mia couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · mia couto e as literaturas africanas...

22
RCV,.¶ía de Filología Románica. Anejos ISSN: 02I2-99~X 2001, II: 85-205 ISIRN: 84-95215-18-? Mia Couto e as literaturas africanas de un gua portuguesa JosÉ PIRES LARANJEIRA Universidade de Coimbra A CONSTRUCAO DO IDEAL NACIONAL EA CONSTITUICAO DE NOVAS LITERATURAS EM ÁFRICA A fonnayáo eo desenvolvimento das literaturas africanas de língua por- tuguesa, desde o primeiro livro impresso, em 1849, até á actualidade, pas- saram pela constru9ao do idea] nacional no discurso. No discurso literário, o nacionalismo foi a antecipa~áo da nacionalidade, modo específico de a es- crita se naturalizar como própria de urna Nagáo-Estado cm germina~áo. A consciéncia nacional, no discurso literário, atravessou, assim, diversos es- lidios de evolu~áo, desde meados do século xix até á actualidade. Encontrando-se o estudo das literaturas africanas ainda numa fase de re- conhecimento e estabi1iza~áo, a divisáo em fases estético-literárias, mais do que em rela9ao a outras literaturas decisivamente estabelecidas, apresenta- se como muito provisória, isto é, mais como tentativa de teoriza9áo basca- da quer nos factos textuais e contextuais, quer noutras teorizayóes náo me- nos precárias. Refazemos aqui o esquema periodológico (de fases> que empreendemos no manual escrito para a Universidade Aberta (de Portugal), intitulado Literaturas africanas de expressño portuguesa (¡995). Podemos estabelecer duas épocas fundamentais: a Época Colonial, desde o aparecimento de esparsos e escassos textos, antes de 1849, náo ne- eessariamcnte Jiterários nem africanos, mas relacionados com Africa, até ás independéncias dos países, cm 1975; a Época Pás-colonial, em que a lite- ratura se vai libertando da ¡el da vida colonial, para se assumír como deci- sivamente emancipada, desde as independéncias, até á actualidade. Tendo cm conta essas duas grandes divisijes periodológicas, de carácter histórico e literário, mas sobretudo desde 1849, quando foi publicado o primeiro liv- 185

Upload: lyduong

Post on 23-Nov-2018

249 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

RCV,.¶ía de Filología Románica. Anejos ISSN: 02I2-99~X2001,II: 85-205 ISIRN: 84-95215-18-?

Mia Couto e as literaturas africanasdeunguaportuguesa

JosÉPIRES LARANJEIRA

UniversidadedeCoimbra

A CONSTRUCAODO IDEAL NACIONAL E A CONSTITUICAODE NOVAS LITERATURAS EM ÁFRICA

A fonnayáoe o desenvolvimentodasliteraturasafricanasde línguapor-tuguesa,desdeo primeiro livro impresso,em 1849,atéá actualidade,pas-sarampelaconstru9aodo idea]nacionalno discurso.No discursoliterário,o nacionalismofoi aantecipa~áoda nacionalidade,modoespecíficodea es-crita se naturalizarcomoprópriade urnaNagáo-Estadocm germina~áo.Aconsciéncianacional,no discursoliterário, atravessou,assim,diversoses-lidios de evolu~áo,desdemeadosdo séculoxix até á actualidade.

Encontrando-seo estudodasliteraturasafricanasaindanumafasede re-conhecimentoe estabi1iza~áo,adivisáoem fasesestético-literárias,mais doqueem rela9aoa outrasliteraturasdecisivamenteestabelecidas,apresenta-secomomuito provisória,isto é, maiscomotentativade teoriza9áobasca-da quernosfactos textuaise contextuais,quernoutrasteorizayóesnáome-nos precárias.Refazemosaqui o esquemaperiodológico(de fases>queempreendemosno manualescritoparaa UniversidadeAberta(de Portugal),intitulado Literaturas africanas de expressñoportuguesa (¡995).

Podemosestabelecerduasépocasfundamentais:a ÉpocaColonial,desdeo aparecimentodeesparsose escassostextos, antesde 1849,náone-eessariamcnteJiteráriosnemafricanos,masrelacionadoscomAfrica, atéásindependénciasdos países,cm 1975; a ÉpocaPás-colonial,emquea lite-raturase vai libertandoda ¡el da vida colonial, parase assumírcomodeci-sivamenteemancipada,desdeas independéncias,até á actualidade.Tendocm contaessasduasgrandesdivisijesperiodológicas,de carácterhistóricoe literário, massobretudodesde1849,quandofoi publicadoo primeiro liv-

185

Page 2: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

,loséPijes Laran/cira Mio Catite e os huraturas afruanas de ‘iii gua portuguesa

ro impressocm África (maL precisamentecm Angola\ Espontaneidadesda miii ha alma, poemasde Mala Ferreira,consideramosquese sucedorarnseis fases.

Consideremosaliteraturaangolanacorno paradigmática,isto é, comoum modelo de irradia§aoapartir do qual podemosestabelocerfasesapli-cáveis as ontras,evidentementedc um modo náomecánico,tendo cmatenyáoquecadaurna tem o senpercursoespecífico,se bern que no con-texto colonial de dominioportugués,interessandodelimitaros contornoscornuns que, textual e contextualmente, as explicam e aproximam,tantocomodasliteraturasportuguesae brasiloira,maisdo quede outras.Trata-seaqui de um esquema,de umapropostamulto esquemáticade sintetiza~áodeprocessos,movimentose tendéncias.aindasemfazeraproxima9ñeseficazese pormenorizadasaosperíodosda literaturabrasileiraemesmoportuguesa.Duascaracterísticasnospermitetal operayiiotendopormodeloa literaturaangolana:por um lado,a quantidadeevariedadedeobras;por ontro. acon-tinuidadede produgáoao longodasdécadas,sobretudoa partir dosanos30dosteséculo.Álém disso, tantoMoyambiquocomoCaboVerde,sobretudoestosespaQos,mastambémSáoTornée Príncipe(e náoa Guiné-Bissau,cmrazáodo sistemáticodesertocultural, segundournaeoncepyáomoderna),semprequea sua produ~áose revelon inovadora,tcra() contribuidoparaurnamodit5ca~áodo sistemaliterário na suapermanenteovoluyáo.Náo seperderáde vistao faetode CaboVerdeconstituirum arquipélagomuitodi-ferenciado,impondo,portanto,urna dialécticadasfasesparcialmentecmeonjunqáo,mas, sobretudo,cm desfasamento(cm notório afastarnento’?)corn as dosoutrosespayos.E normalqueo inicio dasfasessojaconsidera-do coma publica~áode um livro fundamentalÑ náosomontepor intermé-dio do um merotexto isolado),do urnaantologia,de urnarevistaou senipreque se declarequalquernovaalteray~oda ordoni estética.Assim se com-preendequeo fim dasfases(suaextin9áoou exaustáo)surjaatravésda pu-blica~áode uní dorradeirolivro, maspodendoconsiderar-sequeas carac-terísticasdossafasesobrevivam,num livro inoxpressivoou cm textosdispersos,paraalémdo surgimontode ontra ordona~áoestético-literária.Convémaindatercm contaque, por exomplo,certosprocessosrealistas,comoa práticada descri~áoobjectivanteou a inclusaodo frasesdo umaun-guaafricanano texto cm portugués,característicosdo oltocentisnio,saoin-tensificadose passama predominarcm cortosautoresou movímontosdoséculoxx, podendo,por isso,concluir-seque tragosdo regionalismo,docasticismoen da africanidadepassarama sertomadoscomodeterminantesde novasestéticascomvistaao aprofundamentonacionalistadostextos.

