prisÃo cautelar sob uma visÃo social e crÍtica - michel lobo toledo lima

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PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA por MICHEL LOBO TOLEDO LIMA ORIENTADOR: PROFº. JOÃO RICARDO WANDERLEY DORNELLES 2008.1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL

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PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO

PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA

por

MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

ORIENTADOR: PROFº. JOÃO RICARDO WANDERLEY DORNELLES

2008.1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900

RIO DE JANEIRO - BRASIL

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PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA

por

MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: João Ricardo Wanderley Dornelles.

2008-1

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo conforto às minhas ansiedades, sem toda fé e confiança Nele

nada seria possível. Suas bênçãos são eternas e vão além de meras

satisfações pessoais.

A minha mãe, Nely Lobo dos Santos, pelo seu amor, pelo exemplo de força

e perseverança, pela sua dedicação e apoio em todos os momentos da minha

vida. Um dia o amor se tornou vida de tua vida e eu existi. Amo você!

A minha amada Simoni Machado Rosa da Silva, pelos momentos de

cumplicidade, ternura e felicidade, seu amor é poesia viva que me completa

e me faz feliz. Você é a mais pura beleza rara por tamanha magnitude de

seu resplendor. Amo você!

Ao meu orientador, Prof. João Ricardo W. Dornelles, pela credibilidade e

pela confiança conferida às minhas capacidades.

A Profª. Elizabeth da Cunha Sussekind, pelas valiosas indicações

bibliográficas, pela atenção prestada e por demonstrar caminhos em

momentos difíceis.

A Profª. e coordenadora de monografia Regina Coeli Lisboa Soares pela

paciência e prestatividade em momentos de difíceis elucidações.

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3

“O clamor público, a fuga, as confissões particulares, o depoimento de um

cúmplice do crime, as ameaças que o acusado pôde fazer, seu ódio inveterado ao

ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunções semelhantes, bastam

para permitir a prisão de um cidadão. Tais indícios devem, porém, ser

especificados de maneira estável pela lei, e não pelo juiz, cujas sentenças se

tornam um atentado à liberdade pública, quando não são simplesmente a

aplicação particular de uma máxima geral emanado do código das leis”.

Cesare Beccaria

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4

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar de forma crítica a prisão

cautelar no Brasil sob o aspecto social e à luz dos princípios constitucionais.

Será abordado desde a sua origem como forma de poder disciplinar, quando

sua aplicação não visava puramente a garantia da investigação criminal,

mas implicava também na prolongação da pena e confirmação de um poder

soberano, assumindo fins extraprocessuais à pena em si.

A prisão processual é a prisão cautelar em sentido amplo onde se

inclui as espécies: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária,

prisão decorrente de pronúncia e prisão decorrente de sentença condenatória

recorrível, onde serão demonstradas as características de cada uma dessas

modalidades e as diferenças entre elas.

Por fim será analisada a responsabilidade do Estado na aplicação da

prisão cautelar e acima de tudo os abusos de sua decretação e as

repercussões sociais de seu uso indiscriminado, já que tal medida cautelar

vem apresentando uma tendência para fins inadequados de política

criminal, afrontando princípios constitucionais, antecipando a pena em si,

além de colaborar com a seletividade no sistema punitivo. A prisão

processual enquadra-se na medida extremada da exceção dentro do conceito

de prisão, onde será analisada sua importância, necessidade e pressupostos

para a não promoção irracional e banal de deu seu uso.

Palavras-chave

Prisão; prisão cautelar; princípios constitucionais; antecipação penal.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................. 07

Capítulo 1 – Considerações Históricas.....................................................10

1.1 – Origem da prisão como instrumento do poder disciplinar............10

1.2 – Origem da prisão cautelar como instrumento do poder

disciplinar...................................................................................................16

1.3 – Breve histórico da prisão cautelar no Brasil..................................20

Capítulo 2 – Prisão Cautelar e Suas Modalidades no Ordenamento

Jurídico Brasileiro......................................................................................24

2.1 – Aspectos da prisão cautelar..............................................................24

2.2 – Espécies de prisão cautelar...............................................................26

Capítulo 3 – Análise Sócio-Crítica da Banalização da Prisão

Cautelar.......................................................................................................33

3.1 – Prisão Cautelar Como Garantia da Ordem Pública e da Ordem

Econômica...................................................................................................33

3.2 – Prisão Cautelar Como Garantia da Investigação do Inquérito

Policial e da Instrução Criminal...............................................................39

3.3 – Prisão Cautelar e Seletividade do Sistema Punitivo......................44

3.4 – Prisão Cautelar e Antecipação Penal..............................................49

Capítulo 4 – Princípios e Garantias Constitucionais..............................58

Conclusão....................................................................................................63

Bibliografia.................................................................................................66

Anexo..........................................................................................................70

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6

SIGLAS E ABREVIAÇÕES

BEL – Belém

CPP – Código de Processo Penal

DF – Distrito Federal

POA – Porto Alegre

REC – Recife

SP – São Paulo

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7

INTRODUÇÃO

Há muito tempo debate-se a forma mais adequada de punir o

indivíduo que não se adapta à vida em sociedade, ou seja, o indivíduo que

comete ato que confronta a lei penal e que pode possuir propensão à prática

do crime, sendo considerado uma ameaça à ordem pública e à paz na

sociedade. Os diversos sistemas prisionais adotados ao longo da história

utilizaram maneiras para julgar, e, também alegavam tentar ressocializar os

indivíduos marginais.

A prisão como forma última e mais “atual” de pena é revestida de

controle social por parte do Estado que impõe um sentimento de perigo

constante à sociedade, fazendo com que a pena privativa de liberdade não

seja mais a solução ideal para que um indivíduo seja punido, cumpra sua

dívida perante a sociedade e seja a ela reintegrado, uma vez que este

processo ressocializador é desvirtuado de seu objetivo em razão da

legitimação do poder punitivo do Estado.

A prisão promove a deterioração do ser humano, fugindo por completo

de sua alegada finalidade original. As prisões além de não ressocializarem o

indivíduo, não consideram a gravidade do delito cometido e suas

circunstâncias, além de promover seletividade dentro do sistema punitivo

por intermédio do processo penal.

Por essas razões, as penas privativas de liberdade devem ser encaradas

com extrema cautela. A liberdade é a regra e a prisão é a exceção, tal regra

é inquestionável e predominante para a manutenção dos direitos humanos.

Porém, apesar da extrema necessidade de prudência na sua aplicação,

poucas vezes essa idéia é respeitada.

A prisão cautelar em sentido amplo é a prisão processual, também

conhecida como provisória que ocorre antes do processo transitado em

julgado, diferenciando-se, portanto da prisão-pena, que apresenta caráter de

definitividade.

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A primeira é uma providência excepcional da autoridade judiciária

com fins unicamente processuais, sem caráter definitivo, caracterizando-se

por sua provisoriedade. A segunda é resultado de um processo em que o

indivíduo foi considerado culpado de forma definitiva, restringindo sua

liberdade.

Em vários casos a medida cautelar é realmente necessária como

instrumento de garantia e utilidade do processo penal, visando assegurar o

devido andamento da investigação criminal, a ordem pública e a ordem

econômica.

Porém, apesar da importância que representa, e o alto nível de sua

excepcionalidade, ela mostra sinais de descaso e banalização da privação da

liberdade do homem. As suas hipóteses de cabimento previstas no Código

de Processo Penal apresentam requisitos legais amplos, abertos e

desprovidos de critérios concretos de constatação.

Isso resulta de uma difundida ideologia de perigo constante

predominante na sociedade, motivando a facilidade aplicável de seus

requisitos a diversas situações, onde a prisão cautelar acaba por adquirir

caráter genérico e sendo assim invocada de forma abstrata, já que são

poucos os dados fáticos, objetivos e adequados para sustentá-la. Baseia-se

em um fundamento prisional genérico, sendo, portanto insuficiente em

inúmeros casos, e passível de divergências.

A exemplo da prisão penal, que ocorre após o trânsito em julgado da

sentença condenatória, a prisão provisória vem desvirtuando-se de sua

finalidade original, ganhando sentido cada vez mais amplo e genérico,

possibilitando ao Estado legitimar o seu poder punitivo, promovendo assim,

a antecipação da pena em si.

Pode-se concluir que a existência de requisitos tão abertos e amplos, é

uma forma de justificar as ações do Estado perante o indivíduo,

justificando-se a garantia da ordem pública, das investigações criminais

durante o inquérito policial ou quaisquer espécies de privação da liberdade

identificadas como medidas de urgência pessoais privativas da liberdade do

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imputado no processo penal brasileiro em prol do poder de julgar, que se

sustenta no argumento de reger e cuidar da sociedade contra os criminosos,

injustos e delinqüentes que são tidos como um mal para a sociedade.

O Estado, deste modo promove justiça de forma abstrata e mais

omissa, promovendo uma fuga de sua responsabilidade direta.

Pelas razões aqui expostas, faz-se necessário explicar detalhadamente

este instituto, bem como suas falhas e casos de sua dispensabilidade sob

uma perspectiva social e crítica, uma vez que a prisão cautelar usada de

maneira banal apresenta afronta a princípios da dignidade humana,

princípios constitucionais, além de gerar a inversão de valores, visto que a

pena privativa de liberdade, uma excepcionalidade, vem sendo tratada na

prisão processual, como uma regra.

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CAPÍTULO 1 – Considerações Históricas

O histórico da prisão mostra que a primeira forma de privação da

liberdade não tinha função punitiva, mas visava garantir a execução da

pena. O poder cautelar da prisão precede a suavização da pena. O poder

disciplinar estabelece novo significado e uso à pena de prisão. No Brasil

colonial a prisão era regulada em razão do desenvolvimento de um mínimo

de culpa formada na autoria delitiva, autorizando a prisão mesmo sem a

culpa comprovada.

1.1 – Origem da prisão como instrumento do poder disciplinar

Na antigüidade, a prisão não tinha o caráter de pena, onde seu uso

visava “encarcerar o acusado até o seu julgamento e a decretação de sua

pena que, via de regra, era de morte, o que se pode constatar pela análise

dos textos do Código de Hamurabi, Deuteronômio, Lei de Manu e Lei das

XII Tábuas” 1.

Nas palavras de Edmundo Oliveira, “a prisão é tão velha como a

memória do homem e, mesmo com o seu caráter aflitivo, ela continua a ser

a panacéia penal a que se recorre em todo o mundo” 2. As mudanças das

características da prisão acompanham suas finalidades

Tanto no Direito romano, quanto na Idade Média, a situação

prosseguiu nessa linha, inclusive com tribunais da Inquisição que

relegavam a execução da pena de morte ao poder laico.

A pena privativa de liberdade era desconhecida, e as masmorras e

calabouços, serviam apenas para abrigar presos provisoriamente. José

Antônio Paganella relata:

”(...) os povos antigos da Babilônia, do Egito, da Grécia e de Roma não conheciam

1 ROSA, Fábio Bittencourt. A Humanização das Penas. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/ revista/numero7/artigo2.htm>. Acesso em 21/maio/2007 às 22hs 02 min. 2 OLIVEIRA, Edmundo. Política Criminal e Alternativas à Prisão. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 05.

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a pena-prisão. Embora os acusados fossem confinados normalmente em calabouços imundos, a segregação a que podiam ser submetidos tinha por finalidade retê-los, nos moldes da prisão cautelar, até o dia do julgamento” 3.

A prisão como pena teve sua origem na Idade Média, nos mosteiros,

onde, religiosos pecadores eram recolhidos às suas celas para se dedicarem

ao arrependimento da falta cometida a fim de obterem a purificação, na

verdade era uma pena religiosa.

João Bernardino Gonzaga lembra:

“(...) a prisão, não só como medida processual, mas também como pena, aplicável a clérigos e a leigos, foi muito adotada, visando esta última a propiciar a reflexão expiatória e salvadora. Até o século XIII, cumpria-se em mosteiros ou conventos” 4.

Até a metade do século XIX, as punições aplicadas ao corpo ocultam

significados de extrema importância para uma maior amplitude na

compreensão de sanções penais e sua aplicação.

Para enxergar o que se pune por trás das “cortinas”, cuja peça teatral

seria todo um sistema que limita, proíbe e obriga, deve-se primeiro analisar

determinados conceitos e compreender determinados fatos históricos.

Sendo assim, “o corpo dos condenados” 5 é apenas uma de várias definições

para o estudo da origem da prisão como instrumento do poder disciplinar.

De forma objetiva, pode-se definir o suplício, conforme análise de

Foucault, até meados do século XIX, como sendo uma pena corporal e

dolorosa, onde o sofrimento é calculado conforme o crime cometido pelo

condenado.

O suplício apresentava três critérios: apreciar (promover um

espetáculo como a tortura), comparar (medir o sofrimento do condenado) e

3 BOSH, José Antônio Panganella. Das Penas e Seus Critérios de Aplicação. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 112. 4 GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Tempo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 86. 5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 31ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006. p.09. O “corpo dos condenados” é expressão utilizada por Foucault para ilustrar o suplício no fim do século XVIII. O conceito da expressão é ampliado ao decorrer da obra. É difícil identificar um momento da obra em que seu significado é definido em toda sua amplitude. A primeira menção do “corpo dos condenados” surge como título do primeiro capítulo de Vigiar e Punir. A expressão vai se adequando com a passagem do século XVIII para o século XIX. A referência na presente obra e na colocação do parágrafo incorpora o conceito adotado para o século XVIII, forma como é discorrida ao longo do sub-capítulo 1.1 e 1.2.

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hierarquizar (afirmação de um poder soberano). A partir desta breve

definição do que é um suplício pode-se entender qual o significado dos

condenados.

A exposição do suplício do condenado ao público, promovia um

espetáculo punitivo, demonstrando que a justiça estava sendo aplicada,

além de confirmar o poder daquele que puni.

Porém, em meio às torturas aplicadas publicamente ao condenado, o

supliciado acabava por ser tornar um objeto de piedade e de admiração, em

meio a tantos sofrimentos, e os juízes e carrascos acabavam por se tornarem

assassinos e torturadores brutais, invertendo-se, portanto, os papéis.

Até o fim do século XIX, os suplícios são suprimidos e a punição entra

no campo da “consciência abstrata” 6, a alma, onde sua eficácia é atribuída à

sua fatalidade e não mais à sua intensidade visível. Embora o método seja

diferente, a função é a mesma: desviar o homem do crime, mas pela certeza

de ser punido e não mais pelo teatro abominável.

Com esse novo método, a justiça torna-se abstrata e mais omissa,

promovendo uma fuga de sua responsabilidade direta a fim de eliminar a

imagem de carrasco e crueldade. Sendo assim, a execução da pena vai

tornando-se um setor autônomo que é aplicado por um mecanismo

administrativo.

A justiça, magistrados e juizes “se livram” da aplicação do sofrimento

corporal, por meio do fim do suplício em público e execução da pena a

cargo de um setor autônomo, e aplica a cura, a reeducação. Sendo assim,

pode-se definir esse novo método como uma técnica de aperfeiçoamento da

pena que limita, restringe e obriga, a fim de eliminar o mal.

6 Ibid. p. 29. Aqui, consciência abstrata refere-se à alma, mas não em seu sentido puramente teológico, englobando um pressuposto de existência do homem e possibilitando uma dicotomia mais clara entre corpo e alma, facilitando a destinação da pena, seja sobre o corpo, seja sobre a alma. A pena ao ser aplicada sobre a alma assume papel mais “nobre” do que o de meramente punir, pois está tentando corrigir e ressocializar um homem “desviado” do bom comportamento. A tortura sobre o corpo sede à salvação da alma do acusado. Tal mudança não implica em mera suavização da pena por meio da prisão, mas sim na fuga do Estado em ser o carrasco aplicador de sofrimento para se chegar à justiça.

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13

Essa técnica “libertadora do mal” procura tratar o corpo como um

objeto da ação punitiva. Substitui-se o carrasco pelo psiquiatra. A partir

disso já se evidenciaram questões paradoxais para a época: como privar

direitos do homem, por meio da prisão, sem promover sofrimento? Como

tirar a vida de um homem, no caso da pena de morte, sem que este sofra?

As penas tidas como incorpóreas também promovem sofrimento ao

corpo condenado, tais como a angústia e medo nos casos de pena de morte.

