mia couto - entrevista nova áfrica

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5/13/2018 MiaCouto-Entrevistanovafrica-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/mia-couto-entrevista-nova-africa 1/24 Reproduzimos a íntegra da entrevista com MIA COUTO  PARA A SÉRIE NOVA ÁFRICA, realizada em junho de  2009, realizada em São Paulo, SP, Brasil. Notas: Conceição Oliveira  https://docs.google.com/Doc?docid=0AbOa-M-JaKtaZGhtanhraG5fMWM0dnEyM2Nt&hl=en 1. NOVA  ÁFRICA : Moçambique independente, nação, é ainda jovem, apenas 34 anos…  o país conseguiu forjar uma identidade nacional?  MIA COUTO : Sim e não. Quer dizer, há um tempo para sabermos que caminho, que há um caminho, que   ali há um caminho. Este caminho,  claro,  não começou em 25 de junho de 1975, já começou antes, a coisa que foi forjada, o material do passado que foi forjado e que é importante agora para construir um futuro. O que acho que é, como qualquer nação, Moçambique quando se propõe nascer como uma entidade própria tem de saber, em primeiro lugar, esquecer, escolher o que vai esquecer e esse um...  é alguma coisa que caminha junto com aquilo que sabemos que vamos construir e é, portanto, uma nação que, curiosamente, é feita agora mais de esquecimentos no plural do que de memórias. Portanto, é preciso esquecer que este passado é um passado que tem alguma coisa  que ameaça

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Reproduzimos a íntegra da entrevista comMIA COUTO   PARA A SÉRIE NOVA ÁFRICA,realizada em junho de  2009, realizada em SãoPaulo, SP, Brasil.

Notas: Conceição Oliveira 

https://docs.google.com/Doc?docid=0AbOa-M-JaKtaZGhtanhraG5fMWM0dnEyM2Nt&hl=en

1. NOVA   ÁFRICA : Moçambique independente,nação, é ainda jovem, apenas 34 anos…   opaís conseguiu forjar uma identidadenacional? 

MIA COUTO: Sim e não. Quer dizer, há um tempopara  sabermos que caminho, que há um caminho,

que  há  ali há um caminho. Este caminho,  claro,  nãocomeçou em 25 de junho de 1975, já começouantes, a coisa que foi forjada, o material do passadoque foi forjado e que é importante agora paraconstruir um futuro.

O que acho  que é,  como qualquer nação,

Moçambique quando se propõe nascer como umaentidade própria tem de saber, em primeiro lugar,esquecer, escolher o que vai esquecer e esse um...  éalguma coisa que caminha junto com aquilo quesabemos que vamos  construir e é, portanto, umanação que, curiosamente, é feita agora mais deesquecimentos no plural do que de memórias.

Portanto, é preciso esquecer que este passado é umpassado que tem alguma coisa  que ameaça

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estilhaçar essa idéia de nação, de uma nação única,de uma nação construída de uma maneira um poucoromântica como se todos os moçambicanos fossemdesde sempre irmãos unidos debaixo de uma

sombra de uma grande árvore, que é a nação que setem como sempre existente. 

A idéia de que havia nações plurais, que havia umadiversidade que é preciso tomar conta de algumamaneira, mas por outro lado,  é preciso fazeresquecer,  por exemplo,  os heróis que são sempre

uma espécie de mito fundador da nação,  essesheróis no nosso caso são heróis muitoregionalizados, são heróis que nunca personificaramessa idéia de construtores de uma nação, estavalonge deles essa idéia de fazer Moçambique, não é?Então,  é preciso esquecer isso e reconstruir,digamos, é preciso retrabalhar o passado de maneira

que esse seja o primeiro chão a partir do qual nóscriamos uma idéia, um sentimento de sermos nação.Tá  aqui uma obra muito complicada que é,  assim,uma obra de apagamento e uma obra deressurgimento daquilo que são reescrita dessepassado, dos mitos que nos interessam manter. 

2. NOVA  ÁFRICA:  Há descompasso entre aquilo

que se vislumbrava para o futuro nesseperíodo pré-   independência e o futuro que sedá hoje? 

MIA COUTO:  Há sim, há, há. Porque também depoisda Independência houve vários percursos  denatureza política muito diversa, não é? Nós

nascemos numa revolução que pretendia ergueruma sociedade radicalmente nova, não é? E  era uma

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sociedade socialista e depois tudo isso foi, foi... Eisso  era  muito curioso, era como se o futuro deMoçambique fosse forjado, principalmente, por umavia política e não tanto por via cultural, era uma via,

era o político, era o elemento político que fazia essa,digamos assim, esta demarcação.Essa estrada era uma estrada principalmentepolítica e houve até uma hegemonia daquilo que erapolítico. Todos heróis foram sempre políticos de umacerta maneira até militares. Eram apenas heróis osguerrilheiros que lutaram pela libertação nacional,

isso agora está sendo aberto, hoje já há outrosheróis, já há poetas que são heróis, já há outro tipode gente que vem da cultura, que vem dopensamento que são também tidos como heróis.

