mapa da exclusão social no brasil

486

Upload: smacrom

Post on 29-Jan-2016

59 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Livro sobre exclusão social, desigualdades na apropriação de renda regionais, estaduais, municipais e suas causas. Obra do professor José de Jesus Sousa Lemos

TRANSCRIPT

  • Jos de Jesus Sousa Lemos

    MAPA DA EXCLUSO SOCIAL NO BRASIL Radiografia de um Pas Assimetricamente Pobre

    3 Edio

    Revisada e Atualizada

    FortalezaBanco do Nordeste do Brasil

    2012

  • Presidente:Ary Joel de Abreu Lanzarin

    Diretoria:Fernando PassosLuiz Carlos Everton de FariasManoel Lucena dos SantosNelson Antnio de SouzaPaulo Srgio Rebouas FerraroStlio Gama Lyra Jnior

    Conselho Editorial:Stlio Gama Lyra JuniorJos Narciso SobrinhoJos Rubens Dutra MotaFrancisco das Chagas Farias PaivaJos Maurcio de Lima da SilvaPaulo Ddimo Camura VieiraAllisson David de Oliveira MartinsWellington Santos DamascenoFernando Luiz Emerenciano VianaJnia Maria Pinho SouzaLuciano Jany Feijo XimenesMaria Odete AlvesFrancisco Raimundo EvangelistaAdemir Costa

    L576m Lemos, Jos de Jesus Sousa.

    Mapa da excluso social no Brasil: radiografia de um pas assimetricamente pobre / Jos de Jesus Sousa Lemos. 3. ed. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2012.

    256 p.: il.ISBN 978-85-7791-198.1

    1. Desigualdade social. 2. Pobreza. 3. Analfabetismo. 4. Infraestrutura urbana. 5. Renda familiar. 6. Semirido. 7. Degradao ambiental. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 309

    Escritrio Tcnico de Estudos Econmicos do Nordeste (Etene)Superintendente: Jos Narciso Sobrinho

    Ambiente de Comunicao SocialGerente: Jos Maurcio de Lima da SilvaEditor: Ademir CostaReviso Vernacular: Antnio Maltos Normalizao: Erlanda MariaDiagramao: Deborha RodriguesTiragem: 500 unidades

    Cliente ConsultaCapitais e regies metropolitanas 4020.0004Demais localidades 0800 033 0004

    Depsito Legal junto Biblioteca Nacional, conforme Lei n0. 10.994, de 14 de Dezembro de 2004.

  • Para os meus pais em memria: Amlia Lemos e Domingos Lemos.

    Eles que com sabedoria nos ensinaram os caminhos por onde trilhar nesta vida.

  • 1

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Evoluo da Participao Relativa (%) das Regies e Estados no PIB Agregado do Brasil (2000/2009) .............................

    112

    Tabela 2 - Evoluo do PIB per capita e do Salrio Mnimo no Brasil, Regies e Estados no Perodo 2000/2009 - (Valores Correntes em R$)

    114

    Tabela 3 - Evoluo da Relao PIB per capita/Salrio Mnimo entre 2000 e 2009 ..............................................................................

    117

    Tabela 4 - Total e Percentual de Municpios por Estado que Possuam PIB per capita Menor do que o PIB per capita do Brasil em 2000 e em 2009 .....................................................................................

    120

    Tabela 5 - Evoluo do PIB per capita nas Capitais Brasileiras Entre 2000 e 2009 (R$ em Valores Correntes) ........................................

    123

    Tabela 6 - Distribuio por Estado dos 100 municpios de Menores IES em 2000 e 2010 ...................................................................

    128

    Tabela 7 - Distribuio por Estado dos 100 Municpios de Maiores IES em 2000 e 2010 .........................................................................

    130

    Tabela 8 - Distribuio das Taxas de Analfabetismo pelos Estados Brasileiros ....................................................................................

    132

    Tabela 9 - Comparao entre Privaes no Brasil, Regies e Estados Entre 2000 e 2010 ......................................................................

    133

    Tabela 10 - Populao Excluda no Brasil, Regies e Estados em 2000 e 2010 ..............................................................................

    137

    Tabela 11 - Municpios Entre os Cem com Piores IES em 2010 e Menores PIB per capita em 2009 ..................................................

    141

    Tabela 12 - Evoluo da Populao Analfabeta em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados Entre 2001 e 2009 - Passivo de Educao (%) .............................................................................................

    145

    Tabela 13 - Evoluo da Populao Analfabeta em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - Passivo de Educao Urbano (%) .................................................................................

    147

    Tabela 14 - Evoluo da Populao Analfabeta em reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - Passivo de Educao Rural (%) ...................................................................................

    148

    Tabela 15 - Evoluo da Escolaridade Mdia no Brasil, Regies e Es-tados entre 2001 e 2009 - Taxa de Variao ...................................

    152

    Tabela 16 - Evoluo da Escolaridade Mdia em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - (Anos) ......................

    154

  • Tabela 17 - Evoluo da Escolaridade Mdia em reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - (Anos) ....................

    155

    Tabela 18 - Evoluo do Salrio Mnimo Nominal e em Valores Corrigidos para 2010, no perodo de 2000 e 2010 .........................

    157

    Tabela 19 - Evoluo da Privao de Renda no Brasil, Regies e Estados e Respectivas Variaes entre 2001 e 2009 - Passivo Econmico (%) ............................................................................

    160

    Tabela 20 - Evoluo da Privao de Renda em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - Passivo Econmico Urbano (%) .................................................................................

    160

    Tabela 21 - Evoluo da Privao de Renda em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - Passivo Econmico Rural (%) ....................................................................................

    163

    Tabela 22 - Evoluo e Taxa de Variao da Privao de Acesso a gua Encanada no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVAGUA Geral (%) ....................................................................

    166

    Tabela 23 - Evoluo da Privao de Acesso a gua Encanada em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVAGUA Urbano (%) .................................................................

    167

    Tabela 24 - Evoluo da Privao de Acesso a gua Encanada em reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVAGUA Rural (%) ....................................................................

    168

    Tabela 25 - Evoluo e Taxa de Variao da Privao de Acesso a Saneamento no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVSANE Geral (%) .....................................................................

    171

    Tabela 26 - Evoluo da Privao de Acesso a Esgoto ou Fossa Sptica em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVSANE Urbano (%) .....................................................

    173

    Tabela 27 - Evoluo da Privao de Acesso a Esgoto ou Fossa Sptica em reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVSANE Rural (%) ........................................................

    174

    Tabela 28 - Evoluo e Taxa de Variao da Privao de Acesso ao Servio de Coleta Sistemtica de Lixo no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 PRIVLIXO Geral (%) ......................................

    177

    Tabela 29 - Evoluo da Privao de Acesso a Coleta Sistemtica de Lixo em reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVLIXO reas Urbanas (%) ..............................................

    178

    Tabela 30 - Evoluo da Privao de Acesso a Coleta Sistemtica de Lixo em reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - PRIVILIXO reas Rurais (%) ........................................................

    179

  • Tabela 31 - Evoluo da populao no Brasil e das Privaes de gua, Saneamento, Coleta de Lixo e Educao no Brasil entre 2001 e 2009 .......................................................................................

    182

    Tabela 32 - Evoluo do IES no Brasil, Regies e Estados Entre 2001 e 2009, Bem Como das Variaes Naquele Perodo ........................

    185

    Tabela 33 - Evoluo do IES das reas Urbanas no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - IES Urbano (%) .................................

    186

    Tabela 34 - Evoluo do IES das reas Rurais no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 - IES Rural (%) ....................................

    189

    Tabela 35 - Variao do IES e das Populaes no Brasil, Regies e Estados entre 2001 e 2009 ...........................................................

    191

    Tabela 36 - Definio dos Tipos de Clima de Acordo com o ndice de Aridez .........................................................................................

    200

    Tabela 37 - ndices de Aridez em Quinze (15) Municpios Maranhenses em que as Informaes Esto Disponveis ....................

    209

    Tabela 38 - Municpios, Populao, PIB Agregado e PIB do Estado e do Semirido ................................................................................

    211

    Tabela 39 - PIB per capita e Valores Extremos no Geral e no Semirido de cada Estado em 2009 ...............................................

    213

    Tabela 40 - Passivos, Privaes, Escolaridade Mdia no Semirido dos Estados Brasileiros ..................................................................

    215

    Tabela 41 - Populao Excluda no Semirido e Populao Excluda nos Estados em 2010 ...................................................................

    218

  • 1

  • SUMRIO

    CAPTULO 1

    BREVE RETROSPECTO DA HISTRIA RECENTE DE FATOS ECONMICOS E POLTICOS PARA ENTENDER ALGUMAS DAS CAUSAS DA POBREZA NO BRASIL .................................................

    15

    CAPTULO 2

    DISCUSSO CONCEITUAL ............................................................. 37

    CAPTULO 3

    A CONSTRUO DE UM NDICE QUE AFIRA A EXCLUSO SOCIAL ..... 91

    CAPTULO 4

    ASSIMETRIA NA APROPRIAO DA RENDA NO BRASIL .................. 111

    CAPTULO 5

    EXCLUSO SOCIAL NOS MUNICPIOS BRASILEIROS EM 2000 E 2010 ........................................................................................

    125

    CAPTULO 6

    EVOLUO DAS PRIVAES DE RENDA E ATIVOS SOCIAIS NO BRASIL, REGIES E ESTADOS ENTRE 2001 E 2009 ....................... 143

    CAPTULO 7

    EVOLUO DO NDICE DE EXCLUSO SOCIAL NO BRASIL, REGIES E ESTADOS ENTRE OS ANOS DE 2001 E 2009 ..............................

    181

    CAPTULO 8

    EXCLUSO SOCIAL NO SEMIRIDO BRASILEIRO ............................ 193

    CAPTULO 9

    CONSIDERAES FINAIS .............................................................. 221

    REFERNCIAS .............................................................................. 231

    ANEXOS ........................................................................................ 243

  • 1

  • 11

    APRESENTAO

    Jos de Jesus Sousa Lemos

    Nesta terceira edio do Mapa da Excluso Social no Brasil, temos a mesma pretenso das duas anteriores: a de contribuir com a formatao de informaes que esto disponibilizadas pelo IBGE, sempre objetivando contribuir para o entendimento dos fatos que podem ter sido relevantes para produzir um pas to desigual, como o Brasil.

    Assim, com o trabalho no pretendemos nos contrapor aos outros j existentes. To pouco as analises feitas ao longo do texto pretendem ser verdades absolutas ou definitivas. A tentativa foi de processar uma massa de informaes para delas, extrair alguns elementos que nos viabilizem fazer uma leitura do que vem acontecendo no Brasil nos ltimos dez anos, comeando com a virada do milnio no ano 2000 e culminando em 2010. Com base nos Censos de 2000 e 2010 reunimos elementos que permitam a comparao naquele lapso de tempo, dos indicadores de carncia dos municpios, estados, regies e Brasil. A comparao, neste caso, ser esttica de duas fotografias feitas em dois momentos distanciados por uma dcada.