A maior questão surge quando se considera as “conseqüências não

tencionadas, mas inevitáveis da própria prisão” 7 que promove a redução

alimentar, privação sexual e expiação física; essas conseqüências não são

sofrimentos físicos? Se não, o que seria considerado então um castigo

corporal? Se sim, o que legitimaria a justiça moderna? Seja qual for a

resposta, sempre haverá um outro problema sem solução.

Outra mudança que surge a partir desse novo método, são as

considerações acerca do crime. Sob o nome de crimes, julgam-se os

impulsos e os desejos, que são analisados a fim de determinar até que ponto

a vontade do réu estaria envolvida no crime.

A partir dessas análises que são apresentadas em laudos periciais,

surge a definição de pessoas pervertidas que se opõem às saudáveis.

Define-se quem são os aptos e inaptos para conviver na sociedade, ou seja,

surge um processo de moldagem social camuflado pelo sistema punitivo

que qualifica o indivíduo.

Conforme palavras de Foucault pode-se resumir todo esse processo

afirmando que ao introduzir “solenemente as infrações no campo dos

objetos susceptíveis de um conhecimento científico, dar aos mecanismos de

punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as

infrações, mas sobre os indivíduos” 8.

Assim, incorpora-se o controle de conduta do indivíduo sobre o

pretexto da punição da alma e não mais do corpo, o que é considerado um

7 Ibid. p. 18. 8 Ibid. p. 20.

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progresso social em razão do fim dos suplícios. Ao afirmar que a punição se

exerce sobre a alma, cria-se a finalidade de neutralizar a periculosidade do

criminoso, modificando suas condições criminosas, justificando o sistema

de justiça moderno e camuflando o controle e moldagem social.

Com a qualificação do indivíduo, nota-se a evolução do conceito de

loucura na prática penal, onde, quanto mais louco for o culpado, menos

culpa é atribuída a ele. Com isso, a sentença, implica na apreciação da

normalidade que é avaliada por um tratamento médico-judicial.

Com o tratamento médico-judicial surgem os elementos extras

jurídicos que são instancias anexas onde o juiz não julga mais sozinho,

havendo psicólogos, educadores, magistrados da aplicação da pena, etc.

Esses elementos visam não só julgar o crime, mas o indivíduo e seu

grau de periculosidade, para assim aplicar a cura sobre ele. Esses elementos

extras jurídicos existem para esclarecer a decisão judicial, porém devem ser

mantidos como extras, pois assim, poderá escusar o juiz de ser pura e

simplesmente aquele que castiga.

Foucault realiza então uma avaliação da microfísica 9 do poder a fim

de compreender as transformações sociais e a concentração de poder, onde

para se analisar as transformações dos métodos punitivos deve-se analisar o

investimento político do corpo e a micro física do poder.

Para entender tal conceito, deve-se abandonar a metáfora da grande

propriedade, o modelo do contrato e a necessidade de se opor violência

contra ideologia no que se refere ao poder. Deve-se abandonar a oposição

entre interessado e desinteressado, o modelo do conhecimento e a

supremacia do sujeito no que se referem ao poder 10.

9 Ibid. p. 28. O conceito de microfísica do poder surge a partir da análise por Foucault da tecnologia política do corpo, onde se estabelece seu conceito base. Porém, o uso da microfísica do poder é desenvolvido ao longo de Vigiar e Punir, adquirindo amplitude no conceito. Dái a razão de não se poder identificar um momento exato na obra em que se traduz todos os usos e efeitos da microfísica do poder, que é distribuída ao decorrer da obra. 10 Ibid. p. 27. Neste sentido, deve-se abandonar a análise dos macros propostos por Karl Marx ao se analisar as relações de poder. Marx define a propriedade privada como o fator das transformações da sociedade, ou seja, o poder é de quem detém as forças produtivas e comanda as relações de produção, determinando o saber (religião, arte, política, direito, moral, filosofia). Sendo assim, Marx faz uma avaliação macro sobre a relação poder-saber.

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15

É na microfísica do poder que se encontra o controle implícito e

mascarado do corpo, revelando que a punição vai muito além do conceito

de aplicar justiça, reafirmando que a suavidade penal é uma técnica de

poder que visa o controle do corpo pregando a salvação.

Portanto, o poder produz saber, mas pode haver saber onde há relações

de poder conforme a passagem de Foucault:

“Esta alma real e incorpórea não é de modo algum substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder” 11.

A microfísica do poder está presente nas escolas e seus métodos de

ensino nas igrejas e suas doutrinas, etc., onde ocorre a disciplina, a

moldagem e o processo de transformação dos corpos em corpos dóceis.

O processo da suavização das penas é encarado pela sociedade como

sendo o surgimento de sistemas penitenciários que acabaram por marcar

uma época mais racional e humanista, dando origem ao princípio da

humanidade.

Porém, ao retomar o conceito de suplício, deve-se entender que este

existia para afirmar e justificar um poder soberano. Aplicando esse conceito

na atualidade deve-se enxergar que o poder de julgar, por exemplo, se

sustenta no argumento de reger e cuidar da sociedade contra os criminosos,

injustos e delinqüentes que são tidos como um mal para a sociedade.

Eis que então por meio do tratamento médico-judicial surge a brecha

para poder produzir a imagem e o padrão do criminoso e do delinqüente,

justificando a existência da pena que gera rotulações e discriminações.

A partir dessa moldagem, surgem os papéis de cada um na sociedade,

que retomando a expressão inicial, “peça de teatro”, os indivíduos são os

personagens e a sociedade é o roteiro a se seguir.

11 Ibid. p. 28.

Page 17: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

16

1.2 – Origem da prisão cautelar como instrumento do poder

disciplinar

Inicialmente a prisão teve natureza cautelar, transformando-se,

posteriormente, em pena-castigo, sob a hegemonia do Direito Canônico.

“A custódia do acusado para assegurar a aplicação de sanções punitivas

antecede historicamente à própria pena privativa de liberdade” 12.

No período medieval, a inquisição desenrolava-se em etapas, onde

havia o encarceramento do condenado antes de sua condenação, sendo,

portanto, um requisito da instrução, condição necessária para a tortura e

para obter a confissão do réu.

Nesse período, o poder de prisão se revelava por meio dos suplícios,

sendo uma maneira de conservar a condição de acusado do indivíduo antes

do julgamento e da aplicação da pena propriamente dita. Assim, a prisão

demonstrava sua função extraprocessual de punir, revelada por meio de um

poder soberano, ou seja, era verdadeira aplicação de pena sem julgamento.

Surge a partir disso, outra consideração importante partindo do

conceito de suplício, já mencionado no sub-capítulo anterior, que é o

estabelecimento da verdade que se restringia ao soberano e seus juízes; era

uma exclusividade absoluta e inquestionável. Não era bastante que os maus

fossem justamente punidos, era preciso, se possível, que eles mesmos se

julgassem e se condenassem.

A partir daí surgem dois meios para se obter a confissão: o juramento

(compromisso com a verdade e com Deus) e a tortura.

Todo esse processo servia para a obtenção de provas do crime, além

de ser um instrumento de disciplina e controle do acusado antes da

aplicação da pena em si, promovendo-se assim um poder de vigilância e de

submissão em relação ao suspeito, ou seja, uma forma de medida cautelar

para a investigação e obtenção de provas antes da pena efetiva.

12 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991. p. 58.

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Todo esse processo de vigilância e submissão do condenado é

ilustrado por Foucault como sendo o poder disciplinar que trata o corpo

como objeto e alvo do poder, onde ele é manipulado, modelado e treinado e

assim torna-se obediente, dócil. Só é útil o corpo manipulável, não o corpo

analisável.

Juarez Cirino analisa tal conceituação e posição de Foucault:

“A disciplina é a própria (micro) física do poder, instituída para controle e sujeição do corpo, com o objetivo de tornar o indivíduo dócil e útil: uma política de coerção para domínio do corpo alheio, ensinado a fazer o que queremos e a operar como queremos. O objetivo de produzir corpos dóceis e úteis é obtido por uma dissociação entre corpo individual, como capacidade produtiva, e vontade pessoal, como poder do sujeito sobre a energia do corpo” 13 .

Em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes muito

apertados que lhe impõem limitações, obrigações e proibições, ou seja, as

penas. É a partir do século XVIII que surgem novas técnicas e novos

conceitos para disciplinar o corpo que é trabalhado detalhadamente

(atitudes, gestos e movimentos), enfatizando a eficácia dos movimentos e

sua organização interna e valorizando mais os processos da atividade do

que os seus resultados; tudo para gerar um controle minucioso das

operações do corpo.

Portanto, a disciplina fabrica corpos submissos (obedientes) e

exercitados (úteis), ou seja, “corpos dóceis” 14. Com isso, há um aumento

das forças do corpo em termos econômicos de utilidade e diminuem as

forças do corpo em termos políticos de obediência. Tudo com base na

eminência dos detalhes (meticulosidade das formas de treinamento),

reafirmando a extrema importância e capacidade da microfísica do poder.

A noção do que seria o homem bom, correto e trabalhador existe a

partir da contraposição à imagem criada e induzida do homem vagabundo e

criminoso.

13 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 53-54. 14 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 117.

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18

O homem vagabundo é aquele que não trabalha, não produz e não

contribui com impostos. O criminoso é aquele que “desafia” as leis, que a

princípio são criadas pelo povo, mas são moldadas pela microfísica do

poder, que promove padrões de normalidade como camuflagem do controle.

Por essa linha de pensamento, a ordem produz o caos, o caos justifica

a ordem, uma vez que para haver o bom, deve haver o mal. A disciplina

promove novas formas de utilização do tempo e do espaço, utilizando

várias técnicas.

Quanto ao espaço, a disciplina exige um “território delimitado”, um

local heterogêneo a todos os outros e fechando em si mesmo, a exemplo dos

quartéis e colégios, separando vagabundos e miseráveis dos indivíduos do

bem, com disciplina que é obtida nestes locais fechados que se tornam

modelos a serem seguidos.

Nestes locais, existe uma organização analítica do espaço, onde cada

local específico possui um significado próprio a ser respeitado e seguido;

tudo visando manter a ordem e acima de tudo, criar um espaço útil onde

todos obedecem de forma organizada. A organização do espaço facilita e

promove uma utilização mais eficaz do corpo.

Para promover a disciplina, devem-se haver recursos para o bom

adestramento. A partir daí, têm-se a utilização de instrumentos como: a

vigilância hierárquica que observa o trabalho do corpo, verificando a

atividade do homem como seu relacionamento técnico, a maneira de

trabalhar, sua rapidez, seu zelo e seu comportamento dentro de uma fábrica,

por exemplo; a sanção normalizadora que serve como repressora da má

utilização do tempo (ausências, atrasos e interrupções das tarefas da

atividade, desatenção, negligencia, falta de zelo) da maneira de ser

(grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo

(gestos inaptos ao contexto) e da sexualidade (imodéstia, indecência).

O conceito de exame afirmado por Foucault é uma forma de controle

normalizador, pois cria um padrão de normalidade que promove uma maior

aceitação da docilidade.

Page 20: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

19

O exame15 possui base em todo um ritual criado com a função de

inspecionar, examinar, ou seja, verificar se há disciplina; saber se há a boa

utilização do tempo e do espaço e saber se há a passagem dos padrões de

normalidade, seja nas escolas, nos hospitais, nos quartéis, nas fábricas, etc.

A partir deste contexto, Foucault ainda ressalva a idéia de

delinqüência e ilegalidade. A privação de liberdade que surge a partir da

abolição dos suplícios produz diversos efeitos além de punir o condenado.

A prisão produz criminosos e todo um sistema criminológico, criando

a necessidade do poder de polícia, da segurança e da vigilância, justificando

a necessidade da própria prisão que pune os criminosos, promovendo assim

um ciclo.

O padrão de delinqüente (prostituta, mendigo, ladrão, etc.) faz parte

deste ciclo. A polícia aplica seu poder para punir o delinqüente na prisão

que produz um sistema criminológico e gera mais delinqüentes.

Além disso, a figura do criminoso serve como consolo para o

trabalhador pobre que vê pessoas em estado bem pior. E, sobretudo, é

necessária a existência desse padrão, pois ele é um instrumento para se

obter controle, já que o padrão de delinqüente se opõe ao padrão de

normalidade, justificando a sua existência.

Sendo assim, a delinqüência é uma forma de se obter o controle

camuflado de pregação da salvação e cura, ou seja, punir os inaptos à

conveniência em sociedade, justificando um sistema que possui o poder de

julgar, até mesmo nas fases que precedem o julgamento em si, ou seja, a

prisão cautelar.

Apesar de Foucault não mencionar a prisão provisória em si, pode-se

fazer uma analogia a ela, uma vez que há uma representação do processo

penal, por meio da prisão cautelar, que impõe um processo de poder sobre o

corpo dos acusados, independentemente dos pressupostos previstos na

legislação sobre a decretação da prisão processual.

15 FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p.154.

Page 21: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

20

A prisão cautelar usada de forma inadequada e antecedendo a pena de

prisão que só viria após a sentença condenatória se equipara a tortura

existente até o fim do século XVIII, que era utilizada como um meio

processual para obtenção de provas, como medida cautelar para se

assegurar o devido andamento processual e proteger a sociedade de um

delinqüente.

1.3 – Breve histórico da prisão cautelar no Brasil

Antes da Proclamação da Independência em 1822, o Brasil não

possuía legislação positivada e o Direito Penal aplicado no território

brasileiro era o Direito português, onde a prisão cautelar já era presente no

Brasil desde o período colonial, uma vez que “as Ordenações do Reino que

vigoravam em Portugal e na colônia admitiam a prisão preventiva somente

para os autores de homicídio, feridas ou chagas graves, incendiários, furto

manifesto, entre outros” 16.

No período do Brasil colônia a prisão era regulada em razão do

desenvolvimento de um mínimo de culpa formada na autoria delitiva. A Lei

de Reformação de Justiça de 6 de dezembro de 1612, §14, afirmava:

“Nos delitos que comprovados merecem pena de morte natural, poderão os Corregedores, Ouvidores do Mestrado e Juízes de Fora destes reinos, e Senhorios de Portugal, prender as pessoas, que lhes disserem, que são culpadas, antes de formar culpa; com declaração que dentro em oito dias (sendo caso de devassa) serão obrigados a tiral-a, e não se provando pela culpa, aos presos dentro do tido tempo, serão logo soltos sem apellação nem agravo, que o impida, ficando-lhes seu direito reservado contra a pessoa, que injustamente os fez prender, para lhe pedirem as perdas e dannos: e sendo caso de querela, a parte quelerará e dará prova dentro do tido termo, porque se mostre tanto, que baste para haver de ser preso, e não provando, será logo solto na forma que fica dito” 17.

16 PIERANGELI, José Henrique. Processo penal – evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Jalovi, 1983. p. 53. 17 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro. vol. I. 2ª ed augm. Rio de Janeiro: Francisco Alves; Paris. 1911. p. 365.

Page 22: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

21

Ao Comentar a referida Lei, Vanguerve destacou:

“Que o dito §14 usa da palavra – poderão, a qual importa poder e não necessidade, principlamente em matéria tão grave, como é proceder à prisão sem preceder summario conhecimento da culpa” 18. “Por direito antigo ninguém poderia ser preso antes da culpa formada do delicto; e era tal a observância que, ainda que depois da prisão sobrevenha prova do delicto, não pode o preso ser reteudo e há de ser retituído à sua liberdade” 19.

A prisão cautelar teve o seu surgimento legal com a Constituição do

Império do Brasil, promulgada em 25 de março de 1824, que admitia uma

forma de prisão sem culpa formada. Em seu art. 179, inciso VIII, a referida

Constituição estabelecia uma forma de prisão cautelar, a saber:

“Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados na Lei; e nestes dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Vilas, ou outras Povoações próximas aos lugares da residência do Juiz; e nos lugares remotos dentro de um prazo razoável, que a Lei marcará, atenta a extensão do território, o Juiz por uma Nota, por ele assinada, fará constar ao Réu o motivo da prisão, os nomes do seu acusador, e os das testemunhas, havendo-as” 20.

A mesma Carta Constitucional, estabeleceu que devesse se organizar

o quanto antes um Código Criminal do Império, fundado nas sólidas bases

da Justiça e equidade, o que veio a acontecer em 1832, prevendo a “prisão

sem culpa formada quando resultasse do interrogatório fundada suspeita

contra o conduzido em seu art. 133 e para os indiciados pelo cometimento

de crimes inafiançáveis em seu art. 175” 21 .