RcVida dc IdoIo~’ia Rorndn <a - áncio~2001.II: 185-205

186

Page 3: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

JoséPites Lwan¡eira Mía Coato e as literaturas alr¿c-anas de ¿¿agua portuguesa

A primeira fase, estendendo-se,cm Angola, até 1881,antecedendo,portanto. a saidada noveletaNgarnutúri (1882),de Alfredo Troni, carac-teriza-sepeloBaixo-romantismo(aplicamosaqui.parausogeneralizado,aexpressáode FátimaMendongarelativaa Mo9ambique),de claraadopyáoportuguesa,emboratambémcom contributosfrancesese ingleses.O seupopulismocultural podechamar-seexógeno,namedidaem queas apetén-ciaspopulares,em formase temas,dizemrespeitoáheran~acultural lusía-da, apresentadacomoparadigmaa seguircom inequívocodeslumbramen-to, cedendoo passoás coisas angolanassomenteem termos deencomiásticareferencialidadeespacialou onomástica,náopropriamenteso-cial, históricaou política,o queapenasaconteceriamais tarde,por exemplo.coma Mensagem.Dealgurn modo,é como se urnaideologiade apreyopeíaaristocracia(visível no agradocomquese dedicarnpoemasao grupopos-sidente.comdeferénciasparaos monárquicos)convivessedescomplexa-damentecom,porexemplo,formaspoéticashauridasnasbarcarolasvene-zianas,nos lieds germánicosou nasmodinhasbrasileiras,ao mesmotempoquese usaa medidapopularportuguesada redondilhamajor.

na segunda rse, que se espraiapelasdécadasde 80 e 90 do sécu-lo xix, tantoem Angola comoem CaboVerde,o Realismo,igualmentedeinspirayáoportuguesa,deixaas suasmarcas,no casodaqueleterritório,atra-vés da notória atitudequeirosianade Alfredo Troni. Tendo em aten~áoqueo negro surgetratadonos textos, se bernquedo pontode vistade umcomplexode inferioridade,enquantoindividuo com possibilidadesde as-censáosocial,com frequénciacomofigura central(em poemasou na no-veletaMga mutúri), chamamosaestafasea do Negro-realismo(termocriado para indicar urna realidadeliterária específicade África, bastanteaproximadados Negrismosamericanos).Sob o signo da ConferénciadeBerlim, estigmacolonial quemareará,aferro e fogo,o continenteafricanoatédepoisda PrimeiraGuerraMundial, estafase,quevai sensivelmenteaté1900,é co-naturalá «imprensalivre» e assumeo negro(maisparticular-mente,a negra)comopersonagemou figura que aspiraá integrayáonaso-ciedade(nAo o conseguindointegralmente,por preconceitoon macaba-mentodo processo).Alfredo Troni e Cordeiroda Matta,ern Angola, CostaAlegre.em SaoTomée Príncipe,ou CamposOliveira,cm Mo9ambique,re-presentamessafacetade referir a cor da pelecom preconceito,0w entáo,sema assumirdescompiexadamente,mesmoqueseverifiqueurna acuito-rayáoque, cm principio, conduziriaa urna hipotéticaintegra9áoplena.Numaconcep~áoirrestrita, mas náoecléctica,de Realismooitocentistaaplicadoás colónias,o Negro-realismoabrangeefeitosestilísticose una-

Revivía it Filología Romúnha. Anejos2001. II: 1 85-205187

Page 4: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

JoséPiresLatan¡tira Mía Conte) e as barataras atrie.-anas de lítigu¿.I portuguesa

géticospertencentesao território do parnasianismo,do simbolismoe do de-cadentismo,entendidosestescomomerosepifenómenosna eontinuayáodopredominiodaquele.

Segue-sea terceirafrise, do RegionalismoAfricano. No inicio do sé-culo xx, em 1901,cm Angola,a intervenyáocolectivade um grupode in-telectuaisque se manifestoucontrauní artigo colonialistade jornal, ren-nindo colabora~óessob o título de Vo: JAngo/a - clamandono deserto(1901),abriuurnafrentede reivindicayáoda igualdadee fraternidade,pre-cursoradosdireitoshumanos.definível comonativismo (inicio do Regio-nalismo),querdizer,de uma posturadecisivamenteconscientede ansetosautonomistas,reagindoás guerrasde ocupayáomovidaspeíapoténciaco-lonizadora.

Qualquermodode RegionalismoAfricano (1901-1941),sejao nativis-mo ou o ¿ipicismo,é tambémuní modode africanidadedosprimeiros mo-mentos(por localistaqueseja),antecedendoadecisivaassunyáoda africa-nidade negritudinista,esta muito mais radical segundoa práticapan-africanistade Césaire,Du Bois e Padmore.

O primeiro RegionalismoAfricano,o do na¿ivismo,visível na «OdeaAfrica» e na actividadejornalísticado Manducodc PedroCardoso(CaboVerde),em «Surgeet ambula»,«Pésda história»,e outrospoemasde Ruide Noronha(Moyambique),em poemasváriosde Marcelo da Veiga (SáoTomée Príncipe),ou cm Anlónio de AssisJúnior(Angola), transforma-senumasubtil, masdecidida,priníeira«insurgéncia»anti-metropolitana.Ca-racteriza-seideologicamentepor mii autonomismosupráclassista,comori-gemnos ideais republicanos,may$nicos.logo se associandoa um pan-africanismomoderado,permitindo aceder,por essamistura subversiva,ámodernidadepossívcl,vazadanum conservadorisunofomul e retórico.

Essa«insurgéncia»intelectualsofreum rude golpecom a ditaduradoEstadoNovo, chefiadapor Salazar,quemarcao fim da chamada«impren-sa livre» e abreum lapsode tempo,dc 1926 a 1941,atreitoa dois tipos detip iCiSíflO.

Por urn lado,ternosurn tipicisino/olc.ior¡.s¿ae cosiumbrista.evocativo,reconstituidorda vida culturalpopularurbanaon do mato,de quea obradcOscarRibas (Angola) seráo paradigmacom inusitadosseguidoresemtemposmais revolucionários.Este tipicismo de cariz etnográficotem ocontrapontoevasionistae mesmoexótico. além de ideologicamentecolo-nialista, napoesiade TomazVieira da Cruz(Angola). Noutros,como bAoAlbasini e CaetanoCampo(Moyambique)ou aindanaquelesdo chamado«período hesperitano»de Cabo Verde(com JoséLopese outros),se en-

Re [vio de Filología Románh o. Ane ¡os2001,11:355-205 188

Page 5: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

losé Pijes Laran ¡«ira Mía Couto e as literaturas alije anas de ungua portuguesa

contraráo apelo,aindaevasivoe esquivo,de urnapeculiaridadetelúricaehumanaque se desejademarcadorada colonialidade,masnAo o ensejandoem pertinéncia.E urnaestéticada evasáo,da hiper-idealizaqáodo real, tí-pica, cm África, de urn regionalismo,conquanto«útil», sobretudoestiliza-dor, turí~tico, parausarurnametáforadepreciativa,ou seja,inconsequentequantoao nacionalismo.

Poroutro lado,deparamoscomum outrotipicismomaislocalistae re-gionalista,portanto,telúrico, de integra~óocontinental(de africanidade,sim, masnAo necessaríamentemanifestae veernente).a queandaassociadoalgum orguiho negréide,alguma,ténue,«personalidadeafricana»,que sepodecaracterizarpoliticamentecomoprotonacionalista,de um geo-estra-tegismode grandealcancecultural (veja-seo exemploda Claridade—1936 cabo-verdiana)ou, pelomenos,propondomodestasvias ideolo-gicamentereformistase esteticamenteconservadoras,como no casodaprimeirapoesiade GeraldoBessaVictor (logo depoisoptandoporcontri-buir paraumaestéticada luso-tropicalidadefreyriana). Estarnos,no casocabo-verdianoda Claridade, peranteumaverdadeiracriagáode crioulidade(de assun9áode umadiferen9anAo-portuguesa),ou, em direc~áodistinta,deentradano funil de estrangulamentohistórico (daestreitaportugalidade).

A quartajk¿se, do Casticismo(1942-1960),surgiu na sequénciadeaprofundamentoda opyáoanti-colonial,comocoroláriológico de umaac-tividade literária quecompreendiao esforyode consciencializayáocomoservi~ocívico ou, se é possívela contradigáo,enquantoética social eomfundamentosna históriae na cultura imperecívelde um poyo. A suaintro-duyáo verifica-se com o livro do sáo-tomenseFranciscoJoséTenreiro,Jiña de nome santo (1942), integradona colec~áocoimbrA do Novo Can-cioneiro,no movimentodo Neo-realismoportugués.O Casticismo(termoqueadoptamospeíaprimeiravez) pode,entáo,serdefinível comoa procu-ra da permanenteheran9adospoyos,da suaintra-história,profunda.impe-recível,dialéctica,criadorae transformadora,paralá do efémero,segundournaconcep~Aopróximadaque Miguel de Unamunonoslegounosseusen-saíossobreo casticismocastelbanovisto como tradiyáo nAo académicaeerudita,maspopulare antiga.carregadade futuro.

