mohanty - mulheres do terceiro mundo e a política feminista 12.06

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1 Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista Sob olhos ocidentais Estudos feministas e discursos coloniais* Chandra Talpade Mohanty Qualquer discussão sobre a construção política e intelectual dos “feminismos de terceiro mundo” devem se voltar a dois projetos simultâneos: a crítica interna dos feminismos hegemônicos “ocidentais”, e a formulação de preocupações e estratégias feministas autônomas, fundamentadas geograficamente, historicamente e culturalmente. O primeiro projeto é de desconstrução e de desmantelamento; o segundo, de criação e construção. Apesar de esses dois projetos parecerem contraditórios, um agindo positivamente e o outro negativamente, a menos que ambos sejam conduzidos simultaneamente, os feminismos de “terceiro mundo” correm o risco de marginalização e de guetização, em relação aos principais discursos (tanto de direita e quanto de esquerda) feministas ocidentais. É ao primeiro projeto que eu me dirijo. O que desejo analisar é, especificamente, a produção da “mulher de terceiro mundo” como um sujeito singular e monolítico em alguns textos (ocidentais) recentes. A definição de colonização que pretendo invocar aqui é aquela predominantemente discursiva, aquela cujo foco é um certo modo de apropriação e de codificação de “estudos” e “conhecimento” sobre mulheres do terceiro mundo por meio de categorias analíticas utilizadas em textos específicos, que tomam como referências de interesses feministas, aqueles articulados nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Se uma das tarefas ao formular e entender o locus dos “feminismos de terceiro mundo” é delinear o modo pelo qual ele resiste e trabalha contra o que eu estou me referindo como “discurso feminista ocidental”, uma análise da construção discursiva das “mulheres do terceiro mundo” no feminismo ocidental é um primeiro passo importante. Claramente, o discurso feminista ocidental e a prática política, não são nem singulares nem homogêneos em seus objetivos, interesses ou análises. De qualquer modo, é possível traçar uma coerência ou efeitos resultantes da suposição primária de “ocidente” (com todas suas complexidades e contradições) como referência primordial à teoria e a prática. De modo algum quando me refiro ao “feminismo ocidental”, pretendo dizer que se trata de um bloco monolítico. Ao contrário, pretendo chamar atenção para efeitos similares de várias estratégias textuais usadas por escritores que classificam os Outros como não

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Texto da escritora feminista indiana Chandra Mohanty, intitulado Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista

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Page 1: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

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Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista Sob olhos ocidentais Estudos feministas e discursos coloniais*

Chandra Talpade Mohanty Qualquer discussão sobre a construção política e intelectual dos “feminismos de

terceiro mundo” devem se voltar a dois projetos simultâneos: a crítica interna dos

feminismos hegemônicos “ocidentais”, e a formulação de preocupações e estratégias

feministas autônomas, fundamentadas geograficamente, historicamente e culturalmente. O

primeiro projeto é de desconstrução e de desmantelamento; o segundo, de criação e

construção. Apesar de esses dois projetos parecerem contraditórios, um agindo

positivamente e o outro negativamente, a menos que ambos sejam conduzidos

simultaneamente, os feminismos de “terceiro mundo” correm o risco de marginalização e

de guetização, em relação aos principais discursos (tanto de direita e quanto de esquerda)

feministas ocidentais.

É ao primeiro projeto que eu me dirijo. O que desejo analisar é, especificamente, a

produção da “mulher de terceiro mundo” como um sujeito singular e monolítico em alguns

textos (ocidentais) recentes. A definição de colonização que pretendo invocar aqui é aquela

predominantemente discursiva, aquela cujo foco é um certo modo de apropriação e de

codificação de “estudos” e “conhecimento” sobre mulheres do terceiro mundo por meio

de categorias analíticas utilizadas em textos específicos, que tomam como referências de

interesses feministas, aqueles articulados nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Se

uma das tarefas ao formular e entender o locus dos “feminismos de terceiro mundo” é

delinear o modo pelo qual ele resiste e trabalha contra o que eu estou me referindo como

“discurso feminista ocidental”, uma análise da construção discursiva das “mulheres do

terceiro mundo” no feminismo ocidental é um primeiro passo importante.

Claramente, o discurso feminista ocidental e a prática política, não são nem

singulares nem homogêneos em seus objetivos, interesses ou análises. De qualquer modo, é

possível traçar uma coerência ou efeitos resultantes da suposição primária de “ocidente”

(com todas suas complexidades e contradições) como referência primordial à teoria e a

prática. De modo algum quando me refiro ao “feminismo ocidental”, pretendo dizer que se

trata de um bloco monolítico. Ao contrário, pretendo chamar atenção para efeitos similares

de várias estratégias textuais usadas por escritores que classificam os Outros como não

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ocidentais, e consequentemente, classificam-se a si mesmos (implicitamente) como

ocidentais. É nesse sentido que uso feminismo ocidental. Argumentos similares podem ser

construídos em termos de classe média urbana africana, acadêmicos asiáticos produzindo

estudos sobre suas irmãs da zona rural ou da classe trabalhadora que assumem sua própria

cultura de classe média como norma, e classificam histórias e culturas da classe

trabalhadora como a dos Outros. Assim, mesmo que esse ensaio se centre,

especificamente, no que me refiro como o discurso “feminista ocidental” sobre mulheres

do terceiro mundo, também critico os acadêmicos do terceiro mundo quando escrevem

sobre suas próprias culturas utilizando estratégias analíticas idênticas.

Deveria haver ao menos algum significado político no fato de o termo colonização

ter descrito uma variedade de fenômenos nos textos feministas recentes, tanto de forma

geral como os de esquerda. Do seu valor analítico como categoria de troca econômica

exploratória, tanto no marxismo tradicional quanto no contemporâneo (cf.,

particularmente, teóricos contemporâneos tais como Baran 1962, Amin 1977 e Gunder-

Frank 1967) ao seu uso por mulheres feministas de cor nos Estados Unidos para descrever

a apropriação de suas experiências e esforços por movimentos hegemônicos de mulheres

brancas (cf., especialmente, Moraga e Anzaldúa 1983, Smith 1983, Joseph e Lewis 1981 e

Moraga 1984), colonização tem sido usada para caracterizar tudo, a partir das hierarquias

políticas e econômicas mais evidentes até a produção de um discurso cultural particular

sobre o que é chamado de “terceiro mundo”.1 Seja seu uso como construção explicativa

sofisticada ou problemática, colonização quase invariavelmente implica relação de

dominação estrutural e supressão – quase sempre violenta – da heterogeneidade do(s)

assunto(s) em questão.

Minha preocupação com tais textos tem origem em meu próprio envolvimento e

investimento em debates contemporâneos em teoria feminista, e a necessidade política

urgente (especialmente na era Reagan/Bush) de formar alianças estratégicas que

ultrapassem a questão de classe, raça e as fronteiras nacionais. Os princípios analíticos

discutidos abaixo distorcem as práticas políticas do feminismo ocidental, e limitam a

possibilidade de alianças entre feministas ocidentais (geralmente brancas), feministas da

classe trabalhadora e feministas de cor ao redor do mundo. Essas limitações são evidentes

na construção das prioridades (implicitamente consensuais) de assuntos em torno dos quais

aparentemente se espera que todas as mulheres se organizem. A conexão necessária e

integral entre estudos feministas, prática política feminista e organização determina o

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significado e o status dos escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo;

para estudos feministas, como para a maior parte dos outros tipos de estudo, não se trata

apenas da mera produção de conhecimento sobre um determinado assunto. Trata-se de

algo diretamente político e de uma prática discursiva que estão proposital e

ideologicamente imbricados no assunto. Eles (os estudos) são mais bem vistos como um

modo de intervenção em discursos hegemônicos particulares (por exemplo, antropologia

tradicional, sociologia, crítica literária, etc.); são uma prática política que enfrenta e resiste o

imperativo totalizador de corpos de conhecimento de longa data “legítimos” e

“científicos”. Assim, as práticas acadêmicas feministas (não importa se leitura, escrita,

crítica ou textualmente) estão inscritas em relações de poder – relações que enfrentam,

resistem, ou até mesmo, talvez, implicitamente suportem. É claro que também podem

existir estudos apolíticos.

A relação entre “Mulher” – uma combinação cultural e ideológica que os Outros

constroem através de discursos representacionais diversos (científicos, literários, jurídicos,

linguísticos, cinematográficos, etc.) e “mulheres” – reais, sujeitos materiais de suas histórias

coletivas – é uma das questões centrais em relação à qual a prática dos estudos feministas se

volta. Essa conexão entre mulheres na condição de sujeitos históricos e a representação da

Mulher produzida por discursos hegemônicos não é uma relação de identidade direta, ou

uma relação de correspondência ou de simples implicação2. É uma relação arbitrária

estabelecida por culturas particulares. Eu gostaria de sugerir que os textos feministas que eu

analiso aqui colonizaram discursivamente as heterogeneidades históricas e materiais das

vidas das mulheres do terceiro mundo, produzindo/representando, desse modo, uma

combinação singular “mulher do terceiro mundo” – uma imagem que parece

arbitrariamente construída, mas que não obstante carrega a autorização do discurso

humanista ocidental3.

