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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E INCLUSÃO. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO- BRASILEIRA LAÍSA FERNANDA SANTOS DE FARIAS NEM EXÓTICO, NEM FOLCLÓRICO: POSSO LHE CONTAR UMA HISTÓRIA? UMA ANÁLISE SOBRE AS OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR DESCRITAS PELAS CRIANÇAS E JOVENS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA BOA VISTA DOS NEGROS-PARELHAS/RN. CURRAIS-NOVOS- RN/2016

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO, DIVERSIDADE E

INCLUSÃO.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO

CERES

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-

BRASILEIRA

LAÍSA FERNANDA SANTOS DE FARIAS

NEM EXÓTICO, NEM FOLCLÓRICO: POSSO LHE CONTAR UMA HISTÓRIA?

UMA ANÁLISE SOBRE AS OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR DESCRITAS

PELAS CRIANÇAS E JOVENS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA BOA VISTA DOS

NEGROS-PARELHAS/RN.

CURRAIS-NOVOS- RN/2016

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LAÍSA FERNANDA SANTOS DE FARIAS

NEM EXÓTICO, NEM FOLCLÓRICO: POSSO LHE CONTAR UMA HISTÓRIA?

UMA ANÁLISE SOBRE AS OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR DESCRITAS

PELAS CRIANÇAS JOVENS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA BOA VISTA DOS

NEGROS-PARELHAS/RN.

Artigo apresentado como requisito para obtenção do

título de especialista em História e cultura africana e

afro brasileira, pela Universidade Federal do Rio

Grande do Norte orientado pela Professora Dra.

Juciene Batista Félix Andrade.

CURRAIS NOVOS- RN/ 2016

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LAÍSA FERNANDA SANTOS DE FARIAS

NEM EXÓTICO, NEM FOLCLÓRICO: POSSO LHE CONTAR UMA HISTÓRIA?

UMA ANÁLISE SOBRE AS OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR DESCRITAS

PELAS CRIANÇAS E JOVENS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA BOA VISTA DOS

NEGROS-PARELHAS/RN.

Artigo final apresentado à Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como

parte das exigências para a obtenção do

grau de Especialista em História e cultura

africana e afro brasileira.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Juciene Batista Félix Andrade

(Orientador)

____________________________________________________

Joel Carlos de Souza Andrade

(1º Examinador)

___________________________________________________

José Pereira de Souza Júnior

(2º Examinador)

CAICÓ-RN, 14 DE MAIO DE 2016.

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Às crianças e aos jovens da Comunidade quilombola Boa

Vista dos Negros, à minha família, e à minha orientadora

Juciene Andrade, um dos melhores presentes que a História

me deu.

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AGRADECIMENTOS:

A Deus e às forças positivas do universo que me ajudaram neste ofício historiográfico;

À minha mãe com sua serenidade, à minha avó com sua teimosia, e ao meu avohai com sua força;

À Thamara, minha amiga Thamy que me atendia sempre depois das dez da noite para falar sobre o

exercício da escrita, do trabalho, das amarguras e recompensas de ser professor, e da vida;

À Preta que não mediu esforços para reunir as crianças e os jovens para as entrevistas;

Às crianças e aos jovens entrevistados;

À Suyanne que se entregou profundamente em quase uma hora de entrevista;

Aos organizadores da Especialização em História e cultura africana e afro brasileira.

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Para que um dia as histórias possam ter cor diferente,

uma cor que também é bela, uma cor que traduza a

gente!

O pequeno príncipe preto – autor desconhecido

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SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 09

I-O QUE JUSTIFICA O SILÊNCIO?........................................................................... 13

II-QUAL O MEU LUGAR DE FALA?......................................................................... 22

III-DO FOLCLÓRIO AO HISTÓRICO: O QUE PRECISA APARECER?.................. 39

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ...................................................................................... 43

REFERÊNCIAS:.......................................................................................................... 45

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NEM EXÓTICO, NEM FOLCLÓRICO: POSSO LHE CONTAR UMA HISTÓRIA?

UMA ANÁLISE SOBRE AS OBSERVAÇÕES DO COTIDIANO ESCOLAR DESCRITAS

PELOS JOVENS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA BOA VISTA DOS NEGROS-

PARELHAS/RN.

Pós-graduanda: Laísa Fernanda Santos de Farias

Orientadora: Professora Dra. Juciene Batista Félix Andrade.

RESUMO:

A Comunidade quilombola Boa Vista dos Negros, situada nas adjacências da cidade de Parelhas-

RN, tem sido nos últimos anos objeto de pesquisas de várias áreas do conhecimento. Neste trabalho

voltado para a área do ensino de História, a comunidade em questão passa por uma leitura a partir

da análise dos depoimentos de seus próprios membros e, mais especificamente, pelas crianças e

jovens quando estes levam a comunidade e seus costumes, comportamentos, opiniões e trajetórias

de vida para dentro da sala de aula, no encontro com o material didático que estes se deparam em

seu processo de ensino e aprendizagem. Neste sentido, este trabalho apresenta elementos e análises

das falas das crianças e jovens desta comunidade quilombola, refletindo acerca de seu entendimento

enquanto estudante, ser político e participativo em construção diante dos estereótipos, preconceitos

e exclusões presentes inicialmente nos livros didáticos usados por estes em sala de aula e nas

demais relações sociais desenvolvidas no seu cotidiano escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros, Educação, Direitos

Humanos.

ABSTRACT:

The quilombo community Boa Vista dos Negros have been located in the vicinity of the city of

Parelhas -RN, in the last years, object of research on different areas of knowledge. On this work,

focused on the education area, the community in question goes through a reading from the analysis

of the testimony of its own members and more specifically for children and young people as they

bring the community and their customs, behaviors , opinions and life stories to the classroom at the

meeting with the teaching material that they face in the process of teaching and learning. On this

way, this work presents information and analysis of the speeches of children and youth of this

quilombo , reflecting about their understanding as a student , political being and participatory

construction on stereotypes , prejudices and exclusions initially present in textbooks used by them

in room class and in other social relations developed in their school routine.

KEY-WORDS: Quilombo Community Boa Vista dos Negros, Education, Human Rights

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INTRODUÇÃO:

Os objetivos que estão envoltos neste trabalho partem de questionamentos que vão desde

entender até que ponto os jovens estudantes da comunidade quilombola Boa Vista dos Negros se

sentem inseridos culturalmente ou não dentro do processo de ensino e aprendizagem nas escolas

que estes frequentam, se estes conseguem perceber os reflexos identitários da sua comunidade

dentro do material didático trabalhado em suas escolas, ou ainda o que eles gostariam que fossem

apresentados e de que maneira fossem abordados os aspectos do seu cotidiano enquanto

Quilombola.

Tal nomenclatura Quilombola apresentada anteriormente, remete-se a uma série de

significados que foram se alterando ao longo do tempo, conforme as lutas pelo reconhecimento do

povo negro e dos seus territórios, principalmente a partir do artigo 68, ou seja, pelo Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias presente na constituição brasileira de 1988 que tratou de:

Tendo em vista o crescimento do movimento quilombola, predominaram as

interpretações que consideravam a ressemantização da palavra “quilombo” para

efeitos da aplicação da provisão constitucional, valorizando o contexto de

resistência cultural que permitiu a viabilização histórica de tais comunidades.

(MATOS, 2006 p. 106).

Neste sentido, se antes os grupos quilombolas eram referenciados apenas por sua memória

alusiva à escravidão ou à doações de terras feitas no contexto da pós-abolição dos seus senhores, os

conflitos fundiários presentes após a constituição de 1988 tratou de esgarçar o conceito de

Quilombola para que este atendesse a uma demanda maior dos conjuntos e aglomerações de povos

de etnia negra, já que a caracterização dos remanescentes de quilombos seria considerada a partir da

própria comunidade, atendendo a sua trajetória histórica, com relações adequadas ao local

vivenciado, tendo uma ancestralidade negra em comum, e que estivesse relacionada à opressão

sofrida pelo povo negro no Brasil.

Atendendo ao exposto acima, a Comunidade Quilombola Boa Vista dos negros, com os seus

jovens e crianças investigadas neste trabalho, tenta fugir em suas falas da velha ideia de que são

descentes de pessoas escravizadas ou de quilombolas e que por isso tem que dar conta de um

discurso premeditado aos visitantes daquela localidade ou mesmo no seu convívio diário com a sala

de aula, sem parecer algo exótico e folclórico, ou até mesmo passando a imagem de quem vive em

um ambiente atrasado ou fora do contexto global de comunicação. Ao contrário, essas crianças

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denunciam em suas falas que são, sim, contribuintes da formação de nação e que tem tanta

importância quanto às demais etnias. Não que estes tivessem vergonha caso um dos seus ancestrais

tivessem uma relação direta com Zumbi dos Palmares, enfocado mais adiante por um dos jovens da

comunidade, com tanto respeito e admiração, o mote principal aqui é que estes querem mostrar que

existe uma história própria, comum a um número considerável de pessoas, e que essa história

continuou e resiste até os dias de hoje, não sendo somente aplicada ao sofrimento e desrespeito

alusivos da escravidão, mas sim ligada a outros tipos de manifestações culturais que dão conta de

representar símbolos de uma ancestralidade negra em comum a um determinado grupo.

Além de investigar e compreender situações cotidianas no espaço escolar, que são

carregadas de preconceitos de cor e lugar, os jovens e crianças da Boa Vista reclamaram, nas

entrevistas futuramente apresentadas, o incômodo diante dos olhares, abordagens e momentos de

“importância” para com sua história, diante daquilo que convêm as pessoas fora do seu convívio

escutar. Mas, em outras falas houve certo interesse em fazer da semana da consciência negra o seu

momento de empoderamento, já que nos demais dias do ano letivo não teriam outra chance, ou seja,

o que haveria então era um bem-me-quer pedagógico, a fim de atender a determinados profissionais

da educação, que ainda tem um pensamento monocultural e eurocêntrico, mas que na verdade

acabava se transformando em um espaço em que estes aproveitavam essa semana comemorativa

para mostrar sua verdadeira versão da história.

Com todo esse histórico apresentado pelos alunos neste trabalho, a instituição escolar fica

cada vez distante de um ambiente propício para a efetuação não só do processo de ensino e

aprendizagem, bem como de um local favorável para a construção de novas relações sociais, salvo

as existentes dentro de sua comunidade. A educação enquanto uma condutora da equalização social,

só será realmente efetiva se conseguir ajustar os direitos dos marginalizados no quadro social,

fazendo com que haja um sentimento de aceitação pelos que foram ao longo do tempo renegados

pelos demais. Questão essa que depende também de um professor preparado e sensível à temática

aqui exposta, não enxergando as crianças e jovens negras e quilombolas como um fardo e uma

obrigação por meio de uma lei1, e sim como portadores de direitos de propagação de sua história e

cultura nos materiais didáticos da disciplina de História.

Diante do exposto, não é mais nenhuma novidade que o espaço escolar é um território de

representações diversas, personagens heterogêneos, e ainda um território marcado por reproduções

1 Foi preciso que se criasse uma lei, como a 10.639/03 para que as instituições educacionais atentassem para o trabalho

com a cultura Africana e Afro-brasileira em sala de aula, e mesmo assim ainda há muita resistência por parte de alguns

profissionais de educação seja por falta de preparo, desinteresse, ou mesmo por preconceito.

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de um sistema social discriminatório e opressor diante daqueles que historicamente foram vítimas

de relações de poder assimétricas e desiguais. Tais características citadas se relacionam

perfeitamente com as ponderações mais adiante pormenorizadas, por aqueles que são discentes nas

escolas do município de Parelhas e adjacências e que são residentes e membros da Comunidade

Quilombola Boa Vista dos Negros2.

Vejamos no mapa:

3

Esta comunidade que já foi e continua sendo catalogada, estudada e problematizada por

diversos campos do conhecimento acadêmico4 e que foram de extrema importância para as demais

produções posteriores e inclusive para esta, nesta reflexão será pensada a partir da fala dos jovens e

crianças, em suas entrevistas, enquanto seu espaço de pertencimento cultural e um local de

empoderamento de sua identidade étnica diante dos embates e choques culturais que estes sentem

ou sentiram ao se depararem com uma realidade escolar fora da comunidade, já que esta é vista

2 A comunidade quilombola Boa Vista dos Negros fica localizada nas adjacências do município de Parelhas.

3 Mapa retirado do trabalho Os troncos velhos e os Quilombinhos ( 2008) da antropóloga Julie Cavignac a partir de suas

pesquisas naquela localidade . 4 Julie Cavignac antropóloga associada ao quadro de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte tem

realizado diversos projetos de pesquisa como, por exemplo, o Tronco Ramos e Raízes na Comunidade Quilombola Boa

Vista dos Negros em Parelhas-RN que já resultaram em intitulações como os Troncos velhos” e os “Quilombinhos”

memória genealógica, território e afirmação étnica em Boa Vista dos Negros (RN). Além de sua parceria com o

historiador Muirakytan Kennedy, onde estes lançaram o resultado de uma das suas pesquisas naquela comunidade que

resultou em um volume intitulado Tronco, Ramos e Raízes História e Patrimônio Cultural do Seridó Negro.

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diversas vezes enquanto um local exótico e folclórico5, e ainda a partir das considerações dentro do

Ensino de História e as reflexões acerca desta disciplina em sala de aula.

Todas essas problematizações fazem parte das diversas temáticas que envolvem a educação

em Direitos Humanos e o Multiculturalismo, há muito tempo discutidos pela educadora Vera

Candau, além do sociólogo Boaventura Santos, principalmente no processo histórico particular que

foi a exploração dos povos latinos americanos e a formação de suas nações, e de como estes povos6

foram desconsiderados diante do processo de desenvolvimento deste continente. Relacionando

ainda esta temática em particular, com a construção de um modelo de currículo escolar que atenda a

participação de povos historicamente marginalizados, aqui sendo representados pelos estudantes da

Comunidade Quilombola, que é discutido pelo pesquisador da área de currículo escolar Tomaz

Tadeu da Silva, no que tange a elaboração de um documento que atenda a equidade e a justiça

social.

Além dos aspectos relacionados ao ensino e aprendizagem, serão adicionadas ainda nesta

reflexão, estudiosos que debatem acerca dos pensamentos e questionamentos sobre raça e etnia no

Brasil ao longo da formação dessa nação, a exemplo de Lilia Moritz Schwarcz, Thomas E.

Skidmore, além do antropólogo africano Kabengele Munanga7, atrelando assim as concepções

usadas por esses estudiosos diante da análise do material didático usado pelas crianças e jovens da

Comunidade Quilombola em suas escolas. Estas questões iniciais são de extrema importância para

que haja um maior entendimento do contexto cultural em que um material didático é feito e que

tendências ideológicas foram ao longo do tempo canalizadas, como é o caso de uma gama de

imagens e textos referentes aos negros durante a escravidão e não mais aparecendo após ela, mesmo

que seus costumes estejam tão arraigados no dia a dia do povo brasileiro.

5 O exotismo foi reclamado pela própria líder da comunidade chamada por todos de Preta, já que em contatos iniciais

para a visita a comunidade ela levantou essa preocupação com relação aos pesquisadores e outras pessoas do município

que só os procuram em datas comemorativas como o dia da Consciência Negra e nos festejos da celebração a Nossa

Senhora do Rosário. 6 Nos processos de independências ocorridos principalmente na América Latina, e mais especificamente no Brasil,

negros e índios tiveram seus direitos desconsiderados e foram rebaixados a lugares socialmente subalternos. Mesmo

lutando atualmente por meio de leis de direito a terras, cotas raciais, oportunidades iguais, esses grupos étnicos têm que

enfrentar preconceitos, estereótipos e demais usurpações de seus direitos que está atrelado a um processo histórico da

não aceitação desses povos na formação do povo brasileiro. 7 Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire, em 19 de novembro de 1942. Foi o

primeiro antropólogo de seu país, saindo pela primeira vez para fazer mestrado na Bélgica. Chegou ao Brasil por

convite de um colega, terminou seu doutorado, retornou ao Congo. Em 1980 veio para o Brasil, para assumir a cadeira

de Antropologia na Universidade do Rio Grande do Norte. Depois de um ano muda-se definitivamente para São Paulo,

tomando como sua casa a Universidade de São Paulo. Tem cinco filhos, dois belgas, dois conguianos e um brasileiro.

Informações retiradas do: http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/pessoa/kabengele-munanga-16796. Tal

antropólogo em uma trajetória marcante na luta pela igualdade étnica e o respeito às diferenças.

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E todas essas considerações serão atreladas às pesquisas e ponderações que envolvem as

principais características de uma comunidade quilombola, em que contexto a mesma foi constituída,

como seu significado e representação mudaram ao longo do tempo, o que se precisa ter para ser

considerada uma comunidade quilombola no pós-constituição de 1988, e diversos outros aspectos

que são elencados em pesquisas como as de Hebe Matos8, além da antropóloga Julie Cavgnac, esta

última relacionada à Comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros.

Sem mais, entende-se que o processo de avaliação do livro didático que está em voga na

discussão proposta por esse trabalho é complexo e delicado. A própria preparação do professor para

avaliá-lo deve ser ainda mais rigorosa e exigir ainda mais que este profissional dê conta de uma

série de fatores que precisam ser revistos antes mesmo que esse material entre em sala de aula.

Porém, na reflexão aqui proposta o diferencial se faz por dar voz a personagens que frequentemente

foram e são desconsiderados dentro das escolhas dos conteúdos no processo de ensino e

aprendizagem. A fala das crianças e jovens da comunidade quilombola sobre o que eles presenciam

diariamente na escola, seja nas relações pessoais, seja no material didático, são urgentes e precisam

estar inseridas no âmbito das escolhas dos livros didáticos nas escolas, já que temos o direito de ser

iguais quando a diferença nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos

trivializa. (SANTOS, 2003, p.56).

I- O QUE JUSTIFICA O SILÊNCIO?

No ano de 2003 foi criada a lei 10.639/03, que passou a investigar, exigir e retificar os

escritos, as publicações e todo o contexto imagético que estavam, até então, preenchendo os

discursos que envolviam o negro e a construção de sua história no Brasil dentro de sala de aula.

Com isso, dentre as diversas disciplinas do quadro escolar, o cumprimento da lei se voltava

principalmente para a História, Língua Portuguesa e Literatura, além do Ensino de Artes. Nesta

8 Dentre as diversas pesquisas realizadas pela historiadora Hebe Matos cita-se Memórias de cativeiro: família, trabalho,

e cidadania no pós-abolição, trabalho esse que tem sido de grande relevância não só dentro dos parâmetros adequados

para a História Oral, bem como na problematização de memórias de descendentes de escravos e a importância da

preservação dessas memórias que relatam não só o sofrimento do negro nesse período, bem como questões sobre a

religiosidade, comportamento e a sua cultura de um modo geral. Essa obra foi transformada posteriormente em um

belíssimo documentário que pode ser visto na seguinte página:

http://www.labhoi.uff.br/passadospresentes/filmes_memorias.php. Sendo esta a primeira experiência fílmica de Hebe

Matos de Martha Abreu.

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discussão, o enfoque será dado à disciplina de História, as análises dos seus conteúdos, e até que

ponto os livros didáticos desta disciplina vem atendendo ou não às demandas exigidas por esta lei.

A Lei acima descrita entrou e está em vigor até os dias de hoje e muitos dos materiais em

sala de aula passaram por uma filtragem e novas análises no que tange a forma como o negro é

discutido, apresentado e representado, além da ausência nas publicações que chegam até a escola, e

do próprio comportamento dos profissionais em discutir esta temática mudaram, mas nem tanto. Já

que, mesmo havendo especializações na área, novas propostas didático-pedagógicas, além do

próprio cumprimento da lei, o livro didático, o mais importante dos formatos de conteúdos que

entra nesta instituição, deixa claro que ainda é perceptível que, mesmo depois de tanto tempo, ainda

é precária a representação da identidade negra em seus conteúdos e imagens, além de apresentar

certa relutância no tocante à abordagem da cultura negra nos seus textos e imagens, algo que mais

adiante poderá ser expresso em seus pormenores nas falas das crianças e jovens entrevistados na

Comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros.

Toda esta negação faz parte de um processo histórico e cultural que se iniciou ainda no

século XIX, junto aos estudos e discursos sobre a concepção de raça. Esses modelos teóricos de

alcance foram influenciados, em grande parte, pela estadia do Conde de Gobineau no Brasil, em que

o mesmo deixara claro o seu pensamento acerca das relações raciais e principalmente da

superioridade da raça ariana, demonstrando sua contrariedade e aceitação no que tangia aos

mestiços presentes no Brasil. O poder dos discursos nas sociedades são avassaladores, ou como

destaca Foucault:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos

que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento

aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2014, p. 8).

O Conde Gobineau e vários outros intelectuais da época acreditavam que tais teorias

surgidas na Europa em meados dos oitocentos e que acabaram chegando tardiamente no Brasil,

como discute a socióloga Lilia Moritz Shwarcz em sua obra O Espetáculo das Raças- 1993,

revogaram grandes questionamentos diante da miscigenação em alta no país. O controle dos

discursos mencionados por estes pensadores relacionam-se a fala de Foucault na medida em que o

controle do perigo da miscigenação deveria ser abafado pelas falas, sciencia, e demais

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procedimentos que dessem conta de mais adeptos. Ou ainda como aborda a pesquisadora do tema

Lilia Moritz:

As personagens dessa pesquisa são esses – hoje – obscuros “homens de sciencia” que

em finais do século XIX, e no interior dos estabelecimentos em que trabalhavam,

tomaram para si a quixotesca tarefa de abrigar uma ciência positiva e determinista, e,

utilizando-se dela, liberar e dar saídas para o destino dessa nação. Muitos desses

cientistas e políticos, pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários, esses

intelectuais irão se mover nos incômodos limites que os modelos lhe deixavam: entre

a aceitação das teorias estrangeiras - que condenavam o cruzamento racial – e a sua

adaptação a um povo a essa altura já muito miscigenado. (SHWARCZ, 1993, p.24).

Todos esses questionamentos sobre a questão racial advinham de intelectuais diversificados,

formados em faculdades de Direito, como as de São Paulo e Recife. A primeira preocupada com um

modelo nacional inspirado sob arquétipos mais liberais, e na segunda tem-se o social-darwinismo9

de Haeckel e Spencer inspirando a formação de seus alunos. E ainda pode-se destacar no campo da

medicina o Instituto Manguinhos, liderado por Oswaldo Cruz, além dos Institutos Históricos que

incluíam um grande contingente da elite intelectual advindos de diferentes províncias e que estavam

amplamente ligados ao monarca D. Pedro II10

.

Todas essas instituições estavam intimamente ligadas às discussões sobre raça, que estavam

em ampla vigência na Europa, o que acabou influenciando ainda mais os intelectuais brasileiros a

cultivar um modelo civilizacional excludente. Observa-se ainda na fala da socióloga acima a

expressão “quixotesca” perfazendo uma relação com o personagem mítico de Dom Quixote, da obra

do escritor Miguel de Cervantes, para dar ênfase aos estudos e teorias que beiravam a loucura na

busca por desconsiderar totalmente a etnia negra em prol da branca, além da busca incansável para

livrar o Brasil da mancha sombria trazida pela miscigenação, e, consequentemente, o sonho de ver o

Brasil com uma população, se não por completo, mas em sua maioria branca.

O Negro, os africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos, transformaram-se em “objetos

de sciencia” como destaca a própria Lilia Moritz sobre as palavras de Silvio Romero no momento

do advento de tais estudos. Com isso, ainda expressa a autora, que estes cientistas acabaram tendo

uma identidade incomum graças aos espaços científicos que os mesmos não só frequentavam, bem

9 Darwinismo social seria a teoria da evolução das espécies dentro de seu desenvolvimento dentro da sociedade,

permitindo também a adaptação aos paradigmas sociais, como foi o caso da Eugenia. 10

O imperador D. Pedro II foi um grande incentivador e financiador de projetos de pesquisas ligados ao IHGB, além de

ter feito grandes donativos a instituição, era um frequentador assíduo desse centro de pesquisa.

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como a atenção que estes davam as últimas tendências teóricas que estavam em vigor na Europa, e,

nesse caso, as teorias raciais. Desta feita, tudo isso que vem sendo discutido até então sobre a

insistência contínua de os intelectuais em embranquecer o Brasil, acabou respingando na

calcificação histórica de um processo de modelos e interpretações sobre o negro no material

didático e na falta de valorização da diversidade e cultura do povo brasileiro presentes até os dias de

hoje nas salas de aula.

Ainda se voltando para os oitocentos, encontra-se também uma sólida discussão acerca das

teorias raciais na Europa e, principalmente no Brasil, na obra Preto no branco: Raça e

nacionalidade no pensamento brasileiro de Thomas E. Skidmore, em que este promove um

detalhado mergulho em nomes, datas e obras que expressaram essa insistente vontade de dar uma

identidade racial ao nosso país, tendo as novas ideologias de progresso e de ciência um remédio

forte e atraente para espíritos jovens, numa nação cuja estrutura social e herança cultural não

poderiam ser mais diferentes do progresso material na Europa ocidental e na América do Norte.