Num primeiromomento,esseCasticismoafinal tAo ansiosamentebus-cado,apresentou-sesobas vestesdo Sócio-realismo(1942-1950/60)basca-do no marxismoou na sua versáoacrescida(a do marxismo-leninismo),em que,querem Portugal,quernascolónias,foi determinanteo papelde-sempenhadopor activistasbrancosconotadoscom o Partido ComunistaPortugués.O Sócio-realismo(designa~áorelativaás literaturasafricanas

189 Rcristo dc Filo/ogía Romání, a - A Ilcjos

200111: ¡55-205

Page 6: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

J<)St’ Pi res Lacan/nra Mio (iciulo e as lUcíaturas at¡-íc-a;ías dc un gua portuguesa

igualmentecunhadapornós no presentetrabalho)foi a expressáoafricanade um modode renovayáoda heranyanegro-realista,associadasobretudoao queo Neo-Realismoportuguéspossibilitoue aindaá absoryáodo Mo-dernismoe do romancesocial do Brasil. NAo temosconhecimentode indi-ciosde queo Naturalismobrasileiro(sobretudoeste,peíasuapujanya,e nAoo portugués)tenhasido recebidoatempadaunentepelos africanos.Nin-guémpareceterdadopcI’ O corti(o, de Aluisio Azevedo,A data aquenosreportamos.Com o Sócio-realisnio,atravessado.de imediato,peíaNcgri-tude,estáocm foco as classese o mundodo trabaiho,da produyAo de ri-quezascolonjais(com seuscontratados.serviyais,agricultores,operários,mastambémpastores,alémde gruposrestrilose outros,marginais).atravésde processosdiscursivosvirados para a sugestáode concretudesocial equotidiana,cm queo pormenor,a noayáodescritiva,tení granderelevo.Bastareferira segundafaseda obrade CastroSoromenho(Angola),apri-meira faseda obrade AgostinhoNeto e António Jacinto(Angola).de JoséCraveirinha(Moyambique)e de FranciscoJoséTenreiro (SAo Tomé ePríncipe),ou a obradc Luís Romanoe Teixeirade Sousa(CaboVerde),ede Noémiade Sousa(Moyambique).paraverificarmosaassunyáode umaposturade classeproletáriaquetendea colar-seApele maisgeneralizanteda categoriado colonizado.

Ocolonizadoé urnacategoriaaindamais gencíalizantedo quea<lo ne-gro, mas,por isso,osescritoresafricanosde lííígua portuguesa,nosanos50.assumiramaNegritude(1949-1959)comorealizayáocultural do pan-afri-canisnio,sobretudoos queestavammorandofora de África, cultuandocomorgulhoa raya,asculturastradicionais(tribais).relativasaomato e aocampo,numaestéticado retomo ideal ás origcns,de reencontrocomunípassadograndioso,utopiadafelicidade,A sernclhanyade uníarecuperayáorousseauníana.Agostinlio Neto, em Angola,AguinaldoFonseca,em CaboVerde, Noémiae Craveirinha,cm Moyaníbique.eTenreiroeTomásMe-deiros,cm SAo Tomée Príncipe.exemplificamesscmovimentodc aproxi-mayáogenuinaao poyo africano e suaheranga.de uníamanciraracistaami-racista, paraglosara cxpressáode Sartre.no prefácioA antologiadcSenghor.

Inaugura-seumaquinta ¡¿¡se, de Resisténcia(1961-1974),com a en-tradana décadadc 60 e o inicio da luta armadade libertayáonacional,des-poletada,cm primeiro lugarcm Angola, passandoa ser produzidaurna li-teraturanAo de todo circunstancial,primeiro angolanae. depois,moyambicanae guineense,por escritorestantocom inferiornivel de esco-larizayAo comocomestudossuperiores,cuja oricntayáoideológicae polí-

Pci-loo dc Filología Románá a Anejos200111:155-205 190

Page 7: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

Mia Coato e as literaturas africanas de fingua portuguesaJosé Pires Laranjeira

tica éexpressamdnteanti-eolonialista,queengloba,paraalém deum espe-cífico corpus de guerriuia,também,a partir dc 1969,urna temáticae umdiscursode Ghetto,relativosestesao curtoperíodofinal do colonialismoportugués.Essaliteraturacria textualmentea nacionalidade,antesda suaexisténciapolítica.

Tornandoa designayáode Resisténciade BarbaraHarlow, já usadapor nós no livro Literaturas africanasde expressáoportuguesa(1995,p. 227),neta incluirnos,sublinhe-sede novo, nesseprimeiro momento,urnatemáticade guerrilha, cujascaracterísticas,paraalém dasjá men-cionadas,sáoo posicionamentoanti-imperialista(anti-norte-aníericanoso-bretudo,mastambémanti-apartheid), o nacionalismo(a declaradafor-ma~áotextual dana~áo,aliásjá antecipadacm textosdo Casticismo,porexemplo,do angolanoAgostinhoNeto e do moyambicanoJoséCravei-rinha), aespacializagáodas«zonaslibertadas»e do exilio, comrecursosdiscursivosprovenientesdo panfletarismo.Corno representantesdesscdiscursopoéticoe romanescoencontramosPepetelae Costa Andrade,entreoutros,cmAngola, KaoberdianoDambará,cmCaboVerdee Guiné-Bissau (quando as duas colóniastinham urn mesmomovimento de Ii-bertayáoactuandonestaúltima), Sérgio Vieira e JorgeRebelo, cmMoyarnbique.

Na segundametadedos anos60, nascidadescoloniais,sob urna ím-placávelcensura,conseguemalgunsescritorespublicar,cm periódicose Ii-vros, certostextosquecamuflamalusdesrevolucionáriascom a capadomais inocentelirismo amoroso,telúrico ou festivo. O angolanoArnaldoSantos,corn Tempode munhungo(1968), livro de crónicas-contos,é urndos primeirosa aludir aotempocinzento,colonial-fascista,que,entáo,eradado viver. Tratava-sede urna estratégiatextual de ghetto, cm que,nohinterland,osescritoresaludiamárevoltaindividual (cm conotayáocomarevoluyáocolectiva),ás vezessoba máscarade um existencialismomiti-gado,estranho,quaseincompreensívelnessecontextode leitura. Peíapri-megavez, houvesinaisda leiturado Concretismoou do movimentoPráxisbrasileiros,cm renovagáoformal compreendidanumaestéticada sugestáoeda alusáo,de quesAo exemplossignificativos um Joáo-MariaVilanova,David Mestre,JofreRochae JoséLuandinoVieira, cm Angola, CorsinoFortes,cm CaboVerde, e Luís BernardoHonwanae SebastiAoAlba, cmMoyambique.Sintomáticos,os livros de poemasde David Mestre,Crónicado gheuo(1973),cdc JofreRocha,Tempode cicio (1973).

Passa-seá sextaftse, decisivamentediferente,da Contemporaneidade(1975-1998),comas independénciasdosquatropaísescm 1975 (aGuiné-

191 Rcvi,vla dc Filología Románica - Anejos2001 II: 185-205

Page 8: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laran¡eira Mía (‘cuto e as literaturas a/ch-anas de fin gua portuguesa

Hissaudeclararaa sua,$1 ern 1973),acarretandournatransformayáoradicalnasestruturasde poder,dasociedade,daeconomiae da cultura,cm queseverificou umamudanganáomenosradicalno percursodasliteraturas.

Caracteriza-setal fase,numprimeiromomento(1975-1985),cm queopatriotismo inflarnao estroliterário eos ánimoscívicos,por nelavigorarcertoestalinismoideológicoe estético(com as nuancesprópriasde cadapaíse sobremodopelocontextoafricano pós-colonial),cm que,por vezes,se eombinamloashagiográficasaos heróisda revoluyáoe cánticosdeexortayáocontraos agressoresinternoseexternos.estesmediandoguerrascivis atravésdaqueles.Estaestéticado orgulhopátrio tem exprcssaonurnJorgeMacedo,no romanceGeografia da coragem(1980),ou napoesiadeGarciaBires (ambosde Angola), tantocomona poesiade Rui Nogarou nanarrativade Lina Magaia(ambosde Moyaínbiquc).