Mas, portanto, houve esse primeiro momento deconstrução do socialismo, de repente tudo ficou

posto em causa, nós tivemos uma guerra que nosfez  é..., digamos assim, voltar à estaca zero, derepente estávamos, pior que ser... pior que estar nozero, é que nós não sabíamos onde estávamos,  derepente ficamos  perdidos  e quando nosreencontramos,  de repente estávamos em outrocaminho, em outra senda, que era a senda do

capitalismo, a fazer nos esquecer aquilo que erapropósito da construção, uma coisa que eramisturada a construção do país, a construção danação, a construção de um Estado, somos muitouma nação que está a ser construída a partir de umEstado. Então isso nos fez ficar em uma situação umpouco confusa, um pouco misturada, há ali umdiscurso que permanece ainda, uma certa réstia deum discurso com uma preocupação social, umdiscurso que continua resgatando do passado esta

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tentativa de mostrar que Moçambique sempreexistiu e a idéia de que sempre existirá. 

3. REVISTA ÁFRICA:  Quem é o Junhito de Terra

Sonâmbu la   hoje, quem é esse homem adultoque constrói, que está trabalhando paraconstruir a identidade deste país? 

MIA COUTO: O Junhito congrega esse conjunto deconflitos. Por um lado ele tem o nome de junho; junho, digamos, é o nosso mês mítico, o mês em quenasceu a nação, mas ao mesmo tempo ele estádomesticado, ele pensa que é uma galinha, pensaque é um animal doméstico, e é assim tratado pelosoutros, portanto é como se houvesse aqui umaespécie de uma metáfora daquilo que foi adomesticação de um sonho, a utopia foi sendoreduzida aquilo que é possível, essa é a imagem doJunhito. 

4. REVISTA ÁFRICA:   Neste processo deconstrução de identidade, qual a influênciadas culturas estrangeiras, o que inclui abrasileira.   Qual o papel das TVs via satél i teem Moçambique?

MIA COUTO: É uma influencia, digamos assim, boa e má, porque

nós não podemos fugir disso, existe em Moçambique, acho que os

moçambicanos têm uma grande apetência para serem  do mundo,

Moçambique é um bocadinho uma ilha, quer dizer uma ilha no

sentido histórico, ficou longe de tudo, é um país de língua

portuguesa rodeado por países de língua inglesa e osmoçambicanos têm esta coisa, este tique dos ilhéus, ou seja,

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estão espreitando o mar a ver qual é o barco que chega e onde é

que eles podem partir, nem que seja partir em sonho, não é?

Então, há um... isto é bom em certo sentido, quer dizer há um

lado bom nisso, quer dizer, o querer ser do mundo, eu acho bem

preferível isto do que querer ser fora do mundo, quer dizer, ser

fechado, ser uma cultura fechada, uma cultura autista, não é?

Então este lado é bom, mas claro que este é feito sem juízo

crítico, era preciso que ao mesmo tempo nós tivéssemos uma

auto-estima, um amor próprio, conhecimento de nós mesmos,

que está sendo construído ainda, que é muito jovem, então há

toda esta coisa, os jovens moçambicanos querem: os rurais

querem ser urbanos, os urbanos querem ser americanos e há,

portanto há esta tentação de viver... de viver em projeção, em

viagem, não é?

Portanto, quando chega a televisão, quando chega as novelas

brasileiras é extraordinário! Eu estive agora em uma pequena

cidade do Norte (de Moçambique) e no hotel onde eu estava os

moçambicanos nos cumprimentavam com aquela saudação

indiana “Namastê” que vinha desta novela da... Caminho das

Índias e, portanto, é muito rápida esta apropriação do que é... doque são os sinais da modernidade, de uma outra maneira de

viver, com uma idéia muito ingênua do que é o mundo. Os

moçambicanos têm uma idéia de que o mundo, principalmente a

Europa, a America, o Brasil, porque o Brasil que chega é o Brasil

das novelas, são nações de prosperidade, onde não existe

pobreza onde não existe esta necessidade de haver um esforço,

um empenho para construir as coisas básicas.

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Me recordo de um episódio que me marcou muito, no período de

transição, em 1974, já tinha caído o fascismo em Portugal e a

Frelimo já tinha uma presença clandestina na cidade e eu fuiindigitado para mostrar cinema, na cidade onde eu vivia que era a

capital e nós apresentamos um documentário que era os cantos

de trabalho do norte de Portugal e de repente a sala toda estava a

rir, dando risadas e eu não percebia por quê. Então, nós paramos

a projeção e perguntamos estão se rindo por quê? E era a

primeira vez que aquela gente via brancos trabalhando com umaenxada na terra e pensavam que aqueles brancos estavam

imitando os moçambicanos. Mas havia ali uma diferença, porque a

própria enxada era diferente, a maneira de pegar a enxada...

então eles diziam, eles estão tentando imitar, mas não sabem

fazer bem. E esta idéia de que em nenhum lado do mundo os

outros têm de fazer este trabalho, que é um trabalho duro, umtrabalho braçal, marca um bocadinho esta idéia ingênua de que o

mundo é diferente, é completamente diferente de Moçambique.