    Complementando essa analise, mas com dados que no so diretamente comparveis, devido forma como foram coletados, procede-se uma avaliao que se pretende seja dinmica da evoluo (involuo) dos indicadores de carncias. Neste caso o nvel de desagregao chega apenas aos estados, regies e Brasil, com desdobramentos para as reas urbanas e rurais. Para estas analises recorre-se s Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicilio (PNAD) cobrindo o interstcio de tempo que inicia em 2001 e se conclui em 2009, que no contemplam todos os 5.564 que, absurdamente, compem a geografia do Brasil.

    Acredita-se que, com essas duas base de dados, consegue-se reunir informaes que ajudem bastante no entendimento do processo de empobrecimento da sociedade brasileira. Empobrecimento que, no caso do estudo, aferido de uma forma mais ampla do que apenas o acesso renda monetria. Trabalha-se com o conceito de Excluso Social, em que, alem da excluso de renda, afere-se a excluso aos servios essenciais como educao, gua encanada, saneamento e coleta sistemtica de lixo.

  • 12

    Como j falado em pargrafo acima, o trabalho no pretende substituir todos os demais realizados com o objetivo de aferir e avaliar nveis de pobreza no Brasil. A pretenso que o livro seja um complemento desse acervo de informaes, anlises e avaliaes j feitas por outros colegas em momentos diferentes. O nosso objetivo, meu e deles, contribuir para a construo de um Brasil mais justo. Assim, no me parece que o caminho da competio fosse o mais adequado para atingirmos tal objetivo. A complementaridade das nossas avaliaes e analises me parece ser de mais utilidade para que a sociedade brasileira encontre caminhos de mais equidade social e econmica com parcimnia ambiental. Cada trabalho traz, no meu entendimento, uma faceta de um problema que j crnico no Brasil: a grande massa de pobres e socialmente excludos.

    Nesta Edio fizemos modificaes substanciais na metodologia de construo do ndice de Excluso Social (IES). Nas duas Edies anteriores o IES tinha cinco (5) indicadores colocados explicitamente na sua aferio, devidamente ponderados: Percentagem da populao maior de dez anos analfabeta (PRIVEDUC); percentagem da populao que sobrevive em domiclios cuja renda total varia de zero a dois salrios mnimos (PRIVREND); percentagem da populao que sobrevive em domiclios sem acesso ao servio de gua encanada (PRIVAGUA); percentagem da populao sobrevivendo em domiclios sem acesso a saneamento minimamente adequado (PRIVSANE); e percentagem da populao que sobrevive em domiclios privados do servio de coleta sistemtica de lixo, direta ou indiretamente (PRIVLIXO).

    Os pesos atribudos a cada um os indicadores de privao que compunham o IES foram estimados por mtodo de anlise fatorial com decomposio em componentes principais de onde emergiram as cinco ponderaes disponibilizadas nos Anexos daqueles dois trabalhos.

    Na presente Edio, o IES foi condensado e tem apenas trs (3) indicadores: Passivo em Educao: Passivo em Renda; Passivo Ambiental. O passivo em educao aferido pelo percentual da populao maior de quinze (15) anos que se declarou analfabeta. O passivo de renda aferido da mesma forma que foi aferido o indicador PRIVREND nas duas Edies anteriores do livro. O Passivo Ambiental constitudo da mdia ponderada entre os trs indicadores: PRIVAGUA, PRIVSANE e PRIVLIXO. Todas as ponderaes, tanto na definio do indicador Passivo Ambiental como na aferio do IES foram obtidas atravs de mtodo de analise fatorial, com decomposio em componentes principais.

  • 13

    Esta nova forma de estimar o IES, acredita-se, lhe deu uma maior robustez de um ponto de vista estatstico. Mais relevante do que isso, o ndice ficou de mais fcil assimilao e aplicao. No livro est demonstrada, em anexo, toda a metodologia de construo do IES e dos novos indicadores. Os leitores que estiverem curiosos em conferir como se fez a reengenharia do ndice podero faz-lo, sem problemas. Aqueles que no quiserem fazer esta avaliao, no tero qualquer problema na aplicao e na interpretao do IES na sua nova roupagem. Esta foi a preocupao maior que me norteou para tentar uma simplificao. Quanto mais simples for o seu entendimento e aplicao, mais til ser como instrumento complementar de outros ndices e de outras formas de aferio de pobreza ou de excluso social.

    Esperamos com estas modificaes, e com as analises feitas ao longo do livro, contribuir para a compreenso dos conceitos envolvidos na anlise. De um ponto de vista emprico, almeja-se que os resultados disponibilizados sejam de utilidade para o entendimento das causas do atual estgio de excluso social que ainda nos traz grandes preocupaes.

    Claro que este, como qualquer tentativa de colocar conceitos complexos em um nmero, sempre um caminho reducionista. Assim, as evidncias mostradas no livro devem ser encaradas como indicadoras de tendncias parciais do que provavelmente deve ter acontecido no Brasil entre os anos de 2000 e 2010, analisados com duas bases distintas de dados. Nessa perspectiva devem ser encarados os ndices que tentam simplificar conceitos complexos num nmero adimensional: o IES um deles. No obstante este fato, espera-se que as anlises sejam de utilidade para esboar um Brasil mais equnime, mais justo, menos desigual e, claro, menos pobre.

    No poderia concluir esta apresentao sem agradecer mais uma vez aos colegas do Banco do Nordeste do Brasil por acreditarem neste documento ao ponto de publicarem e divulgarem da forma ampla que fizeram nas duas edies anteriores. To eficiente foi o trabalho de divulgao que as duas edies se esgotaram em tempo bastante reduzido. bvio que esta foi uma motivao a mais para escrever a terceira edio do Mapa da Excluso Social. O trabalho acaba se constituindo em mais uma constatao de que no Nordeste Brasileiro concentra-se o maior bolso de pobreza do Brasil O BNB tem uma vasta contribuio na tentativa de prestar esta informao e, mais do que isso, contribuir para a sua soluo. Almejamos que o nosso texto se inclua nesta tentativa.

  • 15

    Dentre as muitas caractersticas da sociedade brasileira, a mais marcante , sem sombra de dvidas, o contraste no que se refere aos indicadores sociais e econmicos que se distribuem de forma bastante assimtrica entre as regies, estados, bem como dentro das regies e dos estados. Isto faz do Brasil ainda ser um dos pases mais desiguais do mundo. Concomitantemente ao grande surto de industrializao experimentado pela economia brasileira a partir dos anos cinqenta, principalmente, e com o incremento da urbanizao da populao do pas, sobretudo nas trs ltimas dcadas do sculo passado, observa-se uma insistente manuteno dos nveis de desigualdades e de excluso social, tanto nas suas reas urbanas como nas suas reas rurais.

    Em termos de nveis de renda per capta, o Brasil est situado entre o grupo que a Organizao das Naes Unidas (ONU) classifica como pases com padro intermedirio de renda (Human Development Report, HDR, 2010). Com efeito, o IBGE contabilizou para 2009 um PIB per capta anual para o Brasil da ordem de R$ 16.917,66 (aproximadamente 3,4 salrios mnimos naquele ano). O Brasil se constitui num pas que exibe grandes contradies. Uma parcela diminuta da populao aufere padres de renda e de qualidade de vida semelhantes aos observados nas economias mais ricas do planeta, ao passo que na base da pirmide da distribuio da renda situa-se uma parcela substancial da populao, que

    1Breve retrospecto da histria recente de fatos econmicos e polticos para entender algumas das causas da pobreza no Brasil

  • 16

    sobrevive em condies bastante precrias, e at mesmo no dignificantes com a condio de seres humanos.

    Concomitante insero, de uma forma consistente, na fase de industrializao, o Brasil apresentou grandes instabilidades polticas. Na fase mais recente da sua historia, a insegurana poltica se materializou de uma forma mais acentuada nos anos sessenta, com a deposio, por parte dos militares, do ento presidente Joo Goulart. Ele que havia sido eleito vice-presidente da repblica. Na poca as eleies para Presidente e Vice-Presidente da Repblica eram independentes. Os eleitores votavam para ambos em cdulas separadas, ao contrrio das eleies atuais, em que so eleitos em chapa nica e o vice-presidente no recebe um nico voto, mas pode substituir o titular, em definitivo, no seu impedimento. Joo Goulart havia assumido a Presidncia com a renncia de Janio Quadros, em 25 de agosto de 1961.

    Jango, como era conhecido o vice-presidente, assumiu a Presidncia da Repblica em oito (8) de setembro de 1961, sob forte desconfiana dos militares que no o queriam governando o pas por acus-lo de comunista. Para tentar contornar aquele impasse poltico e assegurar a sua posse, o Congresso Nacional aprovou, no dia dois (2) de setembro de 1961, a mudana do regime de governo de presidencialismo para parlamentarismo. Foi a forma que os congressistas encontraram para arrefecer o clima nos quartis. Davam-lhe posse na Presidncia, mas limitavam-lhe os poderes. Tancredo Neves assumiu como primeiro ministro daquela extempornea experincia de parlamentarismo no Brasil.

    Travado pelo regime parlamentarista, por um Congresso em que no possua maioria confivel, Jango no conseguia aprovar suas propostas e o governo ficou engessado. Aquele foi um perodo conturbado na histria poltica, econmica e social do Brasil. Depois de um arguto exerccio de articulao poltica, Jango conseguiu do Congresso e da opinio publica o apoio para realizar um plebiscito que consultaria a populao brasileira acerca da manuteno do parlamentarismo. A consulta foi realizada em janeiro de 1963 e o parlamentarismo foi rejeitado por ampla maioria dos eleitores brasileiros da poca e, consequentemente, o presidencialismo foi restabelecido.

    Contudo, as turbulncias sociais, polticas e econmicas, que se manifestavam com inflao em crescimento, aumentavam-lhe a intolerncia junto ao ncleo mais duro dos quartis. Para ser mais rigoroso com os fatos, a inflao brasileira j vinha num crescendo, desde o

  • 17

    Governo de Juscelino Kubitschek, que antecedera Jnio Quadros. Naquele governo, a construo de Braslia se constituiu numa fonte constante e incontrolvel de dficit no oramento do setor pblico. Jango herdou aquele problema.

    Mas um discurso inflamado do presidente Joo Goulart dizendo que iria fazer uma reforma de base, que tinha na reforma agrria um dos pontos relevantes, incrementou mais ainda a m vontade e os rebolios nos quartis, alm de provocar inquietao em segmentos poderosos e formadores de opinio pblica no Brasil naquela poca. Tanto assim que, em primeiro de abril de 1964, a pretexto de retirar do comando um governante com vocaes comunistas (na avaliao dos militares e de importantes segmentos formadores de opinio), alem de ser incapaz de controlar a derrocada dos preos, Joo Goulart foi apeado, e os militares tomaram conta do poder, numa das fases mais difceis e conturbadas da trajetria poltica recente da sociedade brasileira.

    Os militares assumiram usando a fora, literalmente, para banir todos os opositores explcitos ao regime. Implantaram a censura aos meios de comunicao, governavam de forma absoluta, sem se importarem com os demais poderes da repblica. Claro que isso foi possvel tambm porque houve a aquiescncia de personalidades civis que aproveitaram a oportunidade para construir as prprias carreiras e fortunas sombra daquele obscurantismo. Algumas dessas figuras sobreviveram e continuam ainda hoje paparicando governantes que, na poca, se declararam opositores ao regime.

    Os militares assumiram o poder com o discurso de transformar o Brasil em potencia mundial, inundando o pas com um discurso nacionalista, fortemente focado em frases de efeito, como aquela que foi fortemente difundida no governo do general Mdici: Brasil, ame-o ou deixe-o; este um Pas que vai pra frente. O discurso ganhou fora com a hegemonia da Seleo Brasileira de Futebol, que ganhou o tricampeonato mundial no Mxico em 1970. O Governo militar de ento, que era liderado pelo General Garrastazu Mdici, capitalizou, o quanto pde, aquele evento histrico do futebol brasileiro e a propaganda oficial induziam o ufanismo, ao ponto dos brasileiros acreditarem que o Brasil j era uma grande nao, no apenas no futebol. O governo militar conseguiu apoios importantes entre artistas, nos meios de comunicao social, em segmentos formadores de opinio das classes mdia e mais rica, o que possibilitou quele sistema alcanar flego e conseguir ressonncia para a sustentao do seu iderio de poder.

  • 18

    Foram adotadas medidas de poltica monetria, objetivando segurar o processo inflacionrio, uma das justificativas para a deposio de Joo Goulart. Havia sido introduzida uma espcie de anestesia que amenizava os estragos provocados por uma inflao que insistia em no ceder. Era a correo monetria.

    Entre os anos de 1968 e 1972 o Brasil atravessou uma fase de prosperidade de indicadores econmicos (os indicadores sociais eram muito ruins) que ficou conhecida na literatura econmica e poltica como O Milagre Brasileiro, que tinha na emergente indstria automobilstica e na participao do Estado, atravs da implantao de grandes empreendimentos de infraestrutura, algumas das suas maiores ncoras de sustentao.

    Na poca o pas tinha uma forte dependncia na importao do petrleo. Estima-se que o Brasil importava mais de 70% do petrleo necessrio para atender demanda interna. Isto deixava a economia muito vulnervel s intempries externas, associadas s variaes dos preos daquela commodity. Tanto assim que, em 1973, os principais pases exportadores se cartelizaram para controlar a oferta daquela matria prima e, por esta via, elevar os seus preos. Como decorrncia daquela cartelizao desencadeou-se uma grande crise na economia mundial e brasileira. Assim, entre 1968 e 1972 (quando o Brasil ia bem, mas a maioria dos brasileiros ia muito mal), o Milagre Econmico comeou a fazer gua. A promessa, que ento foi feita, de primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo, sucumbiu no emaranhado das dificuldades que se incrementaram, a partir dali, para a grande maioria dos brasileiros. Contudo, a partir daquela fase turbulenta, a classe mdia e os poucos ricos de ento, passaram a sentir, no prprio bolso, a crise, ao abastecerem os seus automveis.

    Ficava definitivamente explicita, naquela ocasio, a derrocada de um modelo de administrao equivocado que se ancorava no uso de fonte no renovvel de energia, da qual o Brasil era fortemente dependente de fornecimento externo.

    Com o encarecimento da matria prima, os preos de todos os itens internos comearam a disparar em efeito cascata. A inflao em alta, que havia sido uma das razes alegadas para justificar a deposio de Joo Goulart, se manifestava de forma mais virulenta, sobretudo para a grande massa de trabalhadores, corroendo-lhes os parcos rendimentos. Como havia a determinao explcita de forte controle das massas,

  • 19

    qualquer manifestao contrria ao regime era sufocada, para o que utilizava a intimidao, atravs da censura aos meios de comunicao, e at por meio de perseguio queles que se posicionassem de forma mais explicita, ou que fossem denunciados por dedos duros, que proliferavam sombra do regime. Qualquer um que fosse visto ou tido como ameaador estabilidade do sistema vigente era perseguido implacavelmente. poca muito difcil aquela!

    Para amenizar os efeitos da inflao, em evidente espiral crescente, havia sido institudo o instrumento ento chamado de correo monetria. Essa sacada havia sido criada pelos economistas Octvio Gouveia de Bulhes e Roberto Campos, que foram, respectivamente, ministro da fazenda e do planejamento no governo do general Castelo Branco (1964-1967). A correo monetria surgiu no Plano de Ao Estratgica do Governo (Paeg). Em linhas gerais, o Paeg propunha manter o ritmo de crescimento, que havia experimentado queda nos dois anos anteriores a 1964, combater a inflao, atenuar os desvios regionais, alm de outras providncias. (Seretta 2001).

    A correo monetria tinha como inconveniente retroalimentar a inflao, atravs do mecanismo que os economistas chamam de inrcia inflacionria. Contudo, paradoxalmente, a correo monetria acabava funcionando como um mal necessrio naqueles nveis em que a inflao j se manifestava no Brasil. Tanto assim que, s com ela, foi possvel suportar nveis to elevados de instabilidade monetria, sem que houvesse convulso social que pudesse se transformar em grandes rebelies com derramamento de sangue no pas. Claro que a macia represso foi tambm um fortssimo instrumento utilizado para a contenso de qualquer manifestao mais explcita de insatisfao com o regime. Contudo, mesmo sob represso havia segmentos perfeitamente identificados de rebelio. Alguns desses pontos ficaram nacionalmente conhecidos, apesar da forte censura ento imposta ao pas. Aqueles que surgiram nos ptios das montadoras de veculos situadas no ABC paulista e nas universidades brasileiras. A Unio Nacional dos Estudantes (UNE) foi um grande e importante foco de resistncia, tanto que alguns dos seus dirigentes foram perseguidos, alguns at banidos sumariamente. Vale destacar tambm o trabalho de artistas.

    A crise de (des)abastecimento de combustveis se agravava, tendo em vistas que o poder dos fornecedores se fortaleceu, e com ele, o encarecimento em escala ascendente do preo do barril de petrleo. Este

  • 20

    fato, e o total descontrole fiscal interno, provocaram a evoluo da inflao e a estagnao da economia brasileira. O regime militar comeou a entrar em colapso e a sociedade j conseguia esboar manifestaes mais explcitas de descontentamento, inclusive no processo eleitoral, que era conduzido com mos de ferro pelos militares, para que pudessem controlar os parlamentares e influenciar nas decises do Poder Judicirio.

    Os militares respondiam quelas manifestaes populares criando alguns movimentos de aparente distenso do regime. Um deles foi a permisso da existncia de um partido de oposio. Aquele partido que foi chamado de Movimento Democrtico Brasileiro (MDB) e teve em Ulysses Guimares, Tancredo Neves, Thales Ramalho, algumas das suas lideranas, dava ao regime uma aparncia de democracia. A comunidade internacional no poderia dizer que no Brasil prevalecia o unipartidarismo, com a Aliana Renovadora Nacional (Arena), representando a situao, sendo o nico partido poltico existente no Brasil. Com o MDB estava estabelecido, por decreto, o bipartidarismo. Mas claro que os militares exigiam um bom comportamento do partido de oposio como contrapartida daquilo que achavam que estavam concedendo. Deveria ser uma oposio faz de conta.

    A sociedade brasileira havia adquirido maturidade e j desenvolvia uma capacidade de manifestao que se contrapunha s diretrizes dos militares. Em sntese, no aceitava uma oposio apenas para constar. Queria, de fato, um movimento que pudesse sobrepor-se ao regime militar prevalecente. Aquela bipolarizao criou um caldo de cultura propcio para o surgimento de lideranas que emergiam de diferentes segmentos. Os artistas em geral, e os msicos em particular, os estudantes, os professores tiveram significativa participao naquele processo de rebeldia. As universidades brasileiras se constituram em importantes focos de resistncia e de ressonncia das inquietaes da sociedade brasileira de ento.

    As manifestaes de rebeldia da sociedade eram respondidas pelos militares com mais medidas de represso, como foi a instituio, fora, do Pacote de Abril de 1977, que trouxe embutida, entre as suas prerrogativas, a figura dos senadores binicos, que representariam um tero daquela casa, e eram ungidos ao cargo sem os votos dos eleitores, mas de um colegiado escolhido a dedo pelo regime de planto. Essas medidas foram tomadas em plena era do general Geisel que autoproclamava o seu perodo como de governo da distenso poltica. (FARIA, 2011).

  • 21

    As medidas do Pacote de Abril foram uma espcie de antdoto do regime que antevira uma derrota retumbante na eleio para o Senado, marcada para o ano seguinte. Perderiam o controle daquela casa para o partido da oposio, MDB. Para que isso no acontecesse, as medidas embutidas no Pacote de Abril asseguravam, artificialmente, a maioria que no conseguiriam nas urnas. Aquela teria sido uma medida de fora que viabilizou o projeto do presidente general, Ernesto Geisel, mas que teve uma espcie de efeito bumerangue, na medida em que fortaleceu mais ainda os movimentos de resistncia ao regime.

    O general Geisel se retirou da cena poltica e imps aos militares e ao Brasil, o general Joo Batista Figueiredo, que seria o ltimo presidente do ciclo militar, no perodo de 1979 a 1985. Com dificuldades tremendas para entender fatos elementares em economia, Figueiredo tentou conter o crescimento da demanda por combustveis no renovveis, tabelando os seus preos e impondo restries sua compra nos finais de semana e nos feriados. Mal sabia ele que, por ser um bem fortemente inelstico aos preos, em decorrncia da inexistncia, na poca, de substitutos prximos, aquela ao no surtiria o efeito esperado e, ao contrrio, estimularia a compra e o armazenamento clandestino do combustvel, colocando em perigo a vida de muita gente. De fato, no foram poucos os acidentes contabilizados, na poca, como decorrncia da compra de gasolina e do seu armazenamento em casa.

    Contudo, foi no governo Figueiredo que se plantou, e onde germinou a semente do programa de produo de lcool combustvel: o Prolcool. Foi uma grande sacada tecnolgica que colocaria o Brasil na vanguarda da fabricao e do uso de combustveis renovveis, apesar dos reconhecidos problemas ambientais e sociais embutidos na sua fabricao.