A superayáodos traumaspolíticos, ideológicose literários tornou-sepossívelsomenteapós a primeiradécadade independénciapolítica (re-corde-sea questáo,empoladaou náo, corn ou sern adequayáoteórica,dasubservienciadas literaturasafricanasperantemodelosalienígenas,euro-peusou nAo).

Assim,asupera~áodo estigmacolonial, a pós-colonialidadeestética(1986-1996),ocorrecom o degeloda GuerraFria levadaa quentea al-gunspontosdo planeta.Fundamenta-se,por um lado, numareacyñoanti-jdanovista,anti-comunista,e, por outro, na correlativaAnsia de demo-cratismoburgués,gerandouínaatomizayáo,repercutindocm variadasfragmentayóesesteticistas(de tipo neo-simbolista,neo-concretista,neo-surrealista,etc.),queo existencialismoou o misticismoajudararnacon-solidar.

Seria interessante,noutro cspayo,destrinyara medidaciii queos re-vérberosde esteticismosváriossAo tambéníestilhayosde urnapropensñoestéticaadvindado naturalmulticulturalismode baseétnicadcssasnovasnagoese sociedades.Pensamos,aavaharpeíaobrade Gennanode Almei-da e de VascoMartins (os dois de CaboVerde)ou de Mia Couto, EduardoWhite, Luís CarlosPatraquim e Nelson Saúte(todos de Moyarnbique),tantocomodc JoséEduardoAgualusaeJoAo Maimona(ambosde Angola),quese trata, finalmente.de exorcizarosderradeirosfantasmase medosdecruentasguerrase ameagasdeperdade independéncia.para,nalgunscasos,comocm Tvlaimona, partir cm buscade discursosoriginalíssimosno con-texto dessasliteraturas.

Por outro lado, escritorescomo Alto Bonfim e SacramentoNeto (deSAo Tomé e Príncipe)persistemna revisáocrítica dos fantasmase das

Reí-isla oc tito/oída Roníánií a - Anejos211111 - II: 1 55—2(35 192

Page 9: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

Mia Couto e as literaturas africanas de fin gua portuguesafosé Pires Laranjeira

arneayasconcretas,decertopor o presentereavivartraumasdo passado,en-quantoum JoáoMelo (de Angola), sobretudoeste,alia a cxperimentayAooriginal aurnaquase-notíciado quotidianoea, aindaesempre,exasperan-tes retomasde obsessóes,quemuito bernconhecemos,do tempocolonial.

Podemosdizerque,no momentocm queescrevernos,se assistea umaliquida~&o (ao repensarliterário) dos antigosmitos, sonhos,realidadeseutopias,estandoa escrever-se,na narrativa,um novo capítuloda históriadessascinco literaturas,queé, possivelrnente,o da perpíexidadee da in-certezacontemporáneas,verificável nasobrasde JoséEduardoAgualusa,Germanode Almeida, Pepetelae Mia Couto. Restasaber,face ás con-tingénciase solicitayéesda instituiyáo literária,nacontemporaneidadepós-colonial. se as literaturasafricanasse deslurnbraráocoma sociedadedo es-pectáculoou se bAo-de insereverna continuidadede um casticismointemporal,tendoa capacidadedeengendrare de expressarnovasutopiaseesclarecirnentos.

MIA COUTO,UM RENOVADOR DA LITERATURAMO~AMBICANA

Mia Coutonasceucm Moyambique,na Provinciade Sofala(zonadeimplantayáosobretudode poyossenae shona),mais propriamentenaci-dadeda Beira,decorriao anode 1955.É tilbo do jomalistae escritorFer-nandoCouto,nascidocmPortugal(cm Rio Tinto, arredoresdo Porto,masquepassouumapartesubstancialda suavida cm Moyambique).A obradopai al~unslivros de poesia—estárelacionadatambémcorn aquelenovelpaísdo Indico.

Na suaterra natal,Mia Coutocorneyoua escrevere publicou os pri-meirospoemasno Noticiasda Beira, aos 14 anos.Oexemplopaternomo-tivou-o paraas primicias literárias (como explicou num depoimentode94) e, maistarde,parao jomalismo,masacabariapor seconfirmar funda-mentalmentecomovocacionadoparaa crónicae o conto. Entretanto,aba-lanyou-seá decisivaprova dejó/egode todo o prosadorde ficyáo, o ro-mance,cm que se estreou,cm 1992, com assinalávelmestria,oferecendo-nosurn texto de primeira grandeza.Entre a estreiaabsoluta(1969)e o primeiro romanee(1992), ficou um percursode descoberta,deaperfeigoamentoda técnica,de atracyáopeíaplasticidadee capacidadedeinovagAocm linguaportuguesa.

Aos 17 anosfoi viver parao Maputo,ondepassoua cursarMedicina,queintcrrompcu,cm 1974,trocando-apelo jomalisrno,acedendoa urnaso-

193 Rn-i.via dc Filología Ro,nánica - Ane¡os2001,11: 185-205

Page 10: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pi,es Larau¡eií-a Mía Cauto e os Iiteí-atu,-as africanas de lmn gua potro guesa

licitayAo dos novostempos,de profundamudanyapolítica,a carninhoda in-dependéncia.Integrado,cm plenoesforgode transiyáoparaum novo mun-do, foi directorda Agénciade Informagáode Moyambique(AIM), da re--vista semanalTempoe do jornal Noticias.scm que tivessepassadopeíatarimbade repórter.Em 1985,dandonovo rumo ásuavida, voltou á Uni-versidade,paraterminaro cursode Biologia, tendosido, mais tarde,res-ponsávelpeíaconservagáoambientalda líha de Inhaca.

A entradano universodaescritae da publicayáo,repita-se,fez-seatra-vésdosjomais, comofoi normalcm Africa (no seucaso,seguindotambématradiyAo paterna),desdea oitocentisladécadade40, visto quea escolari-zayáoeraacessívelapenasaumafaixa muitíssimoreduzidade privilegiados(note-sequehavia cercade um ou dois por cento de alfabetizadoscmMoyarnbiquc,no inicio dosanos60 desteséculo).

Estreou-secom urn livro de poemas,Ram de orvalho(1983),a quese se-guiram dois livros de contos, Vocesanoiec.idas(1986) e Cada homeméurna raya (1990),o primeirodestesgranjeando-RíenotoriedadetambémcmPortugal enoutrospaíses,nomeadarnentedevido ás primeirastraduyées.parainglés e italiano. Sucessmvamente.novos livros acabarampor impó-locomoum dosescritores—aindajovem—---maisdotadosda novagerayáo.Pu-blicou umarecolbadccrónicas,algumasdelasdevendojustamentesercon-sideradascontos,que intitulou Cronicando(1988). tendoganhoo PrémioAnual da Crónicano seupaís.Seguiu-seo romanceTerra sonámbula(1992),muitoansiado,comoconfidenciaraparao retratoquedeletrayaraajornalis-ta e professorabrasileiraCremilda Medina: «ocupa lugar de destaqueepaixáo o romanceque um di-a editará‘.» Depois disso,publicou Estóriasahensonhadas(1994),o romanceA i’aranda do/hingipani (1 996),Cantosdonascer da terra (1997) e, porencomendadaEXPO 98 (a última ExposiyáoUniversal,realizadacm Lisboa),anarrativaintituladaMar nwquer (1997).

Entreosescritoresda novagerayáoque poderáovir a ombrearconíele,cmquantidadede obraereconhecimentointernational,porquequalidadenAo[hesfalta, inclui-se,desdelogo, tíunbémo cabo-verdianoGeimanode Almeidae o angolanoJoséEduardoAgualusa,quejá usufruemde urnaprojecyáoextra-muros,notadamnentecm Portugal,comeyando,entretanto,a serdivulgados,paraalémdo Brasil, forado espayoda lusofonia.Os moyambicanosUngulaniBa Ka Khosa,SuleimanCassamo,Luís CarlosPatraquim,EduardoWhite eNelsonSaúteeo angolanoJoáoMaimona.por variadasrazóes,consoanteos

In Son/ja manía¡ja Atico Sáo Paulo. Epopein. 1987 p 62

R e-isla dc Filología R omoníÉ-íí. Anejos2(101. [1:185—205 194

Page 11: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

JoséPires Laranjeira Mía Cauto e as literaturas africanas de fingua portuguesa

casos(singularidade,inovayAo, pr~mios, traduyóes,visibilidade comunica-cional,etc.),hilo-deocuparum apreciávellugarde destaque,aseudevidotem-po,se secomprovarernas potencialidadesentretantoexpostas.