(SKIDMORE, 2012). O que estava em cheque era como justificar ao resto do mundo a

miscigenação brasileira e de que maneira ela poderia sofrer um processo científico e se adequar ao

modelo mais vigente naquele período.

Diante de tantos embates apontados nos trabalhos da socióloga Lilia Moritz e do estudioso

Thomas Skidmore, dentro desse processo histórico, eis que surge uma solução que parecia ser a

melhor de imediato, ou seja, precisava-se embranquecer o Brasil para que em alguns anos se tivesse

um país nos padrões civilizacionais europeus, questão essa que acabou sendo reforçada também

pelo predomínio branco advindo da imigração e reverberada por João Batista de Lacerda em sua

tese apresentada no Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres em 1991. Desta

feita, sua tese se baseava:

A tese comentada se baseava no pressuposto da superioridade branca – ás vezes

minimizada por ficar em aberto a questão do quão “inata” seria essa inferioridade e

pelo emprego do eufemismo como “raças mais adiantadas” e “menos adiantadas”.

Primeiro, a população negra estava se tornando menos numerosa do que a branca

por motivos que incluíam uma taxa de natalidade supostamente menor, uma maior

incidência de doenças e a desorganização social. Segundo, a miscigenação estava

produzindo, “naturalmente”, uma população mais clara, em parte porque os genes

mais brancos eram mais fortes e em parte porque as pessoas escolhiam parceiros

mais claros que elas. (SKIDMORE, 2012, p. 111).

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Sendo este último trecho, no que tange a escolha de parceiros reforçados pela chegada dos

imigrantes no Brasil, temos acima a primeira explicação “científica” pautada em uma saída para o

branqueamento do Brasil e, consequentemente, o apagamento do negro e da sua cultura inferior,

segundo a visão de Batista de Lacerda, deixando claro que havia, a partir de então, um “resultado”

para as discussões que já vinham sendo endossadas pelos intelectuais da época, mesmo que

houvesse claramente dúvidas quanto as suas conclusões.

Tudo isso seria mais tarde contestado pelo sociólogo Gilberto Freire em seu famoso trabalho

Casa Grande e Senzala, que revolucionou os estudos que até então havia sobre o negro no Brasil,

ao discorrer acerca de uma relação patriarcal protagonizada dentro da Casa Grande, que se

caracterizava pela forma harmoniosa entre senhor e escravo no contexto açucareiro e de como a

miscigenação não era um processo tão danoso em relação à construção de um povo tipicamente

brasileiro. A não ser quando este aponta as consequências do cruzamento racial atrelado ao

espalhamento da Sífilis, doença sexualmente transmissível muito comum neste período, e que nas

indagações feitas por Freire em seu trabalho foram vistas como um dos grandes males deste

processo. Desta forma:

A vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem tremenda da

sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro – talvez o tipo ideal do

homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou o índio a avivar-lhe a

energia; outra a deformá-lo. Daí certa confusão de reponsabilidades; atribuindo muitos

á miscigenação o que tem sido obra da sifilização; responsabilizando-se a raça negra

ou a ameríndia ou mesmo a portuguesa, cada uma das quais, pura ou sem cruzamento,

está cansada de produzir exemplares admiráveis de beleza e de robustez física, pelo

“feio” e pelo “bisonho” das nossas populações mestiças mais afetadas de sífilis ou

mais roídas de verminose. (FREIRE, 2013, p. 110).

Percebe-se então na fala supracitada de Freire, que havia por parte de outros a

responsabilização pelas mazelas sociais que passariam a surgir dentro deste processo que o autor

compreendia perfeitamente, mas que para muitos seria a primeira das muitas desgraças que

ocorreriam no país pela má formação de sua população. Desta feita, por mais polêmica e atualmente

inexistente que seja a ideia da democracia racial defendida por Gilberto Freire em sua obra, por

outro lado tem-se um dos mais fortes pensamentos brasileiros diante da aceitação de uma sociedade

miscigenada, e que seria resultado das três importantes raças presentes no período colonial. No

entanto, o conteúdo que acabou se perpetuando por mais tempo e, sendo alimentado inúmeras

vezes, foi justamente aquele que diz respeito ao da democracia racial.

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Avançando no tempo, este conceito cristalizado e ainda não questionado passa a enfrentar

um processo de rachadura ainda não terminado, sendo propícia a discussão proposta, diante das

denúncias feitas ao longo do tempo pelo Movimento Negro11

, atrelado à urgência de debates sobre

preconceito racial e ainda diante de processos excludentes em diversas instituições sociais, até se

chegar a pensar e se efetivar a Lei 10.639/03, tem-se então um avanço de lutas sociais por parte do

próprio movimento e que se enquadra a emergência acerca da efetivação dos Direitos Humanos

exercidos em coletividade, abordado por Boaventura de Souza Santos e Marilena Chaui em Direitos

Humanos, Democracia e desenvolvimento.

No tópico que aborda o reconhecimento da igualdade na diferença, os autores acima citados

deixam claro que há muito tempo a luta pelos direitos humanos deixou de ser apenas um processo

para a validação e distribuição de direitos triviais ao cidadão, proposta inicial no pós-segunda

Guerra Mundial, e passou a constituir uma série de lutas pelo reconhecimento de uma determinada

cultura na diferença, além do respeito e a aceitação dessa nos diversos contextos sociais, sendo ela

coletiva ou individual, a questão é que mais especificamente a luta pelos direitos de povos indígenas

ou afrodescendentes nos últimos anos tem tido grande visibilidade política, muito embora tenham

causado polêmicas principalmente no que dizem respeito. Tudo isso fica claro quando os autores

exemplificam:

O Reconhecimento do direito á diferença e a consequente condenação de ideias e

políticas que no passado o negaram tem-se traduzido em múltiplas intervenções do

Estado: ações afirmativas de vários tipos, quotas para mulheres, afrodescendentes e

indígenas, revisão profunda da história dos países e dos programas e conteúdos

educativos, reconhecimento e proteção de línguas não coloniais, direitos especiais a

terra e ao território, por vezes, no âmbito do reconhecimento da autodeterminação

interna. (CHAUÍ; SANTOS, 2013, p. 80).

Todas essas questões apontadas acima fazem parte de um amplo processo de lutas desses

mesmos movimentos em requerer direitos a mais do que o acesso a bens de serviços a que todos

11

São muitas as ações realizadas por esse movimento, pode-se destacar; A Marcha Zumbi + 10 que ocorreu no governo

do então presidente Fernando Henrique Cardoso, e este reconheceu a presença de racismo no Brasil, além do

Movimento de mulheres negras e o Movimento Negro Unificado que se preocuparam na década de 90 de propor

medidas urgentes em favor do povo negro. E ainda cita-se a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial da Presidência da República em 2003 e a Lei 10.639/03 pensada em prol da inserção dos conteúdos

relacionados à História da África e Afro Brasileira dentro de sala de aula. Fonte:

http://www.ifg.edu.br/igualdaderacial/index.php/historico. Além disso, é preciso destacar ainda o nome de Abdias do

Nascimento liderança negra que iniciou sua militância política desde a década de 30 quando este integra a Frente Negra

Brasileira em São Paulo, dedicando a maior parte de sua vida a lutar pela igualdade étnica e na valorização da cultura

africana e afro-brasileira.

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têm, e sim a cobrança pelo aumento de oportunidades no quadro social, universitário, além do

empregatício e principalmente pelo reconhecimento e igualdade de importância de sua cultura e

direito de manifestação sem que sofram preconceitos e perpetuação de estereótipos.

Suyanne Maroyse12

, líder jovem da comunidade quilombola citada neste texto, vem fazendo

um trabalho diferenciado na cidade de Parelhas e consequentemente em escolas da cidade, através

de oficinas de Grafite com crianças e jovens, depois que resolveu transformar os sentimentos

incômodos com preconceito sofrido em sala de aula e nos concursos de beleza na própria cidade,

em ações para ensinar a esse tipo de público as tradições presentes em sua comunidade, a

valorização do jovem negro na sociedade, e principalmente com ações ligadas às políticas de

empoderamento de meninas negras, já que esta participou de diversos cursos na área, se tornando

assim uma das mais preparadas da Comunidade Quilombola no tocante a amostragem de sua

cultura. Quando questionada sobre o material didático utilizado nos seus anos de sala de aula

enquanto docente da escola pública, Suyanne relatou o seguinte:

(...) Principalmente os livros de História, por que uma criança negra na escola, assim...

quando ela começa a atingir o Ensino Médio e passa pela fase da adolescência ele

nunca vai ter orgulho da sua pele e muito menos de sua etnia né? Por quê? Por que os

livros ensinam que os negros foram escravizados e chicoteados, é só isso que diz, ele

não fala sobre o valor do negro. Ele diz que retiraram o negro, que o negro foi preso,

acorrentado e tinha que fazer trabalho escravo, como se o negro tivesse nascido para

isso entendeu? E eu sou muito revoltada com esses livros (...). (SUYANNE, 00: 35).

O relato da jovem Suyanne Maroyse, acima descrito, soa como um dos muitos alertas do

movimento negro deste país. Sendo esta participante politicamente ativa e advinda de uma

comunidade quilombola que sente a necessidade de ver seus amigos, irmãos, primos e demais

familiares daquela localidade, serem representados no material didático distribuído nas escolas de

sua cidade e do seu país, a mesma deixa clara a sua indignação diante da “falta de história” do seu

povo, como se “este” só tivesse sido suscetível a trabalhos forçados e a castigos por não cumpri-los.

Essa verdadeira aversão ao não contar a história do povo negro do Brasil, tem transformado jovens

como Suyanne a repensar o seu lugar diante da sua comunidade de origem, e o seu não lugar

perante o contexto social onde ocorre o embate e encontro de outras etnias.

12

Suyanne Maroyse, líder jovem da comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros participa de grupos da Secretaria

de Assistência Social da própria cidade que tem o intuito de sensibilizar jovens negros e não negros sobre a importância

da participação destes na sociedade e em trabalhos com demais jovens e crianças no que tange ao fim do preconceito

racial e a igualdade de gênero.

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Neste momento, a fala da entrevistada Suyanne também funciona como uma denúncia para

com livros didáticos que chegam as escolas e, remete-se essa discussão à reflexão da pesquisadora

Circe Bittencourt, que no seu trabalho Ensino de História Fundamentos e Métodos discute a história

da população negra e a forma como estas têm sido abordas nos livros didáticos, vem sendo objeto

de estudos de vários pesquisadores como Fúlvia Rosemberg e Marco Antônio de Oliveira, por

exemplo. Esta pesquisadora, ainda no decorrer do seu texto, aponta a seguinte ideia; “concluindo

que a produção historiográfica continua insistindo sobre o período da escravidão e pouco se

dedicando á época posterior – pós-abolição – e a atuação e lutas dessa população na história do

século XX no Brasil.” (BITTENCOURT, 2009, p. 306)

Neste sentido, não só relacionada a esta temática exposta anteriormente, mas a gama de

investimentos em pesquisas acadêmicas nesta área, busca compreender o livro didático enquanto

um objeto histórico, produzido num tempo determinado e como um espaço de construção e de

veiculação de ideias e, por conseguinte, o seu consumo. Salvo esta abordagem anteriormente

explicitada, as pesquisas acadêmicas ainda buscam fazer análises para ver se o processo histórico

da população negra do país está inserido nos textos, nas análises das imagens, ou nas atividades

complementares presentes no livro de história utilizado pelo professor.

Além das análises sobre as pesquisas relacionadas a esse material, o PNLD13

(Plano

Nacional do Livro Didático), órgão responsável pelo financiamento e universalização dos livros

didáticos nas escolas, tem sido cada vez mais rigoroso na compra deste material, principalmente

após a polêmica gerada pela coleção Nova História Crítica14

, que ganhou as páginas dos jornais por

tratar de temas históricos de forma vaga e, segundo alguns jornalistas que reprovaram a veiculação

desta obra, de forma tendenciosa, ou seja, incentivando o leitor a militar por alguns temas. Neste

contexto, o órgão acima conta com uma equipe de parceristas formadas por professores e

pesquisadores de diversas universidades, além da inserção de alguns professores da educação

básica, buscando fazer um melhor mapeamento do que se pretende trabalhar em sala de aula. Desta

13

O Plano Nacional do Livro Didático tem como objetivo oferecer aos alunos das escolas públicas do Ensino

Fundamental e Médio, livros didáticos gratuitos e de qualidade no que tange ao apoio do processo de Ensino e

Aprendizagem. 14

Ali Kamel publicou em 2007 no jornal O Globo o artigo; A Polêmica sobre a nova história, onde criticava claramente

a posição do autor Mario Schmidt da coleção Nova História Crítica a dividir a História entre bons e ruins, ou seja,

segundo o jornalista os textos presente particularmente nos livros da já extinta 8º série era de um grande perigo para as

nossas crianças. Fonte:< http://observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/a-polemica-sobre-a-nova-historia/>.

Pode-se ainda encontrar discussões em sites como o Café História onde professores, historiadores e demais estudiosos

discute diversos assuntos referentes à disciplina de História. Fonte: >http://cafehistoria.ning.com/forum/topics/livro-de-

mario-schmidt-nova>. Além de muitos outros.

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feita, já adentrando novamente as análises sobre o objeto de estudo que norteia este projeto, Marco

Silva em seu trabalho A Fetichização do Livro Didático no Brasil (2012), parafraseando Miranda e

De Luca (2004, p. 127) discorre:

Em relação aos livros de História, Miranda e De Luca (2004, p. 127) sustentam que

autores e editores, receando a exclusão de seu produto do Guia do Livro Didático,

passaram a ter cuidados evidentes para que os livros não veiculassem mais

estereótipos, desatualizações graves, erros de informação ou conceituais, preconceitos

de gênero, condição social ou etnia, bem como de quaisquer formas de proselitismo e

incoerências metodológicas graves entre a proposta explicitada e aquilo que foi

efetivamente realizado ao longo da obra. (SILVA, 2012, p.813, apud, MIRANDA E

DE LUCA 2004, p. 127).

Desta observação, retira-se prioritariamente para o artigo aqui e descrição, a questão dos

preconceitos de gênero e condição social e etnia, já que tais questões deverão ser observadas nos

livros escolhidos pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de Parelhas, juntamente com os

professores da disciplina de História deste município, para os trabalhos nos anos de 2014, 2015, e

2016, ou ainda até o ano de 2017, como é o caso dos livros de História do Ensino Médio. Logo,

percebendo o professor como o principal mediador na formação do aluno enquanto um ser pensante

e crítico, e tendo muitas vezes o livro didático como o único recurso que os comportam, por que não

trabalhar a história da Comunidade Quilombola Boa vista dos Negros quando se estiver discutindo

em sala de aula o processo de abolição do escravo/negro e consequentemente sua inserção e a

valorização de história na sociedade? Qual é a relação da Comunidade Quilombola da cidade de

Parelhas com a cultura Afro-brasileira? Por que não deixar de abordar somente o negro como objeto

ou “coisa” no período colonial, e falar sobre as suas representações culturais que já ocorriam neste

período?

Outra ponderação que pode ser feita diante da escolha dos livros didáticos de História é

justamente o trabalho em conjunto dos professores dessa área que trabalham tanto na rede Estadual,

quanto na rede municipal de ensino, já que entendo que, por lei, estados e seus respectivos

municípios devem trabalhar em regime de colaboração tanto no âmbito educacional como em

qualquer outro, e que a comunidade quilombola faz parte também da história cultural local do

distrito de Parelhas, é aconselhável que se haja um trabalho mais grupal nesse sentido, diante da

escolha de um material que atenda também aos conteúdos que, quando não são próprios da Boa

Vista, mas que dê uma abertura maior para que se possa discuti-la em sala de aula.

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Ações como essa conseguem evocar ainda a soma das três possibilidades de trabalhos que já

vem sendo discutidas neste projeto, que é, justamente, a aplicação da Lei 10.639/03, História Local,

e a análise do livro didático de História escolhido para o trabalho dos professores desta disciplina da

Rede Municipal de Ensino da cidade de Parelhas. “O uso desta estratégia no trabalho com a história

temática exige que se estabeleça, de forma contínua e sistemática, a articulação entre conteúdos da

história local, da nacional e da universal”. (SCHMIDT, CAINELLI, 2009, p.141-142.).

Logo, posteriormente se verá neste trabalho o confronto de falas dos jovens e crianças

negras daquela comunidade, juntamente com a sua líder comunitária Preta e líderes jovens, como

Suyanne, onde se falará realmente se nos livros adotados pela Secretaria Municipal de Parelhas e

demais professores, realmente atende a demanda das necessidades urgentes de que outra versão

sobre o negro seja apontada, ou se este realmente já atende a todo esse processo.

II- QUAL O MEU LUGAR DE FALA?

E o livro didático... Vamos dizer que ele nos aprisiona.

Suyanne Maroyse.

A fala de Suyanne Maroyse já apresentada anteriormente neste texto é de uma profundidade

tamanha. Sua citação consegue remeter a quem tem a possibilidade de ouvi-la ou lê-la, a exploração

de uma imagem do negro a um só período da História do Brasil, a escravidão obviamente, além de

perpetuar a ideia de um grupo étnico sempre em submissão e em eterna concordância com um

padrão social e patriarcal branco, o que faz com que até os dias de hoje se renove a ideia de que os

negros devam se submeter a trabalhos de baixa remuneração e valorização associada à sua cor e ao

histórico de exploração sofrido e imposto a esse grupo étnico.

Com isso, adiantando a análise prevista neste trabalho, foram separadas as coleções

História: Sociedade e Cidadania de Alfredo Boulos Júnior, sendo esta a coleção adotada na Escola

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Estadual Monsenhor Amâncio Ramalho, em que estudam alunos da comunidade que já estão no

Ensino Médio. Além da coleção Estudar História: Das origens do homem a era digital, da Editora

Moderna, adotada pela Escola Estadual Bernadinho de Sena, da comunidade Juazeiro, próxima a

Boa Vista, e ainda o livro do 5º ano de Língua Portuguesa, Geografia e História da editora FTD,

intitulado Novo Girassol: Saberes e Fazeres do campo, de Isabella Carpaneda e Angiolina

Bragança, também adotada pela escola da comunidade para as crianças do 5º ano do Ensino

Fundamental I. Vale salientar que os livros do Ensino Médio e do Ensino Fundamental I só serão

mudados em 2018, já que teve avaliação e escolha desse material no final do ano de 2015, mas já o

livro do Ensino Fundamental II tem o prazo de validade marcado para o corrente ano de 2016. Vale

salientar que todos passaram pela avaliação do PNLD (Programa Nacional do Livro didático).

Apresentado o material usado pelos alunos até o presente ano de 2016, o primeiro

questionamento que foi feito aos jovens e crianças da comunidade Quilombola Boa Vista dos

Negros foi o mesmo já respondido por Suyanne Maroyse, no momento de sua entrevista, acerca de

como eles conseguiam se identificar enquanto quilombola com o material didático trabalhado, e o

que eles viam de um modo geral nos livros didáticos usados por estes. Neste sentido, Hesley um dos

primeiros jovens a se pronunciar na entrevista deixou claro que no livro:

Aparece à história da escravidão, que os negros vieram para o Brasil e também... E

parece que quando eles foram presos lutaram para abolir a escravidão. Tem

também umas partes sobre as comunidades antigas. ENTREVISTADORA:

Aparece muito ou pouco? HESLEY: pouco, só em algumas páginas. (HESLEY,

02h32min).

O questionamento sobre a quantidade de histórias que aparecem no livro, não se refere às

imagens e demais signos do período escravocrata no Brasil, já que estas são muitas, este “pouco”,

então, faz menção à presença de comunidades negras antigas como o Quilombo dos Palmares, que

será citado mais adiante nas falas dos entrevistados, já que tal local de resistência escrava aparece

como símbolo de resistência e fuga para os mesmos, diante da opressão que fora a escravidão.

Hesley que já está na terceira série do Ensino Médio, demonstrou em nossa conversa, a vontade de

continuar estudando, entrar no Ensino Superior e buscar as oportunidades que são oferecidas na

vida, assim como outros jovens de sua idade, além da necessidade em ser representado juntamente a

sua comunidade quilombola nos livros didáticos em que este reclama do pouco que aparece. Resta

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saber se a escola está realmente apta, com seu material didático e profissional, a incentivar jovens

como ele a seguir em frente.

O que preocupa então na fala Hesley, é a ausência clara da abordagem das comunidades

quilombolas nos livros didáticos de História, em que ele e seus sucessores podem presenciar. O

silêncio e não dito nas páginas dos livros dão margens para inúmeros questionamentos sobre a

amostragem de quilombolas que necessitam ser representados verdadeiramente, para além da sua

similaridade com os negros escravizados em tempos de outrora.

No livro de História que o entrevistado Hesley terá acesso neste ano, os conteúdos sobre

África se deterão principalmente as independências de suas colônias no século XX, sendo este

capítulo apresentado a partir de poesias, imagens e textos resumidos, destacando a independência de

diversos países africanos, além de abordar ainda a questão da segregação racial na África do Sul e a

liderança de Nelson Mandela. Vale salientar que, assim como em outras coleções, no livro didático

de História de Boulos para a terceira série do Ensino Médio, o conteúdo sobre a independência das

colônias africanas está junto ao conteúdo sobre a independência da Ásia, o que faz com que os

conteúdos venham extremamente reduzidos, e não abordando principalmente as consequências

desse processo colonial diante do atraso no desenvolvimento do continente africano como um todo,

além do continente asiático, claro. Hesley, jovem da comunidade que terá acesso ao livro com o

exemplo citado, relatou um pouco do que já presenciou sobre as imagens do negro nos materiais

didáticos que já consumiu:

Tem umas imagens que aparecem como se cada negro tivesse o lugar dele. Tem

uma foto lá de quando Zumbi tava lá e era como se ele fosse um rei de todos os

reis, e também tem Nelson Mandela também, nós assistimos o filme dele.

(HESLEY, 00:38)

Inicialmente é interessante observar na fala de Hesley duas questões interessantes, a

primeira é a segregação dada ao negro no decorrer do seu processo histórico, não só na África

colonial, mas também em outros contextos, e o fato de Zumbi passar a imagem de um grande líder

do povo negro e aqui destacado por Hesley como um rei. É ainda primordial destacar citação ao

nome de Mandela e o fato de este jovem ter assistido ao seu filme, ou a um dos seus, já que não tem

somente um. Com isso, entende-se que é louvável que apareçam imagens como a de Zumbi e de

Mandela para esses jovens, pois estes são líderes reconhecidos entre a população negra brasileira e

mundial, porém a interrogação que se instala nesse momento é o fato de existir um quadro

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repetitivo de personalidades, e que não dá espaço ou não abre um diálogo com uma série de

artistas, pessoas comuns, movimentos sociais negros, ou ainda de uma Comunidade Quilombola

como a Boa Vista dos Negros, que têm representantes e manifestações culturais tão importantes

como as do povo de Mandela, e dos escravos fugidos que conviveram com Zumbi, como a própria

Dandara, que serve de exemplo de luta entre mulheres negras.

Existe uma série de figuras negras, que carregam consigo marcas da tradição e da

ancestralidade, que facilmente pode ser citada e transformada em temática de discussões em sala de

aula. A Comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros, por exemplo, dá uma abertura gigantesca

para que, entre alunos dos mais diversos meios possíveis, haja uma discussão e a aplicação de uma

rede de conhecimento profundo, e mais, por que não iniciar uma aula de História do Brasil

contemporâneo abordando a questão da terra no país, por alguma comunidade quilombola? Por que

não falar dos rumos que a população negra também tomou após a abolição citando a aglomeração

desses povos em áreas rurais?

Seguindo com os relatos, quando perguntado ainda sobre o que eles gostariam que fossem

mostrados sobre a comunidade em suas escolas, Hesley se pronunciou mais uma vez defendendo;

Tem... Preta, o Ponto de cultura também, e a festa de Nossa Senhora do Rosário (HESLEY, 01:

21). Preta, citada acima, é a atual líder da comunidade quilombola, sendo ela responsável pelo

Ponto de Cultura e demais questões da associação comunitária, além das preparações e evento

ligados a festa de Nossa Senhora do Rosário. Ela também participou de toda a articulação com os

jovens da comunidade, e também esteve presente para dar as suas considerações sobre o que estava

sendo discutido naquele momento e sentiu a necessidade de se pronunciar diante das repetidas falas

acerca do preconceito racial enfrentado por estas crianças, e ainda sobre a importância dada a fala

do negro em períodos de exploração. Logo, a líder explanou:

Só fala do negro né? Do negro escravo, o negro dessa forma. Assim...Você muitas

vezes não ver que o negro tem capacidade de ser alguém de ser o que ele queria ser e

as vezes ele se sente tão diminuído que assim... Eu sempre tive vontade de fazer um

trabalho na comunidade, um trabalho de incentivo. Eu vejo bastante crianças que

terminam o 2º ano e eu vejo Laísa que não tem aquele incentivo de fazer uma

faculdade, e que se sentem tão diminuído que não é capaz... que não quer ir mais além.