    A inflao continuava, entretanto, em franco processo ascendente, de tal sorte que, ao final do seu governo, ela havia chegado ao patamar de 100% ao ano, em nmeros redondos. A espiral inflacionria, a crise de estagnao econmica interna e a demanda por liberdades levaram a sociedade brasileira a um perodo de grande efervescncia. Assim, em 1979 foi assinado pelo General Figueiredo o Projeto de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Diga-se, a bem da verdade, que o projeto original de anistia era muito restrito, mas como consequncia das demandas de uma sociedade em turbulncia, vida por mudanas urgentes, que contava com a fortssima participao dos movimentos estudantis, da sociedade civil, dos trabalhadores, de artistas, de professores das universidades

  • 22

    brasileiras, formou-se uma avalanche que ficou insustentvel de conter. A anistia teve de sair da forma que saiu: bem mais ampla. Portanto, a anistia estabelecida em 1979, no foi uma concesso do regime militar ento vigente, mas uma conquista da sociedade brasileira.

    Foi naquele clima, de grande pulsao, que demandava direitos, liberdade de expresso, imprensa livre, outro tipo de sociedade que, em 1984, emergiu o movimento das Diretas J. Aquele movimento estava ancorado no projeto de emenda do deputado Dante de Oliveira, do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB). A emenda propunha a restaurao, de imediato, do direito dos brasileiros escolherem o Presidente da Repblica, que havia sido suspenso durante o regime militar.

    A despeito de o movimento ter sido fortemente boicotado, na poca, por segmentos importantes da imprensa, ganhou as praas, ruas e avenidas pelo Brasil inteiro, e tinha em Ulysses Guimares, Tancredo Neves, Mrio Covas, Teotnio Vilela, alm de Dante de Oliveira, alguns dos seus grandes, obstinados lderes e incentivadores. Contudo, no obstante as lideranas expressivas, aquelas manifestaes somente atingiram o contorno de movimento de massas, graas empolgao que tomou de conta a populao brasileira, sobretudo os jovens com a sua irreverncia, estudantes, professores de universidades e de escolas em geral. (Gasparetto Jr. 2011)

    No obstante a forte manifestao popular de um movimento cvico, jamais visto at ento na histria poltica do pas, a emenda foi rejeitada pelo Congresso, e a eleio para presidente, em 1984, ainda se deu por via indireta. O candidato representante do poder que agonizava era Paulo Maluf, que se imps contra a vontade de parte dos militares, o que contribuiu para a diviso do partido oficial de ento, PDS. Representando as oposies, entrou na postulao o ento governador de Minas Gerais, Tancredo Neves. Poltico conservador, mas astuto e de passado ilibado, havia sido primeiro ministro no breve perodo parlamentaristas imposto ao Presidente Joo Goulart, fato j mencionado aqui. Tancredo era detentor de grande habilidade poltica e de forte capacidade conciliadora. A chapa se completava com Jos Sarney, que havia sido presidente do PDS, partido que substituiu a ARENA que dera sustentao a todos os governos do regime militar que naquelas circunstncias dava os ltimos estertores. Sarney entrou na chapa, contra a vontade da maioria dos lderes do movimento que queria outro pas, devido a ele, Sarney, alm de ter sido um dos suportes e entusiastas de todos os presidentes do regime militar,

  • 23

    ter sido acusado de ser um dos mais fortes articuladores para inviabilizar a emenda das diretas. Teve, porm, de ser engolido na chapa de Tancredo como estratgia para minar a candidatura de Maluf, de quem aquele astuto maranhense j era inimigo poltico na poca.

    Tancredo Neves conseguiu a maioria esmagadora dos votos daquele colgio eleitoral que houvera sido ampliado, e se elegeu Presidente da Repblica. Contudo, adoeceu no dia que seria o da sua posse (15 de maro) e morreu no dia 21 de abril de 1985. Aquele foi um momento de grande comoo nacional. Sem dvida, apesar da eleio indireta, aquele hbil e arguto poltico mineiro conseguiu reunir em torno da sua pequena, mas carismtica figura, as esperanas de dias melhores para os brasileiros, depois daquele longo perodo sob gide dos militares. Para completar o clima de comoo geral que se abateu sobre o pas, surgiu a dvida de quem teria que assumir o Governo. Havia polmicas acerca da interpretao da Constituio brasileira que prevalecia ento, no caso de vacncia do cargo, tendo em vista que o presidente no houvera tomado posse. Depois de um processo difcil de negociaes, que envolveu o Presidente do MDB, militares dissidentes do antigo regime e envolvidos com o processo de redemocratizao do pas, dos lideres do movimento das Diretas J, ficou acertado que o vice-presidente eleito junto com Tancredo Neves deveria tomar posse.

    Foi sob aquele clima de instabilidade emocional e de desconfiana da populao brasileira que Jos Sarney assumiu o poder, aps a morte de Tancredo Neves no dia 21 de abril de 1985. Joo Figueiredo, o ltimo presidente do regime militar, se recusou a entregar a faixa de Presidente a Sarney, por acredit-lo traidor do regime de que houvera feito parte at bem pouco tempo, inclusive como presidente do PDS, partido que sustentava o regime militar nos seus estertores. Figueiredo saiu deixando, como um dos seus legados, uma hiperinflao de 100% ao ano, em nmeros redondos.

    Como no poderia ser diferente, Sarney optou por manter o mesmo ministrio que havia sido meticulosamente desenhado por Tancredo Neves que, obviamente, houvera sido costurado sob a sua forte liderana e carisma. Atributos que faltavam para o presidente que assumira ocupando a vacncia do cargo que havia sido provocada pela obra cruel do destino. Sobravam desconfianas, entretanto, de todos os brasileiros acerca de como aquele cidado, de carreira poltica obscura, construda sombra do poder dos militares, iria conduzir os destinos do

  • 24

    pas, justamente num momento em que as esperanas por dias melhores haviam se renovado.

    Aquele grupo de Ministros, que era da estrita confiana de Tancredo Neves, comeou a entrar em atrito com o comandante com quem no tinham qualquer compromisso. Tanto assim que paulatinamente foram sendo substitudos. Na vaga do Ministro da Fazenda, que Tancredo houvera colocado um sobrinho seu, o economista Francisco Dornelles, assumiu o Administrador de Empresas, Dlson Funaro. Outros Ministros foram substitudos. Antonio Carlos Magalhes, que como Sarney houvera dado forte suporte ao regime militar, ocupou a estratgica Pasta das Comunicaes, que seria encarregada de fazer farta distribuio de canais de rdio e televiso para polticos que, em contrapartida, dariam apoio irrestrito ao presidente.

    O agravamento da crise externa coadjuvado pelo descontrole dos gastos pblicos, pressionava a hiperinflao que j superava 100% ao ano, condimentada com forte estagnao econmica. Uma combinao explosiva. Mergulhado neste caldeiro de tenses, em 28 de fevereiro de 1986, portanto menos de um ano depois de assumir o poder, Jos Sarney e o seu ento Ministro da Fazenda, Dlson Funaro, lanaram o Plano Cruzado de Estabilizao Monetria que, dentre outras providencias, congelava todos os preos dos bens e servios aos nveis praticados naquele dia. ( RUIZ, 2003).

    Em sntese, o Plano Cruzado de Estabilizao Monetria era constitudo das seguintes medidas:

    i Mudava a moeda de Cruzeiros para Cruzado, cortando trs zeros da antiga moeda;

    ii Congelava os preos e salrios nos nveis praticados em 28 de fevereiro de 1986;

    iii Extinguia a correo monetria, vigente desde o primeiro governo militar do General Humberto Castelo Branco;

    iv Decretou moratria e suspendeu o pagamento da divida externa;

    v criou o reajuste automtico dos salrios, o chamado gatilho que seria acionado em beneficio dos trabalhadores sempre que a inflao acusasse o patamar de 20% ao ano.

    Vale lembrar que na poca havia a Comisso Interministerial de Preos (CIP), criada ainda durante os governos militares e que no foi

  • 25

    revogada. A CIP se reunia sistematicamente para tabelar preos de itens controlados pelo Governo, sobretudo aqueles que tinham ponderao relevante na composio do ndice Geral de Preos (IGP) da Fundao Getlio Vargas, que era o termmetro oficial de aferio da inflao brasileira naquele perodo. Muitos desses itens haviam sido reajustados (ou cipados como se dizia na poca) nas vsperas do congelamento e, portanto, tiveram os preos congelados no pico. Outros itens estavam espera de serem cipados e no o foram, devido ao congelamento que houvera sido estabelecido e, por isso, foram pegos na cava (na baixa) no dia do lanamento do plano cruzado. bvio que isso iria provocar descontentamento, como de fato aconteceu.

    Outra medida adotada pelo plano cruzado foi o congelamento dos salrios pela sua mdia, que havia sido acrescida de pequeno reajuste antes do congelamento. Foi tambm criado o que foi chamado de gatilho que estabelecia que os salrios devessem ser reajustados sempre que a inflao anualizada atingisse o patamar de 20%. Foram tambm implantadas algumas medidas suplementares. Dentre elas o Plano Cruzado mudou a liquidez da caderneta de poupana que, de mensal, passou a ser semestral. Antes do plano cruzado, quem tinha caderneta de poupana, cuja remunerao era reajustada mensalmente pelos juros e pela correo monetria, tinha a falsa iluso de que o ativo estava rendendo uma enormidade. Na verdade estava apenas segurando, ainda que parcialmente, a desvalorizao dos recursos que os correntistas tinham a sabedoria de nela depositar. Ao final de cada ms poderiam fazer os saques com os juros e correes da sua caderneta de poupana.

    Com o Plano Cruzado, somente poderiam faz-lo, com correes e juros, depois de decorridos longos seis (6) meses do depsito. Este fato, aliado reduo da remunerao nominal causada pela queda imediata da taxa de inflao, devido ao congelamento de preos que, nos trs primeiros meses, reduziu praticamente a zero a inflao, contribuiu para desestimular os correntistas. Na cabea daqueles agentes, a aplicao ficara desinteressante, porque rendia menos. Por esta razo passaram a fazer saques de imediato (no esperando os seis meses de liquidez da correo e dos juros das cadernetas de poupana, conforme estabeleciam as novas regras da caderneta de poupana) dos depsitos efetuados. Aqueles recursos ficaram disponveis para demandarem bens e servios. Assim, o conjunto formado pela presso de demanda, motivada pelos preos em queda no primeiro instante, pelo fato dos correntistas fazerem saques nas cadernetas de poupana para demandarem bens e servios,

  • 26

    alm de ligeira melhora nos salrios reais dos trabalhadores, motivada pela queda abrupta da inflao, provocou presso na demanda. Como os preos estavam represados artificialmente, gerou-se a escassez de oferta. Os produtores, tendo os preos dos seus bens congelados, responderam reduzindo a produo, ou escondendo aquela que j havia sido realizada, provocando desabastecimento.

    Estava criado o caldo de cultura para o surgimento do mercado paralelo, que o Governo respondia colocando a policia nas ruas tentando intimidar produtores e fornecedores no atacado e no varejo. As cenas de desabastecimento e de tentativa de represso, por parte da policia que aconteceram na poca foram patticas, e podem ser assistidas no documentrio Laboratrio Brasil que est disponvel na pagina da Cmara dos Deputados.

    A equipe de economistas, que havia preparado o plano cruzado, sabia previamente que aquele congelamento no poderia ser mantido por muito tempo. Tanto que previu que, decorridos aproximadamente trs meses, portanto, l pelo ms de maio e junho, deveria haver o comeo de uma reavaliao do congelamento, fazendo os reajustes gradativos, sobretudo dos preos daqueles itens que foram congelados quando estavam nas vsperas de serem cipados. O Governo tinha o controle dos preos desses produtos, haja vista que faziam parte de uma pauta previamente preparada, e que a Comisso Interministerial de Preos, reunida de forma sistemtica os ajustava. Naquela lista contavam, entre outros, alimentos essenciais como a carne de gado, alm de combustveis e outros itens relevantes na formao da cesta de bens que compunha os itens com que a Fundao Getulio Vargas calculava o ndice Geral de Preos (IGP), que era o calibrador oficial da inflao por aquela ocasio.

    Contudo, naquele ano de 1986 haveria eleies para Governadores, para Deputados e Senadores. Os Deputados e Senadores, que seriam eleitos em 15 de novembro daquele ano, iriam escrever a Constituio de 1988, e teriam que decidir acerca do tamanho do mandato do ento presidente da Repblica (Jos Sarney) e dos futuros inquilinos do Palcio do Planalto.

    Por essas razes singelas, num pas em que, com raras excees, os projetos pessoais de poder sempre prevalecem sobre os interesses gerais da populao, no haveria, por parte do governo, e do partido que lhe dava sustentao, qualquer interesse em descongelar os preos, porque isso iria fazer recrudescer a inflao de imediato, at porque, com o

  • 27

    passar do tempo as tenses por aumento de preos se acumularam. Havia forte tenso de inflao reprimida. O presidente, por sua vez, almejava permanecer no poder por cinco anos, em vez dos quatro que a sociedade brasileira queria. O PMDB, que surgira em substituio ao MDB devido reforma partidria, que era o partido que detinha o poder, tanto na figura do Presidente da Republica como nas duas casas do Congresso, queria garantir a eleio do maior numero possvel de Governadores e de parlamentares para a Constituinte de 1988. Isso se materializava com farto uso da mquina governamental, incrementando o desequilbrio fiscal que pressionava uma inflao que estava artificialmente controlada.

    Com esses interesses em jogo, que excluam a vontade da maioria dos brasileiros, o congelamento que provocava desabastecimento foi sendo empurrado at o dia das eleies no dia 15 de novembro de 1986, para governadores, deputados e senadores. A forte manifestao do poder econmico fez com que o PMDB apenas no elegesse o governador de Sergipe, que na poca estava vinculado ao PFL. Alm disso, o partido no governo (o PMDB) fez ampla maioria nas duas Casas do Parlamento Nacional, controlando-a para a elaborao da Constituio de 1988. Uma grande demonstrao de esperteza que, como sempre, deixava de lado os interesses maiores da populao brasileira de lado. Tanto assim que fechadas as urnas, tendo assegurada a vitria do seu partido, o Presidente da Repblica decretou o fim do congelamento de preos em 16 de novembro de 1986.

    Aconteceu o que todos aqueles que entendem minimamente de economia anteviam. Os preos represados dispararam, a inflao ficou totalmente descontrolada. O Presidente, que havia conquistado simpatia no inicio do Plano Cruzado, caiu em descrdito popular. A partir dali ficou insustentvel a presena do Ministro da Fazenda (Dlson Funaro) que foi substitudo pelo Economista Luis Carlos Bresser Pereira, que tambm permaneceu por pouco tempo, o suficiente para fazer o chamado Plano Bresser que tambm no conseguiu debelar a hiperinflao. (RUIZ, 2003).

    O Governo terminou melancolicamente, tendo o Economista Mailson da Nbrega como Ministro da Fazenda. Os desarranjos eram enormes, o descrdito tambm. O Ministro tentou voltar s origens ensinadas nos manuais de economia, adotando a chamada poltica gradualista de combate inflao, vulgarmente chamada de poltica feijo com arroz. Tambm no surtiu efeito, e o Governo Sarney deixou como legado uma hiperinflao de 86% no ms de maro de 1990 e uma elevada

  • 28

    taxa de desemprego, ou seja, a sua herana foi um gigantesco processo estagflacionrio.

    Nas primeiras eleies democrticas, depois do longo perodo de eleies indiretas para Presidente da Republica, que ocorreriam em outubro de 1989, foram para o segundo turno Luis Incio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo. Lula era ento temido pelas elites econmicas, mas tinha grande penetrao entre estudantes e em expressivos segmentos intelectuais, sobretudo nas Universidades brasileiros. Collor de Melo, filho de ex-senador da Republica e egresso do Governo das Alagoas, um dos estados mais pobres da Federao, havia sido ungido condio de candidato com grandes chances de vitoria, respaldado em forte aparato de comunicao de massa, e pelo receio que Lula ento despertava em segmentos formadores de opinio pblica, sobretudo na grande mdia eletrnica.

    O discurso inflamado de Collor era repleto de metforas e apelos moralistas. Identificou a inflao como um drago que ele iria eliminar com um nico tiro certeiro com a sua espingarda calibrada. Alm disso, dizia que iria ser o caador dos marajs do servio pblico. Prometia que todos aqueles que tivessem usufrudo ganhos anormais no servio pblico, anteriores sua chegada ao poder, seriam implacavelmente perseguidos, e iriam devolver os excedentes recebidos. O discurso do caador de marajs soava como musica nos ouvidos de segmentos expressivos e conservadores da sociedade brasileira que acreditaram que ele iria de fato agir assim.

    A retrica fortemente metafrica e inflamada, pretensamente moralizante, com um forte apelo miditico, e o medo que parte da populao tinha do candidato do Partido dos Trabalhadores, propiciou a eleio, em segundo turno, de Collor de Melo, em outubro de 1989. Aquela eleio dividiu os brasileiros.

    O presidente que estava de sada (Jos Sarney) ficara acuado durante todo o processo eleitoral. Nenhum candidato quis-lhe o apoio. Transmitiu o cargo em maro de 1990 ao primeiro presidente eleito, depois da retomada da democracia no Brasil. Naquele dia acreditava-se que o ex-presidente havia morrido politicamente, tal o nvel de rejeio generalizada em que teve que deixar de ser inquilino do Palcio do Planalto.

    Collor de Melo assumiu, com hiperinflao de mais de 80% ao ms e nomeou como Ministra da Fazenda a Economista Zlia Cardoso de Melo.

  • 29

    A Ministra montou a sua equipe e criou Plano Collor-Zlia que, segundo ela e o presidente recm-empossado, seria o programa ou a espingarda que daria o tiro certeiro no drago inflacionrio. O tiro seria o confisco das contas correntes dos brasileiros e das suas poupanas. Essa foi a principal meta do Plano Collor de Estabilizao Monetria. Aquela talvez tenha sido uma das maiores irresponsabilidades administrativas de que se tem noticia neste Brasil. Provocou uma crise de liquidez sem precedncia na economia e, obviamente, no resolveu o problema inflacionrio. Na poca eu escrevi um artigo para um jornal de Fortaleza, em que eu dizia que o tiro ricocheteou e atingiu os brasileiros passando muito distante do drago. A espingarda utilizada tinha o cano distorcido e acertou o alvo de sempre: a maioria da populao brasileira, que sobrevivia com baixa renda. Em vez disso, a inflao anual, ao fim do seu governo, em dezembro de 1992, chegaria a 1.200% ao ano. A hiperinflao trazia como condimento uma elevada taxa de desemprego provocada pelas medidas equivocadas na sua desastrada gesto. Uma verdadeira tragdia, tanto do ponto de vista econmico, como social e poltico.

    Envolvido numa avalanche de denuncias de corrupo, feitas at por familiares e auxiliares muito prximos e, principalmente, por ter se tornado desinteressante para os segmentos econmicos importantes, inclusive aos meios de comunicao (aqueles mesmos que o haviam criado), Collor de Melo foi deposto em 29 de dezembro de 1992.

    Assumiu em seu lugar o engenheiro Itamar Franco, baiano de nascimento, mas que houvera feito a sua carreira poltica em Minas Gerais. Poltico polmico, mas que tinha a fama de no transgredir com falcatruas, Itamar assumiu a Presidncia da Repblica num outro momento difcil, tanto de um ponto de vista econmico como social e poltico. A hiperinflao (1.200% ao ano) deixada por Collor, e a estagnao econmica, continuavam sendo os fantasmas que perseguiam as vidas de milhes de brasileiros, sobretudo aqueles situados na base das pirmides, social e econmica.

    Depois de algumas experincias mal-sucedidas no afinamento da mquina administrativa, que havia selecionado para lhe auxiliar, colocou finalmente um Socilogo, Fernando Henrique Cardoso (FHC), para ser o Ministro da Fazenda. Daquela pasta deveriam sair as medidas necessrias para estancar a hiperinflao em curso, que iniciara nos governos militares e havia sido deixada em patamares inimaginveis pelos governos desastrados de Jos Sarney e Collor de Melo.

  • 30

    FHC, um arguto e festejado Professor e intelectual, embora no sendo economista, desconfiava de quais seriam as suas causas. Cercou-se de uma boa equipe de economistas da regio Sudeste do Brasil, onde fez a sua carreira como acadmico e como poltico. Autorizado pelo presidente Itamar Franco, a quem cabe o grande mrito da deciso, FHC implantou, em julho de 1994 o Plano Real que, sem sobressaltos, sem congelamentos, sem dar tiros em drages, apenas com medidas clssicas de controle fiscal e monetrio, alem da valorizao da taxa de cambio, segurou a demanda interna e, por esta via, a inflao ficou sob controle, perdurando at os dias de hoje, num fato indito na histria recente econmica e poltica do pas. (LOPES, 1986).

    Ancorado nos bons resultados do Plano Real, FHC se elegeu Presidente da Repblica em 1994, derrotando Lula que fazia a sua segunda tentativa de se eleger para aquele cargo. Como medidas complementares estabilizao monetria, o Plano Real previa, acertadamente, privatizao de empresas estatais que eram reconhecidamente ineficientes, focos de corrupo poltica e cabides interminveis de empregos para familiares, cabos eleitorais e amigos-apadrinhados de polticos. Essas medidas, juntamente com uma abertura maior da economia brasileira, seriam implantadas j no Governo de FHC que substitura Itamar Franco a partir de primeiro de janeiro 1995. (Lopes, op. cit.)