A GERA~AO MO~AMBICANA PÓS-COLONIAL

Mia Coutosurge,na décadadc 80, como um renovadorda literaturamoyambicana.Essarenovayáoé partilhadapor outrosescritores,desdeantesda independénciada colónia portuguesa.Atente-senasnarrativasdeLuis BernardoHonwana,cm Nósmatómoso cóo-tinhoso (1964),no surgi-mentodc urna poesiaradicalmenteengagée, circunstancial,de guerrilha(nosanos 60) ou nos cademosCaliban (inicio dos anos70), magníficosexemplosda diversidadede propostasliterárias, culturaise ideológicas.Mas é, dc facto, nessadécadafuleral de 80 que o processoliterário deMoyambique,de mancíradecisiva,sedesenvolve,alargae estabilizacomosistemaliterário institucionalizadoe reconhecido,tanto internacomoin-ternacionalmente.Bastarecordara fundayáoda AssociayáodosEscritoresMoyambicanos(AEMO), cm 1982,que se tornoueditorafundamentalnapromoyño dos seusassociadose, quantoaos novosescritores,a revistaCharrua, publicadacm 1984-86, com colaboragñesde Ungulani Ba KaKhosa,PedroChissano,JuvenalBucuane,Hélder Muteia, Marcelo Pan-guanae outros,e, alémdisso,apartirde 1984,as páginasda «Gazetade Le-trase Artes»da revistaTenzpo.A partir de entáo,pode-sefalar cm estadoadulto da literaturamoyambicana,no sentidode que,nAo sendoo Estado-nayaoaindaurnaformayáopolítico-socialadulta(conceptualmenteadqui-rida,generalizadae estabilizada),aquelao é enquantoformayAo culturaleideológicana qual se resolvemprovísoriamenteas contradiyóesentreoanalfabetismo,a confrontayáomilitar dapós-independéncia(guerrado Es-tadocontrao movimentoRENAMO) e a vontadede estabilizayáopolítico-cultural.

Mia ColMo, ao publicaros dois primeiros livros nos anos80 (coinci-dindo como reacendergeralda actividadetiteráriano país),resultantesdeurnaclaborayáoquandoestavana casados 20 anos,acaboupor se trans-formarno íconede urnanovagerayáoquedespontavaparaafirmar novasperspectivasdosactosliterárioseocuparo panteáodos laureadosou, pelomenos,instaurarurna nova ordem estético-literária.Hoje cm dia, essesnovosescritoresjá térn nome:EduardoWhite, Nelson Saúte,Luís CarlosPatraquim,UngulaniBa Ka Khosa,SuleimanCassarno,PaulinaChiziane,entreontros.

195 Rcvixia dc fllotog¿a Roí-mániía. Anejos2001.11:185-205

Page 12: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laran ¡«ira Mía Cauto e as fiteíaturas africanas de fingua paí-tuguesa

GÉNEROSLITERÁRIOS,REPRESENTA~AODO (NÁO) REALERECEP~AO

O primeiro livro queMia Coutopublicouerade poesia,a qualaté it in-dependénciapredominavasobreo romance,o conto ou o teatro.Durantemeio século,falou-seda tradiyáo poéticade Moyambique,afinal um eufe-mismoparanAo lembrardemasiadoa escassezda narrativa(tendocomoad-quirido queo teatrotem sido sempreaindamais raro).

Peíapoesiacostumamcomegartodososquese aventuramna literaturaousandoo romancequandoconquistammaisexperiéncia,calculismoe sa-bedoria.NAo há tipos de discursosinais fáceisdo queoutros, mase evi-dentequeum bom romancecustamaisa escreveraos 18 anosde idade(éaté improvável)do queumn razoávellivro de poemas,podendoesteprodu-zír-secm partescompletamenteautónomas,comoarte do fragmento.As-sim, comeyarampeíapoesiaas literaturasdeAngola, CaboVerde.Moyam-bique e SAo Tomé e Príncipe. Assim comeyou N4ia Couto: com urnadiferenya,a de que.desdelogo, aspiravait escritade uní romance.

O romanceimpóeao escritorum desafiode persisténcia,coeréncia,or-ganizayAoecomplexidade.Permite,por isso,a cxplanagáode problemáticasvariadas,quepodemsertratadascomamplalatitudee cópiade pormenores,comoqueaproximando-sedo conceitode exaustividade.O romanceé, deceito modo,o parenteficcionaldo ensaio.Nessaperspectiva,o primeiroro-mancede Mi-a Coutopermitiu-lhe construirunsmeandrossimbólicosdasconsequénciasda guerra,do desnortequeatingiu as populayñcsmoyambi-canase, ao mesmotempo,trayarurnacativantealegoriasobrea leiturae osaber,a inocénciae a decadéncia,atravésdo percursode uín joveme de uníancmAo cm buscado significadodo horrorda guerrae da destruiyáo.

Noscontos(ou estórias.segundoadesignayáousadaporMia CoutoetambérnpeloprecursorangolanoJoséLuandino Vieira. além do brasileiroGuimaráesRosa),o escritordedicara-sesobretudoa efabularhistóriasro--cambolescas,cómicas,satíricasou piedosas.conformese tratasscde epí-sódiosinusitados,críticasdc costumes,recriminayóessociaisou políticas,compaixoesétnicas,etc.Os contospcnnitema ligeirezada acyáo(o seurá-pido desenvolvimento)ou simplesmenteo esboyode um típico quadroso-cietário.No romance,podemosentreveruníateoria da sociedadecivil, doanalfabetismo(do nAo saber)ou da entreajuda(dasolidariedadeentregen-te diversa,etáriaou socialmenteconsiderada).O romanceconstituio golpedecisivoparao abandonodo lirismo quea poesiapropiciai-a.Já náohá lu-gar, apartir daí, parao simplesmentesentimentalou lúdico.

Revista di IilolOgiíi Románico - Awqos2001.11: [55-205 196

Page 13: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

JoséPires Laranjeira Mía Coaco e as lite jaturas afeñanas de fm’n gua portuguesa

A CRÓNICA/CONTO

SAo conhecidasas origenspraticamentesimultáneasdo jornalismoe daliteraturaescritanasprincipaiscolóniasafricanasde Portugal.Aliás, no sé-culo xix, o cultivo das«belas-letras»assocíava-seestreitamenteit publi-cagito cm jomais.Por outrolado,as«betas-letras»tenderam,de imediato,apósa suaemergéncia,a transformarem-se,nalgunscasos,em letrasde acu-sagitoereivindicagáo,no sentidorealistaoitocentista,deintervengáonaso-ciedade.Existe,portanto,urna tradigáode convivénciado escritorcomosjornais,queMia Couto, seguindoo exemplopaterno,pódecontinuar.

As crónicasde Mia Couto,inserindo-senavertenteda intervengito(dealena,crítica, civismo,altruismo,etc.),conseguern,cm bastonúmerodeca-sos,conjugar-secomumaintencionalidadeliterária,queo leitor reconhece.Além disso,tem sucedidoquemuitosdos textosqueaparecemno espagodo jornal dedicadoás crónicas(é o casodosquepublicano jornal portuguésP¿¡blico) sAo depoisrepublicadoscm livros de contos,como aconteceucomEstóriasabensonhadase Cornosdo naseerda terra.

Mia Coutoé fundamentalmenteum atentoouvidor de casose históriasdabocado poyo.Conhecedordo país,por necessidadeprofissional(de jor-nalistaou de biólogo) ou porcuriosidade,vé-se,pelomodocomo intervémcm apresentagóespúblicas,quegostasobretudode umaboahistória—ca-ricata, proverbial ou parabólica.

