md magno - transar transir

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Lumina - Facom/UFJF - v.2, n.2, p.29-48, jul./dez. 1999 - www.facom.ufjf.br

TRANSAR: TRANSIR Elementos da Transformática MD Magno* > A Transformática: teoria genérica da comunicação proposta pela Nova Psicanálise. Dois sentidos: (a) uma teoria completa da comunicação não pode não ser uma teoria psicanalítica, e (b) a psicanálise não é senão uma teoria plena da comunicação. A transformática como o tratamento dos transes que há. Toda transa comunicacional só se realiza no transe e em função do transir. Instauração da unilateralidade no seio de uma bilateralidade mediante a produção de um furo como processo de Indiferenciação das oposições. As formações sintomáticas como embargos da comunicação e da cultura na era global. Projeto pró-moderno: desembargo da Modernidade.

# Tenho falado em Metapsicanálise como o espírito mesmo da Nova Psicanálise [cf. glossário no final]. Ela se resolveria numa teoria generalizada da comunicação, que é o tratamento reconhecido dos transes que há. Uma vez que reduzo todas as possibilidades de comunicação, inclusive o conceito de transferência, à idéia de Transe, exige-se uma teoria das vinculações em todos os níveis: Primário, Secundário e Originário. É no seio do transe que qualquer transa é possível. E só se realiza como transe, mesmo que não queiramos (ou não possamos) nos dar conta da característica de transe que há nessas trans-formações. Essa transa que só se realiza no transe é a trama das formações no seio do que chamei Trans-formática.

# Todas estas transações comunicacionais evocam um verbo capaz de melhor qualificá-las: Transir – que significa: ir trans, trans ir, ir através, passar pro outro lado, com uma idéia de passe, de trespasse. Vem do latim trans-ire, ‘ir além de’, ‘trespassar’, e como se supõe, embora tolamente, que quando se morre passa-se para outro lugar, às vezes o verbo quer dizer ‘morrer’. Significa também: penetrar, repassar, assombrar, assustar, aterrar, ficar hirto, gelado, de frio, dor, medo, susto. Sendo um verbo defectivo, só se conjuga nas formas em que o s vem seguido de i. Preferia que fosse não-defectivo e que se cometessem todos os erros de português: que se transisse, se transfosse... É engraçado significar essas coisas, uma vez que as formações, justo porque são formações, estão regionalmente fechadas, e, para se estabelecer alguma co-nexão, algum nexo, qualquer transiência possível entre formações, não pode ser senão pela produção de um Furo. É preciso agredir a outra formação e achar uma brecha para se penetrar, nem que seja o buraco da fechadura. Topologicamente, poderíamos dizer que a transiência é, agressiva-mente, a produção – mesmo que já esteja lá, pois está sendo pro-duzido de novo – de um furo que nos permita entrar, transir de um lugar para outro.

# É freqüentemente assustador instaurar o furo, a passagem, abrir uma formação trancada, sobretudo no caso de neuroses e de formações sociais muito rígidas. Daí que se usa o verbo transir no sentido de medo, de susto, etc. Na verdade, topologicamente falando, poderíamos dizer que, nessa transiência, ao transir de uma formação para outra, de um lugar para outro, se considerarmos os dois lugares opositivamente, estaremos fazendo um transpasse qualquer que acaba por instaurar uma unilateralidade no seio da bilateralidade de uma oposição. É um processo que, pelo menos num átimo de sua travessia, é de indife-renciação. Então, mais do que passar de uma formação a outra, costuma ser assustador para as pessoas abrir um furo entre duas formações e terem que se indiferenciar nessa travessia. É preciso indiferenciar algo – um pequeno ponto, uma mínima formação no seio

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dessa formação – para que se tenha a audácia de passar de uma formação para outra. A indiferenciação pode se dar mediante qualquer das seguintes vias: da hiperdeterminação, da neutralização dos opostos no nível Secundário; ou de se descobrir um elemento comum – o que, topologicamente, pode ser descrito como um furo, como a forçação sobre uma bilateralidade de um percurso que torna a superfície unilátera. Se tomarmos esta descrição topológica como verdadeira, cairemos necessariamente na produção do oito-interior, do Revirão que já lhes apresentei em 1982. Então, transar, transir, comunicar-se na transa e no transe, não é senão revirar-se, entrar num processo de Revirão.

# Como sabem, a banda de Moebius é uma superfície unilátera, sobre a qual ficamos na impossibilidade prática – e, segundo os matemáticos, também teórica – de determinar qualquer orientação de pontos. Também ficamos na impossibilidade de apontar um ponto qualquer como específica ou especialmente neutro, uma vez que, se os pontos são não-orientáveis, todos são neutros. Mas insisto em pensar sobre esta superfície a possibilidade (não de orientar o ponto neutro da superfície, mas) de querer direcioná-lo ora para cá ora para lá. Por isso, em outros textos, falei em ponto bífido, em ponto neutro. Podemos entender isto se construirmos o percurso de unilateralidade sobre uma superfície bilátera. Não a transformamos numa superfície unilátera, mas fazemos sobre ela um percurso de unilateralidade mediante uma intervenção, que é a posição de um furo. Lacan era tão preocupado com a questão do furo na teoria topológica da psicanálise justamente porque ela é essencial, crucial.

# Considerem o desenho acima como perfil, corte, de um cilindro (ou de uma esfera,

também serve), que é uma superfície fechada. Aí podemos fazer um percurso por fora – a linha mais espessa – e voltar ao ponto de partida sem tocar a superfície interna. Assim como podemos fazer o percurso do circuito interno da linha mais fina e voltar ao ponto de partida sem passar para o lado de fora. Se instaurar aí um furo com a característica de neutralidade e até mesmo de razão catóptrica que possa ter, não transformaremos a superfície originariamente bilátera numa superfície unilátera, pois seria impossível desta forma, mas transformaremos a possibilidade de percurso sobre a superfície utilizando o furo como ponto de passagem e percurso de unilateralidade. Aí o percurso da linha espessa poderá percorrer toda a parte externa e, mediante o furo, passar e se juntar com o percurso da linha fina, interna. Assim como no percurso interno da linha fina, pode-se partir de um ponto e, mediante o mesmo furo, cruzar os dois percursos. Então, aí, não se poderá nem mais manter as duas espessuras das linhas:

# Estou supondo que, através da produção de um furo sobre uma superfície fechada

bilátera, pude constituir um percurso de unilateralidade idêntico ao oito-interior que se consegue sobre uma banda de Moebius. É o percurso que Lacan gostava de chamar de sujeito, o qual não tem serventia alguma no aparelho teórico-clínico que lhes apresento. Para mim, é o percurso em Revirão, que é o nome que dou ao que pode acontecer às oposições, em seu sentido mais radical, como enantiose (a possibilidade de uma oposição

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com razão catóptrica, enantiomórfica, de avesso absoluto). Então, o mesmíssimo oito-inte-rior que pode ser descrito como percurso sobre uma banda de Moebius em razão da sua unilateralidade, pode ser conseguido mediante a aplicação de um furo sobre uma superfície bilátera. Isto esclarece bem melhor o que chamo de ponto bífido e os três pontos principais que gosto de escrever sobre o oito-interior: o ponto de neutralidade, de indiferença, e as duas posições enantio-mórficas, ou simplesmente opositivas, dentro/fora, avesso/direito, claro/escuro.

# Vejam que qualquer oposição que tomar, posso escrevê-la de um lado e de outro na superfície bilátera, onde as oposições estão bem situadas, incomunicáveis, num pensamento estritamente dualista: isto oposto àquilo. Mas se, por algum motivo, alguma razão ou alguma força, consigo produzir um furo sobre esta superfície, posso fazer encon-trar os dois percursos da superfície, interno e externo, e produzindo o mesmíssimo objeto geométrico – o oito-interior como percurso – encontrado sobre a superfície unilátera. A mágica da transiência, da comunicação, da trans-ferência que aí acontece é simplesmente a possibilidade de fazer um furo que possa, pelo menos num dado momento, ligar duas situações, duas formações inteiramente separadas, fechadas cada uma em si. Então, do mesmo modo que, se tomarmos uma contrabanda (como Lacan chamava a banda de Moebius) e fizermos um furo sobre ela, reinstauramos um percurso bilátero, o que está me interessando é: partir das formações e, uma vez que são formações – portanto separadas, distingüíveis, oponíveis, até capazes de enantiose absoluta, já que são absolutamente defastadas, não comunicantes –, mostrar que isto funciona como se fosse a impossibilidade de um percurso entre um dentro e um fora, entre um sim e um não, onde posso instaurar um lugar de passagem que unilateraliza o percurso. O entendimento de uma possibilidade de percurso contínuo metaforizado deste modo é muito importante na mente nova que lhes trago, quanto o é numa área enorme do pensamento contemporâneo, na física, na biologia, e sobretudo no campo vasto chamado por seus autores de teorias da complexidade. Eles não costumam metaforizar assim e não há isto no pensamento da psicanálise corriqueira. A oposição significante descontinua tudo, quebra todas as continuidades. Estou na posição contrária: da produção das continuidades, das passagens, das indefinições, das ambigüidades, etc., que efetivamente caracterizam o campo das complexidades psíquicas e do Haver (A) em geral.

Indiferente

Neutro

dentro fora

# Estou apenas metaforizando com o furo o que acontece no transir. Há aí uma

agressão. Por isso, o verbo transir também nos assusta. Cada vez que se tem que atravessar alguma coisa – por exemplo, a virgindade da moça –, fica-se meio transido de horror em algum lugar da mente, pois aquilo estava fechado. Então, mediante um furo, estabelece-se a comunicação. O conceito de porta, por exemplo, é um furo que fazemos entre dois espaços contíguos, no entanto absolutamente separados, que permite passar continuamente de um para outro. Antes de a arquitetura ser externalizada pelo homem, foi buscada diretamente das disponibilidades naturais onde se encontravam cavernas. A humanidade encontrou um lugar de moradia passando para dentro do seu fora, na intempérie, através de um furo que

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estava disponível, o que unilateralizou a relação selva/gruta. Na verdade, toda e qualquer formação, pelo simples fato de ser a formação que é, está distinta, separada, das outras formações. Toda e qualquer transação, transiência, possível é: ou se procurar um furo que não se tenha notado, como no caso da descoberta das cavernas; ou produzir o furo, arrombar determinada superfície de maneira que se possa dar continuidade ao percurso dentro/fora.

# O que é interessante nisto como metáfora do meu Revirão – e se explicita melhor do que simplesmente numa superfície unilátera – é que, como a superfície é bilátera e, no entanto, construo de qualquer forma um percurso de unilateralidade, fica demarcado na superfície bilátera o lugar do furo. Ou seja, o ponto vazio, o ponto neutro, o ponto bífido, fica qualificado na superfície quando ela é bilátera muito melhormente do que as tentativas de explicar isto por via da superfície unilátera. Assim como, no caso de nosso cilindro ou esfera, as posições opostas dentro/fora ficam também absolutamente demarcadas. Temos, então, o dentro, o fora e o neutro ou o indiferente do furo. É neutro ou indiferente porque não está nem dentro nem fora, muito pelo contrário. Ou seja, está dentro quando está fora e fora quando dentro. Mas também, às vezes, está dentro quando está dentro e fora quando fora. Depende do ângulo por onde o tomarmos. A indiferença do furo está pouco se lixando para o modo como tomá-lo, pois é puro furo, puro vazio. Como sabem, o vazio há, ele não é não-Haver. É Nada, o que é muita coisa: é Haver como neutralidade. Aí, temos o sentido assustador de uma das acepções do verbo transir. É transido de horror, talvez, que se produz e se atravessa pelo furo da neutralização ou do vazio.

# Vejam que todas as possibilidades de transação, de tratamento, de cura, o que quer que seja dessa ordem, passa pelo transe, pela transa, pela transação, isto é, pela necessidade de Revirão. A questão mais importante de se colocar o Revirão como estrutura de funciona-mento de toda a ordem do Haver é aquela que um campo vasto do pensamento contempo-râneo está incluindo, e que antes não o fazia, que é de, a cada emergência, a cada surgimento ou aparecimento aqui e agora de determinada formação em nosso campo de observação, não podermos deixar de levar em consideração as formações que, pela emergência desta, foram recalcadas, tiradas de circulação. Isto, mesmo no campo da physis. Se tais formações estão agoraqui em sua pertinência, em sua aparição, de vencedoras, de emergentes no momento, é porque tais outras formações tão válidas, tão quantificadamente grandes quanto estas, estão em exclusão. No entanto, segundo o pensamento da comple-xidade, onde a NovaMente se encaixa bem de várias maneiras, é impossível acabar por entender o que se passa nas formações emergentes sem levar em consideração as formações recalcadas. Daí, como lhes mostrei, meu conceito de Recalque ter sido generalizado. Tudo é pensado a partir do Recalque Originário e o que quer que não esteja comparecendo aqui e agora é da ordem do recalque. Freud descobriu desde o começo que não há como pensar em regime psicanalítico sem levar em consideração o recalcado. É claro, pois não há nada a fazer se não pensarmos que todo o manifesto aqui presente está na dependência, para seu entendimento, de um latente que desconheço (no sentido freudiano).

# Nossa postura é radicalmente diferente daquela trazida pela psicanálise até hoje. É a postura da complexidade do sintoma, da ordem do Revirão como impositiva, e do movimento do Revirão no psiquismo e em qualquer parte do Haver como função de pulsio-nalidade. O conceito fundamental é o de Pulsão. Que movimento pulsional encontramos em determinada formação para que ela venha aceder a furar ou ser furada? Isto é que é importante. Lacan colocou a questão no regime da falta, mas o que trago nada tem a ver com isto. Não será por excesso? Uma formação, eis senão quando, por alguma razão, obser-

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vável ou não, começa a ultrapassar seu próprio regime, começa a explodir e isto agride outras formações imediatamente. Aí perguntamos: que razão teria ela para explodir se não é sujeito, se não porta em si o Revirão? Acontece que o Haver revira por si mesmo e, aqui e ali, empurra, incita, várias formações. Na verdade, há um Tesão dentro do universo que faz uma formação sair de seus trilhos e tentar invadir outra. Até comê-la, se ela deixar, no sentido de acabar por absorvê-la em seu próprio ventre.

# Para encaixar tudo isto na questão da contemporaneidade, da ordem do mundo, da comunicação e da cultura na era global, retomo o que já disse em ocasiões anteriores sobre o que produz o efeito de contrariedade ao vento da modernidade, ao vento do Quarto Império. Ou melhor, o que embarga a modernidade de se instalar? Se tomarmos o partido da modernidade, no sentido em que a defini, como certa função de cura, podemos dizer que o que a embarga é a barbárie. Como sabem, bárbaros, em grego, e barbaru, em latim, eram nomes que se davam na Grécia, depois no Império Romano, a quem não fosse grego ou romano. A barbárie de que estou falando é justamente aquilo que não foi tocado ainda pelo Quarto Império. E nem existe o Quarto Império plenamente instaurado. Estou dizendo, então, que há vasta barbárie de não se conseguir instaurar o Quarto Império. Tudo que está abaixo do Quarto Império é meio bárbaro, no sentido mesmo antigo, de sem civilização, selvagem, grosseiro, rude, inculto, sanguinário. O que embarga a modernidade, o Quarto Império, de se instalar é a barbárie. Qual? De onde aparecem as barbáries? O verbo embargar, que vem do latim vulgar imbarricare – isto é, colocar uma barra (igualzinha à que Lacan inventou para seu sujeito) –, significa pôr embargo em alguma coisa, ‘o fiscal embargou uma obra’, pôr obstáculo, estorvar, tolher, reprimir, conter, ‘embargar a voz’, impedir. Então, a barbárie continua, permanece, porque há um embargo ao Quarto Império.

# Mas o que é o embargo? É pura e simplesmente a resistência das formações. Por isso, disse que não há nenhum paradoxo na chamada ordem global contemporânea. Ao mesmo tempo que se tenta globalizar, há a emergência, por vezes desastrosa, de racismos, localismos, imperialismos, etc., que são formações que, diante da tentativa de modernização, reagem em conformidade com sua própria ordem de formação, ou seja, com sua própria característica sintomática. A única coisa que se pode fazer, e que às vezes acontece espontaneamente por cruzamentos os mais diversos, é estabelecer ou descobrir os furos das formações. Isto parece uma bobagem absolutamente banal, mas é justamente o que não fazemos o dia inteiro. Para tirar o embargo posto pela barbárie ao processo de verdadeira modernização – e já lhes disse que a NovaMente é pró-moderna, e não pós-moderna, estando portanto no interesse de desembargar as formações e os percursos –, podemos dizer que o psicanalista deveria ser o desembargador do Haver: a última instância da justiça divina. Não acredito que os analistas tenham prestado para isso, mas deviam prestar. Parece uma banalidade o que estou dizendo, mas é importante, pois é justo o que não praticamos no cotidiano da vida e, às vezes, nem mesmo nos consultórios.

# Falemos da clínica em geral, da Clínica Geral. Basta acompanharmos com um pouco de lucidez qualquer fenômeno de mídia para verificar que imediatamente se instaura um poder de hipnose para uma via de qualificação de um dos lados da oposição, de tal maneira que ficamos todos nós absolutamente idiotizados, imbecilizados, sem a menor possibilidade de desembargar isto e temos multidões caindo no mesmo papo. A última gracinha foi a princesa que morreu e ficamos inteiramente embargados pela hipnose da mídia sem a menor crítica da situação. Daí que digo que deveria ser função do analista produzir ou achar onde mora algum furo que possa relativizar, questionar o fenômeno. É claro que o fenômeno que está aí diante de nós é inteiramente furado, mas ninguém quer

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descobrir onde está o furo. Não vamos pedir ao jornalista, pois seria demais. Ele é inteira-mente descompromissado com qualquer furo, a não ser com o que chamam de furo em seu jornal, que não é furo de coisa nenhuma.

# Como lhes disse, estou querendo preparar uma vasta teoria da comunicação, que seria o escopo mesmo da NovaMente. Os caminhos da transa, do transe, da transiência, da transação, em busca de um furo que esteja disponível, ou em busca da produção de um furo, passam por alguns conceitos que precisamos redefinir para nosso uso. Por exemplo, o que pode significar uma Informação? É pura e simplesmente o recorte de uma formação, mais ou menos simples, pouco importa, e sua gravação num arquivo de recepção. Acho que não existe definição mais aberta do que esta. Há uma formação qualquer, no seio da qual tomo determinada formação, recorto e gravo. O conceito de hoje é de gravação. Não de representação. Vejam o gravador que está aqui na mesa, aquilo grava, o cérebro também grava. Antigamente dizíamos: ‘você gravou?’ Quando gravo determinada formação, recortada de algum lugar, num arquivo capaz de recebê-la, isto é uma informação, para qualquer lado que seja. É, portanto, simplesmente gravar num determinado arquivo receptivo alguma formação que foi recortada de algum lugar.

# Isto pode constituir um saber? O que é um saber? É uma formação (de formações, inclusive informações como aquelas que foram formações recolhidas) que funciona como tal (não necessariamente consciente), como formação que é, diante da circunstância de outras formações. Como vêem, não estou fazendo recurso a nenhum sujeito. Quando se consegue tirar de um campo uma formação, recortar e gravá-la em qualquer receptivo, tem-se uma informação. Qualquer formação que está gravada numa outra formação gravadora é imediatamente um saber, como é o saber instalado nas gravações de um cachorro, de um gato, ou de mim. São a mesma coisa, saberes. Não preciso ter consciência da gravação nem de mim para ter um saber. Vocês poderiam perguntar se o movimento dos planetas é um saber. É claro, e é um saber bem sabido por enquanto, se não, a lua caía sobre nossa cabeça.

# Até aí não entrou nenhuma consciência e nem é necessário. Mas poderíamos pensar: o que vira consciência neste campo? Consciência é a divisão interna de uma Idioformação – que somos nós, as outras não o são (por isso, não devo perguntar ao cachorro se tomou consciência do gato, pois ele tem um saber que freqüentemente repele o gato, mas não toma consciência dele) –, que é aquela que tem disponibilidade de revira-mento, e que, por esta disponibilidade, é capaz de estabelecer uma divisão interna (que nada tem a ver com sujeito dividido) das massas, dos grupos de formações de saberes. Posso estar de dia e há outro saber chamado noite, o qual não está presente, mas posso evocá-lo. São formações, gravações que estão lá. Consciência é, portanto, a divisão interna de uma Idioformação em pelo menos duas formações, as quais ficam em eco-logia recí-proca. Se temos uma grande formação interna a uma Idioformação e há outra grande formação, ambas funcionando numa eco-lógica recíproca, em algum momento nos reportamos a uma formação que é capaz de, por complexidade das gravações, nos indicar a outra formação, então, eclode em nós um fenômeno que se chama consciência. Fico muito besta achando que sou o maior porque tenho consciência de mim. Mas mim é o quê? Consciência de si? O que quer dizer isto? Os filósofos falam em consciência de si. ‘De si’ é quem? O que acontece é o fenômeno, talvez até epifenômeno, de que determinada grande e complexa formação, por um movimento reflexivo dela mesma sobre o processo eco-lógico com outra formação, é capaz de surgir como consciência, como reconhecimento de formação por formação. Donde, há sempre um ponto cego, pois de onde uma está olhando, a outra não é vista. Ou senão, é preciso jogar pingue-pongue entre as duas. Então, ou há um

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ponto cego ou as duas entram em eco-logia recíproca. E é este movimento de transiência de uma formação para outra que experimentamos como consciência.

# Idioformação é aquela formação que tem o recurso de fazer funcionar o Revirão no lugar de transiência. Há que haver esta disponibilidade, se não, isso passa de um lado para outro como fenômeno natural. Sem uma eco-lógica, não se tem ressonância. Podemos ter entre animais e células um processo qualquer de furo, de passagem, etc., mas não é uma eco-logia circulando entre os dois. É preciso a formação ter a disponibilidade do Revirão – e formações que a têm, só conhecemos as de nossa espécie – para que esse percurso, esse eco, se realize. E se houve transiência, segundo o teorema que lhes trouxe, houve produção de unilateralidade entre as duas: o que era fora passou para dentro, o que era dentro passou para fora. Mas estou dizendo que há um pouco mais do que mera transiência, que há uma eco-lógica: uma formação em ressonância com outra. Ou seja, do ponto de vista da de cá, a de lá é reconhecida como formação enquanto tal; do ponto de vista da de lá, a de cá é reco-nhecida. Consciência é isto, mais nada. Ela tem que ser consciência de alguém para alguém. Se um cachorro vem andando, reconhece outro da mesma espécie e o outro também o reconhece, um começa a cheirar o rabo do outro, o que acontece entre os dois? Por causa de sua relação sistêmica ter algo em comum e este algo idêntico nos dois funcionar como neutro, como furo, estabeleceu-se ali uma transa. Mas não vou dizer que um cachorro tomou consciência de nada. Posso dizer que há um fenômeno de consciência entre os cachorros, mas não deles. Há entre eles algo que teria características de consciência, mas que não é ressonância entre eles. Como nossa espécie faz esta ressonância, ficamos com a impressão de saber que estamos sabendo (no sentido em que defini saber).

# Assim, se não só sabemos isto como podemos comentar o saber que temos, é porque outra formação comenta para cá assim como uma comenta para lá. É um bate-papo interno entre formações, que chamamos de consciência. Consciência do quê, se só conseguimos ter consciência daquilo que está disponível naquelas formações? Lembram-se daqueles místicos que querem abrir a consciência e transar com o universo? Seria tão fácil, abria-se e entrava tudo. No que entrasse toda a formação do Haver, saberíamos tudo. Mas não é assim que funcionamos, pois só sabemos as porcarias que sabemos e simplesmente tomamos consciência no comentário recíproco entre saberes. E isto porque nos é dada a disponibilidade da transa do Revirão. Se fosse possível uma indiferenciação total, haveria uma consciência universal. Se abrir a consciência no ponto ômega, saberei o mesmo que Deus. Mas não há isto. O que há é o efeito consciência da transação em eco, recíproca, entre saberes. Quando me acontece – e depois me vicio – de dividir saberes e saberes, de ter uma transação recíproca, porque sei pensar com um espelho interno que é a minha estrutura de Revirão – a qual, afinal de contas, é a estrutura do espelho, do furo –, então fico espelhando e especulando entre formações. O efeito é o que chamamos de consciência. Não há sujeito algum. Não há nada mais do que essa bobagem: gravações.

# Então, porque temos a disponibilidade daquele furinho, passeamos no tal Cais Absoluto, pouco importa que estejamos interessados na hiperdeterminação voltados para o não-Haver ou para as transas do Haver. Isto porque é preciso uma passagem num lugar que nos disponibilize. Quero dizer que, se nossa estrutura é o que digo, temos a disponibilidade de passar pelo e de nos referirmos ao ponto neutro. Donde, consciência é possível. É porque temos zero, vazio, lugar de absoluto furo, que transamos em eco de um lado para outro. Quem tem esta possibilidade? Nossa própria estrutura cerebral. O cachorro não tem. Para tanto, é preciso ser afetado pela hiperdeterminação. De que modo? Pela emergência de um simples furo, de um simples terceiro lugar. É porque há terceiro lugar

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que há consciência. Repetindo, consciência do quê? Do que se passa entre oposições, do que se passa na enantiose interna da Idioformação. Não é preciso de sujeito cartesiano para nada disso. Isto é importante, pois, se algum dia, algum maluco conseguir constituir um computador com essas características, ele vira gente.

# Tomemos o caso das células. Se uma célula é agredida – no sentido de Maturana e Varela –, se é co-movida por alguma mutação externa, o que aconteceu? Ela está disponível para algum furo. Tanto é que pode desmembrar-se inteiramente. Algo a fura. Se transar numa boa, ou melhor, como não tem essa iniciativa, se lhe acontecer uma boa transação, ela sobrevive modificada. Não há consciência alguma aí. São saberes em transação. Um furo foi estabelecido, mas não é um furo da ordem da referência à hiperdeterminação. Há pouco, disse que, para a consciência, basta referir-se ao Terceiro, mas isto no caso de eco-lógica. No outro caso, há o Terceiro, mas não a eco-lógica entre as formações, a transa é regional. Uma célula não precisa transar-se inteiramente com outra para sobreviver na agressão. Ela pode transar regionalmente: uma formação dentro dela faz o curativo da ferida. Não é ela por inteiro. Não é o aparelho fazendo a reflexividade – o nome seria este – em eco entre as formações, que é o que nos dá a impressão de consciência. E o é.

# Retornando às definições que vinha colocando, o que pode ser um Conhecimento? É nada mais do que uma aplicação, que é volitiva porque consciente de si, segundo o conceito de consciência que apresentei antes (mas consciente de si enquanto aplicação, e não enquanto conhecimento ou enquanto consciência das formas ingredientes), de uma formação mais ou menos complexa como tradutora (e portanto traidora, pois só há metalinguagem na traição) de outra formação. Ou seja, a definição é simples: conhecimento é aplicação de uma formação como tradutora de outra formação. O saber funciona, mas para o conhecimento é preciso da consciência, pois, de dentro da tal consciência, de dentro de meus movimentos de eco-logia recíproca das formações, segundo esse mood, determinadas formações em mim tomam determinadas formações como máquina de tradução do que acontece numa outra formação. Para isso, há que haver consciência da aplicação, mais nada. Um cientista em laboratório, quando está produzindo determinado conhecimento, não precisa ter consciência de tudo que ali acontece, pois muitos ingredientes são absolutamente aleatórios. Mas ele não pode deixar de ter consciência de sua aplicação. Consciência de que eu – quem é eu? Ego, um pedaço de eu, um conjunto de formações – está aplicando, a si mesmo e a outro conjunto de formações, um conjunto de formações para traduzir uma terceira formação. É tentativa de uma formação mapear outra, dizer o que acontece na outra. E ferrou-se, pois, no que tenta mapear aquilo, entra em eco-logia e consegue, no máximo, um discurso muito interessante, mas que não esgota coisa alguma.

# Acima do conhecimento, há a possibilidade aberta e total da Comunicação, que é a vinculação de que lhes tenho falado no seio de Primário, Secundário e Originário. Isso é maior do que conhecimento, pois pode haver até comunicação dos conhecimentos.

# Mais acima ainda, vem algo completamente fora de moda, um termo que Lacan abominou e que estou trazendo de volta: Sabedoria. Será que podemos conseguir alguma sabedoria mesmo sendo essas maquininhas bobas que somos? Defino sabedoria como: recurso pleno (plerômico) ao Saber, à Informação, à Consciência, ao Conhecimento e à Comunicação, como se tudo isso fosse uma Macro-Formação, toda ela em Sobre-Determi-nação equi-vocada dentro do processo de Indiferenciação. A sabedoria visa, portanto, a per-feição do périplo no interior da cultura. Se analista existisse, seria assim. Faria recurso a

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todas as ordens que coloquei – infor-mação, consciência, conhecimento, comunicação, etc. –, sempre na referência à indiferenciação, perpassando pela cultura. Isto seria alguma sabedoria, se ela houvesse.

# E acima de tudo, está a Inspiração (para a criação), que também é um recurso ao Saber, à Informação, à Consciência, ao Conhecimento e à Comunicação, mas exigindo referência à Hiperdeterminação. Pode parecer uma loucura o que estou dizendo. É preciso eu ter a experiência da hiperdeterminação, do Cais Absoluto, mas quando estou tentando funcionar na minha sabedoria, basta, como disse antes, me referir ao terceiro lugar de indiferenciação – porque posso fazê-lo, porque tenho experiência da hiperdeterminação – para percorrer todo o campo do Haver dentro dessa sabedoria. Já para criar, não basta a sabedoria. Às vezes, nem é preciso tê-la agoraqui, pois não é o caso de percorrer a cultura a partir do terceiro ponto. É caso de, até numa região da cultura – esta, como a defino: modo de existência da espécie humana –, eu me remeter à hiperdeterminação. Aí, então, algum indiscernível pode se distinguir para mim. Isto, quando acontece.

# Para terminar, recomendo-lhes o livro A Razão Contraditória (ciências e filosofias modernas: o pensamento do complexo), de Jean-Jacques Wunenburger, escrito em 1990 e publicado em 1995 pelo Instituto Piaget de Lisboa. No capítulo O Devir Enantiodrômico, páginas 219 a 230, que só li recentemente, embora o considere bastante ruinzinho, encontramos uma coisa interessante. Ele está falando do enantiomorfismo, da enantiose, e, antes ainda de começar a falar bobagem, do meio do artigo para o fim – quando entra com coincidentia oppositorum e se aproveita de Jung para sua explicação –, encontramos uma exposição didática do que é o Revirão. Não de algo semelhante, mas da mesmíssima coisa. Ele o explicita como sendo o pensamento da complexidade. Dantes, eu só tinha lido algo que pudesse até, quem sabe, ter tido influência para a intenção do Revirão, na obra de um teórico da ciência francês chamado Stéphane Lupasco, de quem não se fala mais, mas que era muito conhecido na década de 60, quando li sua obra.

Pequeno Glossário (Organizado por: Paula Carvalho) ALEI – “Haver desejo de não-Haver”, ou “Haver quer não-Haver”, ou “Haver tesão de

não-Haver”. Estenografa-se como: A Ã. Axioma de base e fundamento da Nova Psicanálise. É a máquina fundamental da clínica, que Freud chamou de Pulsão (de Morte), conceito que visa o Gozo Absoluto e definitivo: extinguir-se, sumir radicalmente de si mesmo, seja no nível micro (homem), seja no macro (Haver).

Arte – Produção do novo, da invenção, da criação, para além de qualquer formação já dada. O radical ART tomado no sentido etimológico de processo puro e simples de articulação, que, generalizado, chamará de Arte todo e qualquer processo de criação.

Artifício espontâneo – O já dado, presente no Haver desde sempre. Inclui o que se chama de natureza.

Artifício industrial – Aquele produzido pelas Idioformações, que têm a possibilidade de forçar a reversão do espontâneo, do já dado.

Autossoma – No nível das Formações Primárias, designa o corpo biológico próprio. Ver Etossoma.

Barbárie – O que embarga a realização da Modernidade, i.e., do fluxo do Creodo Antrópico em direção ao Originário.

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Binário – Há duas binariedades: (a) as oposições “internas” ao Haver (+/-, homem/mulher, preto/branco, micro/macro, etc.); e (b) a oposição “externa”, o binário ao quadrado (22), quando a massa homogênea do que há é oposta ao não-Haver desejado.

Cais Absoluto – Lugar à beira do não-Haver, quando o conjunto pleno do que há é oposto ao que não-há, o qual, mesmo não havendo, é requerido pelo Haver. Lugar que vincula todos a ele, e não todos entre si. Lugar de máxima afetação e angústia. Lugar do Vínculo Absoluto e da Hiperdeterminação. (Termo retirado de Fernando Pessoa)

Catoptria (Princípio de) – Do grego kátoptron, luz, espelho ou refletor. Função especular produtora de avessamento, produtora de Revirão: requerer o não-Haver, não achá-lo e retornar sobre si mesmo no sentido de absoluta reversão.

Cinco Impérios – Série pela qual a espécie humana passaria em suas performances culturais. São creodos (‘caminhos necessários’) herdeiros dos creodos primário e secundário, no encaminhamento para o Originário, i.e., no sentido do Primeiro para o Quinto Império. Denominam-se: Amãe, Opai, Ofilho, Oespírito e Amém. (Alusão aos ‘Cinco Impérios’, de Fernando Pessoa). Ver Creodo Antrópico.

Clínica Geral – Clínica do que quer que haja, abrangendo toda e qualquer manifestação humana, sem necessidade de separação de campos (p. ex.: arte, filosofia e ciência). Pode também ser chamada de Clínica da Cultura. Inclui a chamada clínica de consultório.

Comunicação – A vinculação entre os registros Primário, Secundário e Originário. Sua teoria geral é a Transformática.

Conhecimento – Aplicação de uma formação (mais ou menos complexa) como tradutora de outra formação. Resultado necessário de transas entre as formações, mesmo que não exista ali nenhuma Idioformação. Tudo que se diz e se faz é conhecimento.

Consciência – Divisão interna das massas dos saberes de uma Idioformação em duas formações em eco-logia recíproca.

Creodo Antrópico (ou Creodo Cultural) – Repetição de caminhos de passagem que se tornaram necessários entre os níveis Primário, Secundário e Originário. Isto porque as formações se solidificaram antes do surgimento da espécie humana e porque as forças em jogo são muito superiores à remissão à potência de reviramento das Idioformações. (Creodo - termo de René Thom (teoria das catástrofes): ‘caminho obrigatório’).

Criação – O achado a partir da indiferenciação. Em qualquer nível, criar é ultrapassar o que já está dado, reverter o que parecia irreversível. Resultado do empuxo da Hiperdeterminação, forçando, no seio da indiscernibilidade, um novo discernível qualquer.

Cultura – Em sentido genérico e abrangente, é o modo de existência da espécie humana. Em um de seus sentidos específicos, é vista como neo-etologia.

Cura – Todo e qualquer encaminhamento no sentido da Hiperdeterminação. É a tentativa de minorar o mal-estar no Haver. É o recurso cada vez mais freqüente à Hiperdeterminação que caracteriza essencialmente as Idioformações.

Estética – Para a Nova Psicanálise, sua definição não se restringe ao campo do sensível. Pensar uma estética é pensar toda e qualquer prática do homem, uma vez que o fenômeno estético abarca toda e qualquer formação.

Etossoma – No nível do Recalque Primário, designa o conjunto das estruturas corporais responsáveis pelas características do comportamento. Ver Autossoma.

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Formação – Qualquer coisa que se forme, conjunto, agregado, de qualquer espécie. Toda e qualquer conjuntura destacável, desenhável, dentro do Haver, seja qual for a forma ou a materialidade de seus elementos ou dela mesma. O próprio Haver em sua plenitude é uma formação (aliás, de última instância), assim como o é o Revirão que se supõe funcionar dentro do Haver.

Formação do Haver – Termo genérico para designar que tudo no Haver comparece como formações, inclusive as formações ditas psíquicas. Qualquer formação do Haver se movimenta no empuxo da ALEI, como ressonância ou metáfora da impossibilidade última de Haver passar a não-Haver.

Furo – Topologicamente, pode ser descrito como a forçação sobre uma bilateralidade de um percurso que torna a superfície unilátera.

Haver (A) – Tudo que há e que pode vir a haver. Inclui o chamado Universo. Hiperdeterminação – Para além das determinações e sobredeterminações primárias e

secundárias, o que hiperdetermina o Haver em seu movimento de estados e modalizações é sua Causa, o não-Haver, Ã, que, como o nome diz, lhe é tão exterior que nem há, mas que nele se inscreve de algum modo e se re-inscreve na espécie humana. Estar referido à Hiperdeterminação é quando se indiferencia tudo e se exaspera apenas a Diferença última entre Haver e não-Haver. Desenha-se, em última instância, como o aparelho do Revirão.

Idioformação – Uma (qualquer) formação que tenha disponível para si (mesmo que não aplicada hic et nunc) a Hiperdeterminação. O Haver e o Homem são exemplos de Idioformações.

Idioformação (Princípio de) – Idios: ‘mesmo’. O universo tem uma formação em reflexão, espelho, catoptria e, em última instância, produz algo que reflete a sua reflexão. Repete-se a si mesmo de maneiras as mais variadas. Ver Catoptria (Princípio de).

Inconsciente – O que se passa entre Haver, com todas as suas formações modais, e não-Haver. Toda vez que nos aproximamos de qualquer formação, aparece o Inconsciente enquanto (não)relação entre as formações do Haver (como um todo) e o não-Haver (que pode forçar alguma Hiperdeterminação).

Indiferenciação – Estado neutro do Real. É deslocar, disponibilizar-se à Hiperdeterminação.

Informação – Recorte de uma formação (mais ou menos simples) e sua gravação num arquivo de recepção.

Inspiração – Recurso (também) ao saber, à informação, à consciência, ao conhecimento e à comunicação, na referência à Hiperdeterminação: invocação do Gnoma no Cais Absoluto (donde a aparência de intervenção divina). Visa a forçação de um acontecimento, a eclosão de uma criação.

Meta-Psicanálise – O mesmo que Nova Psicanálise ou NOVAmente. Uma teoria generalizada da Comunicação: o tratamento reconhecido dos transes que há. Transformática. Teoria das Vinculações: os vínculos Primário, Secundário e Originário.

Nada – Haver em neutralidade, sem diferença. não-Haver (Ã) – Avesso radical de Haver. Para as Idioformações, tudo pode ser avessado,

dialetizado, catoptrizado. Portanto, por sua constituição íntima, por sua estrutura mental, não podem não conjeturar o não-Haver de última instância.

Neo-etologia – Resultado de recalque, no nível Secundário, das possibilidades de reviramento da espécie humana. A cultura, em um de seus sentidos, é vista como uma

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neo-etologia, por criar uma nova etologia por excesso de crença nos modelos dados de comportamento e imitar o etológico espontâneo do nível primário.

Nova Psicanálise, ou melhor NOVAmente – Criada em 1986, por MD Magno na linhagem de Freud e Lacan, é uma reedificação da psicanálise com base nos mais importantes achados desses dois mestres, que têm se mostrado à altura de orientar uma teoria compatível com a situação atual do mundo, sobretudo em seus aspectos de ciência e de saber. Coaduna-se com as teorias científicas contemporâneas e freqüentemente demons-trou antecipá-las em diversos pontos cruciais. Pode ser definida como um aparelho clínico de simulação da suspensão dos recalques.

Originário (Nível ou Regime) (Recalque) – Fundamenta-se na axiomatização da ALEI. Competência que têm as Idioformações de reviramento radical do que quer que lhes seja apresentado. Quebra de Simetria no Haver e no psiquismo, dada pela impossibilidade de o Haver passar a não-Haver.

Ponto bífido - Ponto neutro, com possibilidade (não de se orientar, mas) de ser direcionado ora para um lado ora para outro.

Primário (Nível ou Regime) (Recalque) – Formações que o Haver oferece espontaneamente. As formações materiais existentes no Haver. No Primário de nosso corpo há dois níveis: autossoma (constituição biótica) e etossoma (conjunto dos comportamentos inerentes ao autossoma).

Projeto Pró-Moderno – A tentativa, onde quer que haja, de fazer funcionar o Quarto Império. Vetor cuja força visa a passagem do Terceiro para o Quarto Império. Haveria assim a realização da Modernidade, pois nunca fomos efetivamente modernos. A possibilidade de instauração definitiva do Quarto Império, na prática, no exercício cultural, está na dependência de se passar como referência ao Quinto Império, ao puro reviramento, à pura indiferenciação. O projeto Pró-moderno consiste em desrecalcar nossa Originariedade, o que é o processo de Cura.

Pulsão – Único conceito fundamental da Nova Psicanálise, conforme elaborado por Freud, em sua última instância, como Pulsão de Morte. Inscreve-se como movimento de libido e estrutura-se como Revirão. Modo de funcionamento do Haver, i.e., o próprio movimento do que há. Traduz-se, em brasileiro, por Tesão. Deste conceito se deduzem todos os outros conceitos.

Recalque – Conceito elástico, dinâmico e polivalente, que estrutura todo o pensamento psicanalítico. O que quer que não esteja comparecendo aqui e agora é da ordem do recalque. O que quer que se defronte, mais ou menos opressivamente, com o Revirão é fundação de recalque.

Revirão – Máquina lógica tomada como metáfora dos movimentos do psiquismo e do Haver. Decorre da ALEI e se presentifica para as Idioformações na possibilidade que têm de pensar, querer e mesmo produzir o avesso de tudo que lhes é apresentado.

Saber – Uma formação (de formações) que funciona como tal (não necessariamente consciente) diante da circunstância de outras formações.

Sabedoria – Recurso pleno (plerômico) ao Saber, à Informação, à Consciência, ao Conhecimento e à Comunicação – como Macro-formação – em Sobre-determinação Equi-Vocada na Indiferenciação. Visa a perfeição do périplo no interior da cultura.

Secundário (Nível ou Regime) (Recalque) – Regime produzido pelas Idioformações enquanto referidas ao Primário (etossoma e autossoma), mas empuxados pelo Originário, que é sua competência de reviramento radical do que quer que se lhes apresente. Inclui o que se chama de simbólico e de cultura.

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Simetria - Inscrita na ALEI, Haver desejo de não-Haver, o que é a imposição do desejo como desejo de simetria.

Simetria, Quebra de – O Haver ter desejado seu simétrico enantiomórfico, seu avesso catóptrico, seu avesso diante de um espelho absoluto, e não conseguir atingi-lo por impossibilidade. Ocorre, portanto, pelo simples fato de que o não-Haver não há. Inclui o que Freud chamou de castração e indicou como recalque originário (Urverdrängung).

Sobredeterminação – Imensa gama de elementos que determinam a vida da gente. Podem ser do nível Primário ou Secundário.

Transe – A trama e a transa das formações na Transformática. Tudo dependendo do (verbo) transir. Todas as possibilidades de comunicação, inclusive o conceito de transferência.

Transir – A produção do furo que instaura a unilateralidade e a indiferenciação no seio mesmo da bilateralidade e da oposição.

Transferência – Toda possibilidade de vinculação. São dois os seus vetores: baixa transferência, a pega vincular etológica; e alta transferência, aquela que se dá na ponta radical do Cais Absoluto perante o não-Haver. Onde há transferência, acendeu-se para alguém a Vinculação Absoluta. É impossível dissolvê-la quando é verdadeira, i.e., quando se tem como referência a Hiperdeterminação.

Transformática – Teoria geral da comunicação. Como o que existe são trans-formações, transas entre formações, é o infinito e variável processo de colheita e arquivamento das transas entre as formações, no regime das Idioformações. É a “metodologia”, o modo de operação, da Gnômica, uma hiperinformática afetada pela Hiperdeterminação.

Vínculo Absoluto – Vínculo não-relativo mediante o qual há toda possibilidade de vinculação. Não vincula as Idioformações uma às outras, mas as deixa vinculadas a uma única absoluta e unária situação. Em algum lugar, por causa de sua formação fundamental como disponibilidade ao Revirão e à Hiperdeterminação, as Idioformações estão em vinculação absoluta. Onde se indiferenciam todos os vínculos transferenciais do Primário e do Secundário. É vazio e não determina nenhum comportamento.

* Professor do Curso de Pós-Graduação da ECO/UFRJ. Ex-Professor do Depto. de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (então dirigido por Jacques Lacan). Psicanalista. Desenvolveu Seminário ininterrupto de 1976 a 1998 (publicado por várias editoras). Continua suas atividades semanalmente na Oficina da Nova Psicanálise, promovida por NOVAmente. (www.novamente.org.br)

Texto produzido a partir de transcrição da décima-quarta seção, de 04 setembro 1997, do Seminário (oral) do autor, intitulado Comunicação e Cultura na Era Global, proferido no Forum de Ciência e Cultura e no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ.