mia couto - estórias abensonhadas

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Mia Couto Estórias Abensonhadas CONTOS 2.ª edição CAMINHO UMA TERRA SEM AMOS Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Maio de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais.

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Mia Couto - Estórias Abensonhadas

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MIA COUTO nasceu na Beira, Moambique, em 1955

Mia Couto

Estrias Abensonhadas

CONTOS

2. edio

CAMINHO

UMA TERRA SEM AMOSEste livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Maio de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais.MIA COUTO nasceu na Beira, Moambique, em 1955. Foi director da Agncia de Informao de Moambique, da revista Tempo e do jornal Notcias de Maputo.

Em 1983 publica o seu primeiro livro: Raiz de Orvalho (poemas); depois, editado inicialmente pela Associao de Escritores Moambicanos, um livro de contos, Vozes Anoitecidas, publicado pela Caminho em 1986. Deste livro saiu j a edio inglesa na srie africana da Heinmann.

Em 1990 a Caminho publica o seu livro de estrias Cada Homem Uma Raa, e em 1991 Cronicando, tambm inicialmente publicado em Moambique.

Em 1992 sai o seu primeiro romance: Terra Sonmbula.

Vrias obras de Mia Couto esto traduzidas ou em curso de traduo em diversas lnguas: espanhol, francs, italiano, alemo, sueco.

ESTRIAS ABENSONHADAS (2. edio) Autor: Mia Couto Design grfico: Jos Seno Ilustrao da capa: Ivone Ralha Reviso: Seco de Reviso da Editorial Caminho Editorial Caminho, SA, Lisboa - 1994 Tiragem: 2000 exemplares Composio: Seco de Composio da Editorial Caminho Impresso e acabamento: Tipografia Lousanense Data de impresso: Janeiro de 1996 Depsito legal n." 75 475/94 ISBN 972-21-0933-2

Estas estrias foram escritas depois da guerra. Por incontveis anos as armas tinham vertido luto no cho de Moambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mgoa e da esperana. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroos sem ntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.

Hoje sei que. no verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessvel de ns, l onde a violncia no podia golpear, l onde a barbrie no tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes imps o silncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.

Estas estrias falam desse territrio onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperana o rosto da chuva, gua abensonhada. Desse territrio onde todo homem igual, assim: fingindo que est, sonhando que vai, inventando que volta.

NDICE

Nas guas do tempo 11As flores de Novidade 19O cego Estrelinho 27Na esteira do parto 35O perfume 41O calcanhar de Viriglio 49Chuva: a abensonhada 57O cachimbo de Felizbento 63O poente da bandeira 69Noventa e trs 75Jorojo vai embalando lembranas 81Pranto de coqueiro 87No rio, alm da curva 95O abrao da serpente 103Sapatos de taco alto 109Os infelizes clculos da felicidade 115Jootnio, no enquanto 121Os olhos fechados do diabo do advogado 127

A guerra dos palhaos 133

Lenda de Namari 139

A velha engolida pela pedra 145

O bebedor do tempo 151

O padre surdo157

O adivinhador das mortes 165

O adeus da sombra 173

A praa dos deuses 181

Nota: Os textos assinalados com * so inditos. Os restantes

foram publicados no jornal Pblico.

NAS GUAS DO TEMPO

Meu av, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho (1). Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda c, onda l, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.

- Mas vocs vo aonde?

Era a aflio de minha me. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vov era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.

- Voltamos antes de um agorinha, respondia. Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe no era.

Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia j crepusculando, ele me segurava a mo e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculneo. O av era um homem em flagrante infncia, sempre arrebatado pela novidade de viver.

(1) Concha: canoa, pequena embarcao.

13Entrvamos no barquinho, nossos ps pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mo em concha. E eu lhe imitava.

- Sempre em favor da gua, nunca esquea! Era sua advertncia. Tirar gua no sentido contrrio ao da corrente pode trazer desgraa. No se pode contrariar os espritos que fluem.

Depois viajvamos at ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre gua e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as guas nenufarfalhudas, ns ramos os nicos que prepondervamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O av, calado, espiava as longnquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbaes, sombras feitas da prpria luz, fosse ali a manh eternamente ensonada. Ficvamos assim, como em reza, to quietos que parecamos perfeitos.

De repente, meu av se erguia no concho. Com o balano quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com deciso. A quem acenava ele? Talvez era a ningum. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o av acenava seu pano.

- Voc no v l, na margem? Por trs do cacimbo? Eu no via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. - No l. l. No v o pano branco, a danar-se?

Para mim havia era a completa neblina e os receveis alns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silncio. E regressvamos, viajando sem companhia de palavra.

Em casa, minha me nos recebia com azedura.

14E muito me proibia, nos prximos futuros. No queria que fssemos para o lago, temia as ameaas que ali moravam. Primeiro, se zangava com o av, desconfiando dos seus no-propsitos. Mas depois, j amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:

- Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhvamos vantagem de uma boa sorte...

O namwetxo moha era o fantasma que surgia noite, feito s de metades: um olho, uma perna, um brao. Ns ramos midos e saamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu av nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Inveno dele, avisava minha me. Mas a ns, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.

Certa vez, no lago proibido, eu e vov aguardvamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estvamos na margem onde os verdes se encaniam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim no podia haver homem mais antigo que meu av. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pntanos. Queria subir margem, colocar p em terra no-firme.

- Nunca! Nunca faa isso!

O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante to bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era sum pedacito de tempo. Mas ele ripostou:

- Neste lugar, no h pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, so eternidades.

Eu tinha um p meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei cho para assentar o p. Sucedeu-me ento que no encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a fora que me sugava era maior que o nosso esforo. Com a agitao, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na gua.15

Ficmos assim, lutando dentro do lago, agarrados s abas da canoa. De repente, meu av retirou o seu pano do barco e comeou a agit-lo sobre a cabea.

- Cumprimenta tambm, uoc! Olhei a margem e no vi ningum. Mas obedeci ao av, acenando sem convices. Ento, deu-se o espantvel: subitamente, deixmos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltmos ao barco e respirmos os alvios gerais. Em silncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:

- No conte nada o que se passou. Nem a ningum, ouviu?

Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razes. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: ns temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, que quase todos esto cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe l nos pntanos para que voc aprenda a ver. No posso ser o ltimo a ser visitado pelos panos.

- Me entende?

Menti que sim. Na tarde seguinte, o av me levou uma vez mais ao lago. Chegados beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O av se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mo apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ningum. Desta vez, tambm o av no via mais que a enevoada solido dos pntanos. De sbito, ele interrompeu o nada:

- Fique aqui!

E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O av pisava os interditos territrios? Sim, frente

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ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balanando, em desequilibrismo com meu peso mpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrio de uma nuvem. At que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma gara de enorme brancura atravessar o cu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi ento que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu av na viso do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da apario, o aceno do pano vermelho do meu av. Fiquei indeciso, barafundido. Ento, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram at que se poentaram as vises.

Enquanto remava um demorado regresso, me vinham lembrana as velhas palavras de meu velho av: a gua e o tempo so irmos gmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que no haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.

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AS FLORES DE NOVIDADE

Novidade Castigo era filha de Vernica Manga e do mineiro Jonasse Nhamitando. Lhe apelidaram de Castigo pois ela viera ao mundo como uma punio. Se adivinhou logo na nascena pelo azul que a menina trazia nos olhos. Negra, filha de negros: de onde vinha tal azul?

Iniciemos pela moa: ela era espantadamente bela, com face de invejar aos anjos. Nem gua fosse mais cristalinda. O porm dela, contudo: era vagarosa de mente, o pensamento parecia nela no pernoitar. Ficara-se assim, desacertada, certa uma vez em que, j moa, foi atacada de convulses. Nessa noite, Vernica estava sentada na varanda quando sentiu o aranhiar da insnia em seu peito.

- Esta noite vou contar estrelas, pressentiu-se.

A noite j roa as unhas madrugada foi quando aconteceu. No cantinho da casa, a moa se despertou, em espasmos e estices. Parecia a carne se queria soltar da alma. A me, na adivinhao das sombras, sentiu o surdo aviso: que foi? Leve como um susto, acorreu ao leito de Novidadinha. Em casa de pobre tudo est certo, conforme no arrumo ou desalinho.

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Vernica Manga atravessou o escuro, evitou caixotes e lates, saltou enxadas e sacos a pontos de se acercar da filha e lhe ver o brao, erguido como drapejante bandeira. Vernica nem chamou o pai, no merecia a pena suspender o descanso dele.

S na seguinte manh ela ao homem anunciou o acontecido. Ele se preparava para despegar para o trabalho, em vspera de descida ao fundo da montanha. Parou na porta, reconsiderou inteno. Jonasse Nhamitambo, todo pai, foi ao quarto da menina e lhe encontrou, parada, s com vontade de sossego. Sem tirar a spera luva passou uma carcia pelo rostinho dela. Despedia-se daquela outra, a que j fora sua menina? Depois, o pai se afastou em modos da nuvem que se aparta da gua.

Passou-se o tempo, num abrir sem fechar de olhos. Novidade crescia, sem novidade. Os pais confirmavam e se conformavam: aquela filha fechara o ventre de Vernica. No era filha nica: era filha-nenhuma, criatura de miolo miudinho. Jonasse era homem bondoso, no abandonou Vernica. E a filha, naquele pacto com o vazio, dedicava amores e ternuras a seu pai. No que ela se explicasse em perceptveis palavras. Mas pelo modo como ela esperava, suspensa, a chegada do mineiro. Enquanto durasse o turno dele, a menina se perplexava, sem comer nem beber. S depois de o pai retornar a menina voltava a atinar seu rosto e, em sua voz de riachinho, se adivinhavam cantigas que ningum, seno ela, conhecia. E havia ainda as prendas que ela para ele recolhia: bizarras florinhas, da cor de nenhum outro azul que no fosse o encontrvel em seus olhos. Ningum nunca soube onde ela recolhia tais ptalas.

Muitas noites alm, a famlia repadeceu os acontecimentos. Jonasse no se encontrava. O mineiro esburacava a terra, em turno nocturno. Em casa, a me ainda deixou seus olhos sobrarem na copa da luz do

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xipefo (1). Costurava tecido nenhum, roupinhas para um filho que, conforme o sabido, nunca haveria de vir. Novidadinha, a seu lado, dormitava. Foi quando a moa se franziu, convulsiva, em epilapsos. A me, repentina, acudiu. No sobressalto, ela desmanchou a claridade, entornando luz e lamparina. Enquanto desalvoroava a menina, lbios e sopros, Vernica Manga procurou os fsforos sobre a caixa. S ento foi chamada a um barulho enlameado que chegava de fora, l da montanha. Era o qu? A mina explodindo? Cus, se arrepiou. E Jonasse, seu marido?

A mulher zululuava pela casa, num corre-morre, de aflio para susto, mosca em rabo de boi. E vieram as maiores exploses. Espreitada da janela, a montanha parecia o pangolim cuspidor de incndios. Desabariam rochas e penedos por cima das casas? No, a montanha, aquela, tinha muita consistncia. E Jonasse? A mulher sabia que devia esperar pela manh para saber novas de seu marido. Mas a menina se antecipou claridade. Em silncio recolheu seus pequenitos bens em cestinho e saco. Depois, arrumou as pertenas da me na velha mala. De sua boca saram as magras palavras, em suave ordem:

- Vamos, me!

Sem pensar, a me abandonou o seu lugar, ali onde ninhara por plenos anos. E se deixou conduzir pela mo da menina, confiante em no se sabe qual sapincia dela. No caminho, as duas se entrecruzaram com uns alguns, fugidios como elas. E Vernica lhes perguntou: - Isso que se escuta: o qu?

No era a mina. Eram exploses militares, a guerra que chegava. E nossos maridos, que lugar o deles se salvarem?

- No h tempo. Suba no camio, lhe responderam.

(I) Xipefo: lamparina a petrleo.

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E subiram. Vernica acomodou melhor suas coisas que a si prpria, fez sentar Novidade em cima do cesto. E o motor girou, rodando mais lento que seus olhos na nsia de ver aparecer Jonasse, correndo entre os fumos e zonzeiras. O camio partiu, somando as demais poeiras e exploses. A me fitou a filha, o sossego de seu rosto, seu sujo vestido. O que ela fazia? Cantarolava. No flagrante de toda aquela voragem, a moa peneirava alegriazinhas em cantigas de surdina. Desenvenenava o tempo, sempre grvida de desgraa?

No meio de bombas e tiros, o camio progrediu at passar defronte da mina onde Jonasse trabalhava. Ento, a menina, desafiando o andamento do momento, saltou para o desaconselhvel cho. Avanou umas passadas, endireitando as rugas de seu vestidinho, se virou para trs para dedicar uma delicadeza a sua me. Em espanto, o veculo estacou. Novidadinha retomou o passo, cruzando a estrada em certo e exposto perigo. O camio apitava, buzina em fria. Que ali se demorava apenas a morte. A moa no parecia nem ouvir. Estava na estrada como se ela fosse seu inteiro caminho. No abecedrio de seus passos se via no haver arrogncia, nem proclamao. O estar-se ruando, atrapalhando o caos, no era desafio mas singela distraco. Ela fazia valer o azul de seus olhos. O camionista, nervoso, a chamou por ltima vez. E os restantes gritavam para a me impor ordem de regresso. Mas Vernica no mexeu palavra.

Sobre um monte de areias tiradas da mina, Novidadinha se debruou para colher flores silvestres, dessas que espreitam nas bermas. Escolhia com o vagar de cemitrio. E parou frente a umas azulzinhas, de igual cor de seus olhos. O camio, desistido de esperar, acossado por afligidas vozearias, repentinou-se estrada afora. A me teimou ateno em sua filha, fosse querer saber o ltimo desenho de seu destino. O que se passou, quem sabe, s ela viu. L, entre a poeira, o que sucedia era as

24flores, aquelas de olhar azul, se encherem de tamanho. E, num somado gesto, colherem a menina. Pegaram Novidadinha por suas ptalas e a puxaram terra-abaixo. A moa parecia esperar esse gesto. Pois ela, sempre sorrindo, se susplantou, afundada no mesmo ventre em que via seu pai se extinguir, para alm das vistas, para alm do tempo.

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O CEGO ESTRELINHO

O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua histria poderia ser contada e descontada no fosse seu guia, Gigito Efraim. A mo de Gigito conduziu o desvista do por tempos e idades. Aquela mo era repartidamente comum, extenso de um no outro, siamensal. E assim era quase de nascena. Memria de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua prpria mo.

O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele no fazia cerimnia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:

- Tenho que viver j, seno esqueo-me. Gigitinho, porm, o que descrevia era o que no havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginao do guia era mais profcua que papaeira. O cego enchia a boca de guas:

- Que maravilhao esse mundo. Me conte tudo, Gigito!

A mo do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tom: via para no crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideao dele

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era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:

- Desbengale-se, voc est escolhendo a boa procedncia!

Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira frente do nariz. Contudo, o cego no se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: no tinha perna e queria dar o pontap. S noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raa humana, menos primitivo: o animal.

- Na noite aflige no haver luz?

- Aflio ter um pssaro branco esvoando dentro do sono.

Pssaro branco? No sono? Lugar de ave nas alturas. Dizem at que Deus fez o cu para justificar os pssaros. Estrelinho disfarava o medo dos vaticnios, subterfugindo:

- E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao cu?

Que podia o outro responder? O cu do cego fica em toda a parte. Estrelinho perdia o p era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro nele se estreasse em n cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mo na mo do guia. S assim adormecia. A razo da concha a timidez da amijoa? Na manh seguinte, o cego lhe confessava: se voc morrer, tenho que morrer logo no imediato. Seno-me: como acerto o caminho para o cu?

Foi no ms de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pr na guerra: obrigavam os servios militares. O cego reclamou: que o moo inatingia a idade. E que o servio que ele a si prestava era vital e vitalcio. O guia chamou Estrelinho parte e lhe tranquilizou:

- No vai ficar sozinhando por a. Minha mana j mandei para ficar no meu lugar.

30O cego estendeu o brao a querer tocar uma despedida. Mas o outro j no estava l. Ou estava e se desviara, propositado? E sem gua ida nem vinda, Estrelinho escutou o amigo se afastar, engolido, espongnquo, inevisvel. Pela primeira vez, Estrelinho se sentiu invalidado.

- Agora, s agora, sou cego que no v.

No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presena de seu amigo: escuta, meu irmo, escuta este silncio. O erro da pessoa pensar que os silncios so todos iguais. Enquanto no: h distintas qualidades de silncio. assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um um, desbotado sua maneira. Entende, mano Gigito?

Mas a resposta de Gigito no veio, num silncio que foi seguindo, esse sim, repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus olhos no centro de manchas e nvias lcteas. Aquela era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando, o cego captava o escuro em vagas, despedaos. O mundo lhe magoava a desemparelhada mo. A solido lhe doa como torcicolo em pescoo de girafa. E lembrou palavras do seu guia:

- Sozinha e triste a remela em olho de cego. Com medo da noite foi andando, aos tropeos. Os dedos teatrais interpretavam ser olhos. Teimoso como um pndulo foi escolhendo caminho. Tropeando, empecilhando, acabou cado numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram procura da mo de Gigitinho.

Ento ele, pela primeira vez, viu a gara. Tal igual como descrevera Gigitinho: a ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o corpo no ocupasse lugar nenhum.

De aflio, ele desviou o vazado viso de chamar desgraas. Quando a si regressou lhe31

parecia conhecer o lugar onde tombara. Como diria Gigito: era ali que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem fora ele colectou para se afastar.

Ficou naquela berma, como um leno de enrodilhada tristeza, desses que tombam nas despedidas. At que o toque tmido de uma mo lhe despertou os ombros. - Sou irm de Gigito. Me chamo Infelizmina.

Desde ento, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrio e silncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a viso. Porque a mida no tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele careceu que ela o amparasse j no apenas de mo mas de corpo inteiro. De cada vez, ela puxava o cego de encontro a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mo dele j no procurava s outra mo. At que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.

Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante, regressaram as lies de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava eternidades. Sua cabea andorinhava e ele guiava o corao como voo de morcego: por eco da paixo. Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflio o sono chegar. E adormeceu enroscado nela, seu corpo imitando dedos solvidos em outra mo.

A meio da noite, porm, Infelizmina acordou, sobreassaltada. Tinha visto a gara branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu peito. Mas, fingiu sossego e serenou a moa. Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.

De manh chega a notcia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve um militar. A mensagem ficou, em infinita ressonncia, como devem as feridas da

32guerra. Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele j sabendo daquela perca. A moa, essa, deixou de falar, rf de seu irmo. A partir dessa morte ela s tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competncia para reviver. At que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da casa. Ento, iniciou de descrever o mundo, indo alm dos vrios firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territrios. Sim, a moa, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braos antes da minha actual vida. E quando j havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:

- Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?

E o cego, em deciso de passo e estrada, lhe respondeu:

- Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!

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NA ESTEIRA DO PARTO

O casal se chegou, em dupla obscuridade. Os dois pediam licena penumbra. A mulher vinha mais dobrada que gruta na montanha. Estava grvida, quase em fim do estado. Chegados claridade se reconheceu serem Diamantinho, o mais vizinho dos residentes, e sua redonda esposa, Tudinha Rosa, retorcida em dores e esgares. A pobre zululuava, em completas tonturas. Diamantinho, porm, parecia alheio mulher.

O casal comparecia em casa de Ananias e Maria Cascatinha, os afveis vizinhos. As duas donas ficaram na varanda, j uma esteira se estendendo para o que desse e sasse. Maria Cascatinha sorriu, timida: aquela era a sua mais pessoal esteira. No era um simples objecto de assentar. Sobre aquela esteira haviam sido concebidos, de namoro e gemidos, seus todos filhos.

