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VALORES DE UMA PRÁXIS MILITANTE 1

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1ª edição - outubro de 2009

ExpedienteExpedienteExpedienteExpedienteExpediente

O Caderno de Formação nº 37: “Valores de uma práxis militante”, éuma publicação do Setor de Formação - Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra

Diagramação: Secretaria Nacional MST

Pedidos:Secretaria [email protected]

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SSSSSUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIOUMÁRIO

Introdução ------------------------------------------------------------------------- 7

I. VI. VI. VI. VI. Valores de um povo novoalores de um povo novoalores de um povo novoalores de um povo novoalores de um povo novo: ética, moral e valores -------------- 9 Ademar Bogo

II. Saber Cuidar:II. Saber Cuidar:II. Saber Cuidar:II. Saber Cuidar:II. Saber Cuidar: ética do humano ------------------------------------ 27 Leonardo Boff

III. VIII. VIII. VIII. VIII. Valores que deve cultivar um lutador do povoalores que deve cultivar um lutador do povoalores que deve cultivar um lutador do povoalores que deve cultivar um lutador do povoalores que deve cultivar um lutador do povo --------------------------------------------- 49 Ademar Bogo

IVIVIVIVIV. O Socialismo e o Homem em Cuba. O Socialismo e o Homem em Cuba. O Socialismo e o Homem em Cuba. O Socialismo e o Homem em Cuba. O Socialismo e o Homem em Cuba ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 73 Che Guevara

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INTRODUÇÃO

A prática dos novos valores se torna cada vez mais imperiosa,no sentido de que possamos ir construindo novos sujeitos sociais epolíticos, bem como, para as novas relações entre as pessoas e destascom a natureza. Vivemos num mundo onde a barbárie cresce acada dia e, o sentido da vida dos pobres tem como horizonte adegradação, a violência, a naturalização da morte.

Não podemos e não devemos aceitar esse mundo de coisas,como natural, como se não houvessem culpados por essa realidadee, mais, como se não houvessem alternativas para viver uma vidacom dignidade, justiça e solidariedade.

No sistema capitalista, a barbárie é cada vez mais abrangente,cada vez mais feroz. Por isso, precisamos fortalecer nossa convicçãode que é necessário lutar pela transformação dessa sociedade. Nesseprocesso, se coloca o tema dos novos valores, da nova moral, danova ética como pilares dessa nova construção, pois, não se constróiuma nova sociedade com a roupagem da velha sociedadecapitalista.

Sabemos que não é uma luta fácil mudar comportamentos,atitudes, hábitos sem ter mudado (ou, sem mudar) na profundidadea existência material, cultural e social da vida. No entanto, vivenciá-los no cotidiano, não é impossível. É preciso ter convicção eesperança no futuro.

Em nossas organizações, em nossos territórios e espaços deconvivência, de produção material da nossa existência, já podemosir exercitando esses valores da nova sociedade, da sociedadesocialista. É importante que os conheçamos que estudemos sobreeles, que os compreendamos. Pois, entender o seu significado, écondição importante para a sua implementação prática.

Assim, mais importante do que o debate para assimilá-los, égarantir o seu exercício prático, a sua vivência no aqui e agora. Énecessário exercitar a tal ponto que eles sejam incorporados à nossaação cotidiana. Transformam-se em práxis capaz de ser referênciapara os que convivem ao nosso redor. Assim, podemos ir forjandoo novo homem e a nova mulher, edificadores da sociedade semexplorados e sem exploradores, a sociedade socialista.

Para contribuir em nossos processos de estudo e de práticapolítica organizativa, reunimos nesse Caderno de Formação, alguns

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subsídios que permitem aprofundar o assunto e motivar para que,de forma consciente e organizada, possamos ir praticando essesnovos valores. Com certeza,

Che Guevara foi o Homem que mais os encarnou, insistiu emotivou a vivência dos novos valores no processo de construçãoda nova sociedade. Por isso simboliza a possibilidade da vivênciados valores socialistas com consciência e maturidade, superandoas limitações dia a dia para sermos cada vez mais humanos, maislivres, mais socialistas.

Que sejamos forjados no espírito e na ação legada por ErnestoChe Guevara e por tantos lutadores e lutadoras do povo quededicaram sua vida para construir uma história, uma vida diferente.Façamos a nossa parte e deixemos sementes do novo homem e danova mulher espalhados pelos campos e cidades para que nasçam,cresçam, floresçam e produzam novos frutos.

Bom estudo e vivência dos novos valores.

Setor de Formação Nacional

Setembro de 2009

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I. VALORES DE UM POVO NOVO

Quando Fidel Castro recebeu a notícia de que Ernesto CheGuevara havia sido assassinado na Bolívia no início de outubro de1967, aguardou alguns dias para se certificar da veracidade dainformação e, no dia 18 de outubro, convocou para a Praça daRevolução, o povo cubano, para um velório solene. Ali passou aenumerar as qualidades do Che. Dentre elas, destacou a consciênciainternacionalista: “Quando se falar de internacionalismo proletário,quando se buscar um exemplo de internacionalismo proletário esseexemplo, mais do que qualquer outro, é o exemplo do Che! De seucoração e de sua mente tinham desaparecido as bandeiras, ospreconceitos, o chauvinismo, os egoísmos, e seu sangue generosoele o estava disposto a verter pela felicidade de qualquer povo (...)”1

Os valores de um povo, somente poderão ser desenvolvidos,se este tiver uma causa consciente para ser alcançada. Sem ela nãopode haver esforço coerente e permanente na construção de ummundo solidário.

O caminho que trilhamos com dificuldades e sacrifícios, nãoleva para a solidariedade permanente, se não tivermos a capacidadede nos despir de todos os preconceitos e rancores. Este entendimentose transforma em paixão pela causa, fazendo o corpo e a mente sepreparem, para qualquer sacrifício, inclusive o de entregar a própriavida particular para salvar a vida coletiva.

Quando falamos em valores de um novo povo, não significainventar todos os valores, mas dar a eles conteúdos e sentidosconscientes, que invertam a ordem do comportamento mesquinho,do fechamento e das idéias vazias.

A isto dizemos que as pessoas passam a agir moralmenteorientadas pela ética, significando a capacidade que o ser humano

1 Aton Fon Filho. (tradução). Obras de Che Guevara: Textos Revolucionários.Global Editora SP, 1986. p. 23 e 24

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tem, de estabelecer na convivência social, um juízo de valor entreo bem e o mal.

Mas o bem e o mal não estão desligados da influênciaideológica. Muitas vezes aquilo que achamos que é o “bem” nadamais é do que um preconceito ou um desvio político reinventado.

Se destacarmos o princípio do “bem burguês” de que “apropriedade privada é inviolável”, significa que jamais poderia haveruma ocupação de terra, pois o “direito sagrado” da propriedade,portanto o “bem”, da apropriação individual, estaria sendo negadopelo “mal”, que é a ocupação em benefício da coletividade.

Os valores adquirem sentido e conteúdo diferentes de umaclasse para outra. Para o filho de um burguês, com 16 anos, o valorda liberdade é poder sair dirigindo pelas ruas em alta velocidade,um carro de luxo, sem habilitação. Para o filho de um trabalhador,da mesma idade, a liberdade terá outro sentido, que é o de lutarpara permanecer na escola e chegar á faculdade, ou mudar deemprego com remuneração de adulto.

Os valores são parte da cultura de um povo ou de um gruposocial, e são repassados de geração em geração; modificados emseu conteúdo, de acordo com os interesses políticos e ideológicosde cada época.

Podem ser vistos como elementos de protesto e resistênciaentre as classes, na medida em que se procura dar a eles sentidoreal, mas para isso obrigatoriamente devem estar ligados à açãoconcreta.

Quando falamos em povo novo, significa que estamosbuscando forjar nas pessoas que compõe determinado grupo social,comportamentos diferentes do egoísmo e do oportunismoindividualista burguês. Neste caso, o “jeitinho brasileiro” tolerávelpor parecer “pouco prejudicial”, como: pagar propina, furar fila,falsificar documentos etc. irá também se estabelecer em outras áreasdas relações sociais, e o comportamento moral da sociedade passaser afetado, invertendo o conteúdo e o sentido dos valores.

Aquilo que é bom para alguns, já não é bom para outros.Mas havendo aceitação, as pessoas passam a conviver com estasimperfeições e vão contribuindo com a deformação do caráter doscidadãos. Aos poucos os preconceitos se tornam os principaisobstáculos para por em prática os valores, como: o respeito, afidelidade, a igualdade etc.

Embora os valores tenham, por um lado, conteúdo idealista,na sua essência reside o elemento concreto, que é a prática ou aaplicação de seu conteúdo na vida. Por isso, podemos afirmar que

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os Trabalhadores Sem Terra ainda não são o “povo novo” natotalidade, mas neles está o embrião do desenvolvimento de novasrelações no campo, por estarem edificando agora, através da luta,novas relações sociais e comunitárias, em um território determinado.

O que se pode dizer de pessoas que há pouco tempo atráspediam comida, mendigavam de porta em porta para enfrentar aviolência da fome, e, agora já na terra, passam a doar alimentospara creches, hospitais e para a população pobre das cidades?Daqueles que tinham prazer em derrubar árvores e queimar tudo,inclusive as florestas, e agora com as próprias mãos edificam viveirosde mudas e plantam árvores; recompõe as florestas e salvam os rios?Ou então, dos gestos de não somente olhar para as pessoas, mas deadotar meninos de rua e se proporem a criá-los junto com ospróprios filhos legítimos, sem preconceitos nem medo?

Não é ainda a prática de valores na sua totalidade com novoconteúdo, mas o simples fato das pessoas se disporem a fazer otrabalho voluntário e a doar a força para melhorar a aparência e aestética da estrutura da sociedade, já é o grande passo indicativode que é possível trilhar um novo caminho, onde as pessoasacreditem em si próprias e tenham a coragem de expor suasqualidades para que sejam utilizadas pela comunidade em quevivem.

Constatamos que os valores não se impõem, os valores secultivam, para que, em cada gesto deste cultivar, possam servivenciados e aperfeiçoados.

1. É1. É1. É1. É1. ÉTICATICATICATICATICA MORALMORALMORALMORALMORAL EEEEE VALORESVALORESVALORESVALORESVALORES

Os problemas sociais despertam sempre a atenção para areflexão sobre a ética, a moral e os valores, porque é diante dosfatos concretos que as pessoas tomam posições a favor ou contra,após fazerem um julgamento prévio.

No confronto das contradições é que tomamos posições, àsvezes corretas, às vezes incorretas, tendo em vista a influênciaideológica e os interesses particulares que temos. Por exemplo, sevemos um mendigo em uma padaria se apropriar de um pão semter dinheiro para pagá-lo, deixamos que o proprietário chame apolícia, intervimos pagando o pão, ou simplesmente aconselhamoso proprietário que deixe o mendigo saciar a sua fome?

Podemos ver que neste simples ato estão as três dimensões:da ética, da moral e dos valores associados.

Entendemos que a moral é a norma concreta que orienta ocomportamento social das pessoas. Por exemplo, “não se apropriar

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das coisas alheias”. A ética é o juízo que fazemos da situação: “estácerto ou não o mendigo pegar o pão?” Se achamos que está certo,entra em ação o valor da solidariedade e partimos em defesa domendigo não deixando que o proprietário chame a polícia, pois o“desrespeito” à norma moral, tem justificativas éticas.

É difícil fazer esta separação na vida concreta, geralmentemisturamos ética, moral e valor, por isso é que muitas vezes agimosde um jeito e em outro momento agimos de forma diferente. Porexemplo, no mesmo ato onde o mendigo apanha um pão, se poracaso o conhecemos e por ventura não simpatizamos com ele, porqualquer motivo anterior, ou por preconceito, acabaremos deixandoas coisas acontecerem sem nos indignar e sem influir na decisãofinal, ao contrário podemos nos satisfazer com ela.

Neste caso encontraremos várias justificativas e preconceitoscomo: “O mendigo é preguiçoso mesmo”. “Não pode pegar, temque pedir!”. Ou o dono da padaria usaria do velho subterfúgio: “seme pedisse, eu dava!”.