Assím,compreende-sequeosdois primeiros livros de estórias(sobreum casalde velhos preparando-separaa morte; um morteiro quematagado; a loucaque lupa as estátuasdosexcrementosdaspombas;umco-breiro apaixonadoporumasmno-mogambicana;um barbeiroqueexageraosméritosda suabarbeariaimprovisada)contenhammaistragosherdeirosdeum realismodescritivo,socialmenterevelador,do queosúltimos,estestor-nando-seostensivamentealheiosaum quadrode referencialidadeshistóri-case soeaisexplícitas,derivandoparao maravilhosoeo alegórico.Perce-be-sequeo caminhodeMia CoutonAo é o do tragadode acgóesconcretas.de espagos,ambientese atmosferaspormenorizadamenterernetendoparaaimitagáode um real dado como reconhecível,mas anteso aproveitaraplasticidadeda linguagem(re)criadaparaesbogarexemplade carácterpa-cifista, ético e ecológico.

Em relagAo its crónicaspropriamenteditas,MíaCoutochegoua usá-lascomoutensiliosde provocagáoe respostaaintervengóesque,na sociedademaputense,tcndiamadesconsiderá-locomoescritor,aquandodo apareci-mentode Vozesanoitecidas,livro recebido,nalgunscírculos,comopertur-

197 Revista de Filología Rc,mcjnií -a. Anejos2001 Ii: iSS-205

Page 14: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

fosé Pires Laíanjeira Mia Cojito e a~ fiteratuias ot>icanas de fin gima ¿ortuguesa

badorda «normaliterária» e visto comoinfeliz modo de captara fala po-pular. Respondeu,entáo,Mia Couto, coní umacrónicabem-humorada.«Escrevénciasdesinventosas»,inserta,mais tarde,no Iivro Cronicando.Mia Coutoabordaa sempredelicadaecomplexaliberdadede criagito,so-bretudocm contextospoliticamentehipersensiveise susceptíveisde re-acgAo intempestiva.Fé-lo com grandecontundénciafleumática,se é per-mitida a contradiyAo.Da crónica,destacamosum trechoparadigmático,quepodefuncionar como eloquentee imaginativasentenga:«a vida é urnagrandefábricade imagineirose líá muitaestradaparapoucospostosvigi-lentos.»Afinal dc contas.era um modode reivindicaro poderda imagi-nagáo,criticandoos quedesejavampoliciar a criatividadee a liberdadedaescrita,quandoestavacm causasobretudoum escritorjovem. imaginativo,nadaconservador(nem política. nemlinguisticamente)e muito menosfa-zendoperigarosalicercesda instituigAo literária (anAo seroseventuaispi-laresacomodaticiosou despeitados).Quaseescrevíamos«os jásólidos ah-cercesda instituigAo literária».Por um lado,é verdade;por oulro.o episódioreveloua falta deruaturidadeda recepgAoespecializada,queo tempoveloa modificar, como naturalsurgimentode urnacríticacadavez mais siste-mática, apoiadaem saberesabalizadose despreconceituados.Como ba-lango, ficou a importAnciade Vozesanoitecidas,reconhecidamenteumlivro fundadorde umareordenagAoliterária.it semelhangado que sucedera.cm Angola, cm 1964,comLuuanda,de JoséLuandinoVieira.

O ROMANCE TERJ?ASONÁMBULA- MODERNIDADEESTRUTURALE SIMBOLICA

Terra sonámbulaé um romancesobreosefeitosdaguerra:a desolagAodapaisagemnaturale humana.Masé tambémum romancesobrea capacidadede sonharedecontar As trésepígrafesqueabremo romance,urnadaautoriados habitantesde Matimati, a outra,de Tuahir e a terceira,dc Platito. dAo omote a temasintemporaise utópicos,entreos quaisse contama necessidadede sonhare, portanto,de permanecervivo e assimmuovera terra,ou seja,re-moveramontanha,nestecasoatravésdauniAo de trésespéciesprimordiaisdeseres:osvíventes,osdefuntose ospescadores(ouhomensdo mar).

Duashistóriasprincipaissito contadasalternadamente.Urna,adeMui-dinga,rapazabandonadoqueprocuraumaidentidadee um sentidoparaavida,quedescobreumis cadernosabandonadose ¡6 cuí voz altaparao velhoTuahir,que,acertaaltura,diz: «vamosparadentrodesscscadernos.Lá po-

Rc,.-ista oc Fitología Roínuíuíií ci- Anejos2(10111: i 85—205 198

Page 15: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laranjeira Mía Cauto e as literaturas africanas de ungua portuguesa

demoscantar,divertir» (p. 136).Outra,a do jovem Kindzu, cm narragáoprópria,escritanoscadernos,quese dá a lcr, por imperiosanecessidadededesabafo.Kindzu, filho de pescador,representao a/ter egodo escritor,aquelequeescreveparase tomarmaisperenee testemunharo seutempo.OscadernossAo anesgade sonhopossívelperanteadurae cruarealidadedo percursoquotidianodo jovemMuidinga,viajeiro iniciático it procuradachaveparaos seussonhos.

Romancede aprendizagemou, mais simplesmente,de um romancecmqueaspersonagensjovensdetémo papele o poderde depositáricisdacapacidadede sonharum mundomelhor,de paze abundAncia,numalarasonámbula,na encruzilhadadavida, confundidasentreo mundotradicionalqueas marcoue sedesmoronaeo mundomodernoqueas avassalaeigual-mentese despedaga,parausaro termodeciutro escritorafricano.Sensivel-mentea meiodo romance,a chaveprincipal paraa interpretagAoencontra-seexplícita: «estávamosdivididosentredois mundos.A nossamemóriascpovoavade fantasmasda nossaaldeja. Essesfantasmasnos falavamcmnossaslínguasindígenas.Masnósjá sésabíamossoitarcmportugués.E jánito líavia aldeiasno desenhodo nossofuturo» (Pp. 102-103).

As literaturasafricanasestitomuito marcadaspeíaesperangano poderjuvenil de revolucionaro mundo, pelo menoso mais próximo, por umprometeismonacionaLA iniciagito ás coisasdo mundo,atravésda apren-dizagemde ritose saberes,daexperiénciada vidaeda morte,podever-senasfigurasjovensqueprotagonizanie povoamAs aventurasde NgungaeArevolta da easa dosídolos,de Pepetela,A Konkhavade Féti, de HenriqueAbranches,Luuanda,deJoséLuandinoVieira, ou Chiquinho,de BaltasarLopes,jovensquecarregamnos ombroso sonhoe a responsabilidadedamudanga,ásvezesmorrendopor da, resolvemquestñesou resolvemdes-cobrir o caminhodaverdade,descobrindo-sea si própriose aomundocir-cundanteou Longínquo.Chamam-seNgunga,Beto,Chiquinho,Kapitiaou,comocm Terra sonámbula,Muidingae Kindzu.

Criangasque cresceramdemasiadoe, it entradada adultez,anseiamporum mundomelbore peloscarinhosfamiliaresde quecedoseviram priva-das. NAo por acaso,Muidinga, Chiquinhoou NgungasAo criangascujospaismorreramou estitoausentes.A figurado pal ésubstituida,no casodeMuidinga,pelado tio, praticamenteeomo mesmovalor, numasocíedadetradicional(ista),cm queaneestralmenteo poderpolítico, a punigitojudicialou osbeneficiosrecaíamsobreas costasdossobrinhose nAo dosfilhos.

Numa terra de forne e miséria,cm queumavila se comparaa umaimensacasamortuária(p. 132), Muidinga e Kindzu procuramo amor, a

199 «cv/Va cte t—ítotogía Roniánha. Anejos20011!: ¡85-205

Page 16: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laratm¡eira Mía Corito e as literaturas africanas de 1 ¡agua portuguesa

amizade,a bondadee a felicidade(p. 167),comosonámbulospercorrendoa desolagáodo espago.NAo importaqueo velbo TuahirenganeMuidinga,fazendo-oandarcm círculosao redordo machimbombodestruidoqueIhesservede abrigo,semseafastardele,como se estivcssemperdidos.O veihofica presotambérnpelashistóriascontidasnoscadernosde Kindzu e nAodesejamaisnadado quesobrevivere sonharquandoas escuta.

As históriasintegradasnasduashistóriasprincipaisdo romancefazemasdeliciasdo velboe do novo: históriade Siqueletosobreo sonhode ummundomelhor e a escrita como tesremunlío;de Nhamatacaconstruindonascentesdenos;de veihascagandogafanhotose violandoMuidingaquan-do esteseafasta,pormomentos,da protecgáodo anciáo;de Quintino. queencontrao fantasmado portugués,falecido apósaindependénciaeque saido túmulo na cave parajogar osseustrunfosentreosvivernes,incluindo oadministraidorEstéváo;da montanhaquederivou do corcunda;do amorentreKindzu e Farida,a anjonauta,quevive numailha comfarol. pertodeum barconaufragado.longeda terrae da tragédiadoshomens;do boizarráopelopastorzinho.alémde outras,muitas,histórias.

O amorentreKindzu e Paridarelevadaordemmarinha,talassórica,querepresentaa vida e o sonho,contraarealidadedaterra sonámbulade mor-te. Kindzu é um sonhadorde lembrangas,um inventorde verdades(p. 117),queconstrói um discursoandecabemepisódioscaricatos,bernhumorados,comoo do portuguésque, saidodo túmulo, se póeagritar: «sacanadc pre-tos, gamaram-meos sapatos»(p. 155). Ou episódiosfantásticos,aindadoportuguésRomáoPinto, que, incontinente,se póea urinar interminavel-mentedevidoaofeitigo africanoda amantemugulmanaquetraíao maridocomele(p. 160).

Os angolanosPepetelae 1-lenrique Abranchesachamjustamente,coníalgumaauto-ironia,queestefantásticodas literaturasafricanas,semeihanteao realismomágicosul-americanode língua espanhola,se pode chamar,corncerteirapropriedade,de¡-calisnio animista,umaespéciedecorrenteher-deirado realismooltocentistae do neo-realismo,fustigadapelastorrentesimpetuosasdo imaginárioe dascosmogoniasafricanastradicionais.

UM OBSESSIVOPROCESSODE (RE)CRIA4?ÁOVERBALECULTURAL

A narrativade Mia Couto, desdeVozesanoitecidas,apresenta,comoprimeiro sintornadessainterferénciade mundos,acriagáode urna lingua-

Rcvista clv Filo/cígicí Ron-icinh a - Anejos200111: 185-205 200

Page 17: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pijes Laranjeira Mía Coato e as fiteraturas africanas de ungua portuguesa

gemliteráriatocadapeíaoralidade,a combinagáoda sintaxecircunloquialcoma tendénciaparaa elisáoe o sintetismo,apropensáoluxuriantedo neo-logismo,da aglutinagáo,da prefixagAo e ontrosmodosde retrabaiharo lé-xico, numprocessode escritaquesimulaa ingenuidadee a singeleza,masostentaas marcasdo impiedosoburil. Trata-sede um estilo que repóeagragae o carinhodapalavraqueprocuradesvelaro mundoencobertodaes-sencialidadecósmica,manifestandocompreensáoe ternurapelos seresecoisasfustigadospelosventosda história.A enumeragAodosresultadosdaeriatividadelexical seriaimpensável,masconvémforneceralgunsexem-píos,paradelase poderaquilatar:homenzarrou,depressou-se,fantasiática,carinhen(a, esteircidos,rebulir, esírenzungado.eropausar,manifestivo,cv-trernexendo,nuventanias,febrilbanee,deslembrara,sozinhidño,perturba-hado,gesticalada,irmáodade,exuberrante,inutensílio, tintintilar, entie-quando,esmñozinhado,exactamesmo,convidan(ante, mancha-prazeres,embriagoido,veementindo,atordoido,titupiante,inaposento.administrai-dar, etc.A sintaxeapresenta-setambémcomournaconstrugáocm moldesínusuais,entreaoralidadee apurainvengáo,cm que o contextocomunmea-tivo, estético,permitepartilbara níensagemde ruptura:«todospartirarn,umapósnenbum»;«o colarquefostedada»;«nemisto guerranenhumanAo é»;«pareceestáaquienquantonem»; «o lugarzinhono enquanto».

JoséOrnelas,ao falar de «rcgeneragAolinguistica», titulo de partedoartigo sobreMia Contoqueescreveuparaurna edigáoda Luso-BrasilianReviewdedicadatambémás literaturasafricanasde línguaportuguesa,ten-de paraalgumcxageroapreciativodo quechamao desvioradical doscó-digos e dasconvengñesdo portuguéstradicional,do portuguésnormativode Portugal,ou seja(aindanassuaspalavras),«o remanejamentoe a trans-formagAo da sintaxe,do léxico e do ritmo do portuguéstradicional»(Or-nelas, 1996:45), ou aindao «assaltoit tradigAo da linguaportuguesame-diantea recriagáoe a regeneragAo(...) estáa arrebataro portugués-padrAodos seussólidos alicercesdc erudigAo, de vernaculidade,de elassieismo»(Ornelas, 1996: 47). FaJa,inclusive, de «distorgóessintácticas»(«dis-torgñes»da sintaxede normaportuguesa?)quese encontramcm númerore-duzido naobrade Mia Couto,cm comparagáocomado angolanoLuandi-no Vieira, alémde quenAo se tratapropriamentede «distoryóes>~,masdemodos sintácticosdc urnanormacm emergéncia,a normamogambicana.JoséOrnelascritica o usoda «própria ideologiamarxistade importagáo»cm Moyarnbique,parecendonAo compreendero contextocm queo Estadomogambicanoseviu a bragoscom umarealidadepolítica, económica,so-cial e ideológicaradicalmentenova, além de que nAo se podefalar cm

Rc ‘¡vta dc Filología Románá •<j - Anejas200111: 185-205201

Page 18: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laran¡«ira Mía Couto e (15 literaturas africanas de língud f)ortuguesa

«ideologiasde importagAo»porquecías,maisdo quea literatura,sAo autén-ticos espécimesde Iivre circulagAo, mesmoit revelia de ditadurase decontroleirosde todaa espécie.

A inovagAo linguisticade Mia Couto residefundamentalmenteno lé-xico, comoprocuroumostrarPerpétuaGongalvesnum Colóquiocm Luan-da, no final de 1997 (cujos textosseráopublicadoseste ano). Paracon-clusAo semelhanteapontao artigo dc Paulode Faria(cf. bibliografia),queexemplifica,sintacticamente,eomosclíticos it esquerdado verbo (ex.: «obicho se arrasta»)e o empregodo pronomecomplementoindirecto cmvez do de complementodirecto(cx.: «onvíamosabalciamasnito ¡he vía-mos»).Neseartigo, o autor explica, com argumentayAológica e precisacomo aescritade Mia Contoseapropriade modostípicosda oralidade.

A (re)criagáoverbal, com neologismose inovayóessintácticas(quese encontramtambémno portuguésdo Brasil), advémdo gozoda línguaede aproveitaro contactoentreváriasdelas,mastamnbémda necessidadedecriare relazarnovasrealidadesnirais e urbanas,numalíngualiterária que,sendourbanae cosmopolita,retomapráticasoraiscomorigemn no enraiza-mentoda ruralidade.

Nesscprocessode eriagito pessoalecoama paixito obsessivapeíapa-lavra, pelogostode a subverter.Podemosencontrarnassuasnarrativaspa-ralelismoscom o humor citadinodo iíomem portuensee atéo humor su-burbanoportuense(o pai de Mia Couto,ficou dito,nasceunosam-redoresdoPorto),o humormineiro (de Minas Gerais,no Brasil), o dosangolanosPc-petela(num livro como O cáoe oscalús)e Manuel Rui (cm Quem¡nc deraser onda),o humortípico dosambaquistas(angolanos de Ambaca,cobertospeloridículo da assimilagitocultural distorcida),dosportuguesesAlexandreO’Neill, JoséCardosoPires,MArio HenriqueLeiria ou MArio de Carvaiho,do gaúchobrasileiroLuís FernandoVeríssimoe de muitosmais. Todavia,ohumor de Mia CoiMo nunca édeescArnioe maldizer, de ridicularizarsocial,políticae ideologicamentesemapeloneníagravo,masantesde compaixitoe compreensáopor situagóes,vivéncias,costumese comportamentosdegenteafectadapeíavidaplenade caréncias.dc desencontrosedesencantos,tendocomopanode fundosempreum realismoqueespreitaatravésdosin-dicios da guerra,da misériae da perturbagitosociale mental.