    A taxa de cmbio permanecia sob o controle da autoridade monetria (Banco Central), no regime de bandas cambiais, em que lhes eram permitidas flutuarem entre valores mnimos e mximos, estabelecidos por aquela autoridade monetria. Contudo, isso gerava crises cambiais. Os preos estavam estabilizados internamente, mas a balana comercial apresentava dficits crescentes. As reservas cambiais do pas caram para nveis assustadores. Alm disso ocorreram crises mundiais, como a da Rssia que repercutiram internamente. O governo FHC teve de recorrer ao Fundo Monetrio Internacional que, obviamente, imps a receita de mais controle fiscal, mais restrio ao crdito interno. As taxas de juros precisavam ser mantidas em patamares elevados, em termos reais (a inflao estava sob controle internamente), para segurar a demanda interna (para evitar presses inflacionrias) e para atrair fluxos de capitais, que compensariam a queda nas exportaes de bens e servios.

    Esse fato (a dependncia da balana de capitais para contrabalanar o dficit em conta corrente, que precisavam de juros reais elevados) criou

  • 31

    uma vulnerabilidade muito grande para a economia brasileira. As dvidas pblicas, interna e externa, dispararam. Adicionalmente, os juros reais mantidos em patamares elevados inibiam os investimentos internos, o que dificultava a expanso de uma economia, que j tinha elevada taxa de desemprego, herdada dos governos Sarney e Collor de Melo.

    O Presidente Fernando Henrique Cardoso conquistou um segundo mandato, derrotando, pela segunda vez, ainda no primeiro turno, o candidato Lula, na sua terceira tentativa de eleger-se presidente. Isso somente foi possvel porque o Congresso modificou a Constituio Brasileira, permitindo a reeleio de presidentes, governadores e prefeitos por mais um mandato de quatro anos. FHC tomou posse no dia primeiro de janeiro de 1999, e no dia treze (13) daquele ms mudou o regime cambial brasileiro para flutuante.

    O objetivo de manuteno da estabilidade monetria se complementou com a implantao de dois projetos importantes. A partir de primeiro de junho de 1999 o Brasil passou a adotar formalmente o regime de metas de inflao. O Congresso Nacional, em maio de 2000, aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A LRF surgiu com o intuito de impor limites aos gestores da poltica fiscal da Unio, Estados e Municpios. Um dos seus principais objetivos consiste no controle de gastos e endividamento excessivo por parte dos governos estaduais e municipais (FIORAVANTE; PINHEIRO; VIEIRA, 2007). A LRF estabelece normas de Planejamento e Controle das Contas Pblicas, impondo critrios transparentes para a estimativa da Receita e controles da Despesa Pblica (ARVATE; BIDERMAN, 2004, p.365). Assim como definiu o contedo da Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO), determinando modificaes na elaborao do Oramento Programa (Lei Oramentria Anual - LOA) e em todo o processo de prestao de contas e fiscalizao, buscando assegurar a transparncia na gesto pblica (ARVATE; BIDERMAN, 2004). Assim, praticamente se fechava o cerco aos focos inflacionrios.

    O pas comeava a recuperar o flego nas contas externas, j no dependendo apenas do fluxo de capitais, mas com o revigoramento das exportaes, sobretudo de bens derivados das agroindstrias e de commodities e, melhor ainda, com os preos estabilizados internamente. Estava criado o clima para que o crescimento econmico pudesse finalmente acontecer.

    Em 2002 aconteceram novas eleies presidenciais no Brasil e Lula, finalmente, se elegeu. No sem antes acalmar os investidores externos e

  • 32

    internos afianando, atravs de documento escrito e elaborado antes das eleies em outubro, que manteria os fundamentos macroeconmicos da poltica de estabilizao monetria, que incluam o rigor fiscal, o supervit fiscal, as metas inflacionrias, a Lei de Responsabilidade Fiscal, e o regime cambial flutuante, entre outras medidas. Tomou posse em janeiro de 2003 e, de fato, manteve todos os fundamentos macroeconmicos do governo FHC, no reviu as privatizaes que eram tidas por ele, e pelo seu partido, como viles, que haviam sido implantadas no governo que lhe antecedeu e ao qual exerceu oposio implacvel.

    Alem de incorporar na integra os fundamentos macroeconmicos das polticas adotadas nos dois mandatos de FHC, que foram intensificadas a partir de 1999 com a implantao das metas inflacionarias, e em 2000 com a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lula incorporou ao seu governo todos os programas de transferncias de renda dos governos FHC, agrupando-os no Programa que designou de Bolsa Famlia que passaria a ser a menina dos olhos e o carro chefe do seu governo.

    As reflexes feitas at aqui foram expostas para mostrar que a grande causa da pobreza e das desigualdades no Brasil nos anos recentes, sobretudo a partir do Governo Joo Goulart e daqueles que o depuseram, dos regimes militares, estava ancorada na inflao que comeou nos anos sessenta e se intensificou, transformando-se em hiperinflao entre os anos de 1980 e comeo de 1994, antes do Plano Real.

    Entre abril de 1980 e abril de 1994 a inflao no Brasil atingiu a assombrosa cifra de 20.759.903.275.651%. Isso mesmo: 20,76 trilhes por cento. Uma tragdia distributiva sem precedentes no Brasil e talvez nica no mundo moderno. (Laboratrio Brasil, 2011).

    A hiperinflao do perodo provocou conflitos distributivos e era sinergicamente provocada pelos conflitos. A concentrao da renda decorrente, e as desigualdades intra e inter-regionais aumentaram o tamanho da populao carente, tanto de renda como de servios essenciais. As energias dos agentes econmicos do pas, sobretudo do Estado Brasileiro, por longo tempo ficaram direcionadas, para debelar o processo de corroso das moedas que se sucediam na medida em que novos planos de estabilizao eram criados.

    Entre os anos de 1980 e 1991 o Brasil teve experincias desastradas de combate inflao que o transformaram num verdadeiro Laboratrio. Tivemos os seguintes planos que foram desenhados para debelar a

  • 33

    inflao: Plano Cruzado; Plano Cruzado Novo; Plano Bresser; Plano Feijo com arroz; Plano Collor; Plano Collor II, Plano Vero. Entre 1980 e 1994 tivemos as seguintes moedas: Cruzeiro, Cruzeiro Novo, Cruzado, Cruzado Novo, Cruzeiro novamente, Cruzeiro Real e Real (Laboratrio Brasil, 2011).

    Esse era o grande mau que precisava ser fustigado e vencido, sobretudo porque provocava, e sempre provocar, maiores danos para aqueles segmentos que se posicionam na base das pirmides econmica e social. No obstante a identificao da virulncia da inflao, os diagnsticos anteriores ao plano real eram equivocados quanto s causas da inflao brasileira: o forte desajuste fiscal. Desajuste que na era Sarney foi exacerbado para viabilizar-lhe mais um ano de mandato. Por isso, como tentamos mostrar nas discusses anteriores, todos os remdios (com exceo de um, o Plano Real), foram equivocados tanto na construo como na execuo.

    O problema crucial era: As cobaias daquele laboratrio de experincias mal sucedidas eram os brasileiros que afundavam com a instabilidade das moedas que surgiam a cada novo plano, com a recesso, com a acelerao da queda do poder de compra da sua renda, com a perda dos empregos, com o achatamento das suas rendas por causa da inflao. No conflito distributivo que se instala num processo assim, sempre sobra para os mais carentes. As medidas de controle inflao sempre tem como ingredientes o controle rgido dos gastos pblicos. Com a restrio desses gastos, os servios pblicos ficam piores do que j so normalmente, em um pas como o Brasil. Os maiores usurios desses servios so os pobres. Cria-se assim um crculo vicioso difcil de romper.

    A prioridade de debelar a inflao estava correta, mas os meios utilizados para contornar os problemas estavam equivocados, porque o diagnostico era incorreto. No perodo imediato ao regime militar os governantes, tal como j haviam feito os militares, acreditavam que poderiam financiar os seus dficits oramentrios fabricando dinheiro.

    No descontrole oramentrio estava a principal fonte da inflao brasileira. A outra fonte estava ancorada no equivoco brasileiro em promover o seu crescimento a partir do uso do transporte particular, contrariando o que aconteceu nos pases hoje desenvolvidos que deram prioridade s ferrovias, hidrovias e aos veculos de transporte de grandes massas humanas. Isso gerou dependncia a uma fonte de energia poluente e que no dispnhamos na poca em quantidades suficientes

  • 34

    para o abastecimento interno, ao tempo em que provocava, e provoca, desconforto nas cidades com os congestionamentos de trnsito que torna insuportvel a vida nesses centros.

    Assim, o racionamento desse item, fundamental para a economia do pas, somente poderia ser via preos. Como a matriz energtica era fundamentada no uso do petrleo, em todas as cadeias produtivas, os preos cresciam em cascata, de tal sorte que o produto final na ponta do processo produtivo sempre saia muito inflacionado.

    Desenhou-se, desta forma, uma estrutura econmica e social que tinha um fortssimo vis contra os mais carentes, o que contribuiu para incrementar os j dramticos nveis de pobreza no pas. Pior que isso, a pobreza se espraiou de forma desigual ou assimtrica entre as regies brasileiras. O Nordeste e o Norte brasileiro, nesta ordem, se consolidaram nos redutos dos maiores bolses de pobreza, como se mostra neste trabalho.

    A estrutura econmica ficou emperrada, a pouca disponibilidade de infraestrutura produtiva era causada pela baixa capacidade de acumular poupana interna. O Brasil um pas pobre e, por isso, a maior parte da populao no poupa e aqueles poucos membros pertencentes da classe mdia para cima, tm elevada propenso a consumir bens importados, como normalmente acontece em economias assim. Tudo isso agravado pelo endividamento externo, que se deu em profuso por ocasio dos governos militares e que prosseguiu nos governos ps regime militar, criou obstculos para que as aes conjunturais e estruturais da economia e da sociedade no se viabilizassem em beneficio da maioria dos brasileiros. Pior, geraram vieses significativos, criando brasileiros de primeira, segunda, terceira e de outras categorias mais inferiores. Provocou segregao econmica e social no Brasil.

    Um fator adicional a comprometer o desempenho da economia brasileira, emperrando-a, a elevada carga tributria que somos obrigados a pagar para os Governos Federal, Estaduais e Municipais. Impostos direitos e indiretos (alguns fortemente regressivos, como so aqueles que incidem sobre alimentos essenciais) que no se traduzem na prestao de servios de qualidade pelo Estado Brasileiro. Ao contrario, o Brasil detm uma das maiores cargas tributrias do mundo e, em contrapartida, apresenta uma das piores prestaes de servios pblicos do planeta.

    Esta breve retrospectiva da historia econmica recente do Brasil, sem qualquer pretenso de ser exaustiva, teve como objetivo mostrar que a

  • 35

    disseminao da pobreza, entendida como excluso social, na forma que se discute neste livro, no aconteceu por acaso no Brasil. Assim como no foi por acaso que se desenvolveu a distribuio assimtrica do quadro que segrega os brasileiros em grandes bolses de pobreza situados nas regies Nordeste e Norte, nesta ordem, que apresentam, proporcionalmente, os maiores registros de pobreza. Vale salientar que as regies ricas (Sudeste e Sul) que, em termos relativos tm menores taxas de pobreza, apresentam nmeros absolutos de pobres bastante significativos.

    Todo esse perodo de turbulncias polticas e econmicas, que o pas atravessou a partir de agosto 1962, com a renuncia do Presidente Jnio Quadros, posse intempestiva de Jango, sua deposio atravs de Golpe Militar em 1964 at a estabilizao da moeda em 1994, teve repercusso importante sobre os segmentos mais vulnerveis da economia, que so aqueles que sobrevivem na base das pirmides, econmica e social. Os planos de estabilizao (os que deram errados ou o que deu certo) tinham como uma das suas componentes polticas restritivas, fiscais, monetrias e cambiais. Todas elas provocam desemprego. O desemprego, por sua vez, leva a quantidade de pessoas vidas a trabalharem por qualquer salrio. Isso provoca uma baixa inexorvel dos salrios, alm de reduzir o poder de barganha dos trabalhadores que conseguirem assegurar os seus empregos.

    Tudo se passa como se a economia funcionasse como uma imensa fbrica com paredes transparentes em que os trabalhadores que continuam empregados tm uma viso ampla da fila do lado de fora, formada por aqueles que esto desempregados, e dispostos a ocuparem os seus lugares com qualquer remunerao. Isso fragiliza as relaes de trabalho, propicia aos patres um maior poder de barganha para pagar salrios mais baixos e at negligenciar sobre as condies de trabalho. Os que se mantm empregados ficam cientes que no podero reclamar dos salrios nem das condies de trabalho, porque sabem que a qualquer movimentao nessas direes o empregador os demitir, pois sabe que ter uma quantidade de trabalhadores desempregados, do lado de fora da fbrica, vidos a trabalharem por qualquer salrio.

    Alem disso, os trabalhadores que primeiro perdero os empregos, nas fases de crise, sero aqueles que detiverem menor qualificao, leia-se os mais pobres. Com as restries fiscais de reduo dos gastos pblicos, esses servios se fragilizam. No sobraro recursos para elevar a rede de esgotamento sanitrio, para ampliar a rede de distribuio de gua encanada. O servio de coleta do lixo fica restrito a alguns

  • 36

    segmentos que tem capacidade de formar opinio. A escola pblica se deteriora. Todos os servios que so mais utilizados pelos trabalhadores de baixa renda (ou pelos desempregados, vitimas das crises, ou no) se deterioram ou se fragilizam. Assim, a pobreza se espraia com o agravante de a populao pobre crescer a uma taxa vegetativa bem mais elevada do que aquelas de melhor posio social e econmica. Sero mais bocas a serem alimentadas com pouca ou nenhuma renda. Mais gente necessitando da participao do Estado que est engessado devido s restries fiscais impostas pelos programas de ajustamento para debelar o cncer inflacionrio.

    Este foi o conjunto de eventos que se tentou buscar, fazendo essa breve retrospectiva, para mostrar que as conseqncias dos desajustes e as suas tentativas de reparos, sempre repercutiro, de forma muito mais intensa, sobre os segmentos mais carentes, sobretudo em uma sociedade como a brasileira que extremamente desigual.

    Foi a partir desses cenrios que se produziu este documento na sua terceira edio e que d continuidade e atualiza as informaes apresentadas nas edies anteriores. Nesta edio, como na primeira e na segunda edies do livro, se busca fazer a atualizao do diagnstico dos indicadores de pobreza, entendida, tecnicamente, como excluso social. Nesta edio introduz-se uma modificao metodolgica importante na aferio do ndice de Excluso Social. Os seus indicadores se reduzem a trs, assim definidos: Passivo Econmico; Passivo Educacional e Passivo Ambiental. Acredita-se que com esta modificao metodolgica, em que os detalhes esto mostrados no texto, torna-se o IES mais gil e mais rigoroso na aferio dos nveis de pobreza entendida como excluso social.

    O estudo continua tendo como objetivo aferir os indicadores de privaes de servios essenciais e de renda, bem como estimar o IES em todos os municpios do Brasil agora utilizando os dados dos Censos Demogrficos de 2000 e de 2010. Objetiva-se, tambm, acompanhar a evoluo dos indicadores de privaes no Brasil, regies e Estados brasileiros, com desdobramentos para as reas urbanas e rurais, no lapso de tempo compreendido entre os anos de 2001 e 2009.

    Adicionalmente o estudo, nesta nova edio, busca avaliar os resultados objetivos das polticas de transferncias de renda que se iniciaram ainda no Governo FHC (1995/2002) e foram incrementadas no Governo Lula entre 2003 e 2010.

  • 37

    2 Discusso conceitualNa realizao deste estudo, utilizam-se alguns conceitos e definies

    que so essenciais para a sua fundamentao e base terica. Os conceitos a serem apresentados e discutidos em algumas das suas dimenses so: Desenvolvimento Econmico, Desenvolvimento Econmico Sustentvel, Desenvolvimento Rural, Pobreza e Excluso Social, bem como a relao que existe entre Pobreza e Degradao Ambiental.

    2.1 Desenvolvimento Econmico e Crescimento Econmico

    Segundo o Dicionrio de Economia e Administrao organizado por Sandroni (1996), desenvolvimento econmico consiste no crescimento econmico traduzido na elevao do Produto Nacional Bruto (PNB) per capita, devidamente acompanhado por uma melhoria do padro de vida populacional e por alteraes estruturais na economia.

    Durante muito tempo, os conceitos de crescimento e de desenvolvimento econmico foram utilizados como se fossem sinnimos. No entanto, esta identidade no verdadeira, e comeamos a discusso conceitual deste trabalho tentando estabelecer as diferenas que existem entre os dois conceitos. Desenvolvimento um conceito complexo que envolve uma grande quantidade de elementos para o seu entendimento. Uma das primeiras lies que se apreende em qualquer bom curso de Economia, para economistas ou no, a distino que deve haver entre

  • 38

    os conceitos de crescimento e desenvolvimento. O crescimento aferido apenas atravs de indicadores de quantum ou de quantidades, como, por exemplo, o produto agregado nas suas diferentes formas de aferio (PIB agregado, renda agregada) ou de um destes agregados expressos em termos mdios. Desenvolvimento econmico um conceito bem mais abrangente do que o mero crescimento do produto agregado de um pas, de uma regio ou de um estado ou municpio. Com efeito, para Furtado (1983) o conceito de desenvolvimento econmico implica bem mais do que o mero crescimento econmico ou a acumulao de capital. Desenvolvimento econmico para este autor, est alm da capacidade produtiva do sistema social e implica numa irradiao do progresso econmico para o grosso da sociedade.

    Goodland (1989) estabelece a distino que, na sua avaliao, deve existir entre crescimento e desenvolvimento. Para ele, crescimento econmico se refere expanso da escala das dimenses fsicas do sistema econmico, ou seja, o incremento da produo econmica. Desenvolvimento econmico significa o padro das transformaes econmicas, sociais, estruturais, atravs da melhoria qualitativa e do equilbrio relativo ao meio ambiente.

    De uma perspectiva estritamente tcnica, o desenvolvimento econmico, quando confundido com o mero crescimento, depende fundamentalmente da elevao do nvel de produtividade dos fatores de produo. A elevao de produtividade, por sua vez, depende da acumulao de capital. Esta concepo de desenvolvimento est em concordncia com a escola clssica, principalmente na linha de pensamento de Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo. No geral estes pensadores concordam que o acmulo de capital se constitui na fonte fundamental para o crescimento. Mas queremos demonstrar, neste trabalho, que isso no implicar, necessariamente, em melhoria dos padres de vida generalizados da sociedade.

    Ao imputar, ao crescimento da produtividade do sistema econmico decorrente da acumulao de capital, papel fundamental no processo de desenvolvimento econmico, este conceito pode derrapar no excessivo economicismo, cuja consequncia promover uma apartao da atividade econmica das relaes sociais e polticas, tentando dar-lhe uma conotao falsamente neutra. Por este caminho de interpretao, digamos reducionista, corre-se o perigo de desconsiderar os aspectos estruturais do subdesenvolvimento econmico (que seria a anttese

  • 39

    do desenvolvimento) e direcionar as polticas pblicas atravs de pistas equivocadas como aquelas que pressupem a possibilidade de existncia de concorrncia perfeita, da ocorrncia dos preos naturais, e o desenvolvimento como decorrente do efeito induzido e necessrio de uma certa corrente de inovao, de modernizao tecnolgica e do apoio das grandes potncias (GARCIA, 1985, p. 16).

    A interpretao de Schumpeter (1997) para o entendimento de desenvolvimento tambm envereda por uma trilha crtica ao pensamento clssico. Na viso shumpeteriana,

    o desenvolvimento econmico simplesmente o objeto da histria econmica, que por sua vez meramente uma parte da histria universal, s separada do resto para fins de explanao. Por causa dessa dependncia fundamental do aspecto econmico das coisas em relao a tudo o mais, no possvel explicar a mudana econmica somente pelas condies econmicas prvias. Pois o estado econmico de um povo no emerge simplesmente das condies econmicas precedentes, mas unicamente da situao total precedente (SCHUMPETER, 1997, p. 70).

    E a interpretao dinmica e, ao mesmo tempo, crtica de Shumpeter aos mtodos convencionais ou reducionistas de avaliao do desenvolvimento econmico prossegue quando afirma que: quando for simplesmente uma questo de tornar inteligvel, o desenvolvimento, ou o seu resultado histrico, de elaborar os elementos que caracterizam uma situao ou determinar uma sada, a teoria econmica no sentido tradicional, no tem quase nada com que contribuir. (SCHUMPETER, 1997, p. 71).

    Com esta postura crtica aos mtodos convencionais da teoria econmica, Schumpeter estabelece a sua prpria interpretao para desenvolvimento. Para ele,

    entenderemos como desenvolvimento, apenas as mudanas da vida econmica que no lhe foram impostas de fora, mas que surjam de dentro, por sua prpria iniciativa. Se concluir que no h tais mudanas emergindo na prpria esfera econmica, e que o fenmeno que chamamos de desenvolvimento econmico , na prtica, baseado no fato de que os dados mudam e que a economia se adapta continuamente a eles, ento diramos que no h nenhum desenvolvimento econmico. Pretenderamos com isso dizer que o desenvolvimento econmico no um fenmeno a ser explicado

  • 40

    economicamente, mas que a economia, em si mesma, seu desenvolvimento, arrastada pelas mudanas do mundo sua volta, e que as causas e, portanto, a explicao do desenvolvimento deve ser procurada fora do grupo de fatos que so descritos pela teoria econmica (SCHUMPETER, 1997, p. 74).

    Esta interpretao remete para a reflexo de que o desenvolvimento um processo que resulta da transformao das condies histricas e de vida de uma sociedade em seu conjunto e no apenas das aes de uma classe social ou de um grupo hegemnico (os detentores dos meios de produo), e que s pode ocorrer medida que for articulado um projeto poltico de uma nova sociedade e que, necessariamente, se fundamenta em uma mobilizao autnoma da populao enquanto protagonista, gestora e beneficiria direta dessas operaes estratgicas de mudanas. (GARCIA, 1985.).

    Por esta linha de pensamento, que, na verdade, tem uma forte inspirao em Schumpeter, enuncia-se uma definio de desenvolvimento econmico proposta por Garcia e que estabelece que:

    desenvolvimento o resultado de um processo global de transformaes revolucionrias nas relaes de produo e nas condies histricas de vida de uma sociedade em suas diversas e inter-relacionadas dimenses: econmicas, sociais e culturais (GARCIA, 1985, p. 71).

    Existem outros pensadores que imaginam que o desenvolvimento econmico deva ir nessa linha de Garcia e Schumpeter, mas apresentam propostas de aes que fomentam o desenvolvimento, que acabam indo de encontro ao prprio conceito que eles mesmos defendem. Trata-se, portanto, de uma grande contradio entre a teoria e o fazer emprico do desenvolvimento. Este o caso da interpretao de desenvolvimento proposta por Singer e Ansari (1979). Esses autores enfatizam a importncia da abertura econmica para a promoo do desenvolvimento, ao considerarem relevante a importao ampla e irrestrita de tecnologias dos pases avanados pelas economias subdesenvolvidas. Ancorados nesses fundamentos de anlise, estabelecem o conceito de desenvolvimento que utilizam na sustentao da base emprica do trabalho que desenvolveram e que visava estabelecer as diferenas entre pases ricos e pases pobres. Vejamos o que dizem:

  • 41

    desenvolvimento econmico no quer dizer simplesmente aumento do PNB de um pas, mas diminuio da pobreza a um nvel individual. Provavelmente os melhores indicadores de pobreza sejam o baixo consumo de alimentos e o elevado desemprego. Se estes problemas forem abordados de maneira adequada, junto com o crescimento do PNB e com uma distribuio de renda razoavelmente eqitativa, a sim, poder-se- falar num genuno desenvolvimento econmico (SINGER; ANSARI, 1979, p. 18).

    O ponto de discordncia com este conceito de Singer e Ansari quando explcitam que, para haver desenvolvimento, deve-se ter o crescimento do PNB com uma distribuio da renda razoavelmente equitativa. No nosso modo de entender, a renda tem que ser distribuda de forma equitativa (sem adjetivos) para que haja desenvolvimento.

    Fica claro, assim, que os indicadores de quantum, isoladamente, no so capazes de aferir os nveis de bem-estar e de qualidade de vida e, portanto, de desenvolvimento, haja vista que alguns, ou todos eles, podem estar associados a desigualdades sociais significativas. A sociedade pode produzir um bolo relativamente elevado e que repartido apenas entre uma seleta e restrita parcela da populao. Atravs do conceito de desenvolvimento econmico, deveria haver um envolvimento equitativo da sociedade na repartio deste bolo. Adicionalmente, essa maior participao deveria vir acompanhada de melhores padres de qualidade de vida.

    Isto posto, pode-se inferir que o crescimento econmico torna-se uma condio necessria, ainda que no suficiente, para que ocorra o desenvolvimento econmico. O corolrio desta assertiva : para que haja desenvolvimento econmico, necessrio um crescimento do produto agregado. Sim, porque a populao cresce e o faz em taxas ainda expressivas nas economias mais pobres. Assim, o produto deveria crescer e ser distribudo de forma equitativa, ao menos, no nvel do crescimento vegetativo da populao.

    Alguns indicadores de crescimento econmico so: Evoluo do PIB agregado; do PIB per capita; elevao da produo de gros; elevao do uso de mquinas e equipamentos agrcolas; evoluo da produtividade de todos os fatores de produo; acumulao de capital; evoluo da infraestrurua produtiva.

    Como indicadores de desenvolvimento econmico, alm daqueles que promovem o crescimento econmico, pode-se citar o acesso aos ativos sociais, como: gua encanada, saneamento, coleta de lixo, educao.

  • 42

    Alm desses, so tambm indicadores de desenvolvimento: a reduo da taxa de mortalidade infantil; da taxa de mortalidade de crianas menores de cinco anos; reduo da taxa de raquitismo em crianas menores de cinco anos; reduo da taxa de mortalidade em mulheres no ato de dar luz; acesso a alimentos com quantidades adequadas de calorias, vitaminas e sais minerais; o percentual de pessoal tcnico de alta qualificao na populao; garantia de trabalho com remunerao adequada independente do gnero, opo sexual, cor da pele, religio, opo poltica; inexistncia de discriminao de qualquer dimenso; segurana de deslocamento sem o medo de ser assaltado ou violentado.

    Todos estes indicadores deveriam estar devidamente ancorados em um elevado padro de renda monetria pessoal, familiar ou domiciliar, que permitiria aos indivduos terem acesso aos bens e servios de que necessitam ou desejam.

    2.3 Desenvolvimento Humano

    Uma viso mais atualizada do conceito de desenvolvimento econmico e que vem sendo adotada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) a partir de 1990 a de Desenvolvimento Humano. Para fundamentar a importncia e a viabilidade tcnica de utilizao do novo conceito, aquele organismo internacional fez a seguinte explanao no seu Relatrio de Desenvolvimento Humano de 1994:

    a riqueza importante para a vida humana. Contudo, centrar as atenes apenas neste indicador incorreto por duas razes: Primeiro a acumulao de riqueza no necessria para o preenchimento de algumas das escolhas do ser humano. Com efeito, os indivduos e a sociedade fazem muitas escolhas que no precisam da riqueza para concretiz-las. Uma sociedade no precisa ser rica para estar habilitada a uma vida democrtica. Uma famlia no precisa ser rica para respeitar os direitos de cada um dos seus membros. Uma nao no precisa ser rica para tratar os homens e as mulheres de forma eqitativa. Tradies sociais e culturais, de grande valor, podem ser mantidas e - efetivamente o so - em todos os nveis de renda. A riqueza de uma cultura pode ser independente da riqueza material do seu povo. Segundo, as escolhas humanas se estendem alm do bem-estar econmico. Os desejos humanos seguramente incorporam ter riqueza material. Porm eles precisam e querem tambm ter uma vida longa e saudvel, beberem vigorosamente na fonte do saber, participarem livremente na vida da sua comunidade, respirarem um ar

  • 43

    livre de poluio, e apreciarem o simples prazer de viverem num ambiente limpo, com paz em suas mentes, que decorre do fato de possurem um local seguro para morar, e ter a segurana de ter trabalho estvel, com remunerao dignificante (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p. 15).

    E em pgina frente, este relatrio da ONU estabelece que, a menos que as sociedades reconheam que a sua verdadeira e real riqueza o seu povo, uma obsesso excessiva com a criao de riqueza material pode obscurecer o seu ltimo e fundamental objetivo que o enriquecimento das suas prprias vidas (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p. 16).

    Esta viso de desenvolvimento implica que no apenas o nvel de renda ou de riqueza auferidos pelas pessoas que fundamental para que elas sejam felizes. a forma como essa renda ou riqueza so despendidas que importante como vetor que serve de alavanca para o bem-estar social e econmico. O que decisivo no o processo de maximizao da riqueza, mas a escolha que os indivduos da sociedade fazem. Uma verdade simples, mas sempre negligenciada (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p. 16).

    Na justificativa da utilizao do novo conceito de desenvolvimento, o Relatrio de Desenvolvimento Humano de 1994 ainda explcita que:

    as pessoas no se constituem meramente em instrumentos teis para a produo de bens, e que o propsito do desenvolvimento no meramente produzir mais valor adicionado independente do seu uso. ...Atribuindo-se valor vida humana apenas na viso de que ela pode ser um instrumento de produo de lucro - viso de capital humano - oferece perigos bvios. Na sua forma extrema, esta viso pode facilmente conduzir escravido da fora de trabalho, uso do trabalho forado de crianas, e explorao dos trabalhadores pelos seus patres, como ocorreu durante a revoluo industrial (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p.17). Porm em todos os nveis de desenvolvimento, os trs aspectos a serem considerados como relevantes e essenciais para os seres humanos (homens e mulheres) so: propiciar uma vida longa e saudvel; adquirir conhecimentos; e ter acesso aos recursos necessrios para atingir padres dignos de vida (HUMAN DEVELOPMENT REPORT , 1995, p. 11).

    Nesta perspectiva, o conceito de Desenvolvimento Humano est ancorado em trs bases fundamentais: Longevidade, Educao e Renda Monetria. A longevidade aferida pela esperana de vida ao nascer, que,

  • 44

    dadas as circunstncias atuais, uma criana teria em determinado pas, estado ou municpio. Em termos mais pragmticos, seria a idade em que, na mdia, as pessoas morrem nos lugares onde escolheram para viver. Assim, se esta mdia elevada, a pessoa teria tido condies adequadas de sade, saneamento, moradia, alimentao, lazer, dentre outros fatores que propiciam vida mais longa e saudvel. Sem dvida, trata-se de uma forma bastante adequada de aferir-se padro de bem-estar social e conmico.

    A segunda ncora de apoio do conceito de Desenvolvimento Humano o estoque de educao acumulado por uma sociedade. Este estoque seria aferido pelo percentual de adultos (maiores de quinze anos) alfabetizados e pelos percentuais de matrculas nas escolas dos diferentes nveis. A hiptese objetiva deste ponto importante de suporte do conceito de desenvolvimento humano que: sem educao, sem informao, no se pode pensar em desenvolvimento. Diramos at que esta se constitui na principal ncora do desenvolvimento. Todos os pases que cuidaram bem dos aspectos educacionais das suas populaes experimentaram avanos substanciais nos seus padres de desenvolvimento.

    O terceiro suporte do conceito da ONU de desenvolvimento humano a renda mdia. No se conceber desenvolver sem prover condies de trabalho e de remunerao digna para as populaes. O acesso a padres elevados de renda, ainda que no deva ser o objetivo definitivo do processo de desenvolvimento, como se demonstrou em duas passagens retiradas dos relatrios da ONU, deve, sim, constituir-se em um dos objetivos a serem perseguidos durante o processo de desenvolvimento. O acesso renda monetria que viabilizar s famlias e aos cidados e cidads adquirirem os bens materiais que no conseguem produzir com as suas habilidades. Um bom padro de renda monetria tambm importante para viabilizar nveis adequados de lazer para as pessoas. Lazer tambm se constitui em um aspecto importante de incremento de qualidade de vida.

    Juntamente com o conceito de desenvolvimento humano, a ONU criou o instrumento de aferio do conceito de ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), que ser apresentado e discutido, no que concerne aos seus indicadores, ponderaes utilizadas, amplitude de variao, interpretao e eventuais limitaes na aferio, em tpico mais frente deste trabalho.

  • 45

    2.4 Desenvolvimento Econmico Sustentvel