A ética vista por este aspecto quotidiano, assume o caráter“normativo”, ou seja, é a força da norma que orienta as pessoas, enão o juízo que se faz da norma.

A ética mostra e interliga as questões que estão além da norma.Podemos dizer então que a moral se ocupa dos problemas práticose a ética das explicações teóricas que nos fazem agir e explicar assituações em que nos envolvemos “(...) O problema do que fazerem cada situação concreta é um problema prático-moral e nãoteórico-ético”.2

O objetivo principal da ética é ajudar a compreenderdeterminada realidade através da investigação e da explicaçãoteórica. “A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral doshomens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específicade comportamento humano”3. A busca do conhecimento paraexplicar determinados aspectos é a característica fundamental daética. Enquanto que, a moral se baseia em normas estabelecidas apartir dos problemas e interesses sociais, influenciadas pela posiçãoideológica de quem as estabelece.

Se tomarmos como referência a placa fixada na entrada deum latifúndio com o dizer: “Não entre”. Esta é uma norma moral dolatifúndio, baseada no direito de propriedade. Um latifundiário ao

2 Adolfo Sánchez Vásquez; Ética. RJ 1996. P. 83 Idem. p. 12

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ver a placa dirá, que está certo. Um Sem Terra dirá que está errado.O certo e o errado se baseiam na visão de justiça social que cadaum tem.

Seguindo em frente: um grupo de famílias, ocupam esta áreapor ser ela improdutiva e não cumprir função social; mas assim quedividem os lotes, erguem cercas para separar o que pertence a cadaum como propriedade e ali também, mesmo sem ter a placa:“proibido entrar”, não se pode transitar livremente, e a família seisola criando seu próprio mundo.

Moralmente cada família está correta, ao usar para si, o direitode propriedade. Eticamente também, por fazer dali em diante a terra,por ter desmanchado a ordem d o latifúndio, cumprir função social,mas há um defeito profundo na qualidade dos valores que nãomodificaram o seu conteúdo, apesar de toda a luta desenvolvida.Permanece o individualismo, o preconceito contra o vizinho, a faltade solidariedade etc.

Neste caso, a terra ao ser dividida, passou a cumprir funçãosocial. Pertencia a um latifundiário, passou a pertencer a muitasfamílias, que viverão de seu trabalho. Mas as pessoas dessas famíliasé que “não cumprem” corretamente a função social. Isto porque, asociedade não é feita de objetos e propriedades, mas primeiramentede pessoas que tem um papel determinante em sua edificação. Aspessoas não podem valer pelo que possuem materialmente, maspelo que são “profissionalmente” no desempenho de suacontribuição para que a sociedade seja justa e democrática.

As normas morais e os valores mudam, de tempos em tempos,mas não na totalidade, pois estão ligados ao funcionamento dasociedade, principalmente no seu aspecto econômico. Isto já foidefinido e previsto por Marx quando disse que “(...) O que distingueas diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como,com que meios de trabalho se faz. Os meios de trabalho servempara medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e alémdisso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho...”4

Se tomarmos como referência o desenvolvimento tecnológicoatual e o compararmos com o modo de produção feudal, iremosver que as condições sociais são bem diferentes e o próprio trabalhoadquiriu sentido diferente. No feudalismo, o ócio era um valor

4 Karl Marx. O Capital. Livro I. Vol. I. RJ 1996. P.204

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fundamental5 pois o trabalho era garantido pelos servos quedeveriam demonstrar lealdade, fidelidade, aos senhores e teremcoragem para enfrentarem as guerras. Com o surgimento docapitalismo, o trabalho passou a ser um valor para todos, porque ocapital se reproduz através do lucro que extrai da força de trabalho.Por isso surgiu a norma moral preconceituosa: “quem não trabalhaé preguiçoso”. A disciplina, a produtividade, a eficiência, ahonestidade, são valores fundamentais nessas novas relações deprodução.

Se tomarmos também como referência as cartas de doaçãodas capitanias hereditárias, encontraremos normas que hojepoderíamos considerá-las absurdas. Na carta de doação daCapitania de Pernambuco, lavrada em Portugal na cidade de Évora,em 10 de março de 1534, podemos ler “O donatário e seussucessores darão sesmarias de todas as terras da capitania a qualquerpessoa, contando que seja católica, livres de foro e direitos, salvo odízimo a Deus, de acordo com as ordenações, não podendo tomá-las para si, sua mulher ou filho herdeiro”.6

Desta forma podemos entender que, a moral, no modo deprodução capitalista, é o conjunto de normas usadas pela classedominante para impor à classe explorada e as massas populares,seus interesses. Essas normas cumprem o papel de orientar e proibir,segundo os interesses da classe que está no poder. Por isso, detempos em tempos, sofrem modificações de acordo com osinteresses desta mesma ou de outra classe. O conjunto de normasinstitui o código do comportamento moral.

É nesta produção da existência através da intervenção humanana realidade, que se produzem as contradições, e na medida emque as pessoas tomam consciência de seu papel na sociedade,acabam rebelando-se contra normas que impedem o exercício daverdadeira democracia, como: escola para todos até a faculdade;trabalho, moradia, alimentação, lazer etc. A ética possibilitacompreender estas situações e contribui para que as pessoas, atravésdo conhecimento científico, possam dar novo conteúdo às normassociais, forçando as mudanças da realidade.

5 Ma. Lúcia de Arruda Aranha e Ma Helena Pires Martins. Filosofando:Introdução a filosofia, SP 1996 p. 274

6 Fragmon Carlos Borges. Origens Históricas da Propriedade da Terra. In Brasil:A Questão Agrária. SP: 1980, p. 6

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A moral autêntica surge com a edificação das bases de umanova sociedade, onde o Estado e a propriedade mudam de caráter.Há então mudanças nas relações de produção e na forma deapropriação dos bens produzidos, garantindo-se assim, igualdadeentre as pessoas e respeito pela vida no meio em que cada ser socialestiver inserido.

Estes germens devem surgir já a partir de agora, através dacriação de uma nova consciência em torno da compreensão e dosignificado de todas as coisas. Nada existe por acaso. Tanto oshomens quanto os insetos, as árvores, a terra e os rios, tem suaimportância em existirem. Sem a existência de qualquer um destessujeitos, a vida no planeta será comprometida.

É tempo de se criar novas relações para forjarmos uma novamoral baseada na investigação ética da realidade que possibilitemodificar o comportamento e os hábitos dos seres sociais, onde asolidariedade seja um valor universal.

A ética, a moral e os valores se integram e passam a fazer parteda cultura e da consciência, penetrando na construção dasociabilidade projetada, agora, para o bem da maioria.

A ética fundamentalmente cumpre a função de orientar estaconstrução, para que não se desvie dos verdadeiros objetivosestabelecidos, onde o ser humano e os demais tipos de vida sejamrespeitados.

Vivemos num tempo em que o progresso se sobrepôs a ética,deixando de acreditar que a vida é superior à técnica. A técnicadeve auxiliar o desenvolvimento da vida e não destruí-la. A éticaexige mudanças de atitudes7 levando em consideração inclusiveos aspectos técnicos.

As modificações genéticas e o uso indiscriminado deherbicidas, fungicidas e outros ofensivos à vida das espécies, estáse tornando um verdadeiro atentado contra o planeta. Para asempresas que lucram milhões, isto é o bem, para os que consomemos produtos, é o mal. É preciso perguntar se no futuro a terra seráhabitada pelas empresas ou por seres vivos?

7 Jung Mo Sung e Josué Cândido da Silva. Conversando Sobre Ética e Sociedade1995 p. 42

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Por que se usa como definição, que as descobertas industriaisque visam lucros são de “ponta” e as que respeitam o ambientenão são?

Há de tempos em tempos experimentos que tentam sesobrepor aos conhecimentos acumulados na sociedade. O que estáem discussão no momento, são os produtos transgênicos, comosendo uma grande descoberta, por se conseguir através datecnologia transportar genes de um produto para outro, fazendocom que o produto gerado adquira mais resistência. “(...) Otransgênico é a ponta de uma tecnologia superada, que é atecnologia da Revolução Verde8, que não resolveu o problema dafome no mundo – como diziam que iriam resolver -, não resolveu oproblema social – só o ampliou -, envenenou a terra, os alimentos eo meio ambiente... A tecnologia de ponta é uma agricultura semveneno, sem agrotóxico, saudável, que produz alimentos sadios”.9

O problema da nação brasileira não é saber se os legumes, asfrutas e as verduras ficam mais tempo nas bancas dos supermercadossem estragar, mas fazer com que todas as pessoas de nosso paístenham alimentos em suas refeições. Isto somente se consegueatravés do trabalho, devolvendo a terra a quem pode e quer trabalharnela.

A falta de leite nas mamadeiras de milhões de crianças pobrese desnutridas não se resolve importando leite ou tecnologia quefaçam as vacas produzirem 40 litros de leite por dia, mas pressionarpara que, o governo faça a reforma agrária e recoloque na terra asquase 5 milhões de famílias Sem Terra e lhes dê o direito de ter umavaca que produza 5 litros por dia. Desta maneira a produção deleite será aumentada em 25 milhões de litros somente com o esforçoda natureza.

Há muitos avanços já alcançados nos assentamentos naformulação das normas de convivência, organização e produção.Aos poucos estamos nos entendendo como parte do universo epossibilitando o surgimento de uma nova ética.

8 Revolução Verde. É chamada assim as mudanças tecnológicas introjetadasna agricultura brasileira com orientação norte-americana na décadaprincipalmente a partir da década de 70 aqui no Brasil, onde se incentivouo uso de máquinas, venenos e adubos químicos para aumentar a produtividadena agricultura.

9 Frei Sérgio Görgen, ofm. Riscos dos Transgênicos. Petrópolis. 2000, p. 18.

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Na medida em que os jardins se encherem de flores, osbosques de árvores e as pessoas respeitarem as características daterra, plantando nela, as culturas que se adaptem ao tipo de solo,aproveitando o material orgânico para a recomposição do potencialprodutivo, deixando de lado o químico, venenoso, é a ética da vidaque começa a surgir a partir de pequenos gestos.

Na medida em que buscarmos através do intercâmbio deconhecimentos, apropriar-nos de elementos que modifiquem arealidade sem destruir seus componentes fundamentais, estaremosnão só elevando o nível de consciência, mas nos colocando comoinstrumento de recriação da existência das espécies.

Os valores nascerão das pequenas mudanças nocomportamento que conseguirmos edificar. Basta - como disse RaulSeixas-, ser sinceros e desejar profundo, você será capaz de sacudiro mundo10. Sacudi-lo para que se desprenda a poeira do egoísmoburguês e se inicie um novo tempo, através da construção de umnovo cenário histórico, pintado pelas mãos da solidariedade.

2. D2. D2. D2. D2. DIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZES PARAPARAPARAPARAPARA OSOSOSOSOS VALORESVALORESVALORESVALORESVALORES

Neste longo caminhar, a terra sempre foi a principalcompanheira de todas as espécies. Estendeu-se como um tapete,suportando o peso da vida e da morte.

Os desequilíbrios causados são desvios de condutaprimordialmente do ser humano, que ao longo do tempo perdeu osentido da ética e dos valores em relação à natureza, a vida dasespécies e impôs suas próprias normas.

A norma moral estabelecida foi sempre a de extrair, devastar,cercar para aumentar o poder de indivíduos na sociedade humana.Para isso foi preciso passar por cima da comunidade dos bichos,dos pássaros, insetos, ervas e árvores que também tem suas normasde convivência e desenvolvimento.

Construiu-se e destruiu-se sobre a terra em milhares de anos,para satisfazer necessidades e interesses do ser humano. A diferençaentre a terra e os seres humanos é que os últimos se orientam porparadigmas que de tempos em tempos entram em conflito com osmodos, os hábitos, princípios, valores etc. A terra só tem umparadigma: alimentar a vida.

10 Seixas, Raul/ Coelho Paulo/ Motta Marcelo, Música Tente Outra Vez.

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Estes paradigmas forçam as mudanças. Vão imprimindocaracterísticas novas na forma de ser das pessoas e da sociedade,construindo-se em cultura. A cultura, pois, é a construção lenta darealidade objetiva e subjetiva através da qual os indivíduos sereconhecem.

O ser humano habituou-se a sujeitar a natureza para satisfazeros seus desejos, caprichos e necessidades, e o mundo foi ficando aimagem e semelhança da vontade desordenada da exploração.

Toda vez que se mexe na natureza desaloja-se e desarmonisa-se a lógica criada por ela durante muito tempo. A palavra talvezmais autoritária, venha do verbo querer: “eu quero”, por isso muitasperguntas ficam sem sentido, assim como as respostas: “por queestas fazendo isto?” “Porque eu quero”. Assim o homem quer ouro,mas ele está sob o solo fértil e vai buscá-lo. Quer um casaco depele, e vai matar o jacaré para confeccioná-lo. Quer construir umprédio, vai destruir a rocha para extrair o cimento. Quer ter lucroem sua empresa agrícola, vai inventar venenos para matar insetos eervas. Assim segue sem renunciar a nada. As coisas que renuncia éporque não lhes dá importância ou ainda não as descobriu.

É possível seguir em frente com a história do desenvolvimentoda humanidade, mas até onde iremos com esta marcha?

O modo de ser dos Sem Terra como edificadores oudestruidores do que sobra das espécies de vida, nas áreasconquistadas, depende de nós. Por isso nos perguntamos, nãoapenas sobre que tipo de camponeses devemos ser? Mas também,que tipo de camponeses a terra e a natureza precisam que sejamos?

Não se trata de ser contra os avanços tecnológicos e oprogresso em si, precisamos saber que inventos são esses e paraquem serve o progresso?

Por outro lado não podemos cair no simplismo de Domenicode Masi que afirma: “(...)Quem se perturba diante da tecnologiapode se limitar a não usá-la. Mas não tem o direito de impedir seuuso pelos outros. Se eu tenho medo de andar de avião, nem porisso posso proibir a aviação. A tecnologia é uma oportunidade enão uma obrigação. Aliás, o planeta está cheio de zonas não-tecnologizadas: sobre a terra hoje coexistem todos os níveis decivilização, desde a pré-história até o ano 2000. Quem não gostade tecnologia tem para onde ir, se quiser”11

11 Domenico de Masi. Entrevista Maria S. Palieri: O Ócio Criativo. Sextante 2a

Edição RJ. 2000. P. 36

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Ora, não podemos voltar para as cavernas, se estas tambémestão ameaçadas por quem caminha sobre elas! As futuras geraçõesdependem das gerações que vivem e fazem o tempo presente. “Ahumanidade precisou de 10 mil gerações para chegar a 2 bilhõesde habitantes”. Em seguida passou de “2 bilhões para 5,5 bilhões”.Seguindo assim na “próxima geração seremos 11 bilhões”.12

O universo é esta morada definitiva da vida e da morte dasespécies, não há para onde fugir e nem tempo para acovardar-sediante deste perigo iminente de extinção e destruição. “(...) entre1500 e 1850 foi eliminada uma espécie (animal e vegetal) a cada10 anos. Entre 1850 e 1950 uma espécie por ano. No ano de 1990desapareceram dez espécies por dia. Por volta do ano 2000desaparecerá uma espécie por hora (...)”.13

O que mais podemos dizer se isto representa a extinção demais de 20% de todas as espécies que já existiram. Sentimos penados dinossauros extintos a milhões de anos, mas estes representavamapenas uma entre todas as espécies.

A extinção das espécies, uma por hora, tem sua causavinculada à produção de uso de venenos e adubos químicos.Queima das florestas. Poluição química. Lixo jogado nos rios e naterra em demasia e tantas outras.

Se há os que desenvolvem tecnologias para melhorar aqualidade de vida, há os que também as desenvolvem sem sepreocupar com a qualidade de vida. E o progresso não tem sidosinônimo de respeito, isto porque, dos mais de 6 bilhões de habitantesque somos no planeta, apenas 1,5 bilhões que vivem nos paísesindustrializados do hemisfério Norte, tem direito ao “progresso” aqualquer custo e por isso consomem: “(...)70% da energia mundial,75% dos metais, 85% da madeira, 60% dos alimentos”.14 Mais, 64%da carne, 92% dos automóveis, 81% do papel.15 Isto, além de outrascausas, traz conseqüências perversas para os pobres do mundo,onde somente de fome morrem por ano 40 milhões de pessoas,destas, 14 milhões são crianças que morrem antes de completar

12 Jung Mo Sung e Josué C. da Silva. Vozes Petrópolis. 1995 p. 88.13 Idem14 Ibidem15 Emir Sader. O Anjo Torto: Esquerda (e direita) no Brasil. Editora Brasiliense.

SP. 1995. p. 13,14

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cinco anos de idade.16 Enquanto isso as grandes potênciastecnificadas, erguem muralhas com as armas, gastando a cadaminuto quase dois milhões de dólares para prevenir-se e fazer asguerras que geram grandes lucros.

A continuar assim, a espécie humana corre perigo também deser extinta, embora desenvolva cada vez mais tecnologiassofisticadas para defender-se. Não há como fugir nem esconder-se,o espaço planetário está tomado pelos interesses do lucro. Correr eou omitir-se, significa deixar o caminho livre para aqueles quequerem impor a ordem da desintegração. Nada está separado oudesvinculado no universo. Se um certo equilíbrio ainda existe, édevido ás coisas e os seres que ainda conseguem cumprir seu papel.

É momento de interligar, causas e valores para que as diretrizesdo resgate do “húmus” que gera o homem, não seja extinto antesque a vida perca a forma humana.

Isto porque, que homens faremos com o húmus poluído,envenenado, queimado, sem sombras e sem florestas? Que frutospodemos colher deste húmus, ressecado, cheio de frestas de erosão?Que animais poderemos criar se o verde que poderia alimentá-losnão nasce, não cresce, neste húmus infértil, seco e sem vida? Quepeixes poderemos comer se este húmus ressecado obrigou-se ebebeu toda a água dos rios para saciar a sede, antes satisfeita comas águas da chuvas? Que variedades transgênicas poderãosobreviver sobre o húmus se a poluição destruiu a camada de ozônioque protegia a pele das folhas impedindo a fortidão dos raios solares?

O caminho para a reconstrução é longo. Mas a humanidadelevou desde seu surgimento, até o ano 1950 para, a golpes demachado, destruir a metade das florestas do mundo. Com adescoberta da “motosserra”, nos últimos 50 anos, já quase foidestruída 50% da outra metade. Somente as novas e as velhas causasinterligadas, poderão recolocar o trem da história sobre os trilhosdos valores coerentes com a defesa, o respeito e a solidariedadeentre as espécies.

16 Leonardo Boff. O ecocídio e o Biocídio. In 7 Pecados do Capital. Record.SP. RJ. 1999. P. 42

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3. D3. D3. D3. D3. DIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZESIRETRIZES QUEQUEQUEQUEQUE FUNDAMENTAMFUNDAMENTAMFUNDAMENTAMFUNDAMENTAMFUNDAMENTAM OSOSOSOSOS VALORESDVALORESDVALORESDVALORESDVALORESD

11111ooooo – Interligação entre as causas e as consciências – Interligação entre as causas e as consciências – Interligação entre as causas e as consciências – Interligação entre as causas e as consciências – Interligação entre as causas e as consciênciasNão basta olhar apenas para um ponto no infinito, a verdade

está distribuída um pouco em cada espécie e elemento da natureza.As causas invencíveis serão àquelas que tiverem capacidade deinterligar as várias formas de consciências: política, ecológica,estética, agrícola, artística, medicinal, pedagógica etc.

As causas da defesa e da resistência tornam-se cada vez maiscomuns. O capital afeta a autonomia da vida na medida em queprivatiza para individualizar a apropriação das coisas.

Quanto menos social forem as causas, mais opressão edesrespeito aos direitos da maioria.

As formas de luta devem estar combinadas com o caráter dasdiversas causas políticas e sociais em desenvolvimento no mundo.As minorias locais tornam-se maioria quando se articulamuniversalmente.

No caso específico do campo, sem se desviar da exigênciada realização da reforma agrária, os protestos devem se estenderpara questões pontuais que sejam contrários à lógica do projeto delibertação de 80% da população pobre do mundo.

Todos os movimentos sociais existentes no campo, devem serincentivados a lutar por um programa de reforma agrária comum,que ajude a construir este novo projeto com os movimentos eorganizações urbanas.

Com a política de globalização econômica do imperialismo,os problemas se tornam cada vez mais comuns, não importa seresidam no campo brasileiro ou na cidade, em Lima no Peru.

O capital requer cada vez mais lucro e o ser humano se tornacada vez mais descartável, como os objetos que se desfazem em lixo.

Esta diretriz de interligação entre as causas e as consciências,despertará a humildade e a sensibilidade anti-sectária com os valoresfundamentais para as alianças entre os explorados. Ninguém éportador absoluto da verdade, por isso precisamos lutar para saberse as idéias estão corretas. O triunfo apenas econômico, das lutasreivindicatórias não é o suficiente para garantir o bem estar dasfuturas gerações. Isto porque, o que é conseguido isoladamenteperde-se também isoladamente.

O capital e a classe dominante nacional e mundial, jamaisassumirão compromisso com as futuras gerações. Isto porque, ocapital vive do presente e espera pelo futuro para explorar aindamais. Somente as grandes potências mundiais são responsáveis por

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80% da poluição do planeta e não estão nada preocupadas com asconseqüências futuras.

Os pobres e explorados vivem no presente preparando ofuturo, por isso ele será com certeza vitorioso.

22222ooooo – T – T – T – T – Trabalho e respeito na convivênciarabalho e respeito na convivênciarabalho e respeito na convivênciarabalho e respeito na convivênciarabalho e respeito na convivênciaA organização do trabalho deve ir além da geração de renda,

extraída dos diferentes ramos de produção, extinguindo aociosidade. Deve criar uma nova identidade de seres sociais,políticos e humanos, combinada com a organização da convivênciacom as demais espécies. Cada ser social terá função social, notrabalho produtivo ou fora dele.

As relações de produção educam e organizam as pessoas nocaminho de um sistema social diferente. Trabalhar e conviver seconstitui em uma combinação de respeito com a identidade. Sersignifica existir. Existe harmoniosamente quem possui identidade erespeita a identidade dos outros.

A identidade Sem Terra, deve significar algo diferente naconvivência social. As pronúncias das palavras devem projetarimagens que simbolizem a produção de uma nova existência atravésde novas relações.

Mas a convivência não pode estar apenas relacionada aogueto localizado, deve abrir-se para a sociedade, estabelecendocom ela relações afetivas e de compromisso. O trabalho neste caso,assume características voluntárias e solidárias dentro e ao redor dasComunidades Camponesas.

A convivência deve cada vez mais estender-se dentro da áreageográfica. Não podemos aceitar a idéia imposta pelo Estado, queárea de reforma agrária é uma ilha. Ao contrário, devemos encararestas, como criação de Comunidades Camponesas, que se abrempara os demais habitantes, humanos, animais e vegetais do campo,para estender a eles as conquistas, os conhecimentos, as invenções,os programas e o projeto de sociedade futura.

O trabalho voluntário deve ampliar-se para a esfera, política,educativa e de saúde em busca da construção de alternativas, desuperação de entraves que impedem o desenvolvimento da vida.

É dentro desta compreensão que se justifica a idéia do popular,,,,,para o novo projeto. Assim a Escola deve ser pública, mas popular,porque a população a assume e participa dela. A saúde deve serpública, mas popular. Os créditos devem ser públicos, maspopulares; contrapondo-se a elite que sempre usou do Estado parafinanciar seus investimentos. O comércio deve ser público e popular

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etc. O povo deve assumir através de conselhos, núcleos e brigadas,o controle de todas as iniciativas e transformá-las em base daconstrução de um novo projeto, através de novas relações detrabalho e de convivência social. É a criação de uma novasuperestrutura social, em confronto com a superestrutura do estadoburguês.

A convivência somente será igualitária no dia em que aspessoas descobrirem a importância de cada espécie para manter oequilíbrio ecológico. Aí saberemos que as ervas queimadas serviriampara fazer remédios. As árvores servem para manter a umidade doar e a temperatura estável. Os urubus e os gaviões para manter alimpeza da terra e do ar. As minhocas para perfurar o solo e produzirhúmus para enriquecer o solo enfraquecido etc.

Viver, portanto se um dever e não apenas um prazertemporário.

33333ooooo – Cooperação e organização política – Cooperação e organização política – Cooperação e organização política – Cooperação e organização política – Cooperação e organização políticaA cooperação deve estar voltada para atingir objetivos políticos

acima dos objetivos econômicos. É a ciência da colaboraçãoorganizada.

Os produtos produzidos desta forma passam ter um sentidoideológico e cumprem função política, ao serem comercializadosno espaço social.

É o que fazem as grandes empresas com os produtosimportados. Influem no mercado, mas também no comportamento,nos hábitos e na linguagem que estabelecem através dos nomes dosobjetos que se movem no sistema de compra e venda onde as pessoasao realizarem as transações se alienam dos outros e de si mesmas.

As cores que embalam os produtos, reafirmam a ideologia dareforma agrária ou do dono do produto.

A cooperação deve combinar-se com as diferentesnecessidades humanas, seja na esfera econômica, política, cultural,artística, educacional etc.

Novamente reaparece a solidariedade de classe comoreferência. A luta política alcança seus objetivos quando asolidariedade se manifesta através de gestos concretos em defesados interesses de classe.

A defesa da reforma agrária se dará na medida em que acooperação política e solidária for estabelecida com os demaissetores da sociedade. Chegará o dia em que a simples opiniãofavorável não terá mais efeito, para defender as idéias e as práticas.

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Será preciso o envolvimento direto e concreto de todos os queacreditam na possibilidade de mudanças.

A anomia dos movimentos sociais não pode ser eterna. Emcada espaço social há um mastro a espera de uma bandeira. Bastacompreender que a dignidade é fruto da ousadia de buscá-la emantê-la viva.

44444ooooo – Desenvolvimento e coerência – Desenvolvimento e coerência – Desenvolvimento e coerência – Desenvolvimento e coerência – Desenvolvimento e coerênciaNão pode haver desenvolvimento sem coerência com aquilo

que acreditamos. Aqui entra o projeto de revolução cultural que,em nosso caso, prepara a revolução social e política.

Uma sociedade ou comunidade, não pode se desenvolverpara alienar as pessoas, afastando-as das decisões e do destino dosobjetos que produzem. Quando isto ocorre, as pessoas perdem ocontrole sobre o seu próprio futuro.

É preciso elevar a consciência de todas as pessoas para quecompreendam o que está sendo edificado. Porque se edifica destaforma e não de outra.

O assentamento passa ser uma trincheira de resistênciacultural, quando edifica em si, o monumento da coerência históricae moral dos que lutaram. Ali o imperialismo pode entrar comoimagem, mas nunca conseguirá transformar-se em ideologia. Abarreira da consciência impede que ele se hospede e ali permaneça.

O desenvolvimento social modificará os hábitos, as práticas,as idéias e os valores, constituindo-se uma nova consciência emtorno do papel do ser humano no universo, e sua relação com asdemais obrigações sociais.

Os avanços tecnológicos corretamente desenvolvidos servirãopara facilitar a relação de gênero e para diminuir e eliminar ospreconceitos.

Coerente é aquele que consegue andar sem disfarçar os rastrosque deixa pelo caminho. Evita equivocar-se simplesmente para matarcuriosidades e não brinca com o destino daqueles que caminhamem busca do suficiente para viver. Nem mais nem menos do que onecessário.

Os valores de um povo novo desenvolvem-se a cada passo,não se inventa o caminho, apenas emprega-se esforço para fazê-loacontecer.

A coerência terá que combinar idéias, práticas e valores semobstruir o direito da vida acontecer e se manifestar no verde dasfolhas, no vermelho das flores e das bandeiras, no canto do povo enas asas dos pássaros.

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55555ooooo – Imaginação e disponibilidade – Imaginação e disponibilidade – Imaginação e disponibilidade – Imaginação e disponibilidade – Imaginação e disponibilidadeSomente teremos condições de criarmos novas relações no

campo se as pessoas aprenderem a antecipar o que querem nofuturo, através da imaginação e fazerem isto acontecer através dadisponibilidade.

As crianças devem tentar construir suas fantasias através dotrabalho educativo. Os jovens devem imaginar e criar formas queelevem o nível cultural, e os adultos possam servir de exemplo deedificação anteriormente sonhados.

Estas duas características (imaginação e disponibilidade)alimentam a mística e dão às organizações populares, maiorqualidade e consistência.

A construção do imaginado é dolorosa quando não dependeapenas de nossa vontade. Mas é preciso imaginar e dispor-se arealizar.

A disponibilidade leva-nos a perder oportunidades deacompanhar o soletrar das primeiras palavras e ensaiar os primeirospassos de nossos filhos, mas é sinal que o egoísmo está sendocombatido através do desapego da própria comodidade, paracontribuir com o crescimento de outras lutas e ações que envolvemmuito mais pessoas do que nossa simples família.

Disponibilidade é sujeitar-se a trocar o colchão e os cobertoresmacios, para esticar as lonas frias antes de estender as esteiras paraplantar a semente do conflito que leva a libertação da terra.

Disponibilidade é sonhar e partir em busca de cada sonho,para não deixá-los adormecer.

Sonhar não cansa. O que cansa é sonhar e duvidar dospróprios sonhos. Pissarev, citado por Lênin disse que “(...) Meu sonhopode ultrapassar o curso natural dos acontecimentos, ou desviar-separa uma direção onde o curso natural dos acontecimentos jamaispoderá conduzir. No primeiro caso, o sonho não produz nenhummal; pode até sustentar e reforçar a energia do trabalhador... Em taissonhos, nada pode corromper ou paralisar a força de trabalho. Aocontrário. Se o homem fosse completamente desprovido dafaculdade de sonhar assim, se não pudesse de vez em quandoadiantar o presente e contemplar a imaginação o quadro lógico einteiramente acabado da obra que apenas esboça em suas mãos,eu não poderia decididamente compreender o que levaria o homema empreender e realizar vastos e fatigantes trabalhos na arte, naciência e na vida prática... O desacordo entre o sonho e a realidadenada tem de nocivo se, cada vez que sonha, o homem acreditaseriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara

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suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral,trabalha conscientemente para a realização de seu sonho. Quandoexiste contato entre o sonho e a vida, tudo vai bem”17

Nossa tarefa primeira é sonhar, sem medo de levar o sonhopresente até o futuro, e deixá-lo lá descansando, até o dia em que ofuturo se tornar presente, com grande parte do que sonhamosrealizado.

17 V. I. Lênin. Que Fazer? Hucitec. SP. 1986. p.133.

Ademar Bogo, abril de 2003

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IntroduçãoRetomamos a reflexão sobre a natureza do cuidado essencial.

A porta de entrada não pode ser a razão calculatória, analítica eobjetivista. Ela nos levaria ao trabalho-intervenção-produção e ainos aprisionaria. As máquinas e os computadores são mais eficazesque nós na utilização deste tipo de razão-trabalho.

Há algo nos seres humanos que não se encontra nas máquinas,surgido há milhões de anos no processo evolutivo quandoemergiram os mamíferos, dentro de cuja espécie nos inscrevemos:o sentimento, a capacidade de emocionar-se, de envolver-se, deafetar e de sentir-se afetado.

Um computador e um robô não têm condições de cuidar domeio ambiente, de chorar sobre as desgraças dos outros e derejubilar-se com a alegria do amigo. Um computador não temcoração.

Só nós humanos podemos sentar-nos à mesa com o amigofrustrado, colocar-lhe a mão no ombro, tomar com ele um copo decerveja e trazer-lhe consolação e esperança. Construímos o mundoa partir de laços afetivos. Esses laços tornam as pessoas e as situaçõespreciosas, portadoras de valor. Preocupamo-nos com elas. Tomamostempo para dedicar-nos a elas. Sentimos responsabilidade pelo laçoque cresceu entre nós e os outros. A categoria cuidado recolhe todoesse modo de ser. Mostra como funcionamos enquanto sereshumanos.

Daí se evidencia que o dado originário não é o logos* a razãoe as estruturas de compreensão, mas o pathos, o sentimento, acapacidade de simpatia e empatia, a dedicação, o cuidado e acomunhão com o diferente. Tudo começa com o sentimento. É osentimento que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta, que nosfaz desgostar. É o sentimento que nos une às coisas e nos envolvecom as pessoas. É o sentimento que produz encantamento face à

II. SABER CUIDAR: A ÉTICA DO HUMANO19

- Leonardo Boff -

19 Leonardo Boff Leonardo Boff Leonardo Boff Leonardo Boff Leonardo Boff - O texto foi extraído do livro: “Saber cuidar: Ética dohumano - compaixão pela terra capítulos VII e IX, Editora Vozes, 1999.Autorizado pelo autor.

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grandeza dos céus, suscita veneração diante da complexidade daMãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de umrecém-nascido.

Recordemos a frase do Pequeno Príncipe de Antoine de SaintExupéry, que fez fortuna na consciência coletiva dos milhões deleitores: “É com o coração (sentimento) que se vê corretamente; oessencial é invisível aos olhos”. É o sentimento que torna pessoas,coisas e situações importantes para nós. Esse sentimento profundo,repetimos, se chama cuidado. Somente aquilo que passou por umaemoção, que evocou um sentimento profundo e provocou cuidadoem nós, deixa marcas indeléveis e permanece definitivamente.

A reflexão contemporânea resgatou a centralidade do sentimento,a importância da ternura, da compaixão e do cuidado, especialmentea partir da psicologia profunda de Freud, Jung, Adler, Rogers eHillman, e hodiernamente a partir da biologia genética e dasimplicações antropológicas da física quântica e a Niels Bohr (1885-1962) e a Werner Heisenberg (1901-1976).

Mais do que o cartesiano cogito ergo sumi*: penso, logo existo,vale o sentio ergo sum: sinto, logo existo. O livro de Daniel Goleman,Inteligência Emocional transformou-se num best-seller mundialporque, à base de investigações empíricas sobre o cérebro e aneurologia, mostrou aquilo que já PIatão (427-347 aC), SantoAgostinho (354-430), a escola franciscana medieval com S.Boaventura e Duns Scotus no século XIII, Pascal (1623-1662),ScWeiermacher (1768-1834) e Heidegger (1889-1976) ensinaramhá muito tempo: a dinâmica básica do ser humano é o pathos} é osentimento, é o cuidado, é a lógica do coração. ‘A mente racional”- conclui Golemnan - “leva um ou dois momentos mais para registrare reagir do que a mente emocional; o primeiro impulso ... é docoração, não da cabeça”.

Agora estamos em melhores condições para entender, emprofundidade, a fábula-mito de Higino sobre o cuidado. O cuidadoé tão essencial que é anterior ao espírito infundido por Júpiter e aocorpo fornecido pela Terra. Portanto, a concepção do ser humanocomo composto de espírito-corpo não é originária. A fábula diz:“O cuidado foi quem primeiro moldou o ser humano”. O cuidadose encontra antes, é um a priori ontológico, está na origem daexistência do ser humano. E essa origem não é apenas um começotemporal. A origem tem um sentido filosófico de fonte donde brotapermanentemente o ser. Portanto, significa que o cuidado constitui,na existência humana, uma energia que jorra ininterruptamente emcada momento e circunstância. Cuidado é aquela força originante

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que continuamente faz surgir o ser humano. Sem ela, ele continuariasendo apenas uma porção de argila como qualquer outra à margemdo rio, ou um espírito angelical desencarnado c fora do tempohistórico.

Foi com cuidado que “Cuidado” moldou o ser humano.Empenhou aí dedicação, ternura, devoção, sentimento e coração.E com isso criou responsabilidades e fez surgir a preocupação como ser que ele plasmou. Essas dimensões, verdadeiros princípiosconstituintes, entraram na composição do ser humano. Viraramcarne e sangue. Sem tais dimensões, o ser humano jamais seriahumano. Por isso, a fábula-mito de Higino termina enfati-zandoque cuidado acompanhará o ser humano ao largo de toda a suavida, ao longo de todo o seu percurso temporal no mundo.