Diamantinho foi entrando, dando-se pois o e posio, mais instalado que convidado. Sentou-se, convocou os pedidos de uma bebida, serviu-se dos confortos. Ananias, o anfitrio, ainda lhe reparou a ateno: no ia ajudar a sua derreada esposa? O outro apenas sorria, saboreando prazeres desta e de outras vidas. Ananias insistiu:

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- Voc, Diamantinho, no divide o sofrimento familiar?

- Tem razo, Ananias, eu s penso da minha pana para c. Na realmente, no valho as penas. Tambm j sou assim desde a barriga do meu pai.

Sobre a mulher, Diamantinho nem esboou meno. Tudinha Rosa permanecia fora, em posio de estar deitada, descontorcida. Rejeitara, contudo, a esteira. Dar parto devia ser sobre a terra, a me das mes. Assim o mandamento da tradio. Maria Cascatinha se agradecia por facto de a esteira ser dispensada. E enrolou-a num cuidadoso canto. Tudinha assentava agora sobre o mundo. Mas a carcia da terra de pouco lhe aliviava. A mulher seguia em dor: os olhos j mpares, as tripas j triplas.

Na sala, o marido servia-se da bebida oferecida, vagueando os olhos em aplicaes de preguia. E continuava a fiar conversa, sempre na mais concisa inexactido:

- Me sinto ferrujado, Ananias. No que eu seja mais velho que voc. Eu nasci foi antes...

Ananias se enervava com a atitude do visitante, mais displicientfico que pangolim. Bem se sabe: partos so exclusivo assunto de mulheres. Diamantinho, no entanto, parecia por de mais alheado. E tanto mais quanto, l fora, as coisas agora se complicavam. Tudinha desprogredia de nesga em vesga. Trocava tudo, at as rezas: o padre-maria e a ave-nossa. Em aflio, Ananias props aces e providncias. No seria melhor levar a grvida at vila? O candidato a pai, sereno como rio em plancie, no apresentava nenhum cuidado. Ordenou ao outro que sentasse, quieto. E estendia o copo a solicitar mais enchimentos. Tudo sem perplexidades.

A mulher, sua indiscutvel esposa, se desdobrava em lancinantes gritos. Sobrinhas diversas se juntavam em roda, debruadas sobre a sofrimentada me. O nervoso crculo das mulheres se podia ver pela janela. At que Ananias foi chamado, em convocao de auxlio.

38Ananias sugeriu ao visitante que os dois acudissem mas o outro ripostou que estava a acabar uma bebida ainda mal comeada. Que depois iria, j em tempo e disposio de proceder devidamente. Por enquanto, ele descascava o tempo, impassvel como tronco de embondeiro.

Ananias rompeu a tradio, juntando-se ao parto que se demorava e s parteiras que se enervavam. Dvidas gerais se comeavam a espalhar. Todos, afinal, sabem: parto que se prolonga significa infidelidade da mulher. Para salvar a situao, a grvida deve admitir o pecado, divulgar o nome do autntico pai da criana. Caso o contrrio, ento, o beb fica retido no ventre, sem ms nem signo.

Ento, no meio de gritos, suspiros e transpiros, Tudinha Rosa confessou ter trocado amores com Ananias, o prprio e presente anfitrio. Maria Cascatinha ficou em estado de nem_estar: seu marido, pai de alheio rebento? Porm, continuou seu trabalho de parteira, inaltervel. S os olhos dela se descomportavam, derramados. Sem palavra, ela findou a obra de desbarrigar a sua sbita adversria. No princpio, a confisso de Tudinha fora um simples murmrio, no se ouvindo para alm do recinto. Nos ltimos esforos, porm, a grvida foi alardeando a consumada traio:

- Foi Ananias, foi ele!

Dentro, tudo se ouviu. Foi como se mundo abrisse rochas e rachas. Diamantinho, nesse repente, mudou da alvorada para o poente.

Saiu para a varanda com cara de marido, em ares de pareceres e pancadarias. Numa palavra: chocado e chocalhado. Descia de sujeito para fulano, de fulano para tipo. Nunca antes se vira tal metamorfase. Ele se enraivecia a ponto de lminas e plvoras. E gritou ameaas e improprios: haveria Ananias de beijar os ps que ele pisasse. Entre os dois homens se procederam a estrondosas porradarias.

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Enquanto socos e insultos se trocavam, o novo menino foi emigrando para a luz. Diamantinho e Ananias nem deram contas do nascimento. Tudinha e o recm-nascido foram levados para um interior quarto, em resguardo. Ananias, aviado de uns tantos sopapos, se recolheu no mesmo aposento da respectiva grvida. Ali ficou o tempo de muitas vidas. Na sala, Diamantinho soprou raivas, invocando feitios e pssimos-olhados contra o dito Ananias. Depois, se derreou, infeliz como a casca sem a banana.

Maria Cascatinha, surgida de igual tristeza, veio a amparar o trado Diamantinho. Lhe assentou o brao sobre o ombro e lhe disse que lhe acompanhava, rumo a casa. Diz-se que Maria Cascatinha nunca mais voltou. Nem para buscar a sagrada esteira.

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O PERFUME

- Hoje vamos ao baile!

Justino assim se anunciou, estendendo em suas mos um embrulho cor de presente. Glria, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os ns e fez despontar do papel colorido um vestido no menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que j esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu corao. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, ranoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaos, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

De onde o espanto de Glria, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que no se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar janela, quanto mais. Glria se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrdula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vo. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranas. Lembrou as palavras de sua me: mulher preta livre a que sabe o que

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fazer com o seu prprio cabelo. Mas eu, me: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que isso de liberdade. E riu-se: livre? Era palavra que parecia de outra lngua. S de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embarao que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o lquido havia j evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inaugurao de namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o nico presente. S agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as ltimas gotas. Perfumei o qu com isto, se perguntou lanando o frasco no vazio da janela.

- Nem sei o gosto de um cheiro.

Escutou o velho vidro se estilhaar no passeio. Voltou sala, o vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentrio do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porm, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

- Ento no passa um arranjo no rosto? - Um arranjo?

- Sim, uma cor, uma tinta.

Ela se assombrou. Virou costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doena sbita dera nele? Onde diabo parava esse bton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minsculo, gasto nas brincadeiras dos midos. Passou o lpis sobre os lbios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faa valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

- Vamos ao baile, sim. Voc no costumava danar, antes?

- E os meninos?

44- J organizei com o vizinho, no se preocupa. E foram. Justino ainda teve que tchovar (1) a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, no. Ele sozinho empurrava, onde que se vira?

Chegaram. Glria parecia no dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mo pronta, gesto presto abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A msica transpirava pelo salo, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glria no exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pr-colegiais.

Ento, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licena de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas no. Justino contemplou o moo e lhe fez amplo sinal de anuncia. A esposa arguiu:

- Mas eu preferia danar primeiro com meu marido.

- Voc sabe que eu nunca dano...

E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilio de ternura: V, Clorinha, se divirta!

E ela l foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem, sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Ento, entendeu: o marido estava a oferec-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar sada. Ela interrompeu a dana e correu para Justino:

- Onde vai, marido?

- Um amigo me chamou, l fora. J volto.

(1) Tchovar: empurrar.

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- Vou consigo, Jjusttno.

- Aquilo l fora no lugar das mulheres. Fique, dance com o moo. Eu j venho.

Glria no voltou dana. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salo, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porm, seu peito se agitou, em balano de soluo. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um ltimo olhar. Com surpresa, ele viu a indita lgrima, cintilando na face que ela ocultava. A lgrima gua e s a gua lava tristeza. Justino sentiu o tropeo no peito, cinza virando brasa em seu corao. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glria colheu a lgrima com dobra do prprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

Saiu do baile, foi de encontro s trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela ainda ali estivesse, necessitada de um empurro. Mas de Justino no restava vestgio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalou e seus ps receberam a carcia da areia quente. Olhou o estrelejo nos cus. As estrelas so os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que s o amor concede eternidades.

Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaos. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rasto. A Glria no lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

Acordou nas primeiras horas da manh, tonteando entre sono e sonho. Porque dentro dela, em olfacto s da alma, ela sentiu o perfume. Seria o que? Efluvlos do

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velho frasco? No, s podia ser um novo presente, ddiva da paixo que regressava.

- justino?!

Em sobressalto, correu para dentro de casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaados no sop de sua janela. Ainda hoje restam, no soalho da sala, indelveis pegadas de quando Glria estreou o sangue de sua felicidade.

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O CALCANHAR DE VIRGLIOHortncia vai de mgoas e panos. A manh cresceu no pino do sol e a mulher segue o caixo de seu marido. No enterro se conta ela e escassas tias. Ningum chora. Parece o falecido no era parente de vivente. Hortncia caminha sob a chuva, intransitiva em meio do trnsito. Sempre ela tivera medo das viaturas, seus modos de dono, ditando leis. Ela que nem de casa era dona. Porm, no presente desfile, ela j perdera receios como se os ps e alcatro tivessem trocado intimidades.

De facto, em vida do falecido, ela se fizera vrias vezes naquela estrada. No repetepete da noite, ela ali vinha resgatar o falecido Filimone, descarreirado no regresso da cervejaria. Noites cacimbolentas, ela apanhava o marido numa annima berma e lhe juntava as pernas aos passos. Em Filimone, o lcool tinha uma vantagem: ele se abandonava, moo de sua esposa, filho de suas gordas ternuras. No resto, o marido deixou registo foi de vagabundagem. O lugar onde ele permanecera mais tempo: o ventre de sua me. Aqueles anos ele vivia s custas da bondade dela. Insensvel aos pedidos dela:

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- Bbado, eu? Veja, Hortncia: at sei andar em p! O lcool lhe fermentara o sangue, invalidando-o para pai, despromovendo-o para marido. Com a esposa Filimone s ostentava maus tratos.

- Roubaram-me tudo, mulher. Agora o nico poder que me resta fazer-te mal.

Ela se acostumara. Nas consecutivas madrugadas Hortncia saa de casa para procurar seu homem. Ela dera a completa volta s bermas e valetas, em todas se debruara para apanhar o esparramado Filimone.

