michel miaille - introdução crítica ao direito, 3ª ed. (2005)

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... - I N enhum cientista vai ao encontro da rea- lidade que quer explicar sem "informa- ção", sem formação: é, como veremos, uma ideia falsa a de acreditar que a observação é a fonte da descoberta. Não se descobre senão aquilo que se está intelectualmente pronto para descobrir. pois necessário preci- sar que questões vamos colocar ao direito para que ele nos "diga" o que é. Estas questões não podem ser deixãOas ao acaso: elas têm neces- sariamente de formar as bases de um sistema de outras palavras, elas têm de ter uma.-Goerência teórica, a coerência ae uma teoria Esse será o objecto da nossa primeira tarefa. Com o espírito e o "olhar" informados, iremos, então, ao encontro desse mundo jurí- dico que nos rodeia de maneira mais ou menos solene, mais ou menos repressiva, mais ou me- nos eficaz. No nosso encontro com esse mundo do direito combateremos ao lado daqueles que, para além das aparências, querem conhecer a última palavra das realidades: descobriremos, então, muitas coisas que uma observação ino- cente nos teria ocultado, de tal modo é verda- de não haver ciência senão ciência do oculto. Essa será a nossa segunda tarefa. Será possível, ne sse momento, analisar de maneira crítica as diferentes teorias que se apresentaram como outras explicações do dire ito. Algumas delas confessaram a sua natureza propriamente fi !osófica, outras pre- tenderam, mais recentemente, contribuir para a fundação de uma verdadeira ciência do di- reito, quando não de uma ciência pura. Es- taremos em situação de poder apreciar essas afirmações à luz do que soubermos desse mundo jurídico, das suas técnicas e da sua ló- gica de funcionamento. Será essa a nossa ter- ceira e última tarefa nesta Introdução Critica ao Direito. 9 <C u I- -- cc: u O .<c O VI- ::::1- 0- cc: C 1-0 Q/ .r::: u _ Michel __ INTRODUÇÃO CRíTICA AO DIREliO ---- ------'-

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Page 1: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

... -I

Nenhum cientista vai ao encontro da rea­lidade que quer explicar sem "informa­

ção", sem formação: é, como veremos, uma ideia falsa a de acreditar que a observação é a fonte da descoberta. Não se descobre senão aquilo que se está intelectualmente pronto para descobrir. ~- nos, pois necessário preci­sar que questões vamos colocar ao direito para que ele nos "diga" o que é. Estas questões não podem ser deixãOas ao acaso: elas têm neces­sariamente de formar as bases de um sistema de ex ~ ieação;jJor outras palavras, elas têm de ter uma.-Goerência teórica, a coerência ae uma teoria Esse será o objecto da nossa primeira tarefa. Com o espírito e o "olhar" informados, iremos, então, ao encontro desse mundo jurí­dico que nos rodeia de maneira mais ou menos solene, mais ou menos repressiva, mais ou me­nos eficaz. No nosso encontro com esse mundo do direito combateremos ao lado daqueles que, para além das aparências, querem conhecer a última palavra das realidades: descobriremos, então, muitas coisas que uma observação ino­cente nos teria ocultado, de tal modo é verda­de não haver ciência senão ciência do oculto. Essa será a nossa segunda tarefa.

Será possível, nesse momento, analisar de maneira crítica as diferentes teorias que se apresentaram como outras explicações do direito. Algumas delas confessaram a sua natureza propriamente fi !osófica, outras pre­tenderam, mais recentemente, contribuir para a fundação de uma verdadeira ciência do di­reito, quando não de uma ciência pura. Es­taremos em situação de poder apreciar essas afirmações à luz do que já soubermos desse mundo jurídico, das suas técnicas e da sua ló­gica de funcionamento. Será essa a nossa ter­ceira e última tarefa nesta Introdução Critica ao Direito.

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INTRODUÇÃO CRíTICA AO DIREliO

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Page 2: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

Michel Miaille

INTRODUÇÃO CRíTICA AO DIREITO

3. :1 edição

2005

EDITDRIAlE ESTAMPA

Page 3: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

FICHA TÉCNICA

Título orig inal: UI/e II/Iroductioll Critique (llI Droil Tradução: Ana Prata Capa: José Antunes Ilustração da capa: JI/stiça , fresco de Rafael Sanzio no teclo

da Stanza dcl la Segnatura, c. 15 10 1.'1 edição: Mames Editores, 1979 2.a edição: Editorial Estampa, 1988 3.° edição: Ed itorial Estampa, Setembro de 2005 Impressão e aca bamento: Rolo & Filhos II , S. A. Depósi.o Legal n.O 232972/05 ISB N: 972-33-2 175-0 Copyri ght: © Editioll s La Découverte, Paris, 1976

© Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1988 para a I íngua portuguesa

A MEUS PAIS, A LINE E A BERNARD

AoS assistentes e estudantes da faculdade de direito de Argel, como lembrança de um curso de introdução à ciência jurídica sem o qual este trabalho jamais teria sido realizado.

Page 4: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

PREFÁCIO .. INTRODUÇÃO

ÍNDICE

I. Uma introdução . . II. Uma introdução crítica .

1I1. Uma introdução crítica ao direito.

PRIMEIRA PARTE

EPISTEMOLOGIA E DIREITO

I - OS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À CONSTITUIÇÃO

13 15

16 20 25

DE UMA CIENCIA JURÍDICA. . . . . . . 37

1. A falsa transparência do direito ..

1.1 O Empirismo na descoberta do Direito. 1.2 O Positivismo na explicação do Direito . ..... . . . .... . ... .. . . .

2. O idealismo jurfdico ........ ... ............. . ... .. . .... .

2. 1 2.2

Abstracção e abstracção . .............................•..

o idealismo dos juristas como representação do mundo . ... 2.3 Os resultados epistemológicos do idealismo dos juristas . ...

3. A independência da ciência jurfdica ..

II - A CONSTRUÇÃO DO OBJECTO DA CIÊNCIA JURÍDICA: A INSTÃNCIA JURÍDICA....... ........... . ......... .

1. O lugar do direito como instância de um «todo complexo com dominante», . . . . . ................................ .

38

39 42

46

48 50 53

57

63

68

Page 5: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

1.1 O modo de produção da vida social. . 1.2 As instâncias sociais: Base e superstrutura 1.3 O determin ismo social: Uma causalidade estrutural ..

2. As características da instância jurídica (na sociedade capitalista)

2.1 2.2

2.3

Os impasses de uma defin ição do «Direito» Para uma caracterização da instância jurídica: Um sistema «norma­tivo)) da troca generalizada entre sujeitos de direito. O Fetich ismo Jurídico ....................... . Rumo a uma definição da instância jurídica

SEGUNDA PARTE

A ARTE JURÍDICA E AS CONTRADIÇÕES SOCIAIS (NUM MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA)

1- OS FALSOS «DADOS»DO SISTEMA JURÍDICO .

I. Os «fundamentos» do direito ............ .

1.1 O suj eito de direito . 1.2 O Estado .. 1.3 A sociedade internacional . ...... . .. .

2. As classificações jurídicas . ...

2.1 2.2 2.3

Direito objectivo - direitos su bjectivos. Direito público - direito privado .. Coisas e pessoas ..

II - O MAL «CONSTRUÍDO» DO SISTEMA JURÍDICO.

1. Lógica e «alógicQ» juridica .... .. ..... .

1.1 A lógica jurídica como lógica formal 1.2 Um exemplo de contraditoriedade na lógica formal: A «alógica)) ju-

rídica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....... . 1.3 Raciocínio ou argumentação? .. .. ..... ... .

2. O quadro geral da criação de direito: As fontes do direito

2.1 Sistema das fontes do direito e formação social ... 2.2 Sistema das fontes do direito na França contemporânea ...

3. As instituições jurídicas, quadros da actividade social . ... .

10

69 72 75

84

85

86 96

III

11 2

114 121 135

140

141 151 160

173

176

177

186 195

197

198 207

224

3. 1 3.2

Da instituição jurisdicional. Algumas outras instituições

TERCEIRA PARTE

CIIlNCIA E IDEOLOGIAS JURÍDICAS

I _ O FETICHISMO DO CONTEÚDO DO DIREITO: DA TEOLO­

GIA À SOCIOLOGIA . . .

A - CRITICA DAS DOUTRINAS IDEALISTAS.

1. As afirmações do ideaJismojurídico . ..

I . t O direito é um dado ... 1.2 O direito é racional ..

2. Os impasses do idealismo.

2.1 A variabilidade do conteúdo do direito natural. 2.2 A função do direito natural, uma função prático-social: à conquista

do m~.IOdo antigo ... . .

B _ CRíTICA DAS DOUTR INAS IDEAUSTAS OU POSITIVISTAS ..

1. A orientação do jurista realista positivista.

1.1 A atitude positivista .... 1.2 A escola sociológica do direito 1.3 Um novo positivismo: a escola fenomenológica ..

2. A insuficiência das análises positivistas e realistas ..

II _ O FETlCHISMO DA FORMA DO DIREITO: O UNI VERSO RÍ­

GIDO DAS NORMAS . . .

A _ O FORMALISMO JURíDICO: PARA UMA TEORIA PURA DO

D IR EI TO . ..

1. Ciências da natureza e ciências morais: ser e dever ser ..

1.1 Ciências da nat ureza e ciências morais ...... . 1.2 Principio de causalidade e princípio de imputabilidade.

2. A pirâmide jurídica: estática e dinâmica jurídicas ..

II

225 233

247

247

248

249 259

266

267

271

275

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276 279 286

290

295

299

299

300 302

303

Page 6: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

2.1 A pirâmide jurídica no seu aspecto estático: Normas e norma fun-

damentai ..................... .

A pirâmide jurídica no seu aspecto din~~i~~:' ~. f~~~~Ç~~'d~ ~i'r~i'-lO por graus . , .

2.2

.. ' ............. .

B - O ESTRUTURALISMO NOS JURISTAS OU O CÓDIGO DO CÓDIGO . .

1. A via estruturalista e a dênciajurfdica . ....

2. Tentativas estruturalistas no direito . . ..... , ... . . .. ... .

304

306

308

309

311

c - Os LIMITES DO FETiCHISMO FORMALISTA.. ........ • • • . 317

À MANEIRA DE CONCLUSÃO ............... ... . ....... .. .. . 325

12

PREFAcIO

Esta introdução ao direito foi escrita, acima de tudo, a pensar

nos estudantes que, ao entrar no primeiro ano de direito, descobrem

o universo jurídico. Esta preocupação explica o estilo, a argumen­

tação e as referências que se encontrarão no texto. Não me preocupei com a existência de obras clássicas, ditas de

(tintrodução ao direito}) (como a Introdução Geral ao estudo do direito

de BRETHE DE LA GRESSAYE e de LABORDE-LACOSTE; e, ainda

com o mesmo titulo, a obra de BONNECASE ou a de COULOMBEL).

A experiência mostra-me que esses livros nunca são conhecidos e

lidos pelo públiCO ·estudantil. Empenhei-me, portanto, em retomar,

de forma crítica, esta introdução ao direito, tal como ela surge nos

manuais do primeiro ano. E aí, tomei como amostragem os quatro

manuais mais utilizados: os de H ., L. e J. MAZEAUD (Leçons de

droit civil, t. I , Montchrestien, Paris, 1972); A. WEILL (Droit civil,

introduction générale, Dalloz, Paris, 1973); J. CARBONNIER (Droit

civil, t. I, introduction, les personnes, coll. Thémis, P. U. F., Paris,

1974); e B. STARCK (Oroit civil, introduction, Libraires techniques,

Paris, 1972). É evidente que poderiam citar-se outros trabalhos, mas a abun­

dância aqui não adianta: qualquer um pode fazer a seu gosto uma

longa lista bibliográfica de pura erudição. E quem o quiser, encon­

trará muito por onde escolher a partir dos manuais e obras a que

faço referência. De igual modo, as introduções marxistas ao direito

são desconhecidas pela razão muito simples de que não existe prati­

camente nenhuma obra ao alcance de um prinCipiante. Claro que é

preciso citar M. e R. WEYL (La Part du droit dans la réalité et dans

I'action, Éditions sociales, Paris, 1972; Révolution et Perspectives du

droit, Editions sociales, Paris, 1974). Mas estes autores chegam a sim-

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Page 7: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

plificaçóes teóricas e a interpretações que me parecem criticáveis. Se exceptuarmos as obras escritas por não marxistas sobre a teoria marxista do direito (como K. STOYANOVITCH, La pensée marxiste et le Droit, coll. Sup., P. U. F., Paris, 1975) não restam senão inves· tigações críticas dificilmente acessíveis a um neófito, tais como B. EDELMAN, Le Droit saisi par la photographie, Eléments pour une théorie marxiste du droit, Maspero, Paris, 1973.

Como em muitas outras ocasiões, o melhor é regressar aos pró­prios clássicos. O texto mais claro e mais interessante continua a ser o de E. B. PASUKANIS, Théorie générale du droit et Marxisme, E. D. I., Paris, 1970, e, claro, alguns textos de Marx, de Engels ou de Lénine que se encontrarão ao longo deste meu trabalho.

Nestas condições, mesmo os não estudantes poderão ser interes­sados pela descoberta do que é o mundo dos juristas: foi também em todos estes que pensei ao escrever este trabalho, pais temos de convir que as obras de vulgarização sobre o direito são, ou muito eclécticas (como J. FREUND, Le Droit d'aujourd'hui, coU. Dossiers Logos, P. U. F., Paris, 1972) ou então claramente inconsistentes (R. LEGEAIS, Cle!s pour le droit, Seghers, Paris, 1973) .

O texto que vão ler deve ser tomado por aquilo que é: uma investigação que inicia o pór em causa de uma praça forte ainda sólida. As críticas que este trabalho suscitar são benvindas para pros­seguir este objectivo.

Dezembro, 1975

INTRODUÇÃO

Uma introdução crítica ao direito: este titulo, sob a sua aparente facilidade, exige algumas observações. Convém, com efeito, não nos enganarmos no objectivo.

Tal objectivo é, em primeiro lugar, pedagógico: trata-se de con­vidar aquele que inicia o estudo do direito a uma reflexão sobre

aquilo que vai fazer. Neste sentido, este projecto não foi ainda reali­

zado em numerosas universidades em França. Vocês acabam de chegar à universidade e escolheram a unidade

de ensino e investigação rU. E. R.) * jurídica. De momento, não têm senão uma ideia bastante confusa do que pode ser o direito. Eis que chega a tempo um curso de «introdução ao direito»: ele vai certamente responder à expectativa de uma definição do vosso estudo.

Desenganem-se: não haverá, realmente, introdução ao direito. Assim é feita a universidade nos seus departamentos jurídicos!

É certo que há uma parte de uma cadeira, a de direito civil,

que se intitula: «Introdução ao direito». Mas como mostrarei adiante, essa introdução não funciona verdadeiramente como introdução. Ser-vos-á dada tão-somente - e é já um grande trabalho - uma amos­tra dos conhecimentos que vão constituir o conteúdo das cadeiras que hão-de vir no primeiro ano e também em todo o curso de licen­ciatura. Por outras palavras, esta «introdução" surge como uma

apresentação, não como uma reflexão. Há, aparentemente, alguma lógica nesta posição: como poderia um neófito reflectir sobre aquilo que não conhece ainda? Primeiro, é preciso aprender; poder-se-á, em

'" U ~ E, R .. , U.nité d'enseignement ct de recherche. - N.. T.

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Page 8: Michel Miaille - Introdução Crítica ao Direito, 3ª ed. (2005)

UlIta Introdut;ão Crítica ao Direito

seguida reflectir 1. Encontra-se, então, justificado o desvio que, de uma reflexão sobre O direito, leva a uma apresentação das regras de direito. Pode começar-se imediatamente: «o direito é um conjunto de regras que ... », etc.

Esta apresentação, no entanto, não é neutra, t o que vou tentar demonstrar.

O que seria, pois, uma introdução crítica ao direito?

L Uma introdução

comecemos por um relembrar de vocabulário que fará compreen­der melhor o alcance da tarefa. Introduzir é um termo composto de duas palavras latinas: um advérbio (intra) e um verbo (ducere) 2.

Introduzir é conduzir de um lugar para outro, fazer penetrar num lugar novo.

ora, ao contrário do que se poderia facilmente pensar, esta deslo­cação de um lugar para outro, este movimento, não pode ser neutro. Não há introdução que se imponha por si mesma, pela lógica das coisas. Tomemos um exemplo para nos convencermos desta afirmação.