Um psicanalista atento ao drama da civilização modernacomo o norte-americano Rollo May podia comentar: “Nossasituação é a seguinte: na atual confusão de episódios racionalistase técnicos perdemos de vista e nos despreocupamos do ser humano;precisamos agora voltar humildemente ao simples cuidado ... é omito do cuidado - e creio, multas vezes, somente ele - que nospermite resistir ao cinismo e à apatia que são as doençaspsicológicas do nosso tempo”.

O que nossa civilização precisa é superar a ditadura do modo-de-ser-trabalho-produção-dominação. Ela nos mantém reféns de umlógica que hoje se mostra destrutiva da Terra e de seus recursos, darelações entre os povos, das interações entre capital e trabalho, deespiritualidade e de nosso sentido de pertença a um destino comum.Libertados dos trabalhos estafantes e desumanizadores, agora feitopelas máquinas automáticas, recuperaríamos o trabalho em seusentido antropológico originário, como plasmação da natureza ecom atividade criativa, trabalho capaz de realizar o ser humano ede construir sentidos cada vez mais integradores com a dinâmicada natureza e do universo.

Importa colocar cuidado em tudo. Para isso urge desenvolvera dimensão anima* que está em nós. Isso significa: conceder direitode cidadania à nossa capacidade de sentir o outro, de ter compaixãocom todos os seres que sofrem, humanos e não humanos, deobedecer mais à lógica do coração, da cordialidade e da gentilezado que à lógica da conquista e do uso utilitário das coisas.

Dar centralidade ao cuidado não significa deixar de trabalhare de intervir no mundo. Significa renunciar à vontade de poder quereduz tudo a objetos, desconectados da subjetividade humana.Significa recusar-se a todo despotismo e a toda dominação. Significa

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impor limites à obsessão pela eficácia a qualquer custo. Significaderrubar a ditadura da racionalidade fria e abstrata para dar lugarao cuidado. Significa organizar o trabalho em sintonia com anatureza, seus ritmos e suas indicações. Significa respeitar acomunhão que todas as coisas entretêm entre si e conosco. Significacolocar o interesse coletivo da sociedade, da comunidade bióticae terrenal acima dos interesses exclu-sivamente humanos. Significacolocar-se junto e ao pé de cada coisa que queremos transformarpara que ela não sofra, não seja desenraizada de seu habitat e possamanter as condições de desenvolver-se e co-evoluir junto com seusecossistemas e com a própria Terra. Significa captar a presença doEspírito para além de nossos limites humanos, no universo, nasplantas, nos organismos vivos, nos grandes símios gorilas,chimpanzés e orangotangos, portadores também de sentimentos,de linguagem e de hábitos culturais semelhantes aos nossos.

Estes são os antídotos ao sentimento de abandono que ospobres e os idosos sentem. Estas são as medicinas contra o descuidoque os excluídos, os desempregados, os aposentados, os idosos eos jovens denunciam na maioria das instituições públicas. Elas sepreocupam cada vez menos com o ser humano e se ocupam cadavez mais com a economia, com as bolsas, com os juros, com ocrescimento ilimitado de bens e serviços materiais, apropriados pelasclasses privilegiadas à custa da dignidade e da compaixãonecessárias face às carências das grandes maiorias. Este é o remédioque poderá impedir a devastação da biosfera e o comprometimentodo frágil equilíbrio de Gaia. Este é o modo-de-ser que resgata a nossahumanidade mais essencial.

1. Cuidado com o nosso planeta1. Cuidado com o nosso planeta1. Cuidado com o nosso planeta1. Cuidado com o nosso planeta1. Cuidado com o nosso planetaCuidado todo especial merece nosso planeta Terra. Temos

unicamente ele para viver e morar. É um sistema de sistemas esuperorganismo de complexo equilíbrio, urdido ao longo de milhõese milhões de anos. Por causa do assalto predador do processoindustrialista dos últimos séculos esse equilIbrio está prestes a romper-se em cadeia. Desde o começo da industriauzação, no século XVIII,a população mundial cresceu 8 vezes, consumindo mais e maisrecursos naturais; somente a produção, baseada na exploração danatureza, cresceu mais de cem vezes. O agravamento deste quadrocom a mundialização do acelerado processo produtivo fazaumentar a ameaça e, conseqüentemente, a necessidade de umcuidado especial com o futuro da Terra.

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Parca é a consciência coletiva que pesa sobre o nosso beloplaneta. Os que poderiam conscientizar a humanidade desfrutamgaiamente a viagem em seu Titanic de ilusões. Mal sabem quepodemos ir ao encontro de um iceberg ecológico que nos faráafundar celeremente.

Trágico é o fato de que faltam instâncias de gerenciamentoglobal dos problemas da Terra. A ONU possui cerca de 40 projetosque tratam de problemas globais, como os climas, odesflorestamento, a contaminação do ar, dos solos e das águas, afome, as epidemias, os problemas dos jovens, dos idosos, asmigrações, entre outros. Ela é regida pelo velho paradigma dasnações imperialistas que vêem os estados-nações e os blocos depoder mas não descobriram ainda a Terra como objeto de cuidado,de uma política coletiva de salvação terrenal.

Para cuidar do planeta precisamos todos passar por umaalfabetização ecológica e rever nossos hábitos de consumo. Importadesenvolver uma ética do cuidado.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente(PNUMA), o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e a UniãoInternacional para a Conservação da Natureza (UICN) elaboraramuma estratégia minuciosa para o futuro da vida sob o título:“Cuidando do planeta Terra” (Caring for the Earth 1991). Aiestabelecem nove princípios de sustentabilidade da Terra. Projetamuma estratégia global fundada no cuidado:1. Construir uma sociedade sustentável.

2. Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos.

3. Melhorar a qualidade da vida humana.

4. Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta Terra.

5. Permanecer nos limites da capacidade de suporte do planetaTerra.

6. Modificar atitudes e práticas pessoais.

7.Permitir que as comunidades cuidem de seu próprio meio-ambiente.

8. Gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimentoconservação.

9. Constituir uma aliança global

Estes princípios dão corpo ao cuidado essencial com a Terra.O cuidado essencial é a ética de um planeta sustentável. Bem

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enfatizava o citado documento Cuidando do planeta Terra: “a éticade cuidados se aplica tanto a nível internacional como a níveisnacional e individual; nenhuma nação é auto-suficiente; todoslucrarão com a sustenta-bilidade mundial e todos estarãoameaçados se não conseguirmos atingi-Ia”. Só essa ética do cuidadoessencial poderá salvar-nos do pior. Só ela nos rasgará um horizontede futuro e de esperança.

2. Cuidado com o próprio nicho ecológico2. Cuidado com o próprio nicho ecológico2. Cuidado com o próprio nicho ecológico2. Cuidado com o próprio nicho ecológico2. Cuidado com o próprio nicho ecológicoO cuidado com a Terra representa o global. O cuidado com o

próprio nicho ecológico representa o local. O ser humano tem ospés no chão (local) e a cabeça aberta para o infinito (global). Ocoração une chão e infinito, abismo e estrelas, local e global. Alógica do coração é a capacidade de encontrar a justa medida econstruir o equilíbrio dinâmico.

Para isso cada pessoa precisa descobrir-se como parte doecossistema local e da comunidade biótica, seja em seu aspecto denatureza, seja em sua dimensão de cultura. Precisa conhecer osirmãos e irmãs que compartem da mes-ma atmosfera, da mesmapaisagem, do mesmo solo, dos mesmos mananciais, das mesmasfontes de nutrientes; precisa conhecer o tipo de plantas, animais emicroorganismos que convivem naquele nicho ecológico comum;precisa conhecer a história daquelas paisagens, visitar aqueles riose montanhas, freqüentar aquelas cascatas e cavernas; precisaconhecer a história das populações que aí viveram sua saga econstruíram seu habitat, como trabalharam a natureza, como aconservaram ou a depredaram, quem são seus poetas e sábios,heróis e heroínas, santos e santas, os pais/mães fundadores decivilização local.

Tudo isso significa cuidar do próprio nicho ecológico, vivenciá-Io com o coração, como o seu próprio corpo estendido eprolongado; descobrir as razões para consevá-Io e fazê-Iodesenvolver, obedecendo à dinâmica do ecossistema nativo.

O que vale para o indivíduo vale também para a comunidadelocal. Ela deve fazer o mesmo percurso de inserção no ecos sistemalocal e cuidar do meio-ambiente; utilizar seus recursos de formafrugal, minimizar desgastes, reciclar materiais, conservar abiodiversidade. Deve conhecer a sua história, seus personagensprincipais, seu folclore. Deve cuidar de sua cidade, de suas praçase lugares públicos, de suas casas e escolas, de seus hospitais eigrejas, de seus teatros, cinemas e estádios de esporte, de seus

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monumentos e da memória coletiva do povo. Assim, como exemplo,escolher as espécies vegetais do ecossistema local para plantar nosparques e vias públicas, e nos restaurantes valorizar a cozinha locale regional.

Esse cuidado com o nicho ecológico só será efetivo se houverum processo coletivo de educação, em que a maioria participe,tenha acesso a informações e faça “troca de saberes”. O saberpopular contido nas tradições dos velhos, nas lendas e nas estóriasdos índios, caboclos, negros, mestiços, imigrantes, dos primeirosque aí viveram, confrontado e complementado com o saber críticocientífico. Esses saberes revelam dimensões da realidade local e sãoportadores de verdade e de sentido profundo a ser decifrado e a serincorporado por todos. O que daí resulta é uma profunda harmoniadinâmica do ecossistema onde os seres vivos e inertes, as instituiçõesculturais e sociais, enfim todos encontram seu lugar, interagem, seacolhem, se complementam e se sentem em casa.

3. Cuidado com a sociedade sustentável3. Cuidado com a sociedade sustentável3. Cuidado com a sociedade sustentável3. Cuidado com a sociedade sustentável3. Cuidado com a sociedade sustentávelAtualmente quase todas as sociedades estão enfermas.

Produzem má qualidade de vida para todos, seres humanos edemais seres da natureza. E não poderia ser diferente, pois estãoassentadas sobre o modo de ser do trabalho entendido comodominação e exploração da natureza e da força do trabalhador. Àexceção de sociedades originárias como aquelas dos indígenas ede outras minorias no sudeste da Ásia, da Oceania e do Ártico,todas são reféns de um tipo de desenvolvimento que apenas atendeas necessidades de uma parte da humanidade (os paísesindustrializados), deixando os demais na carência, quando nãodiretamente na fome e na miséria. Somos uma espécie que semostrou capaz de oprimir e massacrar seus próprios irmãos e irmãsda forma mais cruel e sem piedade. Só neste século morreram emguerras, em massacres e em campos de concentração cerca de 200milhões de pessoas. E ainda degenera e destrói sua base de recursosnaturais não renováveis.

Não se trata somente de impor “Limites ao Crescimento” (títuloda primeira solução apresentada em 1972 pelo Clube de Roma)mas de mudar o tipo de desenvolvimento. Diz-se que o novodesenvolvimento deve ser sustentável. Ora, não existedesenvolvimento em si, mas sim uma sociedade que opta pelodesenvolvimento que quer e que precisa. Dever-se-ia falar desociedade sustentável ou de um planeta sustentável como pré-condi-

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ções indispensáveis para um desenvolvimento verdadeiramenteintegral.

Sustentável é a sociedade ou o planeta que produz o suficientepara si e para os seres dos ecossistemas onde ela se situa; que tomada natureza somente o que ela pode repor; que mostra um sentidode solidariedade generacional, ao preservar para as sociedadesfuturas os recursos naturais de que elas precisarão. Na prática asociedade deve mostrar-se capaz de assumir novos hábitos e deprojetar um tipo de desenvolvimento que cultive o cuidado com osequilíbrios ecológicos e funcione dentro dos limites impostos pelanatureza. Não significa voltar ao passado, mas oferecer um novoenfoque para o futuro comum. Não se trata simplesmente de nãoconsumir, mas de consumir responsavelmente.