Rogério Schietti aponta sobre a regulamentação legal da culpa

formada no Código Imperial de 1832:

“A assim chamada formação de culpa era regulada pelos artigos 134 e seguintes do Código de Processo Criminal de Primeira Instância (Código Imperial, de 1832), e tinha como objetivo permitir ao juiz, após o oferecimento da denúncia ou queixa, convencer-se da existência do delito e de quem era seu autor, caso em que assim o

18 Ibid., p. 305. 19 Ibid., p. 304. 20 Ibid., p. 152. 21 BARLETTA, Junya Rodrigues. Fundamentos Críticos Para a Deslegitimação da Prisão

Provisória. Rio de Janeiro. 2007. 190 p. Tese (Dissertação de Mestrado) – Departamento de Direito da PUC-RIO. p. 147 – 148.

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22

declarava por despacho nos autos, dando prosseguimento ao processo com vistas ao julgamento definitivo” 22.

Somente com o advento do Decreto-lei n.º 3.689 de 03/10/1941, que

instituiu o Código de Processo Penal, vigente até os dias atuais, é que a

prisão preventiva veio a se apresentar como indiscutível e certa.

Seu texto inicial estabelecia a possibilidade da aplicação da prisão

preventiva: “a prisão preventiva será decretada nos crimes a que for

cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez

anos”.

Porém em 03/11/1967, como o advento da Lei n.º 5.349, que deu nova

redação ao art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão obrigatória foi

extinta, passando o referido artigo a dispor da seguinte forma: “A prisão

preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por

conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei

penal, quando houver prova de existência do crime e indícios suficientes da

autoria”.

Dez anos depois, a Lei n.º 6.416 de 24/05/1977, acrescentou o

parágrafo único ao art. 310 do Código de Processo Penal, que passou a

prever a impossibilidade da manutenção da prisão em flagrante quando não

forem observados os requisitos e pressupostos da prisão preventiva,

estabelecidos nos artigos 311 e 312 do CPP.

Em 11/06/1994, foi promulgada a Lei n.º 8.884, onde, mais uma vez, o

art. 312 do CPP sofreu alterações, desta vez um pouco menos radical

comparada ao texto original do CPP, em que a prisão preventiva era

obrigatória, sendo acrescentado a decretação da prisão preventiva como

garantia da “ordem econômica”, além da alteração do da expressão “indício

suficiente de autoria” em vez de “indícios suficientes da autoria” 23.

22 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar - Dramas, Princípios e Alternativas. Rio de Janeiro: Editora Lumem Júris. p. 35. 23 Neste sentido, DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu

Prazo de Duração. 2ª ed. ampl. e atual. São Paulo: Renovar, 2001. p. 162.

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23

A Lei 5941/73 inseriu no Código de Processo Penal os conceitos de

primariedade e de bons antecedentes nas modalidades de prisão cautelar das

prisões decorrente de pronúncia e de sentença condenatória recorrível como

condições para a permissão da liberdade antes da condenação definitiva.

A prisão temporária, uma das modalidades de prisão cautelar, está

regulamentada na Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, tendo sido

criada através da medida provisória 111 de 24 de novembro de 1989.

Sua origem visou a regularização de medida proibida na época, que

era atender necessidades de ordem investigatória, mantendo o suspeito

detido em função da necessidade e urgência de se controlar a criminalidade.

Ao ser regulamentada pela referida Lei, a prisão temporária acabou

por compor o grupo das medidas cautelares, revestindo-se das

características da instrumentalidade, provisoriedade e acessoriedade.

Como fundamento entendia-se que como a prisão preventiva

apresentava regras rígidas, e se tornaria mais simples e seguro prever

legalmente a circunstância onde a autoridade policial pudesse conservar o

suspeito detido na delegacia para fins de investigação, em prejuízo do

decreto judiciário.

A mais nova alteração promovida no CPP, que trata da prisão cautelar,

foi a inclusão do inciso IV no art. 313, pela Lei nº. 11.340/2006, que

estabelece que a prisão preventiva possa ser decretada se o crime envolver

violência doméstica e familiar contra a mulher.

Page 25: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

24

Capítulo 2 – Prisão Cautelar e Suas Modalidades no

Ordenamento Jurídico Brasileiro.

A prisão cautelar, em sentido amplo, é a prisão com fim processual e

não punitivo, caracterizando-se por sua provisoriedade, sendo chamada

também de prisão provisória. Suas modalidades são: prisão em flagrante,

prisão preventiva, prisão temporária, prisão decorrente de pronúncia e

prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, onde serão

demonstradas as características de cada uma dessas modalidades e as

diferenças entre elas.

2.1 – Aspectos da prisão cautelar

Entre as maneiras de se classificar os tipos de prisão existentes, a

avaliação da existência do caráter de definitividade é uma delas.

A prisão pena é aquela originária de uma decisão condenatória

irrecorrível, e consiste na privação da liberdade do homem em razão de

aplicação de uma pena restritiva de liberdade, em decorrência de um delito

cometido e reconhecido pelo judiciário.

Assim, a prisão pena caracteriza-se pela consideração de

culpabilidade do acusado de forma definitiva, em decorrência de processo.

Apesar da possibilidade de impugnação por habeas corpus e revisão

criminal, a decisão continuará com caráter definitivo enquanto tais ações

impugnativas não forem julgadas procedentes.

A prisão cautelar não possui esse caráter definitivo, caracterizando-

se por sua provisoriedade, não derivando de uma condenação penal

transitada em julgado e nem obtida após um devido processo legal.

Assim, evidencia-se outra característica da prisão provisória, a sua

excepcionalidade, uma vez que é medida excepcional da autoridade

judiciária com fins exclusivamente processuais. Assim, a prisão provisória

só deve ser utilizada como instrumento de garantia e necessidade do

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25

processo penal. Essa característica parte do princípio de que a liberdade é a

regra e a prisão é a exceção. Desta forma, também se destaca a

característica da instrumentalidade da prisão processual.

Ainda que em caráter provisório, a prisão cautelar é vista pela

sociedade como uma forma de afastar delinqüentes, ou até supostos

delinqüentes, do convívio social. Ela se apresenta “como um remédio, um

analgésico, de efeito quase que imediato” 24.

A prisão cautelar, seja qual for a espécie, deve ser aplicada com

extrema prudência, obedecendo a sua essência, tendo em vista a degradação

que o sistema penal brasileiro atribui ao indivíduo. Sobretudo, deve-se

respeitar as garantias e princípios constitucionais inerentes à dignidade da

pessoa humana.

Apesar de seu caráter de não definitividade, a prisão cautelar acaba por

restringir a liberdade do indivíduo, e por isso, ela só poderá ser adotada se

estiverem presentes dois requisitos, que são: o fumus commissi delicti e o

periculum libertati, que serão melhor abordados no sub-capítulo 3.2.

O princípio da proporcionalidade visa a proporção entre implicação do

processo penal e a providência da prisão cautelar. Assim, o princípio da

razoabilidade caminha próximo ao princípio da proporcionalidade, onde se

deve respeitar o prazo legal da manutenção do acusado sob prisão cautelar,

evitando a “conversão” de pena provisória para definitiva. O tratamento

dado ao acusado não deve ser mais grave do que o previsto na sua possível

condenação.

Vários são os princípios constitucionais que respaldam e limitam a

prisão cautelar, que serão melhor considerados no capítulo 4, porém a

própria Constituição Federal prevê o direito a liberdade, se contrapondo à

prisão processual, onde a solução é a ponderação entre ambos por meio

princípio da razoabilidade e o princípio da proporcionalidade.

24 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de

Duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 11.

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26

2.2 – Espécies de Prisão Cautelar

Cinco são as espécies, de prisão cautelar: prisão em flagrante (artigos

301 a 310 do CPP), prisão temporária (Lei nº. 7.960), prisão preventiva

(artigos 311 a 316 do CPP), prisão decorrente de pronúncia (artigos 282 e

408, §1º do CPP) e, prisão decorrente de sentença penal condenatória

recorrível (art. 393, I do CPP).

A primeira modalidade a ser analisada é a prisão em flagrante. A

palavra flagrante é derivada do latim flagrare (queimar) e dos adjetivos

flagrans, flagrantis (ardente, brilhante, resplandecente).

Sua autorização está disposta no artigo 5º, LXI da Constituição

Federal: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem

escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos

de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Portanto, a prisão em flagrante dispensa ordem escrita.

O artigo 301 do CPP dispõe que: “qualquer do povo poderá e as

autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja

encontrado em flagrante delito”. Demonstra-se a natureza de ato

administrativo da prisão em flagrante.

Conforme Júlio Fabbrini Mirabete, flagrante, em sentido jurídico, é

uma qualidade do delito, é o delito que está sendo cometido, praticado, é o

ilícito patente, irrecusável, insofismável, que permite a prisão do seu autor,

sem mandado, por ser considerado a “certeza visual do crime” 25.

Já, Aury Lopes Junior, defende que a prisão em flagrante seria medida

pré-cautelar, pois se destina a preparar futura medida cautelar, visto que

pode ser realizada por qualquer pessoa ou pela própria autoridade policial26.

A prisão duraria o prazo de 24 horas, e depois de submetida a análise

judicial, seria necessária a decretação da prisão preventiva.

25 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2005. p. 401. 26 LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade garantista). Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2004. p. 214.

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27

Conforme o disposto no parágrafo único do artigo 310 do Código de

Processo Penal, a prisão em flagrante exige o periculum libertati, ou seja,

sua manutenção ficará condicionada à análise de sua necessidade,

demonstrando que a prisão em flagrante é “medida cautelar de natureza

processual” 27.

A prisão em flagrante poderá ser em sentido: estrito, quando o agente

for pego cometendo o crime (artigo 302, I do CPP); próprio, no momento

em que o crime foi cometido (art. 302, II do CPP); impróprio ou quase-

flagrante, quando não houver perseguição do agente que presumidamente é

o autor da infração (artigo 302, III do CPP); e presumido, que embora não

ocorra na ocasião da infração, ocorre em seguida, onde o acusado deve

portar instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o

autor da infração (artigo 302, IV do CPP).

É facultativo ao juiz conferir liberdade provisória, depois de ouvido o

Ministério Público, ao réu que tenha praticado o delito em estado de

necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou

no exercício regular do direito, conforme o disposto no artigo 310 do

CPP28.

Vale distinguir relaxamento da prisão de liberdade provisória. O

primeiro está previsto no artigo 5º, LXV da Constituição Federal e ocorre

em razão de vício na prisão em flagrante, ou seja, a prisão é ilegal por não

obediência aos pressupostos contidos no artigo 302 do CPP. A segunda

ocorre quando a prisão é legal, mas não é considerada necessária a sua

manutenção com base nos artigos 310, 321 a 350 do CPP.

O fundamento da prisão em flagrante é a amparar a ordem pública,

“cabalmente violada pela prática de um crime em situação que, por si só, e

27 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Op. Cit. p. 401. 28 Artigo 310 do CPP: Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

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28

excepcionalmente, autoriza a prisão para asseguramento, ou perpetuação, da

situação de fato” 29.

Portanto, se decidida a manutenção da prisão em razão de flagrante

após findo o prazo de seu mantimento, deve haver manifestação judicial,

obrigatória e fundamentada, e conversão em prisão preventiva e com base

nos fundamentos desta.

Assim, a segunda espécie de prisão cautelar a ser analisada é a prisão

preventiva, com previsão legal nos artigos. 311 a 316 do Código de

Processo Penal. Dada sua nomenclatura, não se deve confundir o caráter

preventivo das demais modalidades de prisão provisória com a prisão

preventiva em stricto sensu conforme preleciona o professor Tourinho

filho:

“(...) fala-se em prisão preventiva stricto sensu, referindo-se àquela prevista nos arts. 311 usque 316 do CPP, para extremá-las das demais prisões cautelares, porquanto, em rigor, todas elas são preventivas. Se a prisão em flagrante e a prisão resultante de pronúncia têm por finalidade, de modo geral, evitar o periculum in

mora (rectius: periculum libertatis), sua função é cautelar; sendo-o, elas são preventivas... Todavia, como existe, entre nós, prisão cautelar com o nomem juris

de preventiva e se, em rigor, todas são acautelatórias, preventivas, portanto, será melhor denominarmos aquela prisão cautelar, a que se refere o CPP nos arts. 311/316, prisão preventiva stricto sensu”

30.

A prisão preventiva é uma medida acauteladora, com o fim de se

garantir a ordem pública, a ordem econômica, assegurar a aplicação da lei

penal ou para conveniência da instrução criminal. A grande crítica à prisão

preventiva tange o seu tempo de duração, onde muitas vezes é tão extenso

que acaba por punir o acusado antecipadamente. Tal discussão será melhor

analisada no sub-capítulo 3.4.

Em razão do disposto no artigo 311 do CPP, a prisão preventiva pode

ser decretada tanto na fase do inquérito policial, quanto durante a instrução

criminal.

29 CARVALHO, Luis Gustavo Castanho Grandinetti de. Processo Penal e Constituição – Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4ª ed. Ver. E ampli. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006. p. 214. 30 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol 3, 26ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva. 2004. p. 401.

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29

O artigo 312 do Código de Processo Penal estabelece os

pressupostos autorizadores da prisão preventiva: “a prisão preventiva

poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica

por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei

penal, quando houver prova de existência do crime e indício suficiente de

autoria”.

Portanto, para que seja decretada a prisão preventiva, deve haver

além da materialidade do crime, o forte indício de autoria para não venha

ocorrer constrangimento ilegal, sanável por meio de hábeas corpus. Os dois

pressupostos devem estar presentes, onde apenas um desses requisitos é

insuficiente para estabelecer a prisão cautelar.

A fim de esclarecer o que seria indício suficiente de autoria, o

Código de Processo Penal, em seu artigo 239, dispõe sobre sua definição:

“Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo

relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra

ou outras circunstâncias”.

Novamente, faz-se necessária análise acerca do fumus commissi

delict e do periculum libertatis, que serão melhor considerados no sub-

capítulo 3.2.

Respeitados os pressupostos e fundamentos dispostos no artigo 312

do CPP, a prisão preventiva é admitida nos casos de crimes dolosos,

conforme dispõe os incisos do artigo 313 do CPP: I – punidos com

reclusão; II – punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é

vadio, ou havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não

indicar elementos para esclarecê-la; III – se o réu tiver sido condenado por

outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o

disposto no parágrafo único do art. 46 do Código Penal.

A terceira espécie de prisão cautelar a ser analisada é a prisão

temporária, prevista na Lei nº. 7.960. Ela é “medida acauteladora, de

restrição da liberdade de locomoção, por tempo determinado, destinada a

Page 31: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

30

possibilitar as investigações a respeito de crimes graves, durante o inquérito

policial” 31.

A prisão temporária só poderá ser decretada pelo juiz, em face da

representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério

Público, conforme o disposto no artigo 2º da mencionada Lei. A prisão

temporária só pode ser decretada mediante os fundamentos

consubstanciados nos incisos I, II e III, do art. 1º da Lei n.º 7.690/89, sendo

este rol taxativo.

A ocorrência dos incisos I ou II, do mencionado dispositivo, assim

como cominados, é satisfatória para a decretação da prisão temporária, uma

vez cometidos os delitos previstos no inciso III do mesmo artigo. Tais

considerações serão melhor abordadas no sub-capítulo 3.2.

O prazo da custódia temporária é de cinco dias e tem início a partir da

efetiva prisão do acusado, devendo, em princípio, serem observados o

fumus commissi delicti e o periculum libertati, critérios necessários para

aplicação de qualquer prisão cautelar. Após este prazo, o preso deverá ser

posto em liberdade, caso a prisão preventiva já houver sido decretada 32.

A prisão decorrente de pronuncia, é modalidade de prisão cautelar

prevista nos artigos 282 e 408, §1º, do CPP. A prisão decorrente de

sentença penal condenatória recorrível está prevista no artigo 393, I do

CPP. Essas duas últimas modalidades de prisão provisória não apresentam a

natureza cautelar propriamente dita.

Ambas não apresentam vínculo de acessoriedade com o resultado

pretendido na ação penal condenatória, porém são aplicadas pelos Tribunais

Superiores como medidas cautelares, fundamentando que antes da sentença

penal condenatória transitar em julgado, a prisão tem natureza de medida

cautelar33.

31 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 424. 32 BRASIL. Lei n.º 7.960 de 21 de dezembro de 1989, art. 2º, § 7º. São Paulo: Saraiva, 2006, p.665. 33 Neste sentido, STJ, HC, n. 16925/BA, Rel. Ministro Paulo Medina, Brasilia, 15 mar. 2007; e, STJ, HC, n. 59239/SP, Rel. Ministro Nilson Naves, Brasilia, 10 abr. 2007.

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31

A prisão decorrente de pronuncia, ocorre nos crimes de competência

do Tribunal do Júri e possui natureza de “decisão interlocutória, mediante a

qual o magistrado declara a viabilidade da acusação por se convencer da

existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor” 34.

Primeiro há o reconhecimento da denúncia e termina com a pronúncia,

que é a decisão do juiz sobre a admissibilidade da presença de indícios de

culpabilidade do réu e materialidade do crime, havendo declaração de que o

acusado será submetido a julgamento pelo júri. Depois, há o oferecimento

do libelo e se encerra com o julgamento em plenário.

Dessa forma, o juiz deverá declarar o dispositivo legal em que o autor

do delito esteja enquadrado, para que este permaneça na prisão, caso já

esteja preso, ou para expedir ordens necessárias a fim de capturá-lo. É

facultado ao juiz, decretar ou revogar a prisão do réu quando este for

primário e de bons antecedentes. Já em caso de crimes afiançáveis, o valor

da fiança será arbitrado e verificado no mandado de prisão, conforme o

disposto no artigo 408, § 2º e 3º.

Quanto à prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, há a

antecipada prestação jurisdicional pedida na denúncia. Essa modalidade é

cogitada quando o réu se encontrar solto em ocasião de sentença de

primeira instância. Tal modalidade é incompatível com o princípio da

presunção de inocência.

Essas duas espécies de prisão não constituem pena, pois não há pena

sem trânsito julgado da sentença. Tampouco apresentam característica de

cautelaridade, pois estão ausentes o fumus commissi delicti e o periculum

libertati. Assim, tais modalidades de prisão são inconstitucionais

justamente por não se enquadrarem nas espécies de prisão admitidas na

Constituição e promoverem a antecipação penal, violando o devido

processo legal e a presunção de inocência.

34 TUCCI, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 144.

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32

Porém, esta não é uma posição reconhecida pelos Tribunais

brasileiros, já que não reconhecem a inconstitucionalidade destas espécies

de prisão, nem mesmo do criticado artigo 594 do CPP, que veda a apelação

sem recolhimento a prisão, sob certas circunstâncias, onde a sua aceitação é

incompatível com os princípios e garantias constitucionais35.

35 Artigo 594 do CPP: O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecidos na sentença condenatória, ou condenato por crime que se livre solto.

Page 34: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

33

Capítulo 3 – Análise Sócio-Crítica da Banalização da Prisão

Cautelar.

Por sua característica de provisoriedade e excepcionalidade, a prisão

cautelar não pode assumir fim diverso de instrumento para garantia e

utilidade do processo penal, visando assegurar o devido andamento da

investigação criminal, a ordem pública e a ordem econômica. A tendência

atual de uma política criminal repressiva vem atribuindo amplo conceito a

esses pressupostos, atribuindo fins inadequados ao instituto e promovendo a

sua banalização, a seletividade do sistema punitivo e a antecipação penal.

3.1 – Prisão cautelar como garantia da ordem pública e da ordem

econômica.

Ao se analisar o fundamento da garantia da ordem pública e da ordem

econômica como hipótese legal para aplicação da prisão cautelar,

evidencia-se o seu conceito genérico, uma vez que tal expressão presta-se a

inúmeras interpretações, possibilitando ao Estado a decretação de prisão

processual nos mais variados casos.

Em razão da ausência de definição legal acerca da expressão ordem

pública, acabou por se tornar expressão muito abrangente, conforme citação

de Junya Barletta:

“Não existe na lei definição expressa para ordem pública. Trata-se de expressão muito abrangente, que não pode ser legalmente delimitada e que, conseqüentemente, ofende os princípios da legalidade estrita e da segurança ou certeza jurídica em prol da atribuição de um poder discricionário ao juiz. É termo amplo, indeterminado, carente de critérios sólidos e objetivos de constatação, facilmente enquadrável a qualquer situação, e que, portanto, dá margem para que à expressão sejam introduzidos elementos estranhos à natureza cautelar, questionáveis tanto do ponto de vista jurídico constitucional quanto da perspectiva da política criminal” 36 .

36 BARLETTA, Junya Rodrigues. Fundamentos Críticos Para a Deslegitimação da Prisão

Provisória. Rio de Janeiro. 2007. 190 p. Tese (Dissertação de Mestrado) – Departamento de Direito da PUC-RIO. p. 157.

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34

Tal carência de critérios sólidos e objetivos para a definição de ordem

pública fere o princípio da legalidade uma vez que as possibilidades do

artigo 312 do Código de Processo Penal, que é supostamente taxativo,

contemplam numerosos significados não previstos na lei, tolerando prisões

cautelares de forma arbitrária que afrontam os direitos e as garantias

fundamentais.

Seguem algumas definições acerca da garantia da ordem pública por

meio de trechos do voto do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na

decisão de um Habeas-Corpus:

“(...) Ademais, consoante leciona JULIO FABBRINI MIRABETE, a decretação da medida para garantia da ordem pública é medida que objetiva evitar que o delinqüente pratique novos crimes contra a vítima ou qualquer outra pessoa, quer porque seja acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão. A conveniência da medida deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à prática delituosa.” (in “Código de Processo Penal Interpretado” – 9ª ed. – ATLAS – pág. 803). No mesmo sentido leciona também PAULO RANGEL, destaco: Por ordem pública, deve-se entender a paz e a tranqüilidade social, que deve existir no seio da comunidade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem que haja qualquer comportamento divorciado do modus vivendi em sociedade. Assim, se o indiciado ou o acusado em liberdade continuar a praticar ilícitos penais, haverá perturbação da ordem pública, e medida extrema é necessária se estiverem presentes os demais requisitos legais. (in “Direito Processual Penal” – 8ª ed. – Lumen Juris – p. 616)” 37 . (Grifos Nossos)

Em meio às inúmeras interpretações como sendo ordem pública,

atribui-se fundamentações não coerentes com a necessidade cautelar da

prisão, tais como confiabilidade da justiça, segurança do meio social,

periculosidade do suspeito, clamor público, gravidade do delito, segurança

do próprio ofendido, etc. Com tantas possibilidades gera-se insegurança

jurídica na decretação da prisão cautelar.

Conforme passagem de Fernando Capez visualiza-se os problemas

acarretados na decretação da prisão provisória em fundamentos subjetivos:

37 TRF1, HC, n. 2006.01.00.033190-6/BA, Rel. Desembargador Federal Mário César Ribeiro, Bahia, 2006.

Page 36: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

35

“Sem preencher os requisitos gerais da tutela cautelar (fumus boni iuris e periculum

in mora), sem necessidade para o processo, sem caráter instrumental, a prisão provisória, da qual a prisão preventiva é espécie, não seria nada mais do que uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado e, isto sim, violaria o principio da presunção da inocência” 38.

Assim, a expressão de conceito indeterminado para ordem pública

acaba por afastar o fundamento de sua garantia, atribuindo verdadeira

antecipação da pena a ser eventualmente aplicada, como forma de

manifestação do poder e coação do Estado perante o suspeito.

Tal manifestação de poder reside na representação do processo penal,

por meio da prisão cautelar, que impõe um processo de poder sobre o corpo,

não só dos acusados como também sobre os suspeitos, independentemente

dos pressupostos previstos na legislação e nas interpretações da

jurisprudência sobre a decretação da prisão cautelar como forma de garantia

da ordem pública.

Da mesma forma que havia a tortura, no século XVIII, como meio

processual para obtenção de provas e como medida cautelar para se

assegurar o devido andamento processual e proteger a sociedade de um

delinqüente, há hoje a tortura antecipada, representada por meio da pena

aplicada antes da sentença condenatória.

Portanto há duas vias possíveis para se concretizar a prisão cautelar no

caso em análise, consagrar o direito processual penal assegurando o devido

processo legal para o cidadão ou conferir a certos suspeitos um tratamento

discriminatório e distinto, confirmando “a eficácia do sistema penal

enquanto meio de controle social imediato através da imposição de uma

pena antes da condenação definitiva” 39.

Também é importante analisar a questão do clamor público como

fundamento da prisão cautelar, muitas vezes confundido com a própria

garantida da ordem pública. 38 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal – Parte Geral. 6ª ed., rev., vol. I., São Paulo: Saraiva, 2001. p. 230. 39 BARLETTA, Junya Rodrigues. Op. Cit., p. 157.

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36

Tal hipótese carece de previsão legal e baseia-se na analogia do artigo

323, inciso V do Código de Processo Penal que dispõe: “Não será

concedida fiança: (...) V – nos crimes punidos com reclusão, que

provoquem clamor público ou que tenham sido cometidos com violência

contra a pessoa ou grave ameaça”.

A problemática acerca desta analogia envolve novamente a

“conversão” da prisão cautelar em cumprimento antecipado da pena,

fugindo de sua finalidade que é de garantir o êxito do processo penal e

ferindo assim o princípio da presunção de inocência.

O clamor público possui bases de influência não apenas pelo repúdio a

um crime local, mas também por influência da mídia, tendenciosa a uma

ideologia de perigo constante e imediatismo de punição, sempre propensa a

exageros.

Conforme passagem citada por Marília Denardin, pode-se verificar o

risco que se corre ao fundamentar a prisão processual no clamor público:

“Através da cortina de fumaça do alarma social e segurança pública, com a pressão dos meios de comunicação, freqüentemente o juiz acaba perdendo sua imparcialidade em prejuízo do devido processo e da presunção de inocência, ordenando ou mantendo a prisão preventiva em hipóteses em que, se não fosse tais fatores, não decretaria. Dessa maneira, a necessidade social de pena em uma sociedade de mass media é satisfeita antecipadamente com a utilização da prisão preventiva, que substitui a pena e canaliza assim as necessidades psicológico-sociais de punição” 40.

Para efeito ilustrativo, há o atual “caso Isabella”, que apresenta

grande demanda social e alarde por parte da mídia, em razão das

circunstâncias da visibilidade do caso. Porém, o elemento decisivo para a

comoção popular foi, definitivamente, a ênfase abusiva da mídia na

desgastante divulgação do caso41.

40 BUDÓ, Marília Denardin. O jornalismo e os julgamentos: uma abordagem acerca da possibilidade de influência da mídia em decisões judiciais. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1213-1.pdf>. Acesso em 31/maio/ 2008 às 21hs 41 min. 41 Caso Isabella descrito resumidamente: em 29 de março de 2008, Isabella Nardoni, de cinco anos de idade, cai do sexto andar do prédio em que mora, na cidade de São Paulo. Após descartada possibilidade de acidente, cogitou-se o homicídio de Isabella, onde seu pai Alexandre Alves Nardoni e sua madrasta Ana Carolina Trota foram considerados suspeitos e tiveram sua prisão

Page 38: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

37

Não se pretende analisar aqui detalhes do caso, mas analisar os meios

de comunicação em torno do mesmo. O grande alarde da mídia ao exceder

o seu direito de informar a população acaba por promover seleção de casos

para o Judiciário que se inclina na ostentação de conceitos subjetivos, como

o clamor público, mesmo que não passíveis de decretação, da prisão

cautelar.

Segue decisão do MM. Juiz de Direito Auxiliar, em exercício no 2º

Tribunal do Júri da Capital - Foro Regional I Santana, ao decretar a prisão

preventiva relativa ao caso Isabella:

“Assim, frente a todas essas considerações, entendendo este Juízo estarem preenchidos os requisitos previstos nos arts. 311 e 312, ambos do Código de Processo Penal, DEFIRO o requerimento formulado pela D. Autoridade Policial, que contou com a manifestação favorável por parte do nobre representante do Ministério Público, a fim de decretar a PRISÃO PREVENTIVA dos réus ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, por considerar que além de existir prova da materialidade do crime e indícios concretos de autoria em relação a ambos, tal providência também se mostra justificável não apenas como medida necessária à conveniência da instrução criminal, mas também para garantir a ordem pública, com o objetivo de tentar restabelecer o abalo gerado ao equilíbrio social por conta da gravidade e brutalidade com que o crime descrito na denúncia foi praticado e, com isso, acautelar os pilares da credibilidade e do prestígio sobre os quais se assenta a Justiça que, do contrário, poderiam ficar sensivelmente abalados” 42 . (Grifos Nossos)

A simples alegação de que o crime é grave ou de que determinou a

indignação ou comoção social não implica, necessariamente, em perigo

para o processo penal ou sua eficácia jurídica. A decretação da prisão

cautelar no caso Isabella demonstra sinais claros de motivação pela opinião

pública, que por sua vez, sofreu forte influência da mídia.

Segue entendimentos do STJ sobre a inadmissibilidade do clamor

público como fundamento da prisão provisória:

preventiva decretada. Dados obtidos em: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL386739-5605,00-VEJA+A+CRONOLOGIA+DO+CASO+ISABELLA.html. Acesso em: 04 de junho de 2008 às 22hs 35 min. 42 Processo N° 583.01.2008.002241-3. Decisão referente à decretação da prisão preventiva em 06/05/2008, processo N° 274/08. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/ 0,,MUL457175-5605,00.html>. Acesso em 31/maio/2008 às 22hs 45 min.

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38

“Processual Penal. Hábeas Corpus. Prisão Preventiva. Fundamento de garantia da ordem pública. Não ocorrência. A prisão para garantir a ordem pública tem por escopo impedir a prática de novos crimes, não se erigindo o fato objetivo de ser o paciente jovem indicativo de sua necessidade, circunstância, aliás, que deve recomendar maior cautela no manejo de excepcional medida. Clamor popular e gravidade do crime, com proposições abstratas, de cunho subjetivo, não justificam o ferrete da prisão, antes do trânsito em julgado de eventual sentença (RSTJ 98/401)” 43. (Grifos Nossos)

E ainda:

“Distanciados de fatos concretos e respaldados em suposições, os argumentos de existência de prova de materialidade, indícios de autoria do crime, comoção social, credibilidade da Justiça e gravidade do delito não são suficientes para justificar a custódia cautelar nem a manutenção na prisão de paciente primário com bons antecedentes e residência fixa. Com esse reiterado entendimento, a Turma concedeu a ordem de habeas corpus, o que não impede a decretação de nova prisão preventiva com base em elementos concretos que a justifiquem” 44. (Grifos Nossos)

Tanto o fundamento da garantia da ordem pública quanto a sua

“extensão” por meio do clamor público para se decretar a prisão cautelar

apresentam fins inadequados de política criminal, onde seu fim não possui

caráter instrumental para assegurar o devido andamento do processo penal,

adquirindo características próprias da prisão como pena afrontando

princípios constitucionais de garantia do devido processo penal e

conseqüentemente, violação ao princípio de presunção de inocência.

A prisão provisória pode ainda ser decretada para garantir a ordem

econômica, em caso de cometimento de crimes dessa espécie.

Tal hipótese de prisão preventiva foi acrescentada ao artigo 312 do

Código de Processo Penal através do artigo 86 da lei 8884/1994. Conforme

o artigo 20 da referida lei, infringe a ordem econômica atos sob qualquer

forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os

seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: limitar, falsear ou de

qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar

mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros;

exercer de forma abusiva posição dominante.

43 FRANCO, Alberto Silva et al.. Código de Processo Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2002. p. 809. 44 STJ, HC, n. 41.601/MG, Rel. Ministro Gilson Dipp, Brasília, 7 de abril de 2005.

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39

Portanto, a finalidade é condenar a especulação financeira, as

transações fraudulentas, tutelando ao mesmo tempo a livre iniciativa, a livre

concorrência, a propriedade e a defesa dos consumidores, além da

finalidade de repressão ao abuso do poder econômico, como o monopólio,

por exemplo.

Assim, identifica-se aqui também a “função político-criminal

inadequada de prevenção” 45 e repressão “geral e especial de crimes,

ademais do afastamento da necessária natureza processual-instrumental da

medida, descaracterizando completamente a sua pretensa finalidade

cautelar” 46.

Não se deve utilizar a prisão provisória como forma de se promover

uma abertura legal para a autorização da punição de forma imediata, além

de não se utilizar a referida ferramenta processual como meio de exclusão

de indivíduos declarados perigosos e indesejáveis no convívio social em

prol da suposta defesa da sociedade para que se possa preservar os direitos

fundamentais do cidadão.

A aplicação da prisão cautelar só pode ocorrer quando obedecida

rigorosamente os seus pressupostos além de ficar absolutamente

comprovada a sua necessidade.

3.2 – Prisão cautelar como garantia da investigação do inquérito

policial e da instrução criminal.

Um dos objetivos da prisão cautelar é o de impedir que o investigado

pratique algum ato que dificulte ou impossibilite as investigações, como

queimar documentos, alterar dados, apagar arquivos, ameaçar testemunhas

ou até fugir do local onde possa ser encontrado. É, portanto, uma cautela

que se toma para garantir a ordem pública, a investigação durante o

inquérito policial, produção de provas, a regular instrução do processo e a

aplicação da lei penal. 45 BARLETTA, Junya Rodrigues. Op. Cit., p. 164. 46 Ibid., p. 164.

Page 41: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

40

A prisão temporária geralmente antecede a preventiva. Isso ocorre em

razão do prazo rígido da prisão temporária, onde nos crimes previstos pela

Lei 7.960/89 ela só pode durar até 60 dias no máximo; nos outros crimes, o

prazo máximo é de 10 dias. Encerrado esse prazo, o juiz pode convertê-la

em preventiva. Se não o fizer, o acusado deverá ser posto em liberdade.

Em suma, a prisão temporária “é um plus com relação à prisão

preventiva, regida por regras diversas” 47. Vale ressaltar que em razão do

disposto no artigo 311 do CPP, a prisão preventiva pode ser decretada tanto

na fase do inquérito policial, quanto durante a instrução criminal.

A Lei 7.960/89 enumera as hipóteses de decretação da prisão cautelar

sob a modalidade de prisão temporária, onde seu art. 1º, Inciso I, enfatiza

que seu uso seja “imprescindível para as investigações do inquérito

criminal”.

O inciso II do referido dispositivo legal, dispõe sobre a possibilidade

de o indiciado não possuir “residência fixa ou não fornecer os elementos

que são necessários para o esclarecimento sua identidade”. Ainda é

necessária a comprovação do fumus commissi delicti conforme disposto no

inciso III, que enumera os delitos que poderão ensejar a prisão cautelar, de

forma “taxativa e inestendível” 48.

Tal fundamento visa garantir a plena verificação das provas destinadas

a fundamentar a sentença condenatória, evitando-se “eventuais entraves que

impedem que se possa esclarecer devidamente o fato criminoso e suas

circunstâncias, bem como sua autoria.” 49, ou seja, tentar abolir os riscos

que possam ocasionar algum bloqueio à atividade investigatória em razão

da liberdade do imputado.

A crítica acerca do dispositivo mencionado recai sobre a não

especificidade do indiciado no inciso I, onde a prisão cautelar poderá recair

47 FRANCO, Alberto Silva et al.. Código de Processo Pena e Sua Interpretação Jurisprudencial. 9ª ed.. Vo 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2002. p. 797. 48 FRANCO, Alberto Silva et al.. Leis Penais Especiais e Sua Interpretação Jurisprudencial. 7ª ed.. V 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2002. p. 2869. 49 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2005. p. 425.

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41

sobre qualquer pessoa e não apenas sobre o suspeito, conforme leciona

Mirabete:

“Draconiana a lei no inciso I, permite a prisão não só do indiciado, como também de qualquer pessoa (uma testemunha, por exemplo), já que ao contrário dos demais incisos do artigo 1°, não se refere ela espeficicamente ao indiciado. Trata-se, portanto, de norma legal odiosa e contrária à tradição do processo penal brasileiro”50.

Segundo ponto importante é a questão da praticidade da investigação

policial. Ao se usar a prisão processual com fins de mera facilitação da

investigação, banaliza-se a aplicação do instituto, atribuindo-lhe caráter

punitivo, uma vez que se ausenta o caráter imprescindível para as

investigações do inquérito policial.

Autoridades policiais muitas vezes acabam por abusar do conceito de

garantia da investigação durante o inquérito policial, utilizando-se da

medida cautelar como meio de simplesmente manter o comparecimento do

cidadão, indiciado ou não, perante a fase da instrução, independentemente

da presença dos requisitos legais motivados e fundamentados.

A jurisprudência também segue este entendimento, afastando a prisão

cautelar em razão de caso de difícil elucidação ou apenas para facilitação da

investigação:

“Processo penal – Habeas Corpus – Prisão temporária – Concessão – Falta de indícios sérios e graves contra o paciente, apesar de estes poderem ser colhidos no decorrer das investigações – Inexistência, ao menos, de assertiva do ilustre Delegado ou da MMa. Juíza no sentido que, solto, o paciente dificultará as investigações – Não se prende somente pelo fato de o caso ser difícil elucidação ou apenas para facilitação do trabalho policial. Prende-se, excepcionalmente, apenas quando o indiciado, solto, dificultar ou frustrar a produção de provas, hipótese não demonstrada nestes autos. Ordem concedida (TRF, 1.ª Reg. – 4.ª Turma – HC 92.01.05887-0 – Rel. João V. Fagundes – RBCCrim. Esp./259 – j.13.04.1992)” 51 (Grifos Nossos).

A terceira questão a ser considerada é a comprovação do fumus

commissi delicti e do periculum libertatis, tanto para a garantia da instrução

criminal na prisão preventiva tanto para a garantia das investigações 50 Ibid., 425. 51 FRANCO, Alberto Silva et al.. Op. Cit. P. 2879.

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42

durante o inquérito policial na prisão temporária ou preventiva, uma vez

que deve haver a constatação dos elementos objetivos dos autos que

constituem a exterioridade do delito que foi cometido por aquele indivíduo

que se almeja prender.

Constata-se o fumus commissi delicti, que é a probabilidade da

ocorrência de um crime e não de um direito, representado na lei ao haver a

exigência da prova de materialidade do fato e de indícios da autoria.

Assim descarta-se a possibilidade de se determinar a prisão cautelar

por meio do fumus boni iuris, originário no Direito Civil. A prisão

processual não é determinada pela aparência ou pressentimento de validade

jurídica do que se alega, ou seja, a probabilidade de existência de um direito

que deverá ser tutelado pelo Estado.

Portanto, a expressão mais adequada ao se considerar a aplicação da

prisão provisória para garantir a investigação criminal, é o fumus commissi

delicti, que é a probabilidade de ocorrência de um delito.

Análise semelhante se faz em relação ao periculum in mora, conceito

também originário no Direito Civil. O perigo resultante da demora do

processo não é determinante para que haja a prisão cautelar, mas sim a

liberdade de alguém que põe em risco o processo, ou seja, o periculum

libertatis, o perigo de liberdade.

Portanto, há periculum libertatis no momento em que se tem risco

sério e fundamentado de que o indivíduo em liberdade possa implicar

prejuízo no andamento do processo ou até mesmo no seu resultado.

O perigo de liberdade não pode ser usado de forma subjetiva e ampla

para não fugir de sua finalidade de preservação do processo, conforme

passagem de Junya Rodrigues:

“O combate à criminalidade ou a preservação da segurança pública também não configuram em concreto o periculum libertatis, porque são dados genéricos, sem qualquer conexão com o fato delituoso que se imputa ao indivíduo, não podendo atingir as garantias processuais do mesmo” 52.

52 BARLETTA, Junya Rodrigues. Op. Cit. P. 160.

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43

Mais uma vez deve-se tomar cuidado para não criar um prejulgamento

ao utilizar o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, devendo existir

a combinação desses dois requisitos.

Deve haver fortes indícios de autoria, o suficiente para justificar a

medida cautelar, não havendo culpabilidade do agente ainda, o que será

definido na sentença condenatória.

Tal cuidado é imprescindível para não violar o princípio da presunção

de inocência antes do trânsito em julgado da sentença penal consagrado no

art. 5º, LVII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Segue entendimento jurisprudencial acerca da combinação dos dois

requisitos referidos, em citação feita numa decisão de Habeas Corpus:

“Cita o Relator, no aresto supra, doutrina e outros julgados de mesmo sentido: Paulo Rangel, in "Direito Processual Penal", 7ª ed., Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, p. 645, ressalta que "quando a lei diz ser ´imprescindível para as investigações do inquérito policial', claro nos parece que a imprescindibilidade configura o periculum in mora (periculum libertatis), pois, se não for decretada a medida odiosa, porém necessária, o inquérito não poderá ser concluído. Assim a necessariedade repousa no periculum in mora (periculum libertatis), que está no inciso I do art. 1°. Entretanto, mister se faz, como dissemos no item 9.1.2 supra, a existência cumulativa do fumus boni iuris (fumus comissi delicti), representado pelo inciso III, ou seja, a probabilidade do indiciado ser autor ou partícipe. Dessa forma, os incisos I e III do art. 1° devem ser vistos em conjunto, pois configuram o periculum in mora (periculum libertatis) e o fumus boni iuris (fumus comissi delicti). “Portanto, não se deve dissociar os incisos I e III para se decretar a prisão temporária”. Maurício Zanóide de Moraes, in "Leis Penais Especiais e Sua Interpretação Jurisprudencial", 7ª ed. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 2869), destaca que "O legislador, ao elaborar a lei instituidora da prisão temporária (Lei 7.960/89), atento à necessidade da concomitância desses dois requisitos (periculum libertatis e fumus commissi delicti), já os definiu em seu art. 1º. O periculum libertatis vem representado pelas três situações previstas nos incisos I e II do citado artigo: a) imprescindibilidade da prisão temporária para as investigações do inquérito policial (inc. I), b) o indiciado (sic) não ter residência fixa (inc. II, primeira parte) e c) não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade (inc. II, segunda parte). A comprovação de qualquer uma dessas três hipóteses caracteriza a existência do requisito periculum libertatis. Porém, somente esse dispositivo não é suficiente para a decretação da prisão temporária. Ainda é necessária a comprovação nos autos do fumus comissi delicti, o qual foi inserido pelo legislador no inc. III desse mesmo art. 1º, através da elaboração taxativa e inestendível do rol de crimes para os quais, e somente para os quais, é permitida a decretação dessa espécie de prisão” 53.(Grifos Nossos)

53 TRF4, HC, n. 2006.04.00.000973-0/PR, Rel. REL. Desembargador Néfi Cordeiro, 12 set. 2006.

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44

Por fim, é fundamental que não se admita a prisão processual como

meio de instrumento de política criminal. O objetivo da prisão cautelar não

é a suprir as necessidades de aplicação de justiça imediata da sociedade e

nem minimizar o sentimento de insegurança. Não se devem confundir as

funções da prisão provisória e da prisão pena, para não ferir os direitos do

homem.

3.3 – Prisão cautelar e seletividade do sistema punitivo.

A diferença de tratamento entre pessoas no sistema punitivo já

configurava a moldagem social por meio do tratamento médico-judicial,

decorrente do processo de suavização penal em meados do século XIX.

Esse processo passou a produzir a imagem e o padrão do criminoso e

do delinqüente, justificando a existência da pena que gera rotulações e

discriminações.

A idéia do homem bom, correto e trabalhador existe a partir da

contraposição da imagem do homem vagabundo e criminoso. O primeiro é

aquele que não trabalha, não produz e não contribui com impostos,

enquanto que o segundo é aquele que “desafia” as leis da sociedade. Aqui

se interligam os conceitos de “ilegalidade e delinqüência” 54 , pois ambos os

casos se opõem ao estereotipo do cidadão modelo.

A figura do criminoso serve como consolo para o trabalhador pobre

que vê pessoas em estado bem pior. E, sobretudo, é necessária a existência

desse padrão, pois ele é um instrumento para se obter controle, já que o

padrão de delinqüente se opõe ao padrão de normalidade, justificando a sua

existência.

A seletividade do sistema punitivo é uma questão que “se reveste tanto

de aspecto socioeconômico, quanto de uma dimensão político-institucional,

além da dimensão cultural” 55 .

54 Neste sentido, FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Ed. Vozes. 2003. p. 215. 55 DORNELLES, João Ricardo W. Conflitos e segurança – Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2003. p. 13.

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45

O Brasil colonial já apresentava elementos da violência vinculada ao

arbítrio e a desigualdade, onde João Ricardo transcreve:

“A violência, o arbítrio e a desigualdade são elementos constitutivos da realidade social brasileira, se expressando na escravização e no extermínio das populações indígenas, na forçada imigração e escravização de povos africanos, na submissão de brasileiros pobres e imigrantes como trabalhadores, na marginalização e na exclusão de um grande contingente desqualificado em sua condição humana” 56.

É importante ressaltar que o negro escravo no Brasil imperial era

tratado como mercadoria no ordenamento jurídico, porém, era tratado como

pessoa no Direito Penal, “adquirindo” os direitos penais, havendo o seu

reconhecimento como pessoa para os seus delitos, mas continuava como

coisa quanto ao seu relacionamento na sociedade.

Assim, o poder de polícia no Brasil teve origem no fim de garantir os

interesses das classes privilegiadas, havendo a mudança no foco da

atividade policial ao longo do tempo, partindo dos imigrantes e ex-escravos

e seguindo para as classes indesejadas, como os delinqüentes e

vagabundos57.

Portanto, a seletividade do sistema penal brasileiro é estrutural. O

direito penal igualitário é uma utopia, onde o sistema punitivo necessita de

ferramentas para limitar os danos provenientes desta origem seletiva, a fim

de amenizar a fatalidade da discriminação.

A noção atual de segurança pública defende medidas de uma

sociedade elitista, excludente e injusta, legitimando a atuação violenta e

ilegal da polícia, porém de forma legitimada.

O conceito de violência não abrange apenas uma ação extremada de

política de segurança, mas também a afronta aos princípios processuais

penais-constitucionais garantidoras de direitos fundamentais do homem.

Ao se analisar a prisão cautelar como ferramenta processual do direito

penal, e remeter-se à tendência atual de seu abusivo e banalizado, tal prisão

é utilizada como instrumento seletivo do sistema penal, onde se afasta os

56 Ibid., p.75. 57 Neste sentido, Ibid., p.67.

Page 47: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

46

indesejáveis socialmente e se satisfaz a ânsia de segurança imediata por

parte de uma sociedade elitista.

A substituição da prevenção da criminalidade por sua repressão

atribui à prisão o “papel de intimidação absoluta, através do terror, daqueles

seguimentos sociais que ameaçam os privilégios das elites” 58.

Em sua pesquisa sobre a condição econômica do preso no Brasil,

Edmundo Oliveira constatou que a “Justiça Penal no Brasil tem o retrato

peculiar da seletividade na punição. Acostumou-se a mandar para trás das

grades os miseráveis que formam maioria absoluta nas prisões” 59. Segue a

pesquisa:

“No conjunto do preso padrão brasileiro, 74% dos encarcerados são provenientes de famílias que sobrevivem com apenas um salário mínimo (cerca de U$ 86.00, por mês). O perfil dos presos pobres não pára aí: 81% não têm instrução primária completa e 14% não sabem, sequer, escrever o próprio nome” 60.

A pesquisa se refere à prisão pena, mas serve como ilustração do perfil

do preso no Brasil. Para não se fazer mera e simples analogia entre o perfil

do preso na prisão pena e perfil do preso na prisão processual, segue

pesquisa realizada por Fabiana Costa sobre os réus mais prejudicados em

casos de prisão provisória em crime de furto 61:

Tabela 8 – Tempo Médio de Prisão por Escolaridade (em dias)

Escolaridade REC BEL DF SP POA Ensino Fundamental 140,9 248,6 -x- 93,9 37,1

Ensino médio ou Superior 43,0 122,8 -x- 89,1 6,5 Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

58 Ibid., p. 103. 59 OLIVEIRA, Edmundo. Globalização e Alternativas à Prisão. Disponível em: <http://www.mp.pe.gov.br/uploads/yGBJxSfXGy8YINWjNrc2A/NAD7ztaw2akW7ghptTGsOQ/Globalizao_e_Alternativas__Priso_-_Dr._Edmuindo.doc>. Acesso em 06 de junho de 2008 às 21hs 50 min. 60 Ibid. 61 BARRETO, Fabiana Costa Oliveira. Flagrante e prisão provisória na criminalização de furto: da presunção de inocência à antecipação de pena. Brasília: 2006. 134 P. Tese (Dissertação de Mestrado) – Universidade de Brasília. p. 131.