5. REVISTA ÁFRICA : Aproveitando este ensejo, a raça...

biologicamente não existem raças, mas aqui no Brasil os

movimentos negros uti lizam o termo como categor ia

sociológica, mesmo porque os negros aqui sof rem

racismo e estão à margem da sociedade e é uma

realidade diferente da África. Qual a opinião do senhor a

respeito disto? 

MIA COUTO : Bom, eu sou biólogo e entendo que do ponto de

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vista do discurso científico a raça não tem sentido para a nossa

espécie, mas do ponto de vista de cidadão eu acho que também

há aqui uma...  quer dizer, o combate ao racismo não pode ser

feito desta maneira, anulando a idéia de que não existe raça,

portanto não, não... quer dizer, fazendo com que isso não faça

parte do nosso discurso, nosso discurso de combate ao próprio

racismo, não é? 

De fato não foi a raça que criou o racismo, foi o inverso:  o racismo

é que inventou a raça. E isso é muito presente no caso de

Moçambique que, por exemplo, há algumas zonas rurais em que

eu chego com colegas meus que são todos negros e as pessoas

dizem: ‘chegaram os brancos’ e dizem ‘uabuí a valongo’   este

termo valongo  que é o plural de ‘molungo’, ‘molungo’ que

significaria o branco, na verdade este termo, ‘molungo’ não quer

dizer branco, não nomeia a cor da pele, nomeia aquele que vem

de fora, que é o estranho. E não existe nenhum termo para dizer

branco ou negro, está ausente. Portanto, aquilo que define a

identidade do outro passa, também, pela cor da pele, é verdade,

mas não é determinada por isso.  Eu se falar a língua local, se, se,

se, se,... digamos que se estiver casado com a cultura local, eu já

transito de identidade, já sou parte daqueles que são ‘mulande’,

que são os próprios, os da terra, vamos chamar assim.

Portanto, acho que a experiência moçambicana é uma

experiência muito curiosa neste aspecto, porque a luta da Frelimo

foi uma luta que tomou isso a peito, de repente o discurso da

Frelimo era um discurso não até racial, mas quase a-racial, não é?

E a Frelimo era composta por brancos, eu fiz parte da Frelimodesde os meus 19/20 anos, por ‘mulatos’, por indianos, por

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moçambicanos de diferentes ‘raças’, não é? Mas, dentro da

própria Frelimo isso não estava completamente ausente, quer

dizer, era uma briga que internamente nunca ficou

completamente resolvida. Os brancos que se juntaram à luta de

libertação eram bem aceitos, mas nunca podiam pegar em armas,

enquanto, por exemplo, em Angola isso era uma coisa bem, bem

resolvida, não é? Havia guerrilheiros brancos no  movimento do

MPLA, na guerrilha do MPLA, mas na guerrilha de Moçambique

eles não eram aceitos, como  uma solução de conciliação, uma

espécie de negociação entre setores da FRELIMO que

continuavam a ver no branco, um outro a quem não se podia

confiar completamente.

Bom, o que quero dizer é assim, em Moçambique, a raça, como eu

acho que existe em todo lado mundo, não existe nenhum lugar

onde isso esteja completamente resolvido, mas do ponto de vista

daquilo que é a relação social dominante é uma coisa bem

resolvida, eu acho que Moçambique pode ter orgulho nesse

combate, nessa, digamos assim, confrontar de uma coisa que se

sabe que custa muito, que custa muito resolver. 

6. REVISTA ÁFRICA:  Muitas vezes o seu combate à

manipulação pol ít ica do conceito de raça é usado nodiscurso conservador, aqui no Brasil ,   para combater a

luta do movimento negro por ações afirmativas.

Intelectuais e jornal istas conservadores usam a sua

crít ica à manipulação oportunista do conceito de raça

para dizer que as ações afi rmat ivas i rão racia lizar o

país, criar o racismo, como se a nossa sociedade já nãofosse racializada e não fosse racista. Que recado o sr.

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poderia dar para essas pessoas?

MIA COUTO:  Sim, sim, sim, sim......

Nós temos uma certa... eu acho que nós angolanos,

moçambicanos, caboverdianos etc., tivemos  um outro percurso

obviamente, quer dizer, assim, a nossa história é completamente

diferente, as nossas nações  são diferentes. Hoje, quem está no

poder são os negros em Moçambique e eu faço parte da minoria e

a grande briga da FRELIMO foi que, em Moçambique, não

existissem minoria ou que pelo menos elas não se

representassem a si mesmo desta maneira. Então, em todas as

lutas da guerrilha não há brancos, não há mulatos, não há negros

somos todos moçambicanos.

Quando nós começamos a visitar o Brasil, depois da

independência, nós tínhamos dificuldade em perceber o desenho

desta luta no Brasil. Recordo em um congresso que houve emSalvador do movimento negro em que alguns de nós dizíamos,

mas por que movimento, o que é isso, literatura negra? Não

existe. Esqueçam isto, porque, nós ficamos tão desconfiados com

esta denominação como se fôssemos convidados para um

congresso de literatura branca, não é? Ficaríamos

assustadíssimos. Portanto, nós não percebíamos esta diferença defato, tínhamos uma grande dificuldade. 