Eles acham que assim, que vão terminar o 2º ano e que ali pra eles já está

bom...(PRETA, 02: 58 min).

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Entende-se 2º ano, aqui na fala de Preta, como a segunda parte da trajetória escolar em que

abrange o Ensino Médio e o período de transição diante das escolhas profissionais que regerá a vida

desses jovens nos próximos anos. Aqui Preta, a entrevistada, entende o sentir-se diminuído, ao

processo discriminatório sofrido por esses nos anos em sala de aula, e aplica o fracasso diante da

busca em ser esse “alguém” à falta de estímulo pessoal. Questão essa que pensa em trabalhar em

projetos futuros, que poderão ser realizados na comunidade, mas que infelizmente não é uma

realidade só daquele lugar, e sim de várias partes do país, onde as populações negras enfrentam e

desistem dos planos, ansiosos por uma efetivação diante do preconceito, humilhação e desrespeito

disfarçados de uma aceitação “democrática”.

Voltando à discussão sobre o material didático, no livro do 7º ano da Editora Moderna,

Estudar História: Das origens do homem á era digital, o conteúdo sobre o nordeste açucareiro é

encontrado em pequeno texto, numa seção intitulada; Saiba Mais onde os alunos podem encontrar,

numa explicação de um pouco mais de dez linhas, o que é uma Comunidade Quilombola, logo após

conhecerem os Mocambos e Quilombos e a resistência escrava. Tal abordagem e a sequência dos

textos quilombo, mocambos e comunidade quilombola acaba perpetuando a velha ideia de que

numa Comunidade como a Boa Vista encontraremos descendentes diretos de escravos. Pena que o

desejo de Hesley ainda não tenha sido atendido, pois essa perpetuação do negro escravo, e da

comunidade quilombola afastada do interesse público, só despertando o interesse quando é para

trabalhos escolares e culturais na semana da consciência negra em benefício próprio, acaba

aumentado ainda mais o preconceito e o estranhamento para com as pessoas daquela comunidade.

Incômodo quando questionado sobre o preconceito racial no tocante ao negro, e ainda ao negro

quilombola: Não é tudo a mesma cor? Ai tem pessoas que tem diferença dos outros... (MARCOS,

01h39min).

Neste momento Hesley participa mais uma vez do questionamento, mas agora para levantar

um debate incomum, mas que é de extrema importância para a reflexão acerca da diferença de um

negro que pertence a uma comunidade quilombola e de um negro que não pertence: É mais tem

gente também não é... Ou, são negros, mas não são quilombolas e quando acontecem um negócio

com eles na escola, eles diz: Ah! Só por que eu sou negro. (HESLEY, 01h49min).

Esse último trecho da fala de Hesley se remete a um conjunto de xingamentos racistas que já

existem há muito tempo no Brasil e que acabou se cristalizando como se fosse uma brincadeira ou

um ditado popular nos jargões dos adolescentes que estão em sala de aula ou fora dela, para

justificar o fato de não ter se saído bem em uma determinada tarefa, ou não ser escolhido para

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alguma função na roda de amigos, ou ainda de ser aquela pessoa de quem sempre tiram sarro. Com

isso, vemos nessas duas falas acima, a revolta diante de situações vistas na escola e que, enquanto

negros e quilombolas, esses garotos demonstram que suas identidades estão se formando ao longo

do tempo, a partir de processos inconscientes e não estáticos, desde o seu nascimento até esses

embates encontrados em sala de aula.

Observa-se que todas essas falas não só transbordam sentimentos talvez nunca debatidos e

falados em sala de aula com aqueles colegas equivocados, mas também vestígios de suas

identidades em formação, além do empoderamento enquanto negro quilombola diante de colegas de

outras etnias, bem como também da sua, mas que compreendem a relação com um lugar específico,

com uma cultura em particular. Essa discussão sobre identidade é bem discutida por Stuart Hall em

seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, em que uma de suas passagens, afirma:

Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo

formada”. As partes “femininas” ou do “eu” masculino, por exemplo, que são

negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas

não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da identidade como uma

coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em

andamento. (HALL, 2015, p. 24).

Baseando-se no exposto anterior, enquanto comunidade quilombola, tem-se, historicamente,

uma cultura, tradição e manifestações típicas daquela localidade, iniciada por seus primeiros

habitantes e perpetuada por meio desse processo de construção da identidade pelas outras famílias

que surgiram e, consequente, os jovens que foram entrevistados. O processo identitário jamais

chegará ao fim, enquanto houver embates, confrontos, relações pessoais, haverá (re)formação de

cada indivíduo e suas subjetividades. E com as crianças e jovens da comunidade não seria diferente.

Suyanne em um dos pontos interessantes da sua fala, destacando o preconceito racial, acaba

deixando claro os arquétipos típico dela e de pessoas do seu mesmo grupo sobre o comportamento

identitário:

É até vergonhoso Laís... Por que assim: Quando eu encontro alguns colegas na rua

eles me chamam de morena, por que eles falam que se chamar de negra é

preconceito. Aí eu falo assim: será que não é o contrário? Por que não sou morena

Laís, eu não me vejo morena, eu me vejo negra! Mas eles dizem; não vocês vão ver

como preconceituoso, por que o negro tem preconceito com ele mesmo. Ai eu

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digo; isso não existe, preconceito é me chamar de morena e eu me admitir como

morena. Eu me admito como negra, entendeu? Então é isso que causa revolta, por

que eles dizem que o negro tem preconceito com ele mesmo, mas eu gosto de ser

chamada de negra, eu gosto de ter meu cabelo “pirado”. Eu me identifico assim!

(MAROYSE. 03h15min).

A frase Eu me identifico assim, marca profundamente o término dessa fala de Suyanne e dá

conta de uma construção dessa jovem que já carrega consigo uma edificação cultural própria, e já

deixando clara as suas preferências diante da arrumação do seu cabelo, sendo este “pirado”, ou seja,

sempre armado, solto e leve, e este se torna uma atitude política na sua cabeça, complementando

assim a cor do seu corpo e seu cérebro, sendo a raiz desse ato político, que é soltar a cabeleira e ser

chamada de negra e não de morena, já que esta última denominação não consegue dar conta da

carga cultura e social pela qual Suyanne quer ser representada.

Todo esse exposto acaba remetendo essa discussão às reflexões do estudioso Tomaz Tadeu

da Silva em seu trabalho Documentos de Identidade: Uma introdução ás teorias do currículo

(2015), diante da elaboração dos currículos escolares, partindo da observação de jovens como a

própria Suyanne, que acabam muitas vezes sofrendo uma série de preconceitos em sala de aula por

só atender ao tipo social branco arquitetado socialmente e refletido nas relações escolares de

crianças e jovens. Diante disso o autor compreende que:

O Currículo é, sem dúvida, entre outras coisas, um texto racial. A questão da raça e

da etnia não é simplesmente um “tema transversal”: ela é uma questão central de

conhecimento, poder e identidade. O conhecimento sobre raça e etnia incorporado

no currículo não pode ser separado daquilo que as crianças e os jovens se tornarão

como seres sociais. A questão torna-se então: como desconstruir o texto racial do

currículo, como questionar as narrativas hegemônicas de identidade que constituem

o currículo? (SILVA, 2015, p.102).

A frase que é finalizada pela interrogação acima convoca uma série de apontamentos acerca

de soluções possíveis em como desconstruir um currículo carregado de preconceitos que atingem,

entre outros grupos, os negros e os remanescentes de comunidades quilombolas. O Livro didático,

e, consequentemente, a sua escolha, faz parte do currículo escolar e dos conteúdos que serão

comtemplados pelo mesmo e a questão da inserção de temáticas sobre o povo negro e sua cultura é

um desses assuntos, que precisa ser repensados à luz da sensibilidade humana e da justiça social.

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Neste sentido, é chegado o momento de pormenorizar ainda mais os livros que foram

contemplados pelas escolas dos alunos quilombolas frequentadores, a começar pelo livro de

História do 5º ano, onde estuda a maioria das crianças entrevistas na Escola Estadual Bernadinho de

Sena, na comunidade Juazeiro. O livro faz parte da coleção Novo Girassol: Saberes e fazeres do

campo, de autoria Tânia Mares e Suely Almeida, e na parte do livro que abrange Geografia e

História, já que este carrega em um só volume Língua Portuguesa, Geografia e História. Logo, entre

os diversos conteúdos do trabalho, chama a atenção, inicialmente, a Unidade 2, que abrange a

cultura popular, e a Unidade 3, sobre os Grupos étnicos no Brasil, além do Capítulo 2 abordando

outros tempos, outros sujeitos.

Nessas três partes do livro analisadas, na primeira quase não aparece a contribuição do negro

na cultura brasileira, a não ser em textos pequenos, que abordam a capoeira e as comidas de

influência afro-brasileira. Já na segunda e na terceira unidades, referente aos grupos étnicos no

Brasil, encontra-se o negro representado nas velhas e famosas imagens de Rugendas, no contexto da

escravidão. O que só faz confirmar o que foi referenciado pela garotinha Flaviana em 02: 31

minutos da entrevista onde esta foi enfática em responder um nada!, quando questionada se havia

imagens de negros em seu livro didático.

Pelo que foi analisado e revisto, até tem sim imagens de negros, só que não da forma como

Flaviana gostaria, pois os negros que ela vê em seu livro, nem de longe parece com seus primos,

irmãos e amigos da comunidade quilombola. E se os colegas da sala muitas vezes a chamam de

“carvão” e outros bocados de coisa, como relatou ainda a garotinha, o seu silêncio diante das

imagens é totalmente justificado em sua revolta em dizer que ali nada a representa. Desta feita, esta

reflexão volta-se a epígrafe que está no início deste capítulo, em que a já citada jovem Suyanne

denuncia em seu discurso o aprisionamento do negro em um padrão de imagem e textos específicos,

que acabou os cristalizando numa moldura preconceituosa e atrasada.

Vale salientar que o livro de História do 5º ano ainda traz em seu capítulo 3 Negros

africanos: uma história do Brasil, em que aborda conteúdos sobre a África antes dos portugueses, a

vinda dos escravos para o Brasil e finaliza mais uma vez com a colonização dos escravos. Não

citando, nem de longe, a história do povo negro no Brasil depois da escravidão, e muito menos em

comunidades quilombolas. Questionadas mais uma vez sobre o que elas queriam que aparecessem,

Flaviana mais uma vez deixa claro: Ah! Do início até hoje (FLAVIANA, 02: 58 min). Vale salientar

que quando as crianças, como a própria Flaviana já citada anteriormente, explanou que; ah! Eles

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ficam chamando a gente de caivão, um bocado de coisa (FLAVIANA 00: 03 min), Preta, liderança

da comunidade já destacada, imediatamente tomou a fala e explanou:

Mas no momento em que acontecer isso... Vocês que são jovens e crianças, cheguem

em casa digam ao pai e a mãe de vocês, por que isso é crime! Em nenhuma escola era

para acontecer isso. E a partir do momento em que vocês se sentirem descriminados

cheguem em casa e digam que está acontecendo isso, isso, e isso. Por que logo quando

Jean foi para a escola... ENTREVISTADOR: Quem é Jean? ENTREVISTADA: Meu

filho. Eu fui até lá no Juazeiro (comunidade vizinha onde funciona a escola de ensino

fundamental I e II que as crianças e alguns jovens frequentam) e descobri que era

professora quem estava fazendo isso (descriminando), e avisei que se ela não parasse

ia tomar as providências. Então fiz o ofício e mandei para a parte da secretaria (de

educação) que cuida desses casos, Ildelita veio (Secretária de educação na época e até

hoje) a diretora se reuniu com a professora e com os alunos, e foi descoberto que os

próprios alunos chamavam uns aos outros de negros, e a própria professora disse que

era uma brincadeira, mas eu disse, isso não é um tipo de brincadeira? Então vocês não

podem deixar isso acontecer, no momento que ocorrer tem que denunciar. (PRETA,

01: 00 min). GRIFOS DO AUTOR.