O móvel deste tipo de desenvolvimento não está namercadoria nem no mercado, nem no estado, nem no setor privado,nem na produção de riqueza. Mas na pessoa humana, nacomunidade e nos demais seres vivos que partilham com ela aaventura terrenal.

O desenvolvimento aqui vem concebido dentro de outroparadigma, já assimilado por certos setores da ONU. Numaconhecida declaração sobre o Direito dos Povos aoDesenvolvimento, de 18 de outubro de 1993, declarou a Comissãodos Direitos Humanos da ONU: “O desenvolvimento é um processoeconômico, social, cultural e político abrangente, que visa oconstante melhoramento do bem-estar de toda a população e decada pessoa, na base de sua participação ativa, livre e significativae na justa distribuição dos benefícios resultantes dele”. Nósacrescentaríamos ainda, no sentido da integralidade, a dimensãopsicológica e espiritual do ser humano.

Dito em termos simples, o desenvolvimento social visamelhorar a qualidade da vida humana enquanto humana. Issoimplica em valores universais como vida saudável e longa,educação, participação política, democracia social e participativae não apenas representativa, garantia de respeito aos direitoshumanos e de proteção contra a violência, condições para umaadequada expressão simbólica e espiritual. Tais valores somente sealcançam se há um cuidado na construção coletiva do social, se háconvivialidade entre as diferenças, cordialidade nas relações sociais,compaixão com todos aqueles que sofrem ou se sentem à margem,criando estratégias de compensação e de integração. Cuidadoespecial merecem os doentes, os idosos, os portadores de algumestigma social, os marginalizados e excluídos. Por eles se mede o

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quanto de sustentabilidade e de cuidado essencial realizou e realizauma sociedade. Além disso, importante é cultivar compreensão,paciência histórica, capacidade de diálogo e sentido de integraçãocriativa com referência ao lado diabólico e demente da históriahumana. Tais valores se incluem no cuidado essencial.

4. Cuidado com o outro, 4. Cuidado com o outro, 4. Cuidado com o outro, 4. Cuidado com o outro, 4. Cuidado com o outro, animus e animaanimus e animaanimus e animaanimus e animaanimus e animaNão há só a rede de relações sociais. Existem as pessoas

concretas, homens e mulheres. Como humanos, as pessoas são seresfalantes; pela fala constroem o mundo com suas relações. Por isso,o ser humano é, na essência, alguém de relações ilimitadas. O eusomente se constitui mediante a dialogação com o tu, como o virampsicólogos modernos e, anteriormente, fIlósofos personalistas. O tupossui uma anterioridade sobre o eu. O tu é o parteiro do eu.

Mas o tu não é qualquer coisa indefinida. É concretamenteum rosto com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna impossívela indiferença. O rosto do outro me obriga a tomar posição porquefala, pro-voca, e-voca e con-voca. Especialmente o rosto doempobrecido, marginalizado e excluído.

O rosto possui um olhar e uma irradiação da qual ninguémpode subtrair-se. O rosto e o olhar lançam sempre uma pro-postaem busca de uma res-posta. Nasce assim a res-ponsabilidade, aobrigatoriedade de dar res-postas. Aqui encontramos o lugar donascimento da ética que reside nesta relação de responsabilidadediante do rosto do outro, particularmente do mais outro que é ooprimido. É na acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidadepara com o rosto do outro que se estabelecem as relações maisprimárias do ser humano e se decidem as tendências de dominaçãoou de cooperação.

Cuidar do outro é zelar para que esta dialogação, esta açãode diálogo eu-tu, seja libertadora, sinergética e construtora dealiança perene de paz e de amorização.

O outro se dá sempre sob a forma de homem e de mulher.São diferentes mas se encontram no mesmo chão comum dahumanidade. Ambos realizam, em seu modo singular, a essênciahumana, abissal e misteriosa. A diferença entre eles não é algofechado e definido, mas algo sempre aberto e plasmável, pois seencontram em permanente inter-ação e reciprocidade.

Na linguagem cunhada por C. G. Jung cada um possui dentrode si o animus (a dimensão do masculino) e a anima (a dimensãodo feminino). O homem desperta na mulher sua dimensão masculinaexpressa culturalmente pelo modo-de-ser-trabalho; a mulher evoca

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no homem sua dimensão feminina, concretizada historicamentepelo modo-de-ser-cuidado.

Cuidar do outro animus-anima implica um esforço ingente desuperar a dominação dós sexos, desmontar o patriarcalismo e omacrusmo, por um lado, e o matriarcalismo e o feminismoexcludente, por outro. Exige inventar relações que propiciem amanifestação das diferenças não mais entendidas comodesigualdades, mas como riqueza da única e complexa substânciahumana. Essa convergência na diversidade cria espaço para umaexperiência mais global e integrada de nossa própria humanidade,uma maneira mais cuidada de ser.

5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídosUm dos maiores desafios lançados à politica orientada pela ética

e ao modo-de-ser-cuidado é indubitavelrnente o dos milhões emilhões de pobres, oprimidos e excluídos de nossas sociedades.Esse antifenômeno resulta de formas altamente injustas daorganização social hoje mundialmente integrada. Com efeito, graçasaos avahços tecnológicos, nas últimas décadas verificou-se umcrescimento fantástico na produção de serviços e bens materiais,entretanto, desumanamente distribuídos, fazendo com que 2/3 dahumanidade viva em grande pobreza. Nada agride mais o modo-de-ser-cuidado do que a crueldade para com os própriossemelhantes.

Como tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A respostaa esta pergunta divide, de cima a baixo, as políticas públicas, astradições humanisticas, as religiões e as igrejas cristãs. Cresce maise mais a convicção de que as estratégias meramente assistencialistase paternalistas não resolvem como nunca resolveram os problemasdos pobres e dos excluídos. Antes, perpetua-os, pois os mantêm nacondição de dependentes e de esmoleres, humilhando-os pelo nãoreconhecimento de sua força de transformação da sociedade.

A libertação dos oprimidos deverá provir deles mesmos, namedida em que se conscientizam da injustiça de sua situação, seorganizam entre si e começam com práticas que visam transformarestruturalmente as relações sociais iniquas. A opção pelos pobrescontra a sua pobreza e em favor de sua vida e liberdade constituiu eainda constitui a marca registrada dos grupos sociais e das igrejasque se puseram à escuta do grito dos empobrecidos que podem sertanto os trabalhadores explorados, os indígenas e negrosdiscriminados, quanto as mulheres oprimidas e as minoriasmarginalizadas, como os portadores do vírus da Aids ou de qualquer

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outra deficiência. Não são poucos aqueles que não sendo oprimidosse fizeram aliados dos oprimidos, para junto com eles e na perspectivadeles empenhar-se por transformações sociais profundas.

O compromisso dos oprimidos e de seus aliados por um novotipo de sociedade, na qual se supera a exploração do ser humano ea espoliação da Terra, revela a força política da dimensão-cuidado.

Qual é o móvel último subjacente aos movimentos dos sem-terra, dos sem-teto, dos privados de direitos sociais, dos meninos emeninas de rua, dos idosos, dos povos da floresta, entre outros,senão o cuidado com a vida humana? É o cuidado e o enterneci-mento pela inalienáve1 dignidade da vida que move as pessoas eos movimentos a protestar, a resistir e a mobilizar-se para mudar ahistória. Os profetas antigos e modernos nos mostram a coexistênciadestas duas atitudes presentes no cuidado político: a dureza nadenúncia dos opressores e o enternecimento no consolo das vítimas.

Não tem cuidado com os empobrecidos e excluídos quemnão os ama concretamente e não se arrisca por sua causa. Aconsolidação de uma sociedade mundial globalizada e osurgimento de um novo paradigma civilizacional passa pelocuidado com os pobres, marginalizados e excluídos. Se seusproblemas não forem equacionados, permaneceremos ainda na pré-história. Poderemos ter inaugurado o novo milênio, mas não a novacivilização e a era de paz eterna com todos os humanos, os seresda criação e o nosso esplêndido planeta.

6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doença6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doença6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doença6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doença6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doençaQuando falamos em corpo não devemos pensar no sentido

usual da palavra, que contrapõe corpo a alma, matéria a espírito.Corpo seria uma parte do ser humano e não sua totalidade. Nasciências contemporâneas prefere-se falar de corporecidade paraexpressar o ser humano como um todo vivo e orgânico. Fala-se dehomem-corpo, homem-alma para designar dimensões totais dohumano.

Essa compreensão deixa para trás o dualismo corpo-alma einaugura uma visão mais globalizarrte. Entre matéria e espírito estáa vida que é a interação da matéria que se complexifica, seinterioriza e se auto-organiza. Corpo é sempre animado. “Cuidardo corpo de alguém”, dizia um mestre do espírito, “é prestar atençãoao sopro que o anima”.

Resumindo, podemos dizer que o corpo é aquela porção douniverso que nós animamos, informamos, conscientizamos epersonalizamos. É formado pelo pó cósmico, circulando no espaço

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interestelar há bilhões de anos, antes da formação das galáxias, dasestrelas e dos planetas, pó esse provavelmente mais velho que osistema solar e a própria Terra. O ferro que corre pelas veias docorpo, o fósforo e o cálcio que fortalecem os ossos e os nervos, os18% de carbono e os 65% de oxigênio mostram que somosverdadeiramente cósmicos.

Corpo é um ecossistema vivo que se articula com outrossistemas mais abrangentes. Pertencemos à espécie homo) quepertence ao sistema Terra, que pertence ao sistema galáctico e aosistema cósmico. Nele funciona um sistema interno de regulaçãode frio e de calor, de sono e de vigília, dos fenômenos da digestão,da respiração, das batidas cardíacas, entre outros.

Mais ainda. O corpo vivo é subjetividade. Já se disse que “ocorpo é nossa memória mais arcaica”, pois em seu todo e em cadauma de suas partes guarda informações do longo processo evolutivo.Junto com a vida do corpo se realizam os vários níveis daconsciência (a originária, a oral, a anal, a social, a autônoma e atranscendental), onde estas memórias se expressam e se enriqueceminteragindo com o meio.

Através do corpo se mostra a fragilidade humana. A vidacorporal é mortal. Ela vai perdendo seu capital energético, seusequil1brios, adoece e finalmente morre. A morte não vem no fimda vida. Ela começará no seu primeiro momento.Vamos morrendo,lentamente, até acabar de morrer. A aceitação da mortalidade davida nos faz entender de forma diferente a saúde e a doença.

Quem é são pode ficar doente. A doença significa um dano àtotalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minhatotalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte queestá doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões:em relação a si mesmo (experimenta os limites da vida mortal), emrelação com a sociedade (se isola, deixa de trabalhar e tem que setratar num centro de saúde), em relação com o sentido global davida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta porque exatamente eu fiquei doente?).

A doença remete à saúde. Toda cura deve reintegrar asdimensões da vida sã, no nível pessoal, social e no fundamentalque diz respeito ao sentido supremo da existência e do universo.Por isso o primeiro passo consiste em reforçar a dimensão-saúdepara que ela cure a dimensão-doença.

Para reforçar a dimensão-saúde devemos enriquecer nossacompreensão de saúde. Não podemos entendê-Ia como a ideologiadominante com suas técnicas sofisticadas e seus inúmeros coquetéis

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de vitaminas. A saúde é concebida como “saúde total”, como sefosse um fim em si mesma, sem responder à questão básica: quefaço na vida com minha saúde? Distanciamo-nos da conhecidadefinição de saúde da Organização Mundial da Saúde da ONUque reza: “Saúde é um estado de bem-estar total, corporal, espirituale social e não apenas inexistência de doença e fraqueza”.

Essa compreensão não é realista, pois parte de uma suposiçãofalsa, de que é possível uma existência sem dor e sem morte. Étambém inumana porque não recolhe a concretitude da vida que émortal. Não descobre dentro de si a morte e seus acompanhantes,os achaques, as fraquezas, as enfermidades, a agonia e a despedidafinal. Acresce ainda que a saúde não é um estado, mas um processopermanente de busca de equil1brio dinâmico de todos os fatoresque compõem a vida humana. Todos esses fatores estão a serviçoda pessoa para que tenha força de ser pessoa, autônoma, livre, abertae criativa face às várias injunções que vier a enfrentar.

