mia couto raiz de orvalho e outros poemas

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  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Poema da despedida

    Nao saberei nuncadizer adeusAfinal,56 as mortos sabem morrerResta ainda tudo,56 n6s nao podemos serTalvez a amor,neste tempo,seja ainda cedoNao e este sossegoque eu queria,este exillo de tudo,esta solidao de todosAgoranao resta de mima que seja meue quando tentoa magro invento de um sonhotodo a inferno me vem a bocaNenhuma palavraalcanc;;aa mundo, eu seiAinda assim,escrevo

    Pergunta-me

    Pergunta-mese ainda es a meu fogose acendes aindaa minuta de cinzase despertasa ave magoadaque se quedana arvore do meu sangue

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Pergunta-mese 0 vento nao traz nadase 0 vento tudo arrastase na quietude do lagorepousaram a furtaeo tropel de mil cavalosPergunta-mese te voltei a encontrarde todas as vezes que me detivejunto das pontes enevoadase se eras tuquem eu viana infinita dlspersao do meu serse eras tuque reunias pedacos do meu poemareconstruindoa folha rasgadana minha mao descrenteQualquer coisapergunta-me qualquer coisauma toliceum rnisterio lndeclfravelsimples mentepara que eu saibaque queres ainda saberpara que mesmo sem te respondersaibas 0 que te quero dizer

    Raiz de Orvalho

    Sou agora menos eue os sonhosque sonhara terem outros leitos despertaramQuem me dera aconteceressa mortede que nao se morree para um outre frutome tentar seiva ascendendoporque perdi a audaciado meu proprio destinosoltei ansiado meu proprio delirio

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    e agora sintotudo 0 que os outros sentemsofro do que eles nao sofremanolteco na sua lonjurae vivendo na vidaque deles desertouofereco 0 marque em mim se abrea viagem mil vezes adiadaDe quando em quandome percona procura a raiz do orvalhoe se de mim me desencontrofoi porque de todos os homensse tornaram todas as coisascomo se todas elas fossemo eco as rnaosa casa dos gestoscomo se todas as coisasme olhassemcom os olhos de todos os homensAssim me debrucona janela do poemaescolho a minha propria neblinae permito-me ouviro leve respirar dos objectossepultados em silencloe eu invento 0 que escrevoescrevendo para me inventare tudo me adormeceporque tudo despertaa secreta voz da infanciaAmam-me demasiadoas cosias de que me lembroe eu entrego-mecomo se me furtassea sonolenta carfciadesse corpo que faco nascerdos versosa que livremente me condeno

    Nocturna mente

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Nocturnamente te construopara que sejas palavra do meu corpoPeito que em mim respiraolhar em que me despojona rouquldao da tua carneme iniciome anuncioe me denuncioSabes agora para a que venhoe par isso me desconheces

    Trajecto

    Na vertigem do oceanovagueiosou ave que com a seu voose embriagaAtravesso a reverso do ceue num instanteeleva-se a meu coracao sem pesoComo a desamparada plumasubo ao reino da lnconstanclapara alojar a palavra inquietaNa distancia que percorroeu mudo de serpermuto de exlstenclasurpreendo as homensna sua secreta obscuridadetransito par quartosde cortinados desbotadose nas calcinadas rnaosque esculpiram a mundoestrerneco como quem desabotoaa primeira nudez de uma mulher

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Manha

    Estoue num breve instantesinto tudosinto-me tudoDeito-me no meu corpoe despeco-rne de mimpara me encontrarno proximo olharAusento-me da mortenao quero nadaeu sou tudorespiro-me ate a exaustaoNada me alimentaporque sou feito de todas as coisase adorrneco onde tombam a luz e a poeiraA vida (ensinaram-me assim)deve ser bebidaquando as labtos estiverem ja mortosEducadamente mortos

    Palavra que desnudo

    Entre a asa e a voonos trocarnoscomo a docura e a frutonos unimosnum mesmo corpo de cinzanos consumimose par issoquando te recordapercorro a imperceptivelfronteira do meu corpo

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    e sangronos teus flancos doloridosTu es 0 encoberto ladoda palavra que desnudo

    Despedida

    Aves marinhas soltaram-se dos teus dedosquando anunciaste a despedidae eu que habitara lugares secretose me embriagara com os teus gestosrecolhi as palavras vagabundascomo a tempestade que engole os barcosporque ama os pescadoresImposslvelsepararmo-nosagora que gravaste 0 teu saborsobre 0 subltoe infinito parto do tempoPor isso te tocono grao e na ervae na poeira da luz claraa minha maoreconhece a tua face de salE quando 0 mundo suspiraexaustoe desfila entre mercados e ruaseu escuto sempre a voz que e tuae que dos labtosse desprende e se recolheAli onde se embriagamos corpos dos amanteso te ventre aceitou a gota iniciale um novo habitanteenroscou-se no segredo da tua carneNesse lugarencosta mos os nossos labiosa funda circulacao do sangueporque me amavaseu acreditava ser todos os homenscomandar 0 sentido das coisasafogar poentesdespertar seculos a frente

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    e desenterrar 0 ceupara com ele cobriros teus seios de neve

    Saudades

    Magoa-me a saudadedo sobressalto dos corposferindo-se de ternurasol-me a distante lembranc;ado teu vestidocaindo aos nos 50S pesMagoa-me a saudadedo tempo em que te habitavacomo 0 sal ocupa 0 marcomo a luz recolhendo-senas pupilas desatentasSeja eu de novo a tua sombra, teu desejo,tua noite sem rernediotua virtude, tua carenclaeuque longe de ti sou fracoeuque ja fui agua, seiva vegetalsou agora gota trernula, raiz expostaTrazde novo, meu amor,a transparence da aguada ocupacao a minha ternura vadiamergulha os teus dedosno feitic;o do meu peitoe espanta na gruta funda de mimos animais que atormentam 0 meu sene

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Ser, parecer

    Entre 0 desejo de sereo receio de parecero tormento da hora cindidaNa desordem do sanguea aventura de sermos nosrestitui-nos ao serque fazemos de conta que somos

    Para ti

    Foi para tique desfolhei a chuvapara ti soltei 0 perfume da terratoquei no nadae para ti foi tudoPara ti criei todas as palavrase todas me faltaramno minuto em que falheio sabor do semprePara ti dei vozas minhas rnaosabri os gomos do tempoassaltei 0 mundo

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    e pensei que tudo estava em n6snesse doce enganode tudo sermos donossem nada termossimples mente porque era de noitee nao dormfamoseu descia em teu peitopara me procurare antes que a escurldaonos cingisse a cinturaflcavarnos nos olhosvivendo de um 56 olharamando de uma 56 vida

    Fundo do mar

    Quero vero fundo do maresse lugarde onde se desprendem as ondase se arranca mos olhos aos coraise onde a morte beijao Ifvido rosto dos afogadosQuero veresse lugaronde se nao vepara quesem disfarcea minha luz se revelee nesse mundodescubra a que mundo pertenco

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Morte silenciosa

    A noite cedeu-nos 0 instintopara 0 fundo de nosimigrou a ave a lnquletacaoServe-nos a vidamas nao nos chega:somos resinade um tronco golpeadopara a luz nos abrimosnos lablosdessa lncuravel feridaNa suprema felicidadeexiste uma morte silenciada

    Arvore

    cegode ser raizlrnovelde me ascender caulemultiplede ser folhaaprendoa ser a rvoreenquantoiludo a mortena folha tombada do tempo

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    Sotaque da terra

    Estas pedrassonham ser casaseiporque faloa lingua do chaonascidana vespera de mimminha vozficou cativa do mundo,pegada nas areias do indicoagora,ouco em mimo sotaque da terrae chorocom as pedrasa demora de subirem ao sol

    Quissico

    1.Deixei 0 solna praia de QuissicoDe brucossobre 0 verseeu deixei 0 Solna extensao do tempoMolhando, quase liquido,o dia afundava

  • 5/10/2018 Mia Couto Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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    nas fundas aguas do indicoA terrase via estar nualembrando, distante,seu parto de carne e lua2. Nao 0 passaro: era 0 ceuque voavao ombro da terraamparava 0 diaA luztombava feridapingandocomo um pulso suicidaum minhas ocultas asas

    Pequeninura do morto e do vivo

    o mortoabre a terra: encontra um ventreo vivoabre a terra: descobre um seio

    * * *