Eu argumento que, as hipóteses de privilégio e universalidade etnocêntrica, por um

lado, e a autoconsciência inadequada sobre o efeito dos estudos ocidentais do “terceiro

mundo” no contexto de um sistema mundial dominado pelo Oeste, por outro,

caracterizam uma extensão considerável do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do

terceiro mundo. Uma análise da “diferença sexual” na forma de uma noção monolítica de

patriarcado ou dominação masculina culturalmente transversal e singular leva à construção

de uma noção semelhantemente redutora e homogênea do que eu chamo de “diferença do

terceiro mundo” – aquela noção estável, ahistórica que aparentemente oprime a maior

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parte, se não todas, as mulheres nesses países. E é na produção dessa “diferença de terceiro

mundo” que os feminismos ocidentais se apropriam das complexidades constitutivas que

caracterizam as vidas das mulheres nesses países e colonizam-nas. É nesse processo de

homogeneização e sistematização da opressão das mulheres no terceiro mundo que o

poder é exercido em grande parte dos discursos feministas ocidentais, e esse poder precisa

ser definido e nomeado.

No contexto da posição hegemônica atual do Ocidente, do que Anouar Abdel-

Malek (1981) chama um esforço para “controle sobre a orientação, regulação e decisão do

processo do desenvolvimento do mundo com base no monopólio dos setores avançados

em conhecimento científico e criatividade ideal”, os estudos feministas sobre o terceiro

mundo devem ser vistos e examinados precisamente em termos de sua inscrição nessas

relações particulares de poder e esforço. Deveria ser evidente que não há nenhuma

estrutura patriarcal que esses estudos tentem enfrentar e resistir – ao menos que alguém

postule uma conspiração masculina ou uma estrutura de poder monolítica e ahistórica. De

qualquer modo, há uma balança mundial específica de poder dentro da qual qualquer

análise de cultura, ideologia e condições socioeconômicas, necessariamente, tem que estar

situada. Abdel-Malek é útil novamente nesse ponto, lembrando-nos sobre a inerência da

política nos discursos de “cultura”:

O imperialismo contemporâneo é, em um sentido real, um imperialismo hegemônico, exercendo em grau máximo uma violência racionalizada elevada a um nível mais alto do que nunca – através de ferro e fogo, mas também numa tentativa de controlar corações e mentes. Seu conteúdo é definido pela ação combinada do complexo militar-industrial e pelos centros de cultura hegemônica do ocidente, todos eles fundamentados em níveis avançados de desenvolvimento alcançado pelo monopólio e capital financeiro, e apoiados pelos benefícios tanto da revolução científica quando tecnológica da própria segunda revolução industrial (145-146).

Os estudos feministas ocidentais não podem evitar o desafio de se situarem e

examinarem seu papel em tal estrutura econômica e política global. Fazer menos do que

isso seria ignorar as interconexões complexas entre economias de primeiro e terceiro

mundo e o profundo efeito disso nas vidas das mulheres de todos os países. Eu não

questiono o valor descritivo e informativo da maior parte dos textos feministas ocidentais

sobre mulheres do terceiro mundo. Eu também não questiono a existência de excelentes

trabalhos que não caem em armadilhas analíticas com as quais eu estou preocupada. Na

verdade, eu lido com um exemplo de um trabalho como este adiante. No contexto de um

silêncio opressor sobre as experiências das mulheres nesses países, assim como da

necessidade de forjar relações internacionais entre os esforços políticos das mulheres, tal

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trabalho é ao mesmo tempo pioneiro e absolutamente essencial. De qualquer modo, é tanto

para o potencial explanatório de estratégias analíticas particulares empregadas em tal escrita,

quanto ao seu efeito político no contexto da hegemonia dos estudos ocidentais que eu quero

me voltar. Enquanto os textos feministas nos Estados Unidos ainda são marginalizados

(exceto a partir do ponto de vista das mulheres de cores em relação a mulheres brancas

privilegiadas), os escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo devem

ser considerados no contexto da hegemonia global dos estudos ocidentais – i.e., produção,

publicação, distribuição e o consumo de informações de ideias. Marginal ou não, essa

escrita tem efeitos políticos e implicações que vão além da audiência feminista ou

disciplinar imediata. Um efeito significativo das “representações” dominantes do

feminismo ocidental é sua fusão com o imperialismo aos olhos de mulheres do terceiro

mundo em particular4. Daí a necessidade urgente de examinar as implicações políticas de

nossas estratégias e princípios analíticos.

Minha crítica se dirige aos três princípios analíticos básicos que estão presentes no

discurso feminista (ocidental) sobre mulheres do terceiro mundo. Desde que meu foco

principal é nos textos das séries Third World Women da Zed Press Women, meus comentários

sobre o discurso feminista ocidental circunscrevem-se à análise dos textos nessas séries5.

Esse é um modo de dar foco à minha crítica. De qualquer modo, mesmo que eu esteja

lidando com feministas que se identificam cultural ou geograficamente do “ocidente”,

como mencionei antes, o que eu falo sobre essas pressuposições ou princípio implícitos se

aplica a qualquer um que use esses métodos, não importa se mulheres de terceiro mundo

no ocidente ou mulheres de terceiro mundo escrevendo sobre esses assuntos e publicando

no ocidente. Assim, eu não estou construindo um argumento culturalista sobre

etnocentrismo; estou tentando revelar como o universalismo etnocentrista é produzido em

certas análises. Na verdade, meu argumento se aplica a qualquer discurso que estabeleça

seus próprios sujeitos autorais como referentes implícitos, i.e., o parâmetro pelo qual se

enquadra e representa culturalmente os Outros. É nesse plano que o poder é exercido no

discurso.

A primeira pressuposição analítica na qual me foco está envolvida na locação

estratégica da categoria “mulheres” vis-à-vis o contexto da análise. A pressuposição de

mulheres como grupo já constituído e coerente, como interesses e desejos idênticos, sem

levar em consideração classe, etnia ou raça, ou contradições, implica uma noção de gênero

ou diferença sexual ou até mesmo patriarcalismo que pode ser aplicada universalmente e de

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modo culturalmente transversal. (O contexto de análise poder ser qualquer coisa, de

estruturas de parentesco e organização do trabalho, até representações midiáticas). A

segunda pressuposição analítica é evidente no nível metodológico, no modo acrítico pelo

qual se “prova” a validade do universal e do culturalmente transversal. A terceira é mais

especificamente a pressuposição política subjacente às metodologias e pressuposições

políticas, i.e., o modelo de poder e esforço que implicam e sugerem. Eu argumento que

como resultado dos dois modos – ou, na verdade, quadros – de análises descritos acima,

uma noção homogênea de opressão das mulheres enquanto grupo é pressuposta, o que,

por sua vez, produz a imagem de uma “mulher média de terceiro mundo”. Essa mulher

média de terceiro mundo leva uma vida essencialmente truncada, baseada em seu gênero

feminino (leia-se: ignorante, pobre, sem educação, ligada à tradição, doméstica, voltada para

a família, vitimizada, etc). Sugiro que tal visão está em contraste com a autorepresentação

(implícita) das mulheres Ocidentais como educadas, modernas, detentoras de controle

sobre seus próprios corpos e sexualidades, e dotadas liberdade para fazer suas próprias

decisões.

A distinção entre a representação das mulheres de terceiro mundo por feministas

ocidentais e a autorepresentação das feministas ocidentais é uma distinção da mesma

ordem daquela feita por alguns marxistas entre a função “mantenedora” da dona de casa e

o papel “produtivo” real da trabalhadora assalariada, ou a caracterização por

desenvolvimentistas do terceiro mundo como engajado com uma produção menor de

“matérias-primas” em contraste com a produtividade “real” do primeiro mundo. Essas

distinções são feitas com base no privilégio de um grupo particular como norma ou

referente. Trabalhadores assalariados, produtores do primeiro mundo, e como sugiro

feministas ocidentais que às vezes moldam as mulheres de terceiro mundo em termos de

“nós mesmas despidas” (ourserlves undressed, termo de Michelle Rosaldo, 1980), todos se

colocam na posição de referentes normativos em tal análise binária.

Mulheres enquanto Categorias de Análise, ou: Somos Todas Irmãs na Luta

Por mulheres enquanto uma categoria de análise, eu me refiro ao pressuposto

crucial que todas nós somos o mesmo gênero, para além das classes e culturas, somos, de

algum modo, socialmente constituídas como um grupo homogêneo identificado

anteriormente ao processo de análise. Esse é um pressuposto que caracteriza boa parte do

discurso feminista. A homogeneidade das mulheres enquanto grupo é produzida não só

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numa base de fundamentos biológicos, mas também numa base sociológica secundária e de

universalidade antropológica. Assim, por exemplo, em qualquer parte determinada da

análise feminista, as mulheres são caracterizadas como um grupo singular que tem em

comum a opressão. O que une as mulheres é uma noção sociológica de “semelhança” na

forma de repressão. É nesse ponto que uma divisão aparece entre “mulheres” como grupo

construído discursivamente e “mulheres” enquanto sujeitos materiais de sua própria

história6. Assim, a homogeneidade consensual discursiva das “mulheres” enquanto um

grupo é errônea para a realidade histórica material específica dos grupos de mulheres. Isso

resulta na pressuposição de mulheres como grupo já constituído, rotulado de “sem poder”,

“explorado”, “assediado sexualmente”, etc, por discursos feministas científicos,

econômicos, jurídicos e sociológicos. (Nota-se que isso é bastante parecido ao discurso

sexista que rotula as mulheres de fracas, emocionais, ansiosas, etc). Esse foco não é na

revelação de especificidades materiais e ideológicas que constituem um grupo particular de

mulheres como “sem poder” em um contexto em particular. O foco está, muito mais, em

encontrar uma variedade de casos de grupos de mulheres “sem poder” para provar a

generalização de que mulheres enquanto um grupo são desprovidas de poder.

Nessa seção me centro em cinco modos específicos nos quais “mulheres” enquanto

uma categoria de análise que são usados no discurso feminista ocidental sobre mulheres do

terceiro mundo. Cada um desses exemplos ilustra a construção de “mulheres de terceiro

mundo” como um grupo homogêneo “sem poder” frequentemente situadas implicitamente

como vítimas de sistemas socioeconômicos em específico. Eu escolhi lidar com uma

variedade de escritores – de Fran Hosken, que escreve principalmente sobre a mutilação

genital feminina, até escritores das “Mulheres na Escola de Desenvolvimento

Internacional” (Women in International Developement school), que escrevem sobre o efeito das

políticas de desenvolvimento em mulheres do terceiro mundo para a audiência ocidental e

do terceiro mundo. A similaridade das pressuposições sobre “mulheres do terceiro mundo”

em todos esses textos formam a base da minha discussão. Não faço isso para equacionar

todos os textos que analiso, nem para igualar seus pontos fortes e suas fraquezas. As

autoras com os quais eu lido escrevem com diferentes níveis de preocupação e

complexidade; de qualquer modo, o efeito da sua representação das mulheres de terceiro

mundo é coerente e apenas um. Nesses textos as mulheres são definidas como vítimas da

violência masculina (Fran Hosken); vítimas do processo colonial (Maria Cutrufelli); vítimas

do sistema árabe familiar (Juliette Minces); vítimas do processo de desenvolvimento

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econômico (Beverley Lindsay e a WID School [liberal]); e finalmente, vítimas do código

islâmico (Patricia Jeffery). Esse modo de definir as mulheres, essencialmente, em termos de

seu status de objeto (a maneira pela qual elas são, ou não são, afetadas por certas instituições e

sistemas) é o que caracteriza essa forma particular de se utilizar “mulheres” como categoria

de análise. No contexto das mulheres ocidentais estudando mulheres do terceiro mundo,

tal objetificação (apesar de benevolamente motivada) precisa ser tanto nomeada quanto

desafiada. Como Valerie Amos e Pratibha Parmar argumentam eloquentemente, “teorias

feministas que examinam nossas práticas culturais como ‘resíduos feudais’ ou nos rotulam

de ‘tradicionais’, também nos retratam como mulheres politicamente imaturas que precisam

ser conhecedoras e educadas no ethos do feminismo ocidental. Elas precisam ser

continuamente desafiadas...” (1984, 7).

Mulheres como vítimas da violência masculina

Fran Hosken, ao escrever sobre o relacionamento entre direitos humanos e a

mutilação genital feminina na África e no Oriente Médio, baseia toda sua

discussão/condenação da mutilação genital em uma única premissa privilegiada: aquela de

que a meta dessa prática é “mutilar o prazer sexual e a satisfação da mulher” (1981, 11).

Isso a leva, por sua vez, a alegar que a sexualidade da mulher é controlada, assim como seu

potencial reprodutivo. De acordo com Hosken, “a política sexual masculina” na África e ao

redor do mundo “partilham o mesmo objetivo político: assegurar a dependência e

subserviência feminina a qualquer custo” (14). Violência física contra mulheres (estupros,

agressão sexual, mutilação, circuncisão, etc.) é realizada “com um surpreendente consenso

entre os homens no mundo” (14). Aqui, as mulheres são definidas consistentemente como

vítimas do controle masculino – “as sexualmente oprimidas” 7. Apesar de ser verdadeiro que

o potencial masculino de violência contra a mulher circunscreve e elucida sua posição

social em certa medida, definir mulheres como vítimas arquetípicas congelam-nas em

“objetos-que-se-defendem” e homens em “sujeito-que-perpetuam-a-violência”, e (toda) a

sociedade em grupos de pessoa sem poderes (leia-se: mulheres) e poderosos (leia-se:

homens). A violência masculina deve ser teorizada e interpretada dentro de sociedades

específicas, tanto para entendê-la melhor quanto para efetivamente se organizar e modificá-

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la8. A irmandade não pode ser assumida com base no gênero; deve ser forjada em análise

história concreta e política.

Mulheres como dependentes universais

A conclusão do livro de Berverly Lindsay Comparative Perspectives of third World

Women: The impact of Race, Sex and Class (1983, 298, 306) afirma: “relações dependentes,

baseadas na raça, sexo e classe, estão sendo perpetradas através de instituições sociais,

educacionais e econômicas. Essas são as ligações entre Mulheres do Terceiro Mundo.”

Aqui, como em outras passagens, Lindsay sugere que as mulheres do terceiro mundo

constituem um grupo identificável puramente com base nas dependências compartilhadas.

Se as dependências compartilhadas fossem tudo que é necessário para nos unir como

grupo, as mulheres de terceiro mundo seriam sempre vistas como um grupo apolítico sem

status subjetivo. Ao invés disso, é o contexto em comum de esforços políticos contra classe,

raça, gênero e hierarquias imperialistas que podem tornar as mulheres de terceiro mundo

um grupo estratégico nessa conjuntura histórica. Lindsay também afirma que diferenças

culturais e linguísticas existem entre vietnamitas e mulheres negras dos Estados Unidos,

mas “ambos os grupos são vítimas de raça, sexo e classe.” Novamente as mulheres negras e

vietnamitas são caracterizadas por seu status de vítima.

Semelhantemente, examinemos afirmações tais como “Minha análise começará

dizendo que todas as mulheres africanas são política e economicamente dependentes”

(Cutrufelli 1983, 13), “Não obstante, aberta ou veladamente, a prostituição ainda é a

principal, se não a única, fonte de trabalho para mulheres africanas” (Cutrufelli 1983, 33).

Todas as mulheres negras são dependentes. Ambas as afirmações são ilustrativas das

generalizações espalhadas deliberadamente por meio de uma recente publicação da Zed

Press, Women of Africa: Roots of Oppression, de Maria Rosa Cutrufelli, que é descrita na capa

como uma escritora italiana, socióloga, marxista e feminista. É possível imaginar na década

de 1980 um livro intitulado Women of Europe: Roots of Opression? Não estou contestando o

uso de agrupações universais para propósitos descritivos. Mulheres do continente africano

podem ser descritivamente caracterizadas como “mulheres da África”. É quando “mulheres

da África” se torna um agrupamento sociologicamente homogêneo caracterizado por

dependências em comum ou desprovidas de poder (ou mesmo de força) que os problemas

surgem – dizemos muito pouco e muito ao mesmo tempo.

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Isso é devido a diferenças de gênero descritivas serem transformadas em divisão

entre homens e mulheres. Mulheres são constituídas como um grupo através de

relacionamentos dependentes em relação aos homens, que são implicitamente os

responsáveis por esses relacionamentos. Quando “mulheres da África” como grupo (versus

“homens da África” como grupo?) são vistas como um grupo precisamente porque são

generalizadamente dependentes e oprimidas, a análise de diferenças históricas específicas se

torna impossível, porque a realidade é aparentemente sempre estruturada por meio de

divisões – duas divisões mutuamente excludentes com grupos exaustivos, as vítimas e os

opressores. Aqui o sociológico é substituído pelo biológico, tendo em vista, no entanto, a

criação da mesma coisa – a unidade das mulheres. Não é o potencial descritivo da diferença

de gênero, mas o posicionamento privilegiado e o potencial explicatório da diferença de

gênero como a origem da opressão que eu questiono. Ao usar “mulheres da África” (como

um grupo de pessoas oprimidas já constituído) como uma categoria de análise, Cutrufelli

nega qualquer especificidade histórica para a posição das mulheres como subordinada,

poderosa, marginal, central ou não, em relação a redes sociais e de poder em especial. As

mulheres são consideradas como um grupo unificado “sem poder”, anterior à análise em

questão. Desse modo, trata-se apenas de especificar o contexto depois do fato. “Mulheres”

agora são calcadas no contexto da família, ou do ambiente de trabalho, ou dentro de

grupos religiosos, quase como se esses sistemas existissem fora das relações de mulheres

com outras mulheres, e de mulheres com homens.