Nunca mais ela ter que carregar o peso dele. Esta a derradeira transportao do seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O carro era despesa demasiada. Assim, se arrumou o caixo em tchova-xitaduma (1). As tbuas no uniam bem e a luz, s fatias, deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixo fora feito de emendas. Hortncia juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela madeira para lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro, Viriglio Prego, no cobrou mo-de-obra.

- So servios de corao: hoje morro eu, amanh morres tu.

Alm disso eram colegas de bebida, ele e o falecido. Mas a obra ficara imperfeita de mais. O carpinteiro se desculpava:

- Em casa de morto no podemos dedicar muita mo. Fornece m-sorte.

Alm disso, madeira boa para vestir a vida. E mais se excusava, com medo do fatal assunto. Hoje morres tu, amanh morremos todos. E se excedia, babas e cuspes. A manga da camisola lhe acudia, em limpeza do nariz.

- Esse mundo est feio, mal acabado. De modo que

(I) Tchova-xitaduma: expresso com que, no Sul de Moambique, se designam as carroas de traco humana. Traduzindo letra: empurra, que h-de pegar.

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s vale ser visto atravs da cerveja. No concorda-me, Hortencinha?

Hortencinha, com que ento? O homem j ia de diminutivos para baixo. Afinal, a inteno do carpinteiro era cobrar a obra por carcia? Hortncia nem resistiu, mais flcida que o embalado Filimone. Rendeu-se ao assalto do madeireiro. Estava vazia, a mgoa lhe roubara o razovel senso.

- assim mesmo, Hortncia: o hoje morre hoje.

Viriglio e o prego. Para a mulher tanto se fazia como se desfazia. O bicho faz de morto para sobreviver. Ela fazia de bicho..

No funeral, porm, Viriglio no constou. Hortncia queria ajuda, nunca tanto ela careceu de apoio. Pacincia. Afinal, o carpinteiro j tinha deixado adivinhar sua provvel ausncia. Para entende dor como ela meia palavra j de mais.

- Se calhar nem hei-de poder ir. que, nesse tempo de frio, me prende todos os calcanhares.

No cemitrio, a viva no chora, triste que est. Lgrima liga bem nos que ainda guardam esperana.

As tias se aproximam da cova. Elas choram mas sem molho da alma. Ela enxota as restantes mulheres. Diz que quer voltar a casa, arrumar as coisas. Que coisas, se interrogam as mulheres. E deixam-na, infelizes de no poderem mais debicar em desgraa alheia.

Se calhar, ela nem aceitara viuvez, diziam umas. No se viu nem uma aguinha de tristeza: pode ser? Hortncia no se entendia, aps a morte do falecido. Requer-se que a tristeza seja parecida, capaz de ser falada pelas mil bocas, espalhvel em caticas desordens. Mas aquela melancolia de Hortncia fazia medo de to prpria e nica. Por isso, dela todas se desavizinharam.

A nica companhia que lhe restava era o carpinteiro. Este lhe chegava sempre a desoras, perdido o fio-de-prumo do tempo. E se passou a ver aquilo que nunca, no bairro, se assistira. Hortncia cabistonta de bbada,53

no carreiro da cervejaria. A viva se entornava pelas bermas. Por que motivo se entregava bebida com tais assanhas? Quem pode saber? Verdade mentira que no fala a mesma lngua do pensamento. Hortncia explicava:

- Ando procura de meu Filimone. Deve estar cado por a.

E assim, antes e depois de Filimone aquela mulher desconhece o sabor do sono, em noite e descanso. Hortncia soma mais olhos que fadiga? No h vigente testemunha. Apenas o carpinteiro interrompe a solitria existncia da viva. Os dois somam a pessoal e intransmissvel embriaguez. E se riem, em alegrias que no so deste mundo. Breves so os enquantos, nenhuns os encantos.

- Se um dia eu me escorregar, dormidinha na valeta, voc me apanha, Viriglio Prego?

- Com a certeza, Hortncia. Amanh eu, voc hoje: assim a vida...

At que, uma noite, o frio lembrou viva que um exacto ano decorrera sobre o funeral de Filimone. Hortncia j nem conhecia o direito e o avesso de sua alma sbria. Tal morte: acontecera no verso ou no inverso da sua verdadeira vida? Ela fechou os olhos e uma inundao de tristeza cobriu seu corpo. Hortncia ensaiou matematicar sua vida. Mas no havia conta que fazer. Uma nica ideia lhe ocupava: havia que cerimoniar, por segunda vez, seu distante marido.

Hortncia enxugou o rosto e se decidiu pelo escuro, rumo ao cemitrio. Levava ao falecido no as consagradas oferendas, panos e farinha. Em seu cesto seguiam cervejas, s dezenas. Ainda passou por casa do compadre Prego a ver se ele se ajuntava ao individual cortejo. Ele foi dizendo que sim, ela que fosse abrindo cacimbo, na frente. Ele j iria, claro e isto-aquilo:

- Hoje eu, amanh todos.

Hortncia entendeu. Lhe cabia a solido e o despovoado caminho.54

Chegou, se sentou junto cova e foi destampando as garrafas. Bebia e entornava, seus lbios em si, lbios do falecido na terra.

- Beba, Filimone, agora j no tenho que lhe apanhar.

Depois, j trocadas as vises, Hortncia regressou pelo escuro. Quem sabe que percalo, se o cacimbo se humana desumanidade, levou a viva a se despenhar em fundo de valeta. Houve quem visse sinais de suas roupas, entornadas no glido fundo. Se houve quem viu, nenhuma mo se aprontou para lhe desafligir. Foram, sim, alertar Viriglio Prego. Ele que fosse l, afinal Hortncia era sua companhia. Mas o carpinteiro espreitou a fria cacimba e se lembrou do calcanhar, modos que as dores lhe espetavam quando o tempo mudava: - Hoje cada um. Amanh ningum.

Na vala fria, Hortncia vai sentindo um sono maior que a noite. Que se passa, pergunta ela. Estou deitada na terra e no me chega o leito? E ela se enrosca para caber toda no ventre da noite. Ou, quem sabe, se ajeita para que os braos de Filimone a venham buscar?

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CHUVA: A ABENSONHADA

Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai h trs dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em vspera de carcia. H quantos anos no chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa misria. O cu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: ser que ainda podemos recomear, ser que a alegria ainda tem cabimento?

Agora, a chuva cai, cantarosa, abenoada. O cho, esse indigente indgena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse janela do meu inteiro pas. Enquanto, l fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva no assunto de clima mas recado dos espritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentria to exibvel e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabea a minha teimosia: haver razovel argumento para eu me apresentar assim to descortinado, sem me Sujeitar s devidas aparncias? Ela no entende.

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Enquanto alisa os lenis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora no tem dvida: a chuva est a acontecer devido das rezas, cerimnias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moambique a guerra est parar. Sim, agora j as chuvas podem recomear. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, j se ressequiam l nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de usar e profere suas certezas:

- Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, est ser limpa, faz conta essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor d vez a este seu fato?

- Mas, Tia Tristereza: no ser est chover de mais? De mais? No, a chuva no esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a gua sabe quantos gros tem a areia. Para cada gro ela faz uma gota. Tal igual a me que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus servios, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares j encontraro o cho molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que no passam pela vontade dos polticos.

Mas dentro de mim persiste uma desconfiana: esta chuva, minha tia, no ser prolongadamente demasiada? No ser que calamidade do estio se seguir a punio das cheias?

Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorolgicos que minha sabedoria no pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:

- L em cima, senhor, h peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a gua.

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E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.

- No acredita, senhor? Mesmo em minha casa j caram.

- Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?

Negativo: tais peixes no podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas no cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. L fora continua chovendo. O cu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migraes de azul. Mas parece que, desta feita, o cu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: no sero demasiadas guas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho procura da floresta. E acrescenta:

- A chuva est limpar a areia. Os falecidos vo ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moambique...

Tristereza ainda me olha, em dvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vo descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evaso? E por que razo a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza no sinta, como eu, a atraco de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se est lavando do passado. Eu tenho dvidas, preciso olhar a rua. A janela: no onde a casa sonha ser mundo?

A velha acabou o servio, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam l fora. O verde fala a lngua de todas as cores. A Tia j dobrou as despedidas e est a sair quando eu a chamo:

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- Tristereza, tira o meu casaco.

Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vo tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: no sacuda, essa aguinha d sorte. E de brao dado, samos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

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O CACHIMBO DE FELIZBENTO

Toda a estria se quer fingir verdade. Mas a palavra um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estria. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se ver neste caso que s na mentira do encantamento a verdade se casa estria. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana.

Aquele cho ainda estava a comear, recm-recente. As sementes ali se davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se atrelava no tempo, as rvores escalando alturas. Um dia, porm, ali desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades da morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal.

Vieram da Nao apressados funcionrios. Os delegados da capital sempre cumprem pressas quando esto longe de sua origem. E avisaram que os viventes tinham que sair, convertidos de habitantes em deslocados. Motivos da segurana. Chamaram um por um, em ordem analfabtica. Chegou-se a vez de Felizbento. O velho escutou, incrdulo como o sapo que comeu a

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cobra. Sua nica substncia foi um suspiro. Ficou como estava, enrolando a alma. Os outros se resumiram, embrulho e vulto, nas traseiras dos camies. Mas Felizbento se deixou imvel. O funcionrio chefiou a situao, ordenando que se depressasse. Que fosse, igual aos outros.

- No ouviu a ordem? Agora, implementa.

Felizbento deu uma segunda demo no silncio, esfregou um p no outro. Puxava lustro em p descalo? Ou apontava o cho, lugar nico de sua existncia? Sempre calara suas dores, mais fornecido de pacincia do que de idade. Finalmente, apontou a vaga mata e falou:

- Se vou sair daqui tenho que levar todas essas

rvores.

O nacional funcionrio economizou pacincia e lhe disse que, mais semana, eles voltariam para o carregarem, nem que fosse bruta fora. E foram.

No dia sequente, o homem ps-se a desenterrar as rvores, escavando pelas razes. Comeou pela rvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: l onde ia covando j se desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax (1), desses que trouxera do Johnne. E tempo aps tempo, se demorou nesse servio.