A visita a uma casa desconhecida, sob a orientação de um guia, é sempre uma 'estranha experiência: o guia introduz-vos na casa, faz-vo-la visitar, faz-vos, de facto, descobrir as suas diferentes divisões. Mas há sempre portas que permanecem fechadas, zonas que se não visitam, e, muitas vezes, uma ordem de visita que não corresponde à lógica do edifício. Em suma, vocês descobriram essa casa ((de uma certa maneira»: essa intrOdução foi condicionada por imperativos práticos e não necessariamente pela ambição de dar um verdadeiro conhecimento do edifício. É, aliás, admissível que, se vocês conheces­sem bem o guarda, tivessem podido passear sem restrições na casa, abrir as portas proibidas e visitar as zonas fechadas ao público. Em resumo, teriam tido um outro conhecimento dessa casa, porque teriam aí sido introduzidos de forma diferente. Que dizer, então, se vocês fossem um dos habitantes dessa casa? Conhecê-la-iam ((do inte­rioT» - conheceriam os seus recantos familiares, as escadas ocultas, o desgaste produzido pelo tempo e a atmosfera íntima. Tudo se passa com se, nas três hipóteses que acabamos de imaginar, não houvesse uma casa, mas três edifícios, no fundo muito diferentes pelo conhe­cimento que temos deles.

Este exemplo não é mais do que uma comparação, e veremos os seUS limites, mas permite compreender no início deste trabalho

1 Daqui surgem muitas vezes as propostas que tendem a instaurar uma r.eflexão sobre o direito, chamada impropriamente filosofia do direito, nos anos superiores do curso de licenc'atura ou no de pós.graduação. DepoiS de quatro anos de aprendizagem, um pouco de reflexão poderia ser interes. sante ...

2 Conduzir ,para dentro de, levar para dentro.

16

que não há introdução em si, lógica em si mesma, irrefutável. Há introduções possíveis, cada uma com a sua racionalidade, algumas vezes com o seu interesse, e, em qualquer caso, com as suas conse­quências. E isto vale, por maioria de razão, quando se trata de intro­duzir alguém num universo social como O universo Jurídico: o direito não tem a consistência material de uma casa, não é delimitado no espaço por paredes e portas. Quando eu tomo a iniciativa de vos introduzir no direito, tomo a responsabilidade de abrir certas portas, de conduzir os vossos passos num determinado sentido, de chamar a vossa atenção para este elemento e não para um outro s. Ora, quem saberá dizer se as portas que eu abri eram as boas? Se o sentido da visita era instrutivo para o visitante?

Estas questões afiguram-se-me fundamentais quando se aborda a descoberta de um lugar , novo: é exactamente nas respostas que lhes dermos que podereis provar-me o interesse e o valor do que pretenda fazer-vos conhecer. É, pois, extremamente importante pre­cisar o que é uma introdução.

Com efeito, para retomar a imagem da visita guiada, o conheci­mento que tiverdes da casa dependerá, como é evidente, do que o guia vos tiver mostrado: podereis muito bem não ter visto senão as dependências de serviço, as salas de visitas ou somente os jardins. Arriscais-vos a concluir pela importância da vida doméstica nessa casa ou, pelo contrário, pela predominância das relações sociais muito mundanas. E essa imagem que vos tiverem dado poderá mar­car-vos {LO ponto de não voltardes a falar dessa casa senão em termos de cozinha ou em termos de salão. Todas as discussões que tiverdes, doravante, sobre essa casa, poderão ressentir-se desse conhecimento inicial.

Finalmente, a tarefa do guia é cheia de responsabilidades, já que ela compromete um futuro imenso. E ainda, até aqui, a comparação fez-nos assimilar o guia a qualquer pessoa temível que, voluntaria­mente, poderia recusar-vos o acesso a certas partes da casa. Mas poderíamos peqar noutras comparações em que esta curiosa perso­nagem desaparecesse e em que ninquém fosse responsável pelos erros da visita: quero falar, por exemplo, da descoberta que faríeis sozi­nhos de uma cidade desconhecida. Ninguém vos impõe ir para esta rua em vez de qualQuer outra, de ir ver este monumento em vez de um outro. Por outras palavras, segundo os vossos gostos, os vossos interesses ou vossos hábitos, vocês poderiam muito bem «escolheT», visitar igre1as em luaar de fábricas, bairros comerciais em vez de bairros residenciais. E teriam, efectivamente, descoberto a cidade, ou melhor, um certo rosto da cidade.

É preciso, pois, não atribuir à nossa primeira imagem mais impor­tância do aue a que ela ?Jode ter: a introdução num lugar novo não é o efeito de um «complot» sabiamente preparado por alguns guias

3 Tal ê a minha tarefa de guia que não é mais do que a tradução de pedagogo.

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todo-poderosos de que vocês seriam as vítimas mudas e inocentes. Se raramente constitui um mecanismo maquiavélico para fechar deliberadamente certas portas, qualquer introdução pode ser com~ parada a um itinerário cujo sentido e desenvolvimento nunca são deixados ao acaso e condenam guias e visitantes a nunca abrir certas portas interditas.

Este risco é real e tanto mais insidioso quanto a nossa univer~ sidade liberal não afirma nenhuma ortodoxia precisa a respeitar: tudo é aparentemente possivel, tudo pode ser dito. Não /ui introdução oficial. Assim, todos os estudantes e a maioria dos professores podem pensar que abriram todas as portas, em desmascarar guias desonestos; trata-se de saber porque é que a visita se faz sempre no mesmo sentido, porque é que são sempre as mesmas portas que são abertas e outras fechadas.

Convenha-se que estas questões não são desprovidas de impor~ tância, já que, em definitivo, é o problema do conteúdo da introdução que se encontra colocado, justamente quando nenhuma directiva impõe esta ou aquela direcção.

E, no entanto, nada de tudo isso se deixa adivinhar na prática. A introdução ao direito tem todas as aparências de uma simples familiarização com a terminologia jurídica: tudo se passa como se, a partir de definições dadas a priori, se entregassem ao estudante os materiais que ele ia ter para manejar: a pessoa jurídica, o direito público e o direito privado, o contrato, a lei, as decisões judiciais e os actos dos poderes públicos e toda a tecnologia jurídica. Acaba por se ter a ideia de que, no fundo, a introdução é uma coisa simples. A quem tenha o espírito esclarecido e um pouco de boa vontade é dado, sem mais, um conhecimento imediato do mundo jurídico. Não há diversas maneiras de conhecer o direito: bastaria mergulharem, sem hesitações, nesse universo e, dominando o vocabulário e as técnicas, vocês poderiam, em breve, tornar-se juristas conhecedores. Vejamos.' Se nenhuma introdução é neutra, se todo o itinerário com~ porta a sua lógica e as suas consequências, esta impressão de um acesso imediato ao direito corre todos os riscos de ser uma falsa impressão. Vale, pois, a pena parar um pouco no limiar desse mundo novo se está em jogo a própria qualidade de todo o conhecimento que daí tiraremos.

Uma última palavra. Na sequência de acontecimentos que nada têm de ocasionais - e cuja história faremos mais tarde - a intro~

dução ao direito é objecto nos programas actuais 4 de um ensino integrado na cadeira de direito civil do ano respectivo. Esta situação acarreta duas consequências importantes. Em primeiro lugar, à intro­dução ao direito é atribuído, excepto em algumas universidades, um

'i O D. E. Uo' G. * foi instituido pelos decretos de 27 de Fevereiro e 1 de ~ar ç o de 1973.

* D. E . U. G., Dip16me d'études Unlversltalre.s Générales ~ -N. T.

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lugar menor. Ela não tem o estatuto de uma cadeira autónoma, com sessões de trabalhos orientadas e conduzindo, pois, a uma reflexão aprofundada. Bastaria para nos convencermos entrevistar os estudan~ tes do primeiro ano, para nos apercebermos que a introdução, a seus olhos, reveste, no máximo, ° carácter de uma passagem obrigatória antes de abordar. em profundidade as disciplinas jurídicas. O impor­tante, é o que se estudará em seguida: em direito civil, em direito constitucional ou em direito internacional. Nenhuma verdadeira inter­rogação é formulada no início dos estudos juridicos; nenhuma dúvida sobre a validade das noções utilizadas, sobre o rigor dos raciocínios da lógica jurídica. A introdução ao direito é um certo número de páginas a saber. Não é, pois, de espantar que a presença da intro~

dução nos programas funcione como uma ausência. Cruel ausência que só alguns filósofos do direito lamentam, de forma isolada, em revistas especializadas ~ ! Ao fim e ao cabo, o conhecimento juridico poderia dispensar uma reflexão sobre O direito.

Mas há uma segunda consequência, de igual gravidade. Sendo a introdução ao direito ensinada pelo professor de direito civil, aparece como uma parte do direito civil e não verdadeiramente como uma introdução a «(todo)) o direito. É interessante a este respeito consultar os manuais e as sebentas. Apesar de certos esforços, a lógica do direito privado predomina, O que obriga, a maior parte do tempo, os outros professores do primeiro ano a darem, cada um por sua vez, uma introdução.. ao seu ramo do direito. O estudante tem a impressão de ouvir três ou quatro vezes desenvolvimentos idên­ticos e, nesta abundância, se perde a intrOdução ao direito. Esta constatação é tão verdadeira que raras são as tentativas de coorde~

nação que tenham tido êxito. Frutos da interdisciplinaridade de 1968, as experiências regressaram pouco a pouco às tradições, e a intro~

dução ao direito perde o seu lugar de reflexão comum no conjunto dos problemas jurídicos.

Mas há ainda mais grave do que isto: a introdução ao direito não é de todo sentida como uma necessidade. Cada um pode realizá-la numa cadeira ou mesmo não falar dela: afinal, isso não tem impor~ tância nenhuma. É preciso saber, como pertinentemente nota um professor 6 que «todos os professores podem contentar-se com a intro­dução do professor de direito civil, sem examinar sequer se partilham a sua opinião. Contentam-se com ela tanto melhor quanto tais

~ O melhor exemplo é, sem dúvida, o combate solitário de Mo' VILLEY. Ver a sua última obra: Philosophie du droit, précis DaUoz, 1975. «Perguntem sobre o que é que assenta a nossa pretensa ciência do direito, como é que se justificam os nossos métodos, quais são as fontes dos nossos coolbecl­mentos quem saberá responder? ( .. . ) O jurista omite a justificação, a funda.­mentação do seu método de trabalho ou a explicação de porque é que as soluções se deixam ir buscar a esta ou àquela fonte» (p. 9).

:m exactamente o nosso ponto de partida. ~as não tiraremos dai as mes. mas conclusões.·

6 G. WIEDERKEHR. «Eléments de philosophie du droit dans les manuels contemporains de droit civib, Archives de philosophie du droít~ 1965, p .. 244.

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introduções deixam, todas elas, uma impressão de neutralismo». Que haja ou não introdução, nada se modificará por isso nos estudos feitos nas cadeiras.

Na realidade, não há verdadeirall:ente introdução ao direito no sentido em que se revela necessária uma reflexão sobre a maneira de conhecer o direito. Pode-se ficar surpreendido com esta ausência, quando é certo que, tradicionalmente, os ensinamentos ditos literá­rios, quer se trate de literatura propriamente dita ou de sociologia, de história, a fortiori de filosofia, não se concebem sem esta inter­rogação sobre o seu próprio objectivo. Veremos que esta situação não existe por acaso: basta-nos, de momento, tomar consciência dela. É-nos, pois, necessária uma introdução ao direito que seja o des­vendar do itinerário que vamos seguir.

Em rigor, não é qualquer introdução que serve para nos fornecer esta clarificação: é por essa razão que eu qualifico esta de critica.

II, Uma introdução crítica

Para compreender o alcance deste adjectivo, é preciso, em pri­meiro lugar, relembrar a ambição do projecto: introduzir o direito, claro, mas segundo um método científico. Esta precisão é plena de consequências.

Com efeito, a introdução ao direito que ouvis não é desenvolvida em qualquer instituição: ela é o objecto de um ensino ministrado numa unidade de ensino e investigação integrada numa universidade. Estas instituições, são, por definição, aquelas onde se elabora e trans­mite o saber. Mas é preciso ver de que saber se trata: aquele que tem o nome de ciência. De facto, toda a gente sabe, mais ou menos, o que é o direito - teremos ocasião de voltar a este ponto funda­mental- mas um estudante de direito pode ter o desejo legítimo de conhecer o direito melhor do que pelas instituições sociais ou fami­liares que o conduziram até lá: ele pode exigir que se produza diante de si a ciência jurídica. Introduzir O direito é, implicitamente, intro­duzir cientificamente o direito ou introduzir a ciência jurídica.

Se é este o desejo do recém-chegado e, ao mesmo tempo, a ambi­ção do professor, será, pois, necessário que nos interroguemos seria­mente sobre o que é um pensamento científico. Não se trata de um luxo inútil, uma observacão filosófica sem importância, uma perda de tempo: se eu não estiver à altura de ser introduzido cientifica­mente no direito, é então de duvidar de todos os conhecimentos que me poderão ser ensinados. Qual é o valor de uma instituição que não conseque realizar o que ela inscreve nos seus frontões? E, se a universidade já não é o lugar onde a ciência é produzida, então para que serve ela e onde é que se poderia encontrar um conhecimento científico? Volto, pois, ao próprio qualificativo desta introdução: crítica. Primeiramente, afastemos uma interpretação que, embora cor-

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rente, não é por isso menos errada. O termo crítico não tem o signi­ficado da linguagem habitual: tomamo-lo no seu sentido teórico. Dirigir críticas é, no sentido comum, exercer sobre as coisas ou as pessoas que nos rodeiam um certo número de juízos tendentes a corrigir tal erro, a colmatar esta lacuna, a denunciar aquela insufi­ciência. Criticar, apesar do sentido geral da palavra, não é, no entanto, sinónimo de pôr em causa. A maior parte das vezes, as críticas não têm nada em comum com uma crítica.

Com efeito, no conjunto bastante homogéneo dos professores que apresentam uma introdução ao direito, não deixam de encontrar-se tomadas de posição, juízos, em suma, críticas. Estas dizem respeito ou às opiniões de um. autor - critica-se esta ou aquela explicação­ou às disposições das regras de direito - critica-se esta lei, aquela decisão judicial, aqueloutro decreto. O liberalismo universitário favo­rece unw situação destas: se as críticas são possíveis, o espírita crítico está salvo, garantia da liberdade de pensamento 7. E, no entanto, o conjunto do edifício não é verdadeiramente posto em questão; embora possamos distinguir diferentes correntes filosóficas e poli­ticas nas cadeiras e nos manuais que tratam da introdução ao direito ii, estas surgem como variantes de uma melodia única: a filo­sofia idea.lista dos países ocidentais, industrializados.

As críticas feitas, aqui e além, não chegam para disfarçar a pro­funda afinidade dessas correntes. Assim pois, uma introdução crítica não será uma introdução com críticas.

E preciso t01nar o termo em todo o seu sentido: o da possi­bilidade de fazer aparecer o <dnvisível». Expliquem.os esta formulação algo esotérica \J. AquilO que é próprio de um pensamento abstracto consiste precisamente em poder evocar «coisas» ou realidades na sua própria ausência. A abstracção intelectual permite-me falar de mesa ou de cavalo, mesmo que não tenha uma mesa ou um cavalo sob os olhos no momento em que falo deles.

Esta faculdade. ·que parece evidente de tal modo nos é habitual, é, afinal, '0 que constitui o essencial do pensamento abstracto. Mas o pensamento crítico é mais do que o pensamento abstracto: é preciso (!acrescentar-lhe!> a dialéctica. Que quer isto dizer? O pensamento dialéctico parte da experiência de que o mundo é comple.To: o real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer

7 Um exemplo particularmente nítido desta vontade expres:óa de «cng-agemcnb é dado pelo tratado dc H .. L. e J. MAZEAUD, Leçons de droH civiL },1:ontehrestlen, Paris, 1972, 5. a cõição, pp. 43A4: «Este ensino do direito permanece droIn.'lsiado cxclU',üvamente centrildo no estudo do direito positivo (legislação e jurisprudência). ( ... ) O ens'no do d'reito deve propor-se um outro objectivo: f8/:cr um juízo de valor sobre a regra d-c direito, estudar essa regra de lege fcrcnda. (. )j •

. ~ G. WIEDERKEHR, «Elémcnls de philosophie ... », artigo citado pp. 243--2G6.

\! H. MARCUSE. Raison et révolut-ion, 1!".:ditions de Minuit, Paris, 196B. O prefác;o. «Kote :mr la dialectiquc:>, pp. 41-50 é de leitura fácil e extremamente intcre.'Jsante.

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