O problema com essa estratégia analítica, deixe-me repetir, é que ela pressupõe

homens e mulheres como sujeito já constituídos antes mesmo de sua entrada dentro da

arena das relações sociais. Apenas se concordamos com essa pressuposição é possível

aceitar a análise que olha para os “efeitos” das estruturas de parentesco, do colonialismo, da

organização do trabalho, etc, sobre as mulheres, que já são definidas a priori como um

grupo. O ponto crucial que é esquecido é que as mulheres são produzidas por essas

relações assim como estão envolvidas na formação dessas relações. Como Michelle

Rosaldo argúi, “o lugar das mulheres na vida humana social não está diretamente ligado ao

produto das coisas que elas fazem (ou até menos do que isso, ligado à função do que elas

biologicamente são), na verdade o significado de suas atividades é adquirido por meio de

interações sociais concretas” (1980, 400). O fato de mulheres serem mães em diversas

sociedades não é tão significativo quanto o valor atrelado à maternidade nessas sociedades.

A distinção entre a maternidade e o status atrelado a ela é muito importante – trata-se de

diferença que precisa ser determinada e analisada contextualmente.

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Mulheres Casadas como Vítimas do Processo Colonial

Na teoria de Lévi-Strauss sobre a estrutura de parentesco como um sistema de

troca de mulheres, o que é significativo é que a troca em si não constitui a subordinação

das mulheres; as mulheres não são subordinadas em razão do fato da troca, mas devido aos

modos da troca instituída e aos valores atrelados a esses modos. No entanto, ao discutir o

ritual de casamento dos Bemba, um povo matriarcal e matrilocal9, Cutrufelli em Women in

Africa se centra no fato da troca marital das mulheres antes e depois da colonização

ocidental, ao invés de no valor atrelado a essa troca nesse contexto em específico. Isso faz

com que ela defina as mulheres de Bemba como um grupo coerente afetado por um modo

específico de colonização. Aqui, novamente, as mulheres de Bemba são constituídas quase

que unilateralmente como vítimas dos efeitos da colonização ocidental.

Cutrufelli cita o ritual do casamento dos Bemba como um evento multifacetado

“por meio do qual um homem jovem incorpora-se no grupo familiar de sua esposa, já que

ele passa a residir com eles e oferece seus serviços em troca de comida e subsistência” (43).

Esse ritual se estende por muitos anos e o relacionamento sexual varia de acordo com o

nível de maturidade física da garota. É apenas depois que ela passa por uma cerimônia de

iniciação na puberdade que o intercurso é sancionado, e o homem adquire os direitos legais

sobre ela. A cerimônia de iniciação é o ato mais importante de consagração do poder

reprodutivo das mulheres, de modo que o rapto de uma garota não iniciada não tem

consequência, enquanto penas severas são imputadas à sedução de uma garota iniciada.

Cutrufelli afirma que o efeito da colonização européia mudou todo o sistema de casamento.

Agora o jovem homem tem o direito de tomar sua esposa de seu povo em troca de

dinheiro. Isso implica as mulheres de Bemba terem perdido a proteção das leis tribais. No

entanto, mesmo que seja possível ver como a estrutura do contrato tradicional de

casamento (versus o contrato de casamento pós-colonial) oferecia às mulheres certo

controle sobre suas relações maritais, apenas uma análise do significado político da prática

efetiva que privilegiava uma garota iniciada em relação a uma não iniciada, indicando uma

mudança nas relações de poder femininas como um resultado dessa cerimônia, pode

prover um relato preciso sobre se as mulheres de Bemba eram de fato protegidas pelas leis

tribais todas as vezes.

De qualquer maneira, não é possível falar das mulheres de Bemba como um grupo

homogêneo dentro da estrutura tradicional do casamento. As mulheres de Bemba antes da

9 NT: sociedade na qual o homem é obrigado a viver com a família da esposa após o casamento.

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iniciação são constituídas dentro de um conjunto de relação sociais diferente daquele

comparado às mulheres de Bemba depois da iniciação. Tratá-las como um grupo unificado

caracterizado pelo fato de sua “troca” entre parentes do sexo masculino é negar as

especificidades sociais, históricas e culturais de sua existência e ao valor diferencial atrelado a

suas trocas antes e depois de sua iniciação. É tratar a cerimônia de iniciação como um ritual

sem implicações ou efeitos políticos. É também assumir que, ao meramente descrever a

estrutura do contrato de casamento, a situação das mulheres está posta. Mulheres enquanto

um grupo são posicionadas dentro de uma estrutura dada, mas não há tentativa de traçar os

efeitos da prática do casamento em constituir mulheres dentro de uma rede,

evidentemente, modificadora de relações de poder. Assim, pressupõe-se que as mulheres

sejam sujeitos político-sexuais anteriormente a sua entrada nas relações de parentesco.

Mulheres e Sistemas Familiares

Elizabeth Cowie (1978), em outro contexto, aponta as implicações desse tipo de

análise quando enfatiza a natureza especificamente política das estruturas de parentesco que

devem ser analisadas como práticas ideológicas que designam homens e mulheres como

pai, marido, mãe, irmã, etc. Assim, Cowie sugere que mulheres enquanto mulheres não

estão situadas dentro da família. É na família, enquanto efeito das estruturas de parentesco,

que as mulheres enquanto mulheres são construídas, definidas dentro do grupo e pelo o

grupo. Desse modo, por exemplo, quando Juliette Minces (1980) cita a família patriarcal

como a base para “uma visão quase idêntica das mulheres” que sociedades árabes e

mulçumanas têm, ela cai nessa armadilha (ver especialmente p. 23). Não somente é

problemático falar da visão das mulheres compartilhada por sociedades árabes e

mulçumanas (i.e., sobre mais de vinte países diferentes) sem se voltar às estruturas

históricas, materiais e ideológicas específicas que constroem tais imagens, mas falar sobre a

família patriarcal ou sobre a estrutura de parentesco tribal como a origem do status

socioeconômico das mulheres é assumir, novamente, que mulheres são sujeitos político-

sexuais antes de sua entrada na família. Então, enquanto por um lado das mulheres ganham

valor ou status dentro da família, a pressuposição de um sistema de parentesco patriarcal

singular (comum a todas as sociedades árabes e muçulmanas) é o que aparentemente

estruturam as mulheres como um grupo oprimido nessas sociedades! Esse sistema singular

e coerente de parentesco presumivelmente influencia outra entidade dada e separada,

“mulheres”. Assim, todas as mulheres, independentemente da classe e das diferenças

Page 13: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

13

culturais são afetadas por esse sistema. Não apenas todas as mulheres árabes e muçulmanas

parecem constituir um grupo homogêneo e oprimido, mas não há discussão sobre as

práticas específicas dentro da família que constituem mulheres como mães, esposas, irmãs,

etc. Árabes e muçulmanas, ao que parece, não se diferenciam de modo algum. Suas famílias

patriarcais vêm dos tempos do profeta Maomé. Elas existem como se estivesse fora da

história.

Mulheres e Ideologias Religiosas

Outro exemplo do uso de “mulheres” como categoria de análise é encontrada nas

análises transculturais que atestam certo reducionismo econômico ao descrever a relação

entre a economia e fatores tais como política e ideologia. Aqui, ao reduzir o nível de

comparação às relações econômicas entre países “desenvolvidos e em desenvolvimento”,

qualquer especificidade sobre a questão das mulheres é negada. Mina Modares (1981),

numa análise cuidadosa das mulheres e do xiismo no Irã, foca nesse problema quando

critica os textos feministas que tratam o islã como uma ideologia separada e fora das

relações sociais e práticas, ao invés de um discurso que inclui regras sociais para a economia

e para as relações de poder dentro da sociedade. O trabalho informativo de Patricia Jeffery

(1979) sobre as mulheres da tribo de Pirzada que viviam sob a prática de purdah10

considera que a ideologia islâmica é uma explicação parcial para o status das mulheres na

medida em que o islã dá uma justificativa para o purdah. Aqui, a ideologia islâmica é

reduzida a um conjunto de ideias cuja internalização pelas mulheres da tribo de Pirzada

contribui para a estabilidade do sistema. De qualquer modo, a principal explicação para o

purdah está no controle que os homens da tribo de Pirzada têm sobre os recursos

econômicos, e a segurança pessoal que o regime de purdah dá às mulheres de Pirzada.

Ao usar uma versão específica do Islã como o Islã, Jeffrey atribui a ele singularidade

e coerência. Modares ressalta que, “‘a Teologia Islâmica’ se torna, então, imposta a uma

entidade dada e separada chamada ‘mulheres’. Uma unificação adicional é alcançada:

Mulheres (significando todas as mulheres), não importando suas diferentes posições dentro

das sociedades, vêm a ser ou não afetadas pelo Islã” (63). Marina Lazreg construiu um

argumento similar quando fala do reducionismo inerente aos estudos sobre mulheres no

Oriente Médio e no norte da África:

10

NT: prática de segregar as mulheres dentro de casa.

Page 14: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

14

Um ritual é estabelecido para que o escritor recorra à religião como a causa da desigualdade de gênero, assim como ela é colocada como fonte de subdesenvolvimento para boa parte da teoria da modernização. De um modo estranho, o discurso feminista sobre as mulheres do Oriente Médio e do Norte da África se espelha na interpretação dos próprios teólogos sobre as mulheres no islã...

O efeito desse paradigma é privar as mulheres de terem presença, de serem. Como as mulheres são subsumidas à religião apresentada em suas regras fundamentais, elas são inevitavelmente vistas como se estivessem evoluindo ahistoricamente. Elas, virtualmente, não têm história. Qualquer análise de mudança é, portanto, vedada. (1988, 87).

Mesmo que a análise de Jeffery não sucumba a esse tipo de noção unitária da

religião (islâmica), ela faz com que todas as especificidades ideológicas se percam nas

relações econômicas, e a universaliza com base nessa comparação.

Mulheres e o Processo de Desenvolvimento

Os melhores exemplos de universalização com base no reducionismo econômico

estão na literatura liberal de “Women in Development”. Proponentes dessa escola buscam

examinar o efeito do desenvolvimento sobre mulheres de terceiro mundo algumas vezes, a

partir de perspectivas autodenominadas feministas. Em última instância, há um interesse e

um comprometimento evidentes com a melhoria da vida dessas mulheres de países “em

desenvolvimento”. Estudiosas como “Irene Tinker e Michelle Bo Bramsen (1972), Ester

Boserup (1970), e Perdita Huston (1979) todas escreveram sobre o efeito das políticas de

desenvolvimento sobre mulheres do terceiro mundo11. Todas essas três mulheres assumem

“desenvolvimento” como sinônimo de “desenvolvimento econômico” ou “progresso

econômico”. Como no caso da família patriarcal de Mince, do controle sexual de Hosken e

da colonização ocidental de Cutrufelli, desenvolvimento se torna o equalizador de todos os

tempos. Mulheres são afetadas positiva ou negativamente por políticas econômicas de

desenvolvimento, e isso é a base para a comparação transcultural.

Por exemplo, Perdita Huston (1979) afirma que o propósito de seu estudo é

descrever o efeito do processo de desenvolvimento na “família enquanto unidade e em

seus membros individuais” no Egito, Quênia, Sudão, Tunísia, Sri Lanka e México. Ela

afirma que os “problemas” e “necessidades” expressados pelas mulheres urbanas e da zona

rural nesses países giram todos em torno de educação e treinamento, trabalho e salários,

acesso à saúde e outros serviços, participação política e regulação de direitos. Huston

relaciona todas essas “necessidades” à falta de políticas de desenvolvimentos sensíveis, que

11

Page 15: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

15

excluem as mulheres como um grupo ou uma categoria. Para ela, a solução é simples:

implantar melhores políticas de desenvolvimento que enfatizem o treinamento para

mulheres que trabalham no campo, o estágio de mulheres, mulheres como agentes de

desenvolvimento rural, encorajem cooperativas de mulheres, etc. Aqui, novamente,

pressupõe-se que mulheres são um grupo coerente ou categoria anterior à entrada delas no

“processo de desenvolvimento”. Huston presume que todas as mulheres do terceiro

mundo têm problemas e necessidades semelhantes. Assim, elas devem ter interesses e

metas similares. No entanto, os interesses das donas de casa egípcias que vivem em cidades,

educadas e de classe média, para pegar apenas um exemplo, poderiam não ser vistos como

semelhantes aos das empregadas domésticas pobres e sem educação formal. Políticas de

desenvolvimento não afetam ambos os grupos de mulheres da mesma maneira. Práticas

que caracterizam o status das mulheres variam de acordo com a classe. Mulheres

constituem-se como mulheres através de complexa interação entre classe, cultura, religião e

outras instituições e ferramentas ideológicas. Elas não são “mulheres” – um grupo coerente

– apenas tomando como base um sistema econômico ou político em particular. Essas

comparações transculturais reducionistas resultam na colonização das especificidades da

existência diária e das complexidades dos interesses políticos que mulheres de diferentes

classes sociais e culturas representam e se mobilizam.

Assim, é revelador que para Perdita Houston, as mulheres de terceiro mundo sobre

as quais ela escreve tenham “necessidades” e “problemas”, mas poucas tenham quaisquer

“escolhas” ou liberdade de agir. Essa é uma representação interessante das mulheres do

terceiro mundo, significante ao sugerir uma autorepresentação latente das mulheres

ocidentais que têm sustentado este olhar. Ela escreve, “O que mais me surpreendeu e me

comoveu enquanto eu ouvia as mulheres em arranjos culturais tão diferentes foi a

impressionante semelhança – não importa se elas tinham estudado ou era iletradas, urbanas

ou rurais – de seus valores mais básicos: a importância que elas dão à família, à dignidade, e

a servir aos outros” (1979, 115). Houston consideraria tais valores incomuns às mulheres

do ocidente?

O que é problemático sobre esse tipo de uso de “mulheres” como um grupo, uma

categoria estável de análise, é que se pressupõe uma unidade ahistórica e universal entre as

mulheres baseada numa noção generalizada de sua subordinação. Ao invés de demonstrar

analiticamente a produção das mulheres como grupos políticos e socioeconômicos dentro

de contextos particulares locais, essa forma analítica limita a definição do sujeito feminino à

identidade de gênero, ignorando completamente identidades sociais de classe e étnicas. O

Page 16: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

16

que caracteriza as mulheres como um grupo é seu gênero (sociologicamente, não

necessariamente definido biologicamente) acima de todo o mais, indicando uma noção

monolítica de diferença sexual. Conquanto as mulheres são constituídas como um grupo

coerente, diferença sexual se confina à subordinação feminina, e o poder é

automaticamente definido em termos binários: pessoas que o tenham (leia-se: homens) e

pessoas que não o tem (leia-se: mulheres). Homens exploram, mulheres são exploradas.

Tais formulações simplistas são historicamente reducionistas; elas também são ineficazes ao

designar estratégias no combate às opressões. Tudo que elas fazem é reforçar divisões

binárias entre homens e mulheres.

Como se pareceria uma análise que não faz isso? O trabalho de Maria Mies ilustra a

força do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do terceiro mundo que não cai nas

armadilhas discutidas acima. O estudo de Mies sobre as bordadeiras de Narsapur na Índia

(1982) tenta analisar cuidadosamente uma indústria familiar substancial na qual as “donas

de casa” produzem toalhinhas de renda para o mercado mundial. Por meio de uma análise

detalhada da estrutura da indústria de toalhinhas de renda, da produção e da reprodução de

relações, da divisão sexual do trabalho, dos lucros e da exploração, e das consequências de

modo geral de se definir as mulheres como “donas de casa não trabalhadoras” e seu

trabalho como “atividade de lazer”. Mies demonstra os níveis de exploração nessa indústria

e o impacto desse sistema de produção nas condições de trabalho e de vida das mulheres

envolvidas nele. Além disso, ela consegue analisar a “ideologia da dona de casa”, a noção

de mulher sentada dentro de casa, como elemento subjetivo e sociocultural suficiente para

a criação e manutenção de um sistema de produção que contribui para a crescente

pauperização das mulheres e as mantém totalmente atomizadas e desorganizadas enquanto

trabalhadoras. A análise de Mies mostra o efeito de uma organização patriarcal

historicamente e culturalmente específica, uma organização construída na base da definição

de bordadeiras como “donas de casa não trabalhadoras” no nível local, regional, estatal e

internacional. As complexidades e efeitos de redes de poder em específico não só são

enfatizados, como formam a base da análise de como esse grupo particular de mulheres

está situado no centro de um mercado mundial explorador e hegemônico.

Esse é um bom exemplo de o que uma análise local cuidadosa, focada

politicamente, consegue fazer. Ela ilustra como a categoria mulheres é construída numa

variedade de contextos políticos que com frequência existem simultaneamente e

sobrepostos uns aos outros. Não há generalização fácil para a definição de “mulheres” na

Índia, ou para “mulheres do terceiro mundo”; também não há uma redução da construção

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17

política sobre a exploração das bordadeiras a explicações culturais sobre a passividade ou a

obediência que podem caracterizar as mulheres e sua situação. Por fim, esse modo de

análise política e local que gera categorias teóricas a partir da situação e do contexto que

está sendo analisado, também oferece estratégias efetivas contra a exploração enfrentada

pelas bordadeiras. As mulheres de Narsapur não são meras vítimas do processo de

produção, porque elas resistem, desafiam e subvertem o processo em diferentes momentos.

Aqui está um exemplo de como Mies delineia as conexões entre a ideologia da dona de

casa, a autoconsciência das bordadeiras, e suas inter-relações que contribuem para as

resistências latentes perceptíveis entre as mulheres:

A persistência da ideologia da dona de casa, a autopercepção das bordadeiras como produtoras de pequenas mercadorias ao invés de trabalhadoras, não somente não tem ajuda da estrutura da própria indústria, como é reforçada pelas instituições e normas patriarcais reacionárias. Assim, a maior parte das bordadeiras expressou a mesma opinião sobre o purdah e sobre o isolamento dentro de suas comunidades, opinião que também era propagada pelos exportadores de rendas. Especialmente as mulheres de Kapu disseram que elas nunca tinham saído de suas casas, que as mulheres de sua comunidade não podiam fazer outra coisa que não o trabalho doméstico e toalhinhas de renda, etc, mas apesar do fato de a maior parte delas ainda se submeter completamente às normas patriarcais das mulheres gosha, também havia elementos contraditórios em sua percepção. Desse modo, mesmo que elas desprezassem mulheres que eram capazes de trabalhar fora de casa – como as intocáveis Mala e Madia, ou mulheres de outras castas mais baixas, elas não podiam ignorar o fato de que essas mulheres estavam ganhando mais dinheiro exatamente porque elas não era respeitáveis donas de casa, mas trabalhadoras. Em uma discussão, ela até mesmo admitiram que seria melhor se elas também pudessem sair e fazer trabalhos mais legais. E quanto elas foram questionadas sobre se elas estariam preparadas para sair de suas casas e trabalhar em algum lugar como uma fábrica, elas disseram que sim. Isso mostra que o purdah e a ideologia da dona de casa, mesmo que ainda inteiramente internalizadas, já têm algumas fissuras, já que eles têm sido confrontados com diversas realidades diferentes. (157)

É apenas ao entender as contradições inerentes às posições das mulheres dentro das

várias estruturas existentes que ações políticas efetivas e desafios podem ser concebidos. O

estudo de Mies percorre um longo caminho em torno disso para oferecer sua análise.

Mesmo que agora exista um número crescente de textos feministas ocidentais nessa

tradição12, infelizmente, também há um grande volume de escritos que sucumbem ao

reducionismo cultural discutido anteriormente.

Universalismo Metodológico, ou: a Opressão das Mulheres é um Fenômeno Global

12

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18

Os textos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo se

comprometem com diversas metodologias para demonstrar a operação universal e

transcultural que caracteriza o domínio masculino e a exploração feminina. Eu sintetizo e

critico três desses métodos abaixo, partindo do mais simples ao mais complexo.

Em primeiro lugar, consegue-se a prova de universalismo através do uso de um

método aritmético. O argumento é o seguinte: quanto maior o número de mulheres que

usam véu, mais universal é a segregação sexual e o controle sobre as mulheres (Deardon

1975, 4-5). Semelhantemente, um grande número de exemplos fragmentados de diversos

países, aparentemente, também se soma a esse método. Por exemplo, todas as mulheres

muçulmanas na Arábia Saudita, no Irã, no Paquistão, na Índia e no Egito, usam algum tipo

de véu. Isso indica, por consequência, que o controle sexual das mulheres é um fato

universal em países nos quais as mulheres usam o véu (Deardon 1975, 7, 10). Fran Hosken

escreve, “Estupro, prostituição forçada, poligamia, mutilação genital, pornografia, violência

física contra garotas e mulheres, o purdah (segregação das mulheres), são todas violações

de direitos humanos básicos” (1981, 15). Ao igualar o purdah com o estupro, com violência

doméstica e prostituição forçada, Hosken afirma que o “controle sexual” é a função

principal para o purdah, não importa em qual contexto. Às instituições do purdah são

negadas quaisquer especificidades históricas ou culturais e as contradições e aspectos

potencialmente subversivos são totalmente descartados.

Em ambos os exemplos, o problema não está em se afirmar que a prática do uso do

véu é generalizada. Tal afirmação pode ser feita com base em número. É uma generalização

descritiva. No entanto, o salto analítico que se faz, da prática do uso de véu para uma

afirmação de que seu significado de forma geral é o controle das mulheres, deve ser

questionado. Mesmo que possa existir similaridade nos véus utilizados por mulheres na

Arábia Saudita e no Irã, o significado particular que se atribui a essa prática varia de acordo

com o contexto ideológico e cultural. Além disso, o espaço simbólico ocupado pelo purdah

pode ser similar em determinados contextos, mas isso não indica automaticamente que as

práticas em si têm significados idênticos no domínio social. Por exemplo, como se sabe, as

mulheres iranianas de classe média cobriram-se com véu durante a revolução de 1979 em

solidariedade às suas irmãs da classe trabalhadora que o usavam, enquanto que no Irã

contemporâneo, leis islâmicas mandatórias obrigam todas as mulheres a usarem véu.

Mesmo que em ambos os exemplos, razões similares possam ser dadas para o uso do véu

(oposição ao Xá e a colonização ocidental no primeiro caso, e a verdadeira islamização do

Irã no segundo), os significados concretos ligados ao uso do véu pelas mulheres iranianas

Page 19: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

19

são claramente diferentes nos dois contextos históricos. No primeiro caso, usar o véu é

tanto um gesto de oposição quanto um gesto revolucionário da parte das mulheres

iranianas de classe média; no segundo caso, trata-se de obrigação institucional coercitiva

(ver Tabari 1980 para discussão em detalhes). É com uma análise que tenha como base

esses contextos específicos e diferenciados que estratégias políticas efetivas podem ser

geradas. Pressupor que a mera prática do uso do véu em diversos países muçulmanos

indica uma opressão universal das mulheres através da segregação sexual não só é

analiticamente reducionista, mas também se mostra sem utilidade no que se refere à

elaboração de estratégias políticas de oposição.

Em segundo lugar, conceitos tais como reprodução, divisão sexual do trabalho,

família, casamento, cuidados com o lar, patriarcado, etc, são frequentemente utilizados sem

sua especificação referente a contextos históricos e culturais. Feministas usam esses

conceitos ao dar explicações sobre a subordinação das mulheres, assumindo,

aparentemente, sua aplicabilidade universal. Por exemplo, como é possível referir-se “à”

divisão sexual do trabalho quando o conteúdo dessa divisão varia radicalmente de um

ambiente para o outro, e de uma conjuntura histórica para outra? Em seu nível mais

abstrato, é o fato de diferentes atribuições de tarefas de acordo com o sexo que é

significativo; no entanto, isso é bastante diferente do significado ou valor que o conteúdo

dessa divisão sexual do trabalho assume em diferentes contextos. Na maior parte dos casos,

a divisão de tarefas com base no sexo possui uma origem ideológica. Não há dúvidas que

uma afirmação como “mulheres estão concentradas em ocupações orientadas para serviços

em um grande número de países em todo o mundo” é descritivelmente válida. Portanto,

talvez possa ser invocada descritivamente a existência de uma divisão sexual do trabalho

similar em diversos países (nas quais as mulheres trabalham em ocupações de serviço como

enfermagem, assistência social, etc, e homens em outros tipos de ocupação). No entanto, o

conceito de “divisão sexual do trabalho” é mais do que uma categoria descritiva. Ele indica

um valor diferenciado atribuído ao “trabalho de homens” versus “trabalho de mulheres”.

A mera existência de uma divisão sexual do trabalho é frequentemente considerada

como prova da opressão de mulheres em diversas sociedades. Isso é resultado de uma

confusão entre os potenciais descritivos e explanatórios do conceito de divisão sexual do

trabalho. Situações superficialmente similares podem ter explicações históricas específicas

radicalmente diferentes, e não podem ser tratadas como idênticas. Por exemplo, o aumento

de lares chefiados por mulheres na classe média americana pode ser interpretado como

sinal de grande independência e progresso feminista, considerado que as mulheres escolheram

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20

ser mães solteiras, que há um crescente número de mães lésbicas, etc. Entretanto, o recente

aumento em lares chefiados por mulheres na América Latina,13 que poderia ser interpretado

como um aumento de poder de decisão, está concentrado entre as classes mais pobres, nas

quais as escolhas de vida são mais restritas economicamente. Um argumento similar pode

ser levantado quanto ao aumento de lares chefiados por mulheres entre mulheres negras e

latinas nos Estados Unidos. A correlação positiva entre isso e o nível de pobreza entre

mulheres de cor e mulheres brancas operárias nos Estados Unidos ganhou até um nome: a

feminização da pobreza. Assim, enquanto é possível afirmar que há um aumento em lares

chefiados por mulheres nos Estados Unidos e na América Latina, esse aumento não pode

ser discutido como um indicador universal de independência das mulheres, tampouco

como um indicador universal de empobrecimento feminino. O significado e a explicação para

o aumento obviamente variam de acordo com o contexto histórico-social.

Similarmente, a existência de uma divisão sexual do trabalho na maior parte dos

contextos não pode ser explicação suficiente para a subjugação universal de mulheres da

força trabalhadora. Para que se caracterize a divisão sexual do trabalho como

desvalorização do trabalho das mulheres deve se partir de análise de contextos locais em

específico. Além disso, a desvalorização das mulheres deve também ser vista através de

análise cuidadosa. Em outras palavras, a “divisão sexual do trabalho” e “mulheres” não são

categorias analíticas comensuráveis. Conceitos como os de divisão sexual do trabalho são

úteis somente se gerados por meio de análises locais, contextuais (veja Eldhom, Harris, e

Young 1977). Se esses conceitos forem tomados como universalmente aplicáveis, a

homogeneização resultante de práticas materiais diárias, religiosas, raciais e de classe das

mulheres do terceiro mundo poderia criar uma falsa ideia de compartilhamento de

opressões, interesses e lutas entre as mulheres, em nível global. Para além da irmandade, há

ainda racismo, colonialismo e imperialismo!