Neste momento das conversas tidas com as crianças e jovens, percebeu-se que Preta, a

entrevistada acima, ficou abismada com tantos relatos de preconceito e exclusão étnica que os seus

conterrâneos ainda sofrem, o que deu uma abertura maior para que ela falasse em um assunto tão

delicado sofrido por ela, seu filho e sua família no geral, no que tange a essa realidade, para que

eles, os entrevistados, passassem a tomar a melhor providencia possível, que é a confiança em

contar para os pais e consequentemente a denúncia formal, assim como ela o fez. Porém, por mais

que as crianças e jovens já soubessem do exemplo do seu amigo Jean e como a sua mãe reagiu, que,

diga-se de passagem, da melhor forma, elas ainda hesitam, resistem e aguentem esse processo de

depreciação histórica, talvez por medo, falta de proteção, comodismo, e ainda pela própria falta de

atenção por parte do professor, que deve estar atento a abordar esses temas, por mais que nenhum

dos afetados cheguem e relatem ao mesmo.

Mas, já adentrando aos livros de História que são do Ensino Fundamental e foram

escolhidos para o trabalho na Escola do Juazeiro, comunidade rural próxima à comunidade Boa

Vista dos Negros, temos do 6º ano ao 9º ano um resumo daquilo que foi contemplado pelos autores

e editoras da História do Brasil e do mundo. De início podemos observar no livro didático do 6º

ano, que o mesmo enfatiza pouco os conteúdos de história da África antes da colonização, citando

em pouquíssimas páginas o império Mali e Banto e não elencando uma ligação mais clara sobre a

civilização Egípcia e o território africano, ou seja, é como se esta grande civilização tivesse sido

enorme, pomposa, desenvolvida, mas perdida no tempo e no espaço, ou em um espaço mais

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Europeu. Depois disso, nenhum outro conteúdo se remete ao continente africano, a não ser nas

páginas que abordam o início da civilização e a Pré-História.

No material didático do 7º ano, o foco principal do livro de História inicialmente é voltado

para o período medieval, entrando, consequentemente, na modernidade em que cita os principais

cientistas, artistas e pensadores da época e, mais adiante, é iniciado o conteúdo onde o livro

contempla a História do Brasil, começando pela chegada dos portugueses ao Novo Mundo,

colonização, questões indígenas, demarcação do território, a chegada dos espanhóis na América

Latina e, finalmente, a escravidão enquanto mão de obra mais rentável ao Nordeste açucareiro.

Parando neste conteúdo, que será continuado no livro de História do 8º ano, o qual contemplará os

conteúdos sobre o negro na História do Brasil, estando ligados somente a questão escravocrata,

nada mais além disso, questão essa que se estende ao 9º ano e que mesmo sendo um livro voltado

para a história política do Brasil, iniciando assim do período republicano até os dias atuais, não

contempla conteúdos que apontem caminhos que o negro tomou depois da abolição, seus aspectos

artísticos e culturais com mais ênfase, ou ainda aspectos ligados ao movimento negro, por exemplo,

somente uma pincelada com a Revolta da Chibata15

.

Outro entrevistado, Marcos, aluno que concluiu o Ensino Fundamental, quando perguntado

sobre o que já tinha ouvido a respeito da sua comunidade, a partir do seu professor de História

Sebastião Genicarlos, o discente responde: Ele já falou muitas coisas sobre os antepassados da Boa

vista... Passou slides também, trabalhando como era antigamente... (MARCOS 02: 25 min).

Vemos acima, a preocupação do professor Sebastião em atender a uma necessidade cultural,

que precisa ser exposta diante de outras pessoas, para que estas passem a conhecer e valorizar a

comunidade. Neste sentido, por mais que o livro didático seja o principal instrumento de conteúdos

presentes na sala de aula, temos um interventor com ainda mais poder neste espaço escolar, que é o

professor. Não que este vá deixar o livro de lado e seguir, mas sim que ele consiga flexibilizar o

livro didático, partindo das necessidades existentes em seus alunos. Só colocar a culpa no livro não

vai resolver, mas sim complementá-los com conteúdos primordiais para que um dia se chegue a

uma efetiva mudança.

15

Composta em sua maior parte por mulatos, negros, escravos libertos e filhos de ex-escravos no início do século XX, a

marinha brasileira daquele período ainda tratava estes soldados com péssimas condições de viva e os castigavam de

forma semelhante ao período da escravidão. Neste sentido, eclodiu uma grande revolta para lutar com estas severas

punições e demais tratamentos diários, e o resultado disso tudo foi à aceitação do governo e em 27 de novembro de

1910 a chibata foi abolida da Marinha de Guerra Brasileira. Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-

pedagogica/revolta-chibata-joao-candido-almirante-negro-602782.shtml.

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Enquanto um produto fabricado em um contexto cultural específico e, consequentemente,

por profissionais que determinam seu material e que nem imaginam que em Parelhas, cidade

interiorana do Rio Grande do Norte, exista uma comunidade quilombola, o livro didático

caracteriza-se, então, enquanto uma mercadoria como muitas outras que são forjadas dentro do

sistema capitalista. Partindo desse pressuposto Circe Bittencourt pensa:

A familiaridade com o uso do livro didático faz que seja fácil identificá-lo e

estabelecer distinções entre ele e os demais livros. Entretanto, trata-se de um objeto

cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se caracteriza pela

interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação e consumo. Possui ou

pode assumir funções diferentes, dependendo das condições de lugar e do momento

em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. É um objeto de

“múltiplas facetas”, e para a sua elaboração e uso existem muitas interferências.

(BITTENCOURT, 2009, p. 301).

Esse exposto acima, na fala de Circe Bittencourt, revela ao professor o cuidado no momento

da escolha do livro, para se trabalhar em sua escola e da importância de se ter um profissional

docente sempre atento com o contexto de influências culturais em que estas obras estão sendo

produzidas. E ainda, é de suma importância que o professor use seus anos de formação inicial e

continuada em prol de pensar o livro enquanto um instrumento aberto ao diálogo com outras

temáticas e disposto a receber informações adicionais em contribuição de uma maior sensibilidade

para com os alunos e a formação de suas identidades.

O Ensino de História e suas finalidades tem sido objeto de preocupação entre historiadores e

demais pesquisadores da área. A necessidade de reformulá-lo é constante, pois existe uma gama de

grupos sociais como mulheres, índios e negros que precisam ser repensados em seus lugares de fala

e espaços, que são dados nas representações destes povos. A nova base curricular comum da

disciplina de História gerou polêmica ao dar mais ênfase a História do Brasil, questão essa que já

foi discutida por Circe Bittencourt onde; As novas necessidades de análise aprofundada de uma

história mundial, no entanto, não podem relegar o conhecimento sobre “as coisas e as gentes

brasileiras” a segundo plano. (BITTENCOURT, 2009). Com isso, a base que segue essa ideia da

pensadora citada, tem sido vítima de acusações acerca do atendimento a ideologias do governo,

movimentos esquerdistas do país e outros. O que acaba ficando perceptível é que a disciplina de

História muitas vezes se torna vítima de disputas de ideologia, já que esta é a responsável por

salvaguardar a memória também política deste país.

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Finalizando a discussão deste capítulo, tem-se a partir de agora as análises das propostas

sugeridas com os PCNs (Planos Curriculares Nacionais), o PNE de 2011-2010 e o PNE mais

recentemente aprovado e que ficará em vigor até 2014, além dos livros de História da primeira série

do Ensino Médio e, consequentemente, da segunda série desta mesma modalidade de ensino da

coleção História: Sociedade e Cidadania de Alfredo Boulos Júnior. Este material é trabalhado pela

Escola Estadual Monsenhor Amâncio Ramalho e só será trocado em 2017, quando termina o prazo

de validade desses livros didáticos. Logo, inicialmente temos no livro da primeira série uma

surpresa diante dos outros que já foram analisados.

Dessa vez a África antiga aparece sendo relatada pelo Egito e pela Núbia, ou seja, o livro

não apresenta o Egito, principalmente, como sendo um conteúdo separado daqueles que deveriam

estar dentro da História da África, mas sim integrado, o que mostra um diferencial desse material

diante de um conteúdo tão caro nas análises sobre a forma como é apresentada a África. Claro que

este conteúdo, por ser muito extenso, deveria apresentar ainda mais uma riqueza de detalhes que lhe

é própria e que não foi tão bem explorada nos textos curtos do livro, porém é interessante ainda

encontrar no final desse capítulo que, mesmo resumido, se mostra muito inovador diante de tantos

outros aqui vistos e revistos, que em seu final pode-se encontrar trechos dos estudiosos Alberto da

Costa e Silva e Marina de Melo e Souza, em que discutem a importância do estudo da História da

África entre as novas gerações.

Não abordando mais nenhum outro conteúdo sobre história da África no livro da primeira

série do Ensino Médio, inicia-se agora a reflexão acerca dos conteúdos do livro da segunda série

dessa mesma modalidade de ensino. Inicialmente, é interessante destacar que, dos materiais já aqui

observados, o livro de História da segunda série do Ensino Médio é o mais carregado em termos de

conteúdos sobre o negro. Mesmo que a maioria destes se remeta a mão de obra escrava, colonização

e a abolição, neste volume têm também um diferencial em relação da Unidade II, intitulada de

Diversidade e pluralismo cultural e mais precisamente o capítulo 6 chamado de Africanos no

Brasil: dominação e resistência, onde este, de início, apresenta alguns artistas negros da MPB, Rap

e do atletismo, seguindo por trechos que citam a África antes dos europeus, a escravização dos

africanos, a travessia para o Brasil, enveredando-se pelo trabalho escravo, a violência sofrida por

estes povos, além da apresentação do Quilombo dos Palmares como símbolo de resistência, e

finalmente a aquisição de um pequeno trecho sobre os Remanescentes de quilombo em pouco mais

de 50 linhas, citando ainda o Ato das disposições transitórias já discutidos anteriormente.

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O texto referente aos remanescentes de quilombo, presente no livro, apresenta não só a

definição, bem como a alteração na Constituição de 1988 diante das exigências feitas pelos

movimentos negros brasileiros, diante das distribuições de terras para essas comunidades. Quando

perguntada em momento da entrevista sobre a existência de textos que falassem sobre comunidades

quilombolas nos livros didáticos, já lidos por Suyanne Maroyse, a mesma responde se presenciou

ou não a existência desses:

Não, não!..

ENTREVISTADOR: O que te perguntavam quando você falava que era de uma

comunidade quilombola?

Suyanne continua: Primeira coisa Laísa, que é uma coisa que não vou esquecer

mais nunca, eles me perguntaram assim: Mas vocês se vestem tão bem? Sabe?

Porque assim, eu acredito que por a gente ser quilombola a gente tinha que tá ou

como um índio nu ou tinha que tá todo pintado entendeu?

ENTREVISTADOR: Tipo uma tribo africana? Exatamente! Mas assim como se a

gente não fizesse parte da cidade, entendeu? Como se a gente vivesse um

mundinho diferente, onde ninguém fosse nem ali né? Até como era antes até ser

mudado esse padrão. (SUYANNE, 05: 09 min).

As explicações sobre os remanescentes de quilombo e, consequentemente, a definição

espacial e cultural sobre uma comunidade quilombola presentes nos livros didáticos são ainda vagas

e por vezes passam despercebidos em textos complementares que, nas mãos de alguns professores,

diante da falta de tempo ou mesmo por falta de interesse e um pouco mais de estudo, não percebem

a riqueza do trabalhar temáticas como essa e a quantidade de crianças e jovens que poderão atingir,

mediante um discurso promovedor da justiça e equidade social. O que acabou não sendo visto na

fala de Suyanne, diante daquilo que seus colegas da escola lhe perguntavam acerca do seu lugar de

origem e convívio, ficando claro diante do exposto que há sim um distanciamento não só espacial,

mas também cultural e carregado de preconceitos estabelecidos e que continuam cristalizados

mesmo diante de uma figura primordial que é o professor.

Neste momento, o debate é voltado para essa figura central e mediador de conflitos sociais,

ou pelo menos deveria ser, o professor. Da mesma forma que existe uma gama de alunos com

identidades diferentes em construção, peculiaridades, e estilos de vida que lhes são próprios, o

professor ao assumir seu papel em sala de aula também traz da sua vida em particular signos e

símbolos que os conseguem definir internamente e socialmente, e a sua formação acadêmica

independente da licenciatura que o prepara para saber lidar com a heterogeneidade, muitas vezes

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não consegue sensibilizar futuros professores para instrumentalizar preconceitos e injustiças

presentes nos discursos dos jovens em sala de aula. O que influencia para que meninas como

Suyanne se sintam à margem das relações sociais, que seja sempre vista como uma figura do

tribal/exótico, não que isso seja algo ruim, já que as tribos africanas carregam consigo um dos

principais registros, as histórias da África, mas neste caso, o relato verdadeiro sobre a Boa Vista

fica aqui encoberto pelos estereótipos aplicados, e mais ainda, pela falta de uma figura tão

influenciável quanto o professor para sanar os efeitos que a propagação deste discurso possa atingir.