Então, eu acho que é preciso algum diálogo, é preciso que se

troquem, que cada um de nós perceba que o outro vive em outro

contexto, em que as coisas tem de ser colocadas de uma outra

maneira. Mesmo a questão com as cotas, Moçambique tem

alguma dificuldade em compreender, porque que é preciso

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reclamar cotas, não é? E achamos que temos um juízo muito fácil

sobre isso, não tem sentido, não é? Porque está a  fixar, está quase

a se cristalizar esta idéia de raça como argumento para,   para,

para, 

para reivindicar a igualdade, quando toda a nossa história

fazia assim, é preciso anular a raça, é preciso desracializar   o

discurso. E eu próprio tenho de me sintonizar aqui no Brasil, não

é? Mas também os brasileiros têm de saber compreender os

outros também, não é?

Eu notava que parte do movimento negro havia...   inclusive, uma

vez disseram, de uma maneira muito simpática, mas disseram...

nós fomos convidados para falar em uma espécie de uma

pequena palestra e sugeriram que eu não fosse, que eu não

fizesse parte do grupo que ia.   E  os meus colegas, os dois, os

outros dois escritores que eram negros disseram: mas se ele não

vai, nós também não vamos. E disseram  (referindo-se ao

grupo negro que não queria que Mia fosse à palestra) :

não, nós queremos simplesmente dar uma idéia de que os negros

moçambicanos não precisam de... como se eu fosse uma muleta,

como se eu fosse ali...

Então, acho que tem de haver este esforço dos dois lados. Não se

pode pensar que nós temos de compreender os outros como se os

outros coitados não tivessem também capacidade e obrigação deentender que há outras situações diversas no mundo. 

7. REVISTA ÁFRICA: Como é que hoje está se desenhando

o quadro polí tico em Moçambique, o que as siglas

Frelimo e Renamo hoje significam? 

MIA COUTO: Bem, as duas têm hoje um grande poder de apelo,

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não é, para uma mobilização que me parece importante manter

com esta diversidade, não é? 

Hoje, esta palavra FRELIMO é uma palavra que continua a ser

muito evocativa, não é? Porque é este nome que circulou a

independência, foram eles os autores da nação e acho que há  até

um certo oportunismo depois da FRELIMO de hoje que se

esqueceu que a FRELIMO de ontem já não é a mesma coisa e que

continua a estar apegada a este poder do termo da palavra

FRELIMO.

 

A RENAMO é um movimento que poderia ser importante, nasceu

de um movimento militar, mas que depois se converteu em uma

força política e que poderia ser um contraponto ao discurso

dominante, muito importante e eu espero que haja várias outras

forças políticas, não é?

Mas eu acho que esta dualidade nasceu de uma coisa que não é

só política que é principalmente cultural. Dentro de Moçambique

há dois Moçambiques que digamos que foram, um se acha mal

amado, um se acha sempre excluído, não é, que são as zonas que

não foram tocadas pela colonização portuguesa  e que foram

excluídas durante o tempo colonial e que continuam a ser

excluídas agora.

E essa África que é uma África, portanto, que esses africanos que

viveram nessa uma outra África, o mesmo aconteceu em Angola,

são aqueles que se aperceberam que estavam menos preparadas

para dominar o aparelho do Estado para continuar a reproduzir

aquilo que foi a administração da sociedade e, portanto, tem estecomplexo de que nós fomos esquecidos.

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E mais, portanto, do que propriamente um discurso político há  ali

uma idéia de que é preciso atacar não só o Estado, mas o tempo

em que este Estado está sendo feito e que fez com que se

explicasse essa enorme violência com que a guerra de repente se

disseminou. A guerra não foi feita só  por uma razão militar ou

política. De repente há todo um conjunto de pessoas  que acham

que é preciso separar este processo, o processo de criação do

Estado moderno, porque mais uma vez nós vamos ficar de fora e

essa gente dá origem a RENAMO. E essa gente do outro lado dá

origem a UNITA (Mia refere-se ao contexto angolano) , não

é?

E que é olhada tanto pela FRELIMO, esses outros são olhados pela

FRELIMO como pelo MPLA com um certo desprezo, assim com um

certo... esses são a tal África profunda que nós nos

envergonhamos de ser. Então, há aqui um confronto desses queforam os assimilados, porque a colonização portuguesa criou esta

coisa, tardiamente, mas criou o grupo dos assimilados que era o

grupo, digamos, que podia ser, que podia cair fora do racismo

porque eles eram portugueses de pele negra, portanto,  eram

iguais aos portugueses que tinham direitos  especiais.

Curiosamente foram esses assimilados que deram origem  depoisaos movimentos de libertação, porque eles perceberam que de

fato esse era um discurso que não valia, que não era capaz de se

impor.

Portanto, há todo esse conjunto de uma história que   é feita de

conflitos e conflitos dentro  dos próprios conflitos, não é,  que

explica que estas guerras tenham acontecido em todas as

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colônias portuguesas com exceção de São Tomé e Cabo Verde que

são nações pequeninas. 

8. REVISTA ÁFRICA: No seu l ivro “O gato e o escuro”, o

senhor nos agrac ia com uma histór ia sobre nossos

medos e sobre o universo infantil, que na verdade nada

mais é que o nosso próprio universo. Eu queria que o

senhor falasse para a gente sobre os grandes medos

atuais desta nação, quais são as sombras? 

MIA COUTO: A primeira grande sombra eu acho que é a guerra,não é? Porque foi alguma coisa que não foi resolvida

profundamente, intimamente, não é.

O que significa que as pessoas se aperceberam...   se apercebem

ainda hoje que não vale a pena lembrar este passado imediato,

ou fariam  uma operação fantástica que para mim foi de uma

amnésia  coletiva, hoje ninguém...  se vocês percorrerem...  a

Conceição percorreu Moçambique, ninguém se lembra da guerra,

ninguém invoca nenhuma memória, é como se não tivesse

acontecido nada, não é?

E sempre fica, as pessoas se apercebem que há tensões que não

foram resolvidas estão lá ainda e que deram origem aquelaviolência e, portanto, como se fosse uma caixa de demônios,   é

preciso não tocar nela, é preciso não mexer nela. Eu acho que

isso é o maior medo, de tal maneira é presente que nós aceitamos

um regime político que seja discutível, que seja polêmico em

nome desta coisa que é a estabilidade que é a negociação de

uma situação de paz, acho que esse é um grande medo.

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Nós temos medo  da... eu acho que nós temos medo do mundo

também, os moçambicanos tem um bocado, ao mesmo tempo

que temos fascínio enorme pelo mundo, vive em uma condição de

que foram ensinados a, digamos, desconfiar, destes que vinham

de fora, todos que vieram de fora tinham sempre qualquer coisa

que não era muito amigável, havia um....

Eu me recordo que agora, que como biólogo, fui visitar um lugar

que vai ser uma  futura  albufeira, vai ficar submerso, e é muito

curioso que as pessoas nos receberam cantando e nós

pensávamos que estávamos sendo muito bem recebidos e depois

quando percebemos o que dizia a letra e a letra dizia: mais uma

vez chegaram os que nos vão tirar a terra.

Então este é um medo, um medo que está sendo, digamos assim,

sujeito a uma aprendizagem, agora, porque os de fora já não são

mais os que vêm de fora, mas são moçambicanos que têm opoder, os poderosos, hoje, também chegam para tirar a terra. O

receio de ficar sem terra e sem terra não quer dizer apenas ficar

sem o recurso material é ficar sem este valor simbólico que tem a

terra, que é o lugar dos mortos que é esta, digamos, a terra como

categoria religiosa é um grande medo que os moçambicanos têm. 

9. REVISTA ÁFRICA: Há d iferenças entre essa e li te

moçambicana, as elites africanas e as elites

estrangeiras, portuguesas, européia e dentro de

Moçambique a elite sul-africana? 

MIA COUTO: Não, claro que há diferenças, as elites

moçambicanas têm alguma dificuldade em ser elite ainda, estãoaprendendo a ser elite, mas aquilo que estão usando como

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instrumento é aquilo que me parece que é a pior herança que

deixaram as outras elites. É uma herança do desprezo, de

violência de tentar anular o outro, mas por outro lado, eu acho

que 

esta elite vive 

um conflito dentro de si mesmo. É uma elite

que ainda é muito marcada por preconceito, por preceitos

religiosos, não por preconceitos, por preceitos de ética que vem

ainda da tradição moçambicana rural que impõe uma moral de

redistribuição e quem não redistribui para a sua família para os

próximos, está sujeito a ser punido pela feitiçaria.

Os novos empresários, os novos ricos moçambicanos continuam a

ter um grande medo da feitiçaria   e isso é, digamos, até mal do

ponto de vista da construção de um empresariado de sucesso,

produtivo em Moçambique, porque o empresário moçambicano

quase que é obrigado a, digamos, a redistribuir aquilo que é o

lucro da sua empresa na forma desses favores que presta a sua

família que presta aos seus e isso se choca com a lógica

empresarial moderna, não é? Este é um conflito que a elite

moçambicana tem de, está a resolver, mas que leva seu tempo. 

10. REVISTA ÁFRICA:  Vamos falar um pouco sobre Beira,

sua terra  natal. Como era Beira antes da guerra civil?

MIA COUTO:   Eu saí da Beira em 1972. E tinha medo de voltar,

porque... tinha medo... Beira foi muito prejudicada pela guerra, eu

tinha medo de me confrontar com fantasmas no lugar ou..   Eu

fabriquei a minha própria infância, onde eu vivi uma infância

muito feliz, uma espécie de encantamento total e permanente,

aquilo foi um lugar muito mágico para mim, de maneira que eu

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tive de deixar passar alguns anos e fui com um conjunto de

amigos para fazer aquilo, não sozinho, né,  com alguma

companhia.

Mas correu muito bem em alguns minutos eu já estava

reconciliado. Isso aconteceu por causa da língua, eu falava Cisena

uma das línguas da Beira, de repente ouvir aquela música e tudo

me regressou de uma maneira muito casada. Eu não sei se eu

respondi a sua pergunta, acho que a sua pergunta era outra, eu

estou falando sobre uma outra coisa.

11. REVISTA ÁFRICA : Das imagens, das imagens que vem

à sua cabeça... 

MIA COUTO: Vêm imagens muito curiosas. A Beira era assim, um

lugar (...) 

Sim, a Beira era um lugar que para mim tinha, quando eu me

lembro da Beira me lembro mais de água do que de terra. Muitas

vezes falo da Beira com se fosse ‘minha água natal’ e não terra

natal, porque a Beira foi mal escolhida, nasceu em um pântano,

sujeita às marés, está abaixo do nível das águas do mar e isso

impediu que aquela lógica, digamos assim, de hierarquização doespaço colonial que fazia com que os negros ficassem sempre

para além dos subúrbios, a África era puxada para fora do espaço

urbano, que era o que existia em Nampula, em Quelimane,

Lourenço Marques que era o nome de Maputo.

Na Beira não foi possível fazer isso, porque o pântano era

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resgatado, assim, de uma maneira quase acidental, então havia

sempre a África do outro lado da rua, felizmente para mim que

nasci nessa dualidade: minha casa que era uma casa de gente

portuguesa, né, eu sou filho de portugueses e da rua que ali

estava a África e eu, e eu, do outro lado da rua,   eu recebia

histórias, imaginário, eu era mergulhado num universo que tinha

pouco a ver com aquilo que era o meu de casa, não é? Essa linha

de fronteira para mim foi vital, eu hoje sou o que sou porque,

porque vivi, não num lugar, mas em uma espécie de diálogos

entre lugares.

12. REVISTA ÁFRICA: A lenta demolição do Grande

Hotel…   qual a sua relação, quais os símbolos que este

processo de demolição carrega para nos contar sobre o

‘desfazimento’ da ordem colonial portuguesa?  

Mia COUTO: A ordem colonial, a ordem colonial transita, ela está

lá, está lá presente, quer dizer assim, em estado de ruína, em

estado de destroço, mas é como se enterrássemos um corpo, mas

que esse corpo, nunca fosse conduzido para um cemi... para um

outro território, ela é enterrada em nosso próprio território.

Nós vivemos numa condição ambígua em que,  em que, mais que

num território temos de enterrar, temos de superar isso entre

nós, esse, esse passado está muito vivo ainda, eu acho que está

vivo em toda a gente. Não, exatamente, como uma saudade, mas

como qualquer coisa que terá que continuar a ser nosso, aquilo foi

um tempo que não podemos extirpar de nós próprios.

Eu, não sei se eu posso falar em nome dos outros, claro que não

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posso, mas no meu caso, eu lembro o Marcelino dos Santos [1] 

dizendo  que a... uma vez perguntou-me, como é que pudeste,

ah... como é que pudeste ter uma adolescência tão feliz na Beira,

numa condição colonial? E 

eu 

tive, de fato eu tive, eu fui muito

feliz por viver aquele tempo e penso que eu era feliz também

porque eu vivia contra este tempo. Vivia contra um tempo e na

altura era muito simples, um inimigo, não é, que era erguido

como inimigo estava muito bem definido, hoje este inimigo é

muito pouco, está muito diluído, nós não sabemos identificar

bem.... 

13. REVISTA ÁFRICA: Os colonia lismos mundo a fora

caíram ….ou se reformularam?

MIA COUTO: Eu acho que o colonialismo não morreu, está a ser

gerido agora por mãos indígenas, quer dizer, indigenizou-se,

vamos dizer assim, e esse grupo de assimilados que queriarealmente erguer uma sociedade anti-colonial falhou, não foi por

culpa deles só, quer dizer, há muitas razões que levaram a essa

falha, não é, mas eu acho que,  os que sobreviveram como

gestores estão fazendo muito bem aquilo que foi, que era

reprodução de um modelo do passado, não é? Porque isso mudou,

mudou a mão, mudou a raça de quem fazia, mas na essência oque era feito está sendo feito por igual.

Isso é importante dizer, porque toda a construção, a primeira

pergunta a que me colocou sobre como é que esta... esta... o olhar

do passado, como é que nós olhamos  e refabricamos o passado?

Nós estamos construindo uma grande mentira, que é essa idéia

de que os dominadores são pessoas..., eram sempre os outros e

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nós fomos sempre as vítimas dessa, dessa dominação, quando

aquilo que está a passar hoje é continuação daquilo que houve no

passado, a escravatura[2] foi construída a duas mãos pela de fora e

pela de dentro, a colonização não foi feita só pelos de fora, houve

cumplicidades internas de elites que estavam muito bem como

estavam e hoje é a mesma coisa, é uma elite que se importa

pouco com os outros. 

14. REVISTA ÁFRICA: Sobre as várias Moçambiques, rural,

urbana, quais as distâncias entre esses universos, eles

se conhecem, se conversam, se conectam... 

MIA COUTO: Eles se falam muito pouco uns com os outros, mas

principalmente eles têm muito medo uns dos outros, não é?

Agora, eles vivem muito misturados e é muito difícil dizer onde é

que está a fronteira entre o rural e o urbano, mesmo dentro da

cidade, o rural ocupou a cidade e digeriu a cidade, está, digamosassim, mastigando a cidade de maneira que o rural impõe a sua

lógica sobre um espaço que não foi feito para o acomodar[3]. 

Uma coisa muito visível a quem chega de fora é a maneira como

as pessoas circulam na rua, as pessoas não ocupam o passeio, as

pessoas circulam na estrada, quer dizer, isto é, é a idéia de que

um espaço público não está presente, isso é uma coisa que vem

da condição de cidadania, não somos cidadãos, essa foi a briga

que fizemos para se ter um espaço que seja um espaço da

cidadania, é o espaço público, não é?

Para o rural, não isso é, todo passeio pertence à casa que está

anexa e, portanto, ele circula apenas na estrada, isto é umexemplo, mas há todo um outro... exemplo, há uma espécie de

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vingança, porque uma das condições de ser rural e de ter posse

da sua própria, da sua própria existência é ter o espaço da

machamba, que é a pequena horta, não é? O  espaço da

machamba não interessa só por aquilo que ele produz, mas é ali,

principalmente que a mulher, faz, digamos assim, faz exercer

aquilo que é a sua pequena cidadania no, no, no campo.

A cidade não foi feita pensando nisso, não há, não há lugar para a

machamba, não é? Então, ah... o que que fez o rural que vive na

cidade? Ele transfere essa esfera para fora da cidade, portanto ele

tem uma mulher, tem todo um universo que está lá, na zona

rural, e ele funciona como uma espécie de negociante, ele é um

empresário que troca, troca bens, troca coisas materiais, mas

também troca toda esta relação com o religioso, com o simbólico

que mora do outro lado. 

15. REVISTA ÁFRICA:   Nas feiras,   nas ruas, nascapulanas.... 

MIA COUTO: Sim, sim, sim, pois é, o espaço da oralidade, por

exemplo, que domina completamente a cidade, por exemplo:

nossa cidade são pouco urbanas,  neste sentido são, são, são...

estão inventando a sua própria maneira de ser urbanas, não? 

16. REVISTA ÁFRICA: Sobre a manutenção das tradições

presente em sua  literatura... 

MIA COUTO: As tradições?  Eu tenho muita desconfiança sobre

esta palavra tradição, porque ela ah! tem que ser bem..., tem que

ser bem, tem que ser bem  olhada. Senão, quando falamostradição normalmente temos  uma coisa que é do passado, uma

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coisa que está ali congelada ah... Eu acho que não há nada mais

moderno que a tradição nesse sentido que elas são

completamente refabricadas, estão sendo sempre traduzidas em

qualquer outra coisa, hoje o curandeiro, o feiticeiro tem

telemóvel, faz consulta por telemóvel também, não é? E isso, ah..

é.. é.. constante.

Agora ali há uma dificuldade em, em... quer dizer, quando se quer

erguer um retrato para  o país, parece que os países têm de ter

bandeira, têm de ter retrato, tem de ter..   e.. isso deve ter bem

claro, ah... a idéia é há sempre uma tentação passadista, não é,

tradicionalista, “o verdadeiro” Moçambique é aquele que mora na

tradição, mesmo que não saibamos bem o que que estamos a

falar. Mas a idéia é a de que a tradição, por exemplo, a tradição,

na maneira de vestir é a capulana, né? E  nós esquecemos que a

história diz outra coisa, a capulana não é nossa, não é um

elemento moçambicano, foi trazida pelos árabes, veio da

Indonésia, veio da Índia, ah.. e nós incorporamos isso como uma

coisa que hoje é tida  como genuinamente, autenticamente

moçambicana, ou africana. Eu falo muito nisso para que os

próprios africanos, moçambicanos, não fiquem prisioneiros desta

idéia de colar a sua identidade a uma tradição que é ela própria é

dinâmica, não é? 

17. REVISTA ÁFRICA: Como o caju   e   a mandioca   que são

americanos..... 

MIA COUTO:   Sim,  na culinária  é muito patente, se perguntar

quais são os pratos verdadeiramente moçambicanos, não é? Vai

se pegar na batata doce, no caju, no amendoim, etc. Tudo isso

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veio de fora, né, tudo isso, já nasce de uma certa globalização

que é feita há quatrocentos anos, quinhentos anos atrás. 

18. REVISTA ÁFRICA:   Eu gostaria de perguntar sobre o

universo feminino, assim como em ‘O Fio das

missangas’, em vários l iv ros seus,   você explora o

universo feminino como n inguém. Toca na alma da

gente, como anda a alma da mulher moçambicana hoje? 

MIA COUTO: Eu acho, eu não sei se eu posso falar, apesar de eu

cometer a ousadia de falar em nome do meu lado feminino, nãoé, e também eu não sei exatamente o que é o lado feminino e o

lado masculino,  é como um pouco a tradição,  eu acho que

construímos isso como uma coisa fácil de definir, mas eu não sei,

é até perigoso pensar que sabemos.

Eu, às vezes, pergunto o que que você acha que é o lado

feminino, o que constrói o lado feminino?  Me dizem coisas

espantosas, as próprias mulheres dizem-me coisas que me

parecem que não ajudam muito nesta briga para nós,

principalmente em Moçambique construirmos um mundo que é

um mundo que não..., que é um mundo que, que, que dignifica,

que respeita a mulher.

Acho que não estamos bem deste ponto de vista social, do lugar

que a mulher ocupa em Moçambique há um percurso muito

válido, muito valioso, um esforço para, para, para dar as mulheres

moçambicanas instrumentos para elas entrarem na briga. Mas,

por um lado há uma certa relutância em admitir  que nos domínios

da sexualidade, da intimidade, o espaço, o espaço que ocupa nolar, na família isso, isso, nós estamos muito, muito atrasados. Uma

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das razões daquilo que vocês chamam a AIDS,   né,  a SIDA  nós

chamamos, é assim que se chama, né, AIDS? Uma das razões tem

a ver com esse lugar  subalterno que a mulher tem nesses

domínios mais invisíveis, mais ocultos. 

Sei lá, por exemplo, a idéia

de que o homem se purifica se ele está doente ou se está atingido

por um mal estar qualquer fazendo amor, quer dizer, violentando

uma mulher que não está “quente”, quer dizer uma mulher que é

uma menina no fundo, que ainda não é uma mulher, uma mulher

virgem. É terrível, é uma coisa de uma violência extraordinária, e

isso é pouco falado, é pouco comentado, como se houvesse uma

vergonha, um certo compadrio dos homens que tem, que tem,

que tem  o poder. Eu não falei, não respondi exatamente a sua

pergunta, mas acho que toquei em alguma coisa. 

19. REVISTA ÁFRICA : Em termos l iterários, que autores

brasileiros o senhor aprecia?

 

MIA COUTO : Eu gosto, eu confesso que não estou muito

atualizado. De repente o Brasil deixou de ter contato com a

África[4] nesse... com a África de língua portuguesa... 

Conhecia-se mais o que fazia no Brasil nos anos 70, 60, do que se

conhece agora, por isso aquilo que eu gosto está muito marcado

por esta visitação que o Brasil fazia a Moçambique  e gosto muito

da poesia. Bom eu sou, eu estou  muito marcado pela poesia, eu

sou um poeta que conta histórias   e tive mestres importantes

como João Cabral de Melo e Neto, como Drummond de Andrade é

incontornável, né? Como Manuel Bandeira, como Adélia Prado

mais tarde, Manuel de Barros, esses, esses são,   são, são nomes

que são importantes para mim. Eu me esqueci de alguns, mas....

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mas, mas há muito mais que isto. 

20. REVISTA ÁFRICA:  Lembro-lhe de Guimarães Rosa 

MIA COUTO: Ok, ok, Sim, Guimarães Rosa. Mas  eu estava a falarsó dos poetas, mas eu acho que Guimarães também é um poeta

no fundo, é, é, é... é um poeta que se realizou na prosa. 

21. REVISTA ÁFRICA: Muitíssimo obrigada. 

MIA COUTO: Obrigada Tatiana, Obrigada Conceição, obrigada a

vocês também (Padu e Markus), posso me desligar? 

[1] Marcelino dos Santos é um dos fundadores da FRELIMO, figura importante, muito homenageada em junho de 2009

no 34º aniversário de independência de Moçambique. A equipe da Nova África o entrevistou em Maputo.

[2] Mia é bastante crítico à elite africana atual. No entanto, do ponto de vista histórico sua imagem sobre a escravidão

no continente africano pode ser relativizada.  De fato havia escravidão no continente africano, antes da chegada dosportugueses e antes mesmo da chegada dos árabes no continente. Mas as diferentes práticas escravistas estão muito

longe do que se transformaram após a chegada dos portugueses e da implementação da escravidão moderna, cujo

centro era o tráfico transatlântico que mudou completamente as relações no continente, mesmo entre dominantes e

dominados, impérios, reinos etc.

[3] Esta fagocitação do urbano pelo rural é uma das imagens mais fortes e mais próximas da realidade que podemos

constatar na viagem.

[4] Talvez porque a via que foi quase sempre de os africanos lerem os escritores brasileiros  tenha se invertido, somo

nós hoje que desejamos conhecer os africanos. Há muito mais interesse do governo, dos empresários e da academia

para com a temática africana, muita curiosidade para a África e tudo que lhe diz respeito, também na literatura.  A

prova disso é que os escritores africanos que aumentaram em muito a sua produção estão permanentemente  no Brasil

dando palestras, lançando e divulgando suas obras. Mia é um exemplo disso, escritor de alcance mundial e apesar de

tentarmos entrevistá-lo em Moçambique, só conseguimos realizar a entrevista aqui, no Brasil.