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47

Tabela 9 – Tempo Médio de Prisão por Presença de Advogado Particular (em dias) Advogado particular REC BEL DF SP POA

Não 208,0 222,3 37,6 90,7 36,9 Sim 92,8 176,8 24,2 78,9 55,2

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 10 – Tempo Médio de Prisão por Cor da Pele (em dias) Cor da pele REC BEL DF SP POA

Parda 154,20 215,80 -x- 96,00 58,70 Branca 82,50 187,30 -x- 84,80 35,87 Preta 99,80 2960 -x- 100,20 13,24

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

A pesquisa compreende dados coletados na justiça criminal nas

cidades de Recife, Belém, Distrito Federal, São Paulo e Porto Alegre, no

período entre os anos de 2000 a 2004.

Com os dados conclui-se que o perfil dos presos na prisão cautelar

envolve aqueles com pouca escolaridade, negros e sem condições de

contratar advogado particular.

Quanto ao nível de escolaridade, os presos que cursaram até o ensino

fundamental ficaram mais tempo na prisão do que aqueles que cursaram

ensino médio ou superior. Em Recife e Belém, o nível de escolaridade

influenciou significativamente o tempo de prisão.

Ao analisar os presos que constituíram advogado particular, reforça-se

o fato de que pessoas menos afortunadas são mais expostas ao

encarceramento. O tempo de prisão dos presos que tinham advogado

particular foi inferior ao dos que não tinham.

Em relação ao tempo médio da prisão por cor da pele, evidenciou-se a

maior tendência de que pessoas pardas e negras fiquem mais tempo presas.

Os dados demonstram que há seletividade do sistema punitivo por

meio da prisão cautelar e demonstra o “público alvo” dessa seleção.

Outra análise importante é sobre a questão da vadiagem tratada no

artigo 59 do Decreto-Lei 3688/1941 que dispõe:

Page 49: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

48

“Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.”

O artigo 14 da Lei de Contravenções Penais dispõe: “Presumem-se

perigosos, além dos indivíduos a que se referem os incisos I e II do art. 78

do Código Penal: (...) I - o condenado por vadiagem ou mendicância”.

Portanto, presume-se que o vadio é um indivíduo perigoso.

Tal presunção acarreta a atribuição da conduta ociosa daquele que não

trabalha ou não possui meio de se sustentar como sendo um crime. Trata-se

de entendimento discriminatório, pois se está criminalizando o pobre e sua

condição de insuficiência socioeconômica. O Juiz Moacir Danilo critica o

conceito legal de vadiagem:

“Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que pobre é, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de subsistência. Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso” 62. (Grifos Nossos)

O problema do conceito vadiagem é a pretensão de punição ao

indivíduo pelo que ele é, pela sua condição socioeconômica e não em

função dos seus atos.

A possibilidade de decretação de prisão cautelar em razão da

vadiagem agrava ainda mais a situação, pois além de evidenciar a

seletividade do sistema punitivo, afronta as garantias penais legalidade e da

materialidade juntamente com as garantia processual da presunção de

inocência.

62 Sentença proferida pelo Juiz de Direito Moacir Danilo Rodrigues da 5ª Vara Criminal de Porto Alegre em 27 de setembro de 1979. Disponível em: <http://www.aurylopes.com.br>. Acesso em: 07 de junho de 2008 às 00hs 10 min.

Page 50: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

49

A seletividade do sistema punitivo é conseqüência do desvirtuamento

da prisão cautelar, que tem seu uso voltado para atender as necessidades de

uma sociedade elitista, promovendo a penalização da pobreza.

De ferramenta do direito penal para manutenção do processo penal, a

prisão provisória está passando a instrumento do “tratamento penal para os

problemas sociais” 63. Visa-se o imediatismo da segurança e a recuperação

da qualidade de vida dos bons cidadãos, mesmo que em detrimento das

camadas menos afortunadas.

3.4 – Prisão cautelar e antecipação penal.

Como já visto, a privação de liberdade como sanção penal se distingue

da prisão empregada para fins de custódia e contenção.

Apesar de ser medida extremada da exceção, a prisão cautelar mostra

sinais de descaso e banalização da privação da liberdade do homem. As

suas hipóteses de cabimento previstas no Código de Processo Penal,

apresentam requisitos legais amplos, abertos e desprovidos de critérios

concretos de constatação.

Isso resulta de uma difundida ideologia de perigo constante

predominante na sociedade, motivando a facilidade aplicável de seus

requisitos a diversas situações, onde a prisão cautelar acaba por adquirir

caráter genérico e sendo assim invocada de forma abstrata, já que são

poucos os dados fáticos, objetivos e adequados para sustentá-la. Baseia-se

em um fundamento prisional genérico, sendo, portanto insuficiente em

inúmeros casos, e passível de divergências.

Os requisitos da prisão provisória não se harmonizam com as

finalidades estritamente cautelares ou processuais atribuídos pela doutrina.

Seu fundamento consta na prevenção e na garantia da ordem pública e

econômica, cuja incumbência seria reservada à pena.

63

DORNELLES, João Ricardo W. Op. Cit., p. 61.

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50

A prisão provisória tem se tornado solução ao fenômeno criminal,

constituindo-se em verdadeira pena antecipada, apoiada na inversão das

garantias constitucionais próprias de um estado democrático de direito, em

face da privação de liberdade sem uma demonstração efetiva de

culpabilidade através do devido processo legal.

Desviando-se de seu objetivo original, o instituto vem sendo usado na

consagração de uma política criminal baseada na violência intimidatória

própria dos estados de polícia.

A forma de garantir a possibilidade de uma violência absolutamente

fora e além do direito é chamado de Estado de exceção. Essa é a prova de

que o direito tem uma zona de penumbra entre a norma e a política. O

Estado de exceção não é lei, mas tem “força de lei” e este é o grande

paradoxo das medidas da política criminal 64.

Essa medida extremada baseia sua legitimidade na garantia da

segurança pública e na zona em que o direito não alcança, mas permite, de

forma que poderia quebrar a dialética entre violência que funda o direito e

violência que o conserva.

O Estado de exceção não é uma ditadura, mas um espaço vazio de

direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas estão

desativadas. Não está escrito em contexto jurídico. Não é um Estado de

direito, mas um espaço sem direito. Cria-se uma região legal onde o direito

não funciona.

Esse espaço vazio do direito é tão essencial à ordem jurídica que deve

haver, por todos os meios, uma forma de se assegurar uma relação a ele.

Deve manter necessariamente uma relação de anomia. Ao mesmo tempo

64

Neste sentido, AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Ed. Boitempo. 2004. p. 57–62. Aqui aproximei por analogia as definições de Giorgio Agamben sobre Estado de excessão e a atual tendência de uso da prisão cautelar nas políticas criminais repressivas. A zona de anomia, em que o direito não alcança mas permite é uma forma de legitimar o uso da violência repressiva sem ilegalidade. A amplitude que o conceito de ordem pública adquiriu permite o uso repressivo da prisão cautelar, legitimando a violência contra o homem, mas sem ferir a legalidade e constitucionalidade do instituo, ou seja, é uma zona em que o direito não alcança mas permite.

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51

impensável para a ordem jurídica, mas ao mesmo tempo de uma relevância

estratégica decisiva.

Os requisitos tão abertos e amplos da prisão processual justificam as

ações do Estado perante o indivíduo ao decretá-la, utilizando o processo

penal em prol do poder de julgar, que se sustenta no argumento de reger e

cuidar da sociedade contra os criminosos, injustos e delinqüentes que são

tidos como um mal para a sociedade.

O Estado, deste modo promove justiça de forma abstrata e mais

omissa, promovendo uma fuga de sua responsabilidade direta. A prisão

processual com fundamento abstrato cominada com a anomia do estado de

excesso traduz uma estratégia para a política criminal em segregar a

criminalidade de forma imediata, utilizando-se da falsa sensação de

segurança.

Assim, tem-se a função repressiva da prisão cautelar, mas sem assumir

papel de ilegalidade. É atribuída à prisão antes da condenação ampla

autorização para punir de forma imediata. Promove-se assim a exclusão dos

indivíduos indesejáveis e inadaptáveis à sociedade globalizada de consumo.

Em sua pesquisa, já citada, Fabiana Costa também considerou os casos

em que prisões provisórias, no crime de furto, ultrapassam o prazo legal65:

Tipo de Prisão REC BEL DF SP POA 0 e 1 dia 2,28% 0,45% 21,14% 2,02% 54,03% 2 a 7 dias 8,47% 3,12% 21,43% 9,32% 12,50% 8 a 15 dias 10,10% 14,92% 16,57% 5,79% 4,44%

16 a 30 dias 14,66% 11,36% 13,43% 13,10% 9,27% 31 a 100 dias 23,78% 17,37% 19,71% 34,01% 11,29%

101 a 180 dias 11,40% 12,03% 6,57% 22,17% 1,61% 181 a 360 dias 15,64% 22,49% 0,86% 12,34% 3,23% 361 a 720 dias 10,75% 11,80% 0,29% 1,26% 3,23%

721 dias ou mais 2,93% 6,46% - - 0,40% TOTAL 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00%

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

65 BARRETO, Fabiana Costa Oliveira. Flagrante e prisão provisória na criminalização de furto: da presunção de inocência à antecipação de pena. Brasília: 2006. 134 P. Tese (Dissertação de Mestrado) – Universidade de Brasília. p. 129.

Page 53: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

52

“Em Recife, Belém e São Paulo, mais de 35% das prisões provisórias

duram mais de 100 dias, extrapolando o prazo previsto na legislação

brasileira como o máximo de tempo que a prisão provisória deve durar. No

Distrito Federal e em Porto Alegre o excesso de prazo também ocorre, mas

com menor freqüência (7,72% e 8,47%, respectivamente)” 66.

O prazo para máximo de duração da prisão cautelar em processos de

crimes com rito comum é de 81 dias, computados a partir da data da prisão

ao fim da instrução criminal. Adicionou-se 19 dias para considerar os

prazos das alegações finais, três dias para cada parte, e da sentença, 10 dias.

A próxima tabela, também de pesquisa de Fabiana Costa, avalia o

tempo médio de prisão na prisão provisória e na prisão pena:

Tabela 5 – Distribuição de Feitos Concluídos com Aplicação de Pena por Tipo de Condenação (em %)

Tipo de condenação REC BEL DF SP POA Prisão 22,75 14,08 19,06 29,22 22,95

Regime aberto 1,85 17,23 12,19 0,95 27,87 Alternativa 75,40 68,70 68,75 69,83 49,18 TOTAL 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 6 – Tempo Médio de Prisão por Tipo de Pena (em dias) Tipo de Pena REC BEL DF SP POA

Suspensão cond. processo 43,93 118,26 9,15 25,04 17,60 Restritiva de direito 128,75 285,17 39,84 71,59 33,26

Regime aberto 129,69 388,24 55,91 - 56,73 Regime semi-aberto 485,43 488,57 58,89 118,02 33,30

Regime fechado 259,33 364,27 - 174,09 - Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 7 – Comparação do Tempo Médio de Execução de Pena Aplicada na Condenação com o da Prisão Provisória (em dias)

Tempo médio de execução

REC Cond. Prov.

BEL Cond. Prov.

DF Cond. Prov.

SP Cond. Prov.

POA Cond. Prov.

Semi-aberto 142,76 485,43

138,33 488,57

143,97 58,89 69,98 118,02 72,44 33,3

Fechado 411,69 259,33

284,83 364,27

297,5 58,89 237,89 174,09

280 -

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

66 Ibid. p. 129.

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53

Ao comparar as tabelas 5 e 6, evidencia-se a desproporção entre a

pena aplicada e a prisão provisória. Nos casos de condenação à pena de

prisão, é comum a prisão provisória ser mais grave que a pena definitiva,

conforme demonstra a tabela 7. Freqüentemente, o tempo médio de prisão

provisória ultrapassa o tempo médio de cumprimento da pena aplicada na

condenação no regime semi-aberto.

Portanto, aqueles que cumprem pena em regime semi-aberto teriam

direito ao regime aberto após cumprir um sexto da pena e os que são

condenados ao regime fechado, após um terço.

Diante desses dados, evidencia-se o uso da prisão cautelar como meio

de antecipação penal. Segue ainda mais uma pesquisa de Fabiana Costa

sobre casos extremados na prisão processual 67:

BELÉM

1) Fernando Antônio de Souza tentou furtar o equivalente a R$ 265,00 do

estabelecimento comercial Equitron-sistemas. Ficou aproximadamente quatro anos

preso provisoriamente e, no final, recebeu uma pena de dois anos de reclusão a ser

cumprida no regime aberto (processo 200020012160).

2) Gleice da Silva Muniz e Andreia da Silva Tenório tentaram furtar peças de

roupas, no valor aproximado de R$ 300,00, de uma loja do Shopping Castanheira.

Ficaram presas provisoriamente por mais de dois anos e meio. Foram condenadas a

cumprir pena alternativa. (processo 200120186277)

3) Rogério Bentes de Jesus e Edílson Pantoja de Souza furtaram R$ 90,00 da vítima

Anderson Amaral. Ficaram presos provisoriamente por um ano e oito meses. Foram

condenados a cumprir pena alternativa. (processo 200220002937)

4) Antônio Carlos Rodrigues tentou furtar nove cadeiras de plástico do Hotel

Belém Hilton. Ficou preso provisoriamente por um ano e nove meses. Foi

condenado a uma pena alternativa. (processo 200220123575)

RECIFE

67 Ibid. p. 133 – 134.

Page 55: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

54

1) Joseanny Kyara furtou um aparelho de telefone celular. Ficou um ano preso

provisoriamente e foi condenado a cumprir pena no regime aberto. (processo

2003.010468-9)

2) Egberto Oliveira Silva foi acusado de tentar furtar bens do interior de um

veículo. Ficou dois anos presos provisoriamente e foi condenado a cumprir um ano

e quatro meses de pena no regime aberto.

3) Josinaldo Francisco de Oliveira tentou furtar um aparelho de telefone celular.

Ficou 10 meses preso provisoriamente e foi condenado a cumprir pena alternativa.

(processo 20040118550)

4) Nelson Alves de Assis furtou bens avaliados em R$ 75,00. Ficou mais de seis

meses (188 dias) preso provisoriamente. Recebeu uma medida alternativa.

(processo 2004.000277-3)

BRASÍLIA

1) Gilvan de Souza furtou de Vanessa o equivalente a R$ 20,00. Ficou quatro

meses presos provisoriamente e foi condenado a uma pena alternativa. (processo

2004021000059)

2) Francisco Correia de Brito furtou o equivalente a R$ 12,00 de uma vítima pessoa

física. Ficou 29 dias preso provisoriamente e foi condenado a uma pena alternativa.

(processo 20040110072928)

3) Alexandre de Sousa Rocha furtou o equivalente a R$ 4,00 de um

estabelecimento comercial. Ficou quarenta e um dias preso provisoriamente e foi

absolvido. (processo 2000.05.1.003050-7)

4) Mario Sergio Ribeiro dos Santos furtou o equivalente a R$ 3,00 do

estabelecimento comercial Supercei. Ficou vinte e nove dias preso e foi condenado

a uma pena alternativa. (processo 20000310016614)

SÃO PAULO

1) Rafael Moreno Solto furtou o equivalente a R$ 18,00 de uma pessoa física, ficou

aproximadamente dois meses preso (58 dias). Foi condenado a cumprir pena

alternativa. Processo (processo 5835020000343889)

2) Elissandro Dados dos Santos furtou o equivalente a R$ 32,00 de uma pessoa

física, ficou aproximadamente quatro meses (120 dias) preso provisoriamente. Foi

condenado a cumprir pena alternativa. (processo 5835020010267290)

3) Edson Rochiel da Silva furtou o equivalente a R$ 35,00 de um estabelecimento

comercial e ficou aproximadamente quatro meses (129 dias) preso provisoriamente.

Foi condenado a pagar multa. (processo 5835020030509788)

Page 56: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

55

4) Bruno Alceu Hessel furtou um Toca-CD de veículo, avaliado em R$ 70,00.

Ficou preso provisoriamente por aproximadamente quatro meses (126 dias). Foi

condenado a cumprir pena alternativa. (processo 5835020030897536)

PORTO ALEGRE

1) A.R.M. furtou o equivalente a R$ 3.00 de uma pessoa física. Ficou mais de uma

mês ( 44 dias) preso provisoriamente e foi absolvido. (processo 00104976106)

2) E.L.S.C. furtou um toca-CD de carro avaliado em R$ 60,00. Ficou quase um mês

(24 dias) preso provisoriamente e foi absolvido. (processo 103937539)

3) I.S.C.J furtou de um estabelecimento comercial o equivalente a R$ 138. Ficou

mais de um mês preso (138 dias) e foi absolvido. (processo 105935150)

4) B.A.F furtou de uma pessoa físico o equivalente a R$ 165,00. Ficou quase dois

meses (54 dias) preso provisoriamente e foi condenado a cumprir pena alternativa.

(processo 103520681)

Tendo esses dados como ilustração, constatam-se dois fatos: a prisão

provisória, que só deveria ser convocada em ocorrências de grave risco à

ordem pública, perigo de destruição de provas ou de ameaça a testemunhas,

perde seu caráter excepcional e conseqüentemente gera a antecipação da

pena.

Com exceção do Distrito Federal, em todas as localidades envolvidas

na pesquisa, os réus absolvidos passaram em média mais de um mês presos

provisoriamente.

Demonstra-se que o princípio da proporcionalidade não é respeitado.

Tal princípio serve de ponderação entre: a gravidade e a despesa de

aprisionar um indivíduo que ainda não foi definitivamente julgado, a

necessidade da cautela em função do material probatório que há do

periculum libertatis e do fumus commissi delicti, além da adequação da

prisão processual aos seus fins assim como sua duração nos limites

necessários.

O princípio da proporcionalidade é o parâmetro na decretação da

prisão provisória, evitando o seu uso irracional.

Page 57: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

56

Os dados da pesquisa consideram apenas a prisão cautelar no crime de

furto, mas representa um quadro lamentável do uso banal da referida prisão.

O desvirtuamento da prisão processual acarreta em um número cada vez

maior de encarcerados presumidamente inocentes do que condenados nos

estabelecimentos prisionais, corrompendo o regime democrático e os

direitos humanos consagrados na Constituição Federal.

As pesquisas de Fabiana Costa têm como parâmetro cinco cidades

brasileiras e ocorrência de prisão cautelar em casos de furto. Como

complemento segue pesquisa da Fundação Internacional Penal e

Penitenciária (FIPP) sobre o número de pessoas presas sem condenação na

América Latina em 2004 68:

68 OLIVEIRA, Edmundo. Globalização e Alternativas à Prisão. Disponível em: <http://www.mp.pe.gov.br/uploads/yGBJxSfXGy8YINWjNrc2A/NAD7ztaw2akW7ghptTGsOQ/Globalizao_e_Alternativas__Priso_-_Dr._Edmuindo.doc>. Acesso em 06 de junho de 2008 às 21hs 50 min.

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57

Conforme a pesquisa, cerca de 43% das prisões no Brasil são sem

condenação, ou seja, prisão cautelar. Demonstra-se novamente o quadro de

desvio de fim e abuso do uso da prisão provisória, cuja conseqüência é a

antecipação e afronta aos princípios e garantias constitucionais,

principalmente os direitos humanos.

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58

Capítulo 4 – Princípios e Garantias Constitucionais

A prisão cautelar é uma medida excepcional a ser aplicada ao acusado.

Partindo desta premissa é possível enxergar diversos princípios

constitucionais garantidores de um processo penal coerente.

Ao analisar os princípios constitucionais que norteiam a prisão

cautelar, evidencia-se uma colisão dos mesmos. Por um lado, a Constituição

proíbe a culpabilidade do acusado antes da sentença judicial transitada em

julgado. Por outro lado, prevê modalidades de prisão cautelar.

A Carta Magna em seu art. 5º, inciso LVII estabelece que “ninguém

será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal

condenatória”. Isto significa que, a pessoa acusada é presumidamente

inocente até que se prove o contrário, ou seja, até que ocorra sentença penal

julgada que a condene.

Ponderando que o referido princípio só admite prisão antes do trânsito

em julgado, quando esta for de natureza cautelar, presume-se que a prisão

cautelar precisa de análise quanto a sua necessidade por meio do fumus

commissi delicti e do periculum libertatis combinados.

Segue decisão do Tribunal Regional Federal da Quarta Região sobre

presunção de inocência e prisão processual:

“Penal e processual. Tráfico internacional de mulheres. Prisão Preventiva.

Requisitos. Princípio da presunção de inocência. Interpretação de acordo com a

magna carta. Ordem pública. Aplicação da lei penal. Ausência de elementos

concretos.

1. Tendo em conta o princípio constitucional da presunção de inocência, insculpido

no art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal de 1988, no sentido de que "ninguém

será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória", a prisão

provisória somente é admitida como ultima ratio, quando fique plenamente

demonstrada a sua necessidade.

2. Em face do caráter de excepcionalidade, o exame dos fundamentos legais para a

decretação da prisão preventiva deve ser feita cum grano salis, limitando-se àquelas

hipóteses em que haja elementos concretos indicando que o status libertatis do

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59

denunciado representa ameaça efetiva à ordem pública, à instrução criminal ou à

aplicação da lei penal, com exclusão, portanto, de presunções e/ou conjecturas.

3. O não-comparecimento do réu para responder ao processo, ensejando a aplicação

da regra estatuída no artigo 366 do CPP (suspensão do processo e da prescrição)

não autoriza, por si só, a segregação antecipada. Precedentes.” 69. (Grifos Nossos).

Qualquer espécie de prisão provisória decretada sem esse devido

fundamento, é inconstitucional, pois gera antecipação da pena

descaracterizando uma prisão que deveria ser cautelar, ferindo o princípio

da presunção de inocência,

Considerando que a Constituição não prevê outro embasamento além

da cautelaridade e a pena para que haja a prisão, percebe-se que a prisão

decorrente da sentença condenatória e decorrente da sentença de pronúncia

situam-se em uma zona de anomia constitucional.

Essas duas espécies de prisão não constituem pena, pois não há pena

sem trânsito julgado da sentença. Tampouco apresentam característica de

cautelaridade, pois estão ausentes o fumus commissi delicti e o periculum

libertati. Assim, tais modalidades de prisão são inconstitucionais

justamente por não se enquadrarem nas espécies de prisão admitidas na

Constituição.

Outro princípio afrontado pela prisão provisória é do devido processo

legal, previsto no art. 5°, inciso LIV da Constituição: “ninguém será

privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Assim,

assegura-se todo um processo segundo a lei, onde ninguém pode ser

privado de sua liberdade e dos seus bens, se não forem desempenhadas as

devidas tramitações legais.

Tal princípio é em sentido processual a “expressão de um processo

estritamente legal em que se dão às partes as oportunidades amplas de

69 Tribunal Regional Federal – Quarta região, Recurso em Sentido Estrito 5778, Proc. nº 200470020002538, Rel. Juiz Élcio Pinheiro de Castro, Paraná, 25/08/2004. DJU de 22/09/2004, p. 645.

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60

alegar e de provar” 70. Porém, também possui um sentido substantivo

originado da jurisprudência americana onde sua aplicação visava “examinar

a razoabilidade e a racionalidade de lei ou de ato normativo do Poder

Público a ponto de impedir sua vigência se evidenciada qualquer

arbitrariedade” 71.

Portanto, ao analisar a prisão processual sob o prisma do princípio do

devido processo legal, deve ser considerado a razoabilidade ou a

proporcionalidade de sua necessidade.

A proporcionalidade baseia-se na ponderação entre a gravidade e a

despesa de aprisionar um indivíduo que ainda não foi definitivamente

julgado, entre a necessidade da cautela em função do material probatório

que há do periculum libertatis e do fumus commissi delicti, além da

adequação da prisão processual aos seus fins assim como sua duração nos

limites necessários.

A Carta Maior de 1988 adotou em norma expressa o princípio da

motivação das decisões judiciais, disposto no artigo 93, IX:

“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em caso nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

Este princípio visa repelir as decisões judiciais despidas de

fundamentação, já que o magistrado deve indicar os motivos de fato e de

direito que o levou a tomar aquela decisão, onde a exigência das decisões

motivadas não se resume a mera repetição de fórmulas.

Porém, apesar da existência do fumus commissi delicti e do periculum

libertatis e da motivação da decisão judicial, a ameaça de arbitrariedade na

determinação da prisão cautelar ainda é significativo.

70 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição – Princípios Consticionais do Processo Penal. 4ª ed., ver. e amp.Rio de Janeiro: Lumen Júris. 2006. p. 136. 71 Ibid., p. 136.

Page 62: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

61

Para tanto é imprescindível amortizar as questões prejudiciais da

prisão cautelar. Nesse sentido, Junya Rodrigues dispõe:

“(...) é fundamental que os juízes estabeleçam um efetivo contraditório em matéria cautelar, haja vista que o escopo social da jurisdição, que cabe ser combinado com os escopos político e jurídico, é buscar a igualdade no processo e pelo processo” 72.

A prisão cautelar “ofende os direitos de ampla defesa e do

contraditório, colocando o imputado em situação de desigualdade em face

da acusação” 73 .

O princípio do contraditório é tratado como incompatível com a

característica cautelar, urgente e imediata da prisão provisória. É necessário

afastar a entendimento de que o acusado não pode ter oportunidade de

contrariar a prisão provisória antes que ela se concretize, evitando o uso

equivocado e abusivo de tal medida.

Essa seria uma forma de reforçar os princípios constitucionais da

presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e da

ampla defesa, afastando o desvio de uso da prisão cautelar.

Além disso, asseguraria os direitos humanos previstos já no preâmbulo

da Constituição da República Federativa do Brasil, que arquiteta a

construção de um Estado Democrático de Direito, com o fim de “assegurar

o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o

bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores

supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”.

O princípio da dignidade da pessoa humana está prevista no artigo 1°,

inciso III, da Constituição. O artigo 5º, inciso III, dispõe que “ninguém será

submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

Deste modo, ficam constituídas certas garantias processuais em que o

processo penal não pode expor o homem a circunstâncias de degradação e

72 BARLETTA, Junya Rodrigues. Fundamentos Críticos Para a Deslegitimação da Prisão

Provisória. Rio de Janeiro. 2007. 190 p. Tese (Dissertação de Mestrado) – Departamento de Direito da PUC-RIO. p. 156. 73 Ibid., p. 156.

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62

tortura. Não pode assumir forma desumana, nem aplicar penas de tortura ou

pena de morte.

Cabendo assim a todos direitos que devem ser providenciados pelo

Estado tais como, um processo acusatório rápido, limitação a prisão

cautelar, separação de presos condenados dos provisórios, bem como a

integridade física e moral do preso (art. 5° inciso XLIX), pois o processo

penal priva o homem da sua liberdade mais não da sua dignidade.

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63

Conclusão

O histórico da prisão mostra que a primeira forma de privação da

liberdade não tinha função punitiva, mas visava garantir a execução da

pena. O poder cautelar da prisão precede a suavização da pena.

As Ordenações do Reino que vigoravam em Portugal e no Brasil

colônia já admitiam a prisão preventiva, mesmo que somente para os

autores de homicídio, feridas ou chagas graves, incendiários, furto

manifesto, entre outros. A prisão provisória era regulada em razão do

desenvolvimento de um mínimo de culpa formada na autoria delitiva, já

admitindo um pré-julgamento do delito.

A prisão cautelar é medida excepcional que se encontra em um

dilema, tentar ponderar um equilíbrio entre disciplina e liberdade, entre

garantia e necessidade 74.

Com o aumento da criminalidade tenta-se aproximar a democracia

com um quadro de insegurança e instabilidade, promovendo a especulação

de que a garantia das liberdades públicas e o respeito dos direitos humanos

estão relacionados com o aumento da taxa de violência criminal.

A proposta adotada hoje para esse problema é a passagem da

prevenção do crime para a repressão do crime, onde a prisão cautelar

também incorpora tal mudança.

O instituto vem adquirindo uso diverso de sua finalidade, trazendo

uma falsa impressão de segurança imediata à sociedade. Tal impressão deve

ser afastada e ceder a políticas criminais eficientes, com maior comunicação

entre um serviço policial organizado e a sociedade civil. Não se deve adotar

a política do “mal menor”.

A prisão provisória é medida extrema da exceção, que mesmo

obedecendo aos seus fundamentos e pressupostos pode ensejar em afronta

74 O sentido de garantia refere-se ao objetivo legal da prisão cautelar em assegurar o processo. Necessidade refere-se às políticas criminais que visam suprir a necessidade de segurança imediata por meio da sociedade atual e que usa a prisão provisória como um de seus instrumentos de repressão à criminalidade.

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64

às garantias constitucionais do homem. Daí a necessidade de extrema

acautela quanto ao seu uso.

Conforme as pesquisas, o desvio de função da prisão processual no

Brasil não apenas é um dado real, mas também comum. Promove-se não só

a antecipação penal como a seletividade do sistema punitivo. Em meio a

esse caos, parece que há legitimidade de livre arbitrariedade pelo próprio

direito.

O caráter repressivo não é compatível com a prisão cautelar. No lugar

do uso banal do instituto deveria se conceder serviço policial ampliado para

toda a sociedade, rompendo com a tradição de seletividade do sistema penal

no Brasil, além de medidas alternativas à prisão provisória no ordenamento

jurídico brasileiro.

É necessário afastar a entendimento de que o acusado não pode ter

oportunidade de contrariar a prisão provisória antes que ela se concretize,

evitando o uso equivocado e abusivo de tal medida. Essa seria uma forma

de reforçar os princípios constitucionais da presunção de inocência, do

devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, afastando o

desvio de uso da prisão cautelar.

O presente trabalho não pretende propor nem discorrer sobre soluções

alternativas às políticas de segurança pública ou jurídica, mas evidenciar o

quanto a prisão processual vem adquirindo objetivo de diminuir a

criminalidade, promovendo maiores chances de se cometer injustiça.

A prisão processual é utilizada como instrumento seletivo do sistema

penal, onde se afasta os indesejáveis socialmente e satisfaz a ânsia de

segurança imediata por parte de uma sociedade elitista.

A aplicação do instituto deve ser extremamente necessária. Caso não

sejam respeitadas suas característica, fundamentos e pressupostos, se

evidenciará que o propósito da prisão cautelar é outro.

Sobretudo, a prisão promove a deterioração do ser humano, não

servindo de meio ressocializador, além de não considerar a gravidade do

delito cometido e suas circunstâncias.

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65

A prisão cautelar não pode admitir papel punitivo para assim proteger

outros bens e interesses divergentes daqueles expressamente indicados na

legislação processual penal.

A liberdade é a regra e a prisão é a exceção. Os princípios

constitucionais e os direitos humanos são os fundamentos norteadores de

qualquer medida que vise a privação da liberdade do homem.

Page 67: PRISÃO CAUTELAR SOB UMA VISÃO SOCIAL E CRÍTICA - MICHEL LOBO TOLEDO LIMA

66

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<http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL386739-5605,00-

VEJA+A+CRONOLOGIA+DO+CASO+ISABELLA.html>. Acesso em 31

de maio de 2008 às 22hs 45 min.

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71

Anexo

A seguinte pesquisa foi utiliza parcialmente ao longo do presente

trabalho. Segue a pesquisa na íntegra:

PRISÃO PROVISÓRIA EM CASOS DE FURTO

ESTUDO REALIZADO EM CINCO REGIÕES BRASILEIRAS (NAS CIDADES DE RECIFE, BELÉM, DISTRITO FEDERAL,

SÃO PAULO E PORTO ALEGRE). Resultado de pesquisa de mestrado em direito na Universidade de Brasília –

Faculdade de Direito, concluída em 2006.

Título da Dissertação: Flagrante e prisão provisória na criminalização de

furto: da presunção de inocência à antecipação de pena.

Autora: Fabiana Costa Oliveira Barreto

PRINCIPAIS CONCLUSÕES SOBRE PRISÃO PROVISÓRIA EM CASOS DE FURTO:

1) HÁ PRISÃO PROVISÓRIA NA MAIORIA DOS CASOS Tabela 1 – Distribuição de Feitos por Existência de Prisão Provisória (em %)

Tipo de Prisão REC BEL DF SP POA Flagrante + de 1 dia (A) 73,0 90,4 49,2 89,3 31,9 Preventiva cumprida (B) 1,4 1,7 1,5 - -

Prisão provisória (A+B)

74,4

92,1 50,7 89,3 31,9

Não houve prisão provisória 25,6 7,9 49,3 10,7 68,1 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

A prisão provisória, que deveria ser uma medida excepcional, ocorre

na maioria dos casos de furto. Mesmo em Porto Alegre, que tem o menor

índice de encarceramento provisório nesses casos, o percentual de pessoas

presas é bastante elevado.

Para se ter uma idéia do quão elevado são esses índices, nos países

latino americanos e do caribe que adotam o sistema jurídico anglo-saxão, o

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72

percentual de prisão provisória (considerados todos os crimes) varia de

2,18% a 37,44% (Estado actual de la prisión preventiva en América latina y

comparación con los países de Europa. Ciencias penales[online]. Costa

Rica, n. 16, mai 1999. Disponível em <http://www.cienciaspenales.

org/revista%2016/carran16.htm.> Acesso em: 10. ago. 2005).

2) É COMUM AS PRISÕES PROVISÓRIAS ULTRAPASSAREM O PRAZO LEGAL

Tabela 2 – Distribuição de Feitos por tempo de prisão Tipo de Prisão REC BEL DF SP POA

0 e 1 dia 2,28% 0,45% 21,14% 2,02% 54,03% 2 a 7 dias 8,47% 3,12% 21,43% 9,32% 12,50% 8 a 15 dias 10,10% 14,92% 16,57% 5,79% 4,44%

16 a 30 dias 14,66% 11,36% 13,43% 13,10% 9,27% 31 a 100 dias 23,78% 17,37% 19,71% 34,01% 11,29%

101 a 180 dias 11,40% 12,03% 6,57% 22,17% 1,61% 181 a 360 dias 15,64% 22,49% 0,86% 12,34% 3,23% 361 a 720 dias 10,75% 11,80% 0,29% 1,26% 3,23%

721 dias ou mais 2,93% 6,46% - - 0,40% TOTAL 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00%

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Em Recife, Belém e São Paulo, mais de 35% das prisões provisórias

duram mais de 100 dias, extrapolando o prazo previsto na legislação

brasileira como o máximo de tempo que a prisão provisória deve durar. No

Distrito Federal e em Porto Alegre o excesso de prazo também ocorre, mas

com menor freqüência (7,72% e 8,47%, respectivamente).

3) AS PESSOAS SÃO PRESAS PROVISÓRIAMENTE, MAS, NOS

FINAL, SE NÃO SÃO ABSOLVIDAS, ACABAM SENDO, NA MAIORIA DAS VEZES, CONDENADAS A UMA PENA ALTERNATIVA. MESMO QUANDO SÃO CONDENADAS À PENA DE PRISÃO, É COMUM QUE O TEMPO DE PRISÃO PROVISÓRIA ULTRAPASSE O TEMPO DA PENA. Tabela 3 – Distribuição de Feitos por Conclusão do Processo (em %) Conclusão do Processo REC BEL DF SP POA

Condenação 86,02 81,77 65,36 84,86 49,46 Absolvição 5,92 6,60 11,07 11,41 45,68

Outros 8,06 11,63 23,57 3,73 4,86 TOTAL 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

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73

Tabela 4 – Tempo Médio de Prisão Provisória em Casos de Absolvição (em dias) Tempo médio de prisão REC BEL DF SP POA

285,26 341,46 21,87 73,59 32,49 Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 5 – Distribuição de Feitos Concluídos com Aplicação de Pena por Tipo de Condenação (em %)

Tipo de condenação REC BEL DF SP POA Prisão 22,75 14,08 19,06 29,22 22,95

Regime aberto 1,85 17,23 12,19 0,95 27,87 Alternativa 75,40 68,70 68,75 69,83 49,18 TOTAL 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 6 – Tempo Médio de Prisão por Tipo de Pena (em dias) Tipo de Pena REC BEL DF SP POA

Suspensão cond. processo 43,93 118,26 9,15 25,04 17,60 Restritiva de direito 128,75 285,17 39,84 71,59 33,26

Regime aberto 129,69 388,24 55,91 - 56,73 Regime semi-aberto 485,43 488,57 58,89 118,02 33,30

Regime fechado 259,33 364,27 - 174,09 - Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 7 – Comparação do Tempo Médio de Execução de Pena Aplicada na Condenação com o da Prisão Provisória (em dias)

Tempo médio de execução

REC Cond. Prov.

BEL Cond. Prov.

DF Cond. Prov.

SP Cond. Prov.

POA Cond. Prov.

Semi-aberto 142,76 485,43

138,33 488,57

143,97 58,89 69,98 118,02 72,44 33,3

Fechado 411,69 259,33

284,83 364,27

297,5 58,89 237,89 174,09

280 -

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Como se vê nas tabelas 3 e 4, há recorrentes casos de pessoas

absolvidas. Em todas as localidades, exceto no Distrito Federal, réus

absolvidos passaram em média mais de um mês preso provisoriamente. Nas

cidades de Recife e Belém, réus absolvidos ficaram presos provisoriamente

por quase um ano. Essa realidade evidencia a gravidade do uso da prisão

provisória, que provoca o encarceramento de inocentes por prazo

irrazoável.

As tabelas 5 e 6 demonstram que a desproporção entre a pena

aplicada e a prisão provisória é a regra nos casos de furto. No Distrito

Federal e em Porto Alegre, réus que deveriam cumprir toda a pena em

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74

liberdade ficam presos por pouco mais de um mês em média; em São Paulo,

mais de dois meses; em Recife, mais de quatro meses; e em Belém esse

tempo aproxima-se de um ano. Ressalte-se que a sanção alternativa ocorre

em mais de 68% dos casos, exceto em Porto Alegre, onde o índice é de

49,18% (tabelas 5 e 6).

Quanto ao regime aberto, no Distrito Federal, Recife e em São Paulo

não há casa de albergado e o regime aberto é convertido em prisão

domiciliar, de forma que a situação desses réus se iguala à dos que foram

condenados à pena alternativa. Em Belém e Porto Alegre, o regime aberto é

cumprido em casa de albergado, que tem características bastante distintas

do estabelecimento prisional em que se cumpre a prisão provisória.

Conforme prevê o Código Penal, no regime aberto o condenado trabalha,

estuda ou exerce outras atividades fora do estabelecimento e sem vigilância

e se recolhe à casa albergue no período noturno e nos feriados,

diferentemente dos estabelecimentos em que os presos provisórios são

recolhidos, que se assemelham mais aos destinados a presos condenados ao

regime fechado.

Também nos casos de condenação à pena de prisão, é comum a

prisão provisória ser mais grave que a pena definitiva Conforme as regras

da lei de execuções penais brasileiras, o preso tem direito à progressão de

regime quando do cumprimento de um sexto da pena.

Assim, aqueles que cumprem pena em regime semi-aberto teriam

direito ao regime aberto após cumprir um sexto da pena e os que são

condenados ao regime fechado, após um terço.

A tabela 7 demonstra, entretanto, que com freqüência o tempo médio

de prisão provisória supera o tempo médio de execução da pena aplicada na

condenação no regime semi-aberto.

4) OS RÉUS MAIS PREJUDICADOS SÃO AQUELES COM

POUCA ESCOLARIDADE, NEGROS E QUE NÃO TÊM CONDIÇÕES DE CONTRATAR ADVOGADO PARTICULAR

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75

Tabela 8 – Tempo Médio de Prisão por Escolaridade (em dias) Escolaridade REC BEL DF SP POA

Ensino Fundamental 140,9 248,6 -x- 93,9 37,1 Ensino médio ou Superior 43,0 122,8 -x- 89,1 6,5 Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 9 – Tempo Médio de Prisão por Presença de Advogado Particular (em dias) Advogado particular REC BEL DF SP POA

Não 208,0 222,3 37,6 90,7 36,9 Sim 92,8 176,8 24,2 78,9 55,2

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 10 – Tempo Médio de Prisão por Cor da Pele (em dias) Cor da pele REC BEL DF SP POA

Parda 154,20 215,80 -x- 96,00 58,70 Branca 82,50 187,30 -x- 84,80 35,87 Preta 99,80 2960 -x- 100,20 13,24

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Em todas as cidades pesquisadas, o tempo de prisão dos réus que

tinham até o ensino fundamental foi maior que o de réus que cursaram

ensino médio ou superior. Nas cidades de Recife e Belém, esse fator

influenciou de forma significativa o tempo de prisão.

Os réus que constituíram advogado particular saíram mais cedo da

prisão se comparados aos que foram patrocinados pela defesa pública. Em

todas as cidades, o tempo de prisão dos réus que tinham advogado

particular foi inferior ao dos que não tinham. Em Recife, Belém e Distrito

Federal, houve significativa influência desse fator no tempo de prisão.

O tempo de réu preso com advogado particular constituído é maior

que o de réu sem advogado particular, quando se verifica apenas os réus

que não eram reincidentes, a presença de advogado se revela determinante,

já que a média de dias de prisão para os réus que constituíram advogado

particular foi de 1,7 dias, enquanto para os demais, a média foi de 9,57 dias.

Também foi verificada em todas as localidades maior tendência a

que pessoas brancas fiquem menos tempo presas que pessoas pardas e

pretas. Porto Alegre foi a única cidade em que os brancos apresentaram

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tempo de prisão maior que pretos, embora inferior ao de pardos. Em Recife,

a cor foi determinante influência para o tempo de prisão.

5) OS FURTOS PRATICADOS SÃO, NA MAIORIA, DE PEQUENO VALOR. Tabela 11 – Distribuição de Feitos por Valor do bem (em reais - R$) Valor do Bem REC BEL DF SP POA Menor valor 1,00 5,00 1,00 1,00 3,00

1º quartil 102,50 180,00 120,00 143,00 160,00 Mediana 350,00 300,00 329,50 300,00 350,00 3º quartil 1.000,00 700,00 1.340,00 2.000,00 780,00

Maior valor 550.000,00 30.000,00 60.000,00 87.721,00 65.000,00 Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Tabela 12 – Distribuição de Feitos por Valor do bem

Tipo de bem furtado REC BEL DF SP POA Bens furtados de pessoa

física 38,43% 52,95% 36,84% 23,29% 51,84%

Bens furtados de pessoa jurídica

37,27% 39,41% 28,62% 32,33% 26,05%

Acessórios de Veículo 6,94% 6,60% 15,79% 15,46% 11,58% Veículo 5,32% 0,69% 14,31% 14,46% 7,37%

Água/Energia/Telefone 7,18% 0,17% 2,63% 1,61% 2,11% não identificado 0,23% 0,17% 0,66% 10,64% 0,53%

Arma 0,23% 0,00% 0,82% 0,20% 0,53% Bens de infraestrutura de

serviços

4,40%

52,95%

0,33%

2,01%

0,00% TOTAL 100,00% 100,00% 100,00% 100,00% 100,00%

Fonte: elaboração do autor, com base em dados de processos do TJDF, TJPE, TJSP, TJPA, TJRS e SUSEP/RS.

Como demonstra a tabela 11, 50% dos bens furtados foram avaliados

em até R$ 350,00, sendo que apenas 25% deles ultrapassou a marca de R$

1.000,00, em Recife, Belém e Porto Alegre ou de R$ 2.000,00 em Brasília e

São Paulo.

Na maioria dos casos, os furtos são praticados contra

estabelecimentos comerciais (supermercados, lojas de roupas) ou contra

pessoas físicas (furto de celular, carteira de documentos). Em todas as

cidades, furtos de veículo ocorreram em menos de 15% dos casos.

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6) ALGUNS CASOS EXTREMOS A seguir, alguns casos extremos identificados na pesquisa:

BELÉM

1) Fernando Antônio de Souza tentou furtar o equivalente a R$

265,00 do estabelecimento comercial Equitron-sistemas. Ficou

aproximadamente quatro anos preso provisoriamente e, no final, recebeu

uma pena de dois anos de reclusão a ser cumprida no regime aberto

(processo 200020012160)

2) Gleice da Silva Muniz e Andreia da Silva Tenório tentaram furtar

peças de roupas, no valor aproximado de R$ 300,00, de uma loja do

Shopping Castanheira. Ficaram presas provisoriamente por mais de dois

anos e meio. Foram condenadas a cumprir pena alternativa. (processo

200120186277)

3) Rogério Bentes de Jesus e Edílson Pantoja de Souza furtaram R$

90,00 da vítima Anderson Amaral. Ficaram presos provisoriamente por um

ano e oito meses. Foram condenados a cumprir pena alternativa. (processo

200220002937)

4) Antônio Carlos Rodrigues tentou furtar nove cadeiras de plástico

do Hotel Belém Hilton. Ficou preso provisoriamente por um ano e nove

meses. Foi condenado a uma pena alternativa. (processo 200220123575).

RECIFE

1) Joseanny Kyara furtou um aparelho de telefone celular. Ficou um

ano preso provisoriamente e foi condenado a cumprir pena no regime

aberto. (Processo 2003.010468-9)

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2) Egberto Oliveira Silva foi acusado de tentar furtar bens do interior

de um veículo. Ficou dois anos presos provisoriamente e foi condenado a

cumprir um ano e quatro meses de pena no regime aberto.

3) Josinaldo Francisco de Oliveira tentou furtar um aparelho de

telefone celular. Ficou 10 meses preso provisoriamente e foi condenado a

cumprir pena alternativa. (Processo 20040118550)

4) Nelson Alves de Assis furtou bens avaliados em R$ 75,00. Ficou

mais de seis meses (188 dias) preso provisoriamente. Recebeu uma medida

alternativa. (processo 2004.000277-3)

BRASÍLIA

1) Gilvan de Souza furtou de Vanessa o equivalente a R$ 20,00.

Ficou quatro meses presos provisoriamente e foi condenado a uma pena

alternativa. (processo 2004021000059)

2) Francisco Correia de Brito furtou o equivalente a R$ 12,00 de uma

vítima pessoa física. Ficou 29 dias preso provisoriamente e foi condenado a

uma pena alternativa. (processo 20040110072928)

3) Alexandre de Sousa Rocha furtou o equivalente a R$ 4,00 de um

estabelecimento comercial. Ficou quarenta e um dias preso provisoriamente

e foi absolvido. (processo 2000.05.1.003050-7).

4) Mario Sergio Ribeiro dos Santos furtou o equivalente a R$ 3,00

do estabelecimento comercial Supercei. Ficou vinte e nove dias preso e foi

condenado a uma pena alternativa. (processo 20000310016614).

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SÃO PAULO

1) Rafael Moreno Solto furtou o equivalente a R$ 18,00 de uma

pessoa física, ficou aproximadamente dois meses preso (58 dias). Foi

condenado a cumprir pena alternativa. (processo 5835020000343889).

2) Elissandro Dados dos Santos furtou o equivalente a R$ 32,00 de

uma pessoa física, ficou aproximadamente quatro meses (120 dias) preso

provisoriamente. Foi condenado a cumprir pena alternativa. (processo

5835020010267290)

3) Edson Rochiel da Silva furtou o equivalente a R$ 35,00 de um

estabelecimento comercial e ficou aproximadamente quatro meses (129

dias) preso provisoriamente. Foi condenado a pagar multa. (processo

5835020030509788)

4) Bruno Alceu Hessel furtou um Toca-CD de veículo, avaliado em R$

70,00. Ficou preso provisoriamente por aproximadamente quatro meses

(126 dias). Foi condenado a cumprir pena alternativa. (processo

5835020030897536)

PORTO ALEGRE

1) A.R.M. furtou o equivalente a R$ 3.00 de uma pessoa física. Ficou

mais de uma mês ( 44 dias) preso provisoriamente e foi absolvido.

(processo 00104976106)

2) E.L.S.C. furtou um toca-CD de carro avaliado em R$ 60,00. Ficou

quase um mês (24 dias) preso provisoriamente e foi absolvido. (processo

103937539)

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3) I.S.C.J furtou de um estabelecimento comercial o equivalente a R$

138. Ficou mais de um mês preso (138 dias) e foi absolvido. (Processo

105935150)

4) B.A.F furtou de uma pessoa físico o equivalente a R$ 165,00.

Ficou quase dois meses (54 dias) preso provisoriamente e foi condenado a

cumprir pena alternativa. (processo 103520681)