Sua esposa lhe apontava, desapontada, a incondizncia de seus actos. Nem valia a pena perguntar nada a Felizbento. Roupa de morto j no se amarrota. Teima de velho no se desfigura. A senhora ficava janela como um relgio parado. No escuro da noite, a velha s via a locomoo do petromax, parecia nenhuma mo lhe segurava.

Aflita a mulher desenhou o plano. Ela se ofereceria, imitando os tempos em que seus corpos desacreditavam ter limite. Foi ao fundo dos armrios, onde nem as

(1) Petromax: candeeiro a petrleo.

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baratas ousam. Tirou a saia de flores, os sapatos de bico e ponta. E lhe fez nocturna espera, roupa e cheiros a apetecerem. Lembrava as antigas palavras de Felizbento, nesses outroras:

- Se para namorar o melhor a noite.

Os que j namoraram diverso e variado sabem o quentinho do escuro, leito do leito. De noite, os seres mudam seu valor. O dia mostra os defeitos do mundo: rugas, poeiras, vincos, tudo na luz se v. noite se olha mais, se v menos. Cada ser se revela apenas pela luz que dele emana. E ela, nessa noite, produzia suave clareza que nem lua.

Felizbento chegou de sua labuta, olhou a mulher num raspo. Ficou como que encalhado, perdida a gua de sua viagem. A mulher se aproximou, tocando em seus braos. Se apresentava dona de si mesma: essa era sua irrecusvel beleza.

- Esta noite fique comigo. Deixe as rvores, Felizbento.

O velho ainda hesitou uma tontura. A mulher nele se envolveu, em dedilhar de trepadeira. Felizbento se sentia como gua dentro do peixe. Que seria aquilo?

Alma deste mundo? Foi quando ela, sem querer, pisou com seu sapato de ponta o p descalo do marido. Foi como pico em balo. O campons recuou, resolvido. Machado de volta mo ele reentrou no escuro.

Certo dia, Felizbento veio superfcie e pediu mulher que lhe desmaIasse o fato, preparasse a devida roupa, engomasse os terilenes. H mais de trinta anos que aquela roupa no cumpria cerimnia. Os sapatos j nem lhe cabiam. Os ps tinham tomado a disforme foro ma da descalcido. No havia, alis, sapatos que lhe coubessem.

Levou os antigos sapatos assim mesmo, meio enfiados, calcando os calcanhares. Arrastava-os pelo cho, no fossem separar-se os ps dos passos. E l foi, dobrado como canio, nessa infncia que s na velhice se 67

encontra. Foi entrando na terra e s uma vez se virou. No para as despedidas mas para remexer nos bolsos um esquecimento. O cachimbo! Remexeu os interiores da roupa. Tirou o velho cachimbo e revirou-o sob a luz trmula do candeeiro. Depois, com gesto desanimado, atirou-o fora. Era como se atirasse toda a sua vida.

O cachimbo l ficou, remoto e esquecido, meio enterrado na areia. Parecia a terra aspirava nele, fumando o inutenslio. Felizbento ingressou no buraco, desaparecendo.

Ainda hoje a mulher se debrua na cova e chama por ele. Mas sem gritar. Doce como se chamasse uma pessoa adormecida. Ainda ela usa o vestido das flores, sapatos de ponta e o cheiro com que, em desesperana, ainda tentou a tentao de Felizbento. Depois ela se recolhe, apagada. S os olhos, em redonda insistncia, semelham coruja com insnia. Que sonhos convidam aquela mulher a existir?

Os que voltaram ao lugar dizem que, sob a rvore sagrada, cresce agora uma planta fervorosa de verde, trepando em invisvel suporte. E asseguram que tal arvorezinha pegou de estaca, brotando de um qualquer cachimbo remoto e esquecido. E, na hora dos poentes, quando as sombras j no se esforam, a pequena rvore esfumaa, igual uma chamin. Para a esposa, no existe dvida: em baixo de Moambique, Felizbento vai fumando em paz o seu velho cachimbo. Enquanto espera a maiscula e definitiva Paz.

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O POENTE DA BANDEIRA

Aurorava. o sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonao geral. No topo das rvores, frutificavam os pssaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num sbito. A claridade j muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escurido. As criaturas se vo recortando sob o fundo da inexistncia. Neste tempo uterino o. mundo interino. O cu se vai azulando, permeolhvel. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora j entrou neste escrito, entremos ns no assunto.

Nesta manh to recente, uma criana vem caminhando. Quem este menino que faz do mundo outro menino? Deixem'os seu nome, esqueamos seu lugar. Dele se engrandece apenas a av: que o mido tem intimidades com o mundo de l. De quando em quando, a criana lhe estende a faca e pede:

- Me corte, av!Para sonhar o menino tinha que sangrar. A av lhe cedia o jeito, habituada lmina como outras mes se , acostumam ao pente. O sangue espontava e o mundo presenciava o futuro, tivesse a barriga prenhe do

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tempo encostada em seu ouvido. Ditos da velha, quem se fia?

Confirmado que o menino segue por aquela manh. Seus ps escolhem as pedras, nem precisam dos olhos para se guiarem. O mido passa no municipal edifcio, o nico da vila. Seu rosto se ergue para olhar a bandeira. O pano dana dentro do cu, como luz que se enruga. Um velho coqueiro sem copa serve de mastro. As cores do pano esto to rasgadas que nada nele arco-irisca. Os olhos do mido pirilampejam de encontro luz: quando o golpe lhe tombou. Deflagra-se-lhe a cabea, extracraniana. A voz autoritarista do soldado lhe desce:

- Voc no viu a bandeira?

Tombado no carreiro, sobre as pedras que antes evitava, o menino olha as cimeiras paragens. Um coqueiro lhe traz lembranas litorais. Onde h uma palmeira sempre deve ser inventado um mar, eternas ondas morrendo. Agora, rebatido no repentino solo, o menino estranha ver tanto cu. A pergunta lhe vem pastosa: porqu o cho, to debaixo dele? Outro golpe, a bota espessa lhe levando o rosto ao encosto da terra. Fica assim, pisado, sem outra viso que a da areia vermelha. Seu pensamento se desarruma. Palmeira, palma do mar, onde o azul espeta suas razes. Pergunta-se, com as devidas vnias: e se iassem no a bandeira mas a terra? Ceda-se o turno ao mundo. A voz lhe chega, baixada como um chicote:

- Voc, mido, no aprendeu respeitos com a bandeira?

Sente o sangue escorrendo, a bota do soldado ainda lhe di uma ltima vez. Como pode saber ele os procedimentos exigidos pelo vigilante? Mas o soldado totalmente militar: est s cumprindo ignorncias, jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um da lei-de-fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, to sem pedrinhas que os ps nem tinham que escolher.72

Um caminho que dispensava toda bandeira. medida que o soldado desfere mais violncia, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em redor esfria e a luz tomba de joelhos. , ento.

Sucede coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. Fluvial, o pano migra para outros cus. No momento, se v o quanto as bandeiras roubam aos azuis celestiais.

Mas o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o pressgio. Porque, no sequente instante, a palmeira se despenha das suas alturas fulminando o soldado, em claro de rasgar o mundo em dois. Sobem confusas poeiras, mas depois a palmeira se esclarece, tombada em assombro, junto aos corpos.

A rvore estava j morta, ainda houve o dito. Poucos criam. A crena estava com a av, sua outra verso: o tronco se desmanchara, lquido, devido morte daquela criana. Vingana contra as injustias praticadas contra a vida. De se acreditar estavam apenas aquelas duas mortes, uma contra a outra. A palmeira sumiu mas para sempre ficara a sua ausncia. Quem passe por aquele lugar escuta ainda o murmrio das suas folhagens. A palmeira que no est conforta a sombra de um menino, sombra que persiste no sol de qualquer hora.

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NOVENTA E TRSForam entrando um por um. O velho estava na cabeceira, cabeceando. medida que entravam, algum anunciava os nomes, descrevendo em alta voz o jeito dos vestidos. Os netos encheram sala, os bisnetos sobraram no quintal. O av levantava um olhar silencioso, sem luz. Sorria o tempo todo: no queria cometer indelicadeza. O av fingia, aniversariamente. Porque em nenhum outro dia os outros dele se recordavam. Deixavam-no poeirando com os demais objectos da sala.

Esta noite, as prendas se juntam e ele apalpa os embrulhos. O seu gesto no leva desacerto. Afinal, no h mo mais segura que a do cego. Porque o cego agarra o que h e o resto no acontece. Lugar de quem no v est sempre certo: afinal, s erra quem pode escolher. O velho agradece, vidente invisual. Tudo estando longe da vista, perto do corao.

Os convidados ficam um tempito junto dele, no sabem o que dizer, no h quase nada a dizer, o velho ouve s acima das gritarias. Depois, quem sabe olhar um cego? Vendo-o assim esplendoloroso, acreditam, para sossego deles, que o av j tenha adormecido.77

O dia lhe sendo igual noite, o cego bem deve dormir de ouvido.

Mas o av apenas se finge dormido. Naquele enquanto, ele apenas aguarda uma fresta para poder exercer sua mais secreta malandrice. Todos os dias escapa do lar. Quando a cidade refreia o pulso, ele sai rua. Nunca lhe notaram essas ausncias. Nem imaginam que, andando em tropeos to pequenos que nunca chega a cair, ele diariamente se evade para o jardim pblico. Vai encontrar seus dois vigentes amigos: um gato silvestre e Ditinho, o menino da rua, desses que perderam morada. O mido lhe conversa e o velho lhe oferece uma nenhumita coisa que roubou de casa. Para ambos, o mundo muito grande. Cansado de puxar estria, o mido adormece. Amolecido, o av tambm se aplica no banco de jardim. At que aparece o gato, mais meloso que rameloso. O gatito se esfrega, seu todo corpo uma lngua lambendo o velho. O bicho ronrosna, farfalhante. Gato que ama sempre asmtico?

Agora, por entre os barulhos que invadiram toda a casa, o av sente saudade do jardim. Ser que pode sair?

- Sair?

Os familiares se admiram, indignados. Ento, no preciso dia de anos? E aonde? O velho se resigna, desistido. Que ele era de manias j sabiam. Exemplo: htrs anos atrs ele decidira fazer seu prprio caixo. A famlia se perguntava: que deu nele? A filha mais velha estremeceu: seria pressentimento? Os irmos, contudo, riram: disparate!

O velho, no enquanto, prosseguia a construo. Hoje um toque, amanh um retoque. Esta a morada a mais definitiva, obra para nossa eternidade, no ser que vale a pena cuidar dela? Vocs esto a vida inteira trabalhando para erguer casa provisria; eu trabalho no definitivo.

Por isso, os familiares no se perturbam com os

78desejos do velho. Em plena comemorao da sua idade ele quer ir passear-se longe e sozinho? Coisa de menino, delrio infantil. E assim deixam o velho na poltrona da cabeceira, em aparncia de sono. Todos se garantem de que ele no precisa mais cuidado. Mas a iluso de se estar certo nasce de todos estarem errados no mesmo momento. Pois, o velho, de repente, proclama a sbita pergunta:

- Me desculpem vocs todos: mas, fim ao cabo, quantos anos eu fao?

Riram-se. O velho malandrava, devia fingir esquecimento. Uma voz se levanta, lhe anunciando a idade. O velho franze a testa, desconfiado:

- Noventa e trs?

Parecia atnito. No restante da noite, ele intervalava a cadeira com repentinos espantos. E voltava:

- Noventa e trs?

Mais tarde, j as danas se emparelhavam. O velho tropeando entre os casais, aborda um algum: me desculpa, meu filho, em que ano estamos?

- Noventa e trs, pai.

No, corrige o velho. Pergunto em que ano estamos.

Mas j ningum estava. A multido, ruidosa, acelera os festejos. Naquela alegria no cabem avs. As bebidas correm, as mentes se vo tornando lquidas.

Finalmente, trazem o bolo de aniversrio. O velho sopra em todo o lado menos no bolo. Decidem todos juntos apagar as velas, na vez do festejado. O bolo cortado rpido, h que regressar alegria. O velho deve estar por a dormindo, dizem, ele descansa assim no meio de qualquer momento. Mas o av no dorme. Est quieto sofrendo de saudade dos seus companheiros da rua, Ditinho mais o gato. Esses, sim, mereciam pensamento. S para eles, vadios do jardim, ele se sentia av.

E sem que ningum se aperceba, o aniversariante escapa do aniversrio. Se adentra no jardinzito e se estende no banco, suspirando uma leve felicidade. O gato

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desce da paisagem e se enrosca docemente no brao. O velho lhe tinha reservado um doce roubado festa. Ditinho chega depois, vindo de jantar um lixo.

Diante do banco, o mido espreita curioso. Nunca o velho se apresentara to tardio. A criana se senta, familiar. Coloca a mo no bolso do av, avalia-lhe o volume da carteira e pergunta:

- Ento, quanto temos aqui?

O velho sorri, leva a mo ao peito e proclama: - Noventa e trs!

Os olhos do mido relampejam:

- Tudo isso? Ests rico, vov.

O velho concorda, acendendo um sorriso. O menino tinha o corao em trabalho de parto:

- Com esse tanto dinheiro hoje vamos fartar por a: comer, beber, gargalhotar.

E se levanta, puxando o velho por uma escura ruela. O av ainda se lembra: a minha bengala! Mas Ditinha responde: sua bengala, a partir de hoje, sou eu. E se afastam os dois, cada vez mais longe dos rudos da festa de aniversrio. No jardim, o gato esfrega uma saudade na esquecida bengala. Depois, corre pelo beco escuro, juntando-se aos dois amigos que, j longe, festejavam o tempo, comemorando o dia em que todos os homens fazem anos.

80JOROJAO VAI EMBALANDO LEMBRANAS

Meu amigo Jorge Pontivrgula, o nosso Jorojo, me contava seus maldesentendidos com a vida. Azares que ele, conforme dizia, sempre pressentira. Meu amigo se mostrava no que era: um pressentimentalista. J vos conto. Antes, porm, ponho em retrato a alma inteira do dito Jorge.

No resumo da sua vida, o Jorojo sempre s tinha um querer: evitar confuso. Nem tantos receios encostavam num homem de tanto tamanho. Sua altura excedia a de um gigante. Falava-se com ele olhando as nuvens. Em brincadeira dizamos: o homem s beija sentado! O tal Jorojo, nos coloniais tempos, passou pela poltica como dinheiro em bolso indigente: circulando pouco e nunca morando. O burburinho da cidade lhe fazia mal. Para sair pelos matos se ofereceu para motorista de safaris. Assim se punha distante do mau hlito do mundo. No se livrou, porm. Pois lhe aconteceu ter que conduzir uma delegao de chefes da PIDE aos matos onde estes iriam caar. Gente grosseira caa grossa: que mais ele podia temer? No fim do dia, um dos autoritosos polcias lhe baixou a ordem de limpar as armas. Lembra-se de ter tremido:

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- As armas?

Nem ele mexia sequer nessa palavra, quanto mais.

Mas fingiu as contas e l esfregou, limpou, oleou. Quando passava o ltimo lustro, um tirao deflagrou em plenas ventas de um dos desditosos ditos. O PIDE caiu que nem coco em dia de ventania.

Passados que foram trinta anos, o Jorojo se desculpa: foi um tiro pequenito) um tiritinho de nada. No que o gajo esticou mesmo? Eh p, nem acredito que tivesse morrido do tiro. Deve ser foi um susto cardaco. Ou se calhar tinha a cabea mal atarraxada.

Volta a encher o copo, verte a inteira bebida. Depois, fecha os olhos, estala a lngua, afia uma nova alegria. A tristeza j espreitava, tona da memria, havia que submergir a alma na cerveja. Balanando a cadeira me explica: o embalo do assento que o faz voltar ao antigamente. No fosse a cadeira ele j se tinha despedido de toda a lembrana.

O balano j devia ser muito pois ele voltava ao antigamente: depois do tiro, foi preso por ligaes ao terrorismo. Sorte sua: j se estava em Janeiro de 74, no tardou a que o regime fascista tropeasse em Abril. Aquela manh lhe permanece bastante inesquecvel. As massas assaltaram a priso, vo direito sua cela e o carregam em braos. S ento ele mediu a sua prpria altura: lhe subiu uma vertigem. Era o heri, justiceiro do povo.

- Veja l eu, p) um gajo que nem se mete... se houvesse um prmio para mim seria o de descompensao.

Mas a Revoluo lhe atribua distino: dirigir uma empresa nacionalizada. O Jorojo ainda tentou recusar. A recusa ainda dava, porm, mais confuso. Da que ele tivesse desempenhado com o maior empenho. O Jorojo entrava de manh, no saa noite. Andava tudo em cima da linha, as contas da empresa a crescerem em repletos ganhos. Tudo corria to bem que comearam

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a desconfiar. As outras empresas estatais nem prato tinham e ele abastava-se de sopa? Veio a brigada do controlo, nem olharam os papis. Bastou olharem para a parede do gabinete e verem a arma.

- Esta arma no est identicamente com as orientaes.

- Mas essa a arma gloriosa, foi com ela que eu matei o pidalho, no se lembram, cuja essa arma fui dado em cerimnia pblica?

No serviram as explicaes. Como se podia saber se era a mesma arma? Na parede de um gabinete todas as espingardas so pardas. E lhe levaram preso, acusado de armazenar armamento duvidoso. Ficou na priso, mais quieto que pangolim. Ainda se lembra dos infelizes tempos de desglria, dormindo para esquecer o estmago. Agora, lhe amargam essas lembranas:

- J viu, o senhor? No sou eu, os assuntos que se metem com meu nariz.

E l ficou, meses a pavio. Certo dia, espreitando pelas grades v dar entrada na priso um magote de trabalhadores da sua empresa. Pede audincia ao responsvel da priso, em tento de entender a presena dos seus subordinados. O chefe do presdio lhe falou com estranhas deferncias:

- O senhor jorojo sabia que era para ser solto hoje?

- Solto?

- Sim, hoje mesmo, em comemorao do Dia Mundial da Meteorologia. Contudo, vai ter ficar preso mais uns tempos...

E porqu aquele dito e desfeito? O adiamento da soltura provinha do seguinte: os ditos trabalhadores, saudosos do director aprisionado, haviam engendrado uma cerimnia de feitiaria para que o seu dirigente fosse posto em liberdade. As autoridades interromperam o ritual e prenderam os participantes, acusados de obscuras supersties. J estava a causa em cima do efeito:85

a libertao do Jorojo teria que ser suspensa no fossem os crditos da medida para as feudalistas cerimnias. Simples, lhe explicava o chefe da priso. Se voc sasse agora haviam de dizer que essas cerimnias supersticiosas acabam por resultar. E isso vai contra os princpios do materialismo. Por essa mesma razo, o distrito adiou as celebraes do Dia Mundial da Meteorologia. E o desinventado Jorojo l voltou ao crcere.

- J viu? Me demoraram na priso por causa do materialismo meteorolgico!

Meses depois que ele desaguou em rua aberta, quando j ningum podia relacionar a soltura com os artimanhosos espritos. O Jorojo se lamenta: mordido pelo co, desdentado pelo ladro. Ainda hoje no lhe falem do estado do tempo. Sentado na velha cadeira de balano, pesa-lhe a imensido dos dias. Trabalhar para qu? O trabalho como um rio: est-se acabando e o que vem atrs ainda um rio. Esticando as pernas com lassido me pergunta:

- Quem est balanar: sou eu, a cadeira ou o mundo?

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PRANTO DE COQUEIRO

Foi evento que saiu no jornal da Nao, oficial e autenticado. O alvoroo dos coqueirais de Inhambane mereceu ttulo e honrosas colunas. Tudo comeou quando, sentado na marginal de Inhambane, meu amigo Suleimane Ibramo partiu a casca de um coco. Pois de dentro do fruto no jorrou a habitual gua-doce mas sangue. Exactamesmo: sangue, certificado e indiscutvel sangue. Mas no foi o nico pasmo do assunto. Do fruto brotou ainda humana voz em choros e lamentos. Suleimane no esteve com meias desmedidas: as mos boquiabertas deixaram tombar o coco e o vermelho se espalhou em mancha. Ficou assim, atarantonto, trapalhao, sem gota. O susto lhe fez esvair a alma em marbaixa.

Quando acorri ao lugar ele ainda estava na mesma posio, cabea ajoelhada no peito. Restos do incidente tinham sido removidos, as mos lavadas, amnsicas. S a voz ainda lhe tremia enquanto me relatava o episdio. Eu desconfiava. A dvida, sabemos, a inveja de no nos suceder a ns as impossveis surpresas.

- Me desculpe, Sulemane: um coco que falava, chorava, sangrava?

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- Eu bem sabia: voc no ia acreditar.

- No no acreditar, mano. duvidar.

- Ento pergunte a, por esse povo afora, pergunte a sucedncia desses cocos.

Enchi o peito para a pacincia respirar. Coisas estranhas j tenho hbito. Tenho at gosto em tropear nessas inocorrncias. Mas aquele no era o momento. H muito que deveramos ter sado daquele lugar. O nosso trabalho j tinha terminado h uma semana e ns ainda aguardvamos notcias do barco que nos havia de transportar de regresso a Maputo. No que o lugar no nos desse um minucioso descanso. Inhambane uma cidade de modos rabes, sem pressa de entrar no tempo. As casas pequenas, obsclaras, suspiram no cansao desse eterno medir foras entre a cal e a luz. As ruas estreitas so boas de namorar, parece que nelas, por mais que andemos, nunca nos afastamos de casa.

Olho na baa o azul feminino, esse mar que no faz onda nem pede urgncias. Mas meu companheiro de viagem j tem pulga e ouvido desencontrados. Quando pergunto sobre a chegada do prximo barco, Suleimane oscila, um p e outro p, como fazem os prisioneiros. - Cada vez h-de vir hoje.

O homem falava na imperfeita certeza. Porque naquele mesmo instante, fossem saindo de suas palavras, comearam a excrescer as brisas. Ventaniava. Primeiro, se abanaram as bananeiras. Trejeitosas, as folhas balanaram, obsolentas. Nem ligmos.

Afinal, s um risco de vento preciso para abanar as frutuosas plantas. Se deveriam chamar, no caso, as abananeiras. Mas depois, outros verdes comearam a sacudir-se em agitada dana. Suleimane se pe mais gago:

- Esta ventania no vai autorizar nenhum barco. Me sento ali, milvagaroso para mostrar que no tenho opinio. Desembrulho os bolinhos que comprei faz pouco s mamanas (1) do mercado. Um mido se aproxima. Penso: l vem mais um pedinchorar. Mas no, a criana se guarda para alm da mendigvel distncia. J meus dentes se preparam para o sabor quando o mido se arregala, subindo o grito na garganta:

- Senhor, no come esse bolo!

Estanquei o dente, boca em assombro de no-sei-qu. O menino renova a sentena: eu que no metesse saliva no pastel. Explicar ele no sabia mas a me se apresentaria, em repentina chegada, por chamamento da criana. A senhora se encenou em vasto volume, segurando a hbil capulana:

- A criana tem razo, me desculpe. Esses bolos foram feitos de coco verde, foram cozinhados com lenho.

S ento entendo: ofenderam a tradio local que pe no sagrado o coco quando ainda verde. Interdito colher, interdito vender. O fruto no maduro, o lenho como chamado, para ser deixado na tranquila altura dos coqueiros. Mas agora, com a guerra, tinham vindo os de-fora, mais crentes em dinheiro que no respeito dos mandamentos.

- Muito-muito so esses deslocados que esto vender lenho. Um dia desses at a ns ho-de vender.

Mas o sagrado tem seus mtodos, as lendas se sabem defender. Variadas e terrveis maldies pesam sobre quem colhe ou vende o proibido fruto. Os que compram apanham a tabela. A casca sangrando, as vozes chorando, tudo isso so xicuembos, feitios com que os antepassados castigam os viventes.

- No acredita?

A vasta senhora me interroga. No tarda que ela desfie suas verses, me aplicando o princpio de que para meio entendedor duas palavras no bastam. Mesmo antes de ela falar, os presentes do estalidos com a

(1) Mamanas: termo com que se designam as mulheres casadas no Sul de Moambique.

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\lngua em aprovao do que vai ser dito. boa maneira do campo, todos se confirmam. Exclamaes de quem, no dizendo nada, concorda com o que esteve calado. S ento a senhora desembrulha palavra:

- Pois lhe digo: minha filha comprou um cesto de lenho l nos bairros. Trouxe o cesto na cabea at aqui. Quando ela quis tirar o cesto no conseguiu. A coisa parecia estava pregada, todos fizemos a fora e no saiu. S houve um remdio: a moa voltou ao lugar da venda e devolveu os cocos no vendedor. Ouviu? E j no presente o senhor que me ponha mais ouvido. Nem diga que no ouviu falar no caso da vizinha jacinta? No? Lhe acrescento, senhor: a cuja jacinta se ps a ralar um coco e foi vendo que nunca mais esgotava a polpa. No lugar de uma panela ela encheu as dezenas delas at que o medo lhe mandou parar. Deitou tudo aquilo no cho e chamou as galinhas para comerem. Ento, sucedeu o que nem posso bem contar: as galinhetas se tresconverteram em planta, pena em folha, pata em tronco, bico em flor. Todas, sucessivamente, uma por uma.

Recebi aqueles relatos mais calado que o bzio. No queria mal-desentendido. O Suleimane, esse, bebia com aflio os populares relatrios, fantico acreditesta. At que nos fomos, sados dali para penso de nenhuma estrela. Tnhamos a comum inteno de buscar o sono. Afinal, o barco chegaria no dia seguinte. O regresso estava ganho, no havia mais que pensar nos fantasmas dos coqueirais.

Malas e sacos balanando no convs, motores barulhando: eis que, em demorado enfim, voltvamos para Maputo. Meu cotovelo alegre toca no brao de Suleimane. S ento reparo que, oculto entre as roupas, ele leva consigo o maldioado coco, o mesmo que comeara a partir. Me admiro:

- para qu esse fruto?

- para mandar analisar l no Hospital.

Antes que eu debitasse lgica, ele contraps: 92

aquele sangue sabe-se l em que veias andara brincando? Sabe-se l se era matria adoecida ou, antes, adoesida? E voltou a embrulhar o fruto com carinhos que s a filhos se destinam. E se afastou, embalando em cano de nenecar (1). Seria esse meninar de Suleimane, quase eu juro, mas me pareceu escutar um lamento vindo do coco, um chorar da terra, em mgoa de ser mulher.

(1) Nenecar: no sentido original significa trazer uma criana s costas; utilizado aqui como adormecer, embalar.

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NO RIO, ALM DA CURVACito do jornal a verdadeira notcia. Rezava assim:

"Um hipoptamo invadiu e destruiu o mobilirio do Centro de Alfabetizao e de Corte e Costura do bairro da Munhava, deixando perturbados os residentes do mais populoso bairro da capital de Sofala. [] O guarda-nocturno daquele centro disse que o animal no era um vulgar hipoptamo mas um exemplar muito estranho que arrombou a porta da escola, introduziu-se na sala de aulas e comeou a destruir a moblia. [] Circula entre a populao o rumor de que o hipoptamo , afinal, um velho cidado que perdeu a vida na zona de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar profecias: que a cidade ficar privada de chuvas e que graves doenas mataro muita gente. O facto coincide com o surto de epidemias que grassa naquela regio urbana. (Fim da citao.)

O jornal no versou o restante sucedido, aps o desfecho. Acrescento aqui as verses dos que testemunharam em imperfeito juzo, gente versada em nocturnas aparies. Felizmente, no actual mundo, no h fontes indignas de crdito.

Jordo Qualquer acordou sobressalteado: que barulhos

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lhe chegavam l da escola? Ficou inesparado abstenso. E se decidiu ficar, a ver as consequncias de nada fazer. Mas a barulheira aumentava de volume. Na escola algum desbotava a manta, em assanhos de zaragatunagem. Ladres, seriam. Mas assim, naquele descaramento? Estariam a tirar medidas da sua coragem? jordo puxou a arma e se aproximou da escola. Calcanhava-se, os ps a contradizer a marcha. O tamanho dos rudos era coisa de afugentar o atrevido e acobardar o heri. O medo um rio que se atravessa molhado.

Enquanto chegava mais perto Jordo apelava para reforos dos cus: que os xicuembos me segurem! A lua iluminava o caminho. O luar bom mas no chega para tirar o espinho do p. assim que Jordo no pode autenticar o tudo que viu, as coisas que se seguiram e que lhe couberam mais nos olhos que no pensamento. Pois quando ele espreitou na janela viu o enorme bicho mastigando a mquina de costura. A enormeza de tal mamfero nunca lhe tinha sido vista. No era um simples, desses. Se diria ser um hiperptamo. O bichoro descobriu o milcia. na moldura da janela. Fixou o homem com seus olhos ensonados, postos no sto da testa. Depois, voltou a trincar a moblia. Prosseguia assim o piquenique do pcnico.

Pela cabea de Jordo Qualquer passaram ideias, repentinas como pssaros. Como chegara ali aquele mpfuvo (1)? Ser que viera buscar sabedoria, aprender as escritas na nsia de transitar de artiodctilo para artiodactilgrafo? Ou se vinha inscrever no corte e costura? No, no podia. Os dedos dele eram mais desengenhosos que asas da panela.

Naqueles segundos de hesitao, o miliciano lembrou o antigamente. Os caadores do mpfuvo, no cumprimento da tradio, no partiam para o rio sem a

(1) Mpfuvo: hipoptamo, nas lnguas do Sul de Moambique.

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bno dos vapores mgicos. Marido e mulher se enfumavam daquele remdio para ganharem as boas sortes. Quando o caador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia aldeia avisar a esposa. A partir de ento a mulher estava proibida de sair de casa. Acendia um lume e ficava a guardar a fogueirinha, sem comer e sem beber. Se ela desobedecesse, o seu marido sofreria as raivas do hipoptamo: a vtima virava caador. Estar assim em clausura era coisa que tambm prendia a alma do bicho, impedindo o paquiderme de fugir do seu espao fatal. O encerramento da mulher s terminava quando, vindas l do rio, se escutavam as alegrias da consumao da caa. Na povoao todos se alegravam menos ele, Jordo Qualquer. As azagaias pareciam sempre ter ferido sua alma, l na extenso do rio.

Mas agora, na janela da escolinha, no so as canes de jbilo mas a zanga do bicho que desperta o miliciano. De facto, no real presente, o hipoptamo se zanga com o cenrio. Esquinas, portas, paredes: essa geografia ele desconhecia. E todo se arreganha, descortina os dentes. O miliciano definha de medo, s a arma lhe d tamanho. Sbito, sem pensar, Jordo dispara. Os tiros saltam de rajada, certeiros. O nariz estando em frente da viso nunca estorva os olhos. O bicho estremurchou, em pleno tamanho, todo derrubado. O cor-de-rosa da barriga lhe dava uma aparncia recm-nascida. No ltimo instante, o moribundo dedicou ao caador um olhar cheio de ternura. Como se houvesse no ressentimento mas gratido. Seria amor ltima vista?

Jordo se lembrou como, em criana, ele se enternecia dos mpfuvos, seus desajeitosos modos: tanta nuca para nenhum pescoo! To gordos que pareciam aptos para toda a dana. Porque aqueles desastrados bichos, to pouco terrestres, lhe eram afinal irmos: ambos no tinham lugar entre a gente. Jordo sonhava com os

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animais, pareciam canoas viradas do avesso na lenta superfcie do rio. E ele, no sonho, montava-lhes os dorsos e subia o rio, alm da curva. Esse era o devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o lugar para alm de todos os lugares.

Porm agora, arma na mo, j lhe apetecia ser patro de outras vidas, espezinhar as restantes criaturas, subitamente inferiores. Lhe subiu uma repentina raiva de, no passado, se ter sentido irmo daquelas animlias. A prepotncia lhe vinha da espingarda ou a idade lhe matara a fantasia? Ou ser que todo o adulto se adultera?

Alertados pelos tiros chegaram os muitos curiosos.

Comearam os ditos e no-ditos, choveram proprios e improprios:

- Mataste o mpfuvo? No sabes quem era esse animal?

- Vais ver o castigo que vamos ser dados por culpa sua ...

- Nem espere por amanh. Voc se vai arrepender desse seu dedo ter gatilhado.

E foram-se. Sentado no ltimo degrau da escola, jordo ficou calado com os seus botes. O pensamento lhe tinha emagrecido. Que poderia fazer? Acusavam-no de ter morto no um bicho mas um homem transfigurado. Como podia adivinhar sobre a verdade do hipoptamo, suas mensageiras funes? Mergulhou a cabea entre os braos e assim ficou, mais circunflexo que o acento.

Foi quando um safa ninho o despertou. Algum lhe tocava as costas em jeito de lhe querer despertar. Olhou para trs: um arrepio lhe sacudiu o todo corpo. Era um pequenino mpfuvo, filhote da hipoptama. A cria: o que ela queria? Procurava o amparo, o abrigo de um maior ser. Chafurdou o sovaco do miliciano como se lhe quisesse despertar um imaginrio seio. Depois, se juntou ao corpanzil da me e grunhiu para convocar sua ateno.100

jordo olhou o bicharoquinho, aquela boca de no caber no focinho. Ento, se levantou e laou o rfo nos braos. O pequeno se agitava, aumentando-se no peso. jordo tropeava, quase deixando cair a carga, voltava a gaguejar os passos pela lama das margens.

Quando chegou ao rio, o hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou familiar manada. Enquanto contemplava a cena, Jordo comeou a insuportar o peso da arma. O ombro lhe adoecia da tal carga. Em gesto brusco, como se se despedisse de uma parte de si, lanou a espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz. Vinha de onde? Vinha do pequeno filhote que salvara:

- Sobe naquela canoa virada.

Canoa? Aquele espesso volume acima da superfcie?

A voz repetia o convite:

- Vem. Eu te mostro o rio alm da curva.

Ento, j tornado encantvel, o desarmado Jordo subiu o dorso hmido do sonho e extravagou-se pelo avesso da corrente.

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O ABRAO D SERPENTEA notcia da Rdio falava na imprecisa morte de Acubar Aboobacar, encontrado em jeito de total falecimento no vasto cadeiro de sua sala. E assim: pelo aspecto do malogrado suspeita-se que a causa da morte tenha sido mordedura de cobra. Contudo, no foram encontrados nem o animal nem sinais dos dentes no corpo do falecido. A esposa disse Rdio que Aboobacar vinha denotando um comportamento estranho e lhe dirigia frequentes ameaas. Suspeitava, sem fundamento, de infidelidade conjugal.

Segue-se a composta verso dos factos e personagens, irrepetidamente sempre outros como o rio em que ningum se banha nenhuma vez.

Mintoninho saiu de casa correndo por verdanias, escancarados capinzais. Ia chamar o pai, Acubar Aboobacar. O menino no queria que sua me, vendedeira no bazar, desencontrasse o marido ao regressar a casa. O mido se cansara das brigas caseiras que, a cada bebedeira do pai, sempre se recomplicavam.

Naquela tarde, Mintoninho, correnteiro, esperava prevenir desgraa. Ao pisar a estrada, porm, ele estacou. No cho se exibia, arrogante, uma boina azul,

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dessas. Teria tombado dos carros das Naes Unidas? Seria desses soldados que exercem a exclusiva profisso da Paz e que do ao mundo mais notcia que sossego? Por momentos, Mintoninho hesitou: se poderia assenhorar do achado, j que ningum ali presenciava? Ficou com a boina rodando nos indecisos dedos, entre devaneios de sinceros usos e abusos. Depois, optou: iria entregar o chapu, mais tarde, l no quartel dos boinistas. Por agora, ele apenas o arrumaria em casa.

E voltou atrs para depositar a azulssima boina, em pacfico repouso, no armrio da entrada. No seguinte, ele redesatou pernas pela estrada. Mas nem precisou de chegar ao bar. O pai j vinha de volta, cambalinhando no passeio, cervejeiro andante. Olhando aquela figura, o menino sentiu saudade do pai que ele tinha sido antes da guerra. Como se fora um rfo e aquele que ia achegando fosse um mero padrasto, passageiro e passeante.

Os dois, pai e filho, se saudaram em partilhados silncios e caminharam como se no houvesse casa que neste mundo lhes competisse. E foi logo-logo ali na entrada: por cima do armrio a boina azul prendeu os espantos do homem.

- Quem isto?

Acubar Aboobacar nem cabia nos universos. A vasta admirao dele sobrava, descomposta, de todos seus nervos. O homem se inacreditava. Podia a mulher, certificada esposa, ter escolhido outros sabores entre os estrangeiros fardados, testemunhas dessa transio da desgraa da guerra para a misria da paz? Perguntar vergonha, duvidar fraqueza. O caso exigia inadiveis machices, espertezas e concertezas. Sem a luz da dvida, o dio cresce melhor. beira-mgoa, a suspeita tomava a medida do facto. Mintoninho ainda quis explicar ao pai os motivos da boina. Mas nem teve ocasio. O pai deitou as ordens: o garoto que se retirasse,

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imediato como a estrela-cadente. Fosse para a varanda que os ares estavam escasseando naquele lugar.

Acubar Aboobacar ficou sentado espera da mulher, boina vinagrando-lhe no colo. Aquele amargo do cime lhe crescia no todo corpo como um fermento deixado em forno. Mas era como se lhe soubesse bem a visita daquele outro eu, ele que, antes da guerra, jamais havia cuidado de perder Sulima. O cime d ao homem a sua feminina estatura?

E Acubar, sentado e raso, esperava mais que a esposa a chegada de terrveis pressgios. A morte tem sempre onde cair em ns. Boina no colo, ele se socorreu do sono. E assim dormindo lhe foram divulgados os segredos. Lhe vieram imagens de uma cobra gorda, trajada de humanas vestes. Envergava capulana, azulinha cor das Naes e leno na cabea. Em lentos talentos, o bicho se chegou a ele e lhe cocegou todo, com sua lingua bfida. A cobra bilingue para mostrar que todo o animal esconde sempre outra criatura. E o ofdio reptou por suas pernas, se enroscou na cintura e se zaragatinhou pelo peito. Quando lhe chegou ao pescoo Acubar ouviu os olhos dela: eram os de Sulima, sem falta nem acrscimo. Eram olhos terrestres, poeirados, descalos. Nele se fixavam como o pio olha o pulmo. Ento, a cobra falou-lhe:

- Ser assim, presos um em outro, ser assim que vamos viver em diante.

Acubar sentiu o ar exilar-se do peito. Encerrado como um pargrafo, ainda pensou em gritar, chamar o socorro. Mas lhe veio a lembrana, em reminiscincia. O avesso da vida no a morte mas uma outra dimenso da existncia. A serpente, diz-se, nasceu junto com a alma humana. Sim, a cobra feita de enganos tal igual a mulher. As garras de uma esto na boca da outra. Sulima lhe estava ali convidando para entrar dentro dele.

- Cada homem tem suas paixes oiscerando-lhe

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dentro. Eu entrarei em ti para que. no haja despedida, carne em carne. .

Acubar abriu a boca, mandibularmente. Fosse pelo apelo da serpente, fosse pela asfixia que comeava a lhe apertar. Despertou, transpirado, transplido. Ele sempre dizia: quando eu morrer h-de ser s para dar saudade nos ausentes. E agora, ao sentir-se desfalecer chamou pelo filho, o mais presente desses ausentes. Filho, estou a comear a desviver. Sofro de um frio que me est vir de dentro. Parece um bicho lagarteando a minha barriga, malvoraando-me os sangues, nem sei se sonhei se coisa que realmente me sucede. Mntonnho fez ateno em lhe cobrir. O pai negou: