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1 MANUAL DE ÉTICA GERAL Os autores: Padre Elton João C. Laissone Padre Jorge Augusto Padre Luís Alberto Matimbiri BEIRA FEVEREIRO DE 2017

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MANUAL DE ÉTICA GERAL

Os autores:

Padre Elton João C. Laissone

Padre Jorge Augusto

Padre Luís Alberto Matimbiri

BEIRA

FEVEREIRO DE 2017

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INTRODUÇÃO

O discurso ético é tanto antigo quanto é antiga a história do ser humano. Desde as suas origens,

sobretudo quando ganhou a consciência da sua presença como ser diferente, e desde que começou

a fazer a experiência da sua existência e busca de realização, o ser humano sempre se inquietou

sobre como estar com os outros, como agir, como deve ser e fazer. Por isso, pode-se sustentar que

o discurso ético inicia com grandes questionamentos, tais como: Quem sou eu? De onde vim? Para

onde vou? Em que mundo vivo? Como é que vivo? Até quando viverei? Como viver e agir perante

os outros e a natureza? E o que será o depois da minha partida deste mundo?

Boff refere que o capitalismo neo-liberal levou-nos a acreditar em dois infinitos totalmente

ilusórios: o infinito dos recursos naturais (convencimento de que os recursos que a natureza nos dá

são sempre renováveis) e o infinito do crescimento (a ideia do crescimento ilimitado, sobretudo o

crescimento económico).

E, com estes infinitos, o séc. XX legou-nos uma aliança entre dois tipos de desumanização:

a) O primeiro vem das profundezas do tempo (a nossa própria história cometeu erros) e traz

guerra, massacre, deportação, escravatura, fanatismo, entre outros;

b) O segundo vem do âmago da racionalização, que só conhece o cálculo e ignora a pessoa,

seu corpo, seus sentimentos, sua história, sua alma, sua emoção, e que multiplica o poderio

da ciência e da técnica, criando assim uma cultura de morte e de servidão técnico-industrial.

Portanto, estamos diante duma aliança de morte: é só pensar nas armas nucleares (guerras ABC1),

nos novos perigos (morte ecológica, drogas, violências, solidão, angústia existencial, e muito mais).

De facto, hoje é comum ouvir expressões como: este nosso século sofre de falta de autenticidade,

o séc. XXI ou será ético ou não será; a espécie homo está a ser auto-destruidora; cuidemos da nossa

terra, paremos de agredir e de destruir o nosso planeta, pois, o nosso futuro e o da terra é o mesmo.

Por meio duma profunda conversão, precisamos de repensar a nossa aliança com a própria vida,

com Deus, connosco mesmos e com a natureza em que vivemos e da qual fazemos parte.

O presente manual nasce da necessidade de despertar o universo ético em todos os estudantes da

Universidade Católica de Moçambique. A Vice-reitoria para a área da Pastoral e Extensão

1 Armas atómicas, biológicas e químicas.

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Universitária, tendo verificado a existência de várias cadeiras ligadas à ética nas diferentes

Unidades Básicas, e sentido a dispersão em relação à orientação ética plasmada na política da

própria Universidade, achou por bem propor um único manual a todas elas como forma de

harmonizar a orientação ética nas mesmas Unidades Básicas para os estudantes dos primeiros anos.

Tal ideia foi aprovada pela Reitoria. Assim, três capelães foram indicados para elaborar o manual

e apresenta-lo no encontro de todos os capelães. O manual foi elaborado e apresentado. Depois, a

Vice-reitoria para a área da Pastoral e Extensão Universitária deu a forma final ao manual e o seu

devido encaminhamento para que o manual pudesse hoje estar nas nossas mãos.

É de salientar que o objectivo do manual é de oferecer, em termos gerais, as ferramentas necessárias

para despertar nos estudantes a postura ética desejada pela Universidade, e tão querida nos dias de

hoje, pois assim se reconhece a contribuição que ela está a dar para a formação do ser humano, a

partir da visão cristã que ela tem do ser humano e do mundo. Por isso, este manual entra na lista

daqueles manuais característicos, identificativos e distintivos da UCM.

Sendo assim, o manual apresenta a seguinte estrutura: A primeira unidade apresenta a natureza da

ética. A segunda unidade faz um breve historial da ética desde a antiguidade até aos nossos dias, e

inclui a questão dos ideais éticos. A terceira unidade fala da pessoa humana como fundamento da

ética. A quarta unidade fala da pessoa humana como sujeito de valores. A quinta unidade fala dos

direitos e dos deveres fundamentais da pessoa humana. A sexta unidade apresenta a pessoa humana

como um ser social e político. E a sétima unidade discute a problemática ligada à ética, à pessoa

humana e ao ambiente, centrando a sua reflexão na Carta Encíclica do Papa Francisco Laudato Si’

sobre o cuidado da nossa casa comum.

Portanto, espera-se que este manual, aparentemente denso de conteúdos, (a) possa, de facto,

despertar a sensibilidade ética em todos os que dele fizerem uso, sobretudo aos docentes e

estudantes, (b) possa oferecer as ferramentas necessárias para a adequada compreensão do dever

profissional dos estudantes por meio das cadeiras de ética profissional dada nos finais da sua

formação académica, e (c) possa também provocar uma profunda conversão, de modo a podermos

repensar a nossa aliança com a própria vida, com Deus, connosco mesmos, com os outros e com a

natureza em que vivemos e da qual fazemos parte.

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UNIDADE I – NATUREZA DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA PRIMEIRA UNIDADE

1.1- Estudo etimológico do termo ética

1.2- Riqueza terminológica e expressiva

1.3- Objecto de estudo da ética

1.4- Para uma conceitualização e definição da ética

1.5- Características da ética

1.6- Tipologia da ética

1.7- Ética e moral

OBJECTIVO PRINCIPAL DA PRIMEIRA UNIDADE

Esta unidade pretende levar os estudantes a conhecer a natureza da ética a partir da sua etimologia,

do seu objecto, dos seus métodos, das suas tipologias, procurando também discutir a

conceitualização e a definição da ética e a distinção entre a ética e a moral.

1.1- Estudo etimológico do termo ética

Etimologicamente, o termo “ética” vem do grego ethos. Quando escrito éthos, com acento agudo

(em grego, inicia com a letra épsilon), representa a ideia fundamental de usos, costumes, que na

vida de um povo ocupam um lugar importante no conceito próprio de moralidade, e, portanto,

identificando-se mais com a moral e, quando escrito êthos, com acento circunflexo (em grego,

inicia com a letra êta), significa carácter ou modo de ser, e dá, portanto, a ideia de disposição

interior, de personalidade. Portanto, podemos dizer que o universo ético compreende esses dois

pôlos: o pôlo exterior (próprio da moral, dos costumes), e o pôlo interior (próprio da interioridade,

do carácter).

Originariamente, o conceito era tomado a partir do seu carácter exterior, de vida colectiva. Daí o

conceito ser usado para acções que promovam o bem comum ou a justiça no meio social. Devido

ao facto de que os gregos a utilizavam no sentido de hábitos e costumes que privilegiassem a boa

vida e o bem viver entre os cidadãos, com o tempo tal palavra passou a significar modo de ser ou

carácter. Enfim, tinha que se garantir um modelo de vida que deveria ser adquirido ou conquistado

pelo homem por meio da disciplina rígida que lhe formaria o carácter e que seria transmitida aos

jovens pelos adultos. Na Grécia, o homem aparece no centro da política, da ciência, da arte e da

moral, uma vez que para sua cultura até os deuses eram humanos com seus defeitos e qualidades.

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O primeiro filósofo que escreveu sobre ética foi Aristóteles. Com esse título, Aristóteles escreveu

duas obras: Ética a Nicómaco (seu filho) e Ética a Eudemo (seu aluno).

Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às ideias de felicidade da vida presente e do sumo

bem. Nos textos antigos, ética quase sempre parece estar relacionada com desejo inato ao homem

de busca da realização do sumo bem. A filosofia grega preocupa-se com a reflexão sobre ética

desde os primórdios. Isso porque ética, ou a sede de justiça, é uma das três dimensões da filosofia.

As outras duas seriam a teoria e a sabedoria. Em Roma, ética passa a ser denominada “mores”; que

significa “moral”. No direito romano a palavra ética refere-se a normas de conduta ou princípios

que regem a sociedade ou um determinado grupo e em uma determinada época. Numa palavra: lei.

A ética é histórica, o que se deve ao facto de estar solidificada em noções de valor, que mudam à

medida que se descobrem novas verdades. O agir ético não será apenas uma simples reprodução

de acções das gerações anteriores, mas uma actividade reflexiva que oriente a acção a seguir num

determinado momento de nossa vida pessoal. Quando surgem questionamentos sobre a validade

de determinados valores ou costumes, e a realidade exige novos valores que possam orientar a

ética, surge a necessidade de uma teoria que justifique esse novo agir, uma vez que é impossível a

acção ética sem que o agente compreenda a racionalidade dessa acção. Aqui aparecem os filósofos

que produzem uma reflexão teórica que oriente a prática ou a crítica do viver ético.

1.2- Riqueza terminológica e expressiva

Os significados principais da ética podem ser sintetizados da seguinte forma, como expõe Carlos

Maria Martini, na sua obra Viagem pelo vocabulário da ética (citado em Ética geral:

apontamentos, s.a.: p.2):

a) Ética significa costume, o que se costuma fazer, aquilo que normalmente se faz. Ethos, em

língua grega, indica o costume social, o modo de comportamento próprio de uma determinada

sociedade.

b) Outro significado mais específico indica uma sociedade bem orientada, isto é, uma sociedade

que se pode definir ‘boa’, que segue comportamentos que brotam da experiência e da sabedoria,

como elementos positivos para a paz, a ordem social e o bem comum.

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Vem depois o sentido absoluto que significa: aquilo que é bom em si mesmo, aquilo que

deve ser feito ou evitado a todo o custo, o que é digno do homem, o que se opõe ao que é

indigno, o que não é negociável, nem se pode discutir ou transgredir.

c) Por fim, temos também o significado de reflexão filosófica sobre os comportamentos humanos

e sobre o seu sentido último.

Diz o cardeal Martini:

Penso que a ética deva ser principalmente um lugar onde as pessoas sejam

permanentemente encorajadas, animadas e confortadas. A grande palavra da ética é: podes

fazer mais e melhor, na vida és chamado a ser algo superior; é possível ser honesto e é

uma aventura extraordinária do espírito. (Martini, 1994, citado em Ética geral:

apontamentos, s.a.: p.2)

1.3- Objecto de estudo da ética

A ética estuda as acções humanas. Sendo assim, seu objecto distingue-se em material e formal. O

objecto material diz respeito aos actos humanos que se devem distinguir dos actos do homem.

Os actos humanos são acções praticadas de forma livre, consciente, deliberada e voluntária, acções

essas que afectam a própria pessoa, a outras pessoas, ou a determinados grupos sociais ou mesmo

a sociedade no seu todo.

Os actos do homem são aqueles praticados de modo inconsciente e involuntário, ou seja, são

aqueles actos em que a vontade humana não entra ou a sua liberdade não entra em jogo.

O estudo do objecto da ética leva-nos à conclusão de que a pessoa antes de praticar qualquer acção

deve analisar os prós e os contras e estar preparada para assumir os riscos e as consequências. Por

outras palavras, toda a acção ética deve visar algum bem. Portanto, ela deve buscar todos os meios

possíveis para alcançar esse tal bem.

1.4- Para uma conceitualização e definição da ética

A ética, partindo do seu étimo, pode ser entendida como o abrigo que confere protecção e segurança

aos indivíduos (cidadãos), aqueles responsáveis pelos destinos da pólis (cidade). Ela é, por um

lado, o produto das leis erigidas pelos costumes, e, por outro, das virtudes e hábitos gerados pelo

carácter dos indivíduos. Por isso, a ética não só diz respeito aos costumes culturais ou sociais, mas

também se refere ao perfil, a maneira de ser e a forma de vida adquirida ou conquistada pelo

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homem. A ética imprime o carácter da pessoa: mostra-me como te comportas e eu te direi o grau

da tua ética.

A ética pode ser definida como a teoria acerca do comportamento moral dos homens em sociedade,

ou seja, ela trata dos fundamentos e da natureza das nossas atitudes, e se manifesta efectivamente

na conduta do homem livre. Por isso, o mundo do ethos é composto por dois lados: a colectividade

(intersubjectividade) e a subjectividade (individualidade). Existem condicionantes internos

(carácter) e externos (costumes) que determinam a conduta do indivíduo. Portanto, o que se está a

dizer é que a prática do bem e da justiça envolve o respeito às leis da pólis (heteronomia) e a

intenção individual de cada sujeito em fazer o bem (autonomia).

Mas a boa conduta é também determinada pela educação (em grego paidéia). Paidéia é todo o

processo de formação do homem grego. É, portanto, o que chamamos de educação. Ela fornece as

regras e ensinamentos morais aos indivíduos; orienta os juízos e decisões dos homens no seio da

comunidade; e transmite valores acerca do bem e do mal, do justo e do injusto. Ela constitui-se

como elemento fundamental para a construção da sociabilidade do ser humano.

A função do ethos é promover a excelência moral, ou seja, a prática das virtudes (areté). E o

exercício das virtudes tem como fim último a felicidade (a vida boa, a vida virtuosa). A ética trata

do comportamento do ser humano, da relação entre sua vontade e a obrigação de seguir uma norma,

do que é o bem e de onde vem o mal, do que é certo e errado, da liberdade e da necessidade de

respeitar o próximo. Ela se impõe como a condição fundamental de possibilidade para a prática das

virtudes e o exercício da cidadania.

A ética também diz respeito ao saber científico específico que caminha em direcção ao bom. O

ético expressa uma qualidade ou uma dimensão da realidade humana em relação à responsabilidade

das pessoas. O ético é o que revela bom carácter, boa conduta, ao passo que o antiético é o oposto,

ou seja, o que manifesta conduta duvidosa, uma conduta que deixa muito a desejar.

1.5- Características da ética

Estas anotações de síntese levam-nos à reflexão das características da ética. De facto, como

resultado da análise do universo moral, surgem diversas características próprias deste fenómeno.

Das várias, e inspirados no manual de Ética geral: apontamentos, vamos apresentar sete, que

achamos serem principais.

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1.5.1- A ética é irredutivelmente diferente

Ainda que confundível e, de facto, frequentemente confundido com outras realidades, o moral é

essencialmente diferente e não redutível a elas. O que se verifica nomeadamente com relação aos

imperativos ou normas sociais, religiosas, jurídicas, etc. As diversas tentativas ‘redutoras’ do moral

– como a psicanalítica, a teoria emotiva, a da escola sociológica, etc., – revelam-se insustentáveis,

cometendo frequentemente o paralogismo que consiste em passar indevidamente do que se refere

à génese psicológica para o que diz respeito à essência ou natureza da realidade em estudo.

1.5.2- A ética é relativa à liberdade

O bem ou o mal moral só se consideram existentes, propriamente falando, nos actos livres; só são

atribuídos às pessoas que agem (ou são supostas a agir) livre e responsavelmente. Por outras

palavras, a moralidade é universalmente percebida como implicando essencialmente a liberdade.

O valor moral apresenta-se como o valor próprio do agir livre e do agente livre.

1.5.3- A ética é “pessoal”

Formulando de outro modo o acima dito: é convicção universal que a moralidade não se verifica

em qualquer acto realizado por um ser humano, mas apenas naqueles de que este é verdadeiro

autor, que pode chamar verdadeiramente ‘seus’ e pelos quais é, por isso mesmo, responsável. Tais

actos, verdadeiramente ‘pessoais’, são os que, em terminologia escolásticas (também adoptada

pelos autores não escolásticos) se designa por actos humanos, por contraposição aos actos ditos

simplesmente do homem (mas não da pessoa).

1.5.4- A ética é “humana”

O valor moral está assim ligado ao que no ser humano é mais ‘seu’, mais pessoal, mais humano.

Este carácter eminentemente humano do moral patenteia-se eloquentemente no facto conhecido da

linguagem comum, que reserva o sentido moral aos adjectivos bom/mau quando usados sem

qualquer especificação: dizer de alguém que é bom, sem mais, equivale a dizer que é moralmente

bom. O que sugere que o valor do ser humano como ser humano, está ligado ao que ele vale

moralmente.

O valor moral é universalmente humano: coextensivo a todos os sectores da existência humana e a

todos os indivíduos humanos. Isto significa duas coisas:

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a) O valor próprio do ser humano enquanto ser humano (o valor moral) não se refere apenas a um

determinado sector ou sectores da vida humana, mas estende-se a todos (individual, familiar,

profissional, económico, etc.). A moralidade penetra toda a vida humana, desde que aí esteja

implicada a liberdade.

b) O mundo moral estende-se a todos os seres humanos, a todos os seres que partilham a mesma

‘natureza’ que os faz seres humanos. E isto em nada contradiz, antes pelo contrário, a

diversidade individual e as variações históricas entre os homens.

1.5.5- A ética é relativa a normas

Como se verifica em todas as avaliações, também a atribuição de valor moral aos actos humanos e

seus autores é feita mediante a sua confrontação (implícita ou explícita) com as normas que se

julga deverem reger a conduta humana. Nisto consiste precisamente o “emitir um juízo de valor”,

afirmar a conformidade ou não entre o que ‘é’ e o que ‘devia ser’.

1.5.6- A ética é incondicional

A normatividade moral é geralmente concebida – pelo facto de que é experimentada desta forma

por cada um – como possuindo um carácter de irrecusabilidade, graças à qual o ser humano,

mesmo tornando-se capaz de a desrespeitar, não tem a possibilidade de a anular. Portanto, a

exigência moral apresenta-se como incondicional, absoluta e categórica, ou seja, nem ‘hipotética’,

nem ‘disjuntiva’. Tudo isto aparece mais claramente, embora não exclusivamente, nos casos em

que o valor moral se apresenta como obrigatório, como dever.

1.5.7- A ética é transcendente

O carácter incondicional ou absoluto de que aparece revestido o valor moral faz com que ela surja

como superior a todos os outros (com a excepção, até certo ponto, do valor religioso, o qual está

de resto intimamente ligado a ele), preferível a qualquer outro, não sacrificável perante nenhum,

inegociável. Isto faz com que, em vez de se apresentar como um valor para o ser humano, parece

que, pelo contrário, é o ser humano que para ele está orientado e a ele submetido. E esta é uma

questão fundamental e decisiva, em cuja elucidação culmina a tarefa da filosofia moral.

1.6- Tipologia da ética

Existem vários tipos de ética. Dentre eles podemos destacar os seguintes:

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a) Ética filosófica: reflecte sobre o significado do ser ético. A questão fundamental que se coloca

aqui é, “o que significa ser ético?”

b) Ética religiosa: faz o confronto entre a ética e a religião e vice-versa.

c) A ética cristã: reflecte sobre o agir cristão. Reflecte sobre a identidade ou originalidade cristã.

d) Ética social: reflecte sobre o agir da sociedade, o ordenamento das instituições sociais, e se

correspondem aos padrões éticos.

e) Ética sexual: reflecte sobre os aspectos da ética que dizem respeito a questões da sexualidade

humana, incluindo o comportamento sexual humano. Em termos gerais, a ética sexual diz

respeito à conduta humana em relação a questões de consentimento, das relações sexuais antes

do casamento ou quando casado (tais como a fidelidade conjugal, sexo antes do casamento e

sexo fora do casamento).

f) Ética profissional: reflecte sobre o agir deontológico (deveres) e diciológico (direitos) na

profissão.

g) Ética económica: reflecte sobre o agir económico, o bom andamento ou funcionamento da

economia.

h) Ética política: reflecte sobre a conduta e o agir político.

1.7- Ética e moral

Como foi afirmado acima, ética provém do grego ethos e significa costumes, bem como “carácter”

e “modo de ser”. A palavra moral, porém, provém do latim mos ou mores e também significa

costume ou costumes, no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. (Vázquez,

1978, p. 14). Por esta feliz coincidência etimológica e conceptual, estudiosos há, que preferem

afirmar que a ética e a moral são a mesma coisa, visto que todas dizem respeito aos costumes e

ambas tratam das questões teóricas bem como práticas do agir humano. Outros estudiosos vão mais

longe separando uma da outra. Esses últimos se agarram aos argumentos de que, enquanto a moral

estuda os costumes contextualizados, a ética julga a moral distinguindo o bem do mal.

A presente reflexão irá na linha do segundo grupo dos estudiosos, aqueles que distinguem a moral

da ética. Neste sentido, partindo da etimologia das duas palavras, tem-se o seguinte: a moral é o

conjunto de regras, princípios e valores que determinam a conduta do indivíduo, enquanto a ética

é o instrumento fundamental para a instauração de um viver em conjunto, a base para a construção

do mundo sociopolítico, condição necessária para a sobrevivência da espécie humana.

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Eis então as diferenças fundamentais entre a ética e a moral:

Ética

a) Disciplina filosófica – pensamento crítico

b) Revelação de valores que norteiam o dever-ser dos humanos

c) Conjunto de juízos valorativos manifestados livremente na acção individual de cada um

d) Reflexão construída e reconstruída incessantemente

e) Expressão do ser humano como exigência radical

f) Disposição permanente para agir de acordo as próprias exigências.

Moral

a) Limita-se ao estudo dos costumes e da variante das relações

b) Conjunto de regras que se impõem às pessoas

c) Impulso que move o grupo

d) Acção colectiva que tende a agir de determinada maneira

e) Comportamentos automatizados

f) Receio de reprovação social

g) Cumprimento sem questionamento

h) Consolidação de práticas e costumes.

Enquanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é teórico, corresponde a uma

generalidade abstracta e formal. A ética estuda a moral e as moralidades, analisa as escolhas que

os agentes fazem em situações concretas, verifica se as opções se conformam aos padrões sociais.

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UNIDADE II – BREVE HISTORIAL DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA SEGUNDA UNIDADE

2.1- A ética na Antiguidade (a ética grega): os sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles, os Estóicos

e os Epicuristas.

2.2- A ética na Idade Média: uma ética totalmente religiosa e cristã.

2.3- A ética na Idade Moderna: uma ética totalmente antropocêntrica.

2.4- A ética na Idade Contemporânea: várias orientações.

2.5- Os ideais éticos.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SEGUNDA UNIDADE

Levar os estudantes a discutirem a origem e a problemática da ética, fazer com eles um percurso

histórico do universo ético naquilo que tem de mais essencial no processo da evolução tanto do

termo como da sua compreensão desde a Antiguidade até aos nossos dias, e garantir que eles sejam

capazes de discutir o sentido dos ideais éticos ao ponto de eles compreenderem hoje quais sejam

os ideais éticos para os nossos dias e para cada um deles.

2.1- A ética na Antiguidade: a ética grega

2.1.1- Os sofistas

Estes constituem um movimento intelectual na Grécia do séc. V (a.C.).

A palavra "sofista" significa mestre ou sábio, e vem da palavra “sofia” que significa sabedoria.

Portanto, os sofistas consideravam-se detentores da sabedoria. Eles não ambicionam o

conhecimento gratuito especulativo, mas cobram para ensinar.

Os sofistas ensinam a arte de convencer, de expor, argumentar ou discutir, colocam em dúvida não

só a tradição, mas a existência de verdades e normas universalmente válidas. Para eles, não existe

nem verdade nem erro, e as normas — por serem humanas — são transitórias.

Para Protágoras (491/481 - ? a.C.), tudo é relativo ao sujeito, ao "homem, medida de todas as

coisas”. Aqui temos uma confirmação inconfundível do relativismo ou subjectivismo. Górgias, por

sua vez, sustenta que é impossível saber o que existe realmente e o que não existe.

2.1.2- Sócrates (470-399 a.C.)

Este compartilha o desprezo dos sofistas pelo conhecimento da natureza, bem como sua crítica da

tradição, mas rejeita o seu relativismo e o seu subjectivismo.

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Para Sócrates, o saber fundamental é o saber a respeito do homem (daí a sua máxima: "conhece-te

a ti mesmo"): (1) é um conhecimento universalmente válido, contra o que sustentam os sofistas;

(2) é, antes de tudo, conhecimento moral; e (3) é um conhecimento prático (conhecer para agir

rectamente).

A sua ética é conhecida como Ética racionalista pelas seguintes razões:

a) Uma concepção do bem (como felicidade da alma) e do bom (como o útil para a felicidade);

b) A tese da virtude (areté: capacidade radical e última do homem) como conhecimento, e do

vício como ignorância (quem age mal é porque ignora o bem; por conseguinte, ninguém faz o

mal voluntariamente)

c) A tese, de origem sofista, segundo a qual a virtude pode ser transmitida ou ensinada.

d) (1) é um conhecimento universalmente válido, contra o que sustentam os sofistas; (2) é, antes

de tudo, conhecimento moral; e (3) é um conhecimento prático (conhecer para agir rectamente).

e) A bondade, o conhecimento e a felicidade se entrelaçam estreitamente.

f) O homem age rectamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de praticá-

lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.

2.1.3- Platão (427-347 a.C.)

Foi discípulo de Sócrates. Para ele, a ética se relaciona intimamente com a filosofia política, e a

polis é o terreno da vida moral. A ética de Platão depende:

a) da sua concepção metafísica: dualismo do mundo sensível e do mundo das ideias permanentes,

eternas, perfeitas e imutáveis, que são a verdadeira realidade, e têm como cume a Ideia do Bem,

divindade, artífice ou demiurgo do mundo;

b) da sua doutrina da alma: princípio que anima ou move o homem. A alma consta de três partes:

razão, vontade ou ânimo e apetite. A razão que contempla e quer racionalmente é a parte

superior, o apetite, relacionado com as necessidades corporais, é a inferior.

Como o indivíduo por si só não pode aproximar-se da perfeição, torna-se necessária a presença do

Estado ou da Comunidade política; isto é, o homem é bom enquanto bom cidadão. A Ideia do ser

humano se realiza somente na comunidade. Por isso, a ética desemboca necessariamente na

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política. O homem se forma espiritualmente somente no Estado e mediante a subordinação do

indivíduo à comunidade.

2.1.4- Aristóteles (384-322 a.C.)

Foi discípulo de Platão e fundador da sua própria escola, o Liceu, cujos discípulos eram chamados

de peripatéticos (de perípatos, que significa caminhar por), pois ele ensinava os seus discípulos

caminhando.

Para Aristóteles, na continuidade do seu mestre Platão, o homem se forma espiritualmente somente

no Estado e mediante a subordinação do indivíduo à comunidade. O fim último do homem é a

felicidade (eudaimonia) e esta se realiza mediante a aquisição de certos modos constantes de agir

(ou hábitos) que são as virtudes. Estas não são atitudes inatas, mas modos de ser que se adquirem

ou conquistam pelo exercício e, já que o homem é ao mesmo tempo racional e irracional.

Existem duas classes das virtudes:

a) As virtudes intelectuais ou dianoéticas: que operam na parte racional do homem, isto é, na

razão.

b) As virtudes práticas ou éticas: que operam naquilo que há nele de irracional, ou seja, nas suas

paixões e apetites, canalizando-as racionalmente.

Mas o que é virtude para Aristóteles? Para ele, a virtude consiste no termo médio (in medio virtus)

entre dois extremos (um excesso e um defeito). A virtude é um equilíbrio entre dois extremos

instáveis e igualmente prejudiciais.

Vício por excesso VIRTUDE Vício por deficiência

Temeridade CORAGEM Cobardia

Libertinagem TEMPERANÇA Insensibilidade

Esbanjamento SOBRIEDADE Avareza

Vulgaridade MAGNIFICÊNCIA Vileza

Vaidade RESPEITO PRÓPRIO Modéstia

Ambição PRUDÊNCIA Moleza

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Irascibilidade GENTILEZA Indiferença

Orgulho VERACIDADE Descrédito próprio

Zombaria AGUDEZA DE ESPÍRITO Falta de civismo

Condescendência AMIZADE Enfado

Inveja JUSTA INDIGNAÇÃO Malevolência

Tabela 1: Apresentação das virtudes e seus vícios (por excesso e por defeito) de acordo com Aristóteles.

Fonte: Adaptado de Silva (1998, p. 131).

A comunidade social e política é o meio necessário da moral, e o homem é, por natureza, um animal

político. A vida moral é uma condição ou meio para uma vida verdadeiramente humana (a vida

teórica na qual consiste a felicidade) acessível a uma minoria ou elite. A maior parte da população

mantém-se excluída não só da vida teórica, mas da vida política. Para Aristóteles, a vida moral é

exclusiva de uma elite, pois só ela é que pode realizá-la. O homem bom (o sábio) deve ser um bom

cidadão.

2.1.5- Os Estóicos (384-322 a.C.)

O Estoicismo foi fundado por Zenão. O nome Estoicismo vem de stoá, que significa pórtico. Zenão

ensinava os seus discípulos aos pés de um pórtico. Para esta corrente, o bem supremo é viver de

acordo com a natureza racional, com consciência do nosso destino e de nossa função no universo,

sem se deixar levar por paixões ou afectos interiores ou pelas coisas exteriores.

Praticando a apatia e a imperturbabilidade, o homem (sábio) se firma contra as suas paixões ou

contra os reveses do mundo exterior, e conquista a sua liberdade interior bem como sua autarquia

(auto-suficiência) absoluta.

O indivíduo define-se moralmente sem necessidade da comunidade como cenário necessário da

vida moral. O estóico vive moralmente como cidadão do cosmos, não da polis.

Os principais representantes desta corrente são: Zenão, Séneca, Epícteto e Marco Aurélio.

2.1.6- Os Epicuristas (384-322 a.C.)

O nome dessa corrente provém do nome do seu fundador: Epicuro. Segundo essa corrente, tudo o

que existe, incluindo a alma, é formado de átomos materiais que possuem um certo grau de

liberdade, na medida em que se podem desviar ligeiramente na sua queda. Não há nenhuma

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intervenção divina nos fenómenos físicos nem na vida do homem. Por isso, libertado do temor

religioso, o homem pode buscar o bem neste mundo.

O bem, para Epicuro, é o prazer. Mas há muitos prazeres, e nem todos são igualmente bons. É

preciso escolher entre eles para encontrar os mais duradouros e estáveis, que não são os corporais

(fugazes e imediatos), mas os espirituais que contribuem para a paz da alma. O epicurista alcança

o bem, retirado da vida social, sem cair no temor do sobrenatural, encontrando em si mesmo, ou

rodeado por um pequeno círculo de amigos, a tranquilidade da alma e a auto-suficiência.

A ética epicurista e estóica, que surgem numa época de decadência e de crise social, a unidade da

moral e da política, sustentada pela ética grega anterior, se dissolvem.

2.2- A ética na Idade Média: uma ética totalmente religiosa e cristã

2.2.1- Algumas premissas importantes

Quando o cristianismo nasce, por meio das perseguições, espalha-se em todo o império romano e

em todo o mundo grego. No séc.IV, Roma converte-se ao cristianismo e este torna-se a religião

oficial do Estado. Toda a cultura passa a se deixar transformar pela mensagem cristã. Assim, na

Idade Média, temos verdades reveladas a respeito de Deus, das relações do homem com o seu

criador e do modo de vida prático que o homem deve seguir para obter a salvação no outro mundo.

Deus é concebido como um ser pessoal, bom, omnisciente e todo-poderoso. O ser humano tem seu

fim último em Deus, que é o seu bem mais alto e o seu valor supremo. Deus exige a sua obediência

e a sujeição a seus mandamentos, que têm o carácter de imperativos supremos.

O que o homem é e o que deve fazer definem-se essencialmente não em relação com uma

comunidade humana (como a polis) ou com o universo inteiro, e sim, em relação a Deus. Todo o

seu comportamento — incluindo a moral — deve orientar-se para Ele como objectivo supremo. A

essência da felicidade (a beatitude) é a contemplação de Deus; o amor humano fica subordinado

ao divino; a ordem sobrenatural tem a primazia sobre a ordem natural humana.

2.2.2- Ética religioso-cristã e as virtudes

As virtudes fundamentais são: a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça, que são as virtudes

morais em sentido próprio, e regulam as relações entre os homens. São virtudes em escala humana.

As virtudes supremas ou teologais são: a fé, a esperança e a caridade. Regulam as relações entre o

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homem e Deus e são virtudes em escala divina. As virtudes elevam o ser humano de uma ordem

terrestre para uma ordem sobrenatural, na qual possa viver uma vida plena, feliz e verdadeira, sem

as imperfeições, as desigualdades e injustiças terrenas. Todos os homens, sem distinção — homens

e mulheres, escravos e livres, cultos e ignorantes —, são iguais diante de Deus e são chamados a

alcançar a perfeição e a justiça num mundo sobrenatural.

2.2.3- A ética em Santo Agostinho e em São Tomás

O cristianismo não é uma filosofia, mas uma religião (isto é, antes de tudo, uma fé e um dogma,

um encontro pessoal com alguém: Jesus). Ele faz-se filosofia na Idade Média para esclarecer e

justificar, lançando mão da razão, o domínio das verdades reveladas ou para abordar questões que

derivam das (ou surgem em relação com as) questões teológicas. Portanto, a filosofia é serva da

teologia. A ética é limitada pela sua índole religiosa e dogmática.

Os principais representantes são: Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1226-1274).

Agostinho defende a elevação ascética até Deus, que culmina no êxtase místico ou felicidade, que

não pode ser alcançada neste mundo. Ele sublinha o valor da experiência pessoal, da interioridade,

da vontade e do amor: “eu Te procurava fora de mim, mas Tu estavas dentro de mim”, “Deus é

mais íntimo do que o meu íntimo”. Para Tomás, Deus é o bem objectivo ou fim supremo, cuja

posse causa gozo ou felicidade, que é um bem subjectivo. A contemplação (ou o conhecimento

entendido como visão de Deus) é o meio mais adequado para alcançar o fim último. Na sua doutrina

político-social, Tomás atém-se à tese do homem como ser social ou político, e, ao referir-se às

diversas formas de governo, inclina-se para uma monarquia moderada, ainda que considere que

todo o poder derive de Deus e que o poder supremo caiba à Igreja.

2.3- A ética na Idade Moderna: uma ética antropocêntrica

2.3.1- As grandes mudanças, a ruptura e busca de autonomia moral do indivíduo

A ética moderna sucede à sociedade feudal da Idade Média e passa por mudanças em todas as

ordens:

a) Económica: forças produtivas e relações capitalistas de produção;

b) Científica: constituição da ciência moderna (Galileu e Newton);

c) Social: nova classe social — a burguesia em contínua ascensão;

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d) Política: revoluções (na Holanda, Inglaterra e França); Estados modernos, únicos e

centralizados;

e) Atraso político e económico de outros países (como Alemanha e Itália), que somente no século

XIX conseguem realizar a sua unidade nacional;

f) Espiritual: a Igreja Católica perde a sua função de guia. Temos o movimento protestante e a

reforma.

Há ruptura em várias dimensões, como vem apresentado no quadro a seguir:

RAZÃO – FILOSOFIA ↔ FÉ – TEOLOGIA

NATUREZA - CIÊNCIAS NATURAIS ↔ DEUS -PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS

ESTADO ↔ IGREJA

HOMEM ↔ DEUS

Tabela 2: Apresentação das rupturas provocadas pela revolução antropocêntrica do início da época moderna.

Fonte: adaptado de Grokorriski (s. a.).

Com o Renascimento e a Idade Moderna, junto com a imprensa, e o re-estudo do mundo antigo, a

difusão da cultura (enquanto na Idade Média quase todos os letrados ou simplesmente alfabetizados

eram clérigos), o enriquecimento de uma nova classe — a burguesia — o fortalecimento dos

Estados nacionais, surgem, naturalmente, novos estudos de moral, tanto sobre os aspectos

individuais quanto sobre os sociais e estatais. É nessa fase que surgem as grandes obras de

Maquiavel, Rousseau, Spinoza e Kant.

O que a ética agora desenvolve principalmente é a preocupação com a autonomia moral do

indivíduo. Este indivíduo procura agir de acordo com a sua razão natural. O mundo medieval,

baseado na autoridade da "palavra divina revelada", já está longe. Os homens querem fundamentar

o seu agir na natureza. Assim temos o "direito natural", que contém uma ideia revolucionária em

relação ao "direito divino dos reis", do regime antigo.

Assim temos Rousseau (1712-1778), com o ideal de uma vida melhor graças ao retorno às

condições naturais, anteriores à civilização. Também temos Kant, que busca descobrir em cada

homem (e neste sentido é antiaristocrata e burguês) uma natureza fundamentalmente igual, porém

natureza livre. O agir de acordo com a nossa natureza, em Kant, é portanto bem diferente dos ideais

aparentemente paralelos dos gregos (estóicos e outros), dos medievais e de Rousseau. Para os

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gregos, isto significava uma certa harmonia passiva com o cosmos. Para o medieval, significava

uma obediência pessoal ao Criador da natureza. Para Rousseau significava um agir de forma mais

primitiva. Mas para Kant, a natureza humana é uma natureza racional, o que equivale a dizer que

a natureza nos fez livres, mas com isso não nos disse o que fazer, concretamente. Sendo o ser

humano um ser natural, mas naturalmente livre, isto é, destinado pela natureza à liberdade, ele deve

desenvolver esta liberdade através da mediação de sua capacidade racional.

2.3.2- A ética kantiana: formal e autónoma

Kant (1724-1804) é tido como o expoente máximo do iluminismo alemão. As suas principais obras

ligadas à ética são: Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e Crítica da razão prática

(1788).

Ele toma como ponto de partida o factum da moralidade. De facto, é um facto indiscutível que o

homem se sente responsável pelos seus actos e tem consciência do seu dever. Esta consciência

obriga a supor que o homem é livre.

O problema da moralidade exige que se proponha a questão do fundamento da bondade dos actos,

ou em que consiste o bom. E o único bom em si mesmo é a boa vontade. A bondade de uma acção

não se deve procurar em si mesma, mas na vontade com que se fez. É boa a vontade que age por

puro respeito ao dever, sem razões outras a não ser o cumprimento do dever ou a sujeição à lei

moral. O mandamento ou dever que deve ser cumprido é incondicionado e absoluto.

O que a boa vontade ordena é universal por sua forma e não tem um conteúdo concreto: refere-se

a todos os homens em todo o tempo e em todas as circunstâncias e condições. Daí o imperativo

categórico de Kant: “Age de tal modo que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne

uma lei universal”.

Se o homem age por puro respeito ao dever e não obedece a outra lei a não ser a que lhe dita a sua

consciência moral, é legislador de si mesmo, autónomo. Por isso, tomar o homem como meio é

profundamente imoral, porque todos os homens são fins em si mesmos e, como tais — isto é, como

pessoas morais —, formam parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins.

Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independentemente da

sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autónoma (e opor-se assim às

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morais heterónomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação

da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval.

Por conceber o comportamento moral como pertencente a um sujeito autónomo e livre, activo e

criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes

de tudo como ser activo, produtor ou criador.

2.3.3- Hegel e a crítica à ética kantiana

Completando a obra do pensamento moderno, Hegel considerou demasiado abstracta a posição

kantiana, lembrando que seu igualitarismo postulado não levava realmente em conta as tradições e

os valores, o modo de ver de cada povo; ignorava, portanto, as instituições históricas concretas e

não chegava a uma ética de valor histórico. Hegel liga, então, como já vimos, a ética à história e à

política, na medida em que o agir ético do homem precisa de concretizar-se dentro de uma

determinada sociedade política e de um momento histórico variável, dentro dos quais a liberdade

se daria uma existência concreta, organizando-se num Estado.

Talvez pudéssemos agora perguntar: se a ética grega era uma estética, e a ética medieval cristã uma

atitude religiosa, não se deveria dizer que a ética hegeliana é uma política? Talvez sim, mas também

é verdade que provavelmente Hegel não consideraria esta afirmação, absolutamente, como uma

crítica. Todo agir é político, inclusive e principalmente o agir ético.

2.4- A ética na Idade Contemporânea: várias orientações

2.4.1- A ética, uma questão de discurso

Na segunda metade do século XX, a questão do comportamento ético modificou-se mais uma vez.

As atenções se voltaram principalmente para a questão do discurso, mas isto de duas maneiras mais

ou menos independentes. Por um lado, e ainda por influência do pensamento de Esquerda, as

reflexões éticas passaram a analisar os discursos com vista a uma crítica da ideologia. Por outro

lado, filósofos de inspiração anglo-saxónica passaram a ocupar-se principalmente com uma crítica

da linguagem, dentro da qual se desenvolve também a crítica ou a análise da linguagem ética.

A crítica da ideologia busca descobrir, por trás dos discursos sobre as acções humanas, individuais

ou grupais, os (verdadeiros) interesses reais, materiais, económicos ou de dominação política. Por

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trás dos apregoados interesses éticos e universais, descobrir a hipocrisia e revelar o cinismo dos

interesses económicos, políticos e particulares. Esta crítica da ideologia tem ajudado inclusive a

reescrever a história da ética.

A análise da linguagem, dentro principalmente das diversas linhas da filosofia analítica, tem os

méritos do rigor formal, quando se concentra na análise das formulações linguísticas através das

quais os homens definem ou justificam o seu agir. É extremamente interessante, por exemplo, ver

um autor como E. Tugendhat demonstrar que a afirmação "eu te amo" não tem sentido,

logicamente, uma vez que o sentido desta proposição só se encontraria, ou melhor, só seria

encontrado pela segunda pessoa na observação dos actos empíricos da primeira. E não deixa de ser

instrutivo ler, por exemplo, como Moritz Schlick (1882-1936), membro do Círculo de Viena e

grande inspirador de muitos filósofos actuais, analisa o que seriam as acções boas: "Boas acções

são aquelas que se exigem de nós…"

Por mais que variem os enfoques filosóficos ou mesmo as condições históricas, algumas noções,

ainda que bastante abstractas, permanecem firmes e consistentes na ética. Uma delas é a questão

da distinção entre o bem e o mal. Agir eticamente é agir de acordo com o bem. A maneira como se

definirá o que seja este bem é um segundo problema, mas a opção entre o bem e o mal, distinção

levantada já há alguns milénios, parece continuar válida.

Um dos pseudónimos de Kierkegaard, definido exactamente como "o Ético", afirmava, por isso:

"meu dilema não significa, em primeiro lugar, que se escolha entre o bem e o mal; ele designa a

escolha pela qual se exclui ou se escolhe o bem e o mal". Neste sentido, poderíamos continuar,

dizendo que uma pessoa ética é aquela que age sempre a partir da alternativa bem ou mal, isto é,

aquela que resolveu pautar seu comportamento por uma tal opção, uma tal disjunção. E quem não

vive dessa maneira, optando sempre, não vive eticamente.

Numa apresentação da moral tomista, encontramos a seguinte definição: “A moral é uma ciência

prática, cujo objecto é o estudo e a direcção dos actos humanos em ordem a conseguir o último

fim, ou seja, a perfeição integral do homem, no que consiste a felicidade. Os actos humanos são

particulares, e assim, enquanto ciência prática, a moral deve atender e descer ao particular" (Fraile,

1956). Ora, os homens discutirão sempre sobre os actos particulares, isto é, as acções concretas de

cada um. O julgamento concreto de cada acção exige exactamente todos os pressupostos éticos. Já

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se discutirá menos sobre a questão da busca da felicidade, e se discutirá menos sobre a relação

entre o agir ético e a perfeição do homem enquanto homem.

Kierkegaard criticava, no século passado, a especulação idealista, porque, segundo ele, ela distraía

o sujeito, com grandes apresentações históricas, fazendo com que ele se esquecesse que tinha de

agir, e que tinha de escolher entre o bem e o mal. O perigo desta distracção talvez venha, no século

XX, daquelas teorias que insistem sobre a análise formal do discurso, e que muitas vezes parecem

esquecer de que, fundamentalmente, a ética é uma ciência prática, que trata, portanto, de uma

questão prática, da acção, e não apenas do discurso.

Mas parece que de resto os homens do século XX estão mais conscientes de que eles não são

espectadores, e sim actores, que não estão na plateia, e sim no palco, como diziam os pensadores

da existência. A questão actual é principalmente saber se, mesmo sabendo isto, os homens de hoje

ainda se sentem em condições de agir individualmente, isto é, agir moralmente. A massificação, a

indústria cultural, a ditadura dos meios de comunicação e mesmo as ditaduras políticas são

fenómenos que têm de ser analisados também nesta perspectiva, para sabermos até que ponto o

homem de hoje ainda pode escolher entre o bem e o mal.

Adorno, em sua análise do fetichismo da música coloca a questão: nosso mundo individualista não

estaria acabando exactamente com a individualidade, estrutura básica de um agir moral?

2.4.2- Tentativa de classificação da ética contemporânea

Hoje, a ética, devido à sua diversidade na abordagem, possui diferentes critérios de classificação.

Mas, para o nosso caso, preferimos a seguinte: ética empírica, ética de bens, ética formal e ética

valorativa.

A- Ética empírica

A experiência e a observação dos factos são a fonte para orientar e compreender o comportamento

humano. Para essa compreensão os preceitos disciplinadores do comportamento estão implícitos

no próprio comportamento, ou seja, na prática, no quotidiano da vida.

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Esta ética não questiona o que o ser humano “deve fazer”, mas examina o que “o ser humano

normalmente faz”. Sendo, assim, cada ser humano age de uma maneira e isso nos leva para o

relativismo ético.

Correntes filosóficas empiristas: anarquismo, utilitarismo e cepticismo.

B- Ética de bens

O ponto de partida desta ética é: há um bem supremo fundamental. A criatura humana é capaz de

se propor fins, eleger meios e colocar em prática os últimos, para alcançar os primeiros. O ser

humano tem fins superiores que orientam o comportamento humano.

Há posições que diferem qual é o bem supremo que deve orientar o comportamento humano:

hedonismo (o prazer), idealismo (os ideais), eudemonismo (a felicidade), etc.

C- Ética formal

Essa ética defende a consciência racional a partir da lei moral. O racional é tido como o campo da

lógica. O importante é cumprir logicamente o que tem de ser feito. Tudo aquilo que deve ser feito

deve-se cumprir conforme as exigências da consciência racional e não conforme os sabores do

ambiente externo. O filósofo por excelência dessa doutrina é Kant. Ele advoga que o certo é fazer

o que é lógico ou racional.

D- Ética valorativa

Para esta ética, o comportamento moral deve ser orientado e pautado por aquilo que é valioso. Do

ponto de vista da organização social, a existência do valor está associada àquilo que a sociedade,

por sua vez, compreende, aceita e respeita como sendo valioso e isso é determinado pela maioria.

Isso é convenção dos valores, que se expressa nas leis ou nos códigos morais aprovados pela

sociedade através do legislativo municipal, provincial ou nacional (constitucional).

2.4.3- Critério ético e posturas morais

Tais posturas referem-se às mais comuns que as pessoas adoptam frente a situações que têm que

decidir. Assim, dessas posturas, derivam: a ética essencialista, a ética individualista, a ética da

responsabilidade, e a ética da resposta-responsabilidade.

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A- A ética essencialista

A acção é sempre orientada por um conjunto de normas, que devem servir de base para

comportamento moral das pessoas em toda e qualquer situação. Tais normas são princípios que

funcionam como reguladores, são universalistas, ou seja, se é mentira aqui, onde moro, também é

mentira, lá longe, do outro lado do mundo. Um exemplo é a pessoa religiosa que acredita em

verdades absolutas. Para esse tipo de pessoa, não há contextualização ou reforma daquilo que se

tem afirmado. Por isso, esta moral é típica das sociedades tradicionais.

B- A ética individualista

Para esta moral, não existem verdades universais ou absolutas, mas cada um, segundo a sua

consciência, tem a sua própria verdade. A razão humana é que determina quando e como agir. Não

há um ser superior, que pré-estabelece ou um plano divino que orienta as acções humanas. Cabe

ao ser humano cuidar de si mesmo, pois é detentor de si mesmo. Portanto, temos a autonomia e a

liberdade dos indivíduos. “Cada um cuida de si mesmo”: esta é a máxima individualista. A moral

individualista é própria da sociedade capitalista e de mercado actual.

C- A ética da responsabilidade

O grupo ou o meio colectivamente é que decide de maneira consensual os padrões de conduta que

devem ser seguidos. Estes padrões não são vistos como universais, imutáveis (ética essencialista)

ou que favoreçam a um indivíduo em particular (ética da convicção), mas são relativos a cada

situação, tendo sempre o julgamento da colectividade que analisa o mérito para mudar ou

reconduzir os padrões estabelecidos.

Considera o contexto e, pelos efeitos, as consequências das acções. Um exemplo oportuno é a

consciência ecológica no processo de desenvolvimento sustentável que começa a surgir na

sociedade actual: a necessidade de cuidar do ambiente para nós e as gerações futuras.

D- A ética da convicção

Muller (s. a.) refere que a ética da convicção foi idealizada e teorizada por Max Weber para se

referir, no âmbito político, ao conjunto de normas e valores que orientam o comportamento de um

político na sua esfera privada. Diferencia-se da ética da responsabilidade, pois esta representa o

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conjunto de normas e valores que orientam a decisão do político a partir de sua posição como

governante ou legislador.

E- A ética da resposta-responsabilidade

A comunidade de fé reconhece e está consciente da presença de Deus em forma de apelo (ou pro-

posta). Tal apelo (pro-posta) soa no interior de cada membro (cf. GS, n.16), e este descobre por

meio do discernimento (dokimazein) qual seja a vontade de Deus para aquele momento e naquela

circunstância (cf. Rm 12,2).

A comunidade de fé, representada pelo Magistério, descobre os padrões de conduta que devem ser

seguidos, e submete-se, pelo obséquio religioso, ao ensinamento oficial emanado pelo Magistério

quer em matéria de doutrina, quer em matéria de disciplina. Estes padrões não são vistos como

universais, imutáveis ou que favoreçam a um indivíduo em particular, mas são fruto da evolução

do dogma2 para cada situação histórica, enquanto a comunidade procura ler os sinais dos tempos.

O julgamento cabe ao Magistério, que analisa o mérito para mudar ou reconduzir os padrões

estabelecidos, procurando sempre ser fiel a Deus (ao depositum fidei) e ao ser humano.

2.5- Os ideais éticos

A ética hoje assume várias orientações e tem vários critérios para ser classificada. Mas qual é o

critério da moralidade? O que significa dizer que agir moralmente significa agir de acordo com a

própria consciência? Quando agimos, o que buscamos? Qual seria o ideal da vida ética?

As respostas variam, como fomos vendo nesta abordagem histórica da ética. Para os gregos, o ideal

ético estava ou na busca teórica e prática da ideia do bem, da qual as realidades mundanas

participariam de alguma maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma vida bem

ordenada, uma vida virtuosa, onde as capacidades superiores do ser humano tivessem a preferência,

e as demais capacidades não fossem, afinal, desprezadas, na medida em que o ser humano, ser

sintético e composto, necessitava de muitas coisas (Aristóteles).

2 Dogma é um termo de origem grega que significa literalmente “o que se pensa é verdade”. Na antiguidade, o termo

estava ligado ao que parecia ser uma crença ou convicção, um pensamento firme ou doutrina. Posteriormente passou

a ter um fundamento religioso em que caracteriza cada um dos pontos fundamentais e indiscutíveis de uma crença

religiosa. Pontos inquestionáveis, uma verdade absoluta que deve ser ensinada com autoridade.

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Para outros gregos, o ideal ético estava no viver de acordo com a natureza, em harmonia cósmica.

(Esta ideia, modificada, foi depois adoptada por teólogos cristãos, no seguinte sentido: viver de

acordo com a natureza seria o mesmo que viver de acordo com as leis que Deus nos deu através da

natureza). Os estóicos insistiram mais nesta vida natural. Já os epicuristas afirmavam que a vida

devia ser voltada para o prazer: para o sentir-se bem. Tudo o que dá prazer é bom. Ora, como certos

prazeres em demasia fazem mal, acabam por produzir desprazer, uma certa economia dos prazeres,

uma certa sabedoria e um certo refinamento, até uma certa moderação ou temperança eram

exigências da própria vida de prazer.

No cristianismo, os ideais éticos se identificaram com os religiosos. O ser humano viveria para

conhecer, amar e servir a Deus, directamente e em seus irmãos. O lema socrático do "conhece-te a

ti mesmo" volta à tona, em Santo Agostinho, que agora ensina que "Deus nos é mais íntimo que o

nosso próprio íntimo". O ideal ético é o de uma vida espiritual, isto é, do acordo com o espírito,

vida de amor e fraternidade.

Com o Renascimento e o Iluminismo, ou seja, aproximadamente entre os séculos XV e XVIII, a

burguesia que começava a crescer e a impor-se, em busca de uma hegemonia, acentuou outros

aspectos da ética: o ideal ético seria viver de acordo com a própria liberdade pessoal, e em termos

sociais o grande lema foi o dos franceses: liberdade, igualdade e fraternidade. (Há quem afirme

que a Revolução Francesa buscou concretizar apenas a liberdade, a Russa, a igualdade e a Africana,

ou a do Terceiro Mundo, a fraternidade.)

O grande pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant, identificou bastante o ideal ético com o

ideal da autonomia individual. O homem racional, autónomo, autodeterminado, aquele que age

segundo a razão e a liberdade, eis o critério da moralidade.

Se Kant e a Revolução Francesa acentuaram de maneira talvez demasiado abstracta a liberdade, o

ideal ético para Hegel estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que

preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis

do direito não estivessem nem separadas e nem em contradição. A profunda perspectiva política

de Platão e Aristóteles transparece de novo em Hegel. Mas parece que a realidade histórica não

acompanhou muitas de suas teorias.

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No século XX, os pensadores da existência, em suas posições muito diversas, insistiram todos sobre

a liberdade como um ideal ético, em termos que privilegiavam o aspecto pessoal ou personalista

da ética: autenticidade, opção, resoluteza, cuidado, etc.

Já o pensamento social e dialéctico buscou como ideal ético a ideia de uma vida social mais justa,

com a superação das injustiças económicas mais gritantes. A ética se volta sobre as relações sociais,

em primeiro lugar, esquece o céu e se preocupa com a terra, procurando, de alguma maneira,

apressar a construção de um mundo mais humano, onde se acentua tradicionalmente o aspecto de

uma justiça económica, embora esta não seja a única característica deste paraíso buscado.

Finalmente, não há como negar que exactamente a maioria dos países ricos actuais se caracteriza

por uma ética que em muitos casos lembra a busca grega do prazer, porém, nem sempre com

moderação. O prazer, depois do século XIX, época da grande acumulação capitalista, reduziu-se

bastante à posse material de bens, ou à propriedade do capital. Em nome da defesa do capital, ou,

mais modestamente, em nome da defesa da propriedade particular, muito sangue já foi derramado

e muita injustiça cometida. O grande argumento do pensamento de Esquerda é que não foi a

Esquerda quem inventou a luta de classe. E que a propriedade é um direito básico para todos.

A reflexão ético-social do século XX trouxe, além disso, uma outra observação importante: na

massificação actual, a maioria hoje talvez já não se comporte mais eticamente, pois não vive imoral,

mas amoralmente. Os meios de comunicação de massa, as ideologias, os aparatos económicos e do

Estado, já não permitem mais a existência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e

participantes, de consciências com capacidade julgadora. Seria o fim do indivíduo? Talvez seja

necessário determo-nos agora nas questões ligadas à pessoa humana, sua dignidade, seu valor

fundamental.

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UNIDADE III – A PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA

CONTEÚDOS DA TERCEIRA UNIDADE

3.1- Conceito de pessoa humana

3.2- A pessoa humana e a consciência moral

3.3- A pessoa humana e o discernimento

3.4- A pessoa humana e a lei moral

3.5- A pessoa humana e a opção fundamental

3.6- A pessoa humana e a liberdade

OBJECTIVO PRINCIPAL DA TERCEIRA UNIDADE

Levar os estudantes a discutirem em torno do conceito de pessoa humana, a descobrirem na sua

vida e experiência o valor e a actuação da consciência moral, a experimentarem a importância do

discernimento moral-prático, a alimentarem na sua vida o sentido de lei moral (lei que obriga por

dentro, ao nível da consciência), a organizarem a sua vida (moral) em torno duma opção

fundamental num espírito de liberdade.

3.1- Conceito de pessoa humana

3.1.1- A complexa tarefa de definir da pessoa

Há dentro da filosofia várias definições do ser humano, razão pela qual poderemos encontrar, neste

nosso estudo, várias definições, desde a Antiguidade à época moderna. Neste sentido, o conceito

de Pessoa deve ser abordado sob duas vertentes, mas partindo da questão: Quem sou eu?

A- Vertente clássica

Esta vai cingir-se a alguns filósofos da Antiguidade e de Idade Média, como Cícero, Boécio e São

Tomás. Cícero (106-43 a.C.) define a pessoa como sendo sujeito de direitos e deveres. Boécio

(c.480-524) entende pessoa como uma substância individual de natureza racional. São Tomás de

Aquino (1225-1272) entende a pessoa como um subsistente de natureza racional.

Há, nestes últimos dois filósofos (Boécio e Tomás), algo comum: referência ao individuo

subsistente, coeso, uno, total, e de natureza racional. A natureza racional confere ao ser humano a

capacidade de saber que sabe, consciência de ter consciência. Esta racionalidade subentende na

Pessoa uma dimensão espiritual.

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B- Vertente moderna e contemporânea

Nesta linha, sobressaem Descartes (1596 -1650), Kant (1724 -1804) e Martin Buber (1878 -1965).

Difere da vertente clássica por esta ressaltar, nas suas direcções definitórias, as características

psicológica, ética e social. Resgata-se, portanto, o sentido de individualidade e intencionalidade. O

mérito de Kant foi de ter apresentado a pessoa como fim e nunca como meio. Mas é necessário

sublinhar que os elementos, tanto da vertente clássica como os da modernidade, se completam.

a) Psicológica: Esta direcção toma como referência Descartes, o qual toma a consciência como a

característica definitória da Pessoa.

b) Ética: esta direcção, conforme Kant (citado por Chambisse, 2003, p. 38), sublinha a liberdade

como o constitutivo da pessoa.

c) Social: esta direcção, segundo o autor acima, juntando-se ao Personalismo e, de modo particular,

a Martin Buber, destaca na definição de Pessoa a relação desta com o(s) outro(s). Importa

ressaltar que o Personalismo tem como traço geral a sua insistência na realidade e no valor da

pessoa e sua tentativa de interpretar a realidade e a afirmação da liberdade humana e do

fundamento pessoal da realidade.

Immanuel Kant (1724-1804): Este filósofo concebe ainda o ser humano como necessitado por ele

ter necessidades, enquanto pertence ao mundo sensível, e nesse aspecto, a sua razão tem uma

missão de se ocupar dos seus interesses, elaborando máximas práticas com vista à felicidade desta

vida e de uma vida futura.

Karl Marx (1818-1883): Para este filósofo, a pessoa humana é, ao mesmo tempo, social e natural,

portanto meramente material, sem a dimensão espiritual e transcendental, já que tudo no universo

do real, incluindo o ser humano, se reduz à matéria.

A pessoa humana como um ser social: a sociedade é a união perfeita do ser humano com a natureza,

a verdadeira ressurreição da natureza.

A pessoa humana como um ser natural: O ser humano é directamente um ser natural, porque ele

sofre, condicionado e limitado como animais e plantas.

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O trabalho, essência da pessoa humana: Esta é o produtor e o produto de seu trabalho. A essência

da pessoa humana está em seu trabalho (homo faber). O espelho para ver quem é o ser humano é o

seu trabalho. O ser humano é o criador de si mesmo.

Importa sublinhar que Marx não se apercebe da dimensão transcendental da pessoa humana

limitando-se apenas aos aspectos sensíveis, à materialidade. Portanto, o ser humano fica reduzido

a ser simplesmente natural, resultante da evolução da natureza natural.

Para Andrea Mercatali, a pessoa é um indivíduo dotado de consciência, inteligência, razão, capaz

de distinguir o verdadeiro do falso; dotado de moralidade, isto é, capaz de distinguir entre o bem e

o mal, responsável das próprias acções que age segundo motivos válidos na relação com os outros.

Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, a pessoa é um prius para o direito, isto é, uma categoria

ontológica e moral, não meramente histórica ou jurídica. Pessoa é todo indivíduo humano, homem

ou mulher, por sua própria natureza e dignidade, à qual o direito se limita a reconhecer esta

condição. Para Baracho, o conceito de pessoa e o direito à vida são essenciais para explicitar a

concepção de direitos humanos e a internacionalização dos mesmos e, portanto, para consagrar a

dimensão da dignidade da pessoa humana.

Aliados a estas tentativas de definir o ser humano, alguns filósofos existencialistas, como, por

exemplo, Jean-Paul Sartre e Karl Jaspers, depois de tanta investigação no sentido de conhecer o ser

humano, expressaram no seu pensamento, um desapontamento neste termos:

a) Sartre: “O estudo do ser humano trouxe-nos muitos conhecimentos, mas não nos deu a conhecer

o ser humano na sua totalidade”.

b) Karl Jaspers: na mesma linha, este autor manifesta o que poderíamos denominar de desilusão,

dizendo que “o ser humano é profundamente mais do que o que pode saber acerca de si mesmo”

(Opus cit. p. 316).

Na filosofia contemporânea, depois das filosofias da existência, vários autores, sobretudo

franceses, desenvolveram a corrente personalista. Dentre eles, encontra-se Emmanuel Mounier.

Mounier desenvolveu um conceito nuclear de pessoa, porém não a definiu devido à impossibilidade

de fazê-lo, pois, segundo ele, “só se definem os objectos exteriores ao homem, que se podem

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encontrar ao alcance da nossa vista. Mas a pessoa não é um objecto, antes, é exactamente aquilo

que em cada homem não é possível de ser tratado como objecto” (Mounier, 1961c, pp. 42-44). No

Manifesto ao Serviço do Personalismo, Mounier (1961b, p. 45) faz ressalvas em relação à

conceitualização da pessoa e afirma:

Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma forma de subsistência e de

independência em seu ser; mantém esta subsistência mediante a adesão a uma hierarquia

de valores livremente adoptados, assimilados e vividos num compromisso responsável e

numa constante conversão; unifica assim toda a sua actividade na liberdade e desenvolve,

por acréscimo, e impulsos de actos criadores, a singularidade da sua vocação.

Esta é uma simples caracterização da pessoa e não se pode considerá-la uma verdadeira definição.

Segundo Mounier, a pessoa não se pode definir num sentido estrito, pois, em última análise, pessoa

é “a própria presença do homem”.

Mounier afirma que a pessoa está num processo de personalização constante. Ela não se pode

definir. E a sua filosofia é caracterizada pelo movimento de personalização; isto é, a pessoa

constrói-se a si própria a partir das experiências. Vejamos mais o que ele diz: “A pessoa não é o

mais maravilhoso objecto do mundo, objecto que conhecêssemos de fora como todos os outros. É

a única realidade que conhecemos e que, simultaneamente, construímos de dentro. Sempre

presente, nunca se nos oferece” (Mounier, 1961a, pp. 24-25).

3.1.2- A pessoa e a sua dimensão transcendente

Edgar Shelfied Brightman, na definição da pessoa, afirma que pessoa é potencialmente

autoconsciente, racional e ideal ou seja, um si que é capaz de reflectir sobre si mesmo, de raciocinar,

de reconhecer fins ideais à luz dos quais está em condições de julgar as próprias acções. O traço

mais característico da personalidade, segundo Brightman é a autoconsciência. Na transcendência,

a pessoa se eleva para um nível mais alto de existência. Pessoa, na sua dimensão ontológica3, quer

dizer: autonomia no ser, domínio de si mesmo, invisibilidade, inviolabilidade, irrepetibilidade,

intransmissibilidade, unicidade. Pessoa é substância indivisível, inviolável, irrepetível,

intransmissível. Pessoa é ser em relação, que entra em comunicação com as coisas, com os outros

e com Deus. (Mondin. 1980).

3 Ontologia vem de on, ontos do grego, que significa o ser, a essência. Refere-se à pessoa na sua essência, pessoa

enquanto pessoa.

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A pessoa é constituída por quatro elementos principais: autonomia quanto ao ser, autoconsciência,

comunicação e autotranscendência. A pessoa humana pertence à abertura à transcendência: o

homem é aberto ao infinito e a todos os seres criados. A pessoa humana tende à verdade e ao bem

absoluto. Ė também aberto ao Outro, aos outros e ao mundo, porque somente enquanto se

compreende em referência a um tu pode dizer eu. Sai de si, da sua conservação egoísta da própria

vida, para entrar numa relação de diálogo e de comunhão com o outro.

A pessoa é abertura à totalidade do ser, ao horizonte ilimitado do ser. Tem em si a capacidade de

transcender cada objecto particular que conhece, efectivamente, graças a esta sua abertura ao ser

sem limites.

3.1.3- A concepção africana da pessoa

A- Conceito do homem africano

Nesta parte, queremos reflectir em torno de cinco realidades: o conceito de ser humano para o

africano, os elementos vitais, a família africana, o poder da palavra, e o ser humano como ser de

relações. É preciso salientar que, nesta reflexão, os conceitos ser humano, homem e pessoa são

tidos como sinónimos e traduzem o sentido do termo africano ubuntu, um termo que jaz na esteira

da seguinte afirmação: EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!

A palavra «muximu» revela a mentalidade nativa do africano: significa coração (equivale à alma),

é o ser humano interior, é como que o pequeno homem dentro do mesmo homem. O conceito de

homem não é equívoco nas tradições africanas. É formado por dois elementos: o primeiro, a alma,

vem do Deus Criador e está ligado ao corpo temporariamente, e o outro, o corpo, é transmitido

pelos antepassados. O que vemos e tocamos são aparências. A realidade humana encontra-se dentro

e é chamada «sombra vital» que subsiste mesmo depois morte. Esta «sombra vital» está presente

em toda a parte do corpo, e aí habita como que numa casa vivente. Depois da morte, a alma

transforma-se numa força que possui a capacidade de ubiquidade, a capacidade de conhecer o

presente e o futuro (omnisciência), a posse activa sobre os viventes, que influencia a bondade e a

maldade do mundo sensível. O pensamento, a memória e a inteligência são entendidas de forma

concreta de modo que, se em Descartes, temos o «Penso, logo existo», já no africano temos o «Eu

sinto as coisas, logo existo» (Laissone & Santos, 2000, pp. 16-17).

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No pensamento africano, a pessoa humana possui vários elementos vitais: o espírito (que liga a

linhagem), o sangue (recebido da mãe), o corpo e a sombra da pessoa, e a respiração. Não são todas

as culturas que acreditam que o homem tenha todos estes elementos, mas reconhece-se o facto de

serem tipicamente duma visão africana. São o suporte da vida humana e servem de intermediários

da complexa, mas necessária, rede de relações que torna o homem dependente do transcendente

(Laissone, 2001, pp. 9-10).

Na concepção africana, a família é tida como o centro da vida do homem e da sociedade. O africano

não se define somente enquanto indivíduo, mas enquanto visto no meio duma comunidade, duma

família. A família é um elemento fundamental da tradição africana por ser uma instituição de

referência e de identidade da pessoa. Pertencer a uma família é um dom, uma riqueza, pois implica

uma identidade social e cultural. Aí, o africano encontra as suas raízes e os valores de referência, e

é aí onde se realiza o provérbio, "a árvore cresce quando afunda no solo as suas raízes". Para o

africano, a família é o lugar onde nasce e se desenvolve a vida; é também o ambiente natural onde

o homem nasce, cresce, encontra protecção e segurança, encontra as razões de continuar a viver,

etc. Não se pode entender o africano fora da família. Esta, sempre entendida no sentido alargado,

é o centro da vida e da sociedade. Na mesma família, vive-se uma boa solidariedade. Esta consiste

precisamente em partilhar com os outros aquilo que alguém tem; por isso ela é concebida como a

arte de saber estar com os seus «irmãos». Nas línguas bantu, o verbo «ter» traduz-se por «estar

com». Assim, dizer «Eu tenho um irmão» significa dizer que «Eu estou com um irmão» (Kalumba,

2002, pp. 22-23).

Para o africano, a palavra possui um grande poder. Isto vale dizer que o africano dá grande valor

ao uso da palavra, pois é por meio dela que ele consegue transmitir a experiência vital que possui

quando entra em contacto com as coisas e com os outros. É por meio da palavra que ele expressa

as riquezas do pensamento e do coração; e é também por meio da palavra que os valores culturais

e tradicionais se transmitem de geração em geração. Lembremos que a oralidade até hoje tem sido

de grande importância embora possa ser muito ameaçada com a modernidade. A palavra é, para o

africano, vida, principalmente quando é dita pelos mais velhos. Ressoam em nós provérbios como:

“Cada velho que morre é uma biblioteca queimada”; ou “A mão do ancião pode tremer, mas a sua

voz costuma acertar o alvo”: pode ser velho sem forças, mas a sua palavra, cada vez que a idade

avança, contém mais sabedoria. A palavra se transforma em existência e exprime-se de vários

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modos: pela dança, choro, riso, grito e em vários outros acidentes da vida: "eu falo, logo existo"

(Laissone & Santos, 2000, p. 17; Kalumba, 2002, p. 23).

O ser humano é um ser de relações: com os espíritos, com Deus, com os outros. A existência do

vasto número de espíritos que habita o universo (antepassados, espíritos bons e maus, etc.)

confirma a inter-relação entre os homens e o mundo dos espíritos. As boas relações com estes

espíritos são de grande importância para o bem-estar da pessoa. A doença ou qualquer infelicidade

são causadas pela pessoa por manter más relações com o transcendente, com o mundo ou com os

outros. Toda e qualquer violação dos tabus ou a falta de lembrança dos antepassados ou do Criador

resulta em doença ou infelicidade. Para se efectuar a cura ou a eliminação da infelicidade é

necessário, antes de tudo, restabelecer a harmonia entre os elementos principais que constituem a

pessoa humana. Mas isto será ineficaz se, simultaneamente, não se restaurar as relações com o

ambiente e com Deus, os espíritos, os antepassados e outras pessoas. É daí que possamos afirmar

que o sistema africano de cura e a solução de problemas é moldado pela visão africana da realidade

(Laissone, 2001, p. 15).

B- Para o africano, ser homem é ser ético-religioso: o ético e o religioso

A ética do homem africano

A ética do africano se baseia na relação cósmica através de dois princípios: o bem e o mal. O bem

consiste no respeito da harmonia cósmica que se funda em Deus e no contacto com os antepassados,

enquanto que o mal significa o corte dessa harmonia e desse contacto, que pode ser provocado por

um mau acto humano ou pela acção destruidora do chamado «bulogi», «mfiti», «muloyi»: o

feiticeiro. Quando há harmonia então há união numa solidariedade profunda com os outros vivos

ou mortos, mas quando há desarmonia, então dá-se a experiência do mal que gera o medo, a tristeza,

o sofrimento etc.

A vida é um valor sagrado. O amor à vida é característica do homem africano. Este organiza-se e

estrutura-se em volta da vida. Ela é a chave para entrar na alma, na filosofia e na espiritualidade do

africano. Tem um caracter sagrado, por isso deve ser respeitada e protegida para crescer sempre

mais. A morte, neste sentido, é concebida como a continuação da vida no outro mundo. Assim se

compreende o culto aos antepassados e a sua veneração (Kalumba, 2002, 22).

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Tabus e leis. A vida dos bantu é repleta de tabus e leis tradicionais que regem a conduta humana.

Os tabus diferem das leis. Os tabus actuam por si mesmos, isto é, se alguém viola um tabu, as

consequências recaem directamente sobre ele. Por isso, o tabu é mais forte que a lei, porque pode

se violar a lei e ficar-se impune, basta não ser descoberto. Mas quando se trata de tabu, a coisa é

outra. Basta que se viole um tabu para que a sanção recaia sobre a pessoa. O tabu é entendido em

duas linhas: religiosa (do sagrado) e moral:

a) Na linha religiosa, é tabu, por exemplo, não tirar lenha nem deitar fogo no bosque sagrado.

Quem o fizer terá consequências drásticas na vida: pode morrer ele e toda a sua família ou ele

pode ser devorado por uma fera ou ser engolido por uma jibóia.

b) Na linha moral, por exemplo, é tabu não matar a pessoa humana. Quem matar, morrerá errante

no mato enlouquecido e o seu corpo será comido pelas aves de rapina. Também é tabu não

manter relações sexuais com a irmã legítima porque isto pode causar a morte da mãe ou, se

casarem, só nascerão filhos mortos.

Porém, a ética bantu não está apenas presa nos tabus e nas normas tradicionais, mas também é

expressa através de provérbios e contos, lendas, etc.

O coração é critério de avaliação moral. A aspiração moral do homem é de possuir um coração

bom e viril. Entre o povo nyungwe, por exemplo, quando se diz "nyacintima cikulu" (o que tem

coração grande), quer-se dizer que a pessoa é má, e quando se diz "nyamtima wakufewa" (o que

tem coração mole), quer-se dizer que a pessoa é boa. Daí que o valor do homem se julgue pelo seu

coração. O homem que domina pela força ou pelas armas será temido, mas não é e nem será

superior porque o homem superior é aquele que tem um coração bom e viril.

Homem africano: profundamente religioso

Não existe nas línguas bantu uma palavra que possa corresponder ao termo «religião». É difícil

perceber a razão desta inexistência principalmente quando se vê e se prova a grande religiosidade

que existe no africano. Talvez a razão reside no facto de ser a própria religiosidade do africano a

lhe definir como homem. De facto, a religião, no africano, «invade» todos os sectores da sua

existência, de modo que a própria dimensão do sagrado já está contida no profano. Não podemos

captar o verdadeiro conceito do homem africano se não o definirmos também e principalmente na

sua dimensão religiosa.

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O homem africano acredita em dois mundos: o mundo visível e invisível. Por meio do seu corpo,

entra em contacto com o mundo visível. Por meio do seu espírito ou dum adivinho (ou outro

intermediário entre o homem e Deus) ou por meio de sacrifícios ou outros gestos sagrados, o

homem africano entra em contacto com o mundo invisível (Laissone, 2001, pp. 4-5). Ele acredita

na existência do Deus Criador, Supremo, Eterno, Providente e Juiz Justo e na existência dum

mundo espiritual. (EA, n. 67).

C- O ancião: símbolo da sabedoria e «depósito» do património africano

Os anciãos em África, desde os tempos remotos, desempenharam um papel decisivo como

fundamento da família, como condutores da vida, elo de ligação entre o passado e o futuro, como

detentores da sabedoria popular e como educadores da juventude. Eles são os pilares da

comunidade não só porque conhecem a história e a cultura da família ou da etnia, mas também

porque servem de referência aos costumes e segredos da vida A sua importância e respeito

aumentam por causa de estarem mais próximos dos antepassados. Dizia Hempaté Ba: "Velho que

morre, biblioteca que arde". É verdade! Os anciãos são a memória do povo, detém a história do

povo (Kalumba, 2002, pp. 22-23).

O ancião é o ponto de referência para falarmos sobre o homem africano. Ele é o ponto de referência

para a vida humana. E não é por acaso que temos o provérbio: A mão do ancião pode tremer, mas

a sua voz costuma acertar o alvo: pode ser velho sem forças, mas a sua palavra, cada vez que a

idade avança, contém mais sabedoria. Assim, a idade do ancião se associa à sabedoria. Na maioria

das línguas bantu, «ancião» e «sábio» são conceitos coincidentes. Por exemplo, o nome mzee, em

swahili, significa, ao mesmo tempo, sábio, ancião, respeitável. Algo narrado à noite, junto à

fogueira por um ancião é uma autêntica lição de vida (Kalumba, 2002). O homem constitui o valor

fundamental depois de Deus. O termo «munthu» está ligado a «Nzambi Mpungo» (Deus Criador),

pois o homem é criatura de Deus («Munthu Nzambi»).

3.1.4- O conceito de pessoa no ensinamento oficial da Igreja

Uma das chaves de leitura para perceber todo o ensinamento social da Igreja, e que perpassa as

entrelinhas de todos os teólogos e doutrinadores é o conceito de pessoa. Esta, vista como criatura

de Deus, criada à Sua imagem e semelhança, valorizada, redimida e glorificada, constituiu um dos

temas mais caros ao Papa João Paulo II. Já na sua primeira encíclica, Redemptor Hominis o Papa

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já mostra que o ser humano, enquanto pessoa, é uma das suas grandes preocupações, pois ele é

caminho da igreja (n. 14).

De entre os princípios da Doutrina Social da Igreja, a pessoa é tida como o primeiro princípio, pois

ela é dotada de dignidade, de direitos, a começar pelo direito à vida desde a concepção à morte

natural, também é dotada de liberdades, com particular destaque para a liberdade religiosa. Essa

dignidade, igual para todas pessoas humanas, exige o esforço para reduzir as desigualdades sociais

e económicas excessivas e levar ao desaparecimento das desigualdades e relações iníquas.

Este tema constitui também o primeiro capítulo da primeira parte da Constituição Pastoral

Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje (GS, nn.12-22). E este capítulo é intitulado a

dignidade da pessoa humana. Por isso, não iremos apresentar em detalhes os conteúdos deste

capítulo já que este tema será apresentado nos pontos seguintes. O importante neste momento é

apenas apresentar os pontos que norteiam a dignidade da pessoa humana, apresentados neste

documento. É preciso saber que esses pontos apresentam as principais balizas na compreensão do

conceito de pessoa no ensinamento oficial da Igreja.

O primeiro ponto apresenta o homem como ser criado à imagem de Deus. É importante sublinhar

que o homem não é imagem de Deus, mas é criado à imagem de Deus. O ponto a seguir justifica

esta nossa afirmação: a realidade do pecado. No terceiro ponto, encontramos os elementos

constitutivos do homem. No quarto ponto, temos a dignidade da inteligência, a verdade e a

sabedoria. Mostra-se, neste ponto, o que a inteligência é capaz de fazer e a necessidade de

humanizar as conquistas no espírito de verdade. No quinto ponto, temos a consciência moral e a

sua dignidade. A sua dignidade reside no facto de que ela é o lugar secreto, íntimo da pessoa onde

ela se encontra a sós com Deus e consigo mesma. É a dignidade desta consciência que justifica o

ponto seguinte (sexto): a liberdade. A seguir a este ponto, temos o ponto (sétimo) dedicado ao

mistério da morte como experiência humana única. Depois deste tema, no oitavo ponto, temos as

diferentes formas e causas do ateísmo. No nono ponto, temos o ateísmo sistemático. O ponto

décimo mostra a atitude que a Igreja deve tomar diante do ateísmo. E no último ponto (décimo

primeiro), o documento apresenta Cristo como o Homem Novo, o modelo da humanidade realizada

e plenificada, a Pessoa.

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3.2- A pessoa humana e a consciência moral

Os preceitos morais, como normas objectivas da moralidade, podem ser comparados com os sinais

de trânsito postos nas estradas para indicar a direcção que a pessoa deve tomar em ordem a alcançar

o seu objectivo. A mera existência destes sinais de qualquer modo não é suficiente para ajudar as

pessoas no seu percurso. Elas precisam dum sentido para perceber tais sinais, para seleccionar,

dentre eles, os mais relevantes, e também para ajudar tais pessoas lá onde estes sinais não existem.

Este sentido é a consciência pessoal. Esta é aquela faculdade moral que diz às pessoas

subjectivamente o que é bom e mau e o que manifesta a sua obrigação moral para isto que é bom

e mau. Na mesma linha, escreveu Confúcio que a consciência é a luz da inteligência para distinguir

o bem do mal. A consciência é a bússola que nos guia pelo caminho recto nem sempre o mais fácil,

mas sempre o mais adequado para se progredir na sabedoria e no amadurecimento do espírito.

3.2.1- Consciência moral e consciência psicológica

Não podemos falar da natureza da consciência moral sem primeiro falarmos da delimitação da

própria consciência moral; isto é, devemos contradistingui-la da consciência psicológica, pois não

existe consciência moral sem uma consciência psicológica.

William May faz uma distinção clara entre a consciência moral e a consciência psicológica. O

termo consciência vem do latim conscientia, ae que significa saber com (cum scire), um saber

compartilhado: é o testemunho do facto ou o testemunho da interioridade. E assim, a consciência

pode tomar dois sentidos: ser responsável (consciência moral) e ser consciente (consciência

psicológica). Uma pessoa não pode ser responsável sem que primeiro seja consciente, mas pode o

caso contrário. É na consciência moral que entra a dimensão religiosa.

A consciência moral e a consciência psicológica não são a mesma coisa, mas não convém separa-

las. A consciência moral pressupõe a consciência psicológica, mas esta não necessita da

consciência moral. Contudo, a consciência psicológica encontra a sua realização segundo uma

imagem ou conceito de ser humano, de vivência, etc. na consciência moral; isto é, a consciência

moral prolonga e termina a consciência psicológica, porque a consciência psicológica e a

consciência moral são distintas por razão do seu próprio objecto, mas não são contraditórias.

Podemos afirmar que a consciência psicológica trata do homem, enquanto a consciência moral trata

do homem enquanto um ser moral e com uma dimensão religiosa.

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A consciência moral tem um carácter imperativo em dois sentidos:

a) É juízo em ordem à acção. O seu saber não é desinteressado. A consciência moral se orienta

para a realização concreta do ego: é um projecto de vida; age para a realização concreta das

acções; mas não é somente acção concreta, mas sim e muito mais uma realização em relação a

um fim.

b) A consciência moral acrescenta à consciência psicológica o carácter de obrigação que

compromete o ego.

3.2.2- Natureza da consciência moral

A- A subconsciência moral

Para explicarmos a consciência moral, Vidal (1983) refere que temos que primeiro passar por

aquilo que chamamos de subconsciência moral. Trata-se daqueles aspectos e dinamismos que se

dão na consciência moral, mas não formam propriamente o núcleo consciente da mesma.

A consciência moral é o caminho que o homem faz e aí encontra imaturidades e retrocessos. Não

é logo-logo claro o que significa no indivíduo agir com uma consciência moral. Quais são estes

retrocessos e essas imaturidades? Quais são os elementos ou estratos que podem definir a

subconsciência moral?

a) O eco da sociedade: é em parte inevitável, pois sempre estamos condicionados pela história.

Às vezes pensamos que estamos agindo com consciência pessoal, enquanto não somos nada

mais que um eco da consciência social, meios de comunicação social ou outros elementos da

sociedade. Acontece muitas vezes que que nós somos o produto duma investigação

psicológico-socio-económica.

b) Muitas vezes, achamos que a nossa consciência seja como a voz do inconsciente que pode ser

individual ou colectiva. Significa que os aspectos da consciência foram colocados na educação,

no tipo da família, dos valores da sociedade onde o sujeito vive, dos traumas infantis, dos tabus,

das tradições, das proibições, das inibições, etc. Tudo isto não constitui, não prepara e nem

ajuda para a consciência moral.

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c) A consciência como papel-máscara diante dos outros: quantas vezes nós não agimos na base

daquilo que os outros esperam de nós? e a personalidade fica como que algo desligado de nós

mesmos.

d) A consciência como ideal do ego: o ego desdobra-se e se faz exemplar ou arquétipo de si

mesmo. E nascem assim princípios ou critérios de actuação.

B- A preparação para a consciência moral

A consciência moral não é automaticamente adquirida. Ainda na linha de Vidal (1983), o ser

humano precisa dum processo de preparação e adaptação em relação à definição da própria

consciência. Vejamos alguns elementos que podem indicar o caminho possível para a definição da

consciência moral:

a) Para sermos responsáveis e autónomos, devemos aprender que as dúvidas e os limites nos

indicam o caminho a seguir; o homem não nasce com uma consciência moral perfeita, mas

pode ser que exista uma ’via generationis’ (S. Tomás) para alcança-la. O que se deve afirmar

é que existe no ser humano um crescimento moral.

b) O homem tem condicionamentos biológicos e cósmicos, pois ele está no presente. Isto

condiciona a sua capacidade de entender as coisas. Propor um “homem ideal” para o homem

concreto não parece hoje ser um caminho credível porque para o homem, o ideal está sempre e

mais distante do concreto.

c) A subconsciência pode ser entendida como a força falseadora (ou integradora) da vida moral.

Aqui entende-se aqueles valores que muitas vezes são propostos pela sociedade, religião ou

comunidade espiritual. Estes valores muitas vezes falseiam a verdadeira face da consciência

moral.

C- A consciência moral propriamente dita: norma interiorizada da moralidade

Expor a natureza da consciência moral não passa duma tentativa. E falar da consciência moral

propriamente dita é falar dela como norma interiorizada da moralidade. O que significa isto? É

ainda Vidal (1983) que nos responde.

Com norma interiorizada da moralidade queremos entender o juízo da consciência moral como

sendo uma norma interiorizada. Aqui, julgar significa entre dois elementos, optar por um. Neste

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sentido, consciência identifica-se com a norma. E assim, afirmaremos que a consciência tem uma

forma normativa; isto é, ela obriga a agir; ou ainda, nenhuma acção humana pode ser considerada,

em concreto, boa ou má se não se referir à consciência. A acção humana em si é amoral; isto é,

está fora do critério da moralidade.

Algo é bom ou mau em dois sentidos (GS nº 16):

a) Aspecto valorativo: A consciência é força manifestativa do valor objectivo em relação a uma

situação pessoal concreta. A consciência manifesta a lei exterior e aplica-a aos casos concretos

da pessoa.

b) Aspecto obrigante: A consciência é força autoritativa; isto é, se eu descubro que uma acção

tem valor (aspecto valorativo), então ela me obriga a realiza-la. A consciência moral não só

clareia a situação pessoal à luz do valor objectivo, mas também obriga e compromete a própria

pessoa. Porque é que tem este sentido obrigatório? Porque ela é eco da voz de Deus no interior

do ser humano, ou porque o ser humano tem uma lei escrita por Deus no seu coração.

O que queremos dizer com o termo “interiorizada”? Queremos dizer duas coisas:

a) A consciência moral é a norma da moralidade por onde passam todas as valorações morais das

acções humanas. Se não houver consciência enquanto norma próxima da moralidade, não existe

nem o bom nem o mau nas acções do homem; isto é, não há acção humana embora este faça

algo.

b) A consciência não é uma norma autónoma. Não faz nem o bem nem o mal; isto é, não cria a

moralidade, uma vez que não cria o homem. A consciência tem, como já vimos, um papel

manifestativo e obrigante. Ela exerce uma função de mediação entre Deus (o valor objectivo)

e a actuação da pessoa. A interioridade está em relação ao valor objectivo (Deus) que é somente

experienciado no interior do ser humano.

D- A consciência como faculdade moral e como juízo moral prático

Falar da consciência implica distinguir entre:

a) A consciência como faculdade moral: esta manifesta ao homem as suas obrigações morais e o

impele para o cumprimento das mesmas.

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b) A consciência como juízo moral prático: esta diz ao homem, na sua situação concreta, quais

são as suas obrigações morais.

A consciência como faculdade moral

A consciência é o processo no qual as normas gerais da lei moral são aplicadas para um acto

concreto, dizendo à pessoa qual é a sua obrigação aqui e agora ou julgando os seus actos passados.

Neste sentido, a consciência é considerada um juízo de razão prática. Para S. Agostinho,

consciência é o lugar dum colóquio amoroso entre Deus e o ser humano, e, por isso, da voz de

Deus, lugar do encontro com Deus. Nesta mesma linha, Boaventura e os grandes místicos da Idade

Média colocam o fundamento da consciência na scintilla animae. É este o centro da alma onde o

homem encontra Deus e é o lugar acessível para a contaminação do pecado.

A consciência pode ser definida como aquela faculdade que faz conhecer ao homem as suas

obrigações morais e obriga-lhe para seu cumprimento. Assim, todo homem está capacitado para

procurar realizar a sua vocação última, que, de acordo com o Vaticano II, é uma e divina para toda

a espécie humana (GS, n. 22).

A base elementar e o núcleo da consciência é chamado synderesis pela teologia escolástica desde

o séc. XII. Synderesis é o hábito dos princípios morais últimos, que não são redutíveis a princípios

mais básicos e são imediatamente perceptíveis pelo entendimento prático. O mais universal

princípio da synderesis é que o bom deve ser feito e o mal deve ser evitado. O conhecimento do

seu fim existencial e dos princípios morais básicos deve igualmente ser atribuído à faculdade inata

da synderesis. Para Tomás, synderesis é o hábito da razão.

A synderesis juntamente com o conhecimento moral prático constitui o hábito da consciência. Este

hábito é a pressuposição e a fonte dos juízos práticos e dos ditames que dizem à pessoa a sua

obrigação moral numa situação concreta.

A consciência como juízo moral prático

A faculdade da consciência entra na acção quando a moralidade duma linha concreta de conduta,

que a pessoa quer seguir ou seguiu, e a obrigação moral nesta situação concreta, estão para ser

julgados. Então, a faculdade moral formula um juízo, que é chamado ditame da consciência ou

simplesmente consciência.

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A consciência neste sentido é definida como o juízo último e prático na moralidade duma acção

concreta, mandando a fazer o que é bom e a evitar o que é mau. Em muitos casos, este juízo não é

reflexivo, mas espontâneo. O juízo da consciência é expressamente reflectido especialmente em

instâncias de dúvida ou de resistência e desobediência aos ditames da consciência.

A consciência é chamada juízo último e prático em contraposição ao juízo prático de natureza

especulativa. O primeiro diz respeito à acção concreta da pessoa numa situação também concreta;

o segundo formula princípios morais gerais que dizem respeito à moralidade das acções humanas

em abstracto, sem nenhuma relação com uma actividade concreta da pessoa aqui e agora.

O ditame da consciência contém um duplo elemento.

a) O primeiro é o juízo na moralidade duma acção concreta que a pessoa intende emitir ou omitir.

Este juízo pode ser erróneo, porque a consciência pode julgar boa uma linha de conduta que é

objectivamente má/errada ou vice-versa.

b) O segundo é o comando ou a obrigação de que aquilo que foi reconhecido como bom deve ser

feito ou devia ser feito, e aquilo que foi reconhecido como mau deve ser ou devia ser omitido.

Esta obrigação é categórica: é obrigatório fazer assim.

3.2.3- Tipos de consciência

A consciência pode ser: antecedente (se o juízo na moralidade duma acção e a obrigação para

realizá-la ou omiti-la se passa antes da realização da acção; portanto, a consciência antecedente

comanda, exorta, permite, proíbe) ou consequente (quando avalia um dado já feito ou omitido;

portanto, a consciência consequente aprova, escusa, reprova ou acusa).

Mas para que a actuação da consciência seja perfeita, se requer que haja rectidão com verdade e

com certeza. Só assim é que uma acção será justa. Se a consciência não é recta, ela é viciosa, se

ela não é certa, então é duvidosa, e se não é verdadeira, então é falsa ou errónea (vencível –

culpável, ou invencível – inculpável).

A- A rectidão da consciência: se não é recta, a consciência é viciosa

A consciência recta é a consciência que actua com a autenticidade da pessoa (e a discussão que

daqui sai é quem definirá tal autenticidade? qual o critério?). E precisa-se que a pessoa aja duma

maneira prudente e procure encontrar o eco de Deus no seu interior. A rectidão é a qualidade

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fundamental da consciência moral, porque a consciência recta é a norma necessária da moralidade

dos próprios actos. Ela é como que a conditio sine qua non4 da moralidade dos nossos actos. Não

podemos estar em desacordo com a consciência em nossas acções humanas. Sem a rectidão não é

possível agir humanamente. A consciência recta tem todos os direitos da consciência. Existe uma

obrigação moral de seguir os ditames da consciência recta. Existe também o direito de segui-la. E

a sociedade, na teoria, não deveria pôr obstáculos neste direito. A rectidão da consciência é o que

une os cristãos com os homens de boa vontade (GS, n. 16). Ela faz com que seja possível um

diálogo entre os cristãos e os não-cristãos.

A consciência viciosa é a consciência da pessoa que não é sincera consigo mesma, conhece bem o

caminho, mas não actua. Aqui temos todos os vícios, que são contrários às virtudes. Esta não tem

nenhum direito. Por isso, há um dever de formar a consciência para que seja recta, pois ser recto

não se nasce, mas aprende-se.

B- A verdade da consciência: se não é verdadeira, a consciência é falsa (errónea)

A consciência verdadeira é aquela que está de acordo com a verdade objectiva; há uma adequação

da verdade pessoal (rectidão) com a verdade objectiva (verdade). Portanto, a consciência é

verdadeira quando se põe em acção: a de perseguir a verdade objectiva e a ela se adaptar.

A consciência falsa é aquela que não está de acordo com a verdade objectiva. Ela é também

designada por consciência errónea. Ela existe em duas formas: a consciência vencivelmente

errónea (é culpavelmente errónea quando o erro pode ser vencido ou superado) e a consciência

invencivelmente errónea (o erro não pode ser descoberto nem superado; a consciência é

inculpavelmente errónea).

Na consciência invencivelmente errónea, é possível que exista o erro na consciência sem que, por

isso, esta perca a sua dignidade e seu valor obrigatório, porque é considerada regra próxima da

moralidade (Rm 14,23; GS nº 16), e porque o homem age de boa-fé, por isso é regra próxima da

moralidade. Ela, por isso, deve ser seguida. Mas a consciência vencivelmente (e por isso

culpavelmente) errónea não pode nunca ser regra de moralidade. É preciso sair dela porque é uma

situação falhada e, por isso, dela sairá falseado qualquer conteúdo da acção. Não deve ser seguida.

4“Conditio sine qua non” é uma expressão latina que significa “condição sem a qual”.

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A definição completa e perfeita da consciência se dá quando há uma adequação entre a verdade

subjectiva e a verdade objectiva. A consciência não é autónoma nem heterónoma, mas “teónoma”:

a consciência não deve seguir uma norma extra (senão fica em jogo a liberdade) nem seguir a

norma inventada pela razão (pois esta é falível e sozinha não é suficiente para a realização moral),

mas deve seguir a voz de Deus que soa no seu interior. É nesta adequação onde se fundamenta a

rectidão (verdade subjectiva) da consciência. A verdade objectiva deve ser igual à verdade da

consciência.

C- A certeza da consciência: se não é certa, a consciência é duvidosa

A certeza significa que existe uma obrigação de buscar e formar uma consciência que seja certa,

porque somente na certeza é que é possível a regra da moralidade. Não se trata de certeza física ou

metafísica, mas de certeza moral prática. Nunca se pode agir com uma consciência duvidosa; pois

é, por consequência, sempre uma acção pecaminosa. É preciso que, antes de agirmos, devamos

tirar todas as dúvidas.

A consciência certa deve ser sempre obedecida quando manda fazer ou quando proíbe. Sempre

deve ser seguida. A razão disto é que a consciência é aquela faculdade apropriada do ser humano

que lhe diz quais são os seus deveres morais.

3.2.4- O desenvolvimento e a formação da consciência

A- O desenvolvimento da consciência

Certa distinção deve ser feita entre a consciência evoluente na criança, que é predominantemente

uma consciência autoritária (must-conscience), e a consciência madura, forma adulta de

consciência (ought-conscience). O importante aqui é saber que no caminho da maturação, a

consciência autoritária da criança se desenvolve em consciência pessoal da pessoa madura.

A consciência da criança se caracteriza por comandos paternais, restrições e proibições. De facto,

a criança não sabe porque deve ou não fazer algumas coisas. Obedece as ordens porque assim estão

prescritas pelos pais. A imitação e a identificação jogam um papel muito importante no

desenvolvimento da consciência da criança.

Como a criança cresce e progride em direcção à maturação, a must-conscience deve ir dando lugar

à ought-conscience do adulto. Esta não é sustentada pelas punições ou imitação externa, mas se

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origina a partir da convicção do próprio valor da obrigação moral, a partir da própria lei da natureza

humana e do apelo divino.

Mas essa transição duma para outra consciência nem sempre se efectua com sucesso. O

crescimento físico, intelectual e moral nem sempre vão juntos. Há pessoas que permanecem com a

consciência autoritária e não alcançam a maturidade e, assim, o seu comportamento moral tem

como seus princípios, leis externas. Existem vários possíveis estágios na transição da must-

conscience para a ought-consience. E a maturidade perfeita da consciência, aquela que chega ao

ponto de fazer seu o dito de Santo Agostinho (ama e faz o que queres), é muito rara.

B- A formação da consciência

Na linha de Haring (1960), e de acordo com o ensinamento da Igreja, há uma necessidade de formar

a própria consciência para que o juízo moral prático possa coincidir com a vontade de Deus e para

que a consciência autoritária da criança chegue a ser a consciência perfeitamente madura do adulto.

Tal formação da consciência deve realizar-se em cada indivíduo no sentido de:

a) Assumir as implicações dos princípios básicos da moralidade;

b) Aprender a como aplicar as normas de tal forma que possa haver um juízo razoável da

consciência;

c) Escutar a verdade e procura-la a partir das fontes onde ela, de facto, pode ser encontrada.

Na formação da consciência, cada um deve estar consciente dos princípios básicos da moralidade

e sobretudo na escuta da voz interior, que é norma interiorizada. Certamente, uma consciência bem

formada é caracterizada por quatro atitudes: racional, autónoma, altruísta, e responsável.

A pessoa deve estar pronta para escutar o que é que a lei prevê como correcção dos seus próprios

pontos de vista e como uma auto-salvaguarda ou defesa contra as influências deformantes dos seus

juízos. Esta cedência à lei não é submissão imatura, mas é a aprovação resultante da iluminação

das próprias limitações e do conhecimento de que as leis morais são fruto da experiência e do

trabalho comum de muitas gerações.

Portanto, a consciência moral, no ser fundamento maior da dignidade humana, deve ser formada.

O dever formal e moral mais fundamental do ser humano é formar a sua própria consciência: “Se

a luz que há em ti se converte em trevas... quão grandes serão as essas trevas” O meu dever formal

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é moral quando é realizado no concreto. A consciência é fazer (e não pensar ou sentir ou teorizar)

o bem e evitar o mal.

3.3- A pessoa humana e o discernimento

A consciência moral é a necessária mediação subjectiva (rectidão) da moralidade. A consciência

não gera a moral porquanto ela não cria a moralidade (o bem e o mal). A matéria do bem e do mal

estuda-se fora da consciência. Contudo, por causa da força manifestativa e obrigante (ou

aplicativa), a consciência exerce uma função de mediação entre a realidade (valor objectivo) e a

actuação da pessoa (situação pessoal). Esta função de mediação é feita por meio do discernimento.

Não é tão claro isto, porém na definição do bem e do mal, o homem é chamado a ter uma saída.

Isto não é feito por uma lei que coage o indivíduo, mas pelo discernimento. Não há moralidade

sem discernimento. O contrário do discernimento é o cumprimento da lei.

A fonte funcional da consciência enquanto estrutura subjectivadora da moralidade é o

discernimento. O verbo discernir refere-se aos processos mentais de juízo através dos quais se

percebe e se declara a diferença que existe entre várias realidades. Utiliza-se comumente em relação

a situações de conteúdo de ânimo interior do homem. Pode ser tratado em dois campos: no terreno

da espiritualidade (quando falamos da discrição do espírito) e no terreno da moral (onde temos o

“discernimento ético” que se chama δοκιμάζειν5).

Em síntese, podemos dizer que o discernimento é busca da vontade de Deus no concreto duma

situação determinada. Não é conduta aleatória, nem abstracta, mas significativa e significante no

momento presente. Coloca-se o eu em discussão contínua e a realidade sujeita a esta discussão

contínua.

3.4- A pessoa humana e a lei moral

3.4.1- A noção da lei moral

A mediação subjectiva da moralidade (a consciência) precisa de categorias das mediações

objectivas (valores e normas). Não há consciência se não estão claros aqueles pressupostos que dão

sentido a essa consciência. A consciência dá princípios teóricos duma possível acção. Os valores e

5 Lê-se dokimádzein. Uma palavra grega que significa discernimento prático. É diferente de diakrínein, que é

discernimento no sentido teórico.

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as normas são dados como actualizações, concretizações, realizações destes princípios. Não é a lei

que determina a acção, mas esta é consequência do que o ser humano quer ser, da sua opção

fundamental.

Na moral tradicional utilizou-se uma categoria para englobar as formas de mediação objectiva da

moralidade. Tal categoria é a lei. As mediações objectivas da moralidade (leis), tendo já clara a

mediação subjectiva da moralidade (a consciência), manifestam-se de múltiplas e várias formas,

das quais, podemos sublinhar três: o valor, a norma e o juízo moral.

A- Conceito de lei moral

Se é verdade que o ser humano lhe foi dado um fim objectivo pelo Criador, então ele deve se

submeter à obrigação de fazer desse fim objectivo o seu fim subjectivo. E quando ele olha para

este fim, uma ordem que deve ser seguida torna-se visível para ele: é a ordem moral. Esta ordem

moral mostra-se por meio da lei moral. Mesmo sabendo que o homem sempre tende a resistir às

leis em nome da liberdade (que é uma falsa liberdade), há um acordo geral de que o homem precisa

de normas morais e de protecção institucional.

Lei, em geral, é um meio ou caminho constante de agir ou reagir, uma regra directiva de actividade.

Existem vários tipos de leis, mas a moral teológica se preocupa por aquelas leis que resultam da

obrigação que o homem tem de orientar toda a sua actividade em direcção a um fim último. Esta

definição inclui demandas obrigatórias como conselhos, recomendações, permissões, proibições,

etc. De acordo com esta definição, toda a lei moral genuína deve ser boa e santa no sentido de que

ela deve cuidar que a actividade humana contribua para a realização do fim último da história

humana e de toda a criação, e prevenir que o homem não se desvie desse fim.

B- A norma moral e a sua ligação com o valor moral

A norma moral é a expressão do valor moral; isto é, uma mediação através da qual se formula o

valor moral. Ela é a expressão lógica enquanto formula com exactidão o conteúdo do valor moral.

Ela é também a expressão obrigante, já que com ela se manifesta a exigência interna do valor moral.

E, por fim, ela é a formulação de princípios morais concretos passando pela estrutura lógica do

discernimento.

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Haring (1960, p. 297) sustenta que a norma da acção, nos casos concretos, costuma apresentar-se

sob forma negativa (“não deves mentir”), ou sob forma positiva (“diz sempre a verdade”). A ideia

de proibição ou de preceito (obrigação) parece ocupar o primeiro plano. Mas, na realidade, ela

somente pode exercer a sua função orientadora partindo de um valor que solicita, e, não em

primeiro lugar, de uma vontade eu impõe a obrigação. Por exemplo, o valor da lealdade. Este valor

é, em si, muito mais rico do que o simples enunciado normativo, que a ele se refere (sobretudo na

sua formulação negativa). Toda a norma autêntica enuncia um valor. E, reciprocamente, todo

valor tende a ser normativo. Até mesmo a mais perfeita realização dos valores morais cai ou pode

cair sob a ideia de norma a ser seguida. Não é a norma como tal, mas o valor, que constitui o

verdadeiro objectivo do acto moral. Somente ele, pela sua própria natureza de valor e pela relação

que ele estabelece comigo, está em condição de traçar-me uma regra de conduta ou uma norma

para o meu comportamento.

Uma norma moral não é uma coacção arbitrária exercida contra a liberdade humana. É um apelo,

que, partindo do objecto, dirige-se à liberdade. É um convite imperioso no sentido de se preservar

e cultivar o valor encarnado pelo objecto, e, por isso mesmo, de preservar a liberdade. Uma norma

que não tivesse como fundamento um valor e não constituísse um dever “válido”, não chegaria a

tornar-se uma obrigação moral. Mesmo em ordens e mandamentos que, de si, podem assumir

formas diversas (preceitos puramente positivos), mister é que esteja contido algum valor, que

coloque a vontade diante de uma solicitação.

3.4.2- A divisão da lei moral

A lei moral, como norma objectiva da moralidade, divide-se em lei natural, lei revelada e lei

humana.

a) Lei natural: é aquela ordem moral que emerge da natureza do homem e de toda a criação e que

pode ser reconhecida pela razão humana. Esta lei é também chamada lei divina natural porque

a sua origem é directamente fundada na vontade de Deus que criou a natureza e que quis que

as leis resultassem da própria natureza.

b) Lei revelada: a lei revelada é, com certeza, de origem divina. Ela pode pôr em palavras ou em

escrito as obrigações da lei natural para imprimir um conhecimento claro sobre eles, como, por

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exemplo, os 10 mandamentos. Ou ela também pode criar obrigações adicionais, tal como os

preceitos sobre o descanso sabático, de leis cerimoniais no AT, ou dos sacramentos no NT. Em

contradistinção à lei divina natural, a lei revelada é chamada lei divina positiva. É chamada

“positiva” porque é posta ou submetida pela vontade autoritativa de Deus que endereça o

homem na revelação. No sentido estrito, leis positivas são somente aquelas obrigações que não

são ao mesmo tempo obrigações da lei natural; isto é, são aquelas cuja existência depende dum

decreto adicional da vontade salvífica de Deus.

c) Lei humana: a lei humana, quer seja natural quer seja revelada, distingue-se da lei divina. A

sua fonte imediata de origem é a autoridade humana, a lei humana pode também reafirmar

obrigações da lei natural; por exemplo, a proibição de assassinar ou roubar. Ainda em alguns

outros casos, a lei humana instituirá regulamentos que não são requerimentos directos da lei

natural, mas sim fruto da vontade razoável do legislador; como por exemplo, a fixação do

período necessário para a prescrição duma dívida. Onde o objecto da legislação humana são as

leis naturais, as sanções pela transgressão dessas leis, que são normalmente adicionados pela

lei criminal, não são preestabelecidas pela lei natural. A lei humana se subdivide em: lei civil

do Estado e lei eclesiástica da Igreja, que, na Igreja Católica, é chamada lei canónica. A lei

canónica está contida no Código do Direito Canónico.

Usualmente, a lei humana distingue-se da lei moral no sentido estrito, a qual (a lei moral)

compreende somente a lei natural e a lei divina positiva. Mas sustenta-se que toda a lei humana

justa une-se à consciência. Mas, por outro lado, as leis injustas de princípio não se ligam com a

consciência e, assim, não é aconselhável obedecer tais leis, o que significa que do ponto de vista

da moral, elas não são leis válidas ao todo. Desde então, toda a lei humana justa leva à obrigação

moral.

3.4.3- A lei nova

A lei antiga não existe mais. Ela era uma lei exterior e de formulação negativa. Agora temos uma

lei nova: é a lei do coração, de dentro. Não diz “não matarás”, mas diz “a vida humana é um valor

primário”. Não diz “não roubar”, mas diz “tudo te pertence, mas respeita as coisas do outro”. É,

portanto, preciso mudar o coração.

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3.5- A pessoa humana e a opção fundamental

As acções humanas não constituem uma pluralidade de acções isoladas e desconectadas. Todas

elas têm normalmente as suas raízes nas decisões básicas que dão um sentido e uma determinação

à vida do ser humano enquanto um todo. Assim acontece porque a vida é uma tarefa coerente, que

deve ser cumprida pelo ser humano. Cada empreendimento criativo que o ser humano realiza não

é a partir de decisões independentes e separadas, mas é na base dum plano ou projecto fundamental,

existencial, dando assim à vida um sentido de unidade. É na base desse plano ou projecto

fundamental que as acções particulares poderão ser preferidas ou admitidas ou rejeitadas.

A decisão por meio da qual a pessoa abraça esta orientação básica pode ser denominada de opção

existencial ou fundamental. Apenas decisões dessa natureza fazem com que alguns actos sejam

moralmente graves, ou capazes de trazer consigo o comprometimento com a bondade ou a

santidade, situação que os cristãos chamam de estado de graça, ou trazer aquela radical recusa da

pessoa ao seu destino verdadeiro, que chamamos de pecado mortal. Na opção fundamental, a

pessoa decide qual será o valor que irá adoptar como o supremo valor para a sua vida. Por isso,

este tipo de escolha deve ser distinto das escolhas particulares.

A escolha fundamental é aquela em que a pessoa joga a sua existência. E a decisão aqui tomada é

uma decisão para ser ou para não ser, para dizer sim ou não a Deus. E, por meio das acções diárias,

cada um escolhe o tipo de pessoa que quer ser de acordo com o sim ou o não fundamental que tiver

dado a Deus, e que orienta a sua existência. É nesta linha que o pecado torna-se pecado como

decisão de dizer não a Deus.

Portanto, pode-se dizer que ter uma opção fundamental significa:

a) Ter um modelo de vida;

b) Ter uma consciência recta, verdadeira e certa;

c) Ter ideia de quem a pessoa é.

Isto constitui a premissa de todo o viver moral. Mas o problema grave que o homem enfrenta é que

ele próprio sabe que não há um modelo de vida, ele sabe que a sua consciência, não poucas vezes,

se encontra viciada, no erro e na dúvida, e ele próprio sabe que a pergunta quem sou eu? constituirá

sempre uma questão aberta e sem resposta satisfatória.

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O homem deve, em cada dia e em cada momento da sua vida, procurar descobrir o seu modelo de

vida, deve sempre escolher o mesmo e esta escolha deverá consistir na anulação total das outras

alternativas, que também são boas.

Então qual será o caminho a seguir? J. Fuchs vai dizer que a opção fundamental é uma decisão

básica ou um acto maduro de autodeterminação. Isto significa que a opção fundamental é uma

decisão de coerência interna e compõe-se dum conjunto de valores. E podemos concluir dizendo

que é a força que move e determina o agir do ser humano.

3.6- A pessoa humana e a liberdade

Diz a Sagrada Escritura: “Deus quis deixar ao homem o poder de decidir” (Eclo. 15,14). Por isso,

a dignidade do homem exige que ele possa agir de acordo com uma opção consciente e livre;

movido e levado por convicção pessoal e não por força de um impulso interno cego ou debaixo de

mera coacção (Pontifício Conselho “Justiça E Paz”, 2002, n.135).

O que caracteriza a pessoa humana é a liberdade. Perante este facto, uns afirmam a existência da

liberdade e outros a sua não existência. Estas tendências partem de como definem o homem. Para

definir o homem podemos encontrar duas tendências: uma individualista que encerra o homem na

sua individualidade, afirmando que o homem é ser em si mesmo, e outros de tendência altruísta

que afirmam que a pessoa humana é um ser em relação.

Descartes definiu o homem a partir de si mesmo. Ė no “cogito ergo sum” que encontramos o

significado do homem. Para Descartes o homem é um ser egoísta e individual, cujo centro de

atenção é ele mesmo. Martin Buber, diferentemente, vai dizer que o homem é um ser de relações.

O idealismo hegeliano não dá liberdade ao homem. A pessoa é ser de relação com o absoluto. Na

relação com o absoluto o homem é absorvido. O absoluto engole a pessoa.

No marxismo, como no idealismo, o homem é apresentado como um ser de relações. O homem é

o ser que entra em relação com a comunidade e esta o devora. A comunidade é o centro das

atenções. Não existe o homem individual, mas o homem colectivo.

O existencialismo está mais para o sentido. O que existe está para fora. Gabriel Marcel diz que a

pessoa está na relação eu-tu, através do diálogo comunicativo. O homem é ser com os outros. Karl

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Jaspers distingue três elementos na pessoa: ser histórico, ser em si mesmo e ser comunicativo.

Sartre distingue o homem dos outros objectos. O homem é ser para si. O nada cria-se a partir do

ser.

A antropologia teológica afirma que o homem é pessoa enquanto tem relação com Deus. Deus é

para o homem um “eu” e um “tu”. O homem é pessoa na medida em que se personaliza em Deus.

O homem é um ser livre porque Deus é absolutamente livre. Ė livre na medida em que pode

escolher. O homem em comparação com o animal é livre porque o animal não muda de

procedimento, não tem capacidade de escolher, não tem projecto, não pode progredir nem regredir,

depende de sua condição natural.

Liberdade é a capacidade de dizer sim ou não ao bem e também de dizer sim ou não ao mal. Por

isso, perante o sim ao bem, o homem recebe louvores e graças por parte dos homens e de Deus, e

perante o sim ao mal o homem recebe repreensão e castigo. Por isso, na liberdade, está implicada

uma responsabilidade. A liberdade de (escolha) é ao mesmo tempo uma liberdade para

(responsabilidade). “Liberdade é capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir

ou sua omissão, respectivamente para este ou aquele agir” (RABUSKE, Edvino A., Antropologia

Filosófica, Petrópolis, Vozes, 2001. p.89).

Trata-se de um poder, do eu mesmo que se refere a um acto que tem um objecto. Isto implica duas

situações: primeira, determinado acto deve ser posto ou não e, segundo, eu me decido ou não por

este ou aquele modo de agir. No acto livre, a decisão da minha liberdade é a causa primeira para

que a minha liberdade se torne assim e não de outra forma. Então, no querer livre aparece o agarrar-

se à possibilidade ou aos objectivos. Por isso, a liberdade não é somente a capacidade duma escolha

mas uma decisão sobre mim mesmo e as possibilidades da minha própria existência. A liberdade

de escolha pressupõe como condição de possibilidade que o homem seja livre e tenha autonomia,

espontaneidade, abertura ao ilimitado, e não esteja amarrado, determinado. Esta propriedade é

liberdade fundamental.

A liberdade é uma propriedade da vontade, do querer, do tender. O que pretende é o bem, o valor.

A capacidade de decidir-se livremente por um determinado bem supõe o conhecimento de que este

bem é parcial. Mas o homem não é simplesmente livre como uma pedra. A consciência da liberdade

deve ser conquistada pelo homem.

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UNIDADE IV – A PESSOA HUMANA COMO SUJEITO DE VALORES

CONTEÚDOS DA QUARTA UNIDADE

4.1- Conceito de valor e de valor ético

4.2- Objectividade e subjectividade do valor e dos valores

4.3- Historicidade dos valores

4.4- Hierarquia dos valores.

4.5- Alguns valores éticos: a sinceridade, a honestidade, a felicidade, etc.

4.6- A pessoa humana, os valores e as virtudes.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA QUARTA UNIDADE

Levar os estudantes a discutirem em torno do conceito de valor e de valor ético, a saberem

distinguir entre o valor em si e o valor ético (moral), a fazerem a distinção entre o valor e os valores,

sua objectividade e sua subjectividade, a analisarem alguns valores éticos (como a sinceridade, a

honestidade, a felicidade, etc.), a analisarem a questão da hierarquia dos valores de acordo com

diferentes critérios e diferentes autores, e a discutirem a importância das virtudes como disposições

e como frutos dos valores no crescimento moral da pessoa humana.

4.1- Conceito de valor

Etimologicamente, valor provém do latim, valere, ou seja que tem algum custo. O conceito de valor

frequentemente está vinculado à noção de preferência ou de selecção. Não devemos porém,

considerar que alguma coisa tem valor apenas porque foi escolhida ou preferida, podendo esta ter

sido escolhida ou preferida por um motivo específico. Segundo Rokeach, valor é uma crença

duradoura em modelo específico de conduta ou estado de existência, que é pessoal ou socialmente

adoptado, e que está embasado em uma conduta preexistente. Os valores podem expressar os

sentimentos e o propósito de nossas vidas tornando-se muitas vezes a base de nossas lutas e de

nossos compromissos. A cultura, a sociedade e a personalidade antecedem os nossos valores e as

nossas atitudes, sendo o nosso comportamento a sua maior consequência. Podem se destacar alguns

valores, como por exemplo: o respeito, perdão, generosidade, amor, etc.

Podemos também definir o valor de seguinte maneira: aquilo que faz com que uma coisa seja digna

de ser tal, uma acção seja digna de ser actuada, e uma pessoa seja digna de existir como pessoa.

Portanto, entra a questão de dignidade, merecimento inerente a si. Dizer que viver é um valor

significa dizer que vale a pena viver, é digno viver independentemente da pessoa que vive.

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4.2- O valor moral

4.2.1- Tentativa de definição

Pode-se entender o valor moral como sendo toda aquela atitude ou conduta que uma determinada

sociedade considera indispensável para a convivência, o bem geral e a ordem. O valor moral

participa da natureza e das características próprias do valor em geral. Não existe característica

própria do valor moral, porque este tem sentido se o valor em geral tem sentido. Acerca da

definição, o que podemos fazer é dá-la ou a nível ético ou a partir de convencimentos culturais

religiosos, ou a partir de alguns elementos tradicionais. Existe teoricamente alguma pista do valor

(algo de específico) na linha moral: o valor moral se coloca na estrutura da acção humana enquanto

humana; isto é, enquanto a acção humana define o próprio ser humano. Se a acção humana define

o ser humano, então o valor moral se coloca nessa acção humana. O valor moral tem por “natureza”

acções livres nas quais o homem se define a si mesmo. As acções livres definirão, portanto, o valor

moral.

4.2.2- Características do valor moral

a) O valor moral faz referência imediata e directa à subjectividade. Esta subjectividade deve ser

entendida como “intencionalidade”, como “liberdade” e como “compromisso interno”. A

liberdade tem que ter um aspecto objectivo e a acção tem que ser concreta e exteriorizada,

porque os outros (a sociedade, a cultura, a Igreja, etc.) devem julgar a minha acção para dizer

se o valor é ou não objectivo. Se não há subjectividade do valor moral então não pode haver a

objectividade do valor moral.

b) O valor moral se impõe por si mesmo; isto é, tem uma justificação por si mesmo.

c) O valor moral tem como características: a relação com os outros valores; não estão separados;

e existe uma ordem de valores, que têm uma inter-relação entre eles (ex.: liberdade –

responsabilidade – justiça, andam juntos).

d) O valor moral é o que condiciona a pessoa na sua realização; dá razão, justifica o facto de a

pessoa ser homem, onde existe e há interligação entre responsabilidade e liberdade.

Nesta referência, o valor moral fala em relação à construção normativa do humano. Na realização

ideal do humano reside o constitutivo do valor moral. E, para se realizar este valor moral, podem

ser usadas diversas fórmulas como a seguinte:

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a) O constitutivo intra-mundano do valor moral cristão consiste no dinamismo da humanização

crescente, na história da humanidade. Para Paulo VI, esta ideia significa promover todos os

homens e o homem todo, pois:

b) O homem é um processo histórico e não uma realidade abstracta.

c) O dinamismo, sempre crescente, não é repetição de algo previamente dado. Há que

experimentar se as leis preexistentes respondem a este dinamismo crescente ou não.

d) A libertação de cada homem e de todos os homens realiza-se sem concessões fáceis por um

lado a visões totalitárias que esvaziam o valor do indivíduo e, por outro lado, a visões liberais

que não têm proposições libertadoras em relação à actividade humana.

e) O desenvolvimento da humanidade eleva as capacidades humanizadoras do “ego” e do “outro”

e das “estruturas sociais”.

f) O homem comprometendo-se no concreto e utilizando uma imaginação criadora, busca uma

nova humanidade.

4.3- Objectividade e subjectividade do valor e dos valores

Comecemos com a seguinte pergunta: o valor é inerente à coisa em si ou diz respeito à pessoa que

o aprecia num outro objecto? A resposta é: o valor é inerente à coisa em si e diz também respeito

à pessoa que o aprecia. Ou por outra, o valor é ao mesmo tempo objectivo e subjectivo. Para tal,

temos que levantar o assunto da quantificação dos valores: quantos valores existem? Há mais

importantes e menos importantes? Objectivamente falando, existe o valor principal gerador de

todos os outros? A ideia de que Deus é o valor supremo é aceite por todos? Haverá pessoas que

negam que a vida seja um valor para todos? Se se pode falar da perca de valores, a vida em si

também pode perder o seu valor? Quando dizemos que alguma coisa perdeu seu valor, certamente

pretende-se dizer que a coisa já não tem função para a pessoa. Aqui levanta-se a questão do

relativismo dos valores: são relativos ou absolutos? Enquanto algo mantiver o seu valor,

necessariamente empenha a pessoa para a sua realização. Os valores mexem connosco, criam em

nós motivos e forças suficientes para fazermos o que o valor requer para a sua efectividade.

Por um lado, existem tantos valores quantas coisas, acções e pessoas existem. Mas por outro lado,

no sujeito, existe um e somente um valor: a disposição do sujeito para reconhecer o valor de cada

coisa e deixar-se arrastar por ele. Tal disposição interior é fruto de educação, de assimilação, de

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processo de interiorização (consciente e inconsciente), de meditação, pois essa disposição interior

implica uma certa postura ético-religiosa de simpatia, de sinergia, de afeição, de amor, de estima

diante das coisas, das acções e dos outros.

Portanto, o valor tem sua existência na fusão, no contacto, na relação entre a pessoa e a outra

realidade, uma relação que torna possível a realização da pessoa nesse contacto com tal realidade.

O valor tem uma carga de objectividade (por causa da ligação directa à realidade) e uma carga de

subjectividade (porque empenha o sujeito na sua compreensão e na sua realização). Nos valores, a

pessoa e a comunidade realizam a sua identidade quer como indivíduo, quer como grupo. Por isso,

dizemos também que o valor está ligado à imagem de homem e de comunidade que temos de nós,

o valor está ligado à realização dessa imagem em nós. Por isso, os valores são um dos elementos

básicos em que uma cultura que tem uma identidade própria joga a sua existência.

Mas pensemos nisso: o valor moral refere-se, por um lado, a realidades absolutas, e, por outro lado,

é, ao mesmo tempo, e dialecticamente, imutável e mutante, único e diverso, universal e situacional.

Tendo em conta que os valores são mutáveis podem condicionar as futuras normas, para daí fazer-

se o juízo moral. Portanto, o valor é o fim dum processo. Os valores morais são mutantes, plurais

e situacionais na medida em que tal constitutivo se encarna necessariamente na história e na cultura

de cada um, em particular, e de todos, em geral. A “captação” dos valores a partir da consciência

moral e mediante o discernimento ético é a assimilação dos valores éticos que se realizam e se

convertem em atitudes (acções). Neste contexto, se as atitudes não estão de acordo com a estrutura

ética, então o homem não é moral. (Laissone, 2012).

O valor da pessoa humana, da vida e de outros aspectos ligados à dignidade da pessoa humana não

são discutíveis, mas são definidos como algo que deve ser respeitado por todos sem qualquer

distinção. Seriam, neste caso, valores objectivos. Esses valores, numa sociedade que prima por uma

vida moral elevada, são caracterizados por uma condição constitucional ou jurídica normada, isto

é, são contemplados como leis positivas, com carácter de obrigação jurídica.

4.4- A perenidade e a historicidade dos valores

Com o evoluir do ser humano e da comunidade cultural, os valores mudam, pois estes acompanham

a evolução da história e da cultura do povo. O tipo de respostas que cada sociedade precisa de dar

para os seus problemas concretos muda com o andar do tempo. Isto não significa perda de valores,

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mas significa renovação dos mesmos valores em função da nova imagem da comunidade e do

indivíduo que se vai impondo gradualmente com o andar do tempo.

Mas entre os pensadores desta problemática, há uma séria discussão: Serão os valores perenes, isto

é, independentes do tempo, do espaço e dos seres humanos concretos que os realizam? Ou, pelo

contrário, dependem das épocas, dos homens e das culturas? Os defensores da primeira tese fazem

parte das chamadas correntes essencialistas ou substancialistas, os da segunda pertencem às

correntes relativistas.

4.4.1- Teorias essencialistas: perenidade dos valores

Segundo as teorias da perenidade dos valores, as coisas, os objectos, as acções dos homens, são

portadoras de valores, mas estes estão mais além, numa esfera distinta que poderemos designar

como ideal. Os valores, que são realidades irreais, tornam-se reais, isto é, assumem uma existência

concreta, encarnam-se. O valor não é um ser em si mesmo, mas um ser que está noutro ser. Assim,

por exemplo, um valor estético converte-se em existencial no quadro do pintor; o valor ético, na

acção do homem virtuoso. O quadro do pintor passa a chamar-se ‘belo’; a acção do homem, a

chamar-se ‘boa’. Isto é: os valores, portanto, só podem tornar-se existenciais sob a forma de

qualidades, características, modos de ser. Não possuem um ser independente, mas são de certo

modo “trazidos”, “sustentados” pelos objectos nos quais se realizam; estes objectos tornam-se o

seu “suporte”. As coisas são então “portadoras” dos valores.

Nestas correntes, o conteúdo dos valores é absoluto e imutável. A apreensão que fazemos dos

valores pode variar com os costumes, os hábitos, as instituições, as épocas, as culturas e os

indivíduos, mas os valores, enquanto essências situadas num plano ideal, permanecem intactos.

Podem ser melhor ou pior captados ou formulados, mas, em si mesmos, permanecem absolutos e

imutáveis. (Johannes Hessen, A filosofia dos valores).

4.4.2- Teorias relativistas: historicidade dos valores

Estas teorias rejeitam o carácter absoluto e objectivo dos valores e afirmam a sua historicidade. Os

valores não pairam fora do tempo, não são imutáveis mas relativos. Dependem dos contextos

culturais e civilizacionais, das épocas e dos indivíduos concretos que os produzem.

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De um modo geral, as teorias relativistas partilham a tese segundo a qual descobrir os valores é

descobrir a actividade do sujeito. Não faz sentido falar de valores abstraindo-se o sujeito ou

minimizando-o, como defendem as teorias essencialistas que tratam os valores como formas

intemporais. Pelo contrário, para os relativistas, o sujeito é o elemento decisivo e os valores são o

resultado da sua actividade. Neste sentido, os valores são subjectivos, isto é, são o resultado da

acção e da apreensão de um sujeito.

Assim, para o relativismo axiológico, os valores respondem às características e às necessidades

específicas das sociedades, dos indivíduos ou dos períodos históricos determinados. Como tal, são

mutáveis, tal como os homens e as sociedades que os produzem. Não existem valores universais.

4.5- A hierarquia dos valores

O grande problema sobre os valores está na determinação da sua hierarquia. É fácil dizer que há

uma hierarquia, mas o difícil é formulá-la. É importante a reflexão feita por Vieira Miguel Manuel

(2015), no seu artigo intitulado Classificação, hierarquia e polaridade dos valores, que ora

apresentamos.

A certeza que temos é que não atribuímos a todos valores a mesma importância. Na hora de

tomarmos uma decisão, cada um de nós hierarquiza os valores de forma muito diversa. A

hierarquização é uma propriedade que tem os valores de se subordinarem uns aos outros, isto é, de

serem uns mais valiosos que outros. As razões porque o fazemos são múltiplas. Por exemplo, a

maioria da população mundial continua a passar graves carências alimentares. Todos os anos

morrem milhões de pessoas por subnutrição. É de esperar que na hierarquia dos valores destas

pessoas, a satisfação das suas necessidades biológicas esteja em primeiro lugar.

Os valores têm a particularidade de se distinguirem uns dos outros, de estabelecerem entre eles

uma relação de polaridade que os faz distinguir em negativos e positivos, de se distinguirem entre

eles como valores mais altos e mais baixos, encontrando-se ao mesmo tempo numa relação de

hierarquia uns com os outros.

À problemática da hierarquia dos valores, dedicou-se sobretudo Max Scheler (citado em Manuel,

2015), que nos forneceu cinco critérios para determinar a altura dos valores:

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a) Em primeiro lugar, é o critério da duração: os valores são tanto mais altos quanto maior for a

sua duração. Duradouro é o valor que se prolonga no tempo. Dos valores faz parte o fenómeno

de duração e perdurabilidade. Os valores mais baixos são os mais transitórios e de menos

duração e os mais altos são os eternos.

b) Em segundo lugar, é o critério da indivisibilidade: os valores são tanto mais altos quanto menos

divisíveis forem. Enquanto os bens materiais, para poderem ser participados por todos, têm de

ser divididos (tal acontece com os recursos alocados à saúde, para todos poderem participar

deles, têm de ser distribuídos), com os valores espirituais tal não se passa, uma vez que é da

sua essência serem ilimitados, não sofrendo divisão; a contemplação do divino é algo que pode

ser realizado por uma pluralidade de sujeitos, não sofrendo por isso qualquer tipo de divisão ou

de diminuição.

c) Em terceiro lugar, é o critério da fundamentação: o valor que serve de fundamento a outros é

mais alto que os que se fundam nele.

d) Em quarto lugar, é o critério da satisfação profunda: os valores são tanto mais altos quanto

mais profunda é a satisfação que a sua realização produz em nós.

e) Em quinto lugar, é o critério da relatividade: os valores são relativos. Existem valores que só

podem ser praticados por determinados seres. O valor da saúde (valor vital), por exemplo, só é

relativo aos seres com vida, aos seres vivos.

Estes critérios para determinar a altura dos valores foram alvo de algumas críticas sobretudo da

parte de Hartmann (citado por Manuel, 2015), que considerou que originavam uma escala muito

grosseira e que as distâncias entre os vários valores se encontram esboçadas ainda de uma forma

muito sumária. Em todo o caso pode-se sustentar que o trabalho feito por Scheler foi muito

importante, na medida em que já permitiu com alguma objectividade determinar a altura das

diferentes classes de valores relacionando-os uns com os outros.

É evidente que não valoramos toda a acção moral da mesma maneira, mas a nossa consciência

valorativa consegue atribuir mais valor à acção de um profissional de saúde que, com uma decisão

ponderada, conseguiu salvar a vida a um doente, do que a um acto de dar esmola a um pobre.

Eis um exemplo concreto duma hierarquia dos valores no diagrama seguinte:

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Figura 1: Hierarquia dos valores

Fonte: adaptado de Hierarquia de valores.

Como se pode ver neste diagrama, a conexão entre o valor primário e os secundários se realizam

por meio do que se pode chamar de convivência social condicionada.

A vida (vida humana) é o valor fonte ou fundamental do qual depende a existência do ser humano

(a pessoa). A vida é um valor vital: nascer vivo é condição da personalidade. A vida em sociedade

(convivência social condicionada) é condição intermediária e indispensável para o

desenvolvimento do ser humano, pois o ser humano não se realiza vivendo isoladamente, sem

contacto com seus semelhantes. É na convivência social onde se realizam e se tornam necessários

os valores secundários, a saber, o amor, o respeito, a dignidade, a verdade, a bondade, a justiça etc.

Todavia, implícito no amor encontramos o respeito, o perdão, a complacência, a condescendência,

o afecto, a pureza, a obediência. A verdade implica rectidão, franqueza, sinceridade. O bom

envolve o benévolo, o bondoso, o benigno. Belo é o agradável, o sublime, o majestoso, o grandioso,

o imponente. Útil é o favorável, o lucrativo, o proveitoso, o vantajoso. Nobre é o generoso,

longânime, o magnânimo (grandeza de alma). Bem é o que é certo (correcto) o que causa felicidade

e benefício nas pessoas. Justo é o equitativo, o imparcial o preciso. Digno é o apropriado (o

adequado), a decência e o decoro que exigem respeitabilidade.

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Depois desta breve reflexão sobre a hierarquização dos valores, podemos extrair os seguintes

princípios gerais acerca duma escala ou hierarquia de valores:

a) Os valores espirituais prevalecem sempre sobre os valores sensíveis;

b) Se exceptuarmos os valores religiosos, na classe dos valores espirituais o primado pertence aos

valores éticos;

c) Para aqueles que os admitem, os mais altos de todos os valores, são os valores religiosos; todos

os outros se fundam neles.

4.6- A tipologia ou classificação dos valores

4.6.1- Tipos de valores

Os valores são como que a coluna vertebral de uma convivência sã entre os seres humanos. Mas

essa coluna vertebral constrói-se com os nossos valores individuais, com nossos valores familiares,

incluindo até os nossos valores regionais e nacionais. Mas tudo começa com a pessoa.

Não existe um ordenamento desejável ou uma classificação ou tipologia única dos valores. As

hierarquias valorativas são mutáveis, flutuam de acordo com as variações do contexto. É

importante que a maioria das classificações propostas inclua a categoria de valores éticos e valores

morais. Estes são alguns dos muitos valores que regem a nossa vida e o nosso comportamento:

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Figura 2: Tipologia dos valores

Fonte: https://sites.google.com/site/wikiejetransformadorescolar/, 2 de Fevereiro de 2017.

Uma outra classificação ou tipologia dos valores consiste na distinção entre valores instrumentais

e valores finais (ou terminais). Para Rokeach (1973, citado por Sousa Jr., 2010), os valores finais

são os valores desejáveis e referem-se às metas que uma pessoa gostaria de atingir em sua

existência. Já os instrumentais, contêm os valores preferenciais de comportamento ou os meios

para se atingir os valores terminais. De acordo com a pesquisa deste autor, os grupos de valores

podem ser subdivididos conforme o critério no foco para o qual está centrado, ou seja, centrado na

pessoa ou indivíduo (self-centered) ou no grupo (social-centered), conforme demonstrado no

esquema a seguir:

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Figura 3: Tipologia dos valores de acordo com a sua natureza (terminais versus instrumentais)

Fonte: adaptado de M. Rokeach (1973, citado por Sousa Jr., 2010).

4.6.2- Valores éticos fundamentais: liberdade, justiça, responsabilidade e verdade

Os valores éticos podem ser muitos, muito variados e com diferentes percepções. Mas o ser humano

conta com quatro valores éticos fundamentais, que poderia dizer-se, são a base ou o alicerce da

educação das pessoas entre elas mesmas. Estes valores estão presentes e enraizados dentro da nossa

consciência e do nosso actuar. Quando se fala de algo fundamental, está-se a falar de algo sem o

qual nada podemos fazer. Por isso, esses valores são de extrema importância.

A aplicação desses quatro valores é fundamental para uma sã convivência do ser humano em

sociedade. Agora vejamos em que consiste cada um deles.

a) A liberdade: Define-se como sendo a qualidade que qualquer ser humano tem de escolher o seu

destino, de decidir por si mesmo sobre os seus próprios actos, quer dizer, eu sou livre quando

não há nada e ninguém que decide por mim. Algo importante que se deve recordar em relação

à liberdade é que assim como sou livre para escolher os meus actos, assim também devo ser

responsável pelas consequências desses mesmos actos, caso contrário, estaria a cair na

libertinagem, que significa não assumir as consequências dos meus actos. É nessa linha que a

liberdade pode-se definir como a capacidade que o ser humano tem de escolher o melhor para

o seu crescimento e, consequentemente, o crescimento da sociedade.

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b) A justiça: Este valor ético é a qualidade de dar a cada um aquilo que por direito lhe corresponde,

seja bom ou mau. A justiça é cega, quer dizer que não olha para quem julga. Desta maneira,

não haverá parcialidade no momento de dar o seu merecido a uma pessoa.

c) A responsabilidade: A responsabilidade é a faculdade humana de assumir as consequências dos

seus próprios actos, é cumprir com as obrigações contraídas, quer seja por meio de um contracto

legal ou seja pela palavra dada a uma pessoa. Ser responsável é cumprir com os deveres

contraídos, apesar de todos estes não serem cómodos. Um exemplo prático de responsabilidade

é quando se tem um filho, o qual é consequência do acto meu e da minha parceira, este filho

vai precisar do meu sustento económico, imputa-me a responsabilidade de ter que lhe dar de

comer e de vestir, e para isso, devo conseguir um trabalho, que, mesmo que seja pesado, devo

aceita-lo para proporcionar o sustento ao nosso filho, e isto far-nos-á responsáveis desse nosso

acto.

d) A verdade: A palavra verdade é muito usada para se referir a uma pessoa honesta, sincera e de

boa-fé, uma pessoa na qual podemos confiar. A verdade é o que define o real do falso, algo

verdadeiro é algo que podemos comprovar. O ser honesto significa cumprir com o que ofereço.

“A verdade vos libertará” é uma frase que se encaixa perfeitamente, já que só com a verdade

poderemos distinguir o bem do mal e sermos pessoas melhores.

4.6.3- Alguma lista de definições de alguns valores éticos

A lista é muito grande. E nem pretendemos esgotar todos os valores éticos. Mas, partindo de

Aristóteles, podemos dizer que ele sintetizou os valores éticos em: coragem, temperança, liberdade,

magnanimidade, mansidão, franqueza e justiça. A moral relaciona-se com a nossa maneira de agir,

enquanto a ética conduz-nos à reflexão em torno do que é certo ou errado naquilo que fazemos. Os

valores, por sua vez, definem o que eu quero, o que eu posso e o que eu devo, porque nem tudo

que eu quero eu posso, nem tudo que eu posso eu devo, e nem tudo que eu devo eu quero.

Eis alguns valores éticos e suas definições:

a) Justiça: é o conjunto de regras estabelecidas em cada sociedade, com as quais se consegue uma

convivência cordial, respeitando os direitos iguais dos demais seres humanos. Isto se consegue

autorizando, permitindo ou proibindo certas acções específicas que podem afectar ou beneficiar

o colectivo social.

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b) Honestidade: define-se como uma característica humana que faz com que o ser humano se

deixe conduzir na sinceridade e na justiça, expressar o respeito por si mesmo, por alguém em

si mesmo assim como em suas acções, e respeitar a todos os demais.

c) Pertença: é um valor no qual se considera cada um dos membros da nossa comunidade ou

grupo como família e portanto junto com essa pessoa se assumem e se afrontam seus sucessos

e fracassos. A pertença não se infere, ela se sente, se experimenta.

d) Respeito: trata-se de reconhecer os direitos iguais de todos os indivíduos assim como da

sociedade em que vivemos. O respeito consiste em aceitar e compreender as diferentes formas

de actuar e de pensar do outro ser humano, sempre e quando não contradizem nenhuma norma

ou direito fundamental. Respeitar a outra pessoa é colocar-se no seu lugar, cuidar de entender

o que é que a motiva e, com base nisso, ajuda-la se for o caso.

e) Lealdade: a lealdade, sendo uma característica que leva o ser humano a ser fiel e agradecido a

uma outra pessoa ou entidade, consiste em nunca abandonar ou deixar a sua sorte uma pessoa,

ou grupo social ou país. O contrário da lealdade é a traição. Por isso, nunca trair uma pessoa

ou uma nação é ser leal.

f) Humildade: a humildade consiste em aceitarmo-nos tal como somos, com os nossos defeitos e

as nossas virtudes, sem querermos nos enaltecer por causa das nossas posses materiais ou por

causa do nosso grande conhecimento intelectual. Ser humilde é incompatível com o ser

pretensioso, egoísta ou interesseiro.

g) Responsabilidade: é o valor moral que permite a uma pessoa administrar, Valor moral que

permite a una persona administrar, reflexionar, orientar e valorizar as consequências dos seus

actos. Ser responsável é sempre imputar-se os actos realizados por nós mesmos, aceitando as

consequências, sejam elas boas ou más, do nosso agir quer no âmbito pessoal ou laboral.

h) Sinceridade: é o valor ético que dignifica os seres humanos pelo facto de terem uma atitude de

acordo com os seus princípios e consequentes consigo mesmos, mantendo a sinceridade diante

de diversas situações, sendo honestos para com todos. Uma pessoa sincera sempre dirá a

verdade mesmo que isto custe algum prejuízo para ela ou mesmo para a sua família.

i) Tolerância: este valor é tido como parte do processo que temos na vida de admitir a igualdade

de direitos humanos respeitando as múltiplas diferenças existentes entre os seres humanos, com

o fim de conservar melhores relações pessoais.

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j) Solidariedade: se define como a capacidade de trabalhar em equipa respeitando e ajudando os

outros o mais que se pode, comprometidos por uma meta em comum. A solidariedade provém

do instinto humano de buscar a convivência social, de se sentir irmanado com os seus

semelhantes, estabelecendo com eles uma total cooperação em projectos ou metas em comum.

4.7- A pessoa humana, os valores e as virtudes

4.7.1- A natureza das virtudes

A virtude é um hábito que nos dá ao mesmo tempo a inclinação e a força para fazer bem aquilo que

é moralmente bom. Diz o Catecismo da Igreja Católica que a virtude é uma disposição habitual e

firme para fazer o bem. Ela permite não só a pessoa praticar actos bons, mas também a se empenhar

para dar o melhor de si. Com todas as suas forças sensíveis e espirituais, a pessoa virtuosa tende

sempre ao bem, procura-o e escolhe-o na sua vida prática. Mas este bem deve ser reconhecido

como um bem maior.

Por isso, na linguagem religiosa, as virtudes têm em vista o supremo bem, que coincide com Deus

e com a realização da sua vontade. Dizia S. Gregório de Nissa que “o objectivo da vida virtuosa é

tornar-se semelhante a Deus” (nº1803). Neste sentido, uma virtude genuína brota a partir duma

correcta opção fundamental. Ela está enraizada numa inequívoca e bem definida orientação para

um fim supremo, que é a glorificação de Deus e a realização do seu plano salvífico para o ser

humano e para o mundo todo. É essa orientação que dispõe a vida da pessoa no seu todo e imprime

nela uma ordem. Todas as virtudes particulares ganham o seu sentido na medida em que

permanecem enraizadas numa opção verdadeira e numa escolha existencial, que consiste no

inequívoco amor a Deus e à sua vontade.

4.7.2- As virtudes humanas

As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência

e da vontade que regulam os nossos actos, ordenando todas as nossas paixões e tendências

instintivas e guiando-nos segundo a razão e a fé. Propiciam assim a facilidade, o domínio e a alegria

para levar uma vida moralmente boa. Uma pessoa virtuosa é aquela que por vontade totalmente

livre, escolhe e pratica o bem (CIC, nº1804).

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As virtudes humanas são adquiridas pela educação, por actos deliberados e por uma perseverança

sempre retomada com esforço. O religioso acredita que elas são purificadas e elevadas pela graça

divina, pois, com o auxílio de Deus, elas forjam o carácter e facilitam a prática do bem. Por isso, o

homem virtuoso sente-se feliz em praticá-las (CIC, nºs 1810-1811).

4.7.3- A primazia da caridade e a diversidade das virtudes

A caridade é a maior de todas as virtudes. Diz o Concílio Vaticano II que “o primeiro e o mais

necessário dom é aquela caridade por meio da qual nós amamos Deus acima de todas as coisas, e

o próximo por causa de Deus” (LG, nº 42).

A principal virtude, neste caso a caridade, adquire a sua perfeição se e somente se o ser humano

possui todas as outras virtudes particulares ancoradas a esta virtude principal. De facto, a caridade

só pode ser perfeita somente se o ser humano não é apenas justo, generoso e honesto, mas também

quando for paciente, compassivo, dócil, agradecido, etc. Assim, a caridade não pode coexistir com

algum hábito mau. Nesta vertente, a proposição dos estóicos é verdadeira: o ser humano ou tem

todas as virtudes ou não tem nenhuma. Por isso, a adesão deliberada ao vício torna-se totalmente

incompatível com a virtude da caridade, ou por outra, a virtude da caridade não pode coexistir com

algum vício sério.

A diversidade ou a distinção entre as virtudes reside no facto de que a principal virtude da caridade

precisa de ser aplicada aos diferentes objectos ou às diferentes situações. A distinção principal é

feita entre as virtudes teologais e as virtudes morais. A tradição elenca três virtudes teologais: a fé,

a esperança e a caridade. Entre as virtudes morais, existem quatro importantes, chamadas de

virtudes cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança.

4.7.4- As virtudes teologais e cardeais

A- As virtudes teologais

As virtudes humanas se fundam nas virtudes teologais que adaptam as faculdades do homem para

que possa participar da natureza divina. As virtudes teologais assim são chamadas porque se

referem directamente a Deus, isto é, têm Deus como seu objecto imediato. Na mesma linha, temos

também outras virtudes, como virtude de religião, temor de Deus, etc. As virtudes teologais

fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do homem crente, sobretudo do cristão.

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Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para

torná-los capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da

acção do Espírito Santo nas faculdades do ser humano. Existem três virtudes teologais: a fé, a

esperança e a caridade. (CIC, nºs 1812-1813).

a) A fé: A fé é a virtude teologal pela qual o ser humano crê em Deus e em tudo o que Ele disse e

revelou, e que a Santa Madre Igreja ensina para crer, porque Ele é a própria verdade. Pela fé, o

homem livremente se entrega a Deus. Por isso o fiel procura conhecer e fazer a vontade de

Deus. O dom da fé permanece naquele que não pecou contra ela. Mas é morta a fé que não

estiver acompanhada com as obras, porque isto mostra que ela está privada de esperança e

amor. (CIC, nº1814-1815).

b) A esperança: A esperança é a virtude teologal pela qual o ser humano deseja como sua

felicidade o Reino dos Céus e a Vida Eterna. E tal Reino não é visto apenas como algo além da

morte, mas como uma realidade intra-histórica, projectada para o futuro, mas dentro desta

mesma história. Procura orientar os acontecimentos em vista a um fim glorioso e desejado por

Deus, pois a vida eterna inicia já nesta vida. Esta virtude responde à aspiração de felicidade

colocada por Deus no coração de todo o ser humano, assume as esperanças que inspiram as

actividades dos homens e purifica-as, para ordena-las ao Reino dos Céus, protege contra o

desânimo, dá alento em todo esmorecimento, dilata o coração na expectativa da bem-

aventurança eterna, e o seu impulso preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade

(CIC, nº1818).

c) A caridade: É a virtude teologal por meio da qual o ser humano ama a Deus sobre todas as

coisas, por si mesmo, e ao seu próximo como a si mesmo, por amor de Deus. Esta é a virtude

primeira. E Jesus fez dela o seu e o novo mandamento: amar como Ele amou. O exercício de

todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o “vínculo da perfeição”; é a forma

das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de suas práticas de fé. A

caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição

sobrenatural do amor divino. A prática da vida moral, animada pela caridade, dá ao ser humano

a liberdade espiritual dos filhos de Deus. Já não está diante de Deus como escravo em temor

servil, nem como mercenário à espera do pagamento, mas como um filho que responde ao amor

daquele que o amou primeiro. (CIC nºs 1822-1828)

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B- As virtudes cardeais

Santo Ambrósio chamou a essas quatro virtudes de virtudes cardeais, porque tais são consideradas

“dobradiças” (do latim, cardo, cardinis), pois em torno delas gira toda a vida moral. Então o

esquema das virtudes cardeais pode ser suplementado ainda por outras virtudes morais, que ficam

agrupadas em torno destas quatro. Nomeadamente são: a prudência, a justiça, a fortaleza e a

temperança. E estas virtudes são louvadas na tradição e na filosofia grega antiga, e em muitas

passagens da Escritura sob outros nomes.

a) A prudência: É a virtude que dispõe a razão prática a discernir, em qualquer circunstância, o

nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados para realizá-lo. Diz S. Tomás que a

prudência é a “regra certa da acção”. Ela não se confunde com a timidez ou o medo, nem com

a duplicidade ou a dissimulação. Ela é também chamada auriga virtutem; isto é, a “portadora

das virtudes”, porque conduz as outras virtudes, indicando-lhes a regra e a medida. É ela que

guia imediatamente o juízo da consciência. O homem prudente decide e ordena a sua conduta

seguindo este juízo. Graças a esta virtude, aplicamos sem erro os princípios morais aos casos

particulares e superamos as dúvidas sobre o bem a praticar e o mal a evitar (CIC, nº1806).

b) A justiça: Consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido.

A justiça para com Deus chama-se “virtude de religião”. Para com os homens, ela nos dispõe

a respeitar os direitos de cada um e a estabelecer nas relações humanas a harmonia que promove

a equidade em prol das pessoas e do bem comum. O homem justo distingue-se pela correcção

habitual dos seus pensamentos e pela rectidão da sua conduta (CIC, nº1807).

c) A fortaleza: A fortaleza é a virtude moral que dá segurança nas dificuldades, firmeza e

constância na procura do bem. Ela firma a resolução de resistir às tentações e superar os

obstáculos na vida moral. A virtude da fortaleza nos torna capazes de vencer o medo, inclusive

da morte, de suportar a provação, as vicissitudes da vida e as perseguições. Dispõe a pessoa a

aceitar até a renúncia e o sacrifício da sua vida para defender uma causa justa (CIC, nº1808).

d) A temperança: A temperança é a virtude moral que modera a atracção pelos prazeres e procura

o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e

mantém os desejos dentro dos limites da honestidade. A pessoa temperante orienta para o bem

seus apetites sensíveis, guarda uma santa discrição e não se deixa levar a seguir as paixões do

coração (CIC, nº1809).

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UNIDADE V – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA

CONTEÚDOS DA QUINTA UNIDADE

5.1- Conceito de direito, de direitos humanos e de direitos fundamentais.

5.2- As gerações dos direitos fundamentais: da primeira à quinta geração.

5.3- A dignidade da pessoa humana

5.4- A vida como base de todos os direitos.

5.5- Os direitos fundamentais na Constituição Moçambicana.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA QUINTA UNIDADE

Levar os estudantes a discutirem em torno dos conceitos de direito, de dever, dos direitos humanos

e de direitos e deveres fundamentais, a conhecerem e a discutirem as gerações (ou dimensões) dos

direitos humanos, a reconhecerem que a vida é a base de todos os direitos, e a discutirem a

problemática dos direitos humanos partindo da Declaração de 1948, trazendo essa problemática

para o contexto moçambicano, e a discutirem a experiência moçambicana de vivência e de respeito

dos direitos humanos tal como são consagrados na Constituição (direitos fundamentais).

5.1- Conceito de direito, de direitos humanos e de direitos fundamentais

5.1.1- Conceito de direito e de dever

De acordo com Ulpiano, o conceito de direito está ligado ao conceito de justiça. Se justiça é dar a

cada um o que lhe é devido (suum quique tribuere), então direito será a faculdade que cada um tem

de receber tudo aquilo que lhe é devido. Ao conceito de direito, está ligado também o conceito de

dever. O dever seria tudo o que deve ser feito em função daquele que tem direito.

Normalmente, quer no âmbito ético, quer no âmbito jurídico, fala-se de direitos e de deveres. Por

exemplo, se olharmos para a Carta Africana dos Direitos Humanos, em toda a sua primeira parte,

veremos que o primeiro capítulo é composto por direitos, enquanto o segundo capítulo é composto

por deveres.

Ser cidadão significa conhecer os seus direitos e os seus deveres e viver de acordo com tais direitos

e deveres. Cícero foi mais longe ao fazer dos direitos e dos deveres a matéria da definição da

pessoa: a pessoa é sujeito de direitos e de deveres. Tal questão foi, mais tarde, muito aprofundada

por pensadores como Hobbes, Maquiavel, Rousseau, etc. Rousseau, por exemplo, no seu O

contrato social, mostra que tal contrato se faz por meio da atribuição dos direitos e dos deveres de

quem vive na sociedade. Por isso, devido a esse contrato, o ser humano já não é aquele homem da

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natureza, mas um cidadão. Mas foi sobretudo Kant que, numa abordagem de ética formal, encontra

no dever a razão do agir moral, e no direito à dignidade o que faz com que a pessoa seja fim em si

mesma.

5.1.2- O conceito de direitos humanos e a declaração universal dos direitos humanos

Diz Varela (2011) no seu Manual de introdução ao direito que os direitos humanos são direitos

aceites como válidos por toda a humanidade (para todos os povos e todas as épocas), com base no

carácter inviolável, intemporal e universal da natureza da pessoa humana. Esses direitos derivam,

portanto, da natureza da pessoa humana, fazem parte da essência da Humanidade (entendida aqui

como uma comunidade de gerações presentes e futuras).

Por fazerem parte da essência da humanidade, e sendo conaturais ao próprio ser humano, os direitos

humanos têm o objectivo de proteger a personalidade humana na sua dimensão social, e impõem

limites à autoridade e soberania dos Estados modernos. Esses direitos são pré e supra-estatais: são

inatos no homem e irrenunciáveis; derivam duma fonte de direito supra-positiva de direito natural

ou divino, ou também se pode dizer que derivam do simples facto de sermos seres humanos.

O facto de o ser humano ter nascido diz logo que ele é portador dos direitos humanos. O direito

natural é o direito que se funda na natureza humana; não está escrito nalgum código, mas está já

impresso na consciência; ou melhor, "está escrito" na própria natureza humana.

Os Direitos humanos são, portanto, direitos básicos de todos os seres humanos. São direitos civis

e políticos pois entram na esfera da vida civil e política do ser humano. Exemplo: direito à vida, à

propriedade privada, à liberdade de expressão, da imprensa, igualdade formal, ou seja, de todos

perante a lei, direito à nacionalidade, de participar do governo do seu Estado, etc.

A condenação generalizada da pena de morte, da tortura e da prisão por motivos políticos ou

religiosos, do racismo e da xenofobia, do genocídio e da violação do princípio da autodeterminação

dos povos, diz Varela (2011), constitui expressão do combate universal em prol da promoção dos

direitos humanos.

A validade dos direitos humanos não depende do reconhecimento ou do desconhecimento do

Estado, mas o valor de um Estado mede-se a partir do modo como assume e protege esses direitos.

A Comunidade Internacional possui organizações (como a Amnistia Internacional) e normas,

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tratados ou convenções que visam a protecção ou a salvaguarda desses direitos. A aceitação dos

direitos humanos no ordenamento constitucional positivo do Estado não tem, por isso, efeito

constitutivo, mas somente tem um carácter declarativo. No âmbito nacional próprio, os Estados

normalmente criam ou devem criar providências para torná-los efectivos com suas constituições e

com suas leis de valor equivalente.

A carta dos direitos humanos (os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos) é

uma carta de intenções. Por isso, quando alguém os transgride não pode ser condenado por leis

positivas e ser preso, mas apenas essa transgressão apela à sua obrigação moral. Estas intenções

que a carta dos direitos humanos tem adquirem obrigação jurídica, num determinado Estado,

quando são assumidas na Constituição e se tornam direitos fundamentais desse Estado. O que

queremos dizer é que os direitos humanos têm uma obrigação ética que os Estados podem torná-la

jurídica quando os assume em direito positivo. Os direitos humanos naturais quando são assumidos

pela Constituição tornam-se legais (escritos na e como lei). Depois de serem legais, esses direitos

precisam de serem reais; isto é, o povo tem o direito de reivindicá-los para que eles sejam

cumpridos.

5.1.3- Os direitos e os deveres fundamentais

A – Os direitos fundamentais e suas gerações

A enciclopédia universal define os direitos fundamentais como sendo aqueles direitos do ser

humano que são reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de um

determinado Estado (carácter nacional). Diferem dos direitos humanos – com os quais são

frequentemente confundidos – na medida em que os direitos humanos aspiram à validade universal,

ou seja, são inerentes a todo ser humano como tal e a todos os povos em todos os tempos, sendo

reconhecidos pelo direito internacional por meio de tratados e tendo portanto validade

independentemente da sua positivação em uma determinada ordem constitucional (carácter

supranacional).

De acordo com Varela (2011), os direitos fundamentais do ser humano são a consagração dos

direitos humanos que o Estado garante aos seus cidadãos por meio da Constituição ou Lei

Fundamental. Portanto, podemos referir que os direitos fundamentais são os próprios direitos

humanos em vigor num ordenamento jurídico concreto num dado momento histórico, ou por outra,

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são os direitos humanos enquanto tornados direito positivo. Saem da esfera de puras intenções e

passam a ter implicações jurídicas e se tornam vinculantes. Por isso, pode-se ainda afirmar que os

direitos fundamentais são os direitos humanos enquanto reconhecidos pelo Estado e tornados

direito positivo do Estado.

Mas o direito positivo só tem efectividade numa sociedade se se fundamenta em valores aceites

pela generalidade dos cidadãos e em princípios universais concretizadores da justiça. Estes valores

decorrem ou da natureza humana ou de um poder divino, cuja autoridade é eterna e universal,

situando-se acima do direito positivo vigente – é o chamado direito natural. Assim, os direitos

fundamentais integram o chamado direito objectivo, enquanto conjunto de normas gerais e

abstractas que se destinam a ordenar a vida em sociedade, e, como derivação do direito objectivo,

os direitos fundamentais também integram-se na acepção do direito subjectivo, que pode

apresentar-se em duas vertentes: (a) direito subjectivo propriamente dito (faculdade de exigir algo

de outrem) e (b) direito potestativo (que consiste em, voluntariamente ou por decisão judicial,

produzir efeitos que se impõem a outra pessoa, mesmo que não o queira).

Os direitos fundamentais estão divididos, em função da época histórica em que surgiram, em várias

gerações. A maior parte dos doutrinadores prefere apenas falar de três gerações, a saber: (a) direitos

políticos e das liberdades, (b) direitos sociais, económicos e culturais, (c) direitos dos povos, de

solidariedade e das minorias. Mas há vários autores, muitos deles de grande renome, que preferem

outras classificações, pois sustentam que as conquistas que o mundo tem feito, sobretudo a partir

dos anos 60 para cá, obrigam-nos a alargar a nossa compreensão em relação aos direitos

fundamentais. Tais conquistas são de tal forma que o Estado simplesmente deixa de estar no

controle dos seus membros. Pensemos, por exemplo, na problemática das tecnologias e do mundo

virtual/digital, pensemos também nas conquistas do mundo da bioética e sobretudo da

biotecnologia e das nanotecnologias, pensemos também na problemática do ambiente, enfim,

pensemos também na problemática da paz e do desenvolvimento. Tudo isto exige uma ordem

supra-estatal que possa imprimir limites nestes empreendimentos. Por isso, olhando para as

contribuições destes vários autores, neste manual, preferimos apresentar cinco gerações dos

direitos fundamentais. Portanto, para além das três acima referidas, acrescentamos as seguintes: (d)

direitos do ambiente, da bioética e das tecnologias, e (e) direitos do mundo virtual/digital e da paz.

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B – Os deveres fundamentais e sua tipologia

De acordo com Miranda (s. a.), os deveres fundamentais são aquelas situações jurídicas de

necessidade ou de adstrição constitucionalmente estabelecidas, impostas às pessoas frente ao poder

político ou, por inferência de direitos ou interesses difusos, a certas pessoas perante outras. Assim

como os direitos, os deveres fundamentais também pressupõem a separação entre o Estado e a

sociedade, e uma relação directa e imediata de cada pessoa com o poder político

É preciso saber que os deveres não se contrapõem nem servem para restringir ou limitar o alcance

dos direitos fundamentais, pois são os próprios direitos (neste caso em forma de normas) que

exigem e estabelecem cláusulas limitadoras em sua estrutura. Portanto, o que estamos a dizer é que

à existência de um direito nem sempre corresponde a existência de um dever, salvo se a intenção

for a de dizer que ao direito de um implica o dever de reconhecimento e respeito do outro. Mas isto

não significa um dever, mas o direito de ter reconhecido e respeitado um direito próprio. Assim o

dizemos porque a correlação entre direito e dever não é de reciprocidade, isto é, a um direito de

alguém não é necessariamente correspondente um dever de outrem. O que se pode verificar é que

tanto o direito quanto o dever pertencem ou dizem respeito à mesma pessoa. Portanto, enquanto os

direitos fundamentais exprimem o aspecto activo dos indivíduos perante o Estado e a sociedade,

os deveres expressam o aspecto passivo da mesma relação, daí a coexistência entre direitos e

deveres. Ou por outra, considerando-se a mesma relação jurídica, os direitos representam o que o

Estado deve proporcionar aos indivíduos, e os deveres, o que os indivíduos devem proporcionar ao

Estado (Siqueira, 2010).

No que diz respeito à tipologia dos deveres fundamentais, preferimos seguir a classificação de

Siqueira (2010). Para este, em geral, os deveres fundamentais são dois: respeitar o ordenamento

jurídico constitucional e respeitar a situação jurídica da outra pessoa. Neste sentido, os deveres

podem assumir um sentido amplo ou estrito. Os deveres no sentido amplo englobam os deveres de

prestação do Estado (serviços e políticas públicas para a concretização dos direitos fundamentais)

e os deveres fundamentais dos cidadãos (deveres em sentido estrito).

A primeira tipologia classifica os deveres fundamentais em dois tipos: deveres autónomos (ou

genéricos: dever do alistamento eleitoral e militar e de voto, por exemplo) e deveres correlatos (ou

conexos) aos direitos (ou deveres específicos). A diferença é que uns (os primeiros) não estão

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relacionados com a concretização dos direitos fundamentais, enquanto outros (os segundos) estão.

Por exemplo, o dever de solidariedade está ligado ao dever de pagar impostos na concretização de

vários direitos (direito à saúde e à educação, por exemplo); o dever de preservar o ambiente está

ligado ao direito a um ambiente saudável. É preciso também ter em conta que existem certos

deveres que têm certa divergência na classificação: por um lado são autónomos, por outro são

correlatos. Portanto, são deveres que trazem consigo certa ambivalência.

A segunda tipologia classifica os deveres conforme os seus direitos correlatos em três espécies:

deveres em relação à liberdade (ligados aos direitos da primeira geração: dever de não-abuso de

direito ou não prejudicar a situação jurídica do outro), deveres em relação à igualdade (ligados aos

direitos da segunda geração: facilitam ou proporcionam situação de igualdade entre os indivíduos

na sociedade) e deveres em relação à fraternidade e solidariedade universal (ligados aos direitos

da terceira, quarta e quinta gerações: dever ou compromisso de manutenção de um ambiente

equilibrado e saudável para o desenvolvimento dos direitos). Como se pode ver, essa classificação

consiste na coexistência relacional de direitos e deveres (deveres no sentido estrito, como referimos

acima).

A terceira tipologia classifica os deveres em deveres expressos (aqueles que são facilmente

identificados nos enunciados normativos constitucionais) e deveres implícitos (aqueles que não são

facilmente identificados). Com esta tipologia, entra também a quarta, que classifica os deveres em

legais ou constitucionais (os que estão previstos no ordenamento jurídico) e os deveres judiciais

ou doutrinários (criados pela doutrina ou pela jurisprudência).

Existem várias outras tipologias de deveres fundamentais que não precisamos de detalhar neste

manual. Mas podem ser encontrados nas diversas literaturas.

5.2- As gerações dos direitos fundamentais: da primeira à quinta geração

As gerações são tomadas de consciência dos direitos humanos por parte das sociedades e do modo

como tais direitos foram consagrados na Constituição de cada Estado. Por isso dizemos que são

gerações dos direitos fundamentais. A maioria destes direitos pertence ao mundo laico, e às vezes

vão “contra” o Estado, pois impõem limites e condições ao Estado.

Há ainda uma discussão muito grande em torno da classificação dessas gerações (ou dimensões).

A doutrina comum e mais geral classifica os direitos fundamentais em três gerações: (a) os direitos

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políticos e das liberdades, (b) os direitos sociais, económicos e culturais, e (c) os direitos dos povos,

de solidariedade e do ambiente, ou simplesmente direitos difusos. Mas há uns que defendem a

existência de quatro gerações, outros de cinco gerações e até outros de sete gerações, fazendo

derivar outras gerações a partir, sobretudo, dos direitos da terceira geração. Esta disparidade e falta

de consenso mostra a complexidade dessa matéria e o nível de compreensão-definição e de

experiência dos mesmos direitos por parte dos Estados.

Neste manual, como forma de incluir esta discussão, preferimos seguir a teoria das cinco gerações

dos direitos fundamentais. Acreditamos que, com esta abordagem, estaremos a par da doutrina

oficial, que advoga a existência de apenas três gerações (incluindo direitos do ambiente na terceira

geração), e as outras discussões. É preciso recordar que o objectivo não é de ensinar a doutrina

oficial, mas de levantar a discussão de base ética sobre o assunto.

5.2.1- A primeira geração dos direitos fundamentais

A primeira geração dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos políticos e das liberdades.

Tal geração nasceu como "reivindicação" da vida-liberdade-justiça do indivíduo frente ao poder

absoluto do rei e do Estado (detentor do Ius utendi et abutendi: direito de usar e abusar). Esta

contém pouco mais de dois séculos de história. Reconhece a todos os cidadãos, indistintamente, os

direitos de liberdade: a cada homem é reconhecido um âmbito de nível de desenvolvimento em

que a autoridade pública não pode intrometer-se. Estamos a falar da liberdade de pensamento, de

imprensa, de religião e de propriedade privada. Todos têm o direito de informação e de expressão,

direito de constituir associações e reunir-se com outras pessoas, direito de circular no seu país

(direito de ir e vir) e escolher o lugar da sua residência. Em casos de perseguição, o homem tem o

direito de asilo político noutro território de acordo com as leis dos dois Estados.

O sujeito destes direitos ou a pessoa cujos direitos são reconhecidos é o cidadão, o indivíduo, o

homem, cada homem, sem nenhuma distinção de raça, religião, povo. E aqui temos que recordar o

conceito de cidadão criado pelo Iluminismo, um conceito que está directamente ligado à pertença

a uma nação. Por isso, este direito é consagrado na Constituição.

Os direitos da primeira geração são direitos “contra” o Estado. Por serem direitos de liberdade

relevam a uma acção negativa: a não-intervenção do Estado numa esfera determinada, reconhecida

como de competência exclusiva de liberdade individual. Em inglês diz-se freedom from, porque

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são direitos que limitam a acção do Estado, são direitos do capitalismo liberal (liberdade: EUA,

Europa). Estes direitos são “reivindicação contra” o Estado e toda a autoridade. Por isso também

são conhecidos por direitos políticos, pois fazem com que o cidadão participe activamente na vida

política do seu país: eleger e ser eleito, votar, participar, fiscalizar, etc.

O tipo de governo em que se é fácil observar estes direitos é o governo democrático. E é esta a via

política mais aceitável para hoje e a mais adoptada pela maioria dos Estados actuais, embora

saibamos que nenhum Estado em toda a história da humanidade, já conseguiu implantar cabalmente

um governo democrático. Na democracia, o povo participa. E esta participação pode ser:

a) Directa: quando o Estado é composto por poucos cidadãos e todos participam. Um exemplo

típico é a antiga cidade de Atenas.

b) Indirecta ou representativa: entra aqui a questão do voto. Os cidadãos elegem alguns seus

representantes para fazerem face as decisões do Estado. Moçambique é um dos vários

exemplos.

Para que haja uma verdadeira democracia é preciso que a sociedade toda adquira uma cidadania

activa: um Estado transparente e um povo que participa e fiscaliza.

Os direitos de liberdade foram reconhecidos solenemente pela Revolução Americana com a

Declaração dos Direitos de Virgínia de 12 de Junho de 1776, e pela Revolução Francesa com a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789.

5.2.2- A segunda geração dos direitos fundamentais

A segunda geração dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos sociais, económicos e

culturais. Cedo, em alguns quadrantes do planeta, percebeu-se de que os direitos de liberdade, de

facto, eram direitos das classes privilegiadas; ou seja, da burguesia. Quem não sabe ler nem

escrever não sabe o que fazer da liberdade de imprensa. Para quem não tem o que comer, o direito

à vida soa a irrisão. Por isso, dizemos que estes direitos pretendem tornar efectivos e acessíveis

todos os direitos de liberdade. Estes direitos dão as condições para viver e tornar a vida possível

em sociedade.

Pelas constatações elementares, amargamente confirmadas pelas condições infraumanas de

trabalho vigentes em muitas fábricas da Inglaterra e Alemanha no início do século XX, nasce a

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segunda geração dos direitos fundamentais: os direitos sociais, económicos e culturais. Assim,

aglutinando as contribuições de Sarmento (s.a.) e Varela (2011), temos:

a) Direitos sociais: Particularmente são dois: direito à saúde e à educação. Mas também

destes saem vários outros que incluem direitos à educação e formação profissional, à

protecção da saúde, à protecção da família, ao trabalho, à habitação, ao lazer, à segurança,

à segurança e previdência social, à assistência aos desamparados, à protecção da

paternidade e da maternidade, à protecção da infância, etc.

b) Direitos económicos: Estes direitos incluem direito à valorização do trabalho, à livre

iniciativa económica privada, à propriedade privada, à função social da propriedade, à livre

concorrência, à defesa do consumidor, à redução das desigualdades regionais e sociais, etc.

c) Direitos culturais: Estes direitos incluem o direito de acesso às fontes da cultura nacional,

direito ao desporto e à cultura física, à fruição e criação culturais, à valorização e difusão

das manifestações culturais, à protecção das culturas populares, à protecção do património

cultural de cada um dos grupos culturais moçambicanos, que são os bens de natureza

material e imaterial portadores de referência à identidade, à acção, à memória desses

diferentes grupos formadores da sociedade moçambicana, etc.

O sujeito dos direitos sociais é ainda mais uma vez o indivíduo, o cidadão, cada ser humano que

pertence a uma nação.

Estes direitos sociais, porém, exigem, não mais a abstenção do Estado, como no caso dos direitos

civis, ou de liberdade (direitos da primeira geração), mas exigem a participação obrigatória do

Estado, são direitos “com” (e não “contra”) o Estado, relevam a uma acção positiva; isto é, o Estado

se encarrega a assegurar para todos o acesso à educação primária, à saúde, ao trabalho, etc. Daí que

estes direitos só podem existir com a acção e intervenção do Estado. Em inglês diz-se freedom to,

pois são direitos que querem o Estado, pois somente o Estado tem a força para dar saúde,

alimentação, trabalho, casa, etc. para todos. Por isso também se diz que os direitos da segunda

geração são o mérito próprio do mundo socialista.

Também no caso dos direitos sociais, bem cedo se toma consciência de que algumas categorias de

pessoas ficam marginalizadas por vários motivos: as mulheres, devido à longa tradição patriarcal;

os presos; as crianças; os imigrados/refugiados; etc. Formula-se assim uma legislação específica

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para amparar socialmente essas categorias mais fragilizadas e desamparadas. Estes são direitos de

categorias particulares, mas ainda assim, tem como sujeito o indivíduo, mais exactamente, aquelas

pessoas que precisam de um reconhecimento e uma tutela específicas. O problema é que estas

categorias são frágeis por si mesmas porque os seus direitos dependem muito dos estatutos ou

legislações específicas. É neste sentido que vemos a intervenção da ONU, ACNUR, UNICEF, etc.

É em virtude disto que, a partir de 1948, começam a se criar legislações e estatutos próprios e

específicos para a defesa dos direitos de cada categoria. Como exemplo, em 1949, surge o Estatuto

do direito da Criança.

5.2.3- A terceira geração dos direitos fundamentais

A classificação dos vários teorizadores das gerações dos direitos fundamentais começa a divergir

a partir dos direitos da terceira geração. De acordo com a classificação aqui feita, a terceira geração

dos direitos fundamentais é constituída pelos direitos dos povos, de solidariedade (ou de

fraternidade) e das minorias, ou simplesmente direitos difusos ou das colectividades.

Sarmento (s. a.) sublinha que esses direitos possuem dois pontos em comum: a

transindividualidade e a indivisibilidade. São transindividuais porque só podem ser exigidos em

acções colectivas e não individuais, pois o seu exercício está condicionado à existência de um

grupo determinado (por isso colectivos) ou indeterminado (por isso difusos) de pessoas; são

indivisíveis porque não podem ser fraccionados entre os titulares. A satisfação de seus

mandamentos beneficia indistintamente a todos. A violação é igualmente prejudicial à totalidade

do agrupamento humano.

No entender de Varela (2011) e Sarmento (s. a.), no plano internacional, esses direitos incluem

direitos dos povos à autodeterminação e à soberania, à paz e ao desenvolvimento económico, aos

seus recursos naturais, a uma nova ordem política, económica e internacional mais justa e

equitativa, à paz e à segurança internacionais, a um meio ambiente equilibrado, à comunicação,

direito à defesa de ameaça de purificação racial e genocídio, direito à protecção contra as

manifestações de discriminação racial, etc.

Para Nicolao (s. a.), constata-se o fenómeno da “poluição das liberdades”, isto é, o processo de

degradação dos direitos e liberdades fundamentais, principalmente por causa das novas

tecnologias. Neste sentido, o destinatário desses direitos é o género humano, afirmando de forma

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concreta a sua existência como valor supremo, desprendendo-se assim da ideia de homem-

indivíduo e focando na protecção destes como grupos humanos. É por causa do seu destinatário

que se pode afirmar que os direitos da terceira geração são direitos colectivos ou difusos.

De entre os direitos da terceira geração, pode-se destacar como mais relevantes os seguintes: direito

ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à qualidade de vida, à propriedade sobre o

património comum da humanidade, comunicação, etc.

Ainda no contexto dos direitos colectivos, entra a necessidade de reconhecer os direitos dos grupos

específicos Estamos a falar dos direitos das minorias: judeus, índios, muçulmanos, aborígenes,

ciganos, minorias étnicas, religiosas, culturais, etc. Neste caso, o sujeito desses direitos é a

comunidade étnica, religiosa, linguística, cultural, etc.

Se não se reconhecesse a especificidade do grupo, da etnia, etc., ela ficaria obrigada a escolher

entre a marginalidade e a renúncia da sua identidade própria: judeus e o Sábado, muçulmanos na

Europa, índios das Américas, aborígenes da Austrália, cristãos no Irão, Iraque, Afeganistão, etc.

Num ambiente democrático, eles não teriam nem vez nem voz devido ao processo da degradação

dos direitos e liberdades fundamentais. Neste caso, os direitos das minorias seriam, por exemplo,

"O estatuto dos índios", que, por sua vez, seria uma legislação específica.

Os direitos da terceira geração constituem uma tentativa de fazer com que estas minorias

mantenham a sua especificidade (quer linguística, quer religiosa, etc.). Por isso, é uma questão

muito complicada que precisa, e muito mais, da intervenção do Estado.

5.2.4- A quarta geração dos direitos fundamentais

A partir deste momento, começam as divergências doutrinárias mais significativas. Alguns autores

acham desnecessária a formulação dos direitos da quarta e quinta gerações. Mas os defensores

desta possibilidade, apesar de divergirem num e noutro ponto, falam da questão da bioética, das

tecnologias, da ecologia e da qualidade de vida. Esta quarta geração, diz Varela (2011), constitui

um desprendimento da terceira, mas agora com maior ênfase colocada na problemática do ambiente

e da sustentabilidade do desenvolvimento.

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Para Norberto Bobbio (citado por Nicolao, s. a.), a evolução do processo científico e tecnológico

apresenta novas exigências que devem ser interpretadas como direitos de quarta geração, tendo em

vista que estas pesquisas biológicas permitirão manipular o património do indivíduo, necessitando

da devida protecção. Isto chama-nos a atenção ao estudo da bioética, da biotecnologia e das

nanotecnologias.

Para Paulo Bonavides (citado por Nicolao, s. a.), a quarta geração é composta pela democracia

directa, materialmente possível graças aos avanços da tecnologia e da comunicação e a legitimidade

sustentável, devido às aberturas pluralistas do sistema.

Para além desses dois aspectos, hoje ganha importância particular a questão da ecologia: mudança

de clima, escassez de água, buraco do ozono, desertificação, poluição do ar, do som, dos oceanos,

etc; a ameaça atómica, biológica e química às gerações futuras, reservas, conservação dos

ecossistemas, desenvolvimento sustentável, etc. São direitos que dizem respeito ao mundo inteiro:

são direitos da terra (cf. Carta da Terra, e sobretudo a Laudato Si’).

Os direitos de liberdade, os direitos sociais, os direitos dos povos estão ameaçados porque está

posta em risco a saúde de todos. Passa-se assim dos direitos dum indivíduo para os direitos do

género humano, dos povos e das minorias. Destes para os direitos de cada país. Dos direitos de

cada país para os direitos globais: o ar respirável, o mar limpo, a terra despolida, etc. devem ser

assegurados a todos e a cada indivíduo.

E é também uma necessidade determinada pela interdependência: não é possível que um país

desfrute sozinho desses direitos sem que participem todos os países porque a poluição do ar, do

solo, dos mares ignora os limites entre países ricos e pobres, entre bons e maus. Existe, portanto,

uma multíplice e complexa interdependência entre os povos. É por isso que o Estado precisa duma

organização supra-estatal, mundial. Os problemas desses direitos são problemas que afectam o

mundo, por isso precisam duma autoridade mundial, uma legislação a nível internacional e

mundial. Por isso, refere Varela (2011), tendo como uma das referências a Carta da Terra ou a

Declaração do Rio (1992), a quarta geração enfatiza os direitos dos homens e dos povos a uma vida

saudável, em harmonia com a natureza, o direito a um ambiente saudável e ao desenvolvimento

sustentável.

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Esses direitos também remontam para as gerações futuras e, se não são postos em consideração,

fica em risco a vida de todos. Por isso, cada cidadão deve conservar os direitos da quarta geração.

Os problemas destes direitos não têm fronteiras nem entre ricos e pobres, nem entre bons e maus,

nem entre fortes e fracos, etc. dizem respeito a todos. A crise civilizatória de que padecemos hoje

mostra a urgência de darmos resposta positiva aos direitos da quarta geração.

5.2.5- A quinta geração dos direitos fundamentais

Apesar de ainda não haver consenso quanto à consagração dos direitos da quarta geração na esfera

do direito internacional, já há defensores, como Paulo Bonavides, que sustentam a existência de

uma quinta geração dos direitos fundamentais. De acordo com a classificação feita neste manual,

servindo-se das sensibilidades dos seus defensores, a quinta geração dos direitos fundamentais é

constituída pelos direitos ao mundo virtual/digital e à paz. É verdade que a questão do avanço

tecnológico já é tratada nos direitos da quarta geração devido à sua capacidade de afectar

directamente a vida das pessoas (por exemplo: a manipulação genética), mas agora esta questão é

tratada como realidade a parte: o mundo virtual/digital em si e a problemática da info-exclusão.

Autores como Augusto Zimmermann, José Alcebíades Oliveira Junior, e outros (citados por

Nicolao, s. a.) entendem que hoje devemos falar dos direitos da era digital, pois, como defende

Varela (2011), abre-se uma geração de direitos emergentes da sociedade de informação, colocando-

se a ênfase no combate à chamada info-exclusão. Esses autores entendem que os avanços

tecnológicos possibilitam a existência de novas relações que possivelmente estejam fora do

controle do Estado e da própria sociedade. E isto traria a necessidade de rapidamente se

regulamentarem os direitos da quinta geração que abordariam: a cibernética, a rede de

computadores, o comércio electrónico, a inteligência artificial, a realidade virtual, dentre outras

ramificações. Diz Sarmento (s. a.) que o grande desafio dessa geração (ele coloca estes direitos na

quarta geração) é a solução de litígios que envolvam o comércio virtual, a pirataria, a invasão de

privacidade, direitos autorais, propriedade industrial, etc.

Uma segunda interpretação dos direitos da quinta geração, muito cara a Paulo Bonavides, remete-

nos à paz, pois só através da positivação desta é que poderemos alcançar a dignidade. Bonavides

vê a paz como forma de compreensão da democracia, pois entende que Karel Vasak (que foi o

primeiro doutrinador a dividir os direitos fundamentais em gerações), ao colocar a paz nos direitos

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de fraternidade ou solidariedade (terceira geração), o fez de modo incompleto. Assim como a

liberdade é a marca dos direitos da primeira geração, a paz o é para os direitos da quinta geração,

estando ela num patamar superior. Como se pode ver, aqui não existe uma nova gama de direitos,

mas uma tentativa de valoração do direito à paz, dando-a uma importância que antes não tinha.

5.3- A vida: base de todos os direitos

O direito que está na base de todos os outros é o direito à vida. Este é o parâmetro central que

perpassa todas as gerações. Suprimida a vida, caem todos os outros direitos. Somente o vivo é que

tem direitos. Pois bem, o direito à vida da humanidade inteira; ou melhor, a própria existência da

vida na terra é posta em dúvida por uma eventual guerra atómica. Em suas fronteiras, os direitos

humanos se entrecortam com os temas ecológicos e encontram o grande tema da paz. É que

necessariamente o tema dos direitos humanos se intersecta com o tema da ecologia, da paz e da

justiça. Por isso necessariamente tem que se confrontar com as políticas. E é um tema incómodo

para a política e os políticos, porque é o tema dos direitos humanos e é mais urgente para a

humanidade. A luta pelos direitos humanos é a mais importante porque abrange todas as questões

e todos os sectores da vida humana. Hoje, o bem comum, que é objecto duma boa política, chama-

se direitos humanos.

5.4- A dignidade da pessoa humana

5.4.1- Que se entende por dignidade humana?

Dignidade humana é algo que toda a pessoa tem pelo simples facto de ser um ser humano, é

conatural à natureza humana. Não é algo que podemos "dar" ou não a alguém. No máximo,

podemos reconhecer ou não a dignidade humana do outro, mas ela existe sempre e não depende do

nosso parecer a seu respeito. Não depende nem da vontade da pessoa envolvida nem da consciência

de que tenha da sua própria dignidade, porque ninguém pode deixar de ser humano, mesmo que o

queira.

Quando dizemos que alguém é desumano, isso significa que a pessoa comete actos que não honram

a sua própria dignidade e a dos outros, mas, mesmo assim, a pessoa continua sendo um ser humano

de valor inviolável. Essa consideração é fundamental porque, de desculpa em desculpa, vamos nos

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anestesiando para o sagrado valor de certas vidas humanas e acabamos por considerar algo natural

o que deveria nos indignar (exemplos: bandidos, presos, drogados, etc.).

5.4.2- Visão teológica da dignidade da pessoa humana

Inspirando-nos no manual actualizado de Fundamentos de teologia católica, podemos extrair três

pontos fundamentais a partir dos quais se funda a dignidade da pessoa humana a partir da visão

teológica:

a) Desde a criação: O manual diz que a dignidade da pessoa humana radica na noção de criação

à imagem e semelhança de Deus. Portanto, perante Deus, cada indivíduo representa a dignidade

do género humano.

b) Desde a encarnação: O facto de Deus ter assumido o corpo humano (realidade humana) revela

o quanto este corpo tem valor diante de Deus. Em outras palavras: pela encarnação, Deus

partilha connosco a nossa natureza humana.

c) Desde a ressurreição: A ressurreição de Jesus revela a divinização da natureza humana, pois,

pela ressurreição, o corpo humano é glorificado, é divinizado. De facto, se, pela encarnação,

Deus partilha connosco a nossa natureza humana, já pela ressurreição e pela efusão do Espírito

Santo, Ele permite que nós partilhemos com Ele a sua natureza divina, tornando-nos seus

concidadãos (Ef 2,19).

A criação, a encarnação e a ressurreição (glorificação ou divinização) são três eventos teológicos

fundamentais que mostram o quanto a natureza humana é querida e valorizada por Deus. Nós não

valemos pelo que fazemos para Deus, mas pelo que somos diante dEle.

Diz o manual em citação que a motivação mais profunda da dignidade da pessoa humana está na

revelação oferecida pelo Verbo encarnado. Jesus veio revelar que o Pai ama todos os seres humanos

independentemente das suas condições sociais (cf. Mt 16,26; Lc 12,23). Por isso, a Igreja ensina

que o ser humano, imagem vivente de Deus, vale por si mesmo, não por aquilo que sabe, produz

ou que possui. É a sua dignidade de pessoa que confere valor aos bens que ele usa para se exprimir

e realizar-se. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões,

tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios

convenientes (GS n. 17).

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5.4.3- Visão filosófica da dignidade da pessoa humana

A filosofia é capaz de fundamentar a dignidade da pessoa humana sem a necessidade de recorrer a

elementos de antropologia bíblica ou de teologia cristã. Mounier, por exemplo, faz da eminente

dignidade uma das sete características que compõem o universo pessoal. A filosofia (recordemos

Kant) já tem afirmado que a dignidade é um atributo intrínseco da pessoa humana, como valor de

todo ser racional, independentemente da maneira como este ser humano se comporta, de modo que

nem mesmo um comportamento indigno priva a pessoa dos direitos fundamentais e da dignidade

que lhes são inerentes.

A dignidade humana acompanha o ser humano até a morte, por ser da essência e da natureza

humana. É por este motivo que a dignidade não admite discriminação alguma. Bastam, para

fundamentar isso, algumas afirmações da filosofia kantiana: “Age de tal sorte que consideres a

humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente

como um fim e nunca simplesmente como um meio”, isso porque o homem não é uma coisa, não é,

por consequência, um objecto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve, em todas

as suas acções, ser sempre considerado como um fim em si.

Isso quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é pessoa, ou seja, um ser espiritual fonte e

imputação de todos os valores. A dignidade, portanto, é atributo intrínseco da pessoa humana, pois,

a dignidade confunde-se com a própria natureza do ser humano. A dignidade, conforme a filosofia

de Kant, é um conceito a priori, um dado preexistente a toda a experiência especulativa. Aqui,

como já falamos também antes, cabe um esclarecimento para não cair em equívoco: quando

falamos que a dignidade humana é algo intrínseco (a priori), não nos referimos a algo ligado ao

comportamento, e que se perde com o comportamento indecoroso, indigno. Pois, se assim fosse,

seria algo extrínseco à pessoa humana. Mas não é assim! A dignidade é atributo intrínseco da

pessoa humana como valor de todo ser racional, independentemente da forma como este ser

humano se comporta.

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Figura 4: Representação esquemática da visão filosófica da dignidade humana

Fonte: adaptado dos autores, 2016.

É este o significado de dignidade humana assumido pelas várias Constituições, de modo que nem

mesmo um comportamento indigno priva a pessoa dos direitos fundamentais que lhe são inerentes.

A isso não tinha chegado S. Tomás. A afirmação kantiana é contra a concepção de S. Tomás de

Aquino o qual, na Summa Theologica, II.II., q. 64, art. III. ad.3, onde justifica a pena de morte,

afirma que o homem, ao delinquir-se, decai (decidit) da dignidade humana e cai (cadit) na condição

de besta. Portanto, Tomás não percebe a dignidade como algo inerente à natureza humana, mas sim

como algo ligado ao comportamento. Por isso, se a pessoa tem um comportamento desumano, tal

comportamento faz-lhe perder a sua dignidade. Mas não é assim! A dignidade acompanha o homem

até a sua morte, por ser da essência da natureza humana, e é por isso que ela (a dignidade) não

admite discriminação alguma.

5.4.4- Visão secular da dignidade da pessoa humana

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, artigo 1º, "todos os seres

humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e

devem agir em relação uns com os outros com espírito de fraternidade". Após a 2ª Guerra Mundial,

após Auschwitz (Shoá), sentiu-se a necessidade de se colocar por escrito para todas as pessoas e

governos o mínimo a ser garantido para a dignidade de cada ser humano e para a salvaguarda da

paz no mundo.

Essa Declaração Universal que vem da ONU é uma importante conclusão do mundo secular, que

indica a evolução da consciência da humanidade sem, porém, referência específica à religião (de

recordar que René Cassin, o redactor, era ateu). Ela é fruto duma indignação ética do mundo

perante os horrores contra a pessoa humana nas duas grandes guerras mundiais e diante de outras

situações execráveis.

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Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a dignidade é inata e não outorgada

(natural legal real). E isto deveria ser tão evidente para todos a saber que as pessoas já

nascem livres e iguais com dignidade e direitos, simplesmente por serem humanas, não entra aí

nenhum tipo de mérito ou merecimento, não depende da situação social, de integridade física, raça,

cor de pele, sexo, religião, esforço moral, etc. Por isso, qualquer tipo de negação ou exclusão viola

o princípio da dignidade básica, porque estabelece outras condições - além daquela de se tratar de

um ser humano - para que a pessoa "mereça" um tratamento digno.

Todo o agressor à dignidade humana que não respeita o outro, seja quem for, se corrompe

moralmente. E a sociedade que, diante do desrespeito aos Direitos Humanos, permite, incentiva ou

assiste indiferente, compactua (…), e assim a segurança de todos passa a correr risco, porque foi

ultrapassado um limite que deveria ser intransponível para que todos nós pudéssemos viver

tranquilos, porque "a injustiça praticada em qualquer lugar é ameaça à justiça em todo lugar"

(Martin L. King)6.

5.4.5- Em síntese

Algo tem dignidade quando não tem preço, ou, em outras palavras, quando não pode ser trocado

por algo equivalente. A pessoa é fim em si mesma, porque não tem preço. Ela tem valor, e não

pode ser usada como meio para alcançar outro fim para além dela.

a) O significado da vida humana não é estar bem, mas ser bom;

b) A dignidade humana para Kant fundamenta-se no facto de a pessoa ser essencialmente moral;

c) Dignidade não é apenas uma categoria antropológica, mas expressa também um conteúdo ético;

isto é, a categoria da dignidade humana levanta exigências éticas;

6 Ainda M.L. King diz: "O que me entristece não é a maldade dos maus, mas o silêncio dos bons". E aos omissos, aos

calados, aos que não reagem, B. Brecht dizia: vieram e prenderam:

Os judeus (mas eu não fiz nada porque não era judeu);

Os comunistas (mas eu não fiz nada porque não era comunista);

Os sindicalistas (mas eu não fiz nada porque não era sindicalista);

Os padres (mas eu não fiz nada porque não era padre);

(…);

A mim (…) e não havia mais ninguém para me defender.

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d) A dignidade não se refere a uma natureza abstracta, mas a seres concretos. Dignidade diz

respeito a seres históricos e concretos. Cada ser humano é pessoa por ser um indivíduo único

e insubstituível. Neste sentido, tem valor em si, isto é, goza de dignidade;

e) A dignidade não admite privilégios (mérito) em sua significação primária. Não é um atributo

outorgado, mas uma qualidade inerente, enquanto ser humano; é um “a priori” ético comum a

todos os humanos.

f) A dignidade é uma qualidade axiológica que não admite um “mais ou menos”. Não se pode ter

mais ou menos dignidade. Ela serve para incluir todo ser humano e não excluir alguns que não

interessam; não pode ser usado como critério de exclusão, pois, seu significado é justamente

de inclusão.

Em sua significação práxica, a categoria ética de dignidade tem uma orientação preferencial para

aqueles cuja dignidade humana está desfigurada ou diminuída na sua expressão. Neste sentido,

ajuda, por um lado, a corrigir possíveis reducionismos aos quais o ser humano pode ser submetido;

por outro, a orientar a acção para a meta da humanização.

5.5- Os direitos fundamentais na Constituição Moçambicana

A Constituição da República de Moçambique consagra um título próprio (título III), em cinco

capítulos, dedicado aos direitos, deveres e liberdades fundamentais (arts. 35-95), o que mostra que

Moçambique, fazendo parte das Nações Unidas, fez sua e traduziu em lei positiva a Declaração

Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, e,

portanto, quer ser defensora dos direitos humanos. É só notar que, dos 306 artigos, 60 são dedicados

à questão dos direitos, deveres e liberdades fundamentais. Os direitos fundamentais consagrados

da Constituição podem ser agrupados em quatro partes: (i) direitos, deveres e liberdades em geral,

(ii) direitos, liberdades e garantias individuais, (iii) direitos, liberdades e garantias de participação

política, e (iv) direitos e deveres económicos, sociais e culturais.

A seguir, num quadro, vamos ilustrar como é que a Constituição moçambicana classifica os direitos

fundamentais.

Classificação dos direitos e deveres fundamentais Enumeração dos mais importantes direitos e deveres

Direitos, deveres e

liberdades em geral

Cap. I: Princípios gerais

(arts. 35-74)

Direitos:

Igualdade de todos perante a lei

Direito à vida e à integridade física e moral

Direito à honra, ao bom nome, à reputação, etc.

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Direitos da criança

Deveres:

Dever de respeitar a ordem constitucional

Dever de respeitar e considerar os seus semelhantes

Deveres para com a comunidade e para com o Estado

Cap. II: Direitos, deveres e

liberdades (arts. 48-55)

Direito à liberdade de expressão e informação

Direitos de antena, de resposta e de réplica política

Direito à liberdade de reunião e manifestação

Direito à liberdade de associação

Direito à liberdade de constituir, participar e aderir a

partidos políticos

Direito à liberdade de consciência, de religião e de culto

Direito à liberdade de residência e de circulação

Direitos, liberdades e

garantias individuais

Cap. III: arts. 56-72 Direito à indemnização e responsabilidade do Estado

Direito à liberdade e à segurança

Direito de acesso aos tribunais

Direito à defesa e a julgamento em processo criminal

Direito a Habeas corpus

Direito à inviolabilidade do domicílio e da

correspondência

Direito à impugnação

Direito de recorrer aos tribunais

Direitos, liberdades e

garantias de participação

política

Cap. IV: arts. 73-81 Direitos:

Direito ao sufrágio universal

Direito de petição, queixa e reclamação

Direito de resistência

Direito de acção popular

Deveres:

Dever dos partidos políticos e das organizações sociais

Direitos e deveres

económicos, sociais e

culturais

Cap. V: arts. 82-95 Direitos:

Direito de propriedade, à herança e ao trabalho

Direito à retribuição e segurança no emprego

Direito à liberdade de associação profissional e sindical

Direito à greve e proibição do lock-out

Direito à educação, à saúde e ao ambiente equilibrado

Direito à habitação condigna e boa urbanização

Direito ao consumo

Direito à cultura física e ao desporto

Direito à liberdade de criação cultural

Direito à assistência na incapacidade e na velhice

Deveres:

Dever do trabalho

Dever de educação

Dever de promover e defender a saúde pública

Dever de defender o ambiente

Tabela 3: Representação esquemática de alguns direitos e deveres fundamentais na Constituição moçambicana.

Fonte: adaptado dos autores, 2016.

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UNIDADE VI – A PESSOA HUMANA COMO UM SER SOCIAL E POLÍTICO

CONTEÚDOS DA SEXTA UNIDADE

6.1- Conceito de sociedade (ou comunidade) humana.

6.2- A pessoa humana e a construção da comunidade.

6.3- Pessoa e comunidade como sujeitos de valores morais.

6.4- Os princípios e os valores organizadores da vida social.

6.5- A autoridade como poder e como serviço.

6.6- A educação para a cidadania.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SEXTA UNIDADE

Levar os estudantes a discutirem em torno dos conceitos de sociedade e/ou comunidade humanas,

a compreenderem que crescer como pessoa está ligado ao crescer como comunidade num espírito

de solidariedade, responsabilidade e espírito de pertença, a compreenderem o sentido do ser

político, a conhecerem os princípios organizadores da vida social e a enveredarem por um caminho

de educação para a cidadania no nosso tempo.

6.1- Conceito de sociedade (ou comunidade) humana

Observemos a seguinte imagem e tentemos levantar um debate em torno dela no contexto da

sociedade e/ou comunidade humana.

Figura 5: Representação simbólica duma sociedade.

Fonte: adaptado de https://www.google.co.mz/url?sa=

i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&

uact=8&ved=0ahUKEwjetm1poDSAhVDxxQKH

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_A&ust=1486636420939887, 7 de Fevereiro de 2017.

Que ideia de sociedade conseguimos captar da

imagem? O que significam as cores dos

indivíduos? O que significam os círculos que compõem cada grupo de indivíduos? Qual é o lugar

de cada indivíduo? O que significam as linhas que ligam cada círculo? O que achamos da relação

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entre o todo e cada uma das partes nesta imagem? É possível dizer alguma coisa em relação ao tipo

de ligação entre os que estão no centro e os que estão na periferia?

Do debate que podemos fazer desta imagem, podemos partir do princípio de que “ninguém é uma

ilha”: vive-se e convive-se com os outros. Ninguém é um ser acabado: há necessidade eterna de

interdependência. Cada um necessita dum aperfeiçoamento contínuo, e esse aperfeiçoamento

realiza-se perante e com o apoio dos outros.

A sociedade (do latim societas, societatis, que significa associação amistosa com outros) é um

conjunto de seres que convivem de forma organizada, é a reunião, maior ou menor de pessoas,

famílias, povos ou nações. Também pode ser definida como agrupamento natural ou pactuado de

pessoas que constituem unidade distinta de cada um de seus indivíduos, com o fim de cumprir,

mediante a mútua cooperação, todos ou alguns dos fins da vida. Este último sentido nos leva ao

sentido original de comunidade: uma comum unidade. Dá-nos o sentido duma unidade orgânica,

pois é composta por várias pequenas unidades, que são os indivíduos. O conceito de sociedade

pressupõe uma convivência e actividade conjunta dos seres humanos, ordenada ou organizada

conscientemente (Wikipédia, a enciclopédia livre, sociedade).

Nalgum sentido, o conceito de sociedade contrapõe-se ao de comunidade ao considerar as relações

sociais como vínculos de interesses conscientes e estabelecidos, enquanto as relações comunitárias

se consideram como articulações orgânicas de formação natural, pois, como refere Albuquerque

(1999), nelas, as formas de relacionamento são caracterizadas por intimidade, profundeza

emocional, engajamento moral e continuidade no tempo. A sociedade, enfim, é o encontro, união,

comunhão de pessoas diversificadas, para a realização ou concretização de objectivos, deveres,

ideais, fins ou valores comuns e pessoais importantes, eficazes e edificadores ou construtivos.

O ser humano não é o único ser que vive em sociedade. Os outros animais também vivem em

sociedade. Mas a diferença com os outros animais é de que ele, o homem, através do uso da razão,

do raciocínio, e através de todas aquelas faculdades que o distinguem dum animal (a

intencionalidade, a transcendência, a auto-orientação, a construção dos meios de trabalho, etc.) é o

único capaz de fazer uma análise crítica, ou seja, de distinguir entre o bem e o mal, bem como de

fazer pacto ou de pôr em jogo as regras ou normas do grupo em que está integrado e dar uma

orientação à sua vida e aos destinos da sua comunidade. Ele é, igualmente, o único capaz de

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modificar, pela via da violência ou da não-violência, isto é, pela via pacífica, a ordem estabelecida.

Por isso exigem-se leis e normas sociais adequadas, de modo que a sociedade viva de forma

tranquila, organizada e pacífica. Os outros animais não são capazes de estabelecer as regras de jogo

e, sobretudo, o mais difícil, não são capazes de pô-las em prática, revê-las, modificá-las, se for

necessário, para maior aperfeiçoamento ou melhoramento.

6.2- A pessoa humana e a construção da comunidade

As ideias de “compromisso”, de “conversão”, de “liberdade”, de “transcendência”, de “dignidade”,

de “direito”, etc. inerentes à pessoa humana têm o seu pleno sentido numa perspectiva comunitária,

e a realização pessoal exige o compromisso político (comunitário, social). Por isso, o

desenvolvimento da pessoa humana não pode ter o sucesso desejado se não for socorrido pelo

desenvolvimento da própria comunidade, do próprio contexto social em que tal pessoa está

inserida: a pessoa deve ser concebida dentro das perspectivas da comunidade. Dizia Ortega y

Gasset: eu sou eu mesmo e as minhas circunstâncias. E Aristóteles sustenta que o ser humano é um

ser essencialmente social. E não se trata duma comunidade qualquer, mas sim daquela comunidade

que dá espaço para a realização pessoal, aquela comunidade que, na linguagem de Mounier, pode

ser definida como uma comunidade de pessoas, uma Pessoa de pessoas, uma Superpessoa.

Por isso, o ser humano, pela educação, deve estar iniciado à vida em comunidade, ou por outra, a

humanitas constrói-se e tem sentido na civitas. Se o primeiro acto de iniciação à Pessoa é a tomada

de consciência da minha vida anónima, refere Mounier, do mesmo modo o primeiro passo de

iniciação à comunidade é a tomada de consciência da minha vida indiferente. Estamos a dizer o

seguinte: o primeiro passo da iniciação à vida em comunidade é sair da indiferença e assumir o

sentido de compromisso social. Aqui encontramos a inevitável ligação da pessoa à comunidade. O

reconhecimento do outro como um tu exige-me sair desta indiferença. E a relação eu-tu (uma

pessoa para outra pessoa) é uma relação primordial da verdadeira comunidade. E esta é uma ralação

de amor, pela qual a minha pessoa se descentra e vive no outro. É este o sentido de ser pessoa:

dispor de si, para depois se dispor aos outros. O amor, diria Mounier, é unidade da comunidade

assim como a vocação é unidade da pessoa. Não é possível ter uma verdadeira comunidade

deixando de lado a pessoa, nem tentar assentar a comunidade sobre algo diferente de pessoas

solidamente constituídas. O nós nasce do eu, mas um eu que é pessoa.

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Apreender uma pessoa é um trabalho duro, que não se faz automaticamente. Eis porque a

experiência da comunidade é primeiramente uma experiência próxima e não imediata. Não

dizemos: tu amarás o homem como a ti mesmo, mas: tu amarás o teu próximo como a ti mesmo;

isto é, dando-te, pelo engajamento, a ele sem medida. Isto provém do facto de que a verdadeira

comunidade não é colectividade de indivíduos fechados, mas sim, uma comunidade de pessoas em

que cada um se abre ao outro e se deixa apossar pelo outro. Por isso, a aprendizagem da comunidade

é uma aprendizagem do próximo como pessoa dentro da sua relação com a minha pessoa. Aqui

também nos deparamos com o outro diferente do tu, o outro que é um terceiro, um ele. Na verdade,

a terceira pessoa não existe. Existe uma primeira pessoa, uma segunda pessoa e o impessoal. O

outro (terceiro) começa a ser um elemento da comunidade quando se torna para mim uma segunda

pessoa, um tu; isto é, na medida em que ele é querido por mim como primeira pessoa em relação a

mim. É esta a intuição de Buber quando afirma que “a pessoa aparece no momento em que entra

em relação com outras pessoas” (Buber, citado por Rangel, 2004, p. 54). Eu descubro um homem

quando subitamente ele se dispõe como um tu.

A ligação da pessoa à comunidade é tão orgânica ao ponto de podermos afirmar que as verdadeiras

comunidades são realmente pessoas colectivas, pessoas de pessoas. Tudo o que dissemos da pessoa

e sua dignidade (cf. Caps. III e IV), transposto, pode ser aplicado à comunidade. Ela não é mais a

soma dos indivíduos que ela compõe, assim como a pessoa não é a soma das personagens interiores

que a desviam. Toda a comunidade busca erigir-se em pessoa, que é sua figura limite. Só esta

comunidade é que pode aproximar o homem a si mesmo, exaltá-lo e transfigura-lo.

Toda a comunidade deve realizar-se de tal modo que os valores da pessoa sejam reconhecidos e

promovidos. A pessoa não pode ser uma simples célula dum organismo social e nem se pode

pretender subordinar em tudo o homem ao Estado, pois o Estado está para o homem e não o homem

para o Estado. É preciso instaurar uma organização social que garanta os requisitos da vida

económica, uma organização baseada no reconhecimento da natureza e dos direitos da pessoa

humana. O Capitalismo e o Totalitarismo apresentam-se desumanos. O Socialismo foi reprovado

pela própria história. E o Anarquismo não soluciona nada. É preciso repensar em outras estruturas

sociais e políticas para que se possa implantar uma sociedade que tenha como figura-limite a

pessoa, e tenha como espaço de realização a comunidade (Copleston, 1996, pp.303-304).

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6.3- Pessoa e comunidade como sujeitos de valores morais

O valor moral da comunidade manifesta-se num determinado espírito (que se manifesta através das

obras de arte, de poesia, de filosofia, etc.) e, sobretudo, encarna-se nas pessoas que se impregnam

deste espírito da comunidade. Tanto o ser humano simples, assim como toda a personalidade forte

são absorvidas e como que arrastadas em seu valor moral pela comunidade. Aliás não poderá faltar

à comunidade o concurso de todos, como diz Walther (1923, citado por Haring, 1960, p.118), que

“uma comunidade que não conta entre seus membros personalidades fortes e em plena consonância

com seu ritmo de existência jamais poderá desenvolver cabalmente a sua natureza. Como também,

em sentido inverso, nenhuma personalidade jamais poderá expandir-se plenamente, a menos que

encontre ou constitua uma comunidade, cujo espírito corresponde às exigências fundamentais de

sua natureza”. Isto vale em se tratando de uma personalidade evoluída e muito mais ainda no caso

de personalidades em evolução, como a da criança ou a de um adulto moralmente retardado.

Numerosos actos morais da criança e mesmo de muitos adultos não procedem do conhecimento

realmente pessoal e independente dos valores morais, mas são frutos das reservas morais da

comunidade.

Quando reina na comunidade uma vida autenticamente sadia, o mimetismo social, isto é, o facto

de alguém se deixar levar a agir sem intenção virtuosa, mas pela influência da comunidade, não é

destituído de valor. Não se pode pô-lo em termo de comparação com o mimetismo inverso, isto é,

o que inspira condutas condenáveis ditadas pelo ambiente. Não se pode, sobretudo, confundi-lo

com o contágio produzido pelos instintos inferiores da massa. Não há aqui uma simples diversidade

entre uma fonte pura e outra envenenada. As condutas de origem puramente social num indivíduo

que não alimenta estima alguma pessoal pelos valores sociais, podem leva-lo a participar tão

frequentemente, seja embora de maneira elementar, do sentido virtuoso preexistente na

comunidade, que ele acabará tomando gosto por eles e inspirando sua conduta numa adesão pessoal

ao bem.

Em todo caso pensamos que a realização meramente conformista de acções boas representa, ao

menos, o melhor incentivo e a ocasião mais favorável para que o indivíduo possa entrar em contacto

pessoal com os valores. Pela conduta virtuosa de toda uma comunidade acende-se como que por si

a chama do conhecimento do bem, ao passo que a imitação conformista de condutas sociais

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condenáveis leva imediatamente a hábitos maus e não suscita (promove) genuíno conhecimento

dos valores.

Pode-se, pois, dizer acertadamente com Bergson, que a moralidade se origina também numa fonte

social, sem que por isso se deva ver em toda a sua linha, uma moral fechada, em oposição à moral

aberta (Bergson, citado por Haring, 1960, p.119). O conformismo social das condutas boas,

diferenciando-se rigorosamente do contágio psíquico, orienta o espírito para as atitudes virtuosas,

e de certo modo já lhe proporciona o sentimento nascente destas atitudes. E embora isto não valha

realmente para um indivíduo inclinado a um conformismo puramente gregário, tal é, no entanto, a

intenção da comunidade e do senso de valores que a anima. Pois ela visa atingir o centro moral

pessoal de cada indivíduo, isto é, de cada “tu”, e não criar uma simples atmosfera contagiosa

provinda só do exterior, como se vê na psicose das massas.

Para se verificar até que ponto o nosso valor moral é suscitado pela comunidade, basta comparar

um membro moralmente zeloso duma comunidade fervorosa com outro, duma comunidade

decadente: nem ao preço de grandes esforços e de uma iniciativa pessoal corajosa poderá o membro

duma sociedade profundamente decaída obter um contracto tão pleno, tão profundo e tão intenso

com o mundo dos valores como o membro duma comunidade ideal. Note-se que não pretendemos

aqui reportar-nos à questão de saber como Deus recompensará o esforço de quem se coloca a seu

serviço. Devemos, porém, dizer que o membro duma comunidade boa, em igualdade de esforço,

possuirá melhores prerrogativas morais do que o outro, colocado num ambiente medíocre. Sem

dúvida o fervor do primeiro na estima dos valores morais pertence-lhe como coisa própria (isto é,

os actos que traduzem este fervor); mas, procede mais da comunidade do que dele mesmo.

6.4. Os princípios e os valores organizadores da vida social

6.4.1. Alguns princípios que formam uma sociedade livre e virtuosa

A- A dignidade da pessoa humana

A pessoa humana é o autor, o centro e o fim de toda a vida económica e social. Ela nunca é tratada

como objecto, mas sempre como sujeito, pois ela tem valor por si. A sua dignidade, seus direitos,

a começar pelo direito à vida, da concepção à morte natural, e suas liberdades, com particular

destaque para a liberdade religiosa devem ser postas em consideração em qualquer tipo de

intervenção política, social ou económica. Essa dignidade, igual para todas pessoas humanas, exige

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o esforço para reduzir as desigualdades sociais e económicas excessivas e levar ao desaparecimento

das desigualdades e relações iníquas.

Para mais informações sobre a dignidade da pessoa humana, pode-se consultar o cap. V deste

manual.

B- A família

Juntamente com a pessoa humana, está a família. A íntima comunidade da vida e do amor conjugal,

fundada pelo Criador e dotada de leis provisórias, é instituída por meio da aliança matrimonial, ou

seja, pelo irrevogável consentimento pessoal. Deste modo, por meio do acto humano com o qual

os cônjuges mutuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição também à face da

sociedade, confirmada pela lei divina. Em vista do bem tanto dos esposos e da prole como da

sociedade, este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana. O próprio Deus é o autor

do matrimónio, o qual possui diversos bens e fins, todos eles da máxima importância, quer para a

propagação do género humano, quer para o proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros

da família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de toda a

família humana. Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão

ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que a sua coroa. O homem

e a mulher, que, pela aliança conjugal “já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19,6), prestam-se

recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e actividades, tomam consciência da

própria unidade e cada vez mais a realizam. Esta união íntima, já que é dom recíproco de duas

pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a

indissolubilidade da sua união (GS, 48, citado por Sapato, Cunlela & Lucas Maria, 2016).

C- O bem comum

O bem comum é o conjunto de condições sociais básicas, criadas numa sociedade, tais como as

diversas forças de segurança pública e social, bem como algumas infra-estruturas sociais,

nomeadamente, escolas, hospitais, estradas, fontanários, espaços recreativos ou de lazer, entre

outros, para que todas as pessoas que nela vivem, tenham direito de aceder ou usufruir, delas se

possam beneficiar e se desenvolvam de maneira digna e integral, para alcançarem a própria

perfeição e felicidade. O bem comum é aquela soma de condições que faz com que todos atinjam

um nível de vida física, moral, cultural e espiritual digna de seres racionais (Rodrigues, Ética e

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civismo, 33). Portanto, o bem comum não é algo concreto, mas é o conjunto de todas essas

condições que tornam possível o ser humano alcançar a sua perfeição, não só o ser humano, mas a

própria sociedade alcançar a sua perfeição como um todo.

O Estado é o primeiro protagonista do bem comum. Neste contexto, os funcionários do Estado

devem ser bastante flexíveis e atentos às necessidades de toda a sociedade, de todas as pessoas, em

geral, e de cada pessoa, em particular. Para tal, esses funcionários do Estado devem descortinar

todo o tipo de burocracia no processo de instauração e funcionamento do bem comum. Porém,

todos os cidadãos são co-protagonistas na promoção desse mesmo bem, ou seja, ninguém é isento

ou alheio nem a promovê-lo e nem a usufrui-lo. Como se pode entender, o bem comum não é o

mesmo que o bem público. Quando se fala de bem público, apenas queremos contrapô-lo ao bem

particular. O bem público é o conjunto de bens a disposição de todos, contrário dos bens

pertencentes a alguém em particular. O bem comum foge dessas considerações. Engloba o bem

público e o bem privado, mas transcende a todos eles, pois refere-se a condições.

Os diversos poderes públicos constituídos na sociedade, e não só, devem criar condições de modo

que todos os constituintes dessa sociedade, sem distinção de ninguém, usufruam condigna e

ordinariamente dos tais bens. Ademais, eles devem estar comprometidos e empenhados em

reconhecer, respeitar e promover os direitos humanos para a realização e concretização do bem

comum, em benefício de todas as pessoas daquela sociedade.

O bem comum é o bem das pessoas, enquanto estas estão abertas entre si, na realização dum

projecto unificador que beneficia a todos. A noção do bem comum assume a realidade do bem

pessoal e a realidade do projecto social na medida em que as duas realidades formam uma unidade

de convergência: a comunidade. O bem comum é o bem da comunidade. (Vidal & Santidrian, 1981,

p. 24).

D- A solidariedade

A “gramática” da solidariedade valoriza fundamentalmente os pronomes pessoais, tu, ele, nós, vós

e eles, em detrimento do pronome da primeira pessoa do singular: eu. Por outras palavras estamos

a afirmar que, a “gramática” da solidariedade se interessa por ti e por ele, por nós, por vós e por

eles, do que propriamente por mim. Trata-se duma afirmação incondicional e desinteressada do

outro e dos outros. Aliás, na medida em que eu afirmo o outro também me auto-afirmo a mim

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mesmo. Na medida em que nós afirmamos os outros também nos auto-afirmámos a nós mesmos.

A afirmação de mim mesmo passa necessariamente pela afirmação do outro. Só posso existir e

viver dignamente na medida em que o outro existe e vive dignamente. A afirmação do meu bem-

estar social passa necessariamente pelo bem-estar do outro ou dos outros. A solidariedade passa a

ser, nesse sentido, uma responsabilidade recíproca.

Por isso, a solidariedade consiste sobretudo na dedicação, entrega, empenho, contribuição e,

fundamentalmente, colaboração ou cooperação e união de todos com todos, de cada membro da

sociedade em benefício de todos, para seu bem-estar, sossego e tranquilidade. Trata-se duma

cooperação inquestionável, sem preço, que ultrapassa quaisquer barreiras; uma cooperação que se

preocupa sobretudo com a vitória sobre o sofrimento e a pobreza; preocupa-se também com a

sustentabilidade, o desenvolvimento integral de todos e de cada um.

Na solidariedade, cada qual se sente responsável e cúmplice pela vida do(s) outro(s) que sofre(m)

e dos destinos da sociedade em que se encontra, por fazer parte dela ou por ser membro dela; por

ser seu constituinte. Por isso luta, sem esperar nada em troca, para que a vida de todos seja digna.

Essa co-responsabilidade é extensiva a todas as pessoas não só da sociedade em que alguém se

encontra a viver mas também a outras sociedades em sua volta e pelo mundo fora. Aqui reina a

influência e interdependência de todos, dentro do grupo, e influência e interdependência com outros

grupos sociais e, consequentemente, com toda a sociedade.

O princípio de solidariedade não só diz respeito às pessoas singulares, mas toca e mexe com todas

as organizações, instituições e diversos grupos sociais existentes na sociedade. Trata-se da chamada

responsabilidade ou co-responsabilidade social, que se encarrega pelo progresso, bem e bem-estar

da sociedade.

Todos colaboram com todos, deixando de lado as diferenças e os conflitos, mesmo de interesses.

A finalidade e o propósito são os mesmos: o bem-estar e felicidade de todos. Ninguém se deve

sentir excluído nesse processo. Todos são envolvidos; todos são chamados a colaborar e a

participar.

O mundo em que vivemos será mais humano e habitável se reinar entre as pessoas, grupos sociais,

organizações, instituições e nações, a verdadeira e genuína solidariedade, que brota do fundo do

coração de cada um.

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Pilares da solidariedade

A solidariedade se assenta sobre os seguintes pilares:

1º Sair de si mesmo e caminhar para o outro: O solidário deixa de ser solitário para ser solidário;

deixar de viver e conviver sozinho; deixa de viver só para si e por si para viver com. A “gramática”

da solidariedade não conjuga o pronome pessoal apenas na primeira pessoa do singular, eu, mas

sobretudo na primeira pessoa do plural: nós. A solidariedade reveste-se de empatia. Empatia

significa colocar-se na pele e no osso do outro; isto quer dizer, sentir e acolher a dor e o sofrimento

do outro como se fosse a minha própria dor e o meu próprio sofrimento.

2º Viver o presente antevendo o futuro: Viver o presente antevendo o futuro significa que o

solidário, ou ao menos o que busca a solidariedade, vive a situação presente do seu contexto e no

seu contexto, não como um dado adquirido, mas como um processo em contínua transformação e

melhoramento. Ele é um inconformado com a realidade desumana existente e colabora, luta para

transformá-la numa realidade em que a vida se torna mais digna, mais justa e mais humana. O

solidário esforça-se de modo que as situações desumanas do presente, não venham mais a

acontecer, no futuro. Portanto, o solidário busca transformar o mau em bom e o bom em melhor

que está na sociedade ou na realidade quotidiana.

E- A subsidiariedade

A subsidiariedade provém de subsidium, que significa apoio. O princípio de subsidiariedade

compreende várias facetas ou aspectos fundamentais. Eis alguns:

a) Em primeiro lugar, o princípio de subsidiariedade significa que as bases (o povo) podem decidir

por si sós certos aspectos relevantes ou pertinentes, sem precisarem de recorrer à hierarquia ou

às instâncias superiores;

b) Em segundo lugar, as sociedades maiores ou mais amplas têm o dever e a obrigação de

intervirem e apoiarem, por meio de diversas acções concretas, às sociedades menores ou menos

amplas, de modo que essas subsistam e vivam de modo mais digno e humano, na terra;

c) Em terceiro lugar está o Estado, como nação organizada politicamente, que tem a missão de

animar, motivar, incentivar, apoiar e sustentar as pessoas, as famílias, os diferentes grupos

sociais, organizações e outras instituições oficialmente erguidas na dita sociedade, para que

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tenham sucessos, boas finalidades no exercício ou desempenho das suas funções e que vivam

de forma desafogada e feliz.

Essas instituições, porém, devem ter a possibilidade de agirem duma maneira livre e autónoma,

isto é, sem coacção, intromissão nem constrangimento da parte de ninguém, incluindo o próprio

Estado, pois colaboram com ele.

Portanto, o Estado deve garantir-lhes autonomia e não pode absorvê-las e esmagá-las. Ele não pode

ser uma grande estrutura que elimina a função de grupos e pessoas, entrando em toda a vida, quer

pessoal quer social: isto provocaria medo, angústia e desinteresse pelo bem da sociedade.

F- A responsabilidade

A responsabilidade enquanto princípio ético, apesar de ser evocada pelos filósofos clássicos,

assume novas perspectivas a partir do pensamento de Hans Jonas e Emanuel Levinas. Ambos a

colocam como centro da ética.

Com Jonas, a responsabilidade não é mais centrada no passado e no presente. A sua preocupação

é com o futuro da humanidade, com as gerações futuras e com a sobrevivência das mesmas.

Diferente de Platão, Jonas não está preocupado com a eternidade, mas com o tempo vindouro,

compatível com a era da ciência e da tecnologia, cuja responsabilidade passa a ser o alicerce, o

princípio orientador para as decisões que possam interferir nas diferentes formas de vida. É

importante recordar o papel das tecnologias no contexto dos direitos fundamentais. Elas são

consideradas na terceira, quarta e sobretudo quinta gerações, de acordo com a classificação feita

neste presente manual (cf. cap. V).

Levinas, por sua vez, também se afasta da tradição filosófica na medida em que não aceita mais a

tese de que a responsabilidade é decorrente da liberdade. A responsabilidade não nasce de uma boa

vontade, de um sujeito autónomo que quer livremente se comprometer com o outro ser. Ela, sim,

nasce como resposta a um chamado. Por isso é responsabilidade (do latim respondere). A

responsabilidade é o fundamento primeiro e essencial da estrutura ética, a qual não aparece como

suplemento de uma base existencial prévia.

Aquém do ser, encontra-se uma subjectividade capaz de escutar a voz, sem palavras de um dizer

original, e aponta para uma outra dimensão do eu. Prévio ao acto da consciência, anterior ao sujeito

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intencional, o eu já responde a um chamado. A responsabilidade pelo outro ser precede a

representação conceitual ou a mediação de um mandamento ético. Ela é obediência a uma vocação,

a uma eleição pelo bem além do ser. A responsabilidade determina a liberdade do eu, pois esta não

consegue mais se justificar por ela mesma. (Kuiava, 2006).

G- A participação

O princípio democrático ou participativo é o princípio segundo o qual, como o próprio nome diz,

todos são chamados a participar e intervir de maneira activa para o progresso e desenvolvimento

socioeconómico, político e cultural da sua sociedade.

Essa participação, que permite uma convivência humana justa e fraterna, é através de ideias,

iniciativas e acções concretas que possam beneficiar a todos. Ninguém devia ser um “hóspede”,

um ausente, um mero espectador no processo do desenvolvimento integral da sua sociedade.

Qualquer um, e em qualquer sector onde estiver, tem o dever e a obrigação de oferecer a sua

participação activa.

6.4.2. Valores sociais básicos

A- A verdade

Na tradição judaico-cristã, todos os seres humanos estão obrigados, desde Moisés, a buscar a

Verdade e a tender continuamente para ela, a respeita-la e a dar testemunho dela de modo

responsável. Essa Verdade é de extrema importância para o discípulo de Cristo, porque não é

apenas um valor básico da vida social, mas também é alguém: Jesus (Eu sou o caminho, a verdade,

e a vida: Jo 14,6). Quem aceita fazer parte do discipulado de iguais (discípulos de Cristo) olha para

Cristo como a verdade em pessoa (cf. Jo 18,37-38). Portanto, viver na verdade tem um significado

muito especial quer nas relações sociais (dimensão horizontal), quer nas relações com Deus

(dimensão vertical), porque ordena e alimenta a convivência entre as pessoas e povos, de forma

condizente com a dignidade pessoal, e liga esta dignidade pessoal com a fonte de onde ela provém.

Os dias actuais, claramente, exigem de cada um de nós um enorme esforço educativo – podemos

dizer, mesmo, um gigantesco empenho –, no sentido de promover a busca da “verdade” em todos

os âmbitos, e de sobrepô-la às inúmeras tentativas de relativizar suas exigências e de tentar

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desmoraliza-la com base em argumentos falsos, vestidos com fantasia da “modernidade” ou com

meros palavreados que revelam um “falso moralismo”.

É dever de todas as pessoas de bem, religiosas ou não, inclusive para que possamos preservar nossa

própria dignidade, lutar pela busca da verdade, seja no plano da verdade revelada, seja na cultura,

na ciência, na economia, na política ou em qualquer outro ramo das actividades humanas, pois a

verdade liberta.

No campo da economia, as trocas que caracterizam os mercados devem pressupor esse valor da

verdade para que possam fluir em toda a sua intensidade. Para entender isso, basta que imaginemos,

por exemplo, os estorvos que um empreendedor teria que enfrentar caso um fornecedor lhe desse

sua “palavra de honra” de que iria entregar sua mercadoria em determinada data e não cumprisse

com sua palavra. (Os valores de uma sociedade livre e virtuosa)

B- A liberdade

A liberdade sempre é um prato feito para todos, inclusive para os que desconfiam dela nos campos

da economia e da política, no sentido de que todos, sem excepção, sempre se dizem favoráveis a

ela. Mas devemos sempre analisar que conceito de liberdade cada um desses que se declararam

seus defensores tem em mente.

Já escrevia São Paulo aos Coríntios (2Cor 3,17): “ubi autem Spiritus Domini ibi libertas” (onde

está o Espírito do Senhor aí há liberdade). A liberdade da pessoa humana é um sinal claro da

imagem do Criador e, por conseguinte, sinal de sua dignidade. O valor da liberdade, como

expressão da singularidade de cada ser humano, é respeitado na medida em que se consente a cada

membro de uma sociedade realizar sua própria vocação individual, mediante suas próprias escolhas

ao longo da vida.

Nunca devemos nos esquecer de que a liberdade e a virtude são indissociáveis, o que significa,

simplificando um pouco as coisas, que só faz sentido falarmos em liberdade se a essa liberdade

estiver associada alguma obrigação, que é a de respeitar os direitos de terceiros. Um exemplo claro,

cristalino, irrefutável é a polémica em torno da legalização do aborto, defendida tradicionalmente

tanto pela chamada “esquerda” como por alguns libertários radicais: é verdade que a mulher deve

ter a liberdade para dispor do próprio corpo como lhe aprouver, isto é, de acordo com seus

princípios morais ou com sua simples vontade, mas é também verdade que se ela matar o feto que

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se desenvolve em seu ventre estará agredindo um direito básico, que é o direito à vida desse futuro

bebé, que não lhe pertence e que já é uma pessoa humana, embora em formação, dotada de vida e

de dignidade; além disso, estará maculando também um direito de propriedade, ao dispor sobre a

propriedade de outrem, já que o feto, por definição (e por mais que queiram nega-lo certos grupos

defensores do aborto) é proprietário do seu próprio corpo, mesmo estando este ainda em formação.

Notemos neste exemplo que os defensores do aborto estão, segundo eles, defendendo a liberdade,

embora seu conceito de liberdade seja unívoco. Se por liberdade entendermos simplesmente fazer

o que nos dá na veneta, então poderíamos justificar qualquer tipo de crime, dizendo, por exemplo,

“fulano matou, estuprou, ou roubou” porque “teve vontade de faze-lo”.

É evidente que o conceito de liberdade relevante é o que chamamos de “liberdade situada”, que

leva em conta que todos nós temos que nos deparar com leis, coisas, pessoas e tudo o mais que nos

rodeia e ao qual não podemos escapar. Assim, a nossa liberdade é condicionada por tudo o que

existia antes de nós, ou seja, é uma “liberdade situada”. Estamos limitados por nossa natureza, por

muitos condicionantes, como nossas próprias habilidades ou talentos, inteligência, inclinações e

debilidades, por nosso ambiente de trabalho e pelas pessoas com quem convivemos ou com quem

trocamos algo, mesmo que a troca seja virtual, como o caso de uma compra pela internet. (Os

valores de uma sociedade livre e virtuosa)

C- A justiça

É conhecida a definição de justiça dada por Ulpiano: suum quique tribuere, dar a cada um o seu. E

é sugestivo o pensamento de Salvador Allende, quando diz “Não basta que todos sejam iguais

perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos.”

A justiça deve ser compreendida como a “virtude que inspira o respeito pelo direito de outrem”

(Perfeito et al., 1994, p. 1069), pois ela significa dar a cada um o que é seu ou o que lhe pertence.

Também se pode afirmar que a justiça consiste em dar a cada um aquilo que lhe corresponde, por

direito, nomeadamente, a assistência social, educação, emprego, saúde, assistência económica e

assistência jurídica.

Se tivermos qualquer dúvida sobre esse princípio de dar a cada um segundo o seu direito ou o que

lhe pertence, ou se nos perguntarmos como é que podemos reconhecer o que é de direito de alguém

ou que seja sua pertença, os diversos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais como a

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Constituição da República, a Lei do Trabalho, e outras leis, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, entre outras convenções, têm bem claros e fixados esses princípios. Para complementar

a esses instrumentos jurídicos e essas convenções, está a consciência humana bem patente em cada

um de nós. Basta accioná-la e pô-la em prática.

O discurso sobre a justiça é vasto, e tem vários critérios de classificação. No nosso caso, vamos

nos deter sobre a justiça social, justiça distributiva, justiça pública ou jurídica e a justiça

comutativa.

a) A justiça social: Toda e qualquer pessoa que vive na sociedade é dotada de direitos, como o

direito à vida, à educação, à saúde, ao emprego, à habitação, etc. A justiça social é aquela que

respeita e promove os direitos de todos, em geral, e de cada um, em particular, como membro

duma sociedade. Ela promove direitos e oportunidades iguais de todos para todos, de tudo, em

tudo, para todos e para cada um, ou seja, tratamento igual para todos, sem qualquer

possibilidade de discriminação. Para se instaurar uma verdadeira justiça social é fundamental

que as instituições sociais se distanciem da corrupção, do nepotismo, do suborno, da extorsão,

do clientelismo, etc. e se deixem guiar pela transparência. A justiça social consiste

fundamentalmente no respeito ou reconhecimento dos direitos humanos, quer naturais bem

como positivos, na igualdade fundamental de todo o homem e na equidade, sem descriminação,

quanto à aplicação da lei e quanto a distribuição de bens e serviços, como por exemplo a política

da habitação, da educação, do emprego, dos serviços hospitalares.

b) Justiça distributiva: A justiça distributiva é a aquela que se encarrega pela recta e digna

distribuição ou repartição dos bens e serviços, entre os indivíduos na sociedade, sem

discriminação, sem olhar para a cara da pessoa, como por exemplo os salários, de acordo com

as reais capacidades e necessidades de cada um. Trata-se da justiça equitativa. A justiça

distributiva encarrega-se pela distribuição ou repartição proporcional da riqueza, da economia,

dos bens, dos serviços, dos salários, entre os indivíduos, na sociedade. A distribuição deve ser

digna, correcta ou equilibrada e equitativa. A distribuição deve ser equitativa no sentido de que,

deve ser proporcional, segundo os méritos pessoais, ou seja, de acordo com a condição de cada

um, sem discriminação, sem olhar para as caras e as condições ou o status das pessoas. Para a

sua promoção e operacionalização, é fundamental que haja “leis que determinam as condutas

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individuais e grupais da comunidade e definem, assim, o que é justo e o que é injusto” (Chalita,

2003, p. 109).

c) Justiça pública ou jurídica: A justiça pública ou jurídica encarrega-se pela mediação das

relações sociais, através de leis soberanas. Baseada, fundamentalmente, nas leis, funciona como

força estabilizadora que luta contra as infracções e as violações, com o propósito de instaurar

uma sociedade mais organizada, mais fraterna, mais justa, mais pacífica e mais habitável.

Confere a qualquer cidadão, em caso de se sentir prejudicado ou injustiçado, o direito de mover

uma acção judicial, ou seja, o direito de acusar, notificar e de mover algum processo judicial

contra o seu ofensor, ou o que considera de infractor. A justiça jurídica tem uma função

correctiva, ou seja, ela tem a função de reparar, repor ou devolver a verdade; repor a situação

ou o facto deslocado da normalidade.

d) Justiça comutativa: A justiça comutativa vigora fundamentalmente nas relações interpessoais

e “inter-grupais”. Ela encarrega-se pela observância dos contractos e pelas trocas de vária

ordem, sejam elas comerciais, profissionais, laborais, entre outras. Enfim, a justiça comutativa

deve garantir ou assegurar a satisfação mútua.

D- respeito mútuo no âmbito da dignidade, da igualdade e do diálogo

O respeito é uma virtude incontornável, ou mesmo obrigatória entre humanos. Respeito mútuo ao

género oposto, respeito à pessoa de cor e raça diferente, respeito à outra religião, enfim, respeito à

pessoa de status ou condição social diferente favorecem a boa convivência entre as pessoas e,

consequentemente, favorece uma vida harmónica e pacífica. Aliás, ninguém deve ser tratado

segundo a sua cor, raça, género, estrato social, proveniência, religião que professa, em diante. Cada

um precisa de ser respeitado simplesmente por causa da sua dignidade, uma dignidade que é

inerente ao facto de ser pessoa. Basta que seja pessoa para ser respeitada. As diferenças aqui

mencionadas são bem-vindas. Elas são uma fortuna, uma riqueza porque nos enriquecem e nos

complementam. Feliz diferença! É preciso valorizar aquilo que nos une em detrimento daquilo que

nos separa. O que torna possível esta conciliação das diferenças é a atitude constante do diálogo.

A palavra diálogo (do grego diá mais logos) tem o seguinte significado etimológico: o que passa

através (diá: passagem, movimento) da palavra (logos). Trata-se duma conversação entre duas

pessoas ou mais, é uma troca de intervenientes. Embora se desenvolva a partir de pontos de vista

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diferentes, o verdadeiro diálogo supõe um clima de boa vontade e compreensão recíproca. Portanto,

o diálogo supõe, chama e exige o respeito mútuo.

Por respeito pretendemos dizer a consideração, valorização e o apreço que nutrimos por nós

próprios e pelos outros, e vice-versa, visto que todos somos diferentes mas iguais em dignidade.

Todos nascemos e morremos. Por falarmos de dignidade, é essa que realmente caracteriza a pessoa

humana. A reciprocidade desse respeito é o que nos leva a usar o adjectivo “mútuo”: respeito

mútuo.

Respeito significa que, apesar da diferenciação, é fundamental a valorização e aceitação da pessoa

tal como é, na sua condição e sempre tratá-la como pessoa e não como objecto. No convívio e

relacionamento social, a pessoa, porque dotada de dignidade, como já o dissemos, deve estar no

centro das atenções. Cada qual é o que é, com suas qualidades e defeitos. Ainda que tenha defeitos,

nem por isso ela deve ser desrespeitada e desprezada. Aliás, ninguém é sem defeitos. Ela deve ser

valorizada e aceite tal como ela é. Ao aceitar o outro mesmo que tenha seus pontos fracos, significa

que é uma exigência séria para que ele também me aceite como eu sou. Aí entra a questão da

igualdade: todos somos iguais em dignidade.

Nos diálogos, debates, palestras, por exemplo, eticamente respeita-se a pessoa: respeitam-se as suas

ideias e pensamentos, escutando-os atentamente, ainda que não concordemos com eles. Melhor

ainda, nos debates discutem-se as ideias e os pensamentos e não as pessoas; discutem-se as ideias

e pensamentos das pessoas e não as pessoas das ideias e dos pensamentos. Discutem-se as ideias e

pensamentos do dono e não o dono das ideias e dos pensamentos. Portanto, o relacionamento com

os outros, baseado no respeito mútuo, é livre de preconceitos e etiquetas.

6.5- A autoridade como poder e como serviço

6.5.1- Conceito de autoridade

Em todas as sociedades bem organizadas, sempre existe alguma autoridade instituída, conhecida

pelo Estado. A autoridade, por um lado, pode ser exercida como poder; por outro, ela pode ser

exercida como serviço, tanto na sociedade civil, como na família, assim como na igreja.

Para entendermos melhor a questão da autoridade como poder e como serviço, comecemos por

perceber o conceito de autoridade.

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Quando, numa determinada sociedade, existir um poder, seja ele legítimo ou ilegítimo,

reconhecido, aceite e institucionalizado, isto é, regulado por leis, a quem se deve obedecer, é

conhecido por autoridade.

Por autoridade legítima queremos entender aquela autoridade que foi justamente legitimada por

aqueles que devem reconhece-la: sobretudo o povo. Tal legitimação pode ser por via da eleição,

nomeação, etc. A verdade é que tal legitimação deve ser legal, aprovada, comprovada e

reconhecida, seguidas e cumpridas todas as formalidades em vigor no país. O contrário, ou seja,

uma autoridade não aprovada, não comprovada tampouco aceite e reconhecida, por ter chegado ao

poder por meios ilícitos, ilegais, como é, por exemplo, o caso das fraudes eleitorais, ou de golpe de

Estado, ou nomeações por motivos obscuros, conhece-se por autoridade ilegítima.

6.5.2- A autoridade fundada no poder

Uma autoridade estatal fundada no poder manifesta-se por autoritarismos, atitudes arrogantes dos

chefes em relação aos seus súbditos, intolerância, exclusão social, insuficiente delegação dos

poderes e excessivo recurso às imposições. Este tipo de autoridade faz surgir problemas relacionais,

ou seja, é difícil ou mesmo impossível se relacionar sã e satisfatoriamente com as pessoas, visto

que ela recorre ao poder para satisfazer as próprias necessidades à custa dos outros.

A autoridade como poder controla, domina, prevarica e constringe as pessoas a agirem contra a

própria vontade e os súbditos se submetem com fortes riscos de se tornarem introvertidos, passivos,

privados de iniciativas, dependentes, medíocres, com os quais é difícil conviver porque levam

dentro de si zanga e hostilidade.

A autoridade como poder cria obstáculo ao desenvolvimento das relações interpessoais satisfatórias

e eficazes porque ela se centra na estrutura organizativa piramidal, com um sistema organizativo

fundado numa hierarquia de comando e de controlo, onde as ordens sempre provêm do alto para

baixo, às bases, com prémios para os ilustres e distintos e punições para os “falidos”.

As consequências da liderança hierárquica ou da autoridade fundada no poder multiplicam os

aspectos negativos como agitações e manifestações das massas ou das populações, bem como dos

trabalhadores. Ela leva também a greves, reclamações pelas altas taxas, sindicalismos, rendimentos

medíocres e aversão em relação aos dirigentes. Portanto, essa é uma autoridade de chefia.

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6.5.3- A autoridade fundada no serviço

No lado oposto temos a autoridade como serviço. Podemos conceber a autoridade como serviço,

quando ela estiver seriamente preocupada e comprometida com o bem comum, o bem-estar social,

com os destinos do povo da dita sociedade ou instituição social, sendo legisladora, árbitro e juiz na

observância e manutenção das leis e normas comportamentais que regem tal sociedade.

A autoridade é também serviço na medida em que ela não se aproveita da sociedade para servir

seus interesses, para enriquecer à sua custa. Não se esconde por detrás dela, nem usa sua capa para

se servir ou para alcançar seus objectivos e fins muitas vezes pessoais, obscuros e ilícitos. Antes,

pelo contrário, ela serve a sociedade. Trata-se duma autoridade de liderança.

A autoridade ainda se torna serviço, portanto, quando ela investe todas as suas forças e energias,

de diferentes formas, através de diversas iniciativas, para o bem comum, o bem-estar e progresso

de todos: salvar e servir o bem-comum é o cerne da função interna da autoridade que prima pelo

serviço.

6.5.4- Diferentes formas de governação

As diferentes formas de governação mais conhecidas ao longo dos tempos, herança que nos foi

deixada por Aristóteles, são a monarquia, a aristocracia e a democracia.

A- A monarquia

O poder está concentrado numa só pessoa. Trata-se fundamentalmente do poder real. Quem manda

ou governa num sistema monárquico é o Rei ou monarca, com auxílio de certos conselheiros, se

necessário.

Normalmente, o poder monárquico é hereditário, ou seja, pela velhice ou longa idade do rei, ou

mesmo em caso de morte, o(a) filho(a), que até então era príncipe (princesa), sucede ao pai (rei) e

ele(a) passa a ser rei (rainha). Se o rei não tiver descendentes, pode substituí-lo um dos seus irmãos

ou irmãs. Esse processo continua de geração em geração. Por isso, não existem eleições

presidenciais, porque o que é considerado presidente é o próprio rei ou rainha.

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Porém, muitas das monarquias actuais adoptam sistemas modernizados, muitas vezes fazendo-se

acompanhar por um parlamento, com poder legislativo e um governo. O rei passa a ser apenas uma

figura emblemática ou simbólica, que representa o país, em momentos e eventos oficialíssimos.

Quando o rei detém o poder, age com braço de ferro, faz o uso abusivo do seu poder, torna-se um

tirano, isto é, o contrário da monarquia é tirania.

B- A Aristocracia

Na aristocracia, a autoridade é exercida por um grupo restrito ou menor, os considerados melhores,

os “ilustres”. Todo o tipo de poder se concentra nesse grupo. Ele normalmente impõe a própria

autoridade e as ordens sobre os seus súbditos, os “pequenos”, os mandados.

A aristocracia pode ser tirânica, ditatorial e totalitária. Ela assume todos os poderes, controla toda

a vida da sociedade e, se por acaso houver qualquer oposição, elimina-a. O governo aristocrático

muitas vezes se faz assegurar por uma polícia secreta forte e pelo uso da coerção e violência

(Diocese de Quelimane, 1993, p. 192). Assim, quando a aristocracia se torna tirânica, ditatorial e

totalitária, passa a ser uma oligarquia, isto é, o contrário da aristocracia seria a oligarquia.

C- A democracia

A palavra democracia tem origem grega, e significa poder do povo. Em Democracia, o povo se

governa por si mesmo, isto é, a governação consiste no consentimento do povo. O poder é popular.

Nele, o comando ou a governação não está concentrado numa única pessoa. O povo todo participa

na governação e tem a possibilidade de controlar toda a acção governativa. É o povo que,

periodicamente, escolhe os seus governantes, através do voto livre e secreto. O mesmo povo,

através dos seus representantes parlamentares e, outras vezes por referendo, vota pelas leis que o

possam reger.

Seguindo um ciclo regulado, a soberania passa de um grupo a outro grupo, de um indivíduo a outro

indivíduo, de tal modo que mandar e obedecer, em vez de se oporem como dois absolutos, se

tornam os dois termos inseparáveis de uma mesma relação reversível. (Enciclopédia Luso-

brasileira de cultura, 1988, p. 971). Num País democrático, qualquer um, reunidas todas as

condições requeridas e estabelecidas pela lei, pode-se apresentar como candidato governamental.

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Num sistema democrático, o poder pode ser parlamentar, quando exercido pelo parlamento, ou

seja, quando o parlamento é que tem autoridade sobre o governo, e presidencial, quando o poder

de formular as leis está no parlamento, mas o Presidente da República é o chefe do Estado e do

governo. Como chefe do Estado, representa o país. Como chefe do governo, executa e manda

executar as leis aprovadas pelo parlamento.

O parlamento, num sistema democrático, é constituído por diferentes partidos e representa o povo

na elaboração das leis que o devem dirigir. Portanto, na democracia reina o multipartidarismo, e

tem espaço a separação dos poderes, onde o poder legislativo pertence ao parlamento, o executivo

ao governo do dia e o judicial à magistratura. Assim sendo:

a) O poder executivo: O poder executivo é o poder que executa. No regime democrático da maior

parte dos países, o poder executivo é exercido pelo presidente e o seu colectivo de ministros.

b) Poder legislativo: O poder legislativo é aquele que legisla, ou seja, que produz e aprova as leis

da nação, como é o caso do parlamento.

c) Poder judicial: O poder judicial é o poder que implementa as leis, exige o seu cumprimento e

julga os que não cumprem tais leis, como é o caso dos tribunais.

Quando o povo apossa-se do poder e usa-o mal para o seu próprio auto-governo, então torna-se

oclocrático, isto é, o contrário da democracia seria a oclocracia. Oclocracia é o governo do povo

desorganizado.

6.6. Educação para a cidadania

A cidadania pode ser definida como pertença a um Estado ou a uma cidade, a uma comunidade ou

a um grupo social ou profissional, por exemplo, com direitos e deveres consignados para os que

pertencem a esse grupo, e não aos que não fazem parte dele. Essa pertença vincula a pessoa quer

política, social e juridicamente a essa nação; ou seja, a cidadania faz da pessoa um cidadão; por

isso, ela não pode estar alheia ao que se passa no seu Estado.

Como podemos observar, a consciência de cidadania significa consciência de se ser cidadão,

consciência de identidade, de pertencer a uma colectividade sociopolítica e cultural, a uma nação,

a uma província, a uma cidade ou a um município, uma pertença que abrange direitos mas também

deveres para o bom funcionamento e o melhoramento dessa sociedade.

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Há uma cidadania responsável onde houver um verdadeiro e genuíno sentido de pertença, um

verdadeiro amor à pátria, um autêntico amor à cidade, amor manifestado no envolvimento e

participação activa de todos no progresso sociopolítico, económico e cultural da cidade onde se

vive ou da nação, em geral. Esse amor à própria cidade, à própria nação passa igualmente pela

preocupação de vê-la com bom visual e boa apresentação que começa por pequenos gestos,

nomeadamente, por não deixar a casca de banana ao chão, por não depositar o lixo em lugares

impróprios, por evitar o fecalismo e a micção ao céu aberto, até aos grandes gestos, como a

participação em associações, movimentos sociais, culturais, entre outros, até à participação nas

eleições autárquicas e nacionais, bem como o controlo, até na conservação do meio ambiente e na

criação de melhores condições para as gerações futuras.

A falta de espírito de cidadania leva à irresponsabilização e falta de escrutínio sobre dirigentes e

dirigidos porque o controlo social está ausente. O sentido de pertença e de cidadania fazem com

que o indivíduo seja mais consciente em relação ao seu empenhamento na protecção da sua

liberdade e bem-estar (liberdade e bem-estar individual), bem como pela liberdade e bem-estar dos

outros (liberdade e bem-estar colectivo). Nesse sentido, ele e os outros lutam pela limitação e

mesmo bloqueio do poder absoluto em favor do poder limitado, porque o poder absoluto, manipula,

domina, escraviza o povo em todos os aspectos, nomeadamente, social, político, económico, entre

outros.

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UNIDADE VII – A ÉTICA, A PESSOA HUMANA E O AMBIENTE

CONTEÚDOS DA SÉTIMA UNIDADE

7.1- O conceito de ambiente e de ética ambiental.

7.2- A pessoa humana e o cuidado com o ambiente, “nossa casa comum”.

7.3- Os problemas ambientais do nosso tempo.

7.4- A ecologia e as novas reflexões teológicas.

7.5- Algumas premissas para uma educação e espiritualidade ecoteológicas.

OBJECTIVO PRINCIPAL DA SÉTIMA UNIDADE

Levar os estudantes a caírem na conta do cuidado com o ambiente como uma exigência ética e

como uma realização da plenitude da pessoa humana. Este objectivo será alcançado por meio da

discussão em torno do conceito de ambiente e de ética ambiental, da discussão em torno da tomada

de consciência de que o ambiente é a nossa casa comum, do conhecimento e da análise crítica dos

problemas ambientais do nosso tempo, do aprofundamento da ecologia como ciência e das novas

reflexões teológicas, e por meio da análise de algumas premissas para uma educação ambiental. E

tudo isto será tratado à luz do espírito da Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, sobre o cuidado

da nossa casa comum.

7.1- O conceito de ambiente e de ética ambiental

7.1.1- Conceito de ambiente

Inicialmente, ambiente é tudo o que nos rodeia, o espaço onde todos nós estamos, e inclui o espaço

físico, psicológico, cultural, enfim o espaço natural e o espaço criado pelos seres humanos. Numa

visão sistémica, o ambiente é um sistema dinâmico, composto por um conjunto interactuante de

elementos naturais, sociais e culturais num momento e num lugar determinados, assim como pelos

resultados das interacções entre todos estes elementos.

7.1.2- Conceito de ética ambiental

Ética ambiental é uma reflexão sobre os princípios que devem orientar a nossa acção nas relações

que estabelecemos com o mundo natural (ambiente em geral). Usando palavras do Papa Francisco

(LS, n.139), é a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. É uma tentativa de aplicação

da ética social a questões de comportamento em relação ao ambiente. É uma filosofia de vida, do

respeito e do amor à vida, à natureza e aos semelhantes. Temos que construí-la de maneira

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participativa, e sustentada por um conjunto de novos valores. Tem que partir do ser humano e

chegar à sociedade, à cultura, às acções humanas em todos os contextos.

7.2- A pessoa humana e o cuidado com o ambiente, nossa casa comum

7.2.1- O problema do estatuto moral

Quais os seres que possuem estatuto moral? Qual é a propriedade que faz com que um ser possua

estatuto moral? Quando é que dizemos que tal ser possui estatuto moral? O que significa ter estatuto

moral?

Um ser possui estatuto moral quando possui valor intrínseco, tem o direito de ser tratado com

consideração e respeito, é eticamente errado ou inadmissível tratá-lo de certas maneiras, e temos a

obrigação de ter em conta os seus interesses e os seus direitos sempre que tomamos uma decisão

que o possa afectar.

Um ser está destituído de estatuto moral quando possui apenas valor instrumental, não conta do

ponto de vista moral, não temos qualquer obrigação de ter em consideração o modo como as nossas

acções o podem afectar, e podemos tratá-lo da maneira que quisermos sem que isso levante

qualquer problema ético.

Nas escolhas que nós, como humanos, fazemos, precisamos de analisar se o que nós buscamos é a

simples satisfação dos nossos interesses imediatos (sobretudo económicos), considerando-nos a

nós mesmos como os únicos eticamente relevantes, únicos com estatuto moral (ética

antropocêntrica), ou se consideramos o respeito pela preservação dos interesses do ambiente

natural, da vida em si, e, sobretudo, das gerações futuras (ética ambiental). Desta consideração,

temos a considerar quatro éticas diferentes: a ética antropocêntrica, a ética biocêntrica, a ética

ecocêntrica e a ética ecoteocêntrica.

7.2.2- A ética antropocêntrica

A ética antropocêntrica, conforme o próprio nome indica, é aquela que considera apenas o ser

humano como o ser que tem estatuto moral. Todos os outros seres têm valor instrumental. Ela

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manifesta-se quando aquilo que buscamos é apenas para a simples satisfação dos nossos interesses

imediatos (sobretudo económicos).

A ética antropocêntrica é uma ética:

a) Restritiva: A esfera de consideração ética encontra-se totalmente limitada aos humanos, uma

vez que estes são as únicas entidades dotadas de estatuto moral, sendo toda a natureza reduzida

a um valor meramente instrumental.

b) Do semelhante: Os problemas éticos reduzem-se à relação do homem com o homem. O estatuto

moral só cabe aos humanos.

c) Do presente: O bem e o mal decorrentes da acção pertencem apenas ao aqui e ao agora.

d) Da permanência: O «homem» e a «natureza» são concebidos como entidades imperturbáveis

na sua essência, não passíveis de serem remodelados pela técnica.

e) Da insustentabilidade: O tipo de vida fundado neste paradigma produziu a crise ambiental.

Numa análise crítica deste modelo de ética, pode-se sustentar o seguinte:

a) O que faz com que um indivíduo possua estatuto moral não é a sua pertença à espécie X, Y ou

Z mas as características ou propriedades intrínsecas desse ser.

b) As diferenças específicas não justificam uma discriminação a nível da consideração ética.

c) Não ter em consideração os interesses e os direitos de um ser apenas porque não pertence à

nossa espécie é moralmente injustificável e constitui um acto de especismo7.

7.2.3- A ética biocêntrica

A ética biocêntrica parte do princípio de que não podemos colocar em perigo a vida bem como

provocar sofrimento prolongado, devido à fome e falta de abrigo, a muitos seres sencientes não

humanos (mamíferos, primatas, aves).

Diz Albert Schweitzer: “Sou vida que quer viver e existo no meio de vida que quer viver. (…) A

ética consiste no facto de eu sentir a necessidade de praticar o mesmo respeito pela vida, por toda

7 Especismo quer dizer que uma espécie é superior em relação às outras espécies e, por isso, dá-se o direito de eliminar

ou subjugar as outras.

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a vontade de viver, como em relação a mim. É um bem manter e acalentar a vida; é um mal destruir

e reprimir a vida”.

Portanto, na ética biocêntrica, temos o princípio do valor intrínseco da vida em que:

a) Toda a vida tem valor intrínseco;

b) Para além dos animais também as plantas possuem um «bem próprio» resultante da satisfação

das suas funções vitais;

c) Cada ser vivo é um centro teleológico8 que tem um bem próprio a ser realizado;

d) Toda a entidade que possui um «bem próprio» merece ser tida em consideração por todos os

agentes morais e a realização dos seus interesses constitui para estes um dever.

Na ética biocêntrica, como sustenta Aldo Leopold, o critério da moralidade é o seguinte: «Uma

coisa é um bem quando tem tendência para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da

comunidade biótica. É um mal quando tem a tendência contrária.». Por isso, há uma espécie de

igualdade entre os seres da comunidade biótica.

7.2.4- A ética ecocêntrica

A ética ecocêntrica constitui um novo paradigma no pensamento ético. Tal paradigma preconiza:

a) A defesa da consideração ética por entidades holísticas e não apenas por organismos

individuais;

b) O alargamento da comunidade ética aos elementos abióticos como a água e a terra e a seres

colectivos como as espécies e os ecossistemas.

O mesmo paradigma defende que:

c) Os organismos biológicos individuais são apenas produtos efémeros das realidades

holísticas a que pertencem, não sendo necessários para a sobrevivência do ecossistema no

seu conjunto.

d) O bem-estar e o desenvolvimento da vida na Terra, humana e não humana, têm valor em

si.

8 Teleológico é o que tem em si a sua finalidade, é fim em si mesmo. A palavra vem do grego telos que significa fim.

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e) A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e

são também valores em si.

f) Os seres humanos não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade excepto para

satisfazer necessidades vitais.

Por isso, contrariamente à ética antropocêntrica, podemos sustentar que a ética ecocêntrica é uma

ética:

a) Extensiva: Recusa do antropocentrismo e alargamento da esfera de consideração ética para

além do universo humano, reconhecendo noutras entidades valor intrínseco.

b) Da alteridade: Os problemas éticos colocam-se essencialmente na relação homem-

natureza.

c) Do futuro: O bem e o mal decorrentes da acção são equacionados tendo em conta as

consequências futuras.

d) Ecológica: Reconhece a natureza como um processo dinâmico do qual o homem é parte

integrante, simultaneamente como espectador e actor responsável.

e) Da sustentabilidade: Preconiza um modo de vida que rejeita os ideais de uma sociedade

materialista e promove a realização das potencialidades de cada um e a conquista da

felicidade em harmonia com o planeta.

7.2.5- Ética ecoteocêntrica

A ética ecoteocêntrica é a ética que emerge da teologia ecológica (ou ecoteologia). Ela caminha na

linha da ética ecocêntrica e constitui também um novo paradigma no pensamento ético-cristão. O

que a diferencia da ética ecocêntrica é o facto de esta ética estar impregnada de valores que emanam

das novas reflexões teológicas que se inspiram no livro de Gênesis (Deus entregou o jardim ao

homem para que o cuidasse e o cultivasse, Gn 2,15), passam pela teoriza da cosmogénese

(Chardin), pelas reflexões do panenteísmo (presença de Deus no mundo e o mundo em Deus apesar

de Deus ser muito mais e além do mundo), pelas reflexões do Cristo Cósmico que possibilitam

reconhecer a presença do Espírito Santo que recria a criação (de Mathew Fox) e percorrem todo o

ensinamento social da Igreja até ter a sua expressão máxima na Laudato Si’ do Papa Francisco.

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As linhas características desta ética devem ser procuradas tanto no segundo capítulo da Laudato

Si’ (o Evangelho da criação), como, e sobretudo, no quarto capítulo (uma Ecologia integral). É de

salientar que o quarto capítulo é considerado o centro da Laudato Si’, pois é aí onde o Papa propõe

uma resposta à crise ecológica. Portanto, o desenho destes dois capítulos da Laudato Si’, lido

paralelamente com as informações da ética ecocêntrica, ajuda a perceber os contornos

fundamentais duma ética ecoteocêntrica, que emana da ecoteologia, e permite levantar uma

discussão fundamentada em torno dela, pois trata-se duma reflexão em construção.

7.3- Os problemas ambientais do nosso tempo

O Papa Francisco, no primeiro capítulo, ao se perguntar o que está a acontecer à nossa casa, elenca

os problemas ambientais no seguinte modo: a poluição e as mudanças climáticas, a questão da

água, a perda da biodiversidade, a deterioração da qualidade de vida humana e degradação social,

a desigualdade planetária, a fraqueza das reacções, e a diversidade de opiniões.

Neste capítulo, o Papa enfrenta o tema da poluição: os poluentes atmosféricos que provocam muitas

mortes prematuras, e também a poluição causada pelos fumos da indústria, pelas descargas, pelos

pesticidas, pelos resíduos. Há um consenso científico, indicando que estamos perante um

preocupante aquecimento do sistema climático causado sobretudo pela grande concentração de

gases com efeito de estufa. A humanidade precisa de tomar consciência da necessidade de

mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento.

O Papa enfrenta também o problema do esgotamento dos recursos naturais e da impossibilidade de

sustentar o nível actual de consumo dos países mais desenvolvidos. Fala da pobreza da água

pública, que se verifica especialmente na África. Perante a tendência para se privatizar este recurso

escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado, o Papa recorda que o acesso à

água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal.

O Papa também enfrenta o problema ligado à perda da biodiversidade, e refere que lugares como

Amazónia e bacia fluvial do Congo requerem um cuidado particular pela sua enorme importância

para o ecossistema mundial.

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Olhando para a deterioração da qualidade da vida humana e da degradação social, que são outros

problemas ambientais, o Papa convida-nos a reflectir sobre a desigualdade planetária. Ele recorda

que o ambiente humano e o ambiente natural degradam-se simultaneamente, atingindo os mais

fracos. Por isso, ele recorda que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma

abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto

o clamor da terra como o clamor dos pobres. Nesta linha, o Papa denuncia também a fraqueza das

reacções muitas vezes causada pelo poder ligado com a finança. Mas o Papa reconhece que há

diversidade de opiniões sobre a situação e sobre as possíveis soluções. Ele cita dois extremos: quem

sustenta que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas,

sem considerações éticas nem mudanças de fundo, e aqueles para quem o ser humano, com

qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo

que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Nem uma

nem outra. E a Igreja, não querendo propor uma palavra definitiva, apenas recomenda que se olhe

a realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum.

7.4- A ecologia e as novas reflexões teológicas

7.4.1- A raiz humana da crise ecológica

Todos os problemas ambientais apontados no ponto anterior têm a sua justificação no capítulo

terceiro da Laudato Si’, pois aqui o Papa mostra-nos que a crise ecológica que sofremos hoje (que

também é denominada de crise civilizatória) tem a sua origem no próprio ser humano. E tudo gira

em torno do paradigma tecnocrático dominante. O Papa fala deste assunto em três pontos: apresenta

a tecnologia, o seu poder e a sua alta criatividade; fala da globalização do paradigma tecnocrático;

e apresenta a crise do antropocentrismo actual e todas as suas consequências.

Refere o Papa que a ciência e tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana, mas

não podemos ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento do

nosso próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, dão ao ser humano um poder

tremendo. Assim, aqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder económico para o

desfrutar passam a ter também um domínio impressionante sobre o conjunto do género humano. E

o pior é que este poder reside numa pequena parte da humanidade.

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A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro. Não se aprendeu a

lição da crise financeira mundial e, muito lentamente, se aprende a lição do deterioramento

ambiental. Nalguns círculos, defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os

problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma que os problemas da fome e da miséria no

mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Mas sabemos que o

mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.

Portanto, o mercado, a finança e a exclusão social são um sintoma claro duma crise profunda. De

facto, olhando para este contexto, uma cultura ecológica consistiria num olhar diferente, num

pensamento, numa política, num programa educativo, num estilo de vida e numa espiritualidade

que oponham resistência a este avanço do paradigma tecnocrático. O que está a acontecer põe-nos

perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. Ninguém quer o regresso à Idade

da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma.

Quando, por exemplo, na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum

embrião humano, duma pessoa com deficiência, etc., dificilmente se saberá escutar os gritos da

própria natureza. Tudo está interligado. A cultura do relativismo é a mesma patologia que impele

uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto. É também a lógica interna

daqueles que dizem: “deixemos que as forças invisíveis do mercado regulem a economia”. Se não

há verdades objectivas e princípios estáveis, os programas políticos e as leis não bastam para evitar

os comportamentos que afectam o meio ambiente, porque quando é a cultura que se corrompe, as

leis só poderão ser entendidas como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.

O Papa Francisco fala também da necessidade de defender o trabalho humano, que não deve ser

substituído com o progresso tecnológico. O verdadeiro objectivo na ajuda aos pobres deve ser

sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. O Pontífice recorda ainda que as

autoridades têm o direito e a responsabilidade de adoptar medidas de apoio claro e firme aos

pequenos produtores e à diversificação da produção, e às vezes, para que haja uma liberdade

económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr limites àqueles que detêm

maiores recursos e poder financeiro.

A propósito da inovação biológica, são importantes as reflexões do Papa em torno dos organismos

geneticamente modificados, sobre os quais é difícil emitir um juízo geral. O Papa recorda que

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muitas vezes as mutações genéticas foram e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E

mesmo as provocadas pelo ser humano não são um fenómeno moderno. Reconhece que a utilização

dos cereais transgénicos nalgumas regiões produziu um crescimento económico que contribuiu

para resolver determinados problemas, mas cita também as dificuldades importantes que não

devem ser minimizadas, como a concentração de terras produtivas nas mãos de poucos e a

tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de sementes. Por isso é preciso

assegurar um debate científico e social que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a

informação disponível. Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas

defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados

limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana, como

acontece com as experiências com embriões humanos vivos.

7.4.2- A crise ecológica e o Cristianismo

A relação existente entre o Cristianismo e a crise ecológica foi formulada pela primeira fez no séc.

XX, pelo norte-americano Lynn Townsend Branco Jr. (1907-1987). Ele afirma veementemente que

o mundo ocidental cristão é o principal responsável pela actual crise ecológica do planeta, pois,

segundo ele, as matrizes de todos os nossos problemas ambientais e ecológicos estão

fundamentadas na concepção antropológica judaico-cristã.

O homem que, de acordo com a afirmação da narrativa bíblica, foi criado à imagem e semelhança

de Deus (Gn 1,26) é hierarquicamente superior aos demais sereis vivos. Isto possibilita a

formatação de uma mentalidade, onde em última instância o que predomina é a noção dualista entre

o homem e a natureza.

Diz Branco Jr. que o Cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo conheceu. O

Cristianismo, em contraste absoluto com o paganismo antigo e as religiões da Ásia, não só

estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, mas também insistiu que era vontade de Deus

que o homem explorasse a natureza em benefício próprio. Este autor refere que, na Antiguidade,

cada árvore, cada nascente, cada córrego, cada montanha tinha seu próprio espírito protector. Antes

de alguém cortar uma árvore, cavar uma mina em uma montanha, ou represar um córrego era

importante apaziguar o espírito protector encarregado daquela determinada situação, e mantê-lo

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aplacado. Destruindo o animismo pagão, o Cristianismo permitiu a exploração da natureza com

total indiferença aos sentimentos em relação à mesma.

Outro factor importante, também é apontado como coadjuvante para o desencadeamento da actual

crise ambiental e ecológica, foi o fenómeno da Revolução Industrial. Depois deste, a mentalidade

ocidental passou a ser configurada a partir da premissa de que a terra é um recurso inesgotável para

o consumo humano. E Branco Jr. diz que esta mentalidade está ligada ao Cristianismo, sobretudo

à ideia cristã de transcendência do homem sobre a natureza e o seu legítimo domínio sobre ela (Gn.

1, 28: dominai a terra).

Branco Jr. ainda sustenta que a nossa ciência e tecnologia nasceram de atitudes cristãs baseadas na

relação do homem com a natureza, reconhecidas, quase que universalmente, não só pelos cristãos

e neocristãos, mas também por aqueles que afectuosamente se consideram a si mesmos pós-

cristãos. Todo o nosso estilo de vida e modo de relação com a natureza depende do que pensamos

e cremos colectivamente, e que, para mudar a maneira de nos relacionarmos com a natureza

devemos começar por mudar aquilo que pensamos e cremos a respeito dela.

7.4.3- A teologia que nasce do problema ambiental: a ecoteologia

Os argumentos de Branco Jr. tratam de mostrar que a visão de fundo e os axiomas judeo-cristãos

subjacentes no mundo ocidental são os culpados da actual crise ecológica mundial. Mas as críticas

estabelecidas por ele fizeram com que diversos pensadores e teólogos se posicionassem de maneira

contrária, estabelecendo uma fecunda reflexão, uma nova forma de fazer teologia. A essa forma,

dá-se o nome de ecoteologia.

Os principais representantes dessa nova forma de se fazer teologia são: Pierre Teilhard de Chardin

(1881-1955), Alfred North Whitehead (1861-1947), Karl Rahner (1905-1984), John B. Cobb Jr.

(1925 -), Jürgen Moltmann (1926 -), Rosemary Radford Ruether (1936 -), Catherine Keller (1953

-) e Sallie McFague (1933 -). No Brasil temos os trabalhos realizados por Leonardo Boff (1938 -)

e Haroldo Reimer (1953 -) entre outros. Actualmente, ganham seu mérito as posições

determinantes do Papa Francisco condensados na Laudato Si’.

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7.4.4- Os fundamentos da ecoteologia

Reimer refere que, para pensar a questão do meio ambiente a partir de uma perspectiva teológica,

é necessário supormos que existe uma relação profunda entre o ser humano religioso e o mundo

como um todo. No conjunto dessas reflexões, Reimer refere que um pensamento cristão voltado

para os problemas ecológicos constitui decididamente uma mudança de paradigma na própria

teologia, uma mudança em que o dualismo entre o homem redimido (a Igreja) e mundo da natureza

deixa de existir.

A relação entre o Cristianismo e o meio ambiente fora apontada por Chardin de maneira decisiva

dentro da teoria da cosmogênese. Portanto, para Chardin, o universo caminha para um ponto final

de amadurecimento e perfeita união com a realidade divina: o ponto Ômega (Cristo). O surgimento

do homem, a sua socialização, e o desenvolvimento do mundo da cultura são apenas etapas

embrionárias de um plano maior que tem um Telos (o fim, o ponto Ômega), revelando um

equilíbrio que não pode ser interrompido nem alterado, sob pena de destruir a própria vida.

O Cristianismo ensina e defende que o homem é responsável diante de Deus pelo uso racional e

correcto do mundo e da criação, visto que ele é o mordomo de Deus dos bens criados por Ele, isto

é, ele é o administrador dos bens criados por Deus e entregues a ele para cuidar. O clímax desse

uso racional e correcto do mundo e da criação possui dimensões escatológicas na Teologia da

Esperança de Moltmann, que desloca o eixo da escatologia cristã: da projecção ao além-morte para

a promessa e o futuro. Portanto, faz uma ligação entre escatologia e história, isto é, escatologia

histórica.

O diálogo entre a religiosidade e o meio ambiente é mais claro ainda em Boff. Para Boff, é

necessário estabelecer uma consciência ecológica, de carácter ético-teológico que seja

perfeitamente capaz de entender que, teologicamente falando, o ser homem está no centro da

criação, mas não está sozinho. A humanidade só será humanidade de verdade, se estiver

profundamente comprometida em unidade com o planeta terra.

Diz Boff que tanto o ser humano como a terra formam uma única entidade, com uma mesma origem

e um mesmo destino. Só o cuidado garantirá a sustentabilidade do sistema-Terra com todos os seres

da comunidade de vida entre os quais se encontra o ser humano. Sua função é a do jardineiro, como

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se relata no segundo capítulo do Génesis. O trabalho do jardineiro é cuidar do jardim do Éden,

fazê-lo fecundo e belo. A Carta da Terra despertou-nos, oportunamente, para essa nossa missão (de

jardineiros), essencial e urgente. Precisamos de vivê-la para que tenhamos futuro e possamos co-

evoluir como temos evoluído já há 4,5 bilhões de anos, pois esta é a idade de nossa Terra.

Murand diz que o principal núcleo e a espinha dorsal da ecoteologia é a compreensão unificada da

complexa experiência salvífica que envolve: a criação, a história, a encarnação, a redenção e a

consumação, sobretudo num processo de realização, incluindo a ecoesfera, a comunidade biótica,

etc. Essa compreensão unificada da experiência salvífica e a leitura dos textos canónicos dentro do

contexto da teologia ecológica possibilita que a comunidade eclesial se proponha a consciencializar

e a oferecer respostas plausíveis aos principais problemas ambientais do nosso tempo, tais como:

o aquecimento global, o desmatamento, a poluição residual e sonora, a caça predatória, a

estratificação sem controle dos recursos híbridos, a ocupação desmedida do solo, a emissão de

poluentes da camada de ozono, o efeito estufa, etc., que já foram reflectidos nos pontos anteriores.

Uma palavra mestra em torno dos fundamentos da ecoteologia encontra-se no Papa Francisco,

sobretudo no segundo e no quarto capítulos da Laudato Si’. Ao iniciar o segundo capítulo da

Encíclica, o Papa Francisco refere que se trata de um capítulo orientado sobretudo para aqueles que

têm fé, e acredita que a ciência e a religião podem entrar num diálogo intenso e frutuoso para esta

discussão. Por isso, a seguir, fala daquela luz que só a fé pode oferecer: a convicção de que os

compromissos ecológicos dos cristãos não brotam de qualquer ciência ou ética, mas da própria fé,

pois é Deus que nos chama ao cuidado da nossa casa. Ao sublinhar aquela sabedoria patente nas

narrações bíblicas, ao descrever o mistério por detrás do universo, ao mostrar que cada criatura

transmite uma mensagem na harmonia de toda a criação, ao demonstrar que há uma comunhão

universal, e ao insistir no destino comum dos bens, o Papa quer dar-nos a lição de que a Boa Nova

do Evangelho leva-nos a olhar para além da ciência, para aquele nível em que o universo, a vida e

a história constituem uma unidade muito querida aos olhos de Jesus.

O quarto capítulo pode ser considerado como o centro da Encíclica. Percebe-se que a análise dos

problemas ambientais não pode ser separada da análise dos contextos humanos, familiares,

laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma. Por isso, o Papa refere-se à ecologia

ambiental, económica e social, três componentes que devem caminhar juntas. Ele refere-se também

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à ecologia cultural, mostrando a importância de se ter em consideração as culturas, os valores, a

história, a arte, os monumentos, etc. como elementos que precisam de ser preservados na sua forma

viva, dinâmica e participativa. O Papa refere-se também à ecologia da vida quotidiana, sublinhando

que cada lugar onde a vida humana pulsa (casa, caminho, lugares de lazer, etc.) deve respirar um

ar ecológico, os ambientes mais insignificantes e mais diários precisam de ser tomados em conta e

melhorados, organizados, limpos, e oferecer ao ser humano uma sensação de bem-estar e de

felicidade. Nesta linha, o Papa também refere-se à ecologia humana, pois o ser humano possui uma

natureza que não deve ser transgredida. Assim, é preciso ter apreço pelo próprio corpo na sua

feminilidade ou masculinidade, e por isso não é salutar um comportamento que pretenda cancelar

a diferença sexual, só porque já não sabe confrontar-se com ela. Refere-se também ao princípio do

bem comum, que não se identifica com o bem público (oposto do bem privado), mas que,

recorrendo à GS, n.26, o Papa define-o como sendo “o conjunto das condições da vida social que

permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria

perfeição”. Por fim, o Papa refere-se também à justiça intergeracional, em que introduz o conceito

do dom: a terra tida como dom gratuito, que recebemos e que devemos comunicá-lo entre nós

(justiça intrageracional: destaca-se de forma especial a família como célula basilar da sociedade) e

aos que vem (justiça intergeracional: um verdadeiro dever e dívida para com as gerações futuras).

7.5- Algumas premissas para uma educação ambiental e espiritualidade ecológica

No penúltimo capítulo da Laudato Si’ (algumas linhas de orientação e acção), o Papa apresenta o

diálogo como o dado que deve ser levado a cabo nas diferentes vertentes: diálogo sobre o meio

ambiente na política internacional, diálogo para novas políticas nacionais e locais, diálogo e

transparência nos processos decisórios, diálogo entre política e economia para a plenitude humana,

e diálogo entre as religiões e as ciências. Mas tal diálogo pressupõe que as partes envolvidas se

considerem primeiro como sujeitos do processo. Não pode haver diálogo se uma das partes é tida

como recurso, ou como objecto. Falar do diálogo é admitir que não existe nenhuma opção política,

religiosa, ética, etc. que seja absoluta, não existe um povo cuja cultura deva ser imposta a todos os

outros povos. Todas culturas, religiões, políticas, etc. precisam de entrar em diálogo e fazer um

exercício de mútua aceitação e mútuo cuidado. Por isso, temos que falar duma nova espiritualidade,

dum novo estilo de vida. É disso que o Papa fala no último capítulo da Encíclica (educação e

espiritualidade ecológicas), apontando os seguintes aspectos: apontar para outro estilo de vida,

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educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente, a conversão ecológica, alegria e paz, amor

civil e político, os sinais sacramentais e o descanso celebrativo, a Trindade e a relação entre as

criaturas, Maria: a rainha de toda a criação, e para além do sol.

O Papa convida-nos a um outro estilo de vida, para evitar que a pessoa acabe por ser esmagada

pelo consumismo obsessivo que é o reflexo subjectivo do paradigma tecnoeconómico, que faz crer

a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, ao passo que, na

realidade, a liberdade está apenas nas mãos da minoria que detém o poder económico e financeiro.

A obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o

manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca. Mas o Papa convida também a olhar

para o positivo que já existe e para possibilidade de os seres humanos voltarem a escolher o bem,

recordando que uma mudança nos estilos de vida pode exercer uma pressão salutar sobre quantos

detêm o poder político, económico e social, como quando os movimentos de consumidores

conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim se tornam eficazes na mudança

do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de

produção.

O Papa alerta que a consciência da gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se

em novos hábitos, o que implica um desafio educativo. E é preciso começar desde pequeno a fazer

escolhas quotidianas. O Papa recorda o papel educativo da família no cuidado pela vida e o uso

correcto das coisas. E se é verdade que compete à política e às várias associações um esforço de

formação das consciências da população, o mesmo se diz, e com mais insistência, da Igreja.

O Papa pede uma verdadeira conversão ecológica que reconheça o mundo como dom recebido do

amor do Pai. A espiritualidade cristã encoraja um estilo de vida profético e contemplativo, capaz

de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. E propõe um crescimento na

sobriedade e uma capacidade de se alegrar com o pouco. A ecologia integral requer uma atitude do

coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente diante duma

pessoa sem estar a pensar no que virá depois. O Papa Francisco sugere, como exemplo, agradecer

a Deus antes e depois das refeições, convidando também a contemplar o mistério numa folha, numa

vereda, no orvalho, no rosto do pobre. Por isso, ao concluir a Encíclica, o Papa propõe duas orações:

oração pela nossa terra e oração cristã com a criação.

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Este sinal (*) indica que a edição destas três obras tem o mesmo ano de publicação, e as letras a, b

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