerado o papel dos cineclubese das revistas, ou da pouca, e muitas vezes infecunda, críticaexistente; a contribuição da Fundação CalousteGulbenkian, quer no apoio directo a determinadasiniciativas, quer pela própria actividade cultural realizada;as peripécias múltiplas que têm tornado tão atribulada avida do Instituto Português de Cinema; as discussões emtorno da Lei do Cinema; as relações com a RadiotelevisãoPortuguesa; o lugar da Cinemateca Portuguesa nodesenvolvimento de uma cultura fílmica; a questão doensino do cinema e a actividade conduzida no espaço doConservatório Nacional; as relações com o mundo daindústria publicitária; o papel dos exibidores e

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distribuidores; a política de promoção do cinemaportuguês no estrangeiro; a questão das co-produções; aquestão da legendagem e da dobragem; as formas de apoioe incentivo à exibição do cinema português, etc., etc…Um estudo deste tipo não cabe na índole deste livro —nem corresponde à vocação pessoal do seu autor.

Convém, portanto, que se torne liminarmente muitoclaro o tipo de trabalho que se propõe aqui: trata-se detentar reunir elementos que possam contribuir para umahistória crítica do cinema português contemporâneo. Ao contráriodo que habitualmente se faz em volumes de orientaçãohistórica, em que a qualidade e a interpretação das obrasem si mesmas ficam entregues às flutuações de umanebulosa memória, procurámos ir (re)ver os filmes, dedicandouma demorada atenção crítica àqueles que nos pareceramjustificar uma tal atitude. De certo modo podemos dizerque nos colocamos aqui no espaço do quetradicionalmente é recalcado pela perspectiva histórica. Eque se afigurou necessário fazer para já uma leitura obra aobra antes de tentar sínteses interpretativas de maior fôlego.

Os riscos de um tal procedimento estão à vista. A elescorresponde algum ganho, que não será, ao que suponho,de subestimar.

Considerámos, portanto, e com uma ou outraexcepção, apenas as longas metragens de ficção (o que excluitodo o campo do documentário, a merecer um volumeparticular). E, entre essas, apenas analisámos aquelas quenos pareceram mais significativas. É natural que seponham em causa os critérios que conduziram a uma talselecção. Digamos apenas que, para além de questões deordem subjectiva, que só por hipocrisia poderiam sereliminadas, nos subordinámos a critérios de importância

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estética (tendo em conta certos consensos mais ou menosconsolidados) e de pertinência cultural (levando emconsideração que alguns filmes são particularmentesintomáticos de determinados aspectos ou feições da vidacultural portuguesa).

Mas o critério último, e talvez o único possível, é aqueleque Nietzsche, ao abordar O caso Wagner, enunciava destemodo: «Bizet torna-me fecundo. Tudo o que tem valorme torna fecundo. Não tenho outra forma de gratidão,não tenho outra prova do valor de uma coisa». Estamosassim nesse ponto, polémico, conflitual, precário edecisivo, em que a subjectividade absoluta de uma escritaconstitui, em última instância, a única prova objectiva. Apesarde tudo, mais objectiva enquanto prova do que a daquelesque, sem o recurso da escrita, se limitam a proclamar osseus dogmas de gosto suspensos de uma subjectividadepraticamente afásica.

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II/OS FILMES

1962

Principais filmes: Dom Roberto de Ernesto de SousaRetalhos da vida de um médico de Jorge Brumdo CantoActo da Primavera de Manoel de OliveiraAs palavras e os fios de Fernando LopesVerão Coincidente de António de Macedo

Dom Robertode Ernesto de Sousaestreado em Lisboa, a 30 de Maio de 1962

Dom Roberto correspondeu a um acto de vontade:Ernesto de Sousa pensou que, se havia um determinadonúmero de pessoas que, em redor dos cineclubes, lutavampelo acesso e a divulgação de um cinema diferente, erapossível, e desejável, mobilizar esse propósito no sentidode criar condições para produzir um outro cinema português.O filme é o que é: algo que hoje se vê com simpatia, masque dificilmente se sustenta como objecto estéticoautónomo independentemente das circunstâncias que o

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rodearam. Mas o que nele mais nos comove é a formacomo o seu modo de produção se reproduz na própriateia do filme. Por outras palavras, o que o filme conta, e amaneira como o faz, é algo que se repete no modo comoas personagens actuam ou no próprio tipo de escritafílmica que o autor adoptou. Dom Roberto é, por isso, emtodas as acepções do termo, um filme pobre. Mas é nessapobreza que encontra uma certa estética, uma determinadacompostura, aquilo a que poderíamos chamar umadignidade. E por isso se inscreve como um nome onde se dizuma mudança do cinema português.

Se Ernesto de Sousa fez um filme com o dinheiro quenão havia, João Barbelas (Raul Solnado) vive uma históriade amor num tempo, como diz a canção inicial, «sem amornenhum». E consegue encontrar morada para ela, para ahistória e a mulher que nessa história vai (Maria — GlicíniaQuartin), num velho prédio em ruínas, há muitoabandonado, e que está para ser destruído. Mas Maria eJoão entram nessa casa de paredes escalavradas e tábuascarcomidas dispostos a inventarem a maravilha de umsonho. E, tal como o filme, a breve história de amor éuma lição de estética a partir do nada. Do neo-realismoretira Ernesto de Sousa este humanismo da imaginação: ohomem imagina, e portanto existe, e portanto é capaz dese revoltar. Mas, ao acentuar esta força do imaginário capazde instaurar um mundo a partir do vazio, Ernesto de Sousadesloca um pouco a questão da exploração e da luta declasses para o terreno mítico de uma certa magia da vontade.É por isso que o filme, apesar de nos contar situações deinqualificável miséria e desamparo, se desenvolve todonaquilo a que se poderá chamar a poesia da relação com opovo; ambiente humano de um pátio, com tradições no

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cinema português, aqui reposto como lugar onde asolidariedade é natural, donde o mal é afastado e onde aobstinação de um indivíduo que gosta de mecânica é capazde conseguir fazer que um amontoado de peças velhas setransforme — pequena maravilha que dá esperança aoshomens — num carro que anda. Como este filme, claro.

1963

Principais filmes: Pássaros de Asas Cortadas de Artur RamosOs verdes anos de Paulo RochaNicotiana de António de MacedoA Caça de Manoel de Oliveira

Os verdes anosde Paulo Rochaestreado em Lisboa, a 29 de Novembro de 1963

No fundo, o título diz tudo: este filme é um filme deingenuidade. Em vários planos: ingenuidade do protagonistaao confrontar-se com uma cidade matreira, cheia detruques e ardis, tendo ele apenas como armas a suajuventude e a habilidade das suas mãos; ingenuidade dopróprio filme, que, a partir de um esquema narrativoextremamente simples, se desenvolve sobretudo comouma deambulação pelas ruas de uma Lisboa nova;ingenuidade do cinema português, que, com Dom Robertoe Os verdes anos, procurava recuperar, em reacção a umlongo período de abastardamento, um terreno de verdade,mesmo que para tal fosse necessário um retorno ao maiselementar dos sentimentos e das formulações. Tudo istofez da primeira obra de ficção de Paulo Rocha um filme

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frágil, mas fortemente tocante na fragilidade dos seuspropósitos. E também é isto mesmo que o separa de unsPássaros de asas cortadas, de Artur Ramos, estreado nomesmo ano, em que a estratégia é outra; aqui trata-se detentar corromper as regras de um cinema instituído,sobretudo por uma rotação ideológica, mas sem pôr emprática este gesto desamparado de ruptura que confere umaimportância histórica indesmentível aos trabalhos deErnesto de Sousa e de Paulo Rocha.

Vinte anos depois, certas deficiências neutralizamesteticamente grande parte do filme para o espectador dehoje. Quase todos os diálogos de grupo são de umartificialismo insuportável devido sobretudo a erros notrabalho do som. A própria personagem de Afonso (PauloRenato), o tio do protagonista, é consideravelmenteinconsistente. As sequências no sapateiro sãointeiramente destr uídas por uma representaçãodesastrosa. O mesmo sucede com os «quadros» da vidada família em que Ilda (Isabel Ruth) serve como criada.O final é de um melodramatismo bastante incomodativo— embora, neste ponto, se deva fazer ressaltar que aenorme desproporção entre a placidez em que todo ofilme decorre e o gesto final, violento e desmesurado,de Júlio (Rui Gomes), constitui uma das molasdramáticas mais interessantes deste filme.

Mas o fundamental não está aqui. Reside sobretudona transgressiva liberdade do olhar, na indisciplinanarrativa, na insignificância dos gestos, na banalidade daspersonagens, no esquematismo das situações. O filme dePaulo Rocha é acima de tudo um filme pobre dentro de si, enão um filme sobre a pobreza, e faz dessa pobreza interioruma espécie de canto — que vai desembocar precisamente

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nessa música tão bela de Carlos Paredes que se tornou aimagem mais forte que nos fica do filme. E as sequênciasmais comovedoras são aquelas em que o percurso dacâmara se faz segundo uma razão de ser musical (sobretudona passagem da cena em que Ilda veste os fatos da patroapara um esplêndido travelling sobre um tecto, do qual sedescerá para as imagens de um baile quase sonâmbulorecortado a contra-luz sobre o fundo da cidade).

Os verdes anos é um filme do campo contra a cidade(mas sobretudo contra a parte nova da cidade, contra essacidade modelada por um novo-riquismo sem escrúpulos),mas em que o campo persiste apenas como uma sabedoriainútil (como se vê nas batatas trabalhadas pelas mãos deJúlio). Mas é sobretudo um filme contra as paredes de vidro.Na sua primeira deambulação por Lisboa, Júlio entra nohall de um prédio entre plantas — é a entrada da casaonde Ilda habita. O pássaro é Júlio, como é óbvio, e asparedes de vidro que o limitam vão funcionar como aprimeira ratoeira em que Júlio cai. Todo o filme desenvolveeste tema das barreiras invisíveis — são as montras, osespelhos dos restaurantes, as imagens nos écrans detelevisão. A cidade é perversa porque propõe os objectoscomo objectos desejáveis ao mesmo tempo que institui entrenós e esses objectos uma distância intransponível. E todaa narrativa, todo o enredo que se trava entre Ilda e Júlio,até à recusa final de Ilda em casar com Júlio, é apenas amodulação deste tópico: há um desejo que se incentiva ese interdita, e esse double bind só pode resolver-se numgesto demente de violência. O último plano (o confrontoentre Júlio e os carros de faróis acesos, visto do alto deum desses grandes prédios da cidade) é sobretudo a

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imagem de um animal acossado e perdido no labirinto deuma experiência absurda.

1964

Principais filmes: Fado Corrido de Jorge Brum do CantoBelarmino de Fernando LopesO crime de Aldeia Velha de ManuelGuimarãesCatembe de Faria de Almeida

Belarminode Fernando Lopesestreado em Lisboa, a 18 de Novembro de 1964

A primeira longa-metragem de Fernando Lopes,Belarmino, tem muito a ver com um dos seus filmesposteriores, Nós por cá todos bem. Nos dois casos, orealizador escolhe uma personagem e rodeia-a de cinemapor todos os lados: uma vez é Belarmino, um boxeur quepoderia ter sido um nome grande no desporto português,mas que está em plena decadência (da qual não tem inteiraconsciência), outra vez é a própria mãe do realizador,camponesa idosa, proprietária de pequenas terras numaaldeia portuguesa quase esquecida.

O que impressiona no trabalho de Fernando Lopes éa complexidade de meios que utiliza para expor a personagemescolhida em termos de cinema. Não é apenas a entrevista,não é apenas o contraponto das falas (no caso deBelarmino, há uma constante dialéctica entre oentrevistador, que se situa no lugar de quem sabe, o manager,Albano Martins, e o próprio Belarmino, que é sempre o

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que não sabe o que está a fazer, inclusivamente no própriofilme), não são as várias modalidades de relacionação como meio ambiente, mas algo que se propõe sempre comomais complexo e profundo, e que passa por uma espéciede arte de Fernando Lopes para captar os seres humanosrecortados à luz do seu próprio destino, e isto passa por umtrabalho de escrita (relação imagem-som, sempre muitoelaborada, nunca linear; relação entre formas e volumes:relação entre luz e sombra) que, se se torna explícito nessefilme extraordinário que é Uma abelha na chuva, está semprepresente nas obras do autor. E há algo ainda que mereceparticular referência: Fernando Lopes consegue, nestesseus filmes feitos à volta de pessoas, introduzir, semquebrar a distância e o pudor que lhes é inerente, umadimensão erótica que atravessa as imagens aparentementemais documentais ou sociológicas.

Belarmino é o caso de um homem que luta às cegas,com uma espécie de ingenuidade matreira que lhe nãopermite triunfar numa pequena selva portuguesa deinteresses mesquinhos e frustrações medíocres. MasFernando Lopes não dá excessiva importância à carreirade boxeur de Belarmino. Na vida de Belarmino, o boxe éalgo que ficou para trás. Para Fernando Lopes, importasobretudo apanhar por dentro um olhar desencantado ebatido que inventa pequenas alegrias físicas nas ruas diurnase nocturnas: ruas, cafés, bares, estádios, breves arenas deuma irredutível e portuguesa solidão, que Belarmino tenta,como sempre fez na vida, enganar. Ele que é sempre, aténo próprio jogo cruel deste filme, o resignadamenteenganado.

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1965

Principais filmes: As ilhas encantadas de Carlos VilardebóO trigo e o joio de Manuel GuimarãesDomingo à tarde de António de Macedo

Domingo à tardede António de Macedoestreado em Lisboa, a 13 de Abril de 1966

De certo modo, este filme parte de um equívoco de leitura:onde Namora, autor do romance, pretendia fazer umaobra que constituísse, em última instância, e apesar detudo, um apelo de vida, Macedo, o realizador, utilizou oargumento fornecido pelo texto de Namora paradesenvolver algumas das suas mais insistentes obsessões(que reencontramos mais desinibidamente em obrasposteriores): a problemática do sagrado e do sacrílego, afascinação da morte, o comprazimento na decomposiçãodos corpos e na decrepitude. Daí que seja difícil reveresta obra sem sentir o mal-estar que a envolve: por umlado, é a expressão de um desentendimento profundo(conduzindo a bloqueios, pouco produtivos esteticamente)entre dois autores que, por instantes, se cruzaram; poroutro lado, trata-se de um filme que se sustenta do pânicoproduzido no mundo contemporâneo pelo imaginário da«doença incurável», e que retira grande parte do seurendimento da propagação desse pânico.

A história é simples, apesar de algumas complicaçõesde teor narrativo (utilização de flash-back, uso da voz off,recurso a planos fixos, utilização inesperada eprimariamente justificável da cor, etc.) que apenas visam

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ganhar uma modernidade que obviamente lhe escapa.Jorge é médico e dirige um departamento hospitalar cujaespecialidade o leva a acolher quase sempre casos dedoentes condenados. Trabalha com uma assistente, Lúcia(Isabel Ruth), com quem se estabelece uma cumplicidadeface à realidade quotidiana da morte que propicia umaatracção afectiva que as próprias circunstâncias suspendeme adiam. Um dia, surge na consulta uma doente, Clarisse(Isabel Ruth), atacada de leucemia. Os atritos dosprimeiros encontros transformam-se inevitavelmentenuma desesperada história de amor. No final, Clarissemorre. Jorge promete-lhe que, na tarde do domingoseguinte, irão passear — talvez a um moinho que nãotinham chegado a conhecer.

Uma tal narrativa articula-se claramente em doisgrandes blocos: a parte inicial situa-se antes do momentoem que se inicia a história sentimental entre Clarisse eJorge. Os principais ingredientes são de dois tipos: temos,em primeiro lugar, uma exploração acentuadamentemórbida do ambiente do hospital, da indiferença ditatécnica face à incessante experiência da degradação doscorpos, o lado agressivo dos aparelhos utilizados, a friezado acolhimento formal reservado a cada caso humano, omodo como cada doente fica desarmado perante umalógica que o excede; e temos, em segundo lugar, e talvezcomo contraponto à angústia que um tal ambiente recalca,a intromissão de uma estranha história filmada porMacedo, e que é atribuída a um filme estrangeiro que Jorgee Lúcia iriam ver: aqui irrompe aquela confusa metafísicado sagrado e da transgressão que constitui o eixo da obrade Macedo (como se pode ver em Nojo aos Cães, 1970,apesar dos propósitos de documento que movem este

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filme, ou em As horas de Maria, 1976), e que se vai desfiandoem torno de um eixo primordial, o da relação sofrimento/fé (daí que Macedo seja o autor de uma Fátima Story, 1974).

É ainda em torno dos mesmos esquemas imagináriosque podemos encontrar a chave para a segunda parte dofilme. Em certa medida, Jorge, enquanto médico, não podesalvar Clarisse: não há recursos da ciência que possamresultar. Mas, uma vez que a doença conduz Clarisse paranocturnos «antros» de perdição moral — nessa ânsia de«imundície» que, diz-se, se apossa daqueles que se sabemcondenados a morrer —, Jorge irá descer a esses infernospara redimir Clarisse através de uma história de amor quea retraída representação de Rui de Carvalho deixa sempreno indeciso estatuto entre o dever profissional e a simpatiahumana. Daí, talvez, o puritanismo óbvio de toda a relação,e o modo como Macedo, somando o seu masoquismo aomasoquismo do protagonista, faz intervir planos de umcastrador aparelho médico no desenlace da única cenasexual do filme.

Mas o mais difícil de suportar em relação à obra é,sem dúvida, todo o desenvolvimento, suposto patético,desta história de amor. Exemplo disso é a cena, que deveriaser «forte», do passeio de automóvel, em que Clarisse levaJorge a acelerar insensatamente para que este compartilheo risco de morte em que ela está envolvida. Aí todo o diálogo(«avançar até ao horizonte», «o meu horizonte és tu») é detal modo frouxo e inconvincente que a cena passacompletamente ao lado da emoção do espectador.

Digamos, para concluir, que o filme vive de efeitosar tificialmente sobr epostos a um enredo demasiadoesquemático para ser por si só produtor de efeitos. Temosassim uma volúpia da doença e do ambiente de hospital

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que pretende compensar a fragilidade das relaçõeshumanas. E temos ainda um halo de metafísica que pairade um modo que só por distração se pode considerar«bergmaniano», e que pretende ressarcir a película do níveldesconsoladoramente melodramático onde ela se enreda.

1966

Principais.filmes: Mudar de Vida de Paulo RochaArte e ofício de ourives de Seixas Santos

Mudar de Vidade Paulo Rochaestreado em Lisboa, a 20 de Abril de 1967

A estranha ambiguidade deste filme resulta talvez deuma transparência fingida. A um primeiro olhar tudo éclaro: estão colocadas as estruturas de um possívelmelodrama, existe uma perspectiva documental sobre avida dos pescadores do Furadouro, é legível a presençade um bem estruturado enquadramento social. O filme,de certo modo, é isto tudo. Mas é também outra coisa. Ea sua beleza resulta fundamentalmente do deslizar dessacoisa outra sob a transparência das imagens, a serenidadeda paisagem, a nitidez das figuras, a placidez dosacontecimentos. Se o filme se ocupa de um certo processoque leva o protagonista a mudar de vida. — processo comdupla face: afectivo e social —, e nisso encontrajustificação a fractura sensível em que a obra se articulaem torno de duas figuras de mulher (Júlia, interpretadapor Maria Barroso, e Albertina, interpretada por IsabelRuth), o essencial está no modo como Paulo Rocha soubemudar de objecto ao longo do seu filme.

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Digamos que a construção, extremamente hábil, danarrativa se faz a partir de determinados jogos formais narelação entre as personagens: temos a simetria de doisirmãos, Adelino e Raimundo, que organizam a sua vidaem torno de uma mulher, Júlia (Raimundo casa com elana ausência de Adelino), de quem a dada altura se diz que«quer servir a dois senhores»; temos, por outro lado, arelação entre Albertina e Inácio (João Guedes), irmãostambém, e também eles enredados numa teia afectivamuito carregada; temos ainda a passagem que Adelinofaz do espaço de Júlia para o espaço de Albertina, em quea assimetria se torna evidente (Júlia é o peso do passado,Albertina é a ligeireza do futuro possível): «Tambémgostava do mar, e agora gosto do rio»; temos, por fim, aprópria relação presença/ausência, condensada numa falade Júlia: «lembraste-te longe, esqueceste-me perto». Atrama destas várias relações contém múltiplas virtualidadestrágicas. E todo o diálogo (admiravelmente escrito porAntónio Reis) incentiva este clima de temores epressentimentos que atravessam os corpos para os adoecer(há um lado físico da tragédia que Paulo Rocha capta cominvulgar justeza). Mas o filme é sobretudo a história deuma tragédia evitada — e disso nos dá conta uma das últimassequências, em que os tiros que se julgam poder ser deInácio, o irmão de Albertina, disparando sobre a irmã emfuga, têm afinal origem em caçadores que passam ao longe,e por isso provocam um saudável riso de libertação. Nesseriso está contido o movimento do filme: mudar de objecto,mudar de tom.

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1967

Principais filmes: 7 Balas para Selma de António de MacedoTapeçaria, uma tradição que revive deAntónio-Pedro Vasconcelos

1968

Principais filmes: A Cruz de Ferro de Jorge Brum do Canto

1969

Principais filmes: Vilarinho das Furnas de António CamposA grande roda de Manuel Costa e SilvaSophia de Mello Breyner Andresen de JoãoCésar Monteiro23 minutos com Fernando Lopes Graça deAntónio-Pedro Vasconcelos

1970

Principais filmes: Nojo aos Cães de António de MacedoQuem espera por sapatos de defunto morredescalço de João César MonteiroCerco de António da Cunha TellesBestiaire de Luís Galvão Telles (emcolaboração com Bernard Jaculewicz)

O Cercode António da Cunha Tellesestreado em Lisboa, a 14 de Outubro de 1970

Embora com leveza e desenvoltura, o filme trata umtema conhecido: o percurso de experiências diversas que

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conduzem a uma tomada de consciência sobre a realidadesocial portuguesa. Os dois elementos fundamentais são oambiente quase generalizado de cor rupção e osmecanismos de pressão psicológica e repressão económicaque definem um clima de opressão política. São estes osfactores do cerco.

A vítima é Marta, jovem da alta burguesia que rompecom um casamento estereotipado (a personagem deCarlos, o marido, interpretada por Mário Jacques, não temqualquer consistência), e tenta singrar pelos seus própriosmeios, num equilíbrio de dinheiro e afectos sempreprecário. Envolvida em jogos que visivelmente a excedem,e onde um pouco de tacto humano não é suficiente, Martaacaba por se culpabilizar por um incidente em que éenvolvida a personagem mais positiva desta história: VítorLopes (Miguel Franco).

Mas se este é o cerco contado pelo enredo, o filmeverdadeiro é a história de outro cerco. Talvez não sejainjusto afirmar que Cunha Telles teve a felicidade detrabalhar com uma actriz excepcional, não pelas suascapacidades expressivas, mas pelo modo como funcionacomo um foco de constante energia fílmica: Maria Cabral; e, noentanto, todo o filme, no artificialismo e rebuscamentodas suas peripécias, vai armando uma armadilha àintérprete, cercando-a de convencionalismos. Overdadeiro cerco, portanto, é aquele que o peso de umalinguagem cinematográfica e de um argumento pré-fabricado vão tecendo em torno de uma actriz que suporta,da melhor maneira possível, as cenas mais vivas do filme,e que são, fundamentalmente, aquelas onde o seu corpoatravessa a imagem, ou aquelas onde se instala a relaçãode uma certa violência corpo-a-corpo (cenas de luta com

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o marido e de agressão por parte do amante). Por outrolado, podemos dizer que Cunha Telles vai-se cercando asi próprio, na medida em que os momentos maisinventivos do seu filme são aqueles que existem comopuro desejo de cinema sem qualquer funcionalidade na intriga— e são momentos desse tipo que vão sendo pouco apouco sufocados pela acumulação dos lugares-comuns,das banalidades contra a sociedade de consumo, daspersonagens ridiculamente emblemáticas de determinadasposições sociais.

Mas a energia dos corpos e o desejo de cinema irãodesembaraçar-se destes entraves na obra seguinte deCunha Telles: Meus Amigos.

1971

Principais filmes: O Passado e o Presente de Manoel deOliveiraO Recado de José Fonseca e CostaUma abelha na chuva de Fernando LopesGrande, grande era a cidade de Rogério CeitilA Pousada das Chagas de Paulo Rocha

O passado e o presentede Manoel de Oliveiraestreado em Lisboa, a 26 de Fevereiro de 1972

Quem viu os filmes de Oliveira mais recentescompreende que a sua obra tende cada vez mais adesenrolar-se numa espécie de curto-circuito entre oinsignificante (o anedótico, o fútil, o decorativo, o literal)e o sublime (a alma desalmada, o amor impossível, a morte

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absoluta). O que daqui se suprime é esse corredor de medianiahabitável por onde passam os sentimentos vulgares doshomens comuns. Daí que a própria forma que estes filmesescolhem seja, em certa medida, a forma do intratável; numapalavra, a forma justa para o que neles se transmite.

Em O Passado e o Presente, a dimensão mais óbvia é a dafacilidade. Para isso contribui uma música extremamenteenvolvente, por vezes tão dominante (é o caso do pré-genérico, mas não só) que produz uma nostalgia do cinemamudo, e que arrasta consigo os movimentos da câmara,provocando uma espécie de dança do olhar. Mas contribuitambém a própria leviandade dos acontecimentos, ageometria acentuada das situações, o paralelismo oucontraste dos sentimentos, o gosto deliberadamentechocante das simetrias. Digamos que o tempo realdesaparece, absorvido por um tempo específico, que é oque resulta da sobreposição de três acontecimentosmaiores: uma trasladação de um corpo num cemitério,uma morte, um casamento. E o que ressalta deste ritmoimplacável é o registo das comédias ligeiras donde sedesprende uma certa sageza de viver.

Mas é aqui que o autor nos finta. Porque esta faixa deinteligibilidade e pauta de reconhecimento estético écontinuamente violada por incursões da farsa (estamosperante uma graça por vezes muito pesada) e domelodrama mais puro. O mérito cabe todo a Manoel deOliveira, que soube ler, na peça de um autor quasedesconhecido, Vicente Sanches, uma gama de virtualidadesde humor e subversão das instituições (não apenas a igrejae o matrimónio, mas a medicina e o direito são aquiconvocados) que tenderiam a passar despercebidos aoleitor mais desatento. E a grande virtude desta transposição

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cinematográfica reside fundamentalmente na criação dessalinha de indecidibilidade (em que registo estamos?, pergunta-se) que atravessa todo o filme. Mais que o humor queresulta, demasiado óbvio, das cenas que estão lá para fazerrir (as repetições da abertura do portão da casa, o caixãoque não entra, as tentativas de suicídio), importa uma outramodalidade de humor que se insinua nessa constanteindecisão a que somos forçados sobre a credibilidade doque vemos e ouvimos.

A história é muito claramente inverosímil: depois damorte do seu primeiro marido, Ricardo, num acidente emplena rua, Vanda casa com Firmino, mas todo o seu amorvai para o desaparecido, o que implica um tremendodesprezo em relação ao cônjuge actual. Tendo-se uma talsituação tornado intolerável, Firmino decide suicidar-se.Simultaneamente à morte de Firmino verifica-se umarevelação surpreendente: por uma incrível troca de fatos,quem havia morrido no acidente, não era afinal Ricardo,mas, sim, o irmão gémeo Daniel. Uma vez que Ricardoresolve confessar a troca de identidades a que haviaprocedido, Vanda encontra-se de novo casada com o seuprimeiro marido. Mas, como entretanto, havia passadoFirmino na sua vida, e este está agora morto, é de novoao morto que Vanda vai dedicar o melhor do seu amor.Desta situação mirabolante, Manoel de Oliveira extrai duasconclusões: por um lado, no casamento, o amor vai semprepara aquele que ocupa o lugar do morto, isto é, o outroausente; por outro lado, o casamento, celebradoinstitucionalmente como a fusão de duas almas numa só,ou a união de dois corpos num só corpo, é, no campo darealidade, fundamentalmente um jogo de desacertos, e,sobretudo, uma relação de forças (numa das cenas finais,

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Vanda e Ricardo contabilizam as «armas» de que dispõemum contra o outro).

Este lado «pedagógico» do filme é completado pelaanálise de três casos paradigmáticos. Temos, em primeirolugar, a relação entre Angélica e Honório. Honório é ohomem das certezas (não será nunca um marido ultrajado,nunca se suicidará) e o saber convicto que proclama écontinuamente desfeiteado (uma subtil utilização daprofundidade de campo desmente as suas afirmações pelaprópria imagem). Angélica, essa, engana o marido comMaurício, mas com regulares ciclos de seis meses de ódioe ruptura e seis meses de juras de paixão eterna. Estamosaqui perante a cegueira, não apenas do casamento comovalor absoluto (em Honório), mas do adultério comocomplemento da instituição. Temos, em segundo lugar, arelação entre Fernando e Noémia: casaram-se,divorciaram-se, voltaram a viver juntos, e é nesse estatutolivre que encontram a felicidade e o apoio mútuo contra amorte (como se verifica na cena do quarto onde estáFirmino moribundo). Parece que, nesta fase da sua obra,Manoel de Oliveira acredita no casal enquanto união livre —como se isto fosse suficiente garantia em relação aos riscosinerentes a qualquer estatuto de casal. Em terceiro lugar,surgem, numa espécie de contraponto libertino, as relaçõesesquivas, mas vividas em prazer, do motorista com a criada.

O esquematismo destes enredos cria obviamente umaespécie de álgebra dos sentimentos, que, na sua friezapremeditada, segrega um inegável humor. Mas é evidenteque estamos num domínio de leituras muito primárias deuma realidade proposta com intuitos demonstrativos. Umacerta inabilidade deliberada da realização, umarepresentação quase sempre artificiosa e enfatuada (apesar

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da diversidade de aplicações deste tom genérico), algum maugosto no sublinhar das metáforas fílmicas (aqui expostasnum jeito de insólito kitsch cinematográfico: o rato mortono canteiro como metáfora de Firmino, a flor e a abelhacomo metáfora da caducidade do amor, ou ainda as váriasfiguras fálicas que passam pelo filme: o punhal ou amangueira) são apenas modos de acentuar até aointolerável a simplificação deste universo melodramático.

Contudo, o filme recupera toda a riqueza ecomplexidade ao condensar numa só linha de indefinívelambiguidade estes diversos factores de desequilíbrionarrativo e estético. É assim que, através de múltiplasfraquezas, que seria absurdo negar, se torna visível umdomínio e uma maturidade da linguagem fílmica que irãoeclodir em pleno nos filmes posteriores de Oliveira.

O Recadode José Fonseca e Costaestreado em Lisboa, a 24 de Março de 1972

É fácil detectar pontos comuns entre O Recado e OCerco de Cunha Telles. Claro que, num plano demasiadoóbvio, temos a presença de Maria Cabral — um casopraticamente único de vocação especificamentecinematográfica entre os actores portugueses. Mas, emaspectos mais profundos, as analogias saltam aos olhos:trata-se, por um lado, de filmes que tentam fintar umregime de censura, e pôr em cena os efeitos da intervençãodas forças policiais especializadas na luta política — maso tema político propriamente dito surge como quedissimulado em aventuras mais ou menos obscuras, cujosentido se perde para qualquer espectador que não esteja

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preparado para esta chave conjuntural; trata-se, por outrolado, de obras que têm por objecto (ou, se preferirem,por fantasma) as contradições da burguesia. Daí a inevitávelrábula em que se projecta a própria situação social doscineastas portugueses: colocados num campo anti-fascista,utilizam a publicidade como forma de subsistência. Emfestas ou clubes nocturnos, encontramos sempre nestesfilmes um intelectual mais ou menos degradado queprofere, com algum cinismo e uma suposta amargura,considerações filosofantes sobre a sociedade de consumo,a cultura de massas, a alienação dos trabalhadores e o papeldos artistas.

Em O Recado, Lúcia (Maria Cabral) incarna a figura deuma burguesa que um capitalista, seguramente bom rapaz(Luís Rocha, numa interpretação que fica aquém dos seustrabalhos de realizador), tenta seduzir, mas que continuaa viver intermitentemente com a memória de uma aventuraamorosa com um combatente (que supomos político, dadaa hexis corporal de esquerda e a retórica das suas poses)de nome Francisco. Sucede que Francisco regressa aPortugal, após uma misteriosa ausência, e vai desembarcarpara as bandas do Cabo Espichel, onde o acolhe primeiroum vagabundo (José Viana), em que se corporiza umaespécie de sageza revolucionária (irá dizer no fim, à laiade lição, que é preciso hibernar até que a raiva rebente), edepois um conjunto de meliantes particularmenteagressivos que, pelos maus modos e alguns outros índices,podemos supor pertencerem aos serviços da PIDE. Estesúltimos dão cabo de Francisco, depois de teremespezinhado um livro de poemas de Pavese — no quedemonstram, como aliás era de esperar, um consideráveldesprezo pela cultura. Assim, quando Lúcia comparece

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ao encontro que Francisco lhe propusera em localcarregado de valor afectivo, acaba por ficar apenas numapraia deserta. Este episódio, algo culpabilizante, tem noentanto certos efeitos insólitos: no regresso a casa, Lúciaqueima e destrói livros e objectos que, de algum modo,simbolizam o seu passado (neste massacre vai mesmo Onascimento da tragédia de Nietzsche), enquanto ouve umatelenovela radiofónica, com o patrocínio de algunsprodutos publicitários, onde se fala de uma tal duqueza edas suas deambulações (registe-se que os agentes supostospoliciais haviam designado a própria Lúcia como «aduqueza»). Mas, no seguimento de este actoconsideravelmente insensato, Lúcia faz a mala, telefona aAntónio, o capitalista simpático (que anteriormente a haviaconvidado para um jantar no Tavares rico), e parte com ele.

O filme é, se quiséssemos utilizar uma terminologiaretórica, um quiasmo de contradições. Por um lado, Lúciasente-se atraída por um mundo de resistência aos valoresda burguesia, mas reconhece-se incapaz de aderir a ele —e desta clivagem neurotizante resultam um certo númerode sintomas, em particular um discurso agressivo contraa sua indefesa amiga Ana (Paula Bobone). Por outro lado,Francisco regressa sem que se perceba muito bem porquê— são, como diz Maldevivre (José Viana), algumasimagens vagas a que terá ficado preso. Ou, se quiserem,uma espécie de ruptura não cicatrizada. É esta relação desimetria que parece encerrar o quadro das opçõesburguesas. E o final do f ilme, mostrando-nos aconfraternização entre o vagabundo filósofo e um velhobêbado, vem dizer-nos que existe um outro mundo, simplese concreto, em que a solidariedade se constrói sem culpasnem sacrifícios.

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O problema central de O Recado é que nenhuma destaspersonagens tem qualquer existência própria. São apenasveículos de uma teia social encenada à partida — e têmpor isso a consciência de manequins. É certo que o filmetenta combater esse estatuto, e, em longas sequências quevisam «aprofundar» o «mundo interior», procura darespessura a estes seres empalhados. Trata-se, afinal, deum caminhar na areia, que redunda sobretudo noesteticismo algo gratuito de certos efeitos. É talvez esteaspecto oco das personagens que explica algo quesurpreende aquele que conhece os filmes posteriores deFonseca e Costa: em O Recado, a direcção de actores équase sempre fraca, e, em certos casos, desastrosa(lembremos, por exemplo, as figuras de Polónio ou deAna). As debilidades da representação e as negligênciasda trama narrativa fazem de O Recado uma mensagemperdida — que, sentindo-se perder em vários terrenos,joga na hiper-significação ideológica como forma decompensar o seu vazio estrutural.

Uma abelha na chuvade Fernando Lopesestreado em Lisboa, a 13 de Abril de 1972

O enredo não podia ser mais simples: de um lado, D.Maria dos Prazeres (Laura Soveral) e Álvaro Silvestre (JoãoGuedes), os senhores da casa; do outro, Clara (ZitaDuarte), a criada, e Jacinto (Adriano Reys), o cocheiro. Ocasamento de Álvaro e Maria dos Prazeres é uma trocadesigual, corroída por momentos de força e de fraqueza,de arrogância e de submissão, marcada por um clima defrustração e culpa. A relação de Clara e Jacinto é feliz —

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mas será breve. Porque Álvaro, tomando consciência deque um movimento de desejo vinha ligar o olhar de Mariados Prazeres ao corpo do cocheiro, e verificando que estefazia disso motivo de conversa com Clara, combina comMestre António, e o seu discípulo Marcelo, a morte deJacinto. No filme, a Guarda acabará por matar Clara comum tiro (no livro, ela lança-se a um poço). A noite cai denovo sobre a casa como uma culpa sem fim.

Para Carlos de Oliveira, autor deste belíssimo romance,o que importava acima de tudo era reconstituir umaatmosfera de decadência em que as relações estruturaisentre as personagens tinham maior peso e significado doque os actos realizados (que funcionavam apenas comosintomas dessas relações). O desenlace da história apareciasobretudo como a impossibilidade de uma saída que nãopassasse pela injustiça de um crime silenciado. E uma dasfiguras secundárias da obra, o dr. Neto, surgia comoportadora de uma verdade fundamental: a de um sentidoúltimo de transformação do mundo que viria abolir asdesigualdades geradoras de morte.

Mas o romance é acima de tudo o cruzamento de duashistórias. Ou melhor: o cruzamento de uma história imóvel,que apenas existe como um universo de repetição (o queFernando Lopes capta admiravelmente através dainsistência de determinados planos ou sequências e dejogos simultâneos de supressão ou de deslocação defragmentos da banda sonora) com uma outra história, emque, de um instante para o outro, se passa da felicidade àtragédia (ou, se quiserem, e as imagems mostram, da águaao fogo). Este cruzamento é o eixo do drama. Porque,num plano estrutural, as personagens dominadas (Jacintoe Clara) definem-se pela posse das qualidades que as

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dominantes não revelam: Jacinto tem a energia que falta aÁlvaro, Clara, essa, é capaz de se fazer desejar. Mas há umfactor comum entre Maria dos Prazeres e o cocheiro, queé a energia — como se revela na extraordinária cena emque ela se ergue para chicotear os cavalos. Vemos assim(como notou Maria Alzira Seixo numa excelente análisedo romance) que a opressão se manifesta aqui segundodois vectores: o do desejo e o da exploração. Vamos assistira uma intriga que nos mostra como o desejo frustrado deÁlvaro, utilizando mecanismos de exploração (relação deÁlvaro com mestre António e relação deste com António),acaba por destruir a harmonia de desejo entre Clara eJacinto. Mas o pretexto é, obviamente, um falsoargumento. O ódio de Álvaro em relação a Jacinto nãovem do facto de ele insinuar coisas sobre Maria dosPrazeres — vem da insuportável raiva que o espectáculode um desejo harmonioso provoca naquele que do desejoapenas conhece a frustração quotidiana de uma portafechada. Donde se pode dizer que Uma Abelha na Chuva ésobretudo a história de uma dupla transferência entre o planodos dominantes e o plano dos dominados (reproduzidono espaço da casa): o desejo, impossível no planodominante mas realizável no plano dominado, provocapara Clara e Jacinto a tragédia que os senhores não têmcoragem para viver. Mas as coisas são ainda maiscomplexas: por um lado, porque Álvaro não realizadirectamente o seu crime, mas através da mediação deduas figuras dominadas e alienadas pela exploração a queestão submetidas (mestre António e Marcelo); por outro,porque, na relação aparentemente equilibrada docasamento Maria dos Prazeres-Álvaro, ela mostra-se comoa fidalga socialmente dominante e sexualmente dominada,

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e ele como o cocheiro («os cocheiros estão fartos» é umadas suas frases obsessivas) socialmente dominado esexualmente explorador.

A inteligência da adaptação de Fernando Lopes éevidente. Em primeiro lugar, condensou a intriga nas suasfiguras nucleares; as personagens secundárias desaparecemou perdem qualquer recorte. É neste processo que seelimina o referido dr. Neto e a mensagem ideológica deque ele era veículo. Neste ponto, Fernando Lopes situa-se na própria linha das várias fases de re-escrita a queCarlos de Oliveira submeteu as suas obras de ficção. Emsegundo lugar, através de uma construção fílmicaextremamente fragmentária, lacunar, elíptica, FernandoLopes fez do seu filme uma espécie de arquitectura poéticaonde os efeitos de recorrência, as deslocações de sentido,os saltos narrativos, o jogo das proporções ou a nudezabstracta das paisagens constituem um verdadeiro texto deuma inesgotável densidade. Em terceiro lugar, FernandoLopes teve no seu trabalho de adaptação do romance umaideia notável: acrescentou uma terceira história.

Temos assim uma primeira história (Maria dosPrazeres/Álvaro), que é o nível de um real opressor emtermos sociais e oprimido em termos sexuais, e umasegunda história (Clara/Jacinto) que corresponde a umreal reprimido em termos sociais e libertado em termossexuais. A terceira história (que é a representação da versãoteatral de Amor de perdição numa das sequências do filme)introduz a dimensão do imaginário (em eco, ela persiste nacena final, através das leituras de romances de damas ecavaleiros). Este imaginário teatral (num belíssimo espaçode teatro que mais uma vez reproduz as hierarquias sociais:camarotes para os senhores e plateia para os criados,

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restituindo através do olhar o cruzamento dos dois planos)aparece no filme como a figuração de um desejo de tragédia(os grandes sentimentos que já não somos capazes deviver: «tudo se foi», dirá Maria dos Prazeres). Deste modo,e devido ao subtil acrescento de Fernando Lopes, a tragédiaimpossível no real (ou apenas possível no plano oprimido)aparece aqui em em todo o seu esplendor imaginário. Odesejo para Maria dos Prazeres (que várias vezes pareceabraçar-se a si própria e traça linhas de difusa sensualidadeno manusear dos tecidos que veste e despe em longascenas ao espelho) não é, como em Álvaro, o despeitomesquinho pela felicidade de Jacinto, mas a dor mais fundaque vem da nostalgia do que nunca aconteceu.

A introdução da sequência teatral em Uma Abelha naChuva é uma ideia de uma enorme força neste trabalho deadaptação ao cinema. De certo modo, ela faz do filmeuma história outra. E constitui, numa linha discreta deenvolvente intensidade, uma espécie de orgasmo imaginário (porisso interfere na cena de amor entre Clara e Jacinto) paraMaria dos Prazeres. Daí a ritualização dos vestidos que sepõem e tiram, daí esse subtil desfalecimento de Maria dosPrazeres na cena do teatro (de que apenas Clara parecedar-se conta), daí a veemência de certos planos fixos (comoque figurando a impossível suspensão do êxtase), daí osreflexos fantasmáticos dos efeitos de eco, daí a lentapropagação dos elementos disseminados da peça até àssequências finais do filme.

Por todos estes motivos, Uma Abelha na Chuva é umadas mais belas obras do moderno cinema português.

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Principais filmes: Fragmentos de um filme-esmola — A SagradaFamília de João César MonteiroLotação Esgotada de Manuel GuimarãesPerdido por cem… de António-PedroVasconcelosA promessa de António de MacedoO mal amado de Fernando Matos SilvaÍndia de António FariaProfissão, português de Fernando Lopes.

Perdido por cem…de António-Pedro Vasconcelosestreado em Lisboa, a 9 de Abril de 1973

O primeiro filme de ficção de António-PedroVasconcelos conta-nos uma história simples e quaseabsurda. Artur, o protagonista, personagem de vinte anosque a cada instante nos diz o que esses vinte anos pesamem termos de sabedoria da vida, vem de novo para Lisboadepois do suicídio do pai ocorrido durante as suas fériascom a família. No caminho, apanha uma boleia de Rui(Nuno Martins) — e esse carro que surge agora numacurva da estrada vai aparecer como a configuração de umdestino. Porque Artur (José Cunha) encontra numpequeno café à beira da estrada uma rapariga esquiva einsignificante, de nome Joana (Marta Leitão), e contudo aimagem dela vai-se-lhe tornar obsessiva (sobretudo porquereaparece como imagem fixada pelo desejo dos outros: háuma cena em que Artur descobre um projector de slidesem casa de Rui e alguns dos slides são de Joana). Em Lisboa,

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Artur socorre-se da amizade do Rui para tentar sobreviver— e também de uma tradução de Musil, que é a sombraliterária que atravessa este filme. Quando reencontra Joana,e tenta partir com ela para Roma, um antigo namoradode Joana, regressado do serviço militar em Angola, entraem cena e, com a obstinação desesperada de um Deus sabequanto amei de Minelli, persegue-a pela cidade até a matarcom um tiro no aeroporto quase vazio. Artur, esse, dirá àpolícia que não sabe quem é Joana (aliás, esta é a verdade).

O filme começa com ruído de comboio e termina comruídos de um avião que descola. Isto está certo — porquePerdido por cem… vive fundamentalmente dessa obsessãode partir/chegar. E não é por acaso que o Rui se ocupa deespectáculos para emigrantes (António-Pedro Vasconcelosfilmará em 76 um documentário intitulado Emigr/antes…E depois?). Quando Rui encontra Joana num pequeno caféda estrada Lisboa-Porto, esta pede-lhe para trazer umacarta para uma amiga porque deseja muito vir para a cidade.Quanto a Artur, viajando de casa em casa numa cidadeem que, como diz o título de um filme, cada um deveráser «herói por conta própria», imagina viagens (na agênciapede os preços só ida para Paris, Roma, Nova Iorque). Nacena de ruptura de Artur com Luísa (Rosa Lobato Faria),Artur descobre o que irremediavelmente o separa de Luísa:para esta, os aeroportos são lugares de chegada (vai esperaro marido), para ele, são apenas lugares de partida.

Mas a dualidade partir/chegar tem, no filme, um valormais profundo. Perdido por cem… é narrado na l.a pessoa,com a voz off que é do próprio realizador (e não a dointérprete da personagem de Artur). Daqui resulta ummonólogo interior que nos surge como exterior ao que dapersonagem de Artur nos é visível. O discurso de Artur

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tem a característica de ser feito depois dos acontecimentosa que nós vamos assistindo no presente. Esta descoincidênciaé enunciada no próprio filme: o eu que lembra e o eu queé lembrado serão ainda a mesma pessoa? (pergunta-se).Mas este dispositivo narrativo vai mais longe: porqueArtur-actor surge-nos como uma personagem à deriva, aosabor dos acasos, em constante nomadismo (é apersonagem que parte), e a voz-de-Artur aparece como avoz daquele que sabe o fim de tudo (é a voz crepuscularde quem vê Artur chegar à cena da história). Para Artur-actor, tudo é possível, é o espaço da abertura ilimitada.Para Artur-voz, tudo é impossível, ninguém diga que tervinte anos é a mais bela idade da vida — o único espaço éo do círculo que se fecha. Estamos aqui no cerne da obra:porque, como se diz na reflexão de Artur quando sentadonuma esplanada do Rossio a ver passar as pessoas, o queimporta (o texto é de Musil) é ver o acaso transformado emdestino — esse lance imprevisível e ilocalizável (ondecomeçou o que desde sempre começou?) que leva aspessoas a serem o que são, e a ficarem presas do seudestino como moscas coladas ao papel que as atrai.Vemos assim que esta transformação do acaso emdestino é a passagem do movimento de abertura de Artur-actorpara a invernosa clausura da voz de Artur comentando opassado. De certo modo, este filme de António-Pedroé, como Oxalá!, a história de uma iniciação: de tudo o queacontece há uma lição a extrair, mas esta lição é a lição dovazio: o que acontece acontece porque tinha de acontecer,e «quanto mais o amor ensina / mais eu tenho queaprender», e por isso o amor é, apesar de tudo, a únicasolução para tanta desaprendizagem: a última loucurapara não enlouquecer de verdade.

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O que é interessante é que a própria realização do filmesegue estas mesmas orientações. A filmagem de cada cenaé rigorosamente não-planificada: a câmara parece derivar àprocura de uma verdade que lhe escapa, é uma câmarainquieta, nervosa, excitável, vacilante, indecisa, sempre emdemanda, sempre frustrada. Contudo, o que nós vemos(digamos que essa é a arte de António-Pedro Vasconcelos)aparece com a inevitabilidade de uma película de cinemaque se desenrola perante os nossos olhos, e nós, fechandoos olhos como quem os abre no escuro, somos apenas«espectadores sonâmbulos da própria vida». No cinemade António-Pedro Vasconcelos, tudo é acaso e não há acaso:todas as vozes que se cruzam, todos os olhares que seencontram, todos os objectos que se sobrepõem, todosos incidentes que inexplicavelmente coincidem, tudoobedece a uma lógica que não é invisível porque é apenas opróprio mistério do visível. No genérico, nas letras do títulocolocado em vertical estão as letras que irão entrar nonome dos intérpretes do filme quando compostoshorizontalmente. Esta multiplicação de interferênciasexplica que o universo de António-Pedro seja dominadopela ideia de troca: troco as tuas «ilusões perdidas» pelaminha «educação sentimental», troco, num exame, «o crimedo Padre eterno» com a «velhice do Padre Amaro», trococento e cinquenta escudos com a prostituta que desistedos outros cinquenta que me faltam porque «quem dáaos pobres empresta a Deus».

Relação entre o acaso e a necessidade, entre onomadismo e a fixação, entre partir e chegar, entre apresença de Artur e a voz de Artur, entre a abertura e ofechamento, Perdido por cem… é, por isso mesmo, um filmeque deixa em nós uma recordação ambivalente: é, por um

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lado, e com inegável convicção, a frescura do possível; é,por outro, e no reverso da mesma medalha, a insuportávelasfixia de uma noite sem limites. Iniciação — trocar ainocência pela sageza, e estarmos quites: mas de quê?

A Promessade António de Macedoestreado em Lisboa, a 21 de Janeiro de 1974

A escolha da peça de Bernardo Santareno foiindubitavelmente uma opção feliz de António de Macedo— porque lhe permitiu realizar aquele que é talvez o seufilme mais desenvolto e eficaz (e o mais desembaraçadode uma certa ganga especulativa para que o autor tempropensão). Em Santareno está, aliás, tudo o que Macedodesejaria encontrar numa obra que lhe servisse de pontode partida para um filme: de um lado, um certo clima detragédia, que no escritor ganha sempre um empolamentoe uma desmesura especial; do outro, o ambiente religioso(a história desenrola-se durante uma festa da Páscoa),levado a um misticismo extremo e a um exacerbamentoirracional; por fim, a presença de uma sexualidadesimultaneamente recalcada e irradiante, rasurada einsistente (toda a tensão dramática do filme deriva de umapromessa realizada por José e Maria do Mar aquando deuma tempestade que pôs em risco a vida do pai do José:decidiram então que fariam um casamento branco). Écerto que Macedo atenuou alguns dos aspectos excessivosque certos episódios assumem no texto de Santareno (emparticular a castração de Labareda por José). Mas o quesobrou nesta transposição para o campo do cinema é jásuficiente para reforçar a problemática de Macedo:

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estamos perante um autor que vive numa fascinaçãoambivalente em relação às formas mais violentas, e aomesmo tempo alienatórias, de religiosidade, e que, poroutro lado (talvez o mesmo, mas a outra luz) estabelecesempre uma relação culpabilizante com o corpo (daí aobsessão da doença ou da invalidez: em A Promessa,temos o pai com a perna esmagada, e levando uma vidadominada pela ideia do álcool, e o cego que, segundo aprofecia, acabará por ver, mesmo o que não quer, e temosainda uma minuciosa cena de violação). Sem falarmosnas imagens de corpos mutilados e torturados, que,juntamente com coros, rezas e gemidos de cantilenasreligiosas, constituem uma verdadeira pontuação doclima do filme.

A ideia essencial da adaptação de Macedo consistiuem instalar no filme um espaço de energia que resulta dedeterminadas cenas de acção conduzidas com assinalávelespectacularidade. Podemos dizer que estas terras de Mira,Tocha e Gaia se converteram em cenário de um western deciganos, que, pelo requinte das poses, o sadismo dasatitudes, a morosa contemplação da violência, evocamsobretudo a tradição italiana de um Sérgio Leone. Serátalvez esta desenvoltura física que criou uma imagemfavorável do filme junto do público.

A ela se poderá também associar algo que parece serum traço dominante do cinema de Macedo: todo ele vivede uma espécie de histerização da imagem. Isto é, parece queo realizador acha sempre que a realidade filmada está amenos e que se torna necessário o cinema para a intensificaraté ao ponto em que os fantasmas mais obstinados docineasta a reconhecerão como a mais (e encontrarão nestereconhecimento um efeito gratificante). Assim, todo o

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trabalho sobre a imagem a que Macedo se entrega consisteem distorcer a relação do nosso olhar com as figuras ouobjectos filmados: seja pela colocação insólita dos corposna geometria da tela (veja-se, por exemplo, o plano damãe chorando os filhos mortos depois da luta entre osciganos), seja por uma espécie de arrastamento da própriasequência, criando uma lentidão mórbida em que seenredam as imagens e os sons (Macedo utiliza amplamentea câmara lenta), seja ainda pelo uso da grande angular(deformando os rostos, alucinando os olhares), ou pelotipo de montagem abrupta e recorrente, seja pelo recursoa vozes off ou à voz ciciada de um dos ciganos (FernandoLoureiro). Este é um cinema que se debruça sempre sobreo lado demoníaco da realidade religiosa e que faz recair grandeparte desse peso diabólico sobre os efeitos especificamentecinematográficos. Daí que filmar seja para Macedo umaespécie de profamação — o que, em obras posteriores, comoAs Horas de Maria (1976), se virá a tornar mais explícito(e, talvez por isso mesmo, mais ideologicamenteincomodativo — no duplo sentido desta expressão:incomodativo pelos efeitos negativos de um ponto de vistade equilíbrio estético, mas também incomodativo pelo modocomo estabelece um conflito entre a coragem de Macedoe as forças mais conservadoras da sociedade).

O mal amadode Fernando Matos Silvaestreado em Lisboa, a 3 de Maio de 1974

Oito dias depois do 25 de Abril, Lisboa tinha a primeiraestreia em liberdade do cinema português: coube a O malamado esse simpático destino. De certo modo, ele exigia-

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o: o modo como afrontava o problema colonial levavademasiado longe a ruptura com os valores impostos peloregime fascista. Mas não há dúvida de que o clima querodeou o seu lançamento suscitava uma benevolência que,visto a distância, o filme dificilmente sustenta.

João (João Mota), o mal amado, é uma personagemimatura, hesitante e desajustada, procurando encontraruma forma de expressão, mas limitando-se a imitar osmodelos alheios, sem nunca os sentir como seus. Estarevolta incipiente, que passa por uma teatralidade frustre(João quase que se mata ao tentar fazer o nó da gravata aoespelho, João discursa para o aparelho de televisão de umacasa de electro-domésticos, João imagina um discurso noAlentejo, no meio das searas, para os camponesesausentes), não é apenas a do protagonista, é sobretudo ado próprio filme. Porque «esta história portuguesa vistade Campo de Ourique» é uma espécie de ficção de saborneo-realista revista por um cheirinho de Godard, mas oGodard que por aqui passa é muito portuguêsmente umGodard de Campo de Ourique. O que é pena, porquealgumas personagens e algumas intenções não deixam desuscitar a complacência do espectador. Mas não há nestefilme uma ideia de cinema suficientemente consolidada eamadurecida que permita configurar, em termos fílmicosconvincentes, algumas perspectivas desgarradas.

Partimos da alegoria do corvo que se assusta quando,numa manhã de nevoeiro, vê um homem que parece voar,isto é, um ser humano que parece ter mudado de mundo. É ogrito do corvo (metáfora de tomada de consciência datradição neo-realista) que o filme pretende encenar. E énessa ambição que esbarra. Fica de tudo isto umprotagonista sem força, personagem algo apática que

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parece simular a submissão para disfarçar o modosubmisso como se entrega aos enredos do destino. O meiofamiliar é de uma superficialidade inquietante. O pai, como busto de Salazar na secretária, aparece como a imagemdo fascista de Campo de Ourique — isto é, como diriaAquilino, um fascismo «de barbeiro». Os seus discursosdecalcam de tal modo a ideologia dominante que nãochegam a ter a mínima existência real. A mãe, essa, é afigura da mulher sacrificada ao futuro dos filhos e à ordemfamiliar. Mas o registo naturalista em que grande parte dofilme decorre (um naturalismo esgarçado porarrebatamentos imaginativos) não permite que se instituaum plano de rábula onde o esquematismo das figuras do Paie da Mãe tivessem a sua razão de ser. Poderemos aquiestabelecer o confronto com o que se passa nos BrandosCostumes de Seixas Santos: onde Seixas rompe inteiramentecom o nível referencial da narrativa e opta por um tipo dematerialidade simbólica (as personagens existem directamentecomo símbolos, mas a ambiguidade dos símbolos confere-lhes uma inequívoca densidade), Fernando Matos Silvafica por uma solução de meias tintas que não ganha emcampo nenhum. Disto se ressente, por exemplo, toda aalusão (pouco mais é do que isso) à agitação estudantil,marcada por discursos contraditórios (textosrevolucionários, manifestos estruturalistas) e evocaçõesbaladistas que não ultrapassam o plano de um folcloreasséptico. E a sequência que pretendia ir mais longe naencenação simbólica de uma situação portuguesa (a de«O meu café») com revolucionários, estudantes, prostitutase fadistas, é apenas um mau quadro de teatro de revista.Também aqui o filme não aguenta o confronto com acena do café em Brandos Costumes. E o mesmo se poderá

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dizer dos desastrosos coros das empregadas de escritório,em que se corporizam as conhecidas ladainhas contra asociedade de consumo.

O mal amado tem ainda uma intriga sentimental: Joãocomeça por ser seduzido por Inês (Maria do Céu Guerra)e acaba por abandonar esse terreno minado e escolherLeonor (Zita Duarte). Aqui as dificuldades surgem dainexistência das personagens: em princípio, Inês amaJoão porque vê nele o irmão desaparecido na guerracolonial — irmão com quem mantinha uma relação algopatológica; daí a exigência da farda no decurso das suasrelações amorosas. E é desta situação psiquicamentenefasta que resulta a lição do filme: tal como o fascismonão suporta as deserções no combate colonial, tambémInês não suporta que João a abandone, e por isso o mata(«Nós não admitimos traições»). Quanto a Leonor,limita-se a ser, com notável falta de graça, o contrapontosaudável de Inês.

O filme recorre ainda a um outro artifício: o dosensaios do Auto da Alma, em que Inês participa, e que sãoum material importante na composição da obra. Mas estaintromissão do teatro com uma duração específica naeconomia fílmica não parece também ser mais do que umefeito de moda. Porque nem as frases da peça vicentinainterferem produtivamente na narrativa, nem os ensaios têmuma função temporal no desenvolvimento dramático. Daíque fiquemos entre a exploração algo fútil dos aspectosdecorativos do cenário e o cruzamento, de gosto duvidoso,em que uma prudente insinuação de fellatio tem a coberturairónica de algumas frases sobre os caminhos da salvaçãopara uma alma.

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Fragmentos de um filme-esmola: A Sagrada Famíliade João César Monteiro

Na primeira fase da sua obra, João César Monteirofilma fundamentalmente o desespero de viver, e filmadesesperadamente em sucessivos gestos de provocação.Que daí não resultem filmes apresentáveis nos circuitosadequados, é compreensível. Que este itinerário, comoaquele de Garrel, em que este de certo modo se inspira (ealgum Garrel ainda está presente no melhor de Veredas),não tivesse saída, era talvez bastante óbvio. Mas que filmescomo A Sagrada Família ou Quem espera por sapatos de defuntomorre descalço nos surgem como experiências únicas eirrepetíveis no cinema português — isto parece umaverdade incontestável. Talvez fosse natural que, entretanto,João César Monteiro se confrontasse com o universo deharmonia inadiável que é a poesia de Sophia de MelloBreyner. Mas também aí o que César Monteiro nos dá é ainadequação do seu cinema em relação à harmoniapressentida na pessoa de Sophia — e nisso reside ointeresse desse aparente documentário.

A Sagrada Família é, num primeiro nível, umaacumulação de sequências em diversos registos que nuncachegam a formar um percurso narrativo. É certo queencontramos um casal, Maria (Manuela de Freitas) e JoãoLucas (João Perry), acompanhados por uma criança(Catarina Coelho), que é a grande energia corporal, verbal efílmica que atravessa esta obra (a criança filma o que sepassa à sua volta). O casal confronta-se com os pais deMaria (Dalila Rocha e Luso Soares), numa cenaextremamente interessante, em que João Lucas se colocaem cima de uma mesa com uma máscara de um porco

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sobre a cara. Mas o casal confronta-se sobretudo com anudez da sua própria impossibilidade em cenas desilencioso enredamento dos corpos. Algumas imagens,uma laranja, por exemplo, para introduzir um texto dePonte sobre a fruição das coisas, e alguns textos, comoessa admirável missiva de Breton à filha, que conclui coma frase que termina aqui o filme: «Desejo que sejasloucamente amada». Follement, claro: e o filme é acima detudo um registo das marcas dessa loucura recolhidas numespaço de clausura: uma cama (um colchão), umaspersianas de madeira, que vão pontuando pela luz o gráficode afectividade do filme. Digamos que, todas estas cenassão acima de tudo uma súplica — um apelo. No mesmoemparedamento ritual de um Schroeter em O dia dos idiotas.Mas há também, e em suplemento, a memória/obsessãode um crime: um punhal, em sombra, erguido sobre acriança (e desta apenas vemos o boneco infantil colocadona parede), ou o tiro de pistola da última sequência. Adestruição (do mundo, do amor, do cinema) é o pano defundo deste filme. Há aqui, apesar da presença evidentede modelos, muito mais força e arrebatamento do quenas peregrinações delicodoces sobre a terra portuguesa aque o autor posteriormente se dedicou.

1973

Principaisfilmes: Malteses, burgueses e às vezes… de Artur

SemedoSofia e a educação sexual de Eduardo GeadaCartas na mesa de Rogério CeitilFesta, trabalho e pão em Grijó de Parada deManuel Costa e Silva

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1974

Principaisfilmes: Brandos Costumes de Alberto Seixas Santos

Falamos de Rio de Onor de AntónioCamposMeus Amigos de António da Cunha TellesAdeus, até ao meu regresso de António-PedroVasconcelosLisboa, o direito à cidade de Eduardo GeadaBenilde ou a Virgem-Mãe de Manoel deOliveiraJaime de António ReisJúlio de Matos… Hospital? de José CarlosMarquesVamos ao Nimas de Lauro António

Meus Amigosde António Cunha Tellesestreado em Lisboa, a 11 de Março de 1974

Título estranho, este: Meus Amigos. Primeiraambiguidade: a supressão do pronome «os» permite quehesitemos entre duas hipóteses (será que se trata de umfilme sobre os meus amigos ou de um discurso dirigido aosmeus amigos?). Segunda ambiguidade: onde está o sujeitode enunciação titular deste discurso? Ou, por outraspalavras, quem é o eu a quem este meus se vincula? Esteestatuto insólito da expressão que Cunha Telles escolheupara designar o seu filme introduz-nos no clima do própriofilme. Nele o autor não está presente senão através dos outros.Isto é, da sua subjectividade tudo fica rasurado. Mas o

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mundo real onde o autor vive, esse, interfere a cada passo nofilme, e de várias maneiras. Por um lado, porque os actoresnão representam, mas apresentam, não direi as suaspersonalidades, mas pelo menos certos aspectos das suaspersonalidades. Eis um ponto importante que permite que,neste filme, os actores tomem a iniciativa e como que seantecipem em relação ao autor. Daí que os diálogos sejam(ou pareçam, nunca se sabe…) quase sempreimprovisados. Se é certo que isto produz na obra um tempode recepção que contraria os hábitos do espectador, namedida em que assistimos ao discurso a fazer-se, e não àreprodução do discurso feito, também é verdade que é nesteponto que o filme de Cunha Telles adquire umasurpreendente modernidade, resistindo muito mais aocorrer dos anos do que obras aparentemente maisconseguidas da mesma época. Por outro lado, o filmeintervém na própria teia de relações entre os actores, sente-se nele um halo de psicodrama, não simulado, mas vivido,e é isso que precisamente irrompe na admirável sequênciafinal, em que Catarina (Maria Otília) grita para José Manuel(Manuel Madeira): «Oas isto ainda é do filme!?». E se ofilme acaba aqui, a razão não se prende com qualquermotivo de ordem ficcional, mas, sim, com o facto de seter atingido uma espécie de ponto de ruptura nas relaçõesentre aqueles que nele participaram — como se a tensãoque o filme produziu rebentasse na realidade.

Penso que, sem a ingenuidade, no fundo pré-fabricada,de O Cerco e sem o enfoque deliberadamente sociológicode Continuar a viver ou Os índios da Meia-Praia (1976), MeusAmigos constitui o momento mais alto do cinema de CunhaTelles, e, sem dúvida, um dos casos mais interessantes, emenos valorizados, do moderno cinema português.

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Meus Amigos começa por ser o confronto entre doisretratos de revolta. De um lado, José Manuel (ManuelMadeira), exilado de regresso à pátria, permanentementeexilado de si mesmo («há muito tempo que não tenhouma conversa séria»), marginal por convicção irredutível,profissional apenas da auto-demolição impiedosa, e,contudo, homem de ternura convertida em agressividade,tocado a cada instante por uma generosidade infantil. Écerto que toda a sua atitude é inteiramente improdutiva,sobretudo no campo político: o único gesto que propõeé o de fazer ir tudo pelos ares, «mijar para cima disto». Edaí que a impotência, amplamente sentida, se transformeem exibicionismo. Poderá ser que José Manuel tenha umpassaporte de turista ideológico, mas há nele aquelaabertura para a vida que constitui como que uma cauçãorevolucionária sem limites. Do outro lado, quemencontramos? Eduardo (António Modesto Navarro),definido admiravelmente, no diálogo entre a ex-mulher ea actual, como o homem que gosta de etiquetar tudo, nofundo um egoísta incapaz de compreender as mulheres,defensor da criatividade controlada, da acção disciplinada,talvez porque sofra de pouca fantasia e imaginação. Oseu discurso é, com alguma desenvoltura, o discurso domilitante típico, compartimentado e abstracto.

Depois, as mulheres. Do lado de José Manuel, umarelação acima de tudo silenciosa (e daí o modo comoirrompem como desesperados clarões de fala osmomentos de violenta intimidade sexual) com Catarina(Maria Otília). Do lado de Eduardo, uma história lassa,pouco convicta, com Helena (Teresa Mota). Mas Helenaé um dos focos de luz deste filme — e talvez daí afascinação que parece sentir pela zona negra configurada

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por José Manuel. Há nela uma indomável força paradesordenar tudo. Mas este ímpeto de destruição é feitosem a mais leve sombra de ressentimento: é umadestruição feliz, pacificada, brincada. Por isso delapode dizer Eduardo que passa pelas coisassuavemente, sem agressividade, vai quando os outrosvão, mas por si só nunca iria. Entre Helena e JoséManuel, vértices de um triângulo balbuciado, masimpossível, cria-se um espaço precário de purezaprimordial, uma cumplicidade tácita, envolvente, umasubtil aprendizagem de «sujar estrelas» em que umtraz a amarga experiência do sujo e o outro odeslumbramento dos astros. Conversam muito. Ediscutem sobretudo a questão da metáfora. Sabes o queé uma metáfora? pergunta Helena. «Uma metáfora éuma nota de cem paus», responde José Manuel. Trata-se de um dos mais importantes debates políticos docinema português.

Meus Amigos é uma fita desconcertante, porque nãoevolui, não propõe quaisquer hipóteses de inteligibilidadedo real, não teoriza, não desenvolve. Fundamentalmentetrata-se de sequências à deriva, numa espécie de apatia: opróprio trabalho da câmara contribui para isto. Noentanto, uma iluminação extremamente cuidada, umanitidez muito firme nos enquadramentos, e uma enormeverdade no vazio dos diálogos, dão a este filme uma alegriasem festa através da qual passa, funda e silenciosa, umador indefinível.

Brandos Costumesde Alberto Seixas Santosestreado em Lisboa, a 18 de Setembro de 1975

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Alberto Seixas Santos é um dos cineastas portuguesesde mais sólida formação cultural. Uma tal formação pesasobre o seu cinema em termos quase inibitórios. Não quese derrame de uma maneira tagarela — como noutrosacontece. Mas, bem pelo contrário, porque dá aos seustrabalhos um estatuto claramente ensaístico que os demarca,de um modo muito nítido, da restante produção nacional.Se o seu mais recente filme, Gestos e Fragmentos (1982), éuma etapa de uma reflexão «sobre os militares e o poder»,voluntariamente assumida como reflexão fíllmica, tal atitudeé, no entanto, extensível a todas as obras (aliás, poucas)de Seixas Santos: há sempre nos seus projectos o objectivode reflectir sobre uma realidade teórico-política. Este reflectirtem um sentido duplo, numa ambiguidade cuidadosamentecultivada: por um lado, a realidade a analisar aparecereflectida, em sentido muitas vezes simples, isto é, apareceregistada numa aparente passividade da parte do cineasta.Por outro lado, o trabalho de reflexão é fundamentalmenteum trabalho combinatório (isto é, de montagem emsentido amplo) sobre os reflexos recolhidos. Autor deformação marxista, Seixas Santos procurou sempredistinguir-se de uma tradição neo-realista que veiculavateoria e ideologia através de um discurso cinematográficoempapado de retórica. Pelo contrário, o seu trabalho éum trabalho sem marcas ideológicas explícitas, onde omarxismo é convocado como metodologia de análisesocial da realidade.

No caso de Brandos Costumes, esse desvio em relação auma tradição política assinala-se até no modo como, nestefilme, o fascismo e a luta de classes aparecem considerados,não como relações de exploração económica, massobretudo como relações de poder. E podemos ainda

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sublinhar o facto de, em Brandos Costumes, Seixas Santosse ocupar fundamentalmente das contradições existentesnas realidades que lhe são afectivamente mais próximas (nestecaso, certa mentalidade oposicionista, embora passiva, anão ser no imaginário, ao regime de Salazar). Não deixade ser curioso verificar que, correndo um riscoconsiderável, Seixas Santos nos mostra uma oposiçãoabstracta, minada de conflitos, e vivendo isoladamenteem situação de total impotência, e ao mesmo tempovemos, na excelente escolha de documentos reais que o filmenos dá, um salazarismo bem concreto e rodeado de massas.Há em todo o cinema de Seixas Santos esta espécie dependor masoquista: uma escalpelização impiedosa dasrealidades políticas de que o autor se encontra, emprincípio, solidário. Seja a oposição ao fascismo, a reformaagrária ou Otelo Saraiva de Carvalho, os «retratos» deSeixas Santos são sempre de uma inegável crueldade. Emcontraponto, surge-nos como instância longinquamentesalvadora uma figura de revolução que nos aparece sobretudocomo referência estética (veja-se, em Brandos Costumes, otratamento dado ao Manifesto). Contudo, neste cinema, abeleza é fundamentalmente uma nostalgia, não isenta deculpas, que apenas persiste sob a forma de rigor.

Brandos Costumes parte de uma ideia muito clara: oestabelecimento de uma homologia entre a figura do Paino interior da Família e a figura de Salazar no fascismoportuguês. O filme é uma realidade quase «estática»,equilibrada em situações sem evolução, a não ser oinevitável horizonte final que nos é proposto na primeirasequência: a morte do Pai como fim da Ditadura. Masdizer «fim» é talvez de um optimismo que o pessimismoda inteligência do realizador necessariamente recusa. A

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grande questão do filme é a dos mecanismos de obediência, ados exercícios de ditado através dos quais se pratica a educaçãoescolar das crianças e a submissão dos espíritos: destemodo, podemos afirmar que as personagens (que serecortam com alguma nitidez, mas que são sempre peçasemblemáticas: o Pai, a Avó, a Criada, etc., cujo papel sedesenrola fundamentalmente em termos de rábula deteatro de revista) são acima de tudo personagens ditadaspelo fascismo mesmo quando são contra o .fascismo. O cúmulodas contradições pesa sobretudo sobre a figura do Pai:homem de oposição anti-salazarista, racionalista anti-clerical, ele é o ditador na casa, porque «ninguém édemocrata em sua casa», e ainda uma mentalidade colonial— porque começa por ser «um bom português». É namedida em que a Família e a Casa são instituições corroídaspor dentro que o filme apenas pode ser a figuração de«uma casa antiga desmoronando-se em câmara lenta». Otrabalho crítico de Seixas Santos é feito através de umamontagem extremamente subtil (sobreposição do discursode Salazar com a festa de aniversário do Pai, da queda dacadeira do Pai com a conhecida queda da cadeira de Salazar,etc.) e de uma mobilização para a câmara, entrevistasimaginárias, das formas mais difusas de tratamento dosmateriais: monólogos, jogos entre vozes no interior damesma fala, simulações teatrais do pânico, multiplicaçãode espaços dentro do espaço através de uma teatralizaçãode todo o espaço, leituras, etc.). Como é evidente, oproduto surge aos olhos do público como um trabalhofundamentalmente cerebral e frio. Mas, neste cinema demaiúsculas, o autor não deixa de abrir brechas para que oimpossível aconteça: ao inesperado o tempo dá passagem,diz-se. Estes blocos soltos nunca chegam a fazer sistema.

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Será talvez aqui que o marxismo do autor desembocanoutra coisa: Gestos e Fragmentos poderão ter sido o lugardessa mudança.

Porque, nesta extensa e aliciante reflexão sobre «osmilitares e o poder», Seixas Santos parece deslizar daperspectiva esquerdista de que partiu (na lucidez de quempensa, à maneira de um Martins Pereira, que a esquerdaverdadeira se tornou um horizonte longínquo) para umcepticismo social-democrata minado de desencantos,cinismos e comprazimentos masoquistas. O filme consistena articulação de três blocos cuidadosamente encenados:uma longa entrevista com Otelo Saraiva de Carvalho, arecitação que Eduardo Lourenço faz de textos queescreveu sobre a instituição militar e a revolução, e asdeambulações de um cineasta estrangeiro, Robert Kramer,que, em intermináveis monólogos à volta do seu quarto,tenta decifrar o enigma do processo político português.Como se torna evidente, Seixas Santos não privilegianenhuma destas abordagens da realidade: pretende, isso,sim, que da sua confrontação resulte uma dialécticasuficientemente instrutiva. Se nalgum ponto o cineastaimprime um pouco de veemência no filme, será apenasna utilização do documento final (discurso de Otelo contraos velhos generais que nada fizeram), e onde se retoma olema de sabor esquerdista: há sempre uma razão para nosrevoltarmos. Quanto ao resto, o que se desprende destecontraponto de imagens é menos uma dialéctica portadorade inteligibilidade do que uma ironia nostálgica que podechegar mesmo ao limiar do riso. Mas Seixas vai mais longe:introduz o próprio jogo da contradição no interior decada um dos blocos. E assim vemos como o desejo deverdade que impulsiona Kramer se vai convertendo no

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esteticismo de uma memória de filme negro; verificamoscomo o discurso acutilante de Eduardo Lourenço seconverte no ensimesmamento da fala intelectual; epodemos saborear o modo como as diatribes anti-burguesas de um Otelo se recortam sobre o pano de fundode burguesíssimas melodias ao piano ou do saberajuizadamente acumulado numa estante em volumes daEnciclopédia Verbo.

Benilde ou a virgem-mãede Manoel de Oliveiraestreado em Lisboa, a 21 de Novembro de 1975

Não se esquecerá facilmente o plano inicial em queManoel de Oliveira arranca dos bastidores dos cenáriosda Tobis Portuguesa, avança através deles e entra no espaçoteatral do seu filme. Uma tal entrada na matéria tem oenorme mérito de circunscrever a realidadeeminentemente artificial com que vamos ser confrontados.Mas o «artificial» funciona aqui em vários planos. Emprimeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor oupior, uma realidade, mas, sim, registar uma peça de teatro.Quer dizer que, com Benilde, Manoel de Oliveira avançaum pouco mais na sua concepção sobre a passividade docinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimentode câmara, uma passagem para um espaçodeliberadamente fechado onde o exterior adquire uma forçasimbólica desmesurada: é o vento que força as janelas edescompõe as saias de Etelvina (Glória de Matos), numadas mais belas cenas do filme, são os detestados gritos dovagabundo que ronda a moradia, é a presença inacessívelde Deus. Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço

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maldito que, na sua violenta clausura, assistiu aoenlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarrocomportamento do pai, e serve agora como explicaçãopara o mistério que envolve o estado de Benilde. No fundo,é o que há de artificial neste espaço que constrange aoexacerbamento de determinadas virtualidades. Em últimolugar, podemos dizer que o artifício que reina aqui éplenamente justificado pelo facto de se tratar de um lugaronde a arte se faz: onde Régio/Oliveira criam a sua arte,onde Deus produz artificialmente a gravidez de Benilde.

Porque tudo gira em torno da gravidez de Benilde —fenómeno aparentemente inexplicável. E o filme articula-se à volta de três eixos narrativos fundamentais: primeiro,trata-se de verbalizar esta realidade impensável (a de queBenilde está grávida); depois, trata-se de investigar, emtermos que ganham a dimensão de um inquérito policial,quem poderá ser o pai da criança; e, por fim, trata-se deaceitar a gravidez como realidade divina, inatingível porqualquer saber mundano. Estas três etapas traçam umcaminho que tem a evidência de uma demonstração lógica.Podemos, de certo modo, dizer que estamos perante umaespécie de iniciação num tipo de compreensão que estáacima de qualquer saber. Por isso Benilde diz em dada alturaa propósito de Eduardo: «Ele já começou a compreender,mas não sabe bem o que compreendeu».

Não será excessivo ver na clausura brutal desta casaisolada no Alentejo um modo de figurar o espaço dasublimação. Porque só pela sublimação poderemos entenderesta passagem do sexual para o divino a que o filme nos fazassistir. E poderemos até dizer que o próprio teatroaparece para Oliveira como uma sublimação do que há dedemasiado mundano na prática do cinema. Daí que o

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realizador e Deus ocupem aqui posição análoga. O que olado demiúrgico do plano inicial apenas confirma: fazerdo caos um mundo.

Mas é aqui que o filme produz algo que quase pareceescapar à mão divina do seu autor: é que este espaçofechado, entendido como espaço da sublimação, acabapor ser um espaço que põe a nu a sublimação como artifício,no sentido mais insustentável da palavra. O que há deadmirável neste filme de Oliveira é que nunca podemosapontar nele o mínimo gesto de des-solidarização emrelação ao texto de Régio, e contudo toda a realizaçãoconverte Benilde numa espantosa obra de enigmático humor.Sejamos claros: talvez Benilde seja a prova evidente deque não há sublimação sem resto, ou, se quiserem, de quenão há clausura sem exterior, e é um pouco a sinalizaçãofílmica desses restos, à deriva no filme de Oliveira, que noscoloca perante o inevitável humor de toda a sublimação(sexual, artística, religiosa) que se pretenda absoluta.

O habitual curto-circuito em Oliveira da zona média deconvívio entre os seres humanos está aqui representadona visão crítica da personagem que melhor simboliza essafaixa mundana da existência (Etelvina), e no modo comoo filho, Eduardo (Jorge Rolla), denuncia, uma vezcontaminado pelo delírio de Benilde (Maria AméliaAranda), a comédia fútil em que a vida da mãe estáenvolvida. Mas, uma vez curto-circuitada esta zona média,encontramos de novo uma identificação entre o alto e o baixo,não já entre o sublime e o insignificante, mas entre o quepoderíamos chamar o teológico e o pornográfico. O ponto deconvergência destas duas instâncias é obviamente o dosuivos do vagabundo que ronda a casa: só ele ou Deuspodem ser o Pai da criança de Benilde. Mas esta disjuntiva

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é falsa: porque ele é Deus, ou, se quiserem, o pornográficoé o teológico. E talvez não seja por acaso que, dizem-nos, esses uivos são produzidos pela própria voz deManoel de Oliveira.

Tal como, noutros filmes, o alvo crítico de Oliveira é oamor como zona média, aqui a sua crítica incide na prática dareligião como zona média. De certo modo, todas aspersonagens, incluindo o padre Cristóvão (AugustoFigueiredo), e exceptuando apenas Benilde, e em parteEduardo, são incapazes de viver no mesmo plano (existencial,fílmico) o sobrenatural como natural. A arte de Oliveiraconsiste em assumir essa espécie de inocência, que lhepermite filmar no mesmo plano — plano fílmico, planoexistencial — o sobrenatural como natural. Todas as outraspersonagens do filme vivem o religioso como umsuplemento que se acrescenta à lógica do quotidiano. SóOliveira seria capaz de filmar, nesta ingenuidade de umcinema calculadamente desarmado, o religioso como lógicado quotidiano. É por isso que este filme é um filme de fé,não pelo que diz, mas pelo que faz. Mas, simultaneamente,e na cruel ironia de todas as sublimações, é um filme quereconduz a fé ao que há de mais baixo: o sexo, a loucura, oinumano.

Jaimede António Reis

O filme parte de uma descoberta: a da obra de artistaplástico de Jaime Fernandes, internado num HospitalPsiquiátrico. O material encontrado é de facto fascinante:toda uma galeria, monótona e obsessiva, de corpos dehomens, e, sobretudo, de animais, traçada numa rede

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densíssima de linhas, num grafismo simultaneamentenítido e emaranhado. É claro que o cineasta nos obriga apassar os olhos repetidas vezes por estas figuras compactase esmagadas, e se interroga sobre a forma de apelo que sedesprende desta actividade desesperada e insistente. Aomesmo tempo, são postos em relevo certos fragmentosde cartas com frases aparentemente desconexas.Percebemos que Jaime nos quer dizer qualquer coisa, eque essa qualquer coisa lhe escapa, e daí a repetição, amonotonia referida, a evidência incontrolável desseensinamento — qualquer coisa que, para nós, espectadores,surge como definitivamente perdida. O filme joga-se porinteiro no segredo desta dor irrecuperável: por issopodemos dizer que Jaime, sendo uma obra sobre a loucurae a criação, sobre o atroz vazio dos gestos no recinto deum asilo para loucos, sobre a nostalgia muito funda deuma harmonia apagada, é, acima de tudo, uma espécie dereflexão rasante à superficie das imagens onde nos é dadopensar a solidão imensa em que cada destino se configura.

Alguns poderão supor que esta primeira obra deAntónio Reis (que, muito embora contando com acolaboração de Margarida Martins Cordeiro, não apromove ainda ao papel de autora) é algo deconsideravelmente diferente daquilo que nos virá a surgircom Trás-os-Montes e Ana. É lícito supor o contrário: queé precisamente aqui que se inscreve todo o espaço emque se vai desenrolar o trabalho artístico de António Reis— na medida em que o eixo caos-cosmos, loucura-serenidade, se afirma desde logo com uma precisãoiniludível. De certo modo, todo o cinema de António Reisrepete o gesto de Jaime: é uma vitória precária do cosmossobre o caos, da harmonia sobre as trevas, da arte sobre a

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loucura. Se há qualquer coisa que explica a minuciosa einsensata obsessão de António Reis e Margarida MartinsCordeiro em relação aos seus f ilmes, isso passaseguramente por uma exigência, sempre sentida comparticular acuidade, de travar o passo à desordem e àturbulência que a cada instante se insinuam ao longo dasnoites de cada dia.

Jaime constrói-se a partir de imagens do hospital ondeJaime Fernandes viveu grande parte da sua vida. Essasprimeiras sequências são envolvidas na espessura de umsilêncio sem tréguas: é a inutilidade dos passos que sedão, é a desmessura dos gestos face à paralisia do mundo,é a rotina dos dias sempre iguais acumulada no mais fundoe entranhado dos objectos de uso comum, é a tentativade nos aproximar (cautelosamente, numa espécie de pudore reticência) de um mundo que, por definição, se colocasempre no interior da própria separação irredutível.Depois a música entra na imagem — e deparamos comuma constelação de referências que determina aproblemática do filme: por um lado, o canto de Armstrong,interminável modulação da dor; por outro, Telleman e arecuperação de uma natureza cada vez mais vivida numaespécie de assombro (é espantoso o modo como AntónioReis, ao restituir o espaço rural da primeira vida de Jaime,lhe confere uma espécie de vibração alucinatória e deviolência mágica); por fim, Stockhausen, através do qualse opera o cálculo do caos. É este tecido subtil, e discretamentetrabalhado, que impede o filme de deslizar para qualquerdas suas eventuais perversões: fosse, talvez a mais óbvia,a de uma denúncia das condições hospitalares (que estápresente, mas rasurada como formulação ideológica); ouentão a de uma possível tendência para equacionar em

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termos pesadamente teóricos a relação entre a arte, oespaço da criação e a loucura; ou ainda, embora num planomais recuado, a possível metáfora de um destino portuguêsde clausura e impotência: louco, sim, porque «quisgrandeza qual a sorte a não dá». Mas a sorte é aqui umapalavra fundamental: digamos que toda a sorte do filme seconcentra na relação que Jaime teve com a sua sorte, e porisso o filme desaba sobre nós próprios e a nossa inevitávelrelação com a sorte que nos cabe. Como diria Maria Velhoda Costa, num pequeno livro com o qual Jaime tem muitoa ver, Português, trabalhador, doente mental, «o que o loucoreivindica é o privilégio total que, de facto, alguns detém,sem nenhuma razão — o psicótico é aquele que deliragrandezas e bens como um direito próprio ou que searroga poderes de crítica radicais a todo o sistema socialem que está inserido — ou que desiste totalmente senão possui tudo. Por só poder ser e possuir demasiadopouco.» Donde, «o psicótico é o indivíduo cujaconsciência de estar no mundo não suporta a excessivadiferença e distanciação entre os homens (que lhe éfeita)». Toda a beleza deste filme admirável de AntónioReis resulta de uma colocação do olhar, não num lugar desaber teórico ou num posto de combate ideológico, masnesse interior ilimitado que é o cerne da própriadistanciação entre os homens.

1975

Principais filmes: As armas e o povo, filme colectivoCooperativa agrícola Torre Bela de LuísGalvão Teles

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Gente da Praia da Vieira de AntónioCamposLiberdade para José Diogo de Luís GalvãoTelesLerpar de Luís CoutoA procissão dos bêbados de Luís GalvãoTelesDeus, Pátria, Autoridade de Rui SimõesCântico final de Manuel GuimarãesO funeral do patrão de Eduardo GeadaQue farei eu com esta espada? de João CésarMonteiroDemónios de Alcácer-Kibir de José Fonsecae CostaO princípio da sabedoria ou O Rico, o Cameloe o Reino de António de MacedoOcupação de terras da Beira Baixa deAntónio de MacedoFátima Story de António de MacedoO encoberto de Fernando LopesPrefácio a Vergílio Ferreira de LauroAntónio

Os demónios de Alcácer-Kibirde José Fonseca e Costaestreado em Lisboa, a 10 de Abril de 1977

Lembram-se da discussão de Meus Amigos entre Helenae Zé Manel? Ela perguntava «o que é uma metáfora?», eele respondia que «uma metáfora é uma nota de cem paus».Em certa medida, a lição do filme de Fonseca e Costapretende ser esta: «Qual Rei! Qual nada! / O Império todo

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assenta / Sobre a força explorada. / O Rei és tu.» Ou, poroutras palavras, pretende-se atravessar as metáforas do Impérioe remeter a sua magia exausta para a única realidadetangível: a força da terra e do trabalhador. Mas o que écurioso é que o filme não encara essa realidade em termosfrontais: os trabalhadores não são aqui o sujeito da narração.Quem move os ténues cordelinhos ficcionais é um grupode saltimbancos que, no seu percurso, também atravessa omundo dos trabalhadores em greve. Mas, ao contrário datradição neo-realista mais estrita, a greve fica para trás e arealidade revolucionária é sobretudo cantada (função dasbelíssimas canções de Sérgio Godinho) ou alegorizada. Esó em termos de alegoria podemos entender um final emque, face a um fortuito cavalo branco sebasticamentedesempregado, a única personagem que se salva é aquelaque simbolicamente se chama África. Neste ponto, seriainteressante confrontar Os Demónios de Alcácer-Kibir comCerromaior. Nos dois casos, existe uma indecisão (estética?política?) em filmar a luta de classes na sua frontalidadenua — indecisão que, no filme de Luís Rocha, inflecte nosentido de uma problemática da solidão, e, no caso deFonseca e Costa, se denuncia na escolha de uma alegoriapara pôr em causa as alegorias coloniais (contradição queo filme nem sempre parece pressentir) e numa espécie decondenação do território europeu como território semsaída, a que apenas escapa a liberdade futura de uma Áfricarevolucionária. Como se a Europa estivessedefinitivamente envolta numa interminável metáfora.

O filme tem uma construção essencialmente nómada eos seus protagonistas definem-se por uma espécie dedesocupação. É isto que conduz a um recuo lúdico que tornapossível que a realidade seja contada/caracterizada através

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dos jogos que as personagens vão inventando. Daí que acarga dramática seja sempre posta a distância. Nem arepressão, nem a greve, nem o massacre final nos aparecemcomo mais do que teatralização do fascismo, da luta, damorte. Mas aqui a teatralidade — ao inverso do que sucedeem Oliveira — é uma teatralidade sem lugar definido, semtexto, sem palco, sem estatuto. Por outras palavras, o filmeencena-se a si mesmo como um teatro de saltimbancos.

Para isto contribuem duas técnicas de realização. Porum lado, os diálogos raramente são trocas directas depalavras. São fundamentalmente delírios em que aspersonagens parecem ser surpreendidas no momentoem que cantam, através de falas laterais, a especificidadedo seu próprio destino. É como se fosse um teatroconstruído de apartes. E o próprio percurso dossaltimbancos é em si mesmo um delírio que se vaitraçando à parte da realidade política, e só por esse estatutode margem (estamos aqui no rescaldo de um Maio de 68em que os que estão à margem ganham mais forçarevolucionária do que os que estão em baixo) adquiremuma energia subversiva. A única personagem que fala defrente, e pesando as palavras, é a figura representada porFernando Gusmão (equivalente àquela que, em O Recado,nos era dada por José Viana): temos aqui o sujeito supostosaber, aquele que aparece como depositário da verdaderevolucionária (será também interessante compará-lo, nassemelhanças óbvias e nas consideráveis diferenças, como «maltês» de Cerromaior), a quem Fonseca e Costa nãopode deixar de prestar homenagem — embora umahomenagem feita de passagem. Digamos ainda que estanatureza de cantata que o filme por vezes apresenta oaproxima do cinema de um Glauber Rocha.

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A segunda técnica, essa, evoca sobretudo o estilo deum Jancso: são os longos e amplos movimentos decâmara que pretendem articular num só plano múltiplosplanos de uma realidade complexa que, a cada instante,entra e sai da imagem: podemos aqui recordar, porexemplo, a sequência da chegada dos saltimbancos presosao lugar onde estão retidos os trabalhadores em greve.Este entrar e sair do campo da objectiva numa lateralidadeinfixável reproduz ao nível das sequências a construção daglobalidade do filme.

Raramente, na tradição neo-realista, ondedistorcidamente o filme se inscreve, o desejo de revolução foitão verbalizado em termos de vontade (o meu destino é feitocom estas mãos, não com as linhas que lá estão traçadas)e tão impotente. Mas, como vimos, de certo modo estaimpotência de um país (D. Gonçalo é «o desconsoladomorador de um país que se desmorona» e de umcontinente. Contudo, não deixa de ser curioso verificarque algumas das cenas mais belas deste filme sejamprecisamente aquelas que nos pretendem dar, num jeitode condenação impiedosa, o retrato de uma decadência.

1976

Principais Filmes: Emigr/antes... E depois? de António-PedroVasconcelos.Cavalgada Segundo S. João, o Baptista de JoãoMatos Silva.Continuar a Viver ou Os índios da Meia-Praiade António da Cunha TellesMa femme chamada bicho de José ÁlvaroMorais

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Máscaras de Noémia DelgadoO meu nome é... de Fernando Matos SilvaSertório de António FariaTrás-os-Montes de António Reis eMargarida Martins Cordeiro Barronhos —Quem tem medo do poder popular? de LuísFilipe RochaAs ruínas no interior de José de Sá Caetano.As Horas de Maria de António de MacedoS. Pedro da Cova de Rui Simões.

Trás-os-Montesde António Reis e Margarida Martins Cordeiroestreado em Lisboa, a 11 de Junho de 1976

Uma das linhas mais produtivas do cinema portuguêstem sido a da descoberta, em termos de pesquisamantrolopógica, de uma realidade rural em vias dedesaparecimento. Situado numa orla da Europa, Portugaltem a pecularidade de viver múltiplos tempos simultâneos. Ofenómeno da emigração produziu no mesmo lance umadegradação das condições de progresso de determinadasregiões e o efeito de choque do retorno ou da passagemcíclica daqueles que vivem ou viveram por uns temposem terras estrangeiras. Desse modo as contradiçõesagudizaram-se e os contrastes tornaram-se mais gritantes.

Em determinado momento, um sector muitosignificativo dos trabalhadores de cinema decidiu intervirna recolha de toda uma memória cultural do nosso povoprestes a ser varrida pelos moldes uniformizantes dacultura de massas: daí nasceu o projecto de um Museu daImagem e do Som. A própria designação envolvia um

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paradoxo: largando a ficção para ir à procura de umarealidade concreta, os cineastas recolhiam apenas materialpara museu. Grande parte destes filmes aparece, no fundo,como feita de obras de uma certa ficção. Isto é, por um esforçopertinaz de abstracção, eles fingem que uma determinadarealidade permanece inalterada, e procuram filmá-la nasua intangível pureza através do recalcamento de tudo aquiloque poderia perturbar a nitidez matinal do retrato. Sãoobras, quase sempre admiráveis, que se alimentam de umacomum ficção da cultura popular. A crítica, sensível à violênciadesta abstracção, designa-as habitualmente pela palavramais alta que se atribui a realidades deste tipo: trata-se depoesia. E a expressão famosa de Novalis (quanto maispoético, mais verdadeiro) tem aqui inteiro cabimento.

Neste domínio, são de um enorme interesse, sobretudopelo engenhoso das soluções narrativas, os trabalhos deAntónio Campos: Vilarinho das Furnas (1971), Falamos deRio de Onor (1974) — e podemos notar como o própriotítulo coloca aqui o problema, central no autor, do lugarde enunciação do discurso dito documental —, Gente daPraia da Vieira (1975), para não referirmos já essa estranhaficção retardada e constrangida por um enorme respeitopela realidade em si mesma que é Histórias Selvagens (1978).Mas merecem ainda menção, entre outros, NoémiaDelgado (Máscaras, 1976), Leonel Brito (Colónia e Vilões eGente do Norte, 1977), Fernando Matos Silva (Argozelo,1977), Manuel Costa e Silva (Festa, Trabalho e Pão em Grijóde Parada e Madanela, 1977), etc…

Trás-os-Montes de António Reis começa por ser umprojecto que arranca deste «movimento antropológico»do cinema português. Mas, tomando à letra o ensinamento

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de Novalis, leva mais fundo e longe a abstracção ficcional:este filme «retrata» uma realidade que já não existe, quenunca existiu, impossível de existir, mas retrata-a com a maisimplacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos quea uma visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula,ou, se não tivermos medo da palavra, a uma metafísica(Ana será a revelação plena disso). Talvez isto explique asperipécias que rodearam o lançamento do filme. Quandose começou a falar numa película sobre Trás-os-Montes,certos meios da região em causa terão pensado que setratava de um trabalho que documentasse o viver actualda província. Daí o equívoco, que levou à convicta, oumanipulada, indignação dos que pretendiam que o filmede António Reis e Margarida Martins Cordeiro deveriaser um documentário de teor turístico sobre Trás-os-Montes.Ora o trabalho de António Reis e Margarida MartinsCordeiro não somente era outra coisa, como era um actode resistência ao olhar turístico sobre a realidade. Porque o olharturístico passa, o cinema de Trás-os-Montes instaura. Arealidade aqui não é dada, mas consagrada. Esta perspectivade arte desenvolve-se na mais imanente das religiosidades. Daía dificuldade que há em pronunciar sobre ela qualquerfala que se não sinta excedente ou profana.

Um dos aspectos mais interessantes do filme deAntónio Reis e Margarida Martins Cordeiro temcertamente a ver com as relações do espaço e do tempo.Estamos habituados a descobrir uma região deslocando-nosno seu espaço. Mas por vezes podemos tentar fazer a históriadessa região — deslocando-nos no seu tempo. O que Trás-os-Montes realiza, com uma prodigiosa naturalidade, é umadeslocação no espaço que é simultaneamente uma deslocação do tempo.Por outras palavras, a geografia converte-se em memória:

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é toda uma imensa riqueza de símbolos, lendas, ritmos,que se vem inscrever — pastoralmente — sobre o corpoda terra. Há aqui, nestes caminhos que não levam a partealguma, um sabor heideggeriano: o cinema transforma-se em pastor do ser, que é talvez a lição dos admiráveis planosiniciais do frágil pastorinho conduzindo os animais aoseu destino. O que mais nele nos comove é o seuantiquíssimo saber da voz, que lhe permite formular aspalavras justas, e essa agudíssima inconsciência de umdestino que o atravessa, sem que ele o pressinta, para alémda evidência primeira de todas as coisas.

As Ruínas no Interiorde José de Sá Caetanoestreado em Lisboa, a 21 de Outubro de 1977

Os filmes de Sá Caetano são verdadeiros «objectosestéticos não identificados». Não se inserem em nenhumatradição explícita, não se referem a nenhum outro campoartístico privilegiado (nem a literatura, nem o teatro, nema pintura). Mas há mais do que isso: são obras que parecemviver voltadas para dentro de si mesmas, não desferemsinais para o exterior, não enviam apelos. A imagem emSá Caetano recolhe-se numa espécie de ensimesmamento.Quem recordar sem grande atenção As Ruínas no Interior eo filme seguinte de Sá Caetano, estranhamente intituladoUm S Marginal, poderá supor, e com motivos de sobrapara tal, que se trata de duas películas inteiramenteestranhas uma à outra. Até certo ponto, isso é verdade.Mas elas são estranhas uma à outra porque são estranhas sejaao que for, e é essa estranheza, esse modo convicto comque parecem repelir qualquer aproximação, que as irmana.

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As Ruínas no Interior passam-se numa aldeia algarvia,em 1943, em torno de uma belga que se refugiou numaluxuosa casa de estilo árabe, juntamente com dois filhos,e que, nas férias da Páscoa, recebe a visita dos proprietáriosportugueses dessa casa. Há aqui esboços de várias intrigas:por um lado, temos a casa abandonada por motivos quedesconhecemos e as referências veladas a uma históriaanterior («tragédia familiar», tristezas «passadas»); poroutro, temos as relações que o Avô (Jacinto Ramos)estabelece com um velho da praia, de nome Luciano, quesupomos envolvido num trabalho político que implicaalguma prudência e clandestinidade; do lado de Luciano,há a mulher que estará internada na cidade e que teráperdido a vontade de viver depois da morte dos filhos nomar; entretanto, a criada da casa, Maria Júlia (Maria Otília),tem um filho que estuda numa instituição religiosa; umdos netos espia de noite o corpo da criada; um vagabundoronda a moradia; a belga deixou o marido no Congo e jáhá muito que não tem notícias dele; um dos seus filhosresulta de uma situação de adultério evocada num brevediálogo; mas mais importante do que tudo isto é o queconstitui a segunda parte do filme: caídos do céu comocorpos celestes (era este o título original do projecto de SáCaetano), aparecem na praia dois militares, sobreviventesde um desastre de aviação, que pedem a ajuda cúmplicedas crianças, que acabam por protegê-los durante algumtempo; um deles morre, o outro desaparece, depois deterem trocado algumas palavras agressivas; ao mesmotempo, a aldeia é percorrida por patrulhas da GNR queprocuram os dois homens de origem inglesa.

Como se verifica, nenhuma destas histórias tem umaorigem e um desenlace, todas elas parecem surpreendidas

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a meio de um desenvolvimento cujas pontas nos escapam.Mas este filmar a meio de é uma constante de Sá Caetano.Porque o filme também não é uma galeria de perfispsicológicos; pelo contrário, as personagens têmcontornos tão precários que mal chegam a emergir danebulosa narrativa donde parecem cair. Mas também nãoé um filme que se sustente como documento sociológico:as oposições que se estabelecem são quase sempresumárias e parecem resumir-se a um paradigma pobreza/riqueza «que fazem as crianças ali penduradas na árvore?»,pergunta a mãe; «estão a vê-los comer», responde a criada.É esta silenciosa ruminação de todos os sentidos que confereao cinema de Sá Caetano uma opacidade inamovível.

Tal opacidade perturba e desconcerta na medida emque um grande apuro formal parece denunciar umapremeditação imensa neste trabalho. E, por outro lado, aconstante utilização de uma montagem em paralelo cria asuposição de que as múltiplas interferências de imagensirão desencadear uma teia de significações. Ora o trabalho dofilme é, à maneira de Penépole, um adiar obstinado dessa teia.Certas imagens caem sobre outras imagens com o mesmoacaso cósmico com que descem do céu os doissobreviventes de um avião perdido no mar.

O que pode existir de fascinante em As ruínas no interioré a sensação de estarmos perante um documento históricoque se refere a realidades irreconstituíveis, e que pertence aparâmetros de comunicabilidade definitivamente perdidos.Não será por acaso que este cinema do ensimesmamentonos irá dar, com Um S Marginal, um filme sobre os efeitosperversos das tecnologias contemporâneas dacomunicação.

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1977

Principais filmes: Almada, um nome de guerra de Ernestode Sousa.A lei da terra do Grupo ZeroMadrugada de Luís CoutoAntes do Adeus de Rogério CeitilArgozelo de Fernando Matos SilvaGente do Norte ou A História de Vila Ricade Leonel de BritoA Fuga de Luís Filipe RochaColonia e Vilões de Leonel BritoTerra de pão, terra de luta de JoséNascimentoNós por cá todos bem de Fernando LopesVeredas de João César MonteiroA Confederação — O povo é que faz ahistória de Luís Galvão TelesA Santa Aliança de Eduardo GeadaNem Pássaro nem Peixe de SolveigNordlundEx-votos portugueses de António CamposMadanela de Manuel Costa e SilvaBicicleta ou o Tempo que a terra esqueceu deVicente Jorge SilvaO Zé Povinho na Revolução de LauroAntónioAlexandre e Rosa de João Botelho e JorgeAlves da Silva

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Nós por cá todos bemde Fernando Lopesestreado em Lisboa, a 3 de Março de 1978

Podemos dizer que grande parte da riqueza ecomplexidade do moderno cinema português resulta deexistência de múltiplas instâncias de alteridade que distorcemo que, noutras circunstâncias, seria um cinema moldadopelas normas comunicativas da estética televisiva. Nunsautores, essa alteridade configura-se no mito de um cinemapuro, cinema anterior ao próprio cinema (é talvez o casode Manoel de Oliveira), noutros é o teatro que surge comopólo de atracção, noutros ainda a pintura ou as artesgráficas, ou mesmo a poesia entendida em termos deimaterialidade musical (será talvez o caso de António Reis).Fernando Lopes parte de um trabalho muito complexosobre as relações entre o documento e a ficção (é oexemplo de Belarmino) e parece progressivamente atraídopelos valores de distorção que resultam do modelo do filmemusical. Nós por cá todos bem será talvez o lugar onde secruzam estas duas tendências. Daí a sua subtileza e o seuinegável interesse, mas também o ar um pouco imaturoque o filme aparenta, como se o autor se mostrasse algoreticente em relação a qualquer das opções que teria sidopossível seguir.

Nós por cá todos bem começa por ser a visita de umaequipa de cinema à Várzea dos Amarelos — povoaçãoquase abandonada pelo flagelo da emigração e onde hojesubsistem pouco mais de sessenta pessoas. Entre elas, estáElvira Marques, mãe do realizador, mulher do povoapoiada na evidência das tradições e desarmada face àsmudanças sociais que o 25 de Abril parece anunciar. O

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filme é também uma longa entrevista com esta mulher,exemplo do pequeno lavrador que se sente frustrado edesprotegido, e que, prudente e receoso, se tende a refugiarnum discurso de conservação dos valores mais sólidos eestáveis. De certo modo, ao dar a palavra à sua mãe,Fernando Lopes, tendo consciência de que esta fala nãotinha uma progressista exemplaridade (como aquela queestava então em moda recolher da boca do povo), vinhaavisar que a honestidade temerosa desta fala deveria sertomada em conta por qualquer política de progresso. Éesta a dimensão política de uma obra, que, fundamentalmente,acentua o imenso desajustamento entre as categorias dereflexão política nos meios urbanos e a estreiteza muitoconcreta dos problemas com que se confrontam aquelesque deles estão afastados.

Mas o filme é mais do que isso. É também, como oseu título indica, uma película sobre a dispersãogeneralizada a que realidade portuguesa vai forçando:todos tentam sobreviver indo para novas terras, todosprocuram sossegar os parentes distantes com a fórmularitual do início das cartas: «Nós por cá todos bem». Nesseponto, retoma interesses anteriores de Fernando Lopesem relação aos problemas da emigração. Mas encontramosainda um aspecto mais interessante: trocando as voltasaos dados do real e da ficção, entrando sempre pelo ladomais oblíquo da enunciação fílmica, Fernando Lopes dá-nos de uma assentada duas possíveis biografias: a da suamãe, sobretudo ficcionada nas cenas em Lisboa, e a suaprópria (concentrada, ainda nas palavras da mãe e navisualização da sua iniciação sexual, da entrada nos enredoslisboetas, mas também nas imagens citadas do próprioBelarmino). Daí que o filme, passando da calafetada

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autobiografia ao diário, seja também o registo quotidianodo próprio trabalho das filmagens, permitindo aorealizador meter a sua carta («nós por cá todos bem»)neste baralho de cartas dispersas pelo mundo. Conhecidasas notáveis qualidades de Fernando Lopes para aexploração ágil e minuciosa dos efeitos de montagem, nãoserá de espantar que o filme se desenrole com uma enormedesenvoltura, e consiga mesmo ser convincente nospróprios momentos em que o espectador poderia suspeitarque haveria escassez de material (algumas sequências,como a reconstituição medieval no castelo, emborasaborosas, deixam a sensação de estar a mais). Auxiliadopor música de Vivaldi, versos de O’Neill, algumas belascanções de Sérgio Godinho e a harmonia tranquila dasárvores da aldeia, o cinema de Fernando Lopes dá-nos osuficiente de nostalgia pelo tempo imemorial de umacultura em perdição sem nunca resvalar para os êxtasesacéfalos do documentarismo, do progressismo das boasintenções, ou do lirismo rural.

De certo modo, o mais interessante ficou por filmar,et pour cause. Não é por acaso que as entrevistas com ElviraMarques não são conduzidas pelo autor, seu filho, mas,sim, pela voz neutra de um entrevistador improvisado paraas circunstâncias. É que não é fácil filmar a mãe de frente.Sobretudo quando entre a mãe e o autor vai toda adistância que resulta de haver cinema — esse prodígio de sepoder manipular, fílmica ou politicamente, uma realidadeque para a camponesa Elvira Marques só pode ser pura einviolável como o leite e o pão. Eis o que explica talvez areticência atrás apontada ao cineasta neste filme queforçosamente teria de ser de delicadeza, ternura e pudor.

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Veredasde João César Monteiroestreado em Lisboa, a 19 de Maio de 1978

Curioso, bem curioso, o itinerário estético de JoãoCésar Monteiro. Parte de obras deliberadamente marginais,fragmentos de filmes (im)possíveis, onde toda umaincomodidade de viver e dizer se inscreve com extremaviolência, e acaba por chegar a filmes de uma beleza plácidae complacente, vocacionadas para congregarem à sua voltaa quase unanimidade de juízos positivos. Como se operaesta viragem? Na primeira parte da sua obra, quepoderemos provisoriamente encerrar com Que farei eucom esta espada? (1975), João César Monteiro move-sesobretudo no campo dos seus próprios defeitos, e é aí,nesse corpo-a-corpo com a expressão e o cinema, quepodemos talvez vislumbrar o que há de mais interessantena trajectória deste autor. A segunda parte, iniciada comVeredas e prosseguida com Silvestre, dá-nos filmes ondeo cineasta, com uma enorme bagagem de legitimaçõesculturais, rentabiliza as suas virtudes no campo, da artee proporciona-nos obras que, em parte pela força dasinstâncias em que se escoram, suscitam o típicoembevecimento das visitas papais: perante elas, gregose troianos caem de joelhos. O que não admira: João CésarMonteiro, talvez influenciado pelo convívio com Carlosde Oliveira, referência marcante na sua fase mais recente,joga no prestígio inabalável da cultura dita popular, e,por outro lado, mobilizando alusões e mimetismosculturais (textos, quadros reproduzidos, homenagensfílmicas, etc.), surge-nos com as sólidas garantias dasartes mais requintadas.

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Veredas é isso mesmo: transposição para o cinema dahistória da Branca-Flor, entrecortada com sequências emque se mostra o povo português ora a trabalhar ora adançar, havendo ainda uma cena retirada a um texto deÉsquilo e em parte colocada na boca de camponesasrecitando palavras que lhes são estranhas (sequência queé paradigmática de uma certa posição do autor em relaçãoà realidade filmada), e um curioso episódio progressista,de recorte simbólico, que se poderia intitular «cenas daluta de classes em Portugal». Nos termos da sua própriacoerência (sempre frágil no trabalho de César Monteiro),o filme vai-se descompondo pouco a pouco. Sustem-noum texto que em cinema resulta farfalhudo de literatura,provavelmente belo para ser lido e seguido na teia dassuas metáforas, mas insuportável para ser ouvido (aliás,nem sempre se ouve bem, funcionando sobretudo comoum halo de neblina verbal acompanhando as imagens).

Curiosamente, e talvez à revelia das intenções maisfirmes do autor, este cinema aparece envolvido numasintomática operação ideológica: de certo modo, faz o neo-realismo possível em tempos em que o neo-realismo sevai tornando impossível (como demonstra Cerromaior).Vocacionada para descobrir uma espécie de essência do povoportuguês, concebida numa apertada rede de lendas, mitose símbolos (no caso de Silvestre, por exemplo, o filme oscilaentre o máximo de ser português e o máximo de seruniversal, no cumprimento do preceito que diz que«quanto mais regional, mais universal»), esta estética deJoão César Monteiro colhe as vantagens de celebrar o povoem termos estético-míticos e conseguir ser progressistaescamoteando inteiramente qualquer abordagem em termospolíticos da realidade (nesse aspecto, Silvestre vai mais longe

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no trabalho de sublimação). Estamos assim perante umproduto deliberadamente idealista, voltado para oinconsciente colectivo (através de um esbatimento do sexualque os banhos de adolescentes no rio e o par de Veredascorporizam de modo muito sintomático) e para aintemporalidade — e que, no entanto, consegue conciliaro enlevo e a exaltação da crítica ideologicamente situadamais à esquerda.

Em termos de trabalho artístico, o actual cinema deJoão César Monteiro é feito para suscitar no espectador oarrepio da beleza. Evocando as emoções do fotógrafoamador, João César Monteiro fala no «lacrimejar decontentamento a olhar para o passarinho do real». Emcerta medida, é isto mesmo. A lógica da construção deVeredas enquanto obra de cinema é fundamentalmenteuma lógica do decorativo donde se retira qualquer emoçãoque possa transbordar para o lado de um real que nãoseja o do previsto passarinho que o autor se propõe filmar.

Curioso, muito curioso, este percurso de um autor quepassa do abjeccionismo mais chocante para umasublimação patriótica de fadas e encantos. Contudo, édifícil não ler a segunda fase desta obra como uma denegaçãoda primeira. É possível que o cineasta, entalado naviolência desta contradição, nos acabe por dar um outrocinema com maior força e autenticidade.

A Confederaçãode Luís Galvão Tellesestreado em Lisboa, a 15 de Setembro de 1978

Neste filme surge em termos de ficção o núcleo imagináriode 25 de Abril, situado não apenas como realidadehistórica, aqui consideravelmente distorcida, mas

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sobretudo como fantasma do que vivemos e de que nosfomos alimentando. Ver A Confederação começa por ser apossibilidade de recuperar com uma assinalável frescuraum 25 de Abril que é já para nós algo de imensamentedistante, e de terrivelmente vivo.

A Confederação começou por ser um filme de ficçãocientífica, ou, por outras palavras, uma obra que nos situanuma sociedade do futuro, partindo de um entendimentodo futuro como algo que irá prolongar as linhas deprogresso científico de que o nosso presente se tece.Simplesmente, os autores trocam-nos as voltas de duasmaneiras: esta ficção está minada de documentos históricos,este futuro é construção com imagens do passado. Nãopodemos dizer que o filme é um filme sobre o 25 de Abril,porque ele se situa muito depois disso. Não podemos dizerque é um filme sobre Portugal, porque ele oscila entre aescala mundial e a dimensão local.

Tais vacilações (entre o documento e a ficção, opassado e o futuro, o mundial e o local) perturbam acompreensão do filme se lhe quisermos atribuir umestatuto excessivamente definido. Poderemos dizer que,pelo contrário, é nessa indefinição, é nessa constantemutabilidade de perspectivas, é nessa desarrumaçãointerior, que reside a irreverência de uma obra que temcomo principal característica o poder situar-se ao nível deum olhar infantil: no «Abril das crianças», de criançascontinuamente presentes pelo desenho, a cantilena, ahistória aos quadrinhos, e a própria ingenuidade de umAbril que se queria tão puro e tão linear que apenas ascrianças poderiam traçar as linhas dessa flor.

No balanceamento destas categorias em que se moveA Confederação, haveria a acrescentar o vai-vem entre uma

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lucidez crepuscular e desencatada e o deslumbramentode quem ainda supõe que estamos no princípio detodas as coisas.

Seria errado tentarmos avaliar A Confederação entendidacomo uma tentativa de análise da realidade históricaportuguesa. Dessa perspectiva, tornar-se-ia relativamentefácil enumerar inexactidões ou explicações esquemáticasmais ou menos forçadas. Digamos mesmo que um dosmaiores méritos do filme é provavelmente o de conseguirobter a simpatia dos seus espectadores para além daconvergência ou da divergência sobre os pressupostosideológicos mais salientes da obra.

Poderemos antes observar que A Confederação seapresenta como o produto de uma certa confusão. É naturalque o espectador se interrogue aqui ou ali sobre a coerênciaou a consistência das linhas políticas que se vão delineando.E poderá mesmo concluir (talvez com razões que A Vidaé bela!… veio confirmar) que os seus autores não sabemao certo onde querem chegar. Há, no entanto, duas coisasa fazer notar: em primeiro lugar, em tempos de verdadesdemasiado estabelecidas e convictas, não deixa de sersaudável encontrarmos uma obra que se assunte como oresultado nebuloso de uma certa efervescência ideológica;em segundo lugar, dificilmente entenderemos a construçãodo filme se não nos dermos conta de que ela funcionasegundo um mecanismo de distanciamento entre a consciênciaideológica dos autores e a prática material do filme; ou, por outraspalavras, é preciso vermos que esta obra se vai produzindopelo confronto, digamos que «dialéctico», entre váriostipos de discurso e diversas modalidades de expressão,que se contrapõem numa lógica mais ou menos calculada.E que pretende esta lógica? Pretende que a significação

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do filme vá emergindo, não a partir deste ou daquelediscurso em particular, nem sequer da sua soma, mas dosefeitos de contradição que resultam da sua articulação narrativa.

Mas há, lá isso há, uma espécie de luminosidade centralda obra. Ela deriva de uma ideia muito simples, que insisteincansavelmente, se repete, se obstina. A ideia é esta: asociedade evolui para uma situação totalitária onde todas as diferençassão indiferentes sob o signo da militarização. É certo que estasituação totalitária nos surge envolta num vocabuláriointransigentemente democrático e mesmo revolucionário.É verdade que ela se propõe como uma nova ordemlibertadora em oposição a tempos de repressão e deobscurantismo. Contudo, trata-se inequivocamente deuma situação totalitária, porque são os próprios temas dademocracia, do progresso, da liberdade e daresponsabilidade que ocupam totalitariamente o quotidiano decada cidadão. O que A Confederação pode ter de inquietanteé aquele sentimento de pavor que se desprende do quererinabalável de qualquer utopia, seja ela a expressão extremada ideia de revolução. Os Estados da Confederaçãoconseguiram criar um espaço de homogeneidade totalonde tudo se vem vincular à instância do Um — o Umunificante da Confederação. Sul ou Norte, Washingtonou Moscovo, tudo se equivale. Por outras palavras, todasas diferenças são simulacros de diferença produzidos peloMesmo de uma indiferença generalizada. É aí que o fascismocomo apagamento de todas as diferenças se desenha enquantohorizonte de quaisquer variações possíveis.

O modo repressivo de a Confederação deriva de elavir tomar o lugar, como em qualquer relação amorosa, doideal do eu, isto é, dessa instância que, herdada do narcisismoprimitivo, vem exercer uma função de prova da realidade

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e de medida de todas as coisas. É quando se esbate a oposiçãoconflitual entre o eu e o ideal do eu que se instala aquelaeuforia narcísica com que se apresentam as figurasemblemáticas da Confederação. É quando o conflito entreas duas instâncias estala que se abre uma situação deneurose — aquela em que vamos encontrar os amantesque surgem como protagonistas desta obra.

Parafraseando Freud, podemos dizer que aConfederação é uma comunidade de indivíduos quesubstituiram o seu ideal do eu pelo mesmo objecto (aideia da Confederação), o que tem por efeito aidentificação dos seus eus.

Freud observa que, em formações colectivas como aIgreja ou as Forças Armadas, não há lugar para o amor sexual.E ainda que nas multidões, compostas por homens emulheres, não há, no entanto, lugar para as diferençassexuais. Significa isto que se trata de uma líbidohomossexual? Embora a homossexualidade seja emprincípio mais compatível com os imperativos dacolectividade, o que mais adequadamente se pode dizer éque não há nem uma líbido homossexual, nem uma líbidoheterossexual, na medida em que a multidão (ou qualquerformação colectiva) não é diferenciada segundo o sexo.Diremos que são agrupamentos dominados pelaIndiferença sexual. Ou ainda: a forma de amor dototalitarismo é a instituição de uma sociedade dominadapela Indiferença sexual. E por isso a revolta, como o filmedocumenta, é a inscrição da Diferença sexual (outra forma deamor) como elemento detonador da subversão social.

A Santa Aliançade Eduardo Geadaestreado em Lisboa, a 20 de Novembro de 1980

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Eduardo Geada pertence a uma geração crítica comacentuada sensibilidade teórica, marcada pela conjugação,que por vezes ganhou foros de fórmula mágica, de Marxcom Freud. Do primeiro viria uma preocupação com amaterialidade do cinema (o cinema não reproduz o real,mas produz uma realidade, e deve reflectir no seu trabalhoas suas condições de produção); do segundo vêm as maisfrequentes referências à problemática do desejo. É nestaconjuntura, que por vezes não se esquiva ao estereótipo,que o trabalho de Geada enquanto cineasta virá a surgir.Digamos sem rodeios que parece haver uma desproporçãoentre o modo como Geada pensa rigorosamente osproblemas do cinema e as várias tentativas que fez para opôr em prática. Temos assim que a apregoada referênciamaterialista redunda em certos casos em mera propagandapartidária (A Santa Aliança é testemunho disso), e que assubtilezas do desejo se acabam por estabelecer em intrigasque não ultrapassam o plano de um Chabrol. Os leitoresatentos dos textos de Geada ficam, portanto, um poucodesiludidos com os resultados. Em 1973, Geada realizouSofia e a Educação Sexual, em 75 fez O funeral do patrão, em76 A Santa Aliança, e em 80 um filme de 40 minutos,interpretado por Lia Gama, e que constitui, talvez, o seumelhor trabalho até hoje: Mariana Alcoforado.

A Santa Aliança é um curioso documento sobre aefervescência ideológica dos anos posteriores ao 25 deAbril, mas o sectarismo que atravessa todo o filme, aingenuidade dos diálogos, o simplismo político de todasas alusões, tornam a obra insuportavelmente datada. É certoque Geada tomou algumas precauções. De certa maneira,todo o filme aparece entre aspas — isto é, entre cortinasque se abrem e fecham, assinalando a teatralidade da

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realidade mostrada em cena. E há mesmo uma sequênciaem que um dos intérpretes nos lê um texto de RaulBrandão, onde se diz que «eu sou um actor de mimmesmo» e se conclui que «está tudo catalogado, a vida éum simulacro». Terá sido a tal lógica da materialidade quesugeriu aqui o recurso a uma metáfora do teatro para pôr emcena o jogo das consciências determinadas pelas infraestruturas oua teia dos discursos determinados pelos aparelhos ideológicos.Simplesmente, isso é insuficiente para dar um mínimo dedistanciamento em relação a uma intriga representadasempre no registo naturalista mais puro, e onde os sinaisda pressão ideológica do autor (a começar pelo próprio título,algo absurdo em relação à matéria proposta, masfuncionando sobretudo como uma grandiloquentehomenagem a Marx/Engels) são demasiado evidentes.Pode ser que tudo aquilo seja um teatro, mas não há nofilme nenhum lugar teórico que permita constituir um ponto deexterioridade relativo a esse teatro. Donde, estamoscondenados a estar lá dentro — o que, com tudo o que porlá se pensa, diz e faz, nem sempre é agradável, e chega aser comprometedor.

Por outro lado, se o enredo nos implica em históriasmais ou menos escabrosas que remetem para a talproblemática do desejo atrás indicado, acontece que aquieste desejo é sobretudo relegado para o plano dacorrupção social, e carregado com uma conotação negativada qual a fascinação pelo sangue (insistente no autor) é osinal mais óbvio.

A Fugade Luís Filipe Rocha

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A seguir ao 25 de Abril, andou-se à procura de fórmulasque permitissem inserir o material da luta anti-fascista emmoldes televisivos ou fílmicos capazes de suscitarem aatenção do grande público. Foi na lembrança dos váriosfilmes que todos nós já vimos sobre grandes fugasespectaculares de famosas prisões que surgiu a ideia deque também os lutadores anti-fascistas se tinham escapadodas prisões de Salazar, e que haveria nessas fugas osmesmos ingredientes de aventura que nas outras a que oespectador se havia habituado. Deste projecto relativo àsgrandes fugas coube a Luís Filipe Rocha o trabalho sobrefactos reais que dizem ser respeitantes ao militantecomunista Dias Lourenço. O filme de Luís Filipe Rochafoi o único que deste empreendimento chegou a serconcluído. Curiosamente, é uma obra que, em todos osaspectos, se afasta do espírito do projecto. E reside aí o seuprincipal mérito.

Na perspectiva de Luís Rocha, mais do que mostrar ofascismo como violência desenfreada, e a fuga de umaprisão como aventura empolgante, interessava revelar oquotidiano de uma prisão fascista como implacávelengrenagem de destruição em câmara lenta de umapersonalidade.

Daí que o modelo várias vezes apontado para este filmeseja o do Bresson de Un condamné à mort s’est échappé. Afuga propriamente dita, aliás simples, discreta,despretensiosa, baça, só começa na última meia hora dafita. Até lá, são imagens do forte de Peniche, dos seuschefes e guardas, do regulamento e do seu modo deaplicação, das pequenas transgressões e das pequenaspunições — tudo filmado numa espécie de intransigentelimpeza da imagem: uso do preto e branco, é claro,

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acentuação das formas geométricas, jogo muito cuidadosodos volumes, da relação luz/sombra, recusa da psicologia(as personagens são sobretudo emblemáticas das váriasposições face à prisão e à luta política, incluindo a domilitante fatigado, José Viana como actor, a quem «até araiva vai faltando»), descrição monótona dos actosregulares da vida na prisão, etc… Quer dizer que o públicosente esta prisão como insuportável vazio — precisamentecomo ausência dessa aventura que o projecto inicialpressupunha. O que impressiona no trabalho de LuísFilipe Rocha é o modo como este apuro estilísticocorresponde a uma clara atitude ético/política face ao usodo cinema.

Contudo, o filme nem sempre consegue manter esseequilíbrio. Há momentos em que a retórica militante (quepoderá existir na realidade, mas que é sempre uma ficçãosobre essa realidade) se torna demasiado óbvia ou adquireuma dimensão excessivamente didáctica. A cena notribunal tem por objectivo mostrar como os juízescumpriam as decisões da PIDE e qual o papel que asmedidas de segurança (teorizadas por Marcelo Caetano)têm no sistema repressivo. Mas, para além destepropósito, a cena não chega a ter consistência. O mesmose poderá dizer quanto à fragilidade da sequência da visita(na qual Maria do Céu Guerra dá uma réplica poucoconvincente). Mas o ponto extremo desta retóricaencontra-se nas imagens em pré-genérico (o prisioneirocurvado, de mãos atadas atrás das costas, ergue-se paraa luz e caminha para o mar — símbolo da liberdade) esobretudo na música de Wagner aqui aplicada comofactor de empolamento humanista.

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A Fuga é uma obra interessante, embora, em muitosaspectos, limitada (por motivos orçamentais e ideológicos)e datada. Trata-se, será talvez curioso sublinhá-lo, de umadessas obras políticas em que a política está sempre ausente —ela é um pano de fundo inquestionável sobre a qual se vêmtraçar os gestos heróicos. Porque qualquer questão abrefendas irremediáveis numa solidariedade que é a únicaforma de suportar a dureza da luta. Mas é esse aro de questõesomitidas que defende o militante de si mesmo, que aomesmo tempo faz dele um homem que no íntimo do seuíntimo está sempre demasiado só. Admirável foi a ideia deLuís Rocha ao colocar, entre as leituras do preso, unsversos de Pessoa/Caeiro: «Haver injustiça é como havermorte. / Eu nunca daria um passo para alterar / Aquilo aque chamam a injustiça do mundo. / Mil passos que dessepara isso / Era só mil passos. / Aceito a injustiça comoaceito uma pedra não ser redonda, / E um sobreiro nãoter nascido pinheiro ou carvalho. // Cortei a laranja emduas, e as duas partes não podiam ficar iguais. / Para qualfui injusto — eu, que as vou comer a ambas?». Porqueestes versos fazem mais sentido — e contradição — emcontraponto com a frase inicial do militante político: «overdadeiro revolucionário é o que vence o último dosmedos: o da morte». Mas o diálogo, ou confronto, entreestes dois textos é qualquer coisa que não está no filme.

Nem pássaro nem peixede Solveig Nordlund

O primeiro aspecto interessante deste belíssimo filmede Solveig Nordlund — o mais elaborado, complexo epessoal de todos aqueles que a autora realizou entre nós

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— é, sem dúvida, a articulação entre a deterioração lenta,e, por assim dizer, desesperantemente resignada de umcasal (ela, Lia Gama, traduz romances, ele, Luís MiguelCintra, é locutor da televisão), e uma situação de asfixiageneralizada, que resulta de uma perda de equilíbrioecológico. É aqui que o título começa a ter o seu efeitodisseminador: porque o «nem pássaro nem peixe» é oportuguês «nem carne nem peixe» com que se classificauma situação neutra, amolecida, indecisa, morna edesencantada — essa precisamente em que se encontramos protagonistas desta história; mas também porque oreferido desequilíbrio ecológico impede que quem querque seja encontre o lugar adequado para viver — e a um taldesastre não escapam nem o pássaro, a quem o ar falta,nem o peixe, que morre pela boca.

O que é particularmente interessante é o modo comoSolveig Nordlund vai distribuindo os elementos destefilme. Todos eles têm um fundamento referencial, maspropõem-se-nos numa aparente dispersão, segundo umalógica combinatória que só emerge a um nível que quasediríamos poemático: é a recorrência de determinados motivos(motivos de pássaros, motivos de peixe, de novo o efeitodisseminador metafórico do título) que vai tecendo atrama, muito subtil, desta obra. Nem pássaro nem peixedesenvolve-se predominantemente em função de umaoposição entre as «coisas tangíveis» e as «regiões etéreas»,condensada no texto inicial que ela (Lia Gama) traduz,todo ele voltado para as «cidades do além-espaço», e nafigura de Randolph Carter (Robert Kramer), que, no final,chega ao aeroporto de Lisboa e se dissolve, à maneira dasbrancas ficções científicas do nosso tempo (cf. Spielberg),na luz. Mas um tal dispositivo simbólico vem valorizar as

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máquinas capazes de captarem o etéreo: de um lado, o radar e oestetoscópio (cena do médico), mecanismos cegos a quemescapa o mais subtil; do outro, a televisão (filme onde seouve dizer «podíamos ter sido um casal maravilhoso») oua máquina de escrever, aparelhos que parecem deter, porvezes, «a chave do portão dos sonhos», pela sua capacidadede confundirem, numa única soma de imagens ou grafias,os factos reais e os sonhos interiores. Como o filme.

Motivo do peixe, por um lado. Algumas frasessignificativas: «sinto-me como peixe fora de água» ou «pelaboca morre o peixe». Uma definição do peixe: aderência elibertação. O que seria um modelo de saber estar ou atravessara vida. Mas há, nas paragens interiores do filme, umaquário que se quebra e um peixe que morre. E há também,numa admirável figuração do desespero, a cena silenciosa(pela boca morre) do casal que se abraça sob o chuveiro.

Pela boca, diz-se, e isso nos remete para o tema darespiração. «Nesta casa não se respira», grita ela, nummomento de raiva. E a imagem disso surge-nos, com umanitidez terrível, na criança que sofre de asma, e todas asnoites da sua boca sai uma insuportável pieira. E tambémele, Luís Miguel Cintra, vai ao médico porque sente ocorpo a desajustar-se como se tivesse falta de ar. É aindana mesma linha de sentido que nos surgem os planos emque se explica o uso das máscaras de oxigénio durante asviagens de avião ou o insólito destino de um papagaioque deveria ser a memória da casa mas deixou de abrir aboca até morrer.

Tema da memória: há um passado, uma sabedoria dosencantamentos e mistérios, que garante a abertura para osonho. É na medida em que se perdeu a chave desse passadoque as pessoas se foram acorrentando às coisas tangíveis.

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Daí o significado da insistência nas imagens de velha casadestruída, nas imagens de uma escada que sobe para umquarto desconhecido (enredos antigos do fantástico: a salafechada, a chave perdida) e, sobretudo, o facto de o quadrode um amigo poder reproduzir a figura de memória quenos obceca (o inconsciente é partilhável, abre para oespaço da cumplicidade e da comunicação). O que fazcontraponto com o tema do isolamento: «de um momentopara o outro ficámos assim separados.»

Daqui um outro tema: o das mãos que se dão, o dasmãos que se apertam, o das chaves que se trocam entre asmãos. Quando a criança brinca, ela recorta figurinhas depapel que são bonecos de mãos dadas. E a lição surge: «muitocuidado agora para não se partirem». Que as imagensseguintes sejam as de manifestações de rua (mãos dadas),de que sempre os protagonistas ficam à margem, issopoderá situar politicamente este filme. Porque ele é umdiscurso que se faz sempre na iminência da ruptura (de ummomento para o outro): e talvez por isso a fala de umamigo (Osório Mateus) que enumera as virtudes dessemundo de harmonia que será a sociedade comunista écortada pela queda de um criado do restaurante que acabapor partir o prato que levava.

Todo este filme fisicamente intolerável parececonstruído na expectativa de que o impossível aconteça. Daí aatenção dada pela sucessão das imagens «a certoscambiantes do espaço e do tempo» que são como queesquinas de um inevitável maravilhoso: ruídos de aviões, planosde luzes de janelas que acordam de noite, rostosembaciados no interior de automóveis, carrosabandonados nas avenidas, a cara da criança que seesborracha contra o vidro na exigência de uma realidade

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off. A arte de Solveig Nordlund consiste fundamentalmenteem produzir esta transbordância do visível sem nuncaabandonar os limites de uma asfixiante visibilidade:exigência de um peixe, exigência de um pássaro (mágico,primitivo, clandestino) no próprio vazio pastoso eindolente da realidade em que vivemos.

Curiosamente, o filme que Solveig Nordlund realizoumais tarde em Portugal ainda toca nos mesmos temas,mas pelo lado oposto: Dina e Django é uma história emque se captam os efeitos de imaginários congelados (acima detudo, os grandes motivos das foto-novelas) sobre doisadolescentes que, ficando à margem das transformaçõeshistóricas do 25 de Abril, são conduzidos para umaaventura sem saída. É ainda o peso da imagem sobre o quotidiano,mas aqui o da imagem fechada, alienante no sentido maisfundo do termo. O projecto de Solveig falha porque aenvolvente fluidez da sua obra anterior se perde porcompleto para ficarmos perante um enredo de conotaçõesmuito óbvias onde as soluções narrativas, emboradecalcadas do real, são quase sempre pouco convincentes.

1978

Principais filmes: Histórias selvagens de António CamposMúsica para si de Solveig NordlundO rei das Berlengas de Artur SemedoO Construtor de Anjos de Luís Noronhada Costa

Amor de perdiçãode Manoel de Oliveira

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Que é um clássico? No dizer de Hans-Georg Cadamer,«a obra que consideramos ‘clássica’ não tem necessidadepara ‘ser entendida de fazer superar a distância histórica,porque ela própria exerce constantemente a mediação pelaqual esta distância é superada». Esta perspectiva, que sepoderá filiar em Hegel, leva a considerar a obra clássicacomo aquela que é em si mesma a sua própriainterpretação. Na análise crítica de uma tal concepção,Hans Robert Jauss faz notar que, para Gadamer, a obraclássica prescinde da dialéctica pergunta-resposta atravésda qual as obras «normais» vivem. Neste caso, parecetornar-se dispensável o papel produtivo da recepção. Por issomesmo, o texto clássico limita-se muitas vezes a serreconhecido e deixa de produzir efeitos no leitor.

No caso de Amor de perdição de Camilo Castelo Branco,estamos perante o clássico dos clássicos da tradição romanescaportuguesa, isto é, estamos perante uma obra que a escolajá catalogou e analisou definitivamente. Contudo, essa obra«vive» ainda, nos estratos sociais menos culturalmentepreparados, como um poderoso factor de mobilizaçãodo imaginário (veja-se José Tengarrinha, A novela e o leitorportuguês, Prelo, 1973). Ao trazer para o cinema o famosotexto de Camilo, Manoel de Oliveira pretendeu neutralizara neutralização que a escola sobre ele tinha operado e reactivara força do imaginário nele contida em termos que ultrapassemos limites da ilusão referencial inerente à recepção quasepragmática dos leitores menos escolarizados. Por outraspalavras, se entendermos o projecto global da obra deManoel de Oliveira como uma rejeição da zona média daexistência, poderemos interpretar o seu trabalho sobre Amorde Perdição como uma tentativa para eliminar a zona média derecepção de uma obra clássica.

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Não é possível analisar pormenorizadamente esteverdadeiro monumento do cinema português. Lembremosentão um pouco da sua história no que ela possa ter deinstrutivo para a análise crítica. Por contingências dascondições de produção, Amor de Perdição passouinicialmente na televisão portuguesa dividido emepisódios. Suscitou nessa altura em quase todos osespectadores um enorme repúdio. Criou-se à sua voltaum halo de catástrofe. Tal unanimidade não deixava deimpressionar, embora fosse, como todas as unanimidades,algo suspeita.

Depois da estreia do filme em vários paísesestrangeiros, com um entusiástico acolhimento da críticainternacional, o filme regressa a Portugal e é estreado emLisboa. Hoje, pode ser amado ou detestado, mas éreconhecido por todos como uma obra fundamental notrabalho de Manoel de Oliveira, e no conjunto do cinemaportuguês. Seria talvez errado pensarmos que se trataapenas de um efeito de terrorismo provocado pela críticaestrangeira sobre críticos e espectadores portugueses. Taisaspectos não são para negligenciar, mas não constituemprovavelmente a chave do problema. O essencial poderáresidir noutro aspecto: é que, se o filme de Manoel deOliveira foi um fracasso na sua inicial projecção televisiva,isso deve-se fundamentalmente ao facto de se tratar deuma obra que se coloca no pólo oposto aos princípios estéticosdominantes na televisão. Tal propósito do autor é levado tãolonge, com tanta audácia e coerência, que constituicertamente o principal motivo de espanto edeslumbramento dos espectadores estrangeiros peranteesta obra. O cuidado que Manoel de Oliveira teve em pôrem cena, não o esquema narrativo do livro de Camilo,

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mas o próprio texto de Camilo, o modo como o filmemultiplica protocolos e cautelas de forma a paralisar noespectador qualquer movimento de identificaçãopsicológica ou de implicação na trama ficcional, levaram,no entanto, alguns a supor que estávamos perante umailustração por quadros que ficava aquém do que se postulaser a essência do cinema. Já seria absurdo em nome deuma injustificável ideia da essência do cinema pôr em causaas virtualidades de uma obra. Mas o erro profundo deuma tal concepção revela-se sobretudo na cegueira queprovoca sobre as inúmeras soluções fílmicas que Manoel deOliveira vai encontrando em Amor de Perdição. A análiseda obra sequência por sequência poderia mostrar como cadasequência parece ter surgido para o realizador como umproblema a resolver e como há sempre soluções novas eimpressionantemente eficazes ao longo das quatro horasde cinema que esta película dura.

Consideremos apenas dois aspectos. Em primeirolugar, a questão do ponto de vista. O cinema de Manoel deOliveira é um cinema que interdita o pendor compreensivocom que cada ser humano tende a aproximar-se do outro.Daí o que nele nos possa surgir como inumano: é umcinema do intratável, e não do afável. A razão é simples:para Oliveira, o afável é um logro, porque constitui umasolução de facilidade através da qual os homens seaconchegam sem nunca se forçarem a ir além de simesmos. Mas este postulado ético/estético institui, emtermos de linguagem, um mecanismo constante de não-identificação: as personagens falam-se numa espécie delateralidade, e as cenas são filmadas de pontos de vistaimpossíveis. Daí que se possa perguntar, com João Bénardda Costa: «quem conta a Francisca? As cartas? Camilo?

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Agustina? E quem conta os planos duas vezes repetidos?Qual é o lugar da câmara? O ponto de vista do realizador?Haverá isso nos filmes de Oliveira?». E, em relação a Amorde Perdição, Bénard da Costa irá falar num coral de vozes queabrem o filme (diremos nós) no sentido de umasubjectividade anónima e intotalizável. É possível lembrar aquios planos que correspondem aos pontos de vista dos retratosdas pessoas mortas (como sucede em Benilde ou Francisca),ou evocar, como faz João Lopes, num breve mas notáveltexto (incluído no volume que a Cinemateca dedicou aManoel de Oliveira), a cena do Aniki-Bobó, em que, quandoas crianças olham para a boneca na montra, o clássicojogo de campo e contracampo é substituído por um planosubjectivo da boneca. Podemos assim dizer, com João Lopes,que o cinema de Manoel de Oliveira institui «olhares deninguém e de coisa nenhuma, olhares a partir de um lugarmorto». O que significa que há que distinguir entre aperspectiva neutra, dita objectiva, em que grande parte docinema é feito, e a perspectiva de um olhar feito de ausência,lugar do Outro inacessível e inevitável, em que o cinemade Oliveira se coloca. A câmara de Oliveira é uma cegueiraque vê, para utilizarmos as palavras de Aragon: «Je suis cemalheureux comparable aux miroirs/ Qui peuventréfléchir mais ne peuvent pas voir/ Comme eux mon oeilest vide et comme eux habité/ De l’absence de toi qui faitsa cécité.» É por isso que podemos dizer, como faz Lacan(que comenta estes versos de Aragon), que o mundo é«omnivoyeur» — e que o cinema de Oliveira é a expressãoadmirável desta «omnivoyance».

Este Outro que a realização impõe na sucessão dospontos de vista é a terceira instância que se interpõe entre oeu e o tu, e institui a barreira que faz de cada verdadeiro

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amor um amor impossível. Eis o segundo aspecto a assinalar.O amor em Manoel de Oliveira existe na medida dadistância que separa os amantes. Daí que, em Amor dePerdição, Teresa e Simão só fugazmente se aproximem.Toda a história se desenvolve em torno de uma espantosaobstinação que é a inexistência deste amor enquanto relação. Etodas as falas de Teresa e Simão partem da evidência deuma impossibilidade. Enquanto as circunstânciastornariam verosímil que Teresa e Simão se viessem a unir,o que nós vemos é cada um deles desenvolver iniciativasque visam impossibilitar essa união. Por outro lado, cadaum dos amantes vai-se imaterializando, isto é, o trabalhodo amor parece consistir fundamentalmente na recusadeste mundo, na medida em que «há um segredo que sóno sepulcro se sabe: ver-nos-emos?» O amor é aaproximação, a dois, desse segredo.

1979

Principais filmes: Crónica de Emigrados de Manuel MadeiraCastro Laboreiro de Ricardo CostaLisboa de Fernando Lopes e AugustoCabritaMaria de João Mário GriloPitões — Aldeia do Barroso de RicardoCostaSanto Antero de Dórdio GuimarãesO príncipe com orelhas de burro de Antóniode MacedoVelhos são os trapos de Monique Rutler

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1980

Principais filmes: Acto dos Feitos da Guiné de FernandoMatos e SilvaBárbara de Alfredo TropaVerde por fora, vermelho por dentro de RicardoCostaManhã Submersa de Lauro AntónioKilas, o mau da fita de José Fonseca e CostaCerromaior de Luís Filipe RochaA culpa de António Victorino de AlmeidaOxalá! de António-Pedro VasconcelosBom Povo Português de Rui SimõesPassagem ou a meio caminho de Jorge SilvaMeloMariana Alcoforado de Eduardo Geada.

Kilas, o mau da fitade José Fonseca e Costaestreado em Lisboa, a 27 de Fevereiro de 1981

O ano de 1981 foi particularmente favorável para ocinema português: contribuiu para tal o êxito noestrangeiro do filme Francisca de Manoel de Oliveira e osucesso de público, e, em parte da crítica, de Kilas, o mauda fita. A conjugação destes dois acontecimentos provocouum sentimento de maré alta para a produção nacional. Masuma tal maré continha a sua dose de equívoco: porque osdois filmes regulam-se segundo lógicas inteiramente diferentes.O Kilas inscreve-se na memória dos tempos dourados dacomédia portuguesa, com protagonistas recortadoscerteiramente na fauna típica de certos bairros ou estratos

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lisboetas, com intérpretes já promovidos pela popularidadeno campo do teatro, tudo combinado segundo um modeloestético que se sustenta fundamentalmente nos efeitos dereconhecimento em que o público é envolvido: «é mesmoassim», diz-se, e o filme propunha-se mesmo ir mais longee forçar-nos a um «somos mesmo assim», na medida emque nos colocava no cerne de uma aventura de meia tijela emque facilmente descortinamos o estatuto de mediocridade aque nos julgamos condenados depois do desemprego emque ficámos com a descoberta das Índias (nessa medida,o filme é o corolário lógico de Os demónios de Alcácer-Kibir,é o «isto a que estamos reduzidos» depois da queda doImpério). Quanto a Francisca, trata-se de uma obra que, acada passo, violenta o espectador no sentido de um não-reconhecimento primeiro (que pode ser decisivo e catastróficono caso do espectador apressado, que pode ser ummomento de imprescindível ascese no caso do espectadorapaixonável). De qualquer modo, entre os dois filmesexiste o abismo de duas lógicas, não apenas estéticas, masde políticas de cinema. É certo que uma política ideal visaria asua conciliação. Resta saber se, nas nossas circunstânciasde penúria, tal solução é exequível. Lembremos apenasque A vida é bela…?!, lançado na lógica do Kilas, perdeupor completo o sentido do equilíbrio e da composturaque são, de facto, a grande lição do Kilas, e queprovavelmente A ilha dos amores de Paulo Rocha, na lógicamuito óbvia de Francisca (embora os dois filmes sejaminteiramente diferentes), poderá ter um acolhimento muitoreservado junto de um público que não sinta as pressõesinternacionais que hoje funcionam, com indiscutíveleficácia, em relação a Oliveira.

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Kilas vem de killer, é uma corruptela, designa aqui não«o mau da fita», mas «os maus de todas as fitas» que Kilasviu. Significa isto que nos aproximamos de uma realidadejá codificada por uma memória cinéfila. Isto situa-se nosum pouco no registo do filme: as personagens existemsob pseudónimo, as imagens também, tudo o que se vê éum já-visto, e é precisamente na justeza da coincidênciaentre o visto e o já-visto que o filme se joga inteiramente.Digamos sem rodeios que, no âmbito deste propósito,joga e ganha. É um propósito limitado, certamente menosambicioso do que os anteriores filmes de Fonseca e Costa.Que faz depender tudo do rigor e da habilidade daexecução. E aqui os trunfos são vários.

Em primeiro lugar, a história (mesmo se considerarmosdiscutível o desvio político para a questão das bombas —referência a uma actualidade que poderá aparecer comoalgo forçada em relação aos intuitos globais da obra) é oque se pode dizer uma história bem carpinteirada. Emsegundo lugar, e este aspecto é importantíssimo no quadrode um cinema português com textos quase sempreliterários, no mau sentido, e pouco convincentes, o filmetem excelentes diálogos, cheios de invenção, de humor,de agilidade estilística, de funcionalidade dramática. Emterceiro lugar, Fonseca e Costa sabe contar, sabereconstituir ambientes e sabe sobretudo dar o toque musicaldesses ambientes. O Kilas vive muito dessa musicalidade,que não é apenas a da música (excelente) de um SérgioGodinho, mas a da musicalidade da montagem: veja-se, porexemplo, a sequência inicial/final da Casa do Alentejo parasentirmos como a imagem entra e sai, se recorta e corta,segundo um ritmo que é imposto por uma música quaseinvisível na sua presença luminosa. E chegamos aqui a

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outro ponto do filme que é também uma pedra positivanesta contabilidade: a da luz. Todo o filme de Fonseca eCosta é esplendidamente iluminado. E, tal como podemosdizer que esta luz se não vê, mas dá a ver, também a músicado filme muitas vezes se não ouve, mas dá a ver, organizasilenciosamente a distribuição do visível.

Kilas, o mau da fita foi um trabalho recebido com certafrieza por alguma crítica e com entusiasmo por grandeparte do público. Isso terá conduzido a polémicasexcessivamente empoladas, com efeito promocionalindiscutível, mas distorcendo os dados essenciais dosproblemas. Não se trata de opor este cinema ao outro cinema,aquele que se processa segundo modelos de maior risco econsequência, nem de recusar a este a legitimidade e asindiscutíveis qualidades que possui. No plano em que sepretende situar, o Kilas é uma verdadeira réussite.

Cerromaiorde Luís Filipe Rochaestreado em Lisboa, a 24 de Abril de 1981

Em 1943, Manuel da Fonseca publica um romanceintitulado Cerromaior. Perto de quarenta anos depois, LuísFilipe Rocha realiza um filme com o mesmo nome.

Será a mesma obra agora transposta para o cinema? LuísFilipe Rocha diz que sim. Alguns poderão pensar: é amesma obra com a diferença de que a linguagem docinema não é a mesma que a linguagem da literatura. Eainda: é a mesma obra, claro está, mas é apenas uma leitura,forçosamente subjectiva dessa obra.

Talvez seja de ir mais longe: o que Luís Filipe Rochafilma — e admiravelmente — é sobretudo a impossibilidade

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de se fazer hoje, em nome de Cerromaior, a obra que Cerromaiorfoi na literatura. Luís Rocha não o dirá, e está certo, deixaque o filme o diga. Daí que este filme seja, entre outrascoisas, um filme que se sente e sabe inteligente. Sequisermos, de uma inteligência da História que poucas vezeso cinema português disse tão-só por imagens.

O livro tem um dos esquemas tradicionais do neo-realismo: num mundo dividido entre opressores eopr imidos, uma personagem mais sens ível eescrupulosa, vacila, balança, toma consciência e opta.No texto literário, toda a história se desbobina comoflash-back promovido em função dessa personagem,Adriano, que, pressionado pelos enredos da suaconsciência, e pelos acidentes da história que aí sevieram enredar, nos dá conta de como chegou até aqui,isto é, à prisão, isto é, ao campo dos oprimidos. LuísRocha, ao repegar em Cerromaior, trata as coisas deoutro modo. Adriano é apenas uma peça de umaengrenagem que lhe pré-existe; a sua consciência é-nos inteiramente exterior (a personagem atravessa ofilme numa espécie de entor pecimento); o tema datomada de consciência e da opção nítida desaparece.Para Luís Rocha, Adriano chega a Cerromaior, vê,interroga(-se), fala(-se), silencia, dá a volta à vila,magoa(-se), entende o bastante, e, por fim, espera denovo a camoineta que o fará partir. É uma personagemde passagem (há mais duas, por motivos diversos).

Temos assim que, no filme, Adriano entra nummecanismo que já lá está. E que o vemos sempre de fora,em desamparo e apatia. E que a obra se constrói emsequências aparentemente desgarradas, justapostassegundo uma lógica a que poderíamos chamar de ruptura:

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a linha de leitura de uma sequência é sempre rompida nasequência seguinte, forçando o espectador a umarecolocação dos seus dispositivos de interpretação,obrigando-o a recentrar-se continuamente pela força dasdescontinuidades por onde o filme o conduz. Este modode construir a obra tem uma função decisiva: quebra àpartida toda a hipótese de que a narrativa seja o desenrolardo fio de uma consciência, impedindo qualquer tentativade identificação entre espectador e narrador. A narraçãoé deliberadamente anónima e inumana, a isso nos forçacom a dureza de quem nos diz que não será fácil entrarna realidade do mundo alentejano, e o espectador, esse,fica mais só — para que também ele aprenda. Se algumacoisa faz sentido pleno, esse sentido é sempre retroactivo:por isso, o filme se configura, no dizer do seu autor, emforma de funil: tudo converge para o ponto extremo danarrativa onde a inteligibilidade se recupera. Mas talinteligibil idade é uma conquista, uma lenta —provocatoriamente lenta — iniciação. Nenhumaconsciência existe antes, que a possa garantir.

Ao recusar o suporte de um protagonista desfiando anarrativa da sua tomada de consciência, ao redistribuir asperipécias da intriga segundo blocos descontínuos, LuísFilipe Rocha dá-nos logo de entrada as linhas fortes dasua leitura de Cerromaior: todos os outros aspectos emque o filme se demarca da obra apenas as confirmam. Oque o realizador pretende é acentuar a existência de umpeso estrutural que comanda lugares, figuras e situações.Como se tudo estivesse desde sempre encerrado numapassividade maior — cumprindo cada qual, indefesoperante o destino, o papel que lhe coube em sorte. Comose filmar fosse apenas o deixar ver o que, por uma imemorial

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fatalidade, já lá está: uns desde sempre passam, outros desdesempre esperam, outras espreitam pelas janelas, algunscantam, alguns bebem, alguns jogam, alguns dormem— mas o imenso sono que os envolve é o mesmo paratodos. E a câmara adquire uma morosidade sonambular.Para que a música, essa, também ela admirável, nos dêde tudo o que vemos o sentimento de que o revemos: qualquergesto primeiro é já um gesto repetido, e é a música que,subtilmente, o diz. Dimensão de nostalgia que fazatravessar pela cena a ideia de uma felicidade definitivamenteperdida: o Real é um objecto tragicamente ausente,exterior ao círculo desta clausura.

Daí o clima de uma tragédia (im)possível. Transpostapara a ritualização de uma espécie de western alentejano: oMaltês é aparentemente o herói que passa, a luta final éaparentemente o tradicional confronto reduzido a dois,postos por f im frente a frente. Sublinhemos oaparentemente por motivos que virão mais tarde. Mas,como vemos na sequência em que Adriano tentaencontrar-se com os do Maltês, todo o cenário, incluindoa presença forte e emudecida das mulheres, é a imagemde um western em suspenso.

Em Cerromaior, não há acções — excepto no fim, e acoberto da noite. Em Cerromaior, o gesto é sempre pose,— representação já cega da eterna tragédia entredominadores e dominados. Para tal, serve-se Luís Rochada teatralidade inábil e justa dos camponeses reais quetrouxe para o filme — e das eventuais dificuldades nadirecção dos actores profissionais. E o resultado, se deinício nos pode deixar reticentes, ganha depois razão deser e concordância profunda com a realidade das coisas.

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Peso estrutural, dissemos: e o jogo das peças narrativas,numa combinatória tão segura como desprevenida, deixa-nos a sensação de que o filme se faz por si mesmo, impelidopor uma inteligência anónima e antiga. E, por outro lado,todo o rigor com que a câmara se desloca dá-nos a certezade que nada está fora do seu lugar — a não ser aqueles quetêm por destino atravessar o lugar. E é a eles que cabeproduzir o frémito final — estremecimento nocturno,violência absorta — que a brancura do dia e a imobilidadeda terra irão de novo apagar.

Como contraponto ao peso estrutural que o filmeconstrói (inclusivamente no desenho das falsas saídas: osuicídio ou a loucura), há três hipóteses que se esboçam:

— por um lado, a nostalgia de um romanesco queemerge das relações eróticas;

— por outro lado, a presença, sempre romanticamenterecortada, do Maltês, luminoso na sua evocação dosmundos possíveis (ver a cena na taberna depois donoticiário de Espanha), desastrado e quixotesco no seuconfronto com os poderosos;

— e, por fim, manhoso, obstinado e pragmático, oToino Revel: esse que põe as perguntas práticas ao Maltês(«isso de não haver dinheiro como vai ser?») e que toma olugar dele na luta final; daí o aparentemente atrás sublinhado:é que o Maltês, na hora da verdade, se des-heroiciza paraceder o seu papel ao camponês que dele fora sombra. Ehá assim, embora sussurrada, uma lição do filme.

Contudo, e esse ponto parece-me importante, uma tallição não chega a ser proposta, não é exibida comoexemplo: faz também parte das coisas que estão lá, dadoentre dados. Nenhuma personagem nos traz o bommodelo com quem nos identificarmos.

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O espectador sai como entra: só como os outros. Serápor isso que Luís Rocha tanto nos fala na solidão comono essencial de todo o filme.

Porque onde o neo-realismo nos anos 40 nos propunhaum esquema tendencialmenle ético, Luís Rocha opera umamudança: separa cuidadosamente a estrutura daqueles quea habitam. De um lado, ficam os mecanismosdeterminantes; do outro, estão os que os vêm ocupar. Jánão há pessoas moralmente consideradas; as coisasreescrevem-se de outro modo: de um lado, o impessoal,do outro, o que dele fica, a desgarrada solidão das gentes.Assim se diluem as referências éticas; e também seesfarelam as caracterizações psicológicas. Para além dorigor dos mecanismos de opressão, ficam-nos pessoasdesabitadas, o vazio da psicologia. Como se a opressão fossetambém, ou sobretudo, isso: esse esvaziamento dopsicológico.

Luís Rocha dá-nos figuras de quem se pressenteagudamente a interioridade, mas é uma interioridade sempsicologia, sem meandros da consciência, sem requebrosdo imaginário. Elas têm um dentro, mas nós ficamos defora: como se esse dentro fosse apenas o fora que asrodeia, o halo de solidão que as mata. É ao filmar destemodo as personagens do seu filme que Luís Rochaconsegue introduzir a solidão na própria relação do olharque as filma — a solidão não é apenas da história, mas dequem a conta, ou vê.

Onde o neo-realismo dos anos 40 contava uma históriade tomada de consciência e nos oferecia um modelo comque nos iríamos solidarizar, Luís Rocha mostra-nos umprocesso sem sujeito e uma solidão que se supõeintransponível. Mas, na medida em que toma como matéria

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do filme um romance do neo-realismo, Luís Rocha faz-nos sentir que filma sobretudo a impossibilidade de filmaroutra coisa. A euforia transformou-se em nostalgia, o épicoconverteu-se em trágico. E, no fundo, o que Luís Rochafilma é, no contexto do marxismo contemporâneo, oaparente desaparecimento do sujeito histórico da revolução. E, porisso, este filme surge, na sua calafetada dilaceração, comoum adeus impossível.

Oxalá!de António-Pedro Vasconcelosestreado em Lisboa, a 8 de Maio de 1981

Tentemos contar: José Caeiro (Manuel Baeta Neves) éum escritor de 35 anos, exilado em Paris, ex-militantecomunista, fugido ao serviço militar, algo céptico emrelação aos enredos da política. Em 25 de Abril, abandonaduas mulheres, vem a Portugal ver o 1.° de Maio,reencontra a primeira mulher que cá deixou (Lídia — LiaGama) e a filha que dela tem (Patrícia), e conhece Maria(Marta Reynolds), que deseja. E depois? Depois, éimpossível contar. Apenas um episódio mais.

Este: em Cascais, José olha o mar e lê; e, de súbito,Patrícia, a filha de 7 anos, traz-lhe uma fotografia de Maria;Françoise, a francesa amante de José, vê a fotografia ediz: «É o género de rapariga em que gostarias de te pôr»;e, por fim, Artur, seu amigo, e apaixonado de Maria, pede-lhe que interceda junto desta para que ela atenda a suapaixão. Parece uma história de Musset, dirá a voz quecomenta o filme (uma vez mais António-PedroVasconcelos).

No fundo, uma história exemplar. Expliquemos: é desupor que Oxalá se pode entender por inteiro a partir de

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uma ideia simples: a de que só se tem acesso ao que se desejaatravés de mediações (em Perdido por cem…, tínhamos oprojector de slides como mediação para o desejo de Arturpor Joana). Vejamos:

— é por intermédio de Patrícia, a filha, que Joséredescobre Maria (todo o filme, aliás, joga na vacilaçãoentre Patrícia e Maria);

— é por intermédio da observação de Françoise queJosé toma conhecimento do seu desejo de Maria;

— é por intermédio de uma fotografia que José vêMaria;— é por intermédio do pedido de Artur queJosé recebe o encargo de se aproximar de Maria;

— é por intermédio de Musset que José pensa asituação;

— é por intermédio de um comentário off que nóssabemos o que José pensa.

E qual o desenlace deste episódio? De facto, Arturchega a ir para a cama com Maria. Mas apenas porqueJosé lhe envia de presente uma boneca (como se fosseum presente para a filha), e porque Maria, não querendoser tratada como uma criança, se serve de Artur para queJosé a possa reconhecer como mulher. Por conseguinte,as coisas acontecem como se pretendia — mas porcaminhos imprevistos.

É altura de desfiarmos o rol das consequências. Se oacesso ao objecto do desejo se realiza sempre através demediadores, as mediações adquirem um estatuto ambivalente: elassão simultaneamente etapas de uma aproximação eobstáculos que se interpõem nessa aproximação. Não serápor acaso que José prepara um ensaio sobre Camilo e o

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mito de Simão, que tem por tema, não apenas osobstáculos à paixão, mas a paixão dos obstáculos.

Em segundo lugar, se o acesso ao objecto do desejoimplica mediações, tais mediações podem configurar-se(simulada ou autenticamente) como desejáveis em si mesmas,o que significa que ficamos com a porta aberta para umconstante jogo de simulações: que vem José buscar a Portugal:a revolução ou o amor?; que procura José na adolescência:Maria ou a filha Patrícia?; que vai José buscar à casa daprovíncia: o roupão que lá deixou ou Maria?; que pretendeJosé encontrar em Lisboa: Lisboa ou Paris? E assimsucessivamente. A dissimulação é constante.

Em terceiro lugar, se a obtenção do objecto do desejoimplica mediação, isto quer dizer que tudo tem um preço.Outra coisa não significa a epígrafe retirada ao poetaAntónio Osório: «Porque é preciso pagar, e caro, a vida.»A problemática de António-Pedro Vasconcelos é comoque uma generalização da ideia de mercado ao campo dossentimentos. Assim, por exemplo, Françoise vende o carroa José e ele fica a pagá-lo a prestações. Mas o que elacompra é José enquanto amante em situação dedependência. Estamos em plena filosofia de Joaquim, oamigo parisiense de José: «Com as mulheres, como como resto, a conta acaba sempre por aparecer.» Daí que otermo das aventuras sentimentais se faça quando se chegaà evidência de que estamos quites.

Em quarto, e quem sabe se último lugar, lembrareique, se o objecto do desejo envolve uma mediação, isso éuma verdade que se aprende, e tal aprendizagem exige umainiciação. Ora acontece que as iniciações impõem disciplinae método. O filme é, pois, metodicamente ordenado emprólogo, três retratos, três capítulos, um epílogo. Santo

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Inácio de Loyola não anda longe: os Exercícios são, nodizer de Barthes, «uma luta encarniçada contra a dispersãodas imagens»; Oxalá também.

São tantas as mediações no filme que seria impossívelenumerá-las todas. Alguns observam que há por aqui umexcesso de citações e referências culturais. De facto, Josépensa a história com Maria através de Musset. E outrapersonagem seduz Inês (Laura Soveral) através dos trechosque sublinha nos romances de Agustina (a sombra literáriadeste filme). Quando os dois fogem para a Itália, vivem asua aventura em nome de Lamartine e do seu lago de voosuspenso, e em nome de Sand e de Chopin. E assim pordiante. Citações, jogos de palavras, histórias exemplares,preenchem o espaço entre as personagens de Oxalá. Oque significa que as relações entre elas não são directas,mas se fazem sempre pela mediação de um imaginário.

Mas há mais. É óbvio que António-Pedro se pensaatravés de um José que imagina: «Imagino-me emParis…». E que, portanto, a verdade histórica se obtématravés de uma ficção. Mas há ainda mais. Quem for sensívelàs modulações estilísticas da imagem, da música, do texto,poderá aperceber-se de que o filme é feito de ficções quese introduzem na ficção — como se, no plano da «forma», acitação fosse também indispensável. Assim, o rendilhadobarrocamente libertino ou a brutalidade erótica, ocinema-verdade, a rábula teatral e o romanescomelodramático (na admirável deambulação nocturna deInês) cruzam-se ao longo da narrativa. Donde, se o filmenos dá por vezes a sensação curiosa de ser um simulacro,isto vai um pouco ao encontro da sua própria lógica: éque só pelo imaginário se chega à realidade, só pela

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mentira se tem acesso à verdade, só pela falsificação da própriaficção se atinge o toque autêntico do real.

E aqui chegamos à questão política. O filme surge comoum retrato de Portugal depois do 25 de Abril segundo oregisto de determinada geração e estrato social. Se estaproposta for candidamente tomada à letra, as decepçõesserão muitas; de facto, nem um bocadinho do Largo doCarmo, nem a ponta de uma baioneta, nem o punhofechado de uma mulher do povo — nada.

É verdade que este filme fala do 25 de Abril — masdoutro modo. É certo que aparecem imagens de Otelo —mas a que propósito? A questão política é, pois,fundamental. Vejamos como.

Torna-se necessário recordar que, no final do filme,José encontra uma amiga, Tina (Teresa Madruga), queestá separada de João. Este havia participado na campanhade Otelo para a Presidência. E suicida-se no termo dofilme. Sempre ausente na imagem. De João dirá Tina que«ele não suporta que as coisas lhe resistam». Por outras palavras,João não aceita as mediações-obstáculos. Tal como o«esquerdismo» de Otelo é o emblema desse já que umadeterminada euforia política propôs como a recusa dequalquer fase intermediária. Otelo, como João ou comoArtur, é um ser de paixão — definem-se precisamente pelofacto de não tolerarem o adiamento ou a dissimulação.Por isso, depois das imagens de Otelo, o filme quebra. EArtur, «demasiado apaixonado para não ser ingénuo»,morre, e João suicida-se.

Em contraponto, Lídia aprende a «ser paciente» — eaí começa a amar. José aprende a separar-se do que ama— e aí começa a sentir-se amado. A vida é compromisso —havia ele dito a Maria. O que ele teme em Portugal é a

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facilidade — o modo demasiado rápido como se julgachegar às coisas. José sabe agora (iniciação, sageza) que aseparação é mediação. E que só pela distância se vê. Lição demise-en-scène: «A gente nunca olha para as pessoas emgrande plano a não ser quando está apaixonado.»

Terminado o grande plano da revolução (Otelo), a vidacontinua. Bom? Mau? «C’est l’ordre des choses».

Manhã submersade Lauro Antónioestreado em Lisboa, a 17 de Outubro de 1980

A obra de Vergílio Ferreira, inicialmente marcada porfortes preocupações de cariz social, foi evoluindo parauma problemática acentuadamente filosófica, na qual acrise dos valores tradicionais da cultura, a aparição dosujeito na evidência de si mesmo, a ruína das profecias detransformação do mundo e uma contínua procura de umarelação reconciliada com o corpo, são tópicos dominantes.Manhã submersa situa-se no momento que precede apassagem de uma literatura de denúncia de todas asalienações para uma estética mais marcada por umareflexão de tipo existencial.

Deste modo, se o protagonista vive uma experiênciaque o põe em confronto com a religião organizada nosistema asfixiante de um seminário, o movimento que lhepermite libertar-se da alienação a que uma tal situação ocondena corresponde também a uma tomada deconsciência que o sujeito faz da sua própria condição deum eu irredutível a todos os sistemas.

Lauro António utilizou o material do romance,evitando, contudo, dois riscos que ele poderia propiciar.

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Em primeiro lugar, fez um filme que não é contra a religião,nem sequer contra a educação religiosa, mas que se servedesses elementos para descrever, numa evidência plácidae intransigente, a cuidadosa colocação das pedras doedifício repressivo com que se pretende manipular umaconsciência. O seminário funciona assim como metáforade um mecanismo totalitário — e, nesse aspecto, o filme, aocontar a história de um destino exemplar de um jovem domeio rural, dá-nos nesse exemplo a figura do própriodestino português no confronto com as malhas dadominação autoritária do salazarismo. Simplesmente, eao arrepio de certas tradições, Lauro António nãodenuncia, verifica, não se indigna, mostra, e isto porque acâmara se coloca sempre na perspectiva do olhar perplexo,atónito e indeciso do protagonista — incapaz de formularjuízos definitivos e condenações radicais. Esse o segundoaspecto positivo na adaptação que Lauro António fez doromance de que partiu: evitou a tentação de converter ofilme num longo monólogo interior de ref lexãoprecocemente existencial, e conseguiu que o único ponto deapoio do espectador seja apenas um rosto neutro, opaco eemudecido de adolescente. Daí que a narrativa decorranuma espécie de desapego tranquilo, que a tornasimultaneamente subtil e ingénua, multifacetada etransparente. O pólo da revolta não é aqui a interioridadeindomável de uma consciência que se dá conta de simesma, mas a afirmação natural, terrestre e serena de umdesejo. Daí também uma certa espessura que o filmeadquire (disponível para diversas literaturas einterrogações) e a fácil comunicabilidade com que seapresenta ao público.

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O grande mérito do filme de Lauro António consisteem ter partido de um tema profundamente vinculado àrealidade portuguesa, e contudo com um vago saboranacrónico (a questão religiosa não é uma questãoescaldante, e não faz parte das preocupações maisinsistentes das gerações mais novas, que passam um poucoao lado do problema). Mas esse tema um pouco datadopermitiu o distanciamento certo — evitando a demagogia, ohisterismo, o panfletismo, a que muitos autores não teriamresistido. Por outro lado, Manhã submersa é uma narrativaonde quase nada de importante acontece, e tudo o queocorre vale sobretudo como valor de índice da clausura deum determinado universo (o da educação religiosa numseminário). Lauro António, no entanto, conseguiudesenvolver uma narrativa fundamentada numa quaseexclusiva acumulação de índices com a mesma vivacidadecom que se conduz uma obra em que se multiplicam asgrandes mudanças de situação e os grandes momentosde surpresa. Isso dá uma espécie de moldura de cinemaamericano para um filme que tem o tempo interior de umapsicologia discretamente europeia. Poderemos assim falarnuma progressão e adensamento de sinais de sufocaçãoque criam uma carga de afectividade que acaba por dar àcena da mutilação voluntária um valor eufórico delibertação. Essa sequência tem o estatuto de um desenlacede enredo policial: é o instante em que se descobre aidentidade do assassino. O que justifica em termosemocionais a cena final: reencontro da mãe restituída aofilho e fruição da pausa e serenidade que sucedeu àexplosão.

Suponho que grande parte do êxito do filme de LauroAntónio depende da qualidade do final encontrado. A sua

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força reside na capacidade que o autor leve para fazercoincidir o significado de mutilação (a mão perdida) com o vaziovisual (a câmara dá a ver um foguete que não chega arebentar no ar, e é esse vazio que se torna visível) e um vazionarrativo (o drama que ocorre não irá ser imediatamentenarrado). É da conjugação destes três vazios (diegético, visual,narrativo) que se desprende a figura da castraçãotematicamente emblemática de toda a obra (castração dodesejo por uma estrutura concentracionária). Mascastração vivida aqui em termos positivos, porque assumidapelo protagonista como modalidade de acesso à ordemdo desejo: é preciso sacrificar algo para poder ser comoos outros (ter uma mulher).

Bom povo portuguêsde Rui Simõesestreado em Lisboa, a 18 de Novembro de 1981

Rui Simões fez até agora dois filmes com esquemassemelhantes: em 1975, Deus, pátria, autoridade, balançosaboroso do período fascista, realizado com a desenvolturae simplificação de um panfleto, e em 1980, após inúmerasdificuldades que lhe foram sendo criadas, em particularno acesso a documentos fundamentais, Bom povo português.Enquanto Deus, pátria, autoridade se justificava pela própriaeuforia do momento histórico (não se tratava de analisaro fascismo, mas de o tornar execrável), já no caso do Bompovo português, que se propunha considerar o período quevai de 25 de Abril ao 25 de Novembro, talvez se justificasseuma perspectiva menos simplificadora e maisproblematizante. Porque, do ponto de vista de esquerdaem que o autor se coloca, o objecto do seu filme era, na

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realidade, uma derrota — bem sublinhada, aliás, pelaexcelente ideia final de colocar Otelo, o derrotado, a verna televisão a imagem de Eanes, o vencedor. É aqui que apura transposição dos métodos panfletários do filme anteriorse revela nociva para uma compreensão dos mecanismosreais do processo político.

Mas talvez a própria «teoria» política que sustenta otrabalho de Rui Simões o impeça de um esforço analítico— de que tivemos um extraordinário exemplo, em relaçãoao Chile, no filme La Spirale de Armand Mattelart. Porque,para Rui Simões, na medida em que «a emancipação dostrabalhadores é obra dos próprios trabalhadores», sempreque um mínimo de esquema organizativo se começa aesboçar, abrindo uma distância entre representantes erepresentados, logo essa distância torna impróprios osrepresentantes e faz dos representados uma instância traída.As consequências estão à vista. Por um lado, colocando-se numa posição em que qualquer relação com o poder énecessariamente negativa, Rui Simões impossibilita-nosqualquer compreensão dos mecanismos especificamente políticos.Daí que a sua «teoria» política implique um contínuo recuopara a área estético-ética. Por outro lado, uma talconcepção acaba por traçar como inevitável destino dostrabalhadores a traição de que sempre eles serão vítimas.Daí que a perspectiva revolucionária se convertafundamentalmente numa retórica da revolta confrontando-se a cada passo com compromissos, cedências eabdicações. Todo o filme pretende accionar uma únicamola: a da indignação.

Como é óbvio, a própria concepção de Bom povoportuguês condensa estes «princípios teóricos». De um lado,temos os momentos míticos do 25 de Abril, filmados em

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câmara lenta, e, do outro, temos a estridência desagradável(a música contribui para isso) da realidade política em que o25 de Abril desemboca. Ou ainda: de um lado, temos opovo, com os seus lamentos, os seus gestos exaltados, osseus cantos, e, do outro, temos documentos do poder.Entre um campo e outro, a distância é irredutível. O filme éacima de tudo imagem dessa irredutibilidade. Como umatal distância nos aparece como um destino incontornável,a revolta de que o filme se faz porta-voz é de certo modouma revolta que se sabe destinada ao malogro. A subtileza dotrabalho de Rui Simões consiste em tentar fazer ver emfiligrana como esse malogro estava já inscrito nos primeirosgestos e nas primeiras falas. Digamos, correndo o riscode não sermos bem entendidos, que esta revolta é, nofundo, uma revolta conformada.

Bom povo português é uma obra onde se tornam muitovisíveis as contradições do pensamento de esquerda emrelação à ideia de povo. Por um lado, na medida em que só ostrabalhadores libertam os trabalhadores, eles surgem comoo sujeito-suposto-saber. Daí o estranho efeito que Rui Simõesconsegue produzir em torno de todos os discursos (e quequase atinge os discursos que ele gostaria de preservar:os de Emídio Santana ou de Fernando Pereira Marques,por exemplo): qualquer discurso tende a surgir como umausurpação. A fala política, na medida em que já é política, é oresultado de uma espoliação. Qualquer político, na medidaem que fala em nome do trabalhador, é o resultado de umaexpropriação.

Mas, por outro lado, e reactivando certos temas datradição revolucionária, Rui Simões recorre à alegoria dacaverna em Platão para tentar demonstrar que aquelesque estiveram durante muito tempo submetidos às trevas

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(isto é, à opressão fascista) só lentamente poderãohabituar-se à luz, precisando para tal de educarem a poucoe pouco a vista (o que significa que é necessário habituar opovo à democracia). Mas pergunta-se: quem educa oseducadores? Quem habituou os habituados? É claro queé nesta segunda perspectiva que se justificam as reservaspostas ao longo do filme ao processo eleitoral, classificadocomo «democracia académica» em oposição à «verdadeirademocracia» (mas quem define qual é a «verdadeira»?).

Passagem ou a meio Caminhode Jorge Silva Melo

A passagem de Jorge Silva Melo do domínio do teatropara o domínio do cinema constituiu por si só umacontecimento — dada a extraordinária importância dotrabalho de Jorge Silva Melo no campo teatral. Talvez issotenha estado um pouco na origem do clima de desilusãoque acolheu as projecções iniciais deste filme: é que aexcessiva expectativa não parece ter sido inteiramentecorrespondida. Digamos que o filme dava a impressão deprogramar o seu próprio (relativo) fracasso, porque faziado fracasso a dimensão quase única do seu projecto. Masé evidente que de uma tal recepção se havia de ressentir oautor — uma vez que esta obra, tão protegida pormuralhas culturais, algumas vezes quase inacessíveis, é umadas mais íntimas que entre nós se produziram, e certamenteum dos filmes mais tristes que se fizeram em Portugal.

A fascinação de Jorge Silva Melo pela figura deBüchner, e, sobretudo, pelo trágico destino do seu panfletorevolucionário «O Mensageiro de Hesse», constituem omaterial de que este filme parte. Não houve da parte do

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autor uma preocupação em actualizar estes textos —veremos mais adiante que este aspecto tem váriasimplicações. O que se verifica é uma encenação num espaçocontemporâneo (vestuário, casas, hospitais, máquinas deescrever, ruas, carros, luzes, etc.) de textos e falas queremetem para o mundo referencial de Büchner. De certomodo, este mundo é aqui a mediação privilegiada que JorgeSilva Melo encontrou para falar da sua geração com essaenorme carga de pudor que a caracteriza. Por algumarazão o filme nos dá em epígrafe a descoberta de que«não posso escrever sobre o meu amigo mais amado».Entramos assim na realidade da resistência antifascistaconsiderada através das lutas estudantis, das utopiasde intelectuais, dos «comunicados» e panfletos, dotrabalho nocturno em torno das fotocopiadoras e dasmáquinas de escrever, da aventura de distribuir os textospela cidade, da distância iniludível entre estas formasde luta e aquelas que se desenrolavam nas fábricas ounos campos. Grande parte deste filme é composto porimagens de estudantes, e, por vezes, professores,imaginando grandes frases libertadoras, tentandoencontrar a palavra justa («cada palavra justa é umavitória») que possa servir a causa dos oprimidos,massacrando as máquinas de escrever com longostextos palavrosos.

Mas Passagem é fundamentalmente um filme denostalgia. Inteiramente voltado para a ânsia do futuro, oautor estabelece um arco entre a força do passado e odeslumbramento desse futuro, mas esse arco é sobretudouma máquina de guerra contra o presente, que surge como uma«época tão vazia de esperança». Compreendemos assim aevocação dos velhos operários que não têm a atitude dita

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contestatária dos jovens face a cultura, porque a amamcomo um instrumento de liberdade: para eles, para essesvelhos homens da Revolução, não há televisão, mas há livros,não há necessidade de drogas, porque não são neuróticos,nem recorrem à psicanálise — e, poderíamos acrescentar,nunca gostarão do cinema série A, mas sim, e apenas, eintransigentemente, do cinema série B, menor, marginal,marginado, recalcado, ferozmente minoritário (destecinema resguardado no seu próprio fracasso, protegendo-se com unhas e dentes, e intermináveis planos em purodesamparo, numa modernidade não-narrativa — destecinema de Passagem). Proclama-se aqui o estatuto de umainevitável insularidade da arte e dos intelectuais — alienaçãoque apenas se poderá romper na sociedade outra de que estaarte e estes intelectuais sustentam o desejo.

O que há de extremamente belo, e ao mesmo tempopatético, na obra de Jorge Silva Melo (e que a aproximada radicalidade, também ela melancólica, de um Retrato deum amigo enquanto falo de Eduarda Dionísio) é que temos acada instante a sensação de que tudo aquilo de que sefala, e que profundamente se ama, já passou, ou, pior ainda,já era passado quando foi presente. Mas, por outro lado, háneste filme, nesta espécie de entrincheiramente ético deum soldado que ainda ignora que a guerra acabou, umdesejo de revolução, uma insuportável vontade de quereroutra coisa, tão de dar com a cabeça na borda da banheira,tão de doença, tão de morte, tão certa do fracasso («se eupudesse acreditar na possibilidade de uma acçãopolítica…»), que não podemos deixar de nos sentir tocadospela imensidade (deliberadamente incomunicável, maspartilhável) do que aqui se passa. A Passagem é um filmeprofundamente político (tem mesmo aquela exclusão do

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amor que nos dá a marca de militância), mas é tambémum filme que detesta a política, porque a política é algo quese passa sempre na corrupção do presente. Daí que não hajaacção — toda a acção é longamente preparada,dolorosamente frustrada, mas não existe como presente de simesma. Assim se explica que Jorge Silva Melo não tivessepodido actualizar Büchner, na medida em que a mensagemdeste desesperado mensageiro só é actual na suainsuportável inactualidade.

1981

Principais filmes: Conversa Acabada de João BotelhoDina e Django de Solveig NordlundFrancisca de Manoel de OliveiraUm S Marginal de José de Sá CaetanoGuerra do Mirandum de Fernando MatosSilvaLonge é a Cidade de Ricardo CostaSilvestre de João César MonteiroA vida é bela…?! de Luís Galvão TelesRita de José Ribeiro MendesO banqueiro anarquista de Eduardo GeadaO homem que não sabe escrever de EduardoGeadaMúsica, Moçambique! de José Fonseca eCosta

Silvestrede João César Monteiroestreia em Lisboa, a 6 de Maio de 1982

Filme assumidamente idealista, jogando sem hesitaçõesno campo de um inconsciente colectivo de cariz junguiano,

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simulando ir às raízes submersas da memória portuguesapara encontrar nelas uma universalidade de referências,Silvestre é uma obra que tinha várias condições paraprovocar a recusa dos sectores mais materialistas da críticaportuguesa — e, contudo, por motivos que seria curiosoanalisar, acabou por suscitar entusiásticas análises à beirado êxtase. São estes os pitorescos caminhos de um cineastaque de sujeito convicto de uma intratável marginalidadese converteu em objecto (resignado ou divertido?) de umdiscurso unanimista.

Silvestre recorre a duas narrativas do Romanceiro(«Donzela que vai à guerra» e «A mão do finado») e tentaarticulá-las num único percurso narrativo, segundo umapista já explorada por Aquilino Ribeiro. João CésarMonteiro optou por um tipo de realização que confereao filme um estatuto que o aproxima da banda desenhada:cada sequência é fundamentalmente a simplificação de umarealidade inacessível (o que é muito visível nas cenas dabatalha, mas constitui, no entanto, a maneira dominanteao longo de todo o filme). Esta noção de simplificação éfundamental: ela determina o teor das falas (que sãosimplificações arquetípicas de uma realidade psicológicatornada universal), as características dos cenários, oandamento da narrativa, ou mesmo o estilo derepresentação (que é sempre, como se pode ver com JorgeSilva Melo, que leva o processo a um limite quaseintolerável, uma representação de uma representação). Tal comona banda desenhada, o que se vê é apenas uma amostragemem que o essencial fica condensado. Esta necessidade desimplificar (amplamente inspirada no Perceval de Rohmer)poderá servir de explicação para o que de melhor e o quede pior se encontra neste filme: o melhor ocorre quando

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a simplificação condensa, o pior quando ela empobrece e reduz.O grande problema estético de Silvestre resulta de o cineastanão ter sabido gerir equilibradamente esta economia.

Daí a razão de ser de determinadas objecções que,verificando que o filme se constrói com sequênciasfilmadas em cena de tipo teatral, com sequênciasconcebidas para o recurso à projecção frontal e com outrasrealizadas em cenários reais, o acusam de umaarbitrariedade de procedimentos e de uma dispersão deintenções. De facto, se condições de ordem práticaforçaram João César Monteiro ao uso de diversas técnicasde filmar, teria sido importante subordinar a lógica da suadistribuição à lógica da simplificação a que o filme sesubmete. Dizer apenas que se «jogou na heterogeneidade»não parece ser argumento suficiente.

É precisamente porque o filme trabalhasimplificadamente uma matéria simplificada que elefornece com extrema facilidade o material que permite aleitura directa em termos psicanalíticos — e assim esta leituraatravessa o filme como se nele não houvesse corpo ou sujeito, masapenas uma placa translúcida onde o inconsciente seinscreve numa grafia primordial. Daí o encanto e aambiguidade de abordagens tão interessantes como aquelaa que José Gabriel Pereira Bastos se dedicou (nas páginasde JL, n.º 33).

Para Pereira Bastos, estamos perante «a cena doinconsciente que nada recusa, porque amoral e isenta decontradição». Vamos assim encontrar todos os sinais dodesejo incestuoso do pai de Sílvia/Suzana — para se vir aconsumar na figura do Romeiro. Ou seguir as váriasclivagens (de Sílvia a Silvestre, entre Sílvia e Suzana, entreo masculino e o feminino, entre mãe e filha, entre virgem

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e não-virgem, etc…) que farão do filme, no dizer docomentador, «um deslizante labirinto caleidoscópico».Ou decifrar o simbolismo da desvirginização e dacastração no episódio da «mão do finado». Ou exploraras virtualidades polissémicas do elemento «mão». Ourecorrer ao mito de Osíris e Isis para a interpretaçãoda cena final.

O resto são as qualidades e defeitos que já encontrámosem Veredas. Por um lado, um gosto excessivamente fácilpela superfície mais cantante das imagens. Ou umacentuado desequilíbrio na direcção de actores: se Mariade Medeiros e Luís Miguel Cintra constituem casosnotáveis de interpretação, outros participantes (comoXosé Maria Straviz, Raquel Maria ou Cucha Carvalheiro)comprometem irremediavelmente determinadas cenas.Por outro lado, uma enorme sedução pelo alardear dasreferências culturais, que funcionam quase sempre maiscomo escudos de protecção do filme do que comomomentos de verdadeira intensidade estética.

Conversa acabadade João Botelhoestreado em Lisboa, a 13 de Maio de 1982

Projecto inicial: realizar um filme sobre acorrespondência entre Mário de Sá-Carneiro e FernandoPessoa. A partir deste núcleo temático, João Botelho vaiabrindo vários círculos. Por um lado, tenta traçar umabiografia sumária dos dois escritores: o filme começa namorte de Pessoa e termina na morte de Sá-Carneiro. Poroutro lado, procura dar corpo e voz à produção literáriade ambos correpondente ao tempo desta correspondência.

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Isso instala no filme uma linha de ficção que atinge a suadimensão mais funda nas duas cenas de A confissão de Lúcio.E é pela hábil sobreposição de sequências de A confissãode Lúcio ao longo da relação entre Pessoa e Sá-Carneiro, aque se associam algumas cenas de ficcionalidade insistentesobre a vida de Sá-Carneiro em Paris, que o filme nossurge, de certa maneira, como uma obra sobre ahomossexualidade. E, por fim, ao acentuar a desproporçãoentre a amplitude dos enunciados poéticos e a mesquinhezdo espaço cultural e social onde eles se produzem, JoãoBotelho propõe-nos de igual modo um filme sobre Portugal.Aí se inscreve provavelmente a pressão do desejo dorealizador ao investir neste empreendimento: como Pessoadiz, na cena que tem como fundo o Jardim do PríncipeReal, em Portugal as revoluções mudam para deixar tudona mesma, e somente resta a hipótese de indisciplinar asalmas através de uma dissolução estética que escrupulizeno mórbido. Tais propósitos sintonizam muito claramentecom o que poderemos supor ser a intenção fundamentaldo filme: trata-se de prolongar uma conversa que se sabeacabada através da realização de uma obra esteticamentemuito próxima da anarquia artística que os seusprotagonistas reivindicam. Como não ver, por exemplo,que as experiências de variação cromática a que JoãoBotelho se entrega correspondem de muito perto a essesensacionismo que levou Sá-Carneiro a surgir como o quemais longe foi na formulação de sentimentos coloridos?Como não compreender que os jogos de luzes e desombras nos quartos e a relação com a moldura das janelasdão espaço à construção de esquemas de sucessivasmetafísicas inúteis?

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O filme de João Botelho utiliza a figura de um narradorpresente: o actor Jorge Silva Melo, e de um narrador off.No caso de Jorge Silva Melo, a solução não terá sido amelhor: não só o processo evoca, de um modo demasiadopromotor de equívocos, o cinema de um Syberberg, comoa intervenção que o actor decidiu ter nos pareceexcessivamente conotada e aproxima-se de registos deprovocação talvez inadequados em relação à atmosferaglobal da obra. Além disso, João Botelho teve a excelenteideia de entregar a leitura de poemas às mais diversaspessoas sem procurar imprimir uma norma de recitação, e,sobretudo, sem insistir na poetização do texto dos poemas:há assim como que uma democracia (o poema pode ser lidopor todos, cada um aprende a ler o poema à medida quelê) e uma física da leitura (tal como há uma física da escrita):não há declamação, mas dicção, por vezes perplexa, porvezes demasiado segura, por vezes tropeçada, quasebalbuciada. Tal procedimento poderá chocar os quetrazem uma visão angelical da poesia. Mas tem a vantagemde deixar em pânico todos aqueles que, acreditandodemasiado na literatura, se não apercebem de que aliteratura de Pessoa e Sá-Carneiro é sempre mais e menosdo que supõem.

Tecnicamente, o filme constrói-se com a utilização doprocesso de projecção frontal. Raras vezes o seu uso terásido tão oportuno e fundamentado. É que a projecçãofrontal cria no espectador um efeito de irrealidadeextremamente forte que, em Conversa Acabada, parece sera tradução formal das leituras de Orpheu que vêem emPessoa e Sá-Carneiro um drama que não afecta apenas arelação do sujeito com o real, mas que afecta o real em relaçãoa si mesmo através do confronto com o sujeito: isto é, a dimensão

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ontológica, e não o enredo psicológico. Ora João Botelhoconsegue fazer uma obra de reconstituição histórica,minuciosa e atenta, e simultaneamente fazer transpareceratravés dessa história o irredutível vazio da realidade quea suporta. É certo que, por vezes, a sofisticação aflora: e,num ou noutro ponto, os cenários de Ana Jota poderiamter ganho numa certa discrição. Mas o balanço final parecefrancamente positivo.

Tem-se observado que o filme se inclinaacentuadamente para Mário de Sá-Carneiro. E o autorreconhece que tal afirmação está certa. Há várias razõespara isso. A primeira, de carácter estritamente factual, é opróprio estado da correspondência de que dispomos: e aía desproporção entre o material existente e o materialrelativo a Pessoa aponta para a valorização da figura doprimeiro. A segunda razão deriva da escolha dosintérpretes: é óbvio que, por diversos motivos, AndréGomes «cola» com surpreendente justeza à figura de Sá-Carneiro e confere-lhe contornos que escapam a esteretrato fílmico de Pessoa. No caso de Fernando CabralMartins, o Pessoa encontrado, deparamos com umvoluntário apagamento e deficiências de dicção queacabam por deteriorar um pouco a imagem pretendida.Mas suponho que se pode encontrar uma terceiramotivação. Não é por acaso que o filme termina com areferência ao conhecido «nevoeiro» e suprime o «É aHora!» que, no poema em questão, lhe sucede. É que ofilme situa-se na mais niilista das perspectivas. E, nesteângulo, o esgotamento de virtualidades humanas (afectivas,estéticas, sexuais) que se assinala em Sá-Carneiro coincidemelhor com a linha de pessimismo que João Botelho imprimiuao seu filme. Houve quem censurasse ao autor a demasiada

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perfeição com que a obra é realizada, insinuando que talseria sintoma de um distanciamento profundo em relaçãoà matéria filmada. É possível que assim seja. Mas, nessecaso, o distanciamento em causa é aquilo que Pessoadesigna (cito um fragmento do Livro do Desassossego) comoa Decadência: «Assim, não sabendo crer em Deus, e nãopodendo crer numa soma de animaes, fiquei, como outrosda orla das gentes, naquela distância de tudo a quecomummente se chama a Decadência. A Decadência é aperda total da inconsciência; porque a inconsciência é ofundamento da vida». O processo da projecção frontal aque nos referimos produz, de facto, no interior do filme,«aquela distância de tudo» que mina intimamente qualquerpresença. E por isso poderíamos arriscar que João Botelhose orientou numa perspectiva decadente de leitura. Daí tambémo privilégio atribuído a Sá-Carneiro e a supressão (talvezinevitável na economia do projecto) de aspectosimportantes da personalidade de Pessoa.

Em relação a esta interpretação podemos convocarduas ordens de factos. Em primeiro lugar, se a Decadênciase produz numa distância de tudo que suprime ainconsciência, a estética da aceleração da decadência, onde JoãoBotelho, na senda de certos veios do cinema europeucontemporâneo, se parece inserir, tende a recuperar ainconsciência no limite do movimento acelerado. Emsegundo lugar, a emergência de blocos dramatúrgicos nointerior do filme, e sobretudo na sua parte final, deixampressentir a existência de zonas de afectividade cega não diluídaque poderão organizar-se em filme futuro de pura ficção.É aí que a dinâmica cromática e o grafismo da posetransbordam para um dizer pessoal, que não ilude, masexcede o âmbito desta «correspondência».

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Franciscade Manoel de Oliveiraestreado em Lisboa, a 3 de Dezembro de 1981«Dieu, comment se peut-il faire / Que plus m’estloin plus le désire»Le Roman de Tristan et Iseult

Não se torna muito arriscado dizer que Francisca é, atéhoje, o filme em que Manoel de Oliveira se encontra maisperto da sua verdade cinematográfica. E trata-se, semdúvida, de uma das grandes obras do cinemacontemporâneo. Mas o acesso a Manoel de Oliveiracontinua a não ser fácil (daí que o realizador se arrisque aser mais reconhecido do que conhecido). Digamos quenão conseguirá entrar no universo fílmico de Franciscaqualquer espectador que não tenha em conta o queconstitui o ponto de partida de todo o cinema de Manoelde Oliveira desde o Acto da Primavera (1963): é precisotomar consciência de que este cinema só existe pela mediaçãodo teatro — ou, como também Manoel de Oliveira soubedizer, é o teatro que para ele é essencial, e o cinema não émais do que a versão audiovisual desse teatro primeiro.

Mas dizer que o cinema passa pelo teatro não chega,porque, mesmo no plano do teatro, se torna necessárioafirmar que a naturalidade só existe (só se atinge) pelamediação do artifício. Os textos que Manoel de Oliveiraescolhe são deliberadamente literários, porque só o excessode literatura permite chegar ao lado obscuro do real. Asintrigas que movem as suas personagens situam-se no limitedo inverosímil — porque só aí, nesse transbordar domelodrama, se reassume a autenticidade de sentimentostão clamorosamente puros que de outro modo se

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tornariam inabordáveis pelo cepticismo contemporâneo.A representação dos actores situa-se no limiar do inexpressivo,interminável recitação que nos coloca face à violência nuada palavra. Quer isto dizer que o cinema apenas persistena medida em que aprende a fazer o seu próprio teatro. E daíque o primeiro trabalho de Manoel de Oliveira seja o deteatralizar o espaço cinematográfico: mantendo sempre umdispositivo cena/espectador inerente à própria maneirade filmar; artificializando as sequências pela repetição dedeterminadas cenas de pontos de vista complementares(mas sem acréscimo de sentido); organizando os diálogossegundo uma linha de olhar que se coloca a meiocaminho entre o interlocutor em cena e o espectadorque nós somos no exterior dessa cena; traçando váriosplanos no interior da cena filmada segundo umaarquitectura especificamente teatral, etc.

Podemos, pois, dizer que o teatro, e os seusmecanismos, têm aqui por função introduzir o máximo deartifício no interior da naturalidade mediana das coisas. Ou,se preferirem, o máximo de distância.

Algumas vezes se pergunta neste filme o que é a alma. Eo texto diz-nos que a alma se define no círculo de umacerta vulgaridade de sentimentos: a alma aparece como azona intermédia em que a convivência desinteressada, acompreensão desatenta e a familiaridade (diremos mesmoa conjugalidade) se tornam possíveis. Mas, por isso mesmo,é necessário opor esta alma, entendida como espaço dossentimentos-em-banho-Maria, a uma paixão tão extremaque se diria desalmada. No sentido em que se pode dizer:«amo-te desalmadamente». Nesta perspectiva, a alma é acadeira onde se acolhem e repousam as pessoas vulgares.Mas, por isso mesmo, alguns pretendem uma alma que vá

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além do préstimo da cadeira. E, para o conseguirem,tornam-se uns desalmados.

Assim, Fanny, no livro e no filme. Primeiro, desalmadapela futilidade e insignificância da sua presença. E, depois,desalmada, pela sublime exaltação com que o desejo nelase diz para além do conforto precário dos prazeres.Digamos assim, com o deliberado risco de provocar umequívoco, que o cinema de Manoel de Oliveira é cada vezmais um cinema desalmado — nesse sentido em que se furtaàs vulgaridades da mediania convivente ou aos embalosda psicologia, e nos força a afrontar a vacilação entre oinsignificante e o sublime.

E é por isso que Francisca dá um passo em frente emrelação a Amor de Perdição. Porque, neste, os obstáculoseram exteriores, e a não consumação da paixão poder-se-ia explicar pelos condicionalismos sociológicos (rivalidadesde famílias, questões de poder) — havia assim lugar parauma leitura da alma: podia-se pensar que a perdição desteamor era algo que vinha de fora. Em Francisca, a perdiçãovem de dentro: a distância é inerente à própria paixão, eFanny apercebe-se que sempre que sente José Augustomais perto de si começa a prezar menos a qualidade doseu amor. E nem podemos pensar que as cartasdescobertas são o elemento que vai afastar José Augustode Fanny — mero pretexto, afinal. Porque esseafastamento começa no próprio momento em que Fannyentra em casa de José Augusto. Com Francisca, a paixãoaceita apenas uma leitura desalmada — não por lhe faltaralma, mas por estar para além do entendimento estreitoque esta propicia. O trabalho de Manoel Oliveira consisteem — na linha de Agustina — desalmar uma história de amor.

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Percebemos assim que a representação não podia serexpressiva. Existe expressividade onde a alma aflora nacena do corpo. Manoel de Oliveira deixa corpo e vozentregues à opacidade de si próprios — e propõe-nosuma representação desalmada.

Talvez resulte daí que uma das sequências maisinteressantes deste filme seja aquela em que José Augustoentra com o cavalo dentro da sala onde Camilo trabalha.Segundo as convenções a que nos afeiçoámos, um cavalonão é feito para pisar o sobrado de uma sala — e daí odesajustamento de dois espaços, ou, se quiserem, o modocomo o comportamento de José Augusto introduz aviolência do artifício na naturalidade das convenções. Ocinema de Manoel de Oliveira produz exactamente omesmo espanto que nos fica de não podermos deixar deolhar este cavalo no meio de uma sala. De tal modo quenão é Camilo ou José Augusto que, na tela, nos prendema atenção, mas o olhar vazio do animal: essepressentimento de um além da alma na pura evidência deum olhar ausente.

Daí a necessidade da História, e dos cuidados derepresentação que ela impõe, no cinema de Manoel deOliveira. É que a distância histórica em que se situam aspersonagens, e o modo obsessivamente objectivo comoessa historicidade é recomposta, são as mediaçõesnecessárias para alcançarmos de novo uma intimidade deque a homogeneidade do espaço contemporâneo nosparece ter excluído.

E é no fio desta lógica que podemos afirmar que oalvo máximo de Manoel de Oliveira continua,subversivamente, a ser o casamento como instituição. O que,em Francisca, nos é dado a ver por essa espantosa sequência

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de um casamento em que os noivos intervêm porprocuração, e há apenas homens no altar. Tomada à letra,a sequência justifica-se em termos de enredo. Mas nadanos impede de a lermos em sentido mais amplo: como adizer que todo o casamento é criação de uma intimidade semdistância, de uma alma do amor, de uma aproximação semdiferença, de um entendimento sexual onde se extingue oescândalo da diferença entre os sexos. Ou, por outraspalavras, de como o casamento enquanto instituição daspessoas vulgares se apoia num estatutopredominantemente homossexual (ou de indiferenciação).

A questão da alma repõe-se na mais estranhamenteviolenta cena do filme (uma dessas sequências que só umgrande cineasta corre o risco de concretizar): quando JoséAugusto lança a sua interrogação metafísica perante acriada mal cheirosa (como sempre, em Oliveira, o erotismoresulta da oscilação entre o sublime e o obsceno), e, tendona mão o coração, músculo inerte, de Francisca, põe aquestão decisiva: que faz que as pessoas se amem?

Há um cinema que, sentindo a distância, a pretendereduzir. É um cinema das boas intenções. Mas há outrocinema que, ao reduzir a distância, a torna cada vez maissensível. Há quem dê razões para que as pessoas se amem:contabilidade afectiva. Há quem pense que elas se amamtanto mais quanto menos houver razão. O cinema de Manoelde Oliveira está cada vez mais próximo desta segunda via:daí a sua beleza, beleza que não vem, como alguns supõem,de as imagens serem belas, mas do que as torna belas pordentro. Será a isto que se chama filmar a alma desalmada?

Guerra do Mirandumde Fernando Matos Silva

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O propósito é bastante invulgar no âmbito do cinemaportuguês: Fernando Matos Silva pretendeu, com Guerrado Mirandum, fazer uma filme histórico e de acção. Projectoambicioso, dadas as condições de produção da indústriacinematográfica portuguesa. Determinadas debilidadesque a obra revela eram previsíveis, e não deixa de sersimpático que os seus autores tivessem afrontado asdificuldades e corrido deliberadamente riscos inevitáveis.Tanto mais que os postulados estéticos desta obra vãointeiramente contra a corrente daquilo que tende a surgir(em função, sobretudo, de certos reconhecimentosinternacionais) como a imagem dominante do cinemaportuguês. Aqui o cinema fica indiferente a outras práticasartísticas, desenvolve-se no espaço do próprio cinema: modelosde Hollywood são recuperados numa atmosfera deprogressismo popular sem emblemas ideológicos (o povoé o lugar da luta pela liberdade). A isto se acrescenta umtoque rabelaisiano e um ar de carnaval — porque o povoé o lugar da subversão. Este cinema pretende acima de tudoser um cinema saudável.

A situação é ao mesmo tempo simples e algo confusa.No ano de 1762, a povoação de Miranda do Douro éocupada por tropas espanholas que provocam morte edestruição. Certos elementos mais combativos refugiam-se na floresta e desenvolvem uma luta de guerrilhas, como apoio do escrivão, que enuncia as lições da história. Derepente, as tropas espanholas retiram-se e a povoação vê-se a braços com a tarefa de reconstituir casas e lugaresapenas com o seu próprio esforço. O que torna a intrigaum pouco baralhada é a falta de motivação para tudo oque acontece: uns chegam, outros partem, mas as razõeshistóricas não são claras. O que é decepcionante para quem

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pretenda um pleno entendimento dos acontecimentos,mas está coerente com a perspectiva do realizador: asguerras não são entre os exércitos que as fazem, mas, sim,entre os senhores que as mandam fazer e os soldados queas executam. Simplesmente, o que nós vemos são apenasos soldados, profissionais ou improvisados, de um lado ede outro, e os senhores (príncipes, reis e ministros) estãoausentes. O filme é uma história à deriva porque o verdadeiroadversário está oculto, e o resto são combates absurdos.

O empreendimento de Fernando Matos Silva não erafacilmente realizável. Resulta daí que o filme só temexistência intermitentemente. Isto é, há momentos quenos conseguem dar convicção às imagens, há outros emque as imagens são apenas o velho papelão do cinemaportuguês. Era difícil reproduzir os ambientes e os lugaresde um modo inteiramente convincente, era muito difícilobter dos actores uma verosimilhança dialectal, era aindamais difícil fazer consideráveis movimentações de massase construir quadros de luta capazes de impressionaremum espectador que, nestes domínios, já viu muito, e damelhor qualidade. O esforço de toda a equipa é evidente,os resultados teriam forçosamente de ficar aquém do quetodos desejariam. Há, no entanto, certos momentosconseguidos, que são sobretudo os de uma alegria movidapelo ritmo de uma música de fortes raízes populares:danças iniciais, danças e divertimentos na festa decasamento de Luzia e de Miguel (registemos aí alguns belosplanos de Teresa Madruga). Já a acção propriamente ditaou os momentos trágicos (ataque à fortaleza, sequênciada morte de António, o moleiro) ficam longe dacredibilidade desejada.

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Um S. Marginalde José de Sá Caetanoestreado em Lisboa, a 3 de Agosto de 1983

O segundo filme de ficção de Sá Caetano não criamenos perplexidades do que o anterior. Em princípio,existe uma enorme mudança entre as duas obras.Consideradas com um olhar mais atento, verifica-se semdificuldade que estamos perante a mesma ideia de cinema.Porque Sá Caetano — é esse um dos seus inegáveis méritos— tem uma ideia de cinema (que inclui certamente umaconsiderável dose de hostilidade). Mas Um S Marginalpoderá talvez criar até mais perplexidades, e sobretudoresistências, do que As ruínas no interior. Por duas ordens derazões: por um lado, porque os blocos ficcionais têm aquicontornos mais definidos, e, por isso mesmo, surgem-nos mais evidentemente desgarrados numa espécie dehorizonte absurdo; por outro lado, porque o peso dasideias que passam por este filme é bastante maior, emboraremetam para problemáticas a que estamos poucoafeiçoados. De resto, a montagem, extremamentesincopada, acentua os mecanismos de intersecção entre estesdois componentes, retirando quaisquer alicerces para umaleitura com um íntimo de coerência num plano narrativoou expositivo imediato.

Tal como Fernando Lopes, Sá Caetano situa-se naszonas de fronteira entre o documentário e a ficção, mas, aocontrário daquele, não faz disso um jogo calculado degato e de rato com o espectador. Pelo contrário, expõe arede de diferenças e sobreposições dos dois domínios numtom de indiferença que deixa o espectador num redutode retraimento desconfiado. A entrada em Um S Marginal

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implica a coragem de dar o salto para uma obra que, emcertos aspectos, nos é anti-pática (no sentido mais rigorosodo termo). E exige também o arrojo, mais tardecompensado, de pôr de lado certos factores de desagradoque o filme (deliberadamente?) suscita: o cuidado imensode Sá Caetano com determinados elementos da sua obraparece combinar-se com um certo desleixo em relação aoutros (a direcção de actores revela-se frouxa, o diálogonem sempre é trabalhado, etc.).

Num primeiro relance, o filme ocupa-se de problemasecológicos (nesse ponto, um dos seus parentes próximos,neste e noutros aspectos, é Nem pássaro nem peixe de SolveigNordlund). Mas uma tal hipótese de leitura tem o defeitode não ser integradora das várias peripécias que aparecemem cena ou que são mencionadas. Deveremos talvezpensar que a chave do filme (e talvez a sua demasiadadependência de uma chave transforme esta chave numachave de vidro) está noutro lado: Um S Marginal é,fundamentalmente, uma obra sobre o Estado, ou melhor,sobre o exterior do Estado — e, nesse plano, algo de invulgare original na tradição da cultura portuguesa.

Parte-se de uma análise das várias forças produtivas ecoloca-se a intriga no ponto de passagem da energia físicapara a informação. De certo modo, podemos dizer que ofilme, na sua construção interna, opera também umamutação de forças produtivas: a ficção entra num processoentrópico e paralisa-se numa espécie de apatia documental,e daí a sensação que temos de que o filme se organiza (oumelhor: se des-organiza) numa calculada perda de energia.Este ponto — aflorado na entrevista do escritoramericano, cuja intervenção vem cifrar o filme com opróprio S do título do seu livro — é certamente um dos

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mais interessantes (e demarca Sá Caetano daspreocupações estéticas de um Fernando Lopes).

Ora a questão fundamental é a da instalação ao longoda costa portuguesa de uma rede de centraistransformadoras de energia oceânica e solar produzidapor uma empresa multinacional e autorizada pelo Governoportuguês. A personagem interpretada por Sinde Filipecorresponde ao representante português dessamultinacional. Os efeitos dos empreendimentos sãoaterradores: os animais domésticos fogem das cidades evoltam como animais selvagens (uma matilha de cãesronda ameaçadoramente a vivenda do político) e, aomesmo tempo, os répteis, ziguezagueantes (também elessão SS marginais), invadem o meio urbano.

Temos assim que o Estado perde a sua capacidade deintegração e é excedido pela força das multinacionais. Oraé esse excesso que nos conduz para um exterior ao Estadoque serve de modelo aos bandos mais ou menosorganizados (como aquele em que participa o filho dopolítico) que procuram estabelecer uma ordem específicaalheia às directrizes da ordem estatal. Verifica-se assimque, por um lado, a sociedade se vai caracterizar pelaproliferação de máquinas de guerra poliformes e difusas(como diria Deleuze/Guattari): as máquinas ecuménicassegregam manifestações de tribalismo (veja-se a violênciana cena da praia). Por outro lado, a informação surgetambém como máquina de guerra (serviços de escuta evigilância) e converte-se num bloqueio à comunicação (amorte da filha do político não lhe chega a ser comunicada).O campo ocupado pelo filme de Sá Caetano correspondeprecisamente àquele que Deleuze/Guattari, na linha deMac Luhan, traçam: «Não é em termos de independência,

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mas de coexistência e de concorrência, num campo incessantede interacção, que é preciso pensar a exterioridade e ainterioridade, as máquinas de guerra com metamorfosese os aparelhos identitários do Estado, os bandos e osreinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo campocircunscreve a sua interioridade nos Estados, mas descrevea sua exterioridade no que escapa aos Estados e contraeles se ergue» (Mille plateaux, p. 446).

Ora a ordem dos Estados está vinculada à ordem gráfica;daí que o que lhes escapa e contra eles se ergue apareçafigurado por uma letra sinuosa à margem (o S marginal poderáser o grupo tribal que faz julgamentos de automobilistasou a multinacional que ocupa a costa portuguesa, entreoutras coisas, claro). E, repetindo uma menção que nãoestava excluída de As ruínas no interior, Sá Caetano introduzde novo uma referência a uma espécie de instância espiritualprimitiva: é a imagem do santo na casa do político, é o «Myname is Goodman» da história do escritor sublinhada pelaamante do político. Como se, nestas diluídas paisagensde guerra que são cada um dos seus filmes, devesse pairaro que Sena chamaria «uma pequena luz bruxuleante».

1982

Principais filmes: A ilha dos amores de Paulo RochaAna de António Reis e MargaridaMartins CordeiroA estrangeira de João Mário GriloGestos e Fragmentos de Alberto SeixasSantosFim de Estação de Jaime SilvaSem sombra de pecado de José Fonseca eCosta

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Sem sombra de pecadode José Fonseca e Costaestreado em Lisboa, a 11 de Fevereiro de 1983

«Que se siga a evolução do mito ocidental dapaixão, na história da literatura ou na históriados métodos de guerra, é a mesma curva queaparece»

Denis de Rougemont.

Em Sem sombra de pecado, Fonseca e Costa defronta-se,pela primeira vez, com um argumento que não é da suaautoria — o filme parte de uma novela de David Mourão-Ferreira intitulada «E aos costumes disse nada», e incluídano livro Gaivotas em Terra. O trabalho de adaptação éextremamente inteligente, na medida em que Fonseca eCosta é de uma exactidão quase total em todos os pontosem que julga poder seguir o livro, e demarca-se do textosem hesitações em diversos aspectos que permitem irconstruindo uma leitura pessoal da obra adaptada. Há,portanto, um misto de fidelidade extrema e de autonomia,e isto na medida em que todas as diferenças introduzidaspor Fonseca e Costa têm uma coerência não apenasestética, mas ideológica. A começar pelo título. E passando,para apenas referirmos facetas mais salientes, pelasequência inicial e a sequência final — a primeiradesambiguizando até certo ponto as narrativas, de verdadesempre incerta, dessa perturbante Maria da Luz/Lúcia(Victoria Abril); a segunda ao colocar o protagonista,Henrique (Mário Viegas), no lugar do tenente Sanches(Armando Cortês).

O filme começa por ter, como a obra anterior deFonseca e Costa, um notável acabamento de ordem

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técnica. Tal como o Kilas, a estrutura narrativa é de umaenorme eficácia. Mas não é apenas isso. Temos tambémum diálogo que, embora em parte extraído do livro, jamaistem o sabor de literatura (o que é relativamente raro nocinema português). Mas um tal efeito deve-sefundamentalmente a uma segura direcção de actores (nãoapenas direcção, mas escolha certeira dos actores para osrespectivos papéis). Além disso, o filme tem a agilidade, oapuro de gosto, a fluência, a capacidade de enredamentoque já reconhecíamos no Kilas. De certo modo, estamosperante a mesma fórmula, mas aqui desenvolvida commaior maturidade e subtileza. Contudo, o filme não éapenas uma superficial comédia de costumes a que orealizador teria acrescentado algumas pinceladas de carizpolítico. É algo de mais interessante e complexo, que,estando já inscrito no texto de David Mourão-Ferreira,só no filme adquire plena nitidez. Vejamos como.

Em «Aos costumes disse nada», David Mourão-Ferreira pretende sobretudo traçar o retrato de umainquietante Maria da Luz/Lucília, que, embora feia,oscila, com estranho desprendimento, entre a inocênciae a sedução, o medo e a audácia, o estatuto de criança eo estatuto de pega. Como pano de fundo, numa luzdiscretamente irónica, a instituição militar. Questão deluz, portanto.

É neste plano que a leitura de Fonseca e Costa se tornafrancamente aliciante. Não apenas por desenvolver certosaspectos do contexto político da época (sobretudo atravésda criação da personagem do tio de Henrique, interpretadapor João Perry), nem pelo facto de acentuar o carácterhitleriano do capitão Lobo (ao qual se acrescenta umemblemático monóculo) — estamos aqui a um nível de

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uma certa superficialidade de referências. O que maisimporta é o facto de o filme mostrar (sem nunca demonstrar)que a instituição militar (pelo menos, certas concepções dainstituição militar) tende a criar a imagem de Pais fictícios eflácidos, pequenos ídolos de pés de barro (valor, entre outros,dos planos de botas do Tenente Sanches).

Expliquemos melhor. Toda a novela de David Mourão-Ferreira parece viver do regime de concorrência quemetaforicamente se vai estabelecendo entre o quartelcomo sede da instituição militar e o quarto de Maria daLuz/Lucília como posto de comando de operações desedução conduzidas segundo as regras da mesma instituiçãomilitar. Na relação com Henrique, é ela quem decide «tomardoravante o comando das operações». Os telefonemasde Maria da Luz/Lucília mantém-no «num estado depermanente alerta» (daí o valor irónico dos gritos de alertaque ecoam pela noite do quartel). E, por fim: «Não haviadúvida: a Lucília tomara o comando das operações; e nãopassava de um subalterno: competia-me esperar que fossedada a ordem de ataque — e, entretanto, manter em boadisciplina o rebelde pelotão dos meus sentidos. É claroque não deixava de haver vantagens naquelas idas aoArcádia; eram mais do que um estímulo: eram um treino,um exercício. Todos sabem, porém, que não há carreirasde tiro, por mais bem apetrechadas, que possam satisfazero apetite de uma batalha a sério». É aqui que vale a penasublinhar alguns pontos da adaptação de Fonseca e Costa:em particular, aquele efeito de raccord que resulta dapassagem de uma águia hitleriana que está na secretáriado capitão Lobo para uma águia que parece presidir aoencontro num parque de Henrique com Maria da Luz/Lucília. É que essa mesma águia está no texto (embora

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noutro contexto): quando o narrador diz de Maria da Luz/Lucília, na segunda cena de cama, que ela «por vezes,pretendeu ser águia; e que fosse eu o réptil». O que sedepreende do raccord entre os dois planos do filme é queestão aqui duas águias em competição: de um lado, a águia dainstituição militar levada ao seu delírio (a do capitãoLobo), do outro, a águia da perversidade (a de Maria daLuz/Lucília).

É este espaço de concorrência, nunca explicitado, masem cada instante presente, que confere ao filme um tipode humor inteligente e sagaz a que não estamos muitohabituados. Digamos muito claramente que Sem sombra depecado (título que sublinha ironicamente a dimensãoperversa da personagem) é um filme sobre a fragilidade detodos aqueles que pretendem ocupar o lugar do Pai (chefesmilitares, pais despóticos, maridos austeros) perante aforça destrutiva de uma instância de perversão. E é aqui queFonseca e Costa teve uma ideia interessante: a de inventaruma última cena em que Henrique surge no lugar do tenenteSanches — tanto como chefe militar como enquanto pai-fantoche. Em certa medida, a personagem marialva (queaqui, na notável interpretação de Mário Viegas, reaparecenum tom completamente diferente, num registo deperplexidade e desamparo: o protagonista vive num espaçomarcado pelo pai ausente e é ele próprio desfeiteado pelairreverência da irmã mais nova) entra no último patamarda sua degradação (neste aspecto, Sem sombra de pecadocontinua o Kilas).

Escreveu um dia Jacques Lacan, num textointrodutório a O despertar da primavera de Wedekind: «Lafemme comme version du Père ne se figurerait que dePère-version. Comment savoir si, comme le formule

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Robert Graves, le Père lui-même, notre père éternel à tous,n’est que Nom entre autres de la Déesse Blanche, celle àson dire qui se perd dans la nuit des temps, à en être laDifférente, l’Autre à jamais dans sa jouissance, — tellesces formes de l’infini dont nous ne commençonsl’énumération qu’à savoir que c’est elle qui noussuspendra, nous».

Texto que se revela particularmente pertinente emrelação ao filme que analisamos. Porque a concorrênciaentre a águia militar e a águia-fêmea é, no fundo, o jogode competição entre duas versões do Pai, e, por isso, abre oespaço de perversão que Maria da Luz/Lucília faz incidir sobreo quartel e os seus ocupantes. Porque Maria da Luz/Lucília, na própria indecisão do seu nome e da sua figura,se propõe como a Diferente (a Outra para sempre na suafruição). E ainda, como todo o filme revela em imagensconvincentes, Maria da Luz/Lucília é a própria figura daclaridade: «O nome, envolto, no trajo que descrevera — otailleur de linho, branco! —, sugeria uma límpida imagem».

Por outras palavras, a Deusa branca.

A Estrangeirade João Mário Griloestreado em Lisboa, a 4 de Março de 1983

«Vai devagar, não corras, pois onde tens queir é a ti só! Vai devagar, não corras, que omenino do teu eu, recém-nascido eterno, nãote pode seguir!»Juan Ramón Jiménez

Comecemos pelo título: A Estrangeira. O filme de JoãoMário Grilo, que parece sempre cuidadosamente

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premeditado, deixa-nos na indecisão: quem é a estrangeira?A hipótese mais provável diz-nos que se trata da mãe deAndré (Carole Courtoy) — abandonada, perdida,enclausurada numa casa de uma praia portuguesa. Masestrangeira é também Eva (Teresa Madruga), a jovem dacolónia de férias que surge inesperadamente, atravessa avida de um André fatigado (Fernando Rey), e parte, numacerteza inevitável, para os lados do mar: estrangeira de váriosmodos, quer pelo seu estatuto, cuja lógica é estranha atoda a vida de André, quer pelo seu recorte fantasmáticono arrebatamento do passeio nocturno (os arredores doamor — o que importa), quer ainda pela loucura a que elase prende através da história da mãe. Mas estrangeira, e decerto modo estranha, é também a ama (Ana, no filme Mariade Medeiros), a quem a mãe de André confia o filho, numacena inquietante e ambígua, em que um certo halotenebroso rodeia a imposição que ela faz a André de terde escolher alguém exterior a ela própria.

Poderíamos dizer que, na vida de André, a estrangeiraconsiste em qualquer figura de mulher, e que o que o filme nosnarra é precisamente esse percurso das modalidades deestranheza que na mulher se configuram.

Temos aqui duas linhas de articulação espacial: porum lado, a oposição entre a casa (clausura) e o mar(ilimitado). A casa é um espaço de inacção e memória,habitado por gestos repetidos ou obsessivos, reforçadosna sua obsessão pela dominância das cores, o amarelo e ocor-de-laranja (modulações de frustração e do desejo). Omar é o lugar possível donde a estranheza vem: a plenitude ea queda. Elemento de transição, a janela adquire umafunção importante: e um dos aspectos mais curiosos dofilme é o modo como João Mário Grilo conseguiu filmar

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as janelas com o suplemento de uma presença off (mãos,olhar), que pressentimos numa espécie de respiraçãorasurada (veja-se o plano final): alguém está atrás da janela.

Mas há uma segunda dualidade espacial: a que sedistribui entre um espaço da mãe (que engloba a oposiçãoanterior: a ambivalência mar / casa) e o espaço do pai. O pai(Diogo Dória) está quase sempre ausente, mas é-nosapresentado numa espécie de distorção corporal: seja nosplanos dos pés (no genérico, na cena da caça), seja nasequência em que o seu rosto se avoluma e debruça sobrenós numa ameaça latente. O espaço do pai é feito desecura, aridez e, sobretudo, predação: avidez económica,ferocidade animal. Esse o sentido de uma imprevista cenade caça, em paisagem inteiramente diferente (espaço dointerior), sequência que sucede, numa conjugaçãoenigmática, à morte da mãe e ao naufrágio nocturno.

Que o filme se desenrole quase sempre na órbita doespaço materno não deixa de ter consequências em relaçãoao seu ritmo; é a dimensão contemplativa, extática,deambulante, horizontal, algo adormecida, algo embalada,algo amolecida (para o que contribui uma espécie derepresentação flácida da parte de Fernando Rey). Quandoessa apatia parece contagiar o próprio filme, e quase oentorpecer, surge, também definida pela sua capacidade,a personagem da mulher de André (Simone de Oliveira):e aqui há um sobressalto, um relançamento da energia dofilme, embora à custa do próprio equilíbrio pessoal deAndré (daí o copo partido). A personagem composta porSimone de Oliveira vem claramente do lado do mundo do pai, éa figura castradora por excelência, inevitavelmentetraumática para um André inseguro. O que este reivindicaé uma outra forma de acção, que, sem suprimir a energia, lhe

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confira uma dimensão pacificante: e será Eva, nome que emsi mesmo contém um valor inaugural.

Há, portanto, um itinerário muito claro na construçãode A Estrangeira: seguimos uma personagem, André, emdois períodos da sua vida em que se manifesta o seuesforço para se libertar de um espaço materno atravésda construção / invenção / revelação de um espaço-outro (daí a força da paisagem litoral), que, no entanto,deverá ser a re-produção do espaço recusado. E daí atensão em que o filme se move, a sua ambivalênciaconstante. Mas, por outro lado, daí também a não-histerização que caracteriza o filme, numa espécie deobediência à própria passividade da mãe.

Exemplar de tudo isto é, por exemplo, numa dasadmiráveis sequências do sótão (registo musical — parao que contribui a belíssima música de António Victorinode Almeida — da memória condensada nos objectosabandonados), a imagem da fotografia da mãe e do filho,com o vidro da moldura quebrado. Há uma espécie deviolência cicatrizada que, pelas linhas de corte quedilaceram silenciosamente a imagem, suscita um nóindefinível de convulsão sexual. Todo o filme parece ser arepetição disto.

André percorre assim o espaço que vai da mãe a Eva.Como etapas intermediárias, temos Ana, a ama, escolhidapor indicação da mãe (ela será a tua mãe na minhaausência), e que assume, na sequência do funeral, o lugarprivilegiado de quem está na perspectiva da mãe; e temos,com toda a carga negativa, a mulher de André.

Particularmente importante é a cena em que a mãeconta uma história infantil a André, pontuada por beijose abraços. O excesso da reivindicação de André (mais

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beijos!) leva à queda da mãe (doença, morte). Aqui, Andrésalta (este salto tem uma intensidade notável) para osbraços de Ana, proclamando a sua culpa. A passagem estáassegurada: da mãe à ama.

Mas a violência aqui inscrita repete-se noutros lugares:e temos então o naufrágio nocturno e os corpos na praia;e temos também o pote partido no jogo da feira (aqui aimagem dá claramente a ver o vazio), para não falarmos já dosimbolismo demasiado explícito da ave ferida.

A serenidade é reconquistada através de Eva. Tambémela conta histórias, também ela sabe conduzir através danoite, também ela sabe compreender as personagensferidas ou desajeitadas (veja-se a narrativa do modo comoconheceu o seu actual namorado). A relação com Evapassa por uma sexualidade descrispada, camuflada, masapática, mais propensa para os arredores da ternura doque para a crueldade dos encontros: a predominância dahorizontalidade na cena de cama entre Eva e André constituia representação disso (valor do peito como espaço deacolhimento, na medida em que André adquire aqui umafunção maternal para o desamparo da infância de Eva; edispersão dos olhares suspensos de memórias diferentes).

A sequência f inal, no seu alegorismo algoincomodativo, vem dizer-nos como é inevitável o abandonoda casa. Mas a paz provisoriamente reencontrada no enredocom Eva não pôde conduzir a uma identificação entre oAndré-criança e o André-adulto. Um olhar ausente daperspectiva da janela institui o vértice de um dolorosotriângulo. É para esse olhar que um último apelo se dirige.

O segundo filme de João Mário Grilo (o primeiro,Maria, é uma experiência interessante, mas obviamentelimitada nas suas condições de produção) tem alguns

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defeitos fáceis de reconhecer. Em particular, dois, comalgumas consequências laterais: em primeiro lugar, umexcesso de personagens que tendem a desconcentrar o núcleofantasmático da obra; em segundo lugar, e talvez até comoconsequência disto, um trabalho deficiente na direcção de actores.Há como que uma desproporção entre o esforço investidono filme enquanto concepção (sente-se que o filme foicuidadosamente pensado-em-imagens) e um muito menorempenho em atenuar as inevitáveis resistências de ummaterial (coisas e pessoas) que é, por vezes, relutante àconcepção prévia. Contudo, sente-se, nas qualidades e nosdefeitos, que o cinema português ganhou aqui novasdimensões.

Anade António Reis e Margarida Martins Cordeiro

Poder-se-á pensar que Ana repete Trás-os-Montes.Porque algumas das características do cinema de AntónioReis e Margarida Martins Cordeiro serão facilmentereconhecidas neste segundo filme. E, sobretudo, porqueo mesmo isolamento altaneiro desta obra em relação atodo o resto do cinema se volta a verificar. De facto, Trás-os-Montes e Ana constituem uma espécie de território solitáriono interior do cinema contemporâneo. E assumem essacondição num gesto enredado de modéstia e de orgulho.

Ana é um filme mais desprotegido do que Trás-os-Montes, e, ao mesmo tempo, mais ambicioso. Em Trás-os-Montes, tínhamos ainda um suporte referencial (umaprovíncia portuguesa) que poderia justificar a obrarealizada. Com Ana, o filme deixa aparentemente de terobjecto. A metafísica, que anteriormente passava em

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contrabando, é agora o campo único de exploração.Partindo de um movimento compartilhado para ir àdescoberta do homem português, António Reis eMargarida Martins Cordeiro desembocam numa espéciede música que tem por único intuito cantar o homem emgeral, a sua relação com a terra, a sua relação com onascimento e a morte.

Há aqui uma história, mas o espectador, suspenso daforça íntima de cada sequência, dificilmente consegueentrever qualquer trama narrativa. Pelo contrário: a únicaforma de entrar neste filme é olhar cada imagem como seà transparência nela se viesse inscrever a fórmulaexplicativa do mistério das coisas. A violência deste cinemaresulta de uma tal tensão: há um enigma que se tornoutão concreto, tão nítido, tão visível, tão habitável, que asua decifração não poderá ser adiada. E, no entanto, ofilme é todo ele uma interminável mudez. A únicasequência em que as personagens falam abundantemente,dissertando sobre as formas de barcos antigos, é, na suaerudição injustificável, no seu discurso sem objectivo, umaoutra forma de silêncio.

Um crítico (João Lopes) privilegiou o título paraencontrar nele uma chave: de facto, enquanto pessoa, Ana,a mãe Ana, a avó Ana, Ana enquanto saber, Ana enquantoternura discreta, Ana enquanto dureza assumida, Anaabstracta e misteriosa como o olhar de um animal,constitui o eixo do filme. Mas o que importa acima detudo é o facto de o significante Ana parecer dizer, na suaconcisão, a harmonia inerente a todas as coisas, o equilíbrioentre o princípio e o fim, a vida como travessia entre omesmo e o mesmo, a sageza imemorial do barco.

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Alguns dirão que estamos perante um filme poético. Masa poesia é aqui ainda uma metáfora. Ana é a poesia — aimagem pesada, maciça, telúrica, da poesia. Mas a poesiaé Ana. Esta reversibilidade é que constitui o pontofundamental. Não há cifra a encontrar. Não há mistérioa dissipar. Há apenas a evidência de que tudo está em tudo,de que a poesia está em Ana, de que Ana está na poesia,de que Bach está num pinheiro, de que o mercúrio ou aluz estão em Rilke — e, por conseguinte, qualquertentativa de explicação, qualquer hermenêutica redutora,qualquer chave dos sonhos, qualquer psicanálise doespaço, são ainda mutilações de uma realidade que apenasse sustenta no canto do seu interminável balanceamento:cada plano deste filme é apenas o eixo provisório dessareversibilidade sem fim.

Isto poderá contribuir para compreender o modo defilmar de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. Elespartem da convicção de que todos os planos de Ana devemrepetir a secreta harmonia que constitui o transparentetecido da vida. Daí que os realizadores procurem sempredar forma a uma dialéctica interior que é feita de jogos decompensações entre as várias formas presentes nas imagens,entre as várias cores, entre os vários sons, entre os váriosmovimentos, entre as várias zonas de fechamento e osvários lugares de abertura em que cada imagem se articulacom as outras imagens. O filme no seu todo éfundamentalmente a expansão desta dialéctica interior. Mas,na medida em que vive sempre nesta interioridade, o filme,continuamente debruçado sobre as mais elementares eóbvias realidades materiais, acaba por se erguer face a nóscomo uma entidade abstracta, uma visão metafísica, umuniverso outro, tão puro quanto rarefeito. Há nestas

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imagens de um quotidiano humilde uma aridez implacável.É daí que sopra o orgulho destas terras distantes. Etambém a desmesura deste cinema definitivamenteabsorto em si mesmo.

Ana significa harmonia, mas também cisão, distânciainsuturável do mesmo ao mesmo. E, por isso, necessidadede transporte para cobrir todas as distâncias. A conversasobre barcas tem essa função: abrir um fundo metafórico semcontornos precisos — na medida em que, utilizando-se ametáfora do transporte, se deve ter em conta que otransporte é a essência da própria metáfora. Ana é, porum lado, o cosmos. Mas é, ao mesmo tempo (e nestasimultaneidade reside a sua força), o caos. A origem não éapenas harmonia, mas vento demencial. O sono não éapenas repouso, mas queda e confusão. O leite converte-se em sangue (são os dois pólos que sustentam o filme).Estamos, como diria Rilke, perante «o círculo da evoluçãototal» — o que é indescritível: «Mas isto: conter a morte,/ a morte toda, ainda antes da vida, tão / docemente contê-la e não ser mau, / isto é indescritível». Ou, se preferirem,isto é Ana.

A ilha dos amoresde Paulo Rocha

A ilha dos amores começa por ser a biografia do escritorWenceslau de Moraes, que foi para o Oriente e acaboupor morrer, em circunstâncias algo misteriosas, no Japão.O filme é uma co-produção luso-japonesa e correspondeà própria obsessão do autor pelo mundo oriental. Daítalvez que tenha sido um projecto elaborado ao longo de

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mais de dez anos, numa espécie de obstinação apaixonadaque só as grandes obras justificam.

Salientamos, em segundo lugar, que a figura deWenceslau de Moraes é incarnada pelo actor Luís MiguelCintra num dos mais belos trabalhos de interpretação detodo o cinema contemporâneo. Porque Luís Miguel Cintranão se limitou a interpretar, deixou-se alterar, vai-setransformando aos olhos do público, na idade, nos gestose na voz, mas, sobretudo, no que poderíamos designarcomo o rosto interior que uma certa impassibilidade vaitraçando. Quer dizer que o actor acabou por ser envolvidono movimento passional que parece mover o autor.

Se o comentário do filme deve começar por assinalarestes dois gestos desmesurados do autor e do actor, a razão ésimples: eles dão-nos a medida do que neste filme estáem jogo. Por outras palavras: situam-nos na gravidade doempreendimento que diversas invocações e rituais vãoinstituindo. Porque A ilha dos amores não é uma biografia(digamos mesmo que o estatuto de escritor de Wenceslaude Moraes se esbate inteiramente), nem uma análise deum processo de aculturação, com todo o folclore que lheé inerente (a dimensão oriental nunca é exibida, mas éalgo para onde deslizamos, algo que nos atrai), nemmesmo um retrato de um Portugal crepuscular que apenasencontra comprazimento em esforçados exercícios defrustração — embora tudo isto esteja lá, é claro. A ilha dosamores é fundamentalmente uma obra em que o que nosatrai se retrai, abrindo clareiras que nenhuma nomeaçãoconsegue designar. O Oriente é aqui a figura dessaatracção/retraimento, que vai desenhando um itineráriode mortes, que são, por um lado, morte dos objectosamados, mas, por outro lado, e acima de tudo, morte do

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sujeito através dessas mortes, e, por isso, ele acaba poratravessar, incólume, isento, inacessível, a sua própriamorte. O que há de admirável neste filme é o modo comoele produz a força da alteridade que nos implica nesse espaçode atracção/retraimento. Porque essa alteridade, se começapor ser a alteridade do Oriente que todo o Oriente nos é,faz desse Oriente uma metáfora de todas as alteridades possíveis:é por isso que ele exige a alteração do filme ao longo dostreze anos em que ele foi existindo na mente do seu autor,é por isso que ele impôs ao actor Luís Miguel Cintra aalteração física no seu trabalho de representação, é por issoque o próprio filme se vai alterando sucessivamente emfunção das várias artes que o atraem (a pintura, o teatro, adança, a ópera, a música, a literatura). A alteridade é aquio espaço do outro em que o sujeito cai fora de si: a escrita, oamor, o Oriente, a morte. O que sentimos de grave nestaobra resulta do jogo ilimitado desta metaforicidade.

Consideremos algumas cenas de A ilha dos amores:— a cena de amor entre Wenceslau e Isabel (Clara

Joana), em montagem alternada, com as vociferações dopintor inválido, marido de Isabel, que, à janela, declama asua cólera contra a decadência da Pátria; a sequênciaorganiza-se em torno da duplicidade das palavras do pintor(Jorge Silva Melo) em relação a Isabel e à Pátria;

— a sequência do banho de Oyoné e Wenceslau(«alguém pediu que lhe conservasse a vida e eu não satisfizo seu pedido; apertou-me as mãos num esforço derradeiro,e deixou-se morrer»!), toda ela vista através de um espelhoredondo;

— em Kobe, Oyoné, doente, está deitada, e Isabel-Vénus intervém na cena numa constante presença/ausência (mas Ko-Haru dialoga com ela);

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— a cena da morte de Ko-Haru desenrola-se toda numquarto de hospital inventado no interior do cenário doMuseu Militar, com vitrinas e redomas servindo de mesas.

Ora a relação que se estabelece entre mulher/pátria,cena no espelho/exterior ao espelho, Oyoné doente/Isabel-Vénus, morte de Ko-Haru/Museu Militar, paradarmos apenas alguns exemplos, abre em cada sequênciauma linha de fuga que funciona como o pólo de alteridade emque a imagem se vai alterando. Daí que o movimento de paixãoque arrebata todo o filme se re-produza ao nível maisreduzido de cada sequência.

Mas o essencial é a utopia que se configura no pontode convergência destas sucessivas linhas de fuga: a ilhados amores, precisamente, ou, se quiserem, essa imagem deinadiável harmonia que percorre todo o filme: o Oriente éuma lenta aprendizagem de conviver com os mortos, éesse deslizar sem ruído para o nada e «no chão sumir-secomo faz um verme» (eis a lição da morte de Wenceslau),mas tudo ensinado em dança e pacífica alegria: «se todossão loucos, quem não dança é que perde».

A ilha dos amores — será necessário dizê-lo? parece quesim… — é uma das grandes obras do cinema português.Poderíamos tentar demonstrá-lo numa contabilidadeelemento a elemento: e teríamos então de falar daespantosa inteligência do texto de Luíza Neto Jorge, e darevelação da escrita de Wenceslau de Moraes, incorporadacomo texto do filme, e não como texto existindoexteriormente ao filme; ou do grande apuro de quase todaa interpretação, com particular menção para o trabalhode Luís Miguel Cintra, e ainda o dos intérpretes japoneses,o de Jorge Silva Melo, e, em menor grau, o de Clara Joana(talvez um dos pontos mais frágeis do filme); ou a invulgar

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beleza dos cenários; ou a complexidade interminável deuma banda sonora que constitui uma verdadeira partiturainterior à imagem; ou a qualidade surpreendente dafotografia, sobretudo na parte japonesa. Mas tudo isto,que é uma soma, poderá deixar na sombra outra coisa,que é a tal desmesura do projecto de Paulo Rocha, que fazde A ilha dos amores uma dessas experiências apaixonantesem que tudo se suspende subitamente porque tudo pareceestar em causa.

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III /PARA NÃO CONCLUIR

O moderno cinema português surge com a geraçãode 60 (em parte constituída pelo chamado «grupo doVává»). A ela pertencem nomes de orientação tão diversacomo os de Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos,Alberto Seixas Santos, João César Monteiro, António daCunha Telles, Paulo Rocha, Faria de Almeida, Ernesto deSousa, Manuel Costa e Silva, Fonseca e Costa, Sá Caetanoou António de Macedo. Como é evidente, Manoel deOliveira, anterior e posterior a esta geração, tem um papeldeterminante ao cruzar-se com ela (mas o inverso tambémestá certo: na medida em que se trata de um conjunto decineastas e críticos, a geração de 60 tem uma influênciadecisiva no trabalho de Manoel de Oliveira).

As principais figuras desta geração estudaram cinemaem Paris ou Londres e voltaram com o desígnio de inventarum novo cinema português. Com Ernesto de Sousa e DomRoberto, pós-se em prática uma forma original de produzirum filme. Porque Ernesto de Sousa, através do cineclubee da revista Imagem, lançou a ideia de uma Cooperativa doEspectador capaz de suportar a produção de Dom Roberto.Verifica-se neste caso como os cineclubes e a imprensativeram uma função muito importante na criação de

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diferentes condições de trabalho. Desde 1955 que osCineclubes constituíam uma frente relativamentehomogénea de intervenção e de luta (simultaneamentecultural e política). Certas revistas, como a Imagem, vãodesenvolvendo o espaço de uma sensibilidade maisexigente em relação ao cinema. Por outro lado, o trabalhoque se começou a desenvolver em torno da Televisão(onde participaram, entre outros, Fernando Lopes e ArturRamos), e a partir de projectos de Cinema Educativo,permite o adestramento de novos cineastas. Também oincremento da actividade publicitária contribuiu para criarocasiões de trabalho no campo do cinema.

A primeira fase do moderno cinema português estáligada ao regresso de António da Cunha Telles e à criaçãodas «produções Cunha Telles», iniciativa arrojada queesteve na base de filmes de Paulo Rocha, António deMacedo, Fernando Lopes, Carlos Vilardebó ou ManuelGuimarães. Contudo, Cunha Telles, enfrentandodificuldades crescentes, acabou por desistir do seu papelde produtor. No final dos anos 60, o Cineclube do Portorealizou uma Semana do Novo Cinema Português, o queserviu de pretexto para uma reunião da esmagadoramaioria dos profissionais de cinema em que se discutiu aconjuntura e as perspectivas que se vislumbravam para asua transformação. Desses debates saiu um texto, que teveo título de «O ofício de cinema em Portugal», que permitiráposteriormente solicitar junto da Fundação CalousteGulbenkian novas modalidades de apoio à produçãonacional. Entramos assim no que constitui a segunda fasedo nosso moderno cinema: ela está ligada à política culturalda Fundação Calouste Gulbenkian, à publicação da Lei7/71, e correspondente criação do Instituto Português

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de Cinema, ao aparecimento de novas fontes de receitaprovenientes de um adicional sobre o preço dos bilhetes,à formação do Centro Português de Cinema a quepertencem grande número de cineastas, e ao aparecimentoda Escola Piloto de Cinema do Conservatório Nacionalsob a responsabilidade de Seixas Santos.

Uma terceira fase corresponde ao conjunto dasalterações propiciadas pelos acontecimentos de 25 de Abrilde 1974: trata-se de um período extremamente confuso ecomplexo, onde se chocam e digladiam concepções muitodiferentes quanto à actividade cultural e ao papel docinema na sociedade. Em dada altura, defrontava-se umaconcepção estatizada de cinema, em torno de um planode unidades de produção, e uma concepção não-estataldo cinema, organizada a partir de Cooperativas (note-seque não é possível caracterizar os dois campos em termossimplistas de «esquerda» e «direita»). Destes confrontos,que chegaram a atingir proporções dramáticas, resultouuma enorme instabilidade dos centros de decisão, cujasconsequências não foram ainda inteiramente debeladas.Ao mesmo tempo, instalava-se a ideia de um cinemamilitante, capaz de intervir em campanhas deesclarecimento e de doutrinação política. A ela estavaassociada a obsessão de captar a verdade imediata dosacontecimentos, de recolher a fala durante longos anosrecalcada do povo português, de promover movimentosde alfabetização fílmica, de descobrir a realidade esquecidado mundo rural e a riqueza etnográfica da nossa cultura(trabalha-se num projecto colectivo de Museu da Imageme do Som, onde surgem obras de António Reis, Costa eSilva, Fernando Lopes, Noémia Delgado, etc.). Como éóbvio, empreendimentos deste tipo apostavam na criação

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de estruturas alternativas de distribuição e exibição. Poucoa pouco, a realidade política e a resistência das estruturastradicionais reconduziram os trabalhadores de cinema aprojectos mais tradicionais e adequados às circunstânciasexistentes. A participação progressiva em Festivaisinternacionais, e o reconhecimento, através de críticas econsagrações diversas, da originalidade e qualidade donosso cinema, estão na origem da reconversão de certosprojectos de índole mais «revolucionária» em iniciativasmais acentuadamente «esteticistas» (sem que haja nestestermos qualquer conotação positiva ou negativa), e dosurgimento de um clima mais estimulante e acolhedor.Em certa medida, o cinema português passa a ser objectode atenção cultural, e não apenas de benevolência irónica.Os encontros que anualmente se têm verificado noâmbito do Festival de Cinema da Figueira da Fozcontribuíram para desenvolver um espaço de visãocrítica, e de debate com o público, de importânciaconsiderável para a formação de uma consciência culturalno domínio do cinema.

Podemos dizer que, no termo deste processo, se criouuma imagem do cinema português com inegável cotaçãointernacional e evidente receptividade interna de certossectores do público (enquanto outros, como é evidenteno caso de Manoel de Oliveira, são cada vez maispressionados pelo peso das referências estrangeiras, queacabam por aceitar de bom ou mau grado). Essa imagem,que em determinada altura se poderá tornar limitativa, emesmo incomodativa, aponta para um cinema que, emtermos muito superficiais, se poderá caracterizar como«intelectual» e «literário».

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Num livro intitulado De la littérature au cinéma (A. Colin,1970), Marie-Claire Ropars-Wuilleumier coloca oproblema do seguinte modo: «Um filme pode ser literáriopelo seu tema, o seu público, o seu realizador, o que temuma significação mais sociológica do que propriamenteestética; pode também ser literário pelo que vai buscar aromances ou peças, eternas traições de uma hipoteca aque se deverá pôr termo; pode também ser literário pelainjecção forçada de processos literários nas componentesda expressão — fala ou mesmo imagem.» E a autoraacrescenta algo de particularmente importante: «Mas se‘literário’ significa então, e com razão, anticinematográfico,não resulta daí que a recíproca seja verdadeira, e que ocinema esteja eternamente condenado a ‘ser cinema’.» ERopars-Wuilleumier concluía deste modo: «Confessoclaramente que o meu interesse vai menos para a tradiçãodo cinema mudo ou do cinema americano do que para astentativas de arrancar o cinema ao determinismo das suasorigens puramente visuais para promover nele a ordemda escrita.» (pág. 7)

Neste sentido preciso, podemos dizer que o cinemaportuguês, a partir de Manoel de Oliveira, e também deum filme como Uma abelha uma chuva de Fernando Lopes(1971), é de facto um cinema literário: trata-se de encontraruma ordem de escrita fílmica equivalente a uma ordem de escritaliterária. Algures, na sua Teoria Estética, Adorno formula ascoisas em termos mais nítidos: «as obras de arte só falamna medida em que são um texto escrito». O interesse, orisco, a aridez, a coragem, a força, a inovação, do actualcinema português resultam, em grande parte, do modointransigente como se tem proposto como escrita. Por isso,fala. Mesmo que essa fala possa não ser imediatamente

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reconhecida — é esse o preço da não-contemporaneidadeque define o trabalho da arte.

E talvez aí esteja a chave para o enigma da atenção queos nossos filmes têm despertado nos meios culturaisestrangeiros. Numa época em que o cinema que se vaifazendo por esse mundo fora tende, como diz PascalBonitzer, a abandonar «a possibilidade metafórica verticalda montagem» para ficar na «metonímica narrativa, navisão óptica em que cem elefantes valem cem elefantes»,e em que se verifica «uma redução sistemática, segundo ametonímia narrativa, dos poderes do grande plano e damontagem», levando o cinema a «estabilizar-se em planomédio» (Pascal Bonitzer, Le Champ aveugle, Gallimard, 1981,pp. 32-33), vemos que o cinema português, até porquenão tem cem elefantes disponíveis, vai surgir como umaforma de resistência à normalização metonímico-televisiva dalinguagem fílmica. De certo modo, o cinema português é omodo inteligente como alguns cineastas souberamcontornar a impossibilidade de se fazer um cinema normal entrenós. Mas essa impossibilidade do cinema só aparentementeconstituiu uma fraqueza — na medida em que alguns, osmais sagazes, a souberam transformar em força. Temosassim um cinema impossível que se desloca incessantementepara o espaço de outra coisa — e, neste devir, se equilibra,e precipita, face ao mais oculto de si mesmo.

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ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES

1. Dom Roberto de Ernesto de Sousa2. Mudar de vida de Paulo Rocha3. Belarmino de Fernando Lopes4. Domingo à tarde de António de Macedo5. O Cerco de Cunha Telles6. O Passado e o presente de Manoel de Oliveira7. O Recado de Fonseca e Costa8. Uma abelha na chuva de Fernando Lopes9. Perdido por cem… de António-Pedro Vasconcelos

10. A promessa de António de Macedo11. A Sagrada Família de João César Monteiro12. Meus Amigos de Cunha Telles13. Brandos Costumes de Seixas Santos14. Benilde ou a virgem-mãe de Manoel de Oliveira15. Os demónios de Alcácer-Kibir de Fonseca e Costa16. Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Martins Cordeiro17. As ruínas no interior de Sá Caetano18. Nós por cá todos bem de Fernando Lopes19. Veredas de João César Monteiro20. A Santa Aliança de Eduardo Geada21. A fuga de Luís Filipe Rocha22. Nem pássaro nem peixe de Solveig Nordlund23. A guerra do Mirandum de Fernando Matos Silva24. Kilas, o mau da fita de Fonseca e Costa25. Cerromaior de Luís Filipe Rocha26. Oxalá! de António-Pedro Vasconcelos27. Bom povo português de Rui Simões

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28. Passagem ou a meio caminho de Jorge Silva29. Silvestre de João César Monteiro30. Francisca de Manoel de Oliveira31. A guerra do Mirandum de Fernando Matos Silva32. Um S Marginal de Sá Caetano33. Ana de António Reis e Margarida Martins Cordeiro34. A ilha dos amores de Paulo Rocha

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ÍNDICE DOS REALIZADORES ESTUDADOS

ANTÓNIO, Lauro....................................................................... 112-115BOTELHO, João............................................................................ 124-128CAETANO, José de Sá..................................................... 72-75, 134-138CORDEIRO, Margarida Martins.................................... 69-72, 147-150COSTA, José Fonseca e........................ 33-36, 66-69, 99-102, 138-142GEADA, Eduardo............................................................... 85-87GRILO, João Mário......................................................... 142-147LOPES, Fernando....................................... 20-21, 36-40, 76-79MACEDO, António de.......................................... 22-24, 44-46MELO, Jorge Silva........................................................ 117-120MONTEIRO, João César....................... 49-51, 79-81, 121-123NORDLUND, Solveig ...................................................... 90-93OLIVEIRA, Manuel de.............. 29-33, 59-62, 93-98, 128-132REIS, António........................................... 62-65, 69-72, 147-150ROCHA, Luís Filipe........................................... 87-89, 102-107ROCHA, Paulo....................................... 17-19, 25-26, 150-153SANTOS, Alberto Seixas..................................................... 55-59SILVA, Fernando Matos............................................... 46-49, 132-134SIMÕES, Rui..................................................................... 115-117SOUSA, Ernesto de............................................................ 15-17TELLES, António da Cunha................................ 27-29, 52-55TELES, Luís Galvão......................................................... 81-85VASCONCELLOS, António-Pedro................. 40-44, 107-112