Se bemqueo espagoesteja circunscritoa Mogambiquee o tempo itpós-independéncia,as estóriasremetenícomfrequénciaparacasosdo pas—sadocolonial e, sobretudo,a memóriaaforísticae níítica das palavrasexpóeit tonado discursoa filosofia e asagacidadede um mundoalheio itcibernéticae aosdígitos. A intercomunicagitoentre viventese espíritos

Ríí’i.sma dc i-i/otog la Rc,íníinic a - Anc¡ov20<11 II: ¡55-2(15 202

Page 19: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires Laranjeira Mía Couco e as fireracuras africanas de fin gua portuguesa

(ou defuntos),dadonaturalda cosmovisáode muitos poyos africanos,comojá explicavarnAlexis Kagameou MarcelGriaule,estápatentenesteromance,queabordaessamatériacoma seriedadede um espirito lúdico oucomasobriedadede um videntelúcido.

Nesseconstantevaivém entreo passadoquepesae o presentequees-maga,silo correntesas frasesproverbiaisquedefinemtima atmosfera,umestadodeespirito ou um sabersombrio: «quantotempodemorao tempo!»;«a escuridáonos faz nascermuitas cabegas»;«no fundo da latrina nAopodehaverguerra limpa»; «o homemé como a casa:deveser visto pordentro».E poressahesitagitode sentido,entreo eflúvio literal eo símbolodo trabalbopacífico,queo narradordiz de Nhamataca.o construtorde ños:«taivezqueum novo curso,nascidoa golpesde su-avontade,tragade vol-ta o sonhoáquelaterramal amada»(p. 96).

Entre o humor e o drama, a ternurae a crítica, o fantásticodas si-tuagóese o maravilhosoda linguagem,o discursode Mia Coutoentrelagaculturase registosdiversos,numequilibrioquepermitefalar do racismo,daguerra,davidaeda morte,do amore do ódio, dapolítica e do comérciodealmas, semprecoin o gostodc contardesempenhandoo papelde farol doleitor, redefinindoos seusgostosevisóesdo mundo,comoseafieyáopu-dessedevolverit realidadeafantasiada verdade.

Sublinhandoo fantástico,a desordementrereal e irreal, Kindzu, no fimdo romanceTerra sonámbula,é Muidinga,que, porsuavez, dá petonomede Gaspar.As duashistóriasalternadassAo urnaea mesmahistória ou,me-llíor, dws facesda mesmahistória, comonosjogos de espelhosou comonasbonecasrussas.Muidingaé,pois. ojovcm sonámbuloqueperdeuame-mória e vaguciacm buscade urna identidade,encontrando-ase encon-trando-sena leitura dassuasprópriasmemórias,afinal o jogo de espelhosqueo escritordesejaparasi, o seupoyo e osoutrospoyosquenele(s)se en-treolham.

SobreMi-a Couto, escrevenCremildade Araújo Medina (Medina,1987: 55-68):«comose situaum banco,descendentede portugués,no con-texto dasferidasabertasdo colonialismo?(...) A revolugáomoyambicanalutou muito contrao racismoe, apesardosfundamentosportugueses,ele,pessoalrnente,nAo sofreunenhumarestrigáo(...) NAo deixoude gostardeMozartou dos autoresclássicosportugueses(...) pulsana frequénciatantode africanosquantode um Eugéniode Andrade,Sophiade Mello BrcynerAndresen,JoséSaramago,JoséCardosoPires,António Lobo Antunes—dePortugal—ou Joio Cabralde Melo Neto, CarlosDrummondde Andrade-

do Brasil».

203 J<cí¿Áta de Filología ,9ovíáííiea. Anejas2001.II: 185-205

Page 20: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pires- Laranjeira ¡¡día Couto e as fiteratuias a/ru-alias (le fin gua portuguesa

A suaarte, na linh de JamesJoyce,GuimarAesRosae JoséLuandinoVieira, caracteriza-sepor um vincadogostocm criar neologismos,recriaraor¿ilidadenumalíngualiterária exuberante,imginativa, recrear-secomohumorde situagóescaricatasou fantásticase tocar-noscoma lragédi in-dividual esocial.Assim se compreendeum projecto de moyambicanidadeliterária queé um exorcismoeurnacatarsede criagáo.em quereconhece-mos l-iistória, o legadoétnico, o multiculturalismo.Assim sc compreendequeo éxito consagreesteaindajovemescritor, já traduzidocm váriasun-guasemembroda AcademiaBrasiLeiva de Letras.E, por certo.como an-gol-anoJoséLuandino Vieira, um próximo candidatoafílcanoao PrémioCamóes,o maiorgalardAoliterário de língua portuguesa.

BIBLIOGRAFíA SUMÁRIA

CIiABAL, Patrick (1994): «Mia Couto>~,in Vozesmo<-arnhicanas-.Literatura e na-cionafidade,‘Vega,Lisboa,Pp. 274-291.

CEccuccí,Piero (1994):«Realtite mito dell’universopopolaremozambicanoneldiscorsoletterariodi Mia Couto»,in Áfríca-Arneríca-Asia-Auscralia,17, Bul-zoni, Roma.Pp. 53-él.

FARIA, PauloVítor Feytor PintoSampalodc (1991-1994):«A questAoda línguaedaescritanaTerra sonáníbtdade Mia Couto». in CongressoIn/e,-naciona/deUngua,Cultura e LitematurasLusci/knas(Actas), Irmandadesda E-aladaCali-zae Portugal,Temasde o EnsinodeLinguistica, SociolinguisticaeLiteratura,vols. V1t~lX, n2 27-38,Pontevedra/I3raga.

FERREIRA, Manuel (1988):«Mht Couto: Vozes anoitecidas»,in Colóquio¡Letras.101, Lisboa.pp. 132-133.

LABAN, Michel (1998):Mo<-amhique.Lincontroconí es(Iitores, Fund. Eng.’ Antó—

nio de Almeida,Porto,vol. 3, pp.995-1040.LARANJEIRA. Pires:MATA, luocénciae SAraos,ElsaRodriguesdos(1995): Lite-

raturas ajrícanas (le (fV~1CSSdO portuguesa.Un i versidadeAberta, Lisboa,pp.309-319.

Lm-ím, Ana Mafald (1993): «A sagragaodo profano.Reflexóessobrea escritadetrés autoresmoganíbicanos:Mi-a Conto, Rui Knopfli e JoséCraveirinlía»,inVértice, II série,55 (Julho-Agosto).Lisboa,pp. 37-41.

LEÍ’vcK¡, Maria Lúcia (¡988): «Mia Couto. I’ozesanoitecidas o acordar»,in So—bí-eí¡np¡-essóes.Estudosdeliteratura po-tuguesaea/i-i(-alja. Caííi i nlío, Lisboa,pp. 175-178.

/1ev/sta dc Fi/o/os/a Roníá,íií a. Anejos2001. II: 185-205 204

Page 21: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como

José Pijes Laranjeira Mía Couto e as fiteraturas africanas de fingua portuguesa

MEDINA, Cremilda(1987): SonhamamanaÁftíca, Epopeia,SAo Paulo,pp. 55-68.

ORNELAS, José N. (1996): «Mia Couto no contextoda literatura pós-colonialdeMoymbique»,in L uso-Brasi/íanRevíew,Llniversity of WisconsinPress,Ma-dison,vol. 33, ni’ 2, pp. 37-52.

REIs, Carlos(1997): 0 c-onha-ít-nentoda literatuma.Introduyáoaosestudosliteró-nos. 2.~ ed.,Coimbra,pp. 407-486.

RaGuA, tildo (¡992): «Te,rasonámhufa: crónicapoéticae lúcida», inIo¡-nafde Le-tras,Artes& Ideias,Lisboa(12-1-1992),p. lO.

SILVA, RosániaPereirada (1994):Mecanismosdesubversáona literatui-a moyam-bicana: VozesanoitecidasdeMia Coicto, BeloHorizonte,PUC/MG (tesedemestrado,policopiada).

UNAMUNO, Miguel de(1986):En torno a/casticismo,Alianza,Madrid.

205 Rcrista dc Filolcgía Romáuíi -a - Anejos2001 tt: IXS-205

Page 22: Mia Couto e as literaturas africanas de ungua portuguesa · Mia Couto e as literaturas africanas ... ténue, «personalidade africana», que se pode caracterizar politicamente como