E foi por meio da necessidade de uma formação continuada, uma preparação maior para

lidar com temáticas relacionadas à comunidade quilombola, povo negro e preconceito racial, que

várias leis e projetos foram pensados e entraram em vigor ao longo da história da educação desse

país, mesmo antes da promulgação de leis, como a 10.639/03. O primeiro a ser discutido aqui são os

PCNs de História, que debatiam a diversidade em sala de aula na segunda metade da década de 90,

mesmo que já houvessem propostas elaboradas a partir de 1980 pelos Estados e Municípios no

contexto pós-ditadura, que se pautavam em enfoques voltados a uma formação política que dessem

conta da participação de todos os setores da sociedade, além de abarcar políticas neoliberais

voltadas ao interesse internacional. Logo, no contexto do ensino fundamental e médio, como

discorre Circe Bittencourt:

Para os currículos do ensino fundamental e médio foram elaborados os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN), sob uma orientação internacional oriunda de

pressupostos da psicologia da aprendizagem piagetiana. Cabe ressaltar que essa

tendência psicologista dos conteúdos não é nova, mas foi redimensionada sob

novas perspectivas, prevalecendo as interpretações de alguns educadores do

espanhol César Coll, daquilo que se denomina de construtivismo. Essa linha de

orientação para que os currículos norteou as reformulações dos países ibéricos e da

América Latina, especialmente os do Mercosul. (BITENCOURT, 2009 p. 103).

Publicado em conjunto com os PCNs de Geografia, segundo ainda descreve a historiadora

em seu trabalho, no documento separado para o ensino de História, inicialmente é inerente a

amostragem para se trabalhar com conceitos históricos, sendo que estes seriam introduzidos a partir

das séries iniciais do ensino fundamental e aprofundados no prosseguimento deste, além de ser

apresentada ainda a noção de tempo com o antes e o depois e ainda contemplando a história local e

seus personagens. Já na antiga quinta à oitava série, esse aprofundamento de conceitos seria

justificado pelo trabalho dos PCNs pela opção com a História sócio cultural, destacando assim

conceitos como o de cultura, trabalho, organização social, relações de poder e representações.

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Questão essa que seria ainda mais discutida no Ensino Médio juntamente a uma formação para a

cidadania e o domínio de informações que se voltavam também para a preparação nos futuros

vestibulares.

Vê-se então, que neste breve resumo, o trabalho com os conceitos históricos em sala de aula

na disciplina de história começam a ser desmistificados desde as séries iniciais até o ensino médio,

e que o conceito como os de cultura, poder e representações que aqui interessam neste trabalho e

que deveriam ser debatidos com muita profundidade em todo o contexto escolar por determinados

agentes16

não o são. A fala de Suyanne Maroyse, por exemplo, deixa clara a falta de esclarecimento

do conceito de quilombola, que deveriam estar presentes nos livros didáticos de História, além da

própria falta de interesse de alguns professores que, em suas seleções de conteúdos, acabam

desconsiderando temáticas como essa, em prol ainda da promoção de uma história eurocêntrica e

elitizada, e que documentos como os PCNs, ainda na década de 90, já alertavam para serem

problematizados em sala de aula, e que na maioria das vezes passou despercebido por agentes já

citados como o livro didático, o currículo escolar, além do próprio professor. Perguntados sobre

quais eram os tipos de questionamentos que os professores faziam sobre a comunidade quilombola

e em que períodos do ano a mesma era mais debatida Hesley volta a apontar:

ENTREVISTADOR: Eles querem saber sobre a comunidade em um período

específico? Ou sempre eles querem saber?

HESLEY: Lá na minha escola (Monsenhor Amâncio Ramalho) eles sempre

querem saber.

ENTREVISTADOR: É semana da Consciência negra, eles querem saber nessa

semana ou em outra?

HESLEY: Eles querem saber muito nessa semana, porque como tem nós lá

estudando, eles querem que todo mundo da escola todinha veja nós. Igual houve o

desfile, o ano passado teve. (HESLEY, 1: 36).

Percebe-se que há uma dúvida inicial por parte de Hesley acerca do período em que ele e

seus colegas quilombolas são citados na escola, mas logo quando a entrevistadora o lembra da

semana da Consciência Negra, seu discurso muda rapidamente e o entrevistado passa a relatar que

há uma facilidade em debater a temática da comunidade quilombola na referida semana pelo fato

16

Fica clara certa recursa por parte de agentes como; Editoras de livros didáticos, equipe pedagógica no momento em

que vai elaborar um currículo para sua escola, e professores em discutir temáticas que se relacionam com as

peculiaridades culturais de quem pertence a uma comunidade quilombola. Claro que essa “recusa” faz parte de um

contexto ainda maior e que se está sendo justificado no decorrer da escrita deste trabalho.

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destes estarem presentes na escola, e o mesmo cita ainda um desfile que houve na escola sobre

beleza afro. Hesley talvez ainda não tenha consciência de que uma semana é muito pouco para

desmistificar história, preconceitos, estereótipos e a sua própria cultura dentro de sala de aula, já

que seus olhos brilhavam diante do entrevistador ao se lembrar de que, em pelo menos em uma

semana do ano, ele e seus colegas haviam saído da subalternidade e se sentiam protagonistas de

uma história que, por direito também pertence a eles, e que a necessidade de ser citado na escola é

primordial para que ele e seus colegas não sejam mais vistos como os coitadinhos como foi visto na

fala de Preta, líder na comunidade ou ainda que vivessem em um mundinho diferente como também

defende Suyanne Maroyse.

Outros documentos, além dos PCNs, como os dois planos nacionais de educação elaborados

para serem cumpridos, se não todo mais em pelo menos em boa parte do período, também traziam

propostas referentes aos enfoques que deveriam ser dados à cultura africana e afro-brasileira e à

ampliação de matrículas que atendessem também aos remanescentes de quilombos. Em seu trabalho

Plano Nacional de Educação (2011 – 2020): Avaliação e perspectivas, o pedagogo e doutor em

educação Luís Fernando Dourado, reúne uma série de artigos de diversos pesquisadores que se

interessam em analisar até onde as propostas pensadas chegam ou não em sala de aula e como

planos como esse deixaram lacunas ao longo dos seus dez anos de vigência.

No caso de temáticas como a diversidade, por exemplo, que foi analisada no PNE de 2011 –

2020, o artigo O Plano Nacional de Educação e a diversidade: dilemas, desafios e perspectivas, da

pedagoga Nilma Lino Gomes, presente na seleção de Luís Fernando Dourado, afirma que apesar de

algumas lacunas foi durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que houve

realmente outro impulso no que se refere ao lugar que era ocupado pelas diversas expressões sociais

antes marginalizadas, as quais passaram a ter acesso a programas e ações inovadoras que dessem

mais espaços a essas pessoas, as cotas raciais é um exemplo disso. Sobre isso a autora discutiu:

A incorporação na política educacional de demandas específicas dos movimentos

sociais, sobretudo os de caráter identitário (tais como povo do campo e

quilombolas), bem como te temáticas historicamente presentes no contexto das

lutas sociais (relações étnicos raciais-, gênero e diversidade sexual, questão

ambiental, educação prisional, entre outros), passa a ser sistematicamente

denunciada e cobrada e encontra um lugar de escuta mais consciente a partir de

2003 (ano de promulgação da lei 10.639/03). (GOMES in DOURADO, 2011 p.

220). GRIFOS DA AUTORA.

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Tudo que foi exposto acima está em um processo lento, de poucos alcances, mas que já

causa diversos efeitos positivos. O problema é que discutir diversidade enquanto política pública no

Brasil ainda é recente e essa discussão foi realizada, primeiramente, por setores da sociedade civil

organizada e não pelo próprio Estado, ou seja, existe uma cobrança por reconhecimento que até

então ainda é falha e que, historicamente falando, poucas são as atitudes do estado referente a um

atendimento mais igualitário para com esses grupos. Somado a tudo isso, o mito da democracia

racial ainda é forte nos discursos e atitudes que faz parte desse quadro de estereótipos que

remontam visões idílicas e que impede que haja uma discussão mais séria sobre a imensa

diversidade cultural que temos e como ao longo do tempo tem se dado um tratamento

completamente desigual para com aqueles que são considerados diversos no meio social. E a

comunidade quilombola Boa Vista dos Negros não fica longe desse quadro de visões

desinteressadas, falta de estudo, aprofundamento dos discursos que também são aplicados a ela que

são refletidos nos jovens da própria localidade.

No novo Plano Nacional de Educação, que entrou em vigência a partir de 26/06/201417

,

estão estabelecidas diretrizes, metas e estratégias de concretização no campo da educação nos

próximos dez anos a contar desta mesma data. Ao todo são vinte metas em que fica claro o objetivo

principal do plano, que é justamente de ampliar ainda mais o quadro de vagas dentro da escola

pública e que venha acompanhada de uma educação de qualidade, que preze pela permanência do

aluno na escola, a promoção de uma educação inclusiva, integral e que busque até o final de

vigência do plano, erradicar por completo o analfabetismo no país, medidas de incentivo na

valorização dos salários e formação dos professores, além de propostas para o financiamento e um

melhor gerenciamento dos investimentos que serão feitos no campo educacional nos próximos dez

anos.

São metas ousadas, que exigem dos profissionais que vão executá-las sensibilidade diante

dessa demanda de alunos que futuramente encherão as salas de aula caso a ampliação do quadro

vagas da escola pública seja realmente cumprida. E nisso tem-se mais ofertas de vagas e um

aumento significativo das diferentes identidades que aparecerão em sala de aula, advindo de

diversos lugares, inclusive de comunidades quilombolas, como é o caso da cidade de Parelhas, pois

17

Data informação no site do Observatório PNE. Disponível em: http://www.observatoriodopne.org.br/pne/linha-do-

tempo.

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a Boa Vista dos Negros teve sua escola fechada por falta de alunos e a migração consequente destes

para estudar em escolas como a da comunidade vizinha Juazeiro e nas escolas da própria cidade.

Partindo de todo o exposto, são muitas as propostas, projetos e a própria lei 10.639/03, que

ao longo do processo educacional do país tem inserido o negro timidamente em seus discussões e

planejamentos diante das próprias pressões dos grupos mais atingidos socialmente. Os

remanescentes de quilombos, que são citados nas justificativas por igualdade da distribuição de

terras e no que tange a abertura das oportunidades que também devem atingi-los, também tem sido

pauta do Movimento Negro e da sua luta por justiça social.

A ampliação das vagas na escola pública, também trarão quilombolas que, assim como os seus

colegas de outras etnias, terão necessidades de serem ouvidos, representados e apresentados em seu

material didático, que não sejam em textos complementares, logo abaixo os escritos sobre o

Quilombo dos Palmares ou ainda nas velhas imagens de Rugendas ou Debret onde sacralizam a

participação do negro na história do Brasil somente como escravo. Estas crianças e jovens vão

querer ter seu espaço de sociabilidade, protagonismo, empoderamento e compreensão da sua cultura

e que só um ambiente sensível e justo poderá lhes oferecer. Questão essa que será mais

profundamente discutida no próximo e último capítulo deste trabalho.

III- DO FOLCLÓRIO AO HISTÓRICO: O QUE DEVERIA APARECER?

Em todos os estados brasileiros, era para ter um canto

nos livros que falassem de todas as comunidades, por

exemplo, as do Rio Grande do Norte e botasse nos

livros para a gente estudar sobre nós... HESLEY.

O relato selecionado para se transformar na epígrafe que abre mais essa parte do trabalho, foi

justamente uma fala que em 00: 43 min de entrevista, Hesley, um dos jovens que mais se

pronunciou nas entrevistas realizadas como já ficou demonstrado anteriormente, e que já deixa

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claro a sua resposta diante da pergunta chave desse capítulo que é justamente o que deve aparecer

nos textos dos livros de História de agora em diante.

Assim como Hesley e a Comunidade Quilombola Boa Vista dos Negros, existem ainda outros

grupos étnicos que também queriam aparecer com outra representação e outra descrição, é o caso

dos grupos indígenas norte-rio-grandenses, por exemplo, mas isso já seria uma nova discussão que

não dá para se alongar aqui, já que está se tratando de uma comunidade específica, e isso também

deve partir também dos interesses de outros pesquisadores, se já não iniciaram pesquisas nessa área,

o que é louvável. Porém, a pesquisa em questão tinha uma só pergunta que dava uma abertura para

que aparecessem várias outras e a resposta veio, não de forma clara por parte de todos os

entrevistados, mas Hesley conseguiu refletir o mote principal do questionamento e representar os

seus colegas lindamente quando explanou a necessidade de ser representando e de ver seus

companheiros representados nos livros didáticos de História, naquele momento ele falou por sua

comunidade, sua ancestralidade, e pelas suas tradições, ou seja, a fala não é egoísta, mas sim

solidária e se estende a todos.

Os relatos acima descritos, refletidos e problematizados, não são apenas narrativas triviais de

um espaço e convívio entre seres humanos negros e quilombolas entre as demais etnias existentes

na sociedade, essas falas são carregadas de denúncias, revoltas e da injustiça da qual foram vítimas

no processo da formação social do povo brasileiro e nos escritos presentes nos livros didáticos que

são utilizados em sala de aula. O que se viu nesses relatos foi um não lugar ou a procura de um

espaço que, ainda que se faça presente nos materiais didáticos e paradidáticos, textos e imagens de

negros que não pareçam congelados no tempo e que parecem sumir no pós-abolição da escravidão e

ainda a falta de explicação sobre o que seria uma comunidade quilombola e o porquê de sua

existência.

O livro didático é um instrumento caro ao trabalho do professor em sala de aula, mesmo que

este não seja o único a auxiliá-lo. E o material analisado neste trabalho, mesmo sendo editado e

vendido depois da lei 10.639/03, deixa claro a barreira na fala das crianças e jovens e da redatora

em questão acerca da persistência da falta de uma história mais aprofundada e menos estereotipada

do negro e sua contribuição da formação do povo brasileiro. A função mais específica do livro

didático é auxiliar o professor a mediar o saber que, ao longo do tempo foi historicizado e que, em

sala de aula deve ser democratizado, bem como passar por um processo de crítica e julgamento por

parte do discente, como foi o caso acima descrito partindo das falas dos quilombolas. Desta feita,

como discute Rozana Teixeira:

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Levando em consideração que o homem é um ser simbólico, capaz de inventar,

criar e recriar símbolos conforme os estímulos, neste sentido o livro didático

poderá levar os educandos a vivenciar seus valores, fortalecer sua visão de mundo,

servir como propiciador de informações e, conteúdos simbólicos usando uma

diversidade de linguagens. (TEXEIRA, 2009, p. 396).

A citação acima faz parte de um quadro complexo de investigação e análise desse material.

Inicialmente, temos a necessidade do material didático nas escolas, em que geralmente se tem a

aquisição de uma série de conteúdos diferenciados para que os professores, ou seja, os mediadores

que o usarão, escolham o que mais atendam ao seu plano de ensino naquele contexto.

Consequentemente, editoras e professores terão que ter uma sensibilidade maior quanto ao conteúdo

acerca daqueles que, como os negros e, por conseguinte, os quilombolas sejam representados da

melhor forma possível, ou da maneira correta como deveriam. É ai que está a questão, as editoras

em sua maioria estão preocupadas em vender o material, que geralmente vão ao encontro de

docentes munidos de planos de aula ultrapassados, seguindo modelos estereotipados, atendendo a

modelos de sociedade europeia e quem não dão a mínima atenção para conteúdos sobre o negro.

O que se questiona nesse momento é a necessidade de se ter docentes mais preparados, aptos

a atualizar o conteúdo de sua graduação, e que não vejam o livro didático sacal, com poucas ou

nenhumas mudanças, e com imagens de negros e demais povos marginalizados normatizados em

um modelo subalterno, penoso e submisso à etnia branca e europeia, enquanto um empecilho para a

validação de um trabalho justo e compromissado com a igualdade étnica e histórica. Se é constante

ainda a presença de materiais didáticos que abordam conteúdos que não condizem com a real

história de comunidades quilombolas, por exemplo, e que não se aprofundam em períodos mais

recentes da história, em que as populações negras, seus artistas, o próprio movimento negro

organizado se fazem presentes, o ideal é que o professor tome realmente uma postura inicial de

investigador, se questionando a falta desse conteúdos, até que ponto seus alunos quilombolas, ou

não quilombolas se fazem representados nesse material, e o que ele pode fazer para promover uma

discussão mais democrática perante a grande diversidade presente hoje em nossas salas de aula.

Segundo Bittencourt o livro didático:

Tem sido objeto de avaliações contraditórias nos últimos tempos. Existem várias

críticas sobre ele, culpam-no pelo estado precário da educação formal. O certo é que o

livro didático continua sendo um material referencial de professores, pais e alunos,

como ajuda na concretização da aprendizagem. (BITTENCORUT, 2002).

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Em muitas escolas do país, o livro didático ainda é o único instrumento a que todos têm

acesso, ou seja, salas de multimídia disputadíssimas ou mesmo em desuso, nenhuma sala de

informática, laboratórios que foram aprovados no orçamento, mas que nunca chegaram, enfim

recursos que não dá para que o professor aplique a confiança do seu plano para que ele ocorra de

maneira correta. O que está em questão aqui não é a qualidade ou não dos livros que chegam até a

escola, claro que há uma discussão obvia sobre o aparecimento do negro nesse material e,

consequentemente, a forma como ele aparece, a questão é que nem todo o conteúdo presente no

livro seja descartado ou desconsiderado, a falta de aprofundamento sobre qualquer conteúdo étnico

ou não deve ser questionado pelo professor e mediador, e na observância disso, que prevaleça o

bem estar dos alunos e da necessidade de torná-los dignos de serem protagonistas e participantes

ativos da construção de sua identidade e que representatividade ela terá na sociedade.

Assim como outras localidades, a comunidade quilombola Boa Vista dos Negros deve ser

representada, pelo menos nos livros que circundam as escolas do município de Parelhas. Mas em

observância não só aos livros de História que foram escolhidos para a análise desse trabalho, mas

dando ainda uma olhada superficial nos livros de Artes usados pelas crianças no 4º e 5º ano da

escola Bernadinho de Sena, da comunidade Juazeiro, vizinha à própria Boa Vista dos negros e que

recebe um grande contingente de crianças da comunidade em idade-série adequada para a escola,

foi encontrada um surpresa bem desagradável no conteúdo Cores e Sensações do mesmo livro. O

fato é que durante a exposição das cores no livro didático todas elas recebem uma descrição, ou

seja, adjetivações, e quando a descrição passa para a cor Preta temos a seguinte informação: A cor

da escuridão, do mistério e do medo.

Quando o texto do livro destaca que a cor Preta também é a cor do medo, temos um

problema que já vem sendo questionado há muito tempo atrás, que é justamente a acepção entre cor

e caráter. Adentrando ao passado e se remetendo ao período da escravidão na África e o tráfico de

escravos pelos europeus, temos uma equação simples; a escravidão africana era uma escravidão

doméstica, ou seja, em guerra de tribos rivais os vencedores sempre mantinham como escravos os

vencidos. Havia ali uma ideia de escravidão que não estava remetida a cor ou a inferioridade dela,

mas sim as consequências das lutas entre grupos rivais. Algo que se diferencia um pouco do que foi

sendo disseminado na Europa e no resto do mundo ao longo do tempo até chegar à

contemporaneidade. Para os traficantes de escravos, senhores e todo um contexto social que estava

delimitado no período colonial do nosso país, ser negro era sinônimo de instrumento de trabalho

gratuito, pois a sua cor era menos importante do que qualquer outra, para esses homens, ainda ser

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negro também era submissão, desprezo, exclusão, perigo, medo e tantos outros adjetivos que não

mudaram tanto, apesar da mudança nos contextos sociais e nas temporalidades.

Inicialmente e para compor o conjunto de análises e reflexões desses trabalhos, têm-se

prioritariamente os livros de Histórias e os relatos obtidos entre as crianças e jovens da comunidade

em questão, mas o contato com o livro de Arte das crianças foi de extrema importância para mais

uma vez vir à tona questionamentos e ponderações acerca dos perigos como a adjetivação da cor

Preta acima citada pode causar.

O fato é que toda essa discussão serve para elucidar a aplicação de termos como “a cor do

medo” enquanto um fator determinante para continuar relacionando essa ideia de que ser negro é

algo ruim, perigoso e não digno de direitos iguais. Quando uma criança que é negra, se depara com

adjetivações como essa nos livros que elas receberam, as mesmas passam a serem vitimas de

depreciações e trocadilhos mal intencionados, a serem relacionadas à ligação da cor com sendo a

cor da bandidagem ou do perigo que cerca nosso meio social, e tantos outros que ficaram expostos

nas falas dos depoentes acima sejam de forma implícita ou explícita.

IV- CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Ao todo somaram 10 (dez), entre crianças e jovens, que foram convidadas a fazer parte de

uma conversa informal, descontraída, mas que trazia consigo uma temática cara à vida desses seres

humanos em constante formação social e identitária, acerca das situações constrangedoras que

sofrem diariamente, não somente por serem negras, mas sim por serem negras de uma Comunidade

Quilombola, o que já permite uma série de avaliações que estão além do preconceito de cor, mas

também de lugar, cultural, enfim da própria estrutura de vida que foge aos “padrões” brancos

designados por essa sociedade.

Como a própria Suyanne deixou entendível, existe um afastamento da sociedade geral e o

que ela sabe sobre uma comunidade quilombola. Esperar que eles se vestissem e se pintassem

lembrando as tribos africanas é de uma desinformação imensa, pois neste sentido tem-se uma

população incompreensiva para com essas comunidades, que tem conceitos formalizados e

cristalizados antecipadamente, e que ainda não conseguem distinguir tempo e espaço quando se

trata as populações negras espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. E o resultado disso tudo são as

falas conscientes de um processo histórico social que acabaram os colocando numa posição

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subalterna, folclórica e estereotipada, mas que já demonstram nuance de empoderamento, afirmação

e principalmente de resistência diante de um contexto maior e avassalador, onde se dá o embate de

culturas e etnias diversas que, em suas individualidades ou coletividades, lutam juntas para

conseguir seu reconhecimento e a valorização de suas tradições.

Foram falas e depoimentos particulares, já que a exclusão é expressa de maneira diferente a

quem está sofrendo, mas por mais que se tratou de um grupo quilombola que se encaixa nos padrões

e características comuns daquelas exigidas pela lei para ser uma comunidade quilombola hoje no

Brasil, viu-se que Suyanne, por exemplo, tratou de transformar o afastamento imposto em luta nas

escolas, com os jovens, e auxiliando nos trabalhos da Assistência Social da cidade de Parelhas,

Preta sofreu a dor do preconceito sofrido pelo filho e se tornou uma das principais lideranças da

comunidade, Hesley deixou bem claro aquilo que ele quer que apareça nos livros de História, ou

seja, ele quer e necessita que ele e seus familiares também estampem a história que se segue depois

da escravidão, depois do período republicano, e depois da constituição de 1988, já Marcos e

Flaviana, Isac que também concordava com os colegas quando expressavam que havia ainda uma

história atrasada do negro e reclamavam dos colegas que faziam piadas do tipo: ah! Só porque eu

sou negro, no sentido de depreciar, rebaixar, e relembrar sempre e sempre o sofrimento do período

escravocrata.

São depoimentos pessoais que se juntam a um grupo maior, são vozes que ecoam um todo

quilombola, um todo Boa Vista dos Negros. É um querer ser respeitado por está fora do seu lugar de

vivência cultura e ancestral, mas também ser representado por suas tradições que completam uma

história dos mais variados destinos que os negros tomaram durante as fugas no período da

escravidão e depois dele quando o Brasil já era uma república.

Explorar esse não ter imagens de negros e informações sobre comunidades quilombolas nos

livros didáticos aqui analisados também deu margem para pensar uma série de questões que

estavam ligadas à injustiça social, exclusão, estereótipos e a própria história da Comunidade

Quilombola Boa Vista dos negros, que foi reclamada a partir da incompreensão que os seus

membros percebem diante da verdadeira versão. A dança do Espontão, a festa de Nossa Senhora do

Rosário, os cabelos “pirados” como destacou Suyanne, além daqueles trançados, e todos os outros

fenótipos que descrevem um ser Quilombola não é folclórico e nem exótico, mas sim personalidade

e raiz de uma ancestralidade em comum que também querem justiças e questionam a falta de suas

temáticas dentro dos livros de História do país.

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