Por último, alguns escritores confundem o uso de gênero como uma categoria

superordenada de organização de análise com a prova universalista e instanciação dessa

categoria. Em outras palavras, estudos empíricos de diferenças de gêneros são confundidos

com a organização analítica de estudos socioculturais. A resenha de Beverly Brown (1983)

do livro Natureza, Cultura e Gênero (Strathern and McCormack 1980) ilustra melhor esse

ponto. Brown sugere que natureza: cultura e feminino: masculino são categorias

superordenadas que organizam e localizam categorias inferiores (como

selvagem/doméstico e biologia/tecnologia) dentro de sua lógica. Essas categorias são

13

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21

universais no sentido de que organizam o universo de um sistema de representações. Essa

relação é totalmente independente da substanciação universal de qualquer categoria

particular. Sua crítica depende do fato de que, em vez de esclarecer a generalização de

natureza: cultura: feminino :: masculino como categorias de organização subordinadas,

Natureza, Cultura e Gênero tomam a universalidade dessa equação como pertencente ao nível

da verdade empírica, que pode ser investigada por meio de trabalho de campo. Assim, a

utilidade do paradigma natureza: cultura :: feminino: masculino como um modelo universal

da organização de representação dentro de qualquer sistema histórico-social fica perdida.

Aqui, o universalismo metodológico é presumido com base na redução das categorias

analíticas natureza: cultura :: feminino:masculino para uma demanda de provas empíricas de

sua existência em diferentes culturas. Discursos de representação são confundidos com

realidades materiais, e a distinção feita anteriormente entre “Mulher” e “mulheres” fica

perdida. Trabalhos feministas que embaralham essa distinção (o que, interessantemente,

está frequentemente presente em autorepresentações de feministas ocidentais)

eventualmente acabam construindo imagens monolíticas de “mulheres do terceiro mundo”,

por ignorar as relações complexas e móveis entre suas materialidades históricas no nível de

opressões específicas e escolhas políticas, de um lado, e suas representações discursivas, de

outro.

Em suma: eu discuti três movimentos metodológicos identificáveis nos trabalhos

feministas (e outros trabalhos acadêmicos) interculturais que buscam desvendar a

universalidade na posição feminina subordinada na sociedade. A próxima e última seção

reúne as seções anteriores, buscando traçar os efeitos políticos das estratégias analíticas no

contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres no terceiro mundo. Esses

argumentos não são contra a generalização na medida em que são por generalizações

cuidadosas, históricas e específicas, adequadas a realidades complexas. Nem esses

argumentos negam a necessidade de formar identidades e afinidades políticas estratégicas.

Assim, enquanto as mulheres indianas de diferentes religiões, castas e classes podem forjar

uma unidade política com base na organização contra a violência policial contra mulheres

(ver Kishwar e Vanita 1984), uma análise da violência policial deve ser contextual. Alianças

estratégicas que construam identidades políticas de oposição por si mesmas são baseadas

em unidades generalizadas e provisórias, mas a análise dessas identidades de grupo não

pode ser baseada em categoriais universalistas e ahistóricas.

O(s) objeto(s) do Poder

Page 22: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

22

Esta última seção retorna a um ponto anterior sobre a natureza política inerente dos

estudos feministas, e procura esclarecer meu ponto a respeito da possibilidade de detectar

um movimento colonialista no caso de uma conexão hegemônica de primeiro-terceiro

mundo nesses estudos. Os nove textos na série Zed Press Women in the Third World que

discuti14 focavam-se nas seguintes áreas comuns ao examinar o “status” das mulheres em

diversas sociedades: religião, estruturas familiares/de parentesco, o sistema legal, a divisão

sexual do trabalho, educação e, finalmente, resistência política. Uma grande parte dos

ensaios de feministas ocidentais a respeito de mulheres no terceiro mundo se centra nesses

temas. É claro que os textos do Zed possuem ênfases variadas. Por exemplo, dois estudos,

Mulheres da Palestina (Downing 1982) e Mulheres Indianas na Luta (Omvedt 1980), focam

explicitamente na militância e envolvimento político feminino, enquanto que Mulheres na

Sociedade Árabe (Minces 1980) lida com o status legal, religioso e familiar das mulheres

árabes. Além disso, cada texto evidencia uma variedade de metodologias e níveis de

cuidado ao fazer generalizações. Interessante é que, entretanto, quase todos os textos

assumem “mulher” como uma categoria de análise na forma designada acima.

Claramente essa é uma estratégia que não é nem limitada a essas publicações do Zed

Press tampouco sintomáticas dessas publicações em geral. Entretanto, cada um desses

textos em particular assume que “mulheres” possui um grupo de identidade coerente entre

as diferentes culturas em discussão, antes de sua entrada em relações sociais. Assim,

Omvedt pode falar sobre “mulheres indianas”, referindo-se a um grupo particular de

mulheres do estado de Maharashtra, Cutrufelli sobre as “mulheres da África”, e Minces

sobre “mulheres árabes”, como se todos esses grupos de mulheres tivessem algum tipo de

óbvia coerência cultural, distinta da dos homens nessas sociedades. Esse “status” ou

“posição” das mulheres é assumida como auto-evidente, porque mulheres, como um grupo

já constituído, são colocadas em estruturas religiosas, econômicas, familiares e jurídicas. No

entanto, isso foca apenas onde as mulheres são vistas como um grupo coerente através de

contextos, independentemente de classe ou etnia, e estrutura, em última análise, termos

binários e dicotômicos, onde mulheres são sempre vistas em oposição aos homens, em que

o patriarcado é sempre necessariamente dominância masculina, e que os sistemas religiosos,

legais, econômicos e familiares são implicitamente assumidos como sendo construídos por

homens. Assim, ambos, homens e mulheres sempre constituem, aparentemente, duas

populações distintas, e as relações de dominância e exploração são sempre colocadas em

termos de todas as pessoas – todas em relações de exploração. Apenas quando homens e

14

Page 23: MOHANTY - Mulheres Do Terceiro Mundo e a Política Feminista 12.06

23

mulheres são vistos como diferentes categorias ou grupos possuindo diferentes categorias

já constituídas de experiência, cognição e interesses como grupos é que uma dicotomia tão

simplista quanto essa é possível.

O que isso implica a respeito da estrutura e funcionamento das relações de poder?

A criação de um compartilhamento das lutas das mulheres de países de terceiro mundo por

meio de classes e culturas contra uma noção geral de opressão (sobretudo o grupo no

poder, i.e., homens) necessita da assunção do que Michel Foucault (1980, 135-45)

denomina modelo “jurídico-discursivo” de poder, cujas principais características são a

“relação negativa” (limite e falta), uma “insistência na norma” (o que forma um sistema

binário), um “ciclo de proibição”, a “lógica da censura”, e uma “uniformidade” do aparelho

funcionando em diferentes níveis. O discurso feminista no terceiro mundo que assume

uma categoria homogênea – ou grupo- chamado mulheres necessariamente opera por meio

do estabelecimento de divisões originárias de poder. Relações de poder são estruturadas em

termos de uma fonte unilateral e indiferenciada de poder e de uma cumulativa reação ao

poder. Oposição é um fenômeno generalizado criado como resposta ao poder – o que, por

sua vez, é detido por alguns grupos de pessoas.

O maior problema com tal definição de poder é que ela encerra todas as lutas

revolucionarias em estruturas binárias – possuir poder versus ser impotente. Mulheres são

impotentes, grupos desunidos. Se a luta por uma sociedade justa for vista em termos da

mudança das mulheres de impotentes para poderosas como um grupo, e essa é a implicação

do discurso feminista que estrutura as diferenças sexuais em termos de divisão entre os

sexos, então essa nova sociedade seria estruturalmente idêntica à organização de relações de

poder, constituindo a si mesma como uma simples inversão do que existe. Se relações de

dominância e exploração são definidas em termos de divisões binárias – grupos que

dominam e grupos que são dominados – evidentemente a implicação de que a ascensão ao

poder de mulheres como um grupo é suficiente para desmantelar a organização das

relações existente? Mas mulheres como um grupo não são de forma alguma essencialmente

superiores ou infalíveis. O cerne do problema reside naquele pressuposto inicial de

mulheres como um grupo ou categoria homogênea (“os oprimidos”), um pressuposto

familiar dos feministas radicais e liberais do ocidente.

O que ocorre quando esse pressuposto de “mulheres como um grupo oprimido” é

situado no contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres do terceiro

mundo? É aqui que localizo o movimento colonialista. Ao contrastar a representação das

mulheres do terceiro mundo com o que eu me referi anteriormente como

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autorepresentação das feministas do Ocidente no mesmo contexto, vemos como as

feministas ocidentais sozinhas passam a ser os reais “sujeitos” dessa contra-história. As

mulheres do terceiro mundo, por outro lado, nunca ultrapassam a generalidade debilitante

de seu status de “objeto”.

Enquanto que os pressupostos feministas radicais e liberais de mulheres como uma

classe sexual possam elucidar (ainda que inadequadamente) a autonomia de lutas

particulares de mulheres no ocidente, a aplicação da noção de mulheres como uma

categoria homogênea a mulheres do terceiro mundo coloniza e apropria as pluralidades de

diferentes grupos de mulheres em locações simultâneas, em enquadramentos étnicos e de

classe social; em assim fazendo, em última análise as priva de seu poder histórico e político.

Similarmente, muitos autores da Zed Press que baseiam-se nas estratégias analíticas do

marxismo tradicional também criam implicitamente uma “unidade” de mulheres,

substituindo “trabalho” por “atividades femininas” como primeiro determinante teórico da

situação das mulheres. Aqui novamente mulheres são constituídas como um grupo

coerente, não com base nas qualidades “naturais” ou necessidades, mas com base de uma

“unidade” sociológica de seu papel na produção domestica e trabalho assalariado (veja

Haraway 1985, esp. p. 76). Em outras palavras, o discurso feminista ocidental, ao assumir

as mulheres como um grupo coerente e já constituído, o qual é colocado em estruturas de

parentesco, jurídicas, entre outras, define as mulheres do terceiro mundo como sujeitos fora

das relações sociais, em vez de observar como as mulheres são constituídas através dessas

estruturas.

Estruturas jurídicas, econômicas, religiosas e familiares são tratadas como

fenômenos a serem julgados pelos padrões ocidentais. É aqui que a universalidade

etnocêntrica entra em cena. Quando essas estruturas são definidas como

“subdesenvolvidas” ou “em desenvolvimento” e as mulheres são colocadas dentro delas,

uma imagem implícita da “mulher de terceiro mundo média” é produzida. Essa é a

transformação da (implicitamente ocidental) “mulher oprimida” em “mulher de terceiro

mundo oprimida”. Enquanto que a categoria de “mulher oprimida” é gerada por meio de

um foco exclusivo na diferença de gênero, a categoria “mulher de terceiro mundo

oprimida” possui um atributo adicional – a “diferença do terceiro mundo!”. A “diferença

do terceiro mundo” incluiu ma atitude paternalista em relação às mulheres de terceiro

mundo.15 Como as discussões dos vários temas que identifiquei anteriormente (parentesco,

educação, religião etc) são conduzidas no contexto do relativo “subdesenvolvimento” do

15

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terceiro mundo (que não é nada menos que um desenvolvimento injustificavelmente

confuso com um caminho diverso do tomado pelo Ocidente em seu desenvolvimento,

assim como ignorando a direcionalidade das relações mundiais de poder do primeiro-

terceiro mundo), as mulheres de terceiro mundo como grupo ou categoria são automática e

necessariamente definidas como religiosas (leia-se “não progressistas”), orientadas para a

família (leia-se “tradicionais”), incapazes (leia-se “elas-ainda-não-são-conscientes-de-seus-

direitos), iletradas (leia-se “ignorantes”), domésticas (leia-se “reacionárias”) e algumas vezes

revolucionárias (leia-se “seus-países-estão-em-um-estado-de-guerra; elas-devem-lutar!”).

Assim é como a “diferença do terceiro mundo” é produzida.

Quando a categoria das “mulheres sexualmente oprimidas” é localizada dentro de

sistemas particulares do terceiro mundo que são definidos em uma escala que é

normatizada por meio de pressupostos eurocêntricos, as mulheres de terceiro mundo não

são apenas definidas em um modo particular, prévio à sua entrada nas relações sociais, mas

também, uma vez que nenhuma conexão é feita entre deslocamentos de poder entre

primeiro e terceiro mundos, é reforçado o pressuposto de que o terceiro mundo apenas

ainda não evoluiu como o ocidente o fez. Essa forma de análise feminista, ao

homogeneizar e sistematizar as experiências de diferentes grupos de mulheres nesses

países, apaga todos os modos e experiências marginais e resistentes. 16 É significativo que

nenhum dos textos que resenhei na série Zed Press foque-se em políticas lésbicas ou em

políticas de organizações étnicas ou políticas marginais nos grupos de mulheres de terceiro

mundo. A resistência pode assim ser definida apenas como cumulativamente reativa, não

como algo inerente na operação de poder. Se o poder, como Michel Foucault argumentou

recentemente, pode realmente ser entendido apenas no contexto de resistência, 17 essa

percepção errônea é tanto analítica como estrategicamente problemática. Ela limita a

análise teórica, assim como reforça o imperialismo cultural ocidental. Pois no contexto de

um equilíbrio de poder primeiro/terceiro mundo, a análise feminista que perpetua e

sustenta a hegemonia da ideia da superioridade do Ocidente produz um conjunto de

imagens da “mulher de terceiro mundo”, imagens como a da mulher com véu, a mãe

poderosa, a virgem casta, a esposa obediente etc. Essas imagens existem em esplendor

universal, ahistorico, pondo em funcionamento um discurso colonialista que exercita um

poder muito especifico em definir, codificar e manter as conexões primeiro/terceiro

mundo existentes.

16

17

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26

Para concluir, então, deixe-me sugerir algumas similaridades desconcertantes entre a

típica assinatura de tais escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo, e

a assinatura do projeto de humanismo em geral – humanismo como projeto ideológico e

político ocidental, que envolve a necessária recuperação do “Oriente” e “Mulheres” como

Outros. Muitos pensadores contemporâneos, incluindo Foucault (1978, 1980), Derrida

(1974), Kristeva (1980), Deleuze e Guattari (1977) e Said (1978) escreveram longamente

sobre o antropomorfismo e o etnocentrismo subjacentes, que constituem uma

problemática humanística hegemônica, a qual repetidamente confirma e legitima

centralmente os Homens (ocidentais). Teóricas feministas como Luce Irigaway (1981),

Sarah Kofman (veja Berg 1982) e Helene Cixous (1981) também escreveram sobre a

recuperação e ausência de mulher/mulheres entre o humanismo ocidental. O foco do

trabalho de todos esses pensadores pode ser descrito apenas como a revelação dos interesses

políticos que subjazem a lógica binária do discurso humanista e ideologia onde, como um

recente e valioso ensaio coloca, “o primeiro (majoritário) termo (Identidade,

Universalidade, Cultura, Desapego, Verdade, Sanidade, Justiça, etc), que é, na verdade,

secundário e derivativo (uma construção), é privilegiado em relação a e coloniza o segundo

(minoria) termo (diferença, temporalidade, anarquia, erro, apego, insanidade, desvio, etc), o

que é, na verdade, primário e originário” (Spanos 1984). Em outras palavras, é apenas

quando “Mulher/Mulheres” e “o Oriente” são definidos como Outros, ou como

periféricos, que Homem/Humanismo (ocidental) pode representar a si mesmo como

centro. Não é o centro que determina a periferia, mas a periferia que, em sua delimitação,

determina o centro. Assim como Kristeva e Cixous desconstruíram o antropomorfismo

latente no discurso ocidental, eu sugeri uma estratégia paralela neste ensaio para revelar o

etnocentrismo latente em alguns escritos feministas a respeito de mulheres do terceiro

mundo.18

Como discutido previamente, uma comparação entre a auto-apresentaçao feminista

ocidental, e a representação feminista ocidental de imagens da “mulher de terceiro mundo”

(a mulher de véu, a virgem casta, etc), imagens construídas ao adicionar a “diferença do

terceiro mundo” à “diferença sexual”, são baseadas (e assim obviamente trazem ao foco)

pressupostos sobre mulheres ocidentais como seculares, liberadas e tendo controle sobre

suas vidas. Isso não é para sugerir que as mulheres ocidentais são seculares, liberadas e em

controle de suas vidas. Estou me referindo a uma auto-apresentação discursiva, não

necessariamente à realidade material. Se essa fosse uma realidade material, não haveria

18

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necessidade de movimentos políticos no Ocidente. Similarmente, apenas do ponto de vista

do Ocidente é possível definir “terceiro mundo” como subdesenvolvido e

economicamente dependente. Sem o discurso sobredeterminado que cria o terceiro mundo,

não haveria um (singular e privilegiado) primeiro mundo. Sem as “mulheres de terceiro

mundo”, a auto-apresentação particular das mulheres ocidentais mencionada anteriormente

seria problemática. Estou sugerindo, assim, que uma possibilita e sustenta a outra. Isso não

é para dizer que a assinatura de trabalhos sobre o terceiro mundo por feministas ocidentais

têm a mesma autoridade do projeto do humanismo ocidental. No entanto, no contexto da

hegemonia do establishment intelectual do humanismo ocidental na produção e

disseminação de textos, e no contexto do imperativo legitimante do discurso humanístico e

científico, a definição de “mulher do terceiro mundo” como um monólito pode muito bem

estar atrelada a uma práxis econômica e ideológica maior das pesquisas científicas

“desinteressadas” e do pluralismo, que são a manifestação superficial de uma colonização

econômica e cultural latente do mundo “não-ocidental”. É hora de mover-se para além de

Marx, que achou possível dizer: “eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser

representados”.