A força de ser pessoa significa a capacidade de acolher a vidaassim como ela é, em suas virtualidades e em seu entusiasmointrínseco, mas também em sua finitude e em sua mortalidade. Aforça de ser pessoa traduz a capacidade de conviver, de crescer ede humanizar-se com estas dimensões de vida, de doença e demorte.

Saúde e cura designam o processo de adaptação e deintegração das mais diversas situações, nas quais se dá a saúde, adoença, o sofrimento, a recuperação, o envelhecimento e ocaminhar tranqüilo para a grande passagem da morte. Saúde,portanto, não é um estado nem um ato existencial, mas uma atitudeface às várias situações que podem ser doentias ou sãs. Ser pessoanão é simplesmente ter saúde, mas é saber enfrentar saudavelmentea doença e a saúde. Ser saudável significa realizar um sentido devida que englobe a saúde, a doença e a morte. Alguém pode estarmortalmente doente e ser saudável porque com esta situação demorte cresce, se humaniza e sabe dar sentido àquilo que padece.

Como disse um conhecido médico alemão: “Saúde não é aausência de danos. Saúde é a força de viver com esses danos”.Saúde é acolher e amar a vida assim como se apresenta, alegre etrabalhosa, saudável e doentia, limitada e aberta ao ilimitado quevirá além da morte.

Que significa cuidar de nosso corpo, assim entendido? Imensatarefa. Implica cuidar da vida que o anima, cuidar do conjunto dasrelações com a realidade circundante, relações essas que passam

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pela higiene, pela alimentação, pelo ar que respiramos, pela formacomo nos vestimos, pela maneira como organizamos nossa casa enos situamos dentro de um determinado espaço ecológico. Essecuidado reforça nossa identidade como seres nós-de-relações paratodos os lados. Cuidar do corpo significa a busca de assimilaçãocriativa de tudo o que nos possa ocorrer na vida, compromissos etrabalhos, encontros significativos e crises existenciais, sucessos efracassos, saúde e sofrimento. Somente assim nos transformamosmais e mais em pessoas amadurecidas, autônomas, sábias eplenamente livres.

7. Cuidado com a cura integral do ser humano7. Cuidado com a cura integral do ser humano7. Cuidado com a cura integral do ser humano7. Cuidado com a cura integral do ser humano7. Cuidado com a cura integral do ser humanoA cura integral do ser humano é tão importante que demanda

um prolongamento de nossa reflexão anterior. Nas grandes tradiçõesterapêuticas da humanidade sempre houve a percepção de que acura é um processo global, envolvendo a totalidade do ser humanoe não apenas a parte enferma. Reportemo-nos à nossa tradiçãoocidental ligada à figura de Asclépio (dos gregos) ou de Esculápio(dos Ia tinos). Dessa tradição vem o pai da medicina clássica emoderna, Hipócrates (460-377 aC).

Asclépio era, historicamente, um herói curador que possuíaseu centro em Epidauro, no coração da Grécia. Por mais de milanos acorriam ao seu templo os enfermos de todas as partes domundo antigo. A eficácia de seus métodos era de tal ordem que,após a sua morte, Asclépio acabou sendo divinizado.Simultaneamente como homem e deus sinalizava que a cura seriacompleta se resultasse da intervenção humana e divina, se fossecorporal e espiritual.

No pórtico de seu templo os enfermos podiam ler o lemabásico de sua medicina:

“Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado.Pureza é ter pensamentos sadios”.

Chamava-se a isso de nooterapia) terapia da mente (noos emgrego significa mente) que implicava num processo de redefiniçãode atitudes e de valores. Os cristãos até hoje chamam a isso deconversão (metanoia). Os pecados (harmatiai), isto é, as atitudesdesarmônicas consigo mesmo, com os outros, com o cosmos e coma Fonte originária de tudo, deslancham processos que afetam oequil1brio físico-psíquico-espiritual do ser humano. Em outraspalavras, produzem doenças.

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A cura acontece quando se cria um novo equilíbrio humano.Então o pecado-doença dá lugar à graça-cura. Em Epidauro as curaseram process das de forma holistica, através de métodosdiferenciados: pela dança, música, ginástica, poesia, ritos e sonosagrado. Havia o Abaton, santuário onde os enfermos dormiam paraterem sonhos de comunhão com a divindade que os tocava ecurava. Havia o Odeon, local onde se podia ouvir músicatranqüilizadora e eram lidos poemas de enlevo. Havia o Ginásio,onde se faziam exercícios físicos integradores da mente/corpo. Haviao Estádio para esportes de competição controlada para melhorar otônus corporal. Havia o Teatro para dramatização de situaçõescomplexas da vida para desdramatizá-Ias e facilitar a cura. Havia aBiblioteca) onde se podia consultar livros, admirar obras de arte eparticipar de discussões sobre os mais diversos assuntos. Tudo isto,já naqueles tempos, era visto como forma de terapia holistica. Amoderna medicina alternativa não faz outra coisa senão resgataresta memória terapêutica de nossa própria tradição, abafada peloparadigma cientifista dominante, que tenta a cura enfatizando otratamento das partes doentes pela química dos remédios sem aconsideração do todo humano.

Foi neste contexto integrador do cuidado total com o serhumano que o poeta Décio Júnior Juvenal (60-130 dC) escreveu ofamoso verso criticando os excessos na culinária dos romanos:

“Deve-se buscar uma mente sã num corpo são”. “Orandumest ut sit mens sana in corpore sano” (Sátiras X, 356).

Muitas academias de ginástica atuais incorporam esse lemamens sana in corpore sano - quase sempre esquecendo a dimensãoespiritual da mente (mens sana) e enfatizando apenas a exuberânciamuscular do corpo (corpore sano). A arte terapêutica é mais quemédica; é integral, portanto profundamente espiritual.

Concluindo, cuidar de nossa saúde significa manter nossa visãointegral, buscando um equillbrio sempre por construir entre o corpo,a mente e o espírito e convocar o médico (corpo), o terapeuta(mente) e o sacerdote (o espírito) para trabalharem juntos visando atotalidade do ser humano.

8. Cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios interiores8. Cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios interiores8. Cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios interiores8. Cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios interiores8. Cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios interioresA alma, à semelhança do corpo, representa a totalidade do

ser humano na medida em que ele é um ser vivo com interioridadee subjetividade (anima em latim significa ser vivo, donde deriva

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animal). Desde o primeiro momento após o big- bang) quando seformaram os primeiros campos energéticos e se forjaram as primeirasunidades relacionais, a alma começou a surgir e a complexificar-se, até que, no nível humano, após o surgimento do cérebro e dabase neurônica, se tornou reflexa e auto consciente. Possivelmentetal emergência ocorreu a partir do homo Ardipitecus Ramidos) há4,5 milhões de anos, passando pelo homo habilis há cerca de 2milhões de anos, pelo homo erectus há 1,6 milhões de anos, pelohomo sapiens arcaicus há 250 mil anos até culminar no homosapiens sapiens há 150 mil anos. Deste último, com consciênciaplenamente reflexa, somos descendentes diretos.

Conhecemos hoje os níveis desse tipo de consciência e suacapacidade de guardar informações do processo evolutivo. Issosignifica que a consciência humana guarda marcas da grandeexplosão primordial, do fragor das explosões das grandes estrelasvermelhas que jogaram seus materiais pesados por todo o universo;conserva a memória das circunvoluções de nosso sistema galáctico,solar e planetário, das dores de parto na formação de nossa casacomum, a Terra; conserva o estremecer da primeira célula viva há3,8 bilhões de anos; guarda em si os sinais da violência devastadorados dinossauros, da capacidade unificadora do primeiro cérebronos répteis, da ternura dos primeiros mamíferos, das alegrias dasociabilidade dos nossos ancestrais antropóides; lembra da luz doprimeiro ato de intelecção, da cri atividade da fala ordenadora domundo, enfim dos grandes sonhos ridentes de simpatia econvivialidade, bem como dos medos face às ameaças do meio e“face à luta pela sobrevivência. As experiências boas etraumatizantes na relação com os pais, com o homem e a mulher,com o nascimento, a dor e a morte, com o Sol, a Lua e as estrelas,com a grandeza do céu estrelado deixaram matrizes na almahumana cuja força de atuação se faz presente até os dias de hoje. Éa nossa memória ancestral e atual.

De certo modo, tudo, tudo está guardado dentro daconsciência humana sob a forma da memória (subatômica, atômica,mineral, vegetal, animal, humana), nos arquétipos, sonhos, visões,símbolos, paixões e moções que habitam nossa intererioridade.Somos portadores de anjos e de demônios, de forças sim-bólicasque nos animam para a unidade e para a cooperação, e de forçasdia-bólicas que desagregam e destroem nossa centralidade.

Mas o ser humano é portador de liberdade e deresponsabilidade. A liberdade lhe é dada como capacidade de

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modelar essa matéria ancestral e o mundo ao seu redor. A liberdadelhe é dada como possibilidade para decidir se cultiva os anjos bonsou os demônios interiores. A ele cabe criar uma medida justa deequillbrio, tirando partido da energia dos anjos e dos demônios ecolocando-a a serviço de um projeto que se afina com a sinergia ea cooperação do universo. É sua chance de felicidade ou detragédia.

Eis um desafio ingente: o de cuidar de nossa alma inteira. Cuidardos sentimentos, dos sonhos, dos desejos, das paixões contraditórias,do imaginário, das visões e utopias que guardamos escondidasdentro do coração. Como domesticar tais forças para que sejamconstrutivas e não destrutivas? Em que sentido de vida ordenamostodas estas dimensões? O cuidado é o caminho e oferece umadireção certa.

9. Cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus9. Cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus9. Cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus9. Cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e Deus9. Cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos e DeusO ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-

se parte do universo e com ele conectado; pode entender-se comofilho e filha da Terra, um ser de interrogações derradeiras, deresponsabilidade por seus atos e pelo futuro comum com a Terra.Ele não pode furtar-se a perguntas que lhe surgem ineludivelmente:Quem sou eu? Qual é meu lugar dentro desta miríade de seres? Oque significa ser jogado nesse minúsculo planeta Terra? Dondeprovém o inteiro universo? Quem se esconde atrás do curso dasestrelas? O que podemos esperar além da vida e da morte? Por quechoramos a morte dos nossos parentes e amigos e a sentimos comoum drama sem retorno?

Ora, levantar semelhantes interrogações é próprio de um serportador de espírito. Espírito é aquele momento do ser humanocorpo-alma em que ele escuta estas interrogações e procura dar-lhes uma resposta. Não importa qual seja: se através de estóriasmitológicas, de desenhos nas paredes de cavernas como emCromagnon na França e nas grutas de S. Raimundo Nonato no Piauí,Brasil, ou se através de sofisticadas filosofias, ritos religiosos econhecimentos das ciências empíricas. O ser humano como umser falante e interrogante é um ser espiritual.

Outro dado suscita a dimensão de espírito: a capacidade doser humano de continuamente criar sentidos e inventar símbolos.Não se contenta com fatos. Neles discerne valores e significações.Escuta as coisas que são sempre mais que coisas porque setransformam em indicações de mensagens a serem descodificadas.Daremos alguns exemplos.

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Diante do rio Amazonas ficamos totalmente fascinados,fazemos a experiência da majestade. Ao penetrar a floresta,contemplamos sua inigualável biodiversidade e ficamos aterradosdiante da imensidão de árvores de águas de animais e de vozes detodos os timbres, fazemo a experiência da grandeza. Diante dessagrandeza sentimo-nos um bicho frágil e insignificante irrompendoem nós o temor e o respeito silencioso, fazemos a experiência dalimitação e da ameaça.

Quando vivenciamos o fascínio do amor, fazemos aexperiência de um absoluto valor, capaz de tudo transfigurar;fazemos da pessoa amada uma divindade, transformamos o brilhodo Sol num ouro em cascata e transformamos a dureza do trabalhonuma prazerosa ocupação.

Ao ver a mão suplicante da criança faminta, somos tomadosde compaixão e mostramos generosidade. Todas essas experiênciassão expressões do espírito que somos nós.

Mas há uma experiência testemunhada desde os primórdiosda hominização, a do Numinoso e do Divino no universo, na vidae na interioridade humana. Como não reconhecer por trás das leisda natureza um supremo Legislador? Como não admitir na harmoniados céus a ação inteligente de uma infinita Sabedoria, e na existênciado universo a exigência de um Criador?

O ser humano chama essa suprema Realidade com mil nomesou simplesmente dá-lhe o nome de Deus. Sente que Ele arde emseu interior na forma de uma presença que o acompanha e o ajudaa discernir o bem e o mal. O elã vital o leva a crescer, a trabalhar, aenfrentar obstáculos, a alcançar seus propósitos e a viver comesperança. Esse elã está no ser humano, mas é maior que ele. Nãoestá em seu poder manipulá-Io, criá-Io ou destruí-Io. Encontra-se àmercê dele. Não é isso um indício da presença de Deus em seuinterior?

O ser humano pode cultivar o espaço do Divino, abrir-se aodiálogo com Deus, confiar a ele o destino da vida e encontrar neleo sentido da morte. Surge então a espiritualidade que dá origem àsreligiões. Elas expressam o encontro com Deus nos códigos dasdiferentes culturas.

Os sábios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivodesse espaço espiritual, o ser humano se sentirá infeliz e doente ese descobrirá um errante sedento em busca de uma fonte que nãoencontra em lugar nenhum; mas se acolher o espírito e Aquele queo habita, se encherá de luz, de serenidade e de uma imarcescívelfelicidade.

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Cuidar do espírito significa cuidar dos valores que dão rumoà nossa vida e das significações que geram esperança para além denossa morte. Cuidar do espírito implica colocar os compromissoséticos acima dos interesses pessoais ou coletivos. Cuidar do espíritodemanda alimentar a brasa interior da contemplação e da oraçãopara que nunca se apague. Significa especialmente cuidar daespiritualidade experienciando Deus em tudo e permitindo seupermanente nascer e renascer no coração. Então poderemospreparar-nos, com serenidade e jovialidade, para a derradeiratravessia e para o grande encontro.

10. Cuidado com grande travessia, a morte10. Cuidado com grande travessia, a morte10. Cuidado com grande travessia, a morte10. Cuidado com grande travessia, a morte10. Cuidado com grande travessia, a morteA entropia se manifesta em toda parte e também no tecido de

nossa vida até consumir todo o nosso capital energético. Entãomorremos. É o termo do homem-corpo. E o que acontece com ohomem-alma-espírito? Qual é seu destino? Ele tem outro percurso.Ao imergir neste mundo começa a nascer, vai nascendo cada diamais, até acabar de nascer.

Uma analítica existencial atenta revela a presença de duascurvas na existência humana: a curva do homem-corpo e a curvado homem--alma-espírito.

A curva do homem-corpo obedece a esse percurso: nasce,cresce, madura,. envelhece e morre. A morte não vem de fora masse processa dentro da vida como perda progressiva da força vital.

A outra curva do homem-alma-espírito segue um percursoinverso. Nasce, começa como um pequeno sinal e desabrocha,realiza virtualidades como falar, relacionar-se, amar ... vai nascendomais e mais até acabar de nascer.

Mas quando acaba de nascer? Quando as duas curvasexistenciais se cruzam. Nesse cruzamento ocorre a morte real.

O que significa a morte? Para o homem-corpo representa otermo de uma caminhada por esse mundo espácio-temporal. Parao homem-alma-espírito, a possibilidade de uma plena realizaçãode seus dinamismos latentes que não conseguiam irromper devidoaos condicionamentos do tempo e do espaço. A morte do homem-corpo tem a função de fazer cair todas as barreiras. E assim o homem-alma-espírito se liberta de todas as amarras e seu impulso interiorpode realizar-se segundo a lógica infinita. A inteligência que via noclaro-escuro, agora vê em plena luz; a vontade que se sentiacondicionada, agora irrompe para a comunhão imediata com oobjeto do desejo; o cuidado essencial que se excercia em

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ambigüidades, agora encontra sua plena autenticidade; o corpo quenos permitia comunhão e afastamento dos outros, é sentido agoracomo expressão plena de nossa união com a totalidade do cosmos.

Na morte se dá, então, o verdadeiro nascimento do ser humano.Ele implode e explode para dentro de sua plena identidade. Ocristianismo chama a esse momento de absoluta realização deressurreição. Ressurreição é muito mais que reanimar um cadávere voltar à vida anterior. Ressurreição é a plena concretização dasvirtualidades presentes no ser humano. Os apóstolos testemunharamque tal evento bem-aventurado se realizou em Jesus de Nazaré nomomento de sua morte na cruz. Por isso é apresentado como o“Adão novíssimo” (1 Cor 15,45), a nova criatura que tocou o finaldos tempos. Ele é o símbolo real de que o ser humano pode nascerdefinitivamente.

Nesta perspectiva não vivemos para morrer. Morremos pararessuscitar, para viver mais e melhor. A morte significa a metamorfosepara esse novo modo de ser em plenitude. Ao morrer, o ser humanodeixa para trás de si um cadáver. É como um casulo que continha acrisálida. Cai o casulo e irrompe radiante borboleta, a vida em suaidentidade inteira. É a ressurreição já na morte.

O sentido que damos à vida depende do sentido que damosà morte. Se a morte é fim-derradeiro, então de pouco valem tantaslutas, empenho e sacrifício. Mas se a morte é fim-meta-alcançada,então significa um peregrinar para a fonte. Ela pertence à vida erepresenta o modo sábio que a própria vida encontrou para chegara uma plenitude negada neste universo demasiadamente pequenopara seu impulso e demasiadamente estreito para sua ânsia deinfinito. Somente o Infinito pode saciar uma sede infinita.

Cuidar de nossa grande travessia é internalizar umacompreensão esperançosa da morte. É cultivar nosso desejo doInfinito, impedindo que ele se identifique com objetos finitos. Émeditar, contemplar e amar o Infinito como o nosso verdadeiroObjeto do desejo. É acreditar que ao morrer cairemos em seus braçospara o abraço sem fim e para a comunhão infinita e eterna. Enfim érealizar a experiência dos místicos: a vida amada no Amadotransformada.

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III. VALORES QUE DEVE CULTIVAR UMLUTADOR DO POVO19

Há momentos na história da humanidade que as saídasparecem obscuras, o desânimo toma conta de determinados setoressociais, a fraqueza parece ser a lógica da sobrevivência e admitir aderrota é a única saída.

Mas de repente como se uma energia brotasse do chão,começa a contagiar as pessoas, e estas vão se levantando, se dandoas mãos, entrelaçando os dedos, apertando-se, não querendo maissoltarem-se; partem em busca de alguma vitória que os antepassadosnão conseguiram realizar.

Muitos ficam estupefatos sem saber explicar, temendo peloque poderá acontecer, mas quem está apossado desta energia parecequerer mais, não cansa, não sente dor, não vê limites, simplesmenteporque entendeu que a morte, a injustiça, o desânimo, as derrotasnão são as últimas palavra da história.

Rapidamente se vê renascer a altivez, a credibilidade, aconfiança, a esperança, a cumplicidade, a motivação, a ternura, aalegria e as canções brotam dos lábios como cachoeiras, como seestivessem ali guardadas para saírem em pedaços, neste momentode encontro das mãos e dos sentimentos. Nasce assim um, milharese milhões de lutadores do povo. Viverão enquanto a energia deverdadeiros valores fervilhar em cada coração. Desaparecendo estefervor o lutador transforma-se de água corrente em bloco de gelo,impossibilitando qualquer iniciativa de surgimento de vida.

São os lutadores do povo como disse o filósofo, se o mundofosse um coelho a maioria das pessoas estariam escondidas entreos pelos procurando um lugar seguro rente ao couro em busca docalor aconchegante para garantirem uma vida tranqüila, enquantoque os lutadores estariam se arriscando, agarrados na ponta de cadapelo, e de lá gritariam para que as pessoas não se acomodassem,pois há tanta coisa a fazer e a observar no universo, porque ficar láembaixo?

19 Ademar Bogo, dirigente do MST, Bahia, junho 1999.

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Os lutadores do povo, poderíamos também chamá-los demilitantes, quadros ou revolucionários, são aqueles que se arriscam,fazem tremer os torturadores onde pensam que através da dorconseguem retirar informações da consciência de pessoas tãodignas, que bebem energia nas virtudes e valores que acreditam. Énesta fonte que bebem e buscam forças para resistir.

Jamais conseguirão entender, porque os lutadores do povosão seres superiores aos torturadores e jamais deixariam escaparpalavras tornadas sonhos na sujeira das galerias da repressão.Sonhos são mais que palavras que dor nenhuma poderá arrancar,nem os ouvidos dos torturadores e tiranos conseguirão ouvir poisnão conhecem as letras que fazem esta linguagem.

Mas este mistério de resistir, sorrir mesmo na dor, chorar paracomemorar as vitórias, cantar para dizer poesias, somente entendequem sinceramente vive e sabe abraçar esta grande causa dalibertação do povo.

Este mistério que os poderosos não entendem, está nanatureza, na composição de cada ser humano que procuraencontrar-se com a verdade e vive em função dela, que passa degeração em geração, como se os lutadores mais novos fossem filhosde sangue dos lutadores mais velhos, não importando em que paísnasceram.

Os tiranos querem deixar sua descendência pelo nome. Muitasvezes o repetem por várias gerações como se uma pessoa fosse aencarnação da outra. Os lutadores do povo e portantorevolucionários, por natureza são imortais, mas não pelo nome, poismuitas vezes obrigam-se a mudá-lo para enganar a repressão, e simpela obra que desenvolvem e ajudam a construir, que deve serapropriada pelas futuras gerações que com certeza virão.

Ernesto Che Guevara, foi um lutador do povo que teve demudar o nome, quando viajou para a Bolívia pela última vez paraorganizar a luta guerrilheira. Em seus documentos constava o nomede Ramón Benitez. Antes de sair de Cuba quis ter um encontrocom seus filhos ainda pequenos, para saber se os disfarces estavamperfeitos, pois segundo Ele, se as crianças não o reconhecessemnem os militares por onde passasse saberiam quem era. Assimaconteceu, brincou horas com as criancinhas como “tio Ramón” eestas não o reconheceram. Foi a última vez que viu seus filhos eeles sem saber, pela última vez viram o pai.

Orgulha-nos, porém ver em toda América Latina e no mundo,esta grande descendência humana de lutadores que seguem estegrande ser humano Che Guevara. Mesmo que os nomes sejam

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diferentes não importa, somos herdeiros de sonhos e não depatrimônios.

Os revolucionários conhecem suas tarefas como sereshumanos, que nascem em um determinado tempo e transformam-se em homens e mulheres deste tempo, como se fossem pedaçosde um canal encostados um ao outro, feito pela seqüência degerações e cada uma tem por obrigação conduzir o sangue paraformar gerações futuras. Junto com este sangue vão osconhecimentos, as experiências, as lições, os sonhos e as esperançasque jamais devem morrer.

Os lutadores do povo são como sementes que caem dassacarias levadas a força para o mercado. Embora caiam, estas jamaisse perdem, servem para marcar o caminho e reproduzir os sonhosque outros virão e colherão.

Os lutadores do povo são seres humanos iguais ao povo,apenas se diferenciam por saberem marcar o ritmo dos passos, paraque o povo nem pare e nem canse, e neste caminhar alcance oque satisfaz a todos no momento certo.

Ser lutador do povo é perder a oportunidade de ver os própriosfilhos crescerem para ocupar-se da criação dos filhos de gente quecompõe o povo. Há que ser assim. Povo existe se estiver em luta.Em luta permanente estão os lutadores. A elite jamais será povo pornão ter coragem de lutar, por isso contrata soldados para formarexércitos que lutam em seu nome.

Sem luta e sem lutadores o povo é multidão dispersa semesperanças, levada aos matadouros sem sangrar, pois os ricos sãotão gananciosos que colocam como último desejo de sua ganância,secar até o fim o sangue, até os corpos ficarem esqueléticos, paraque morram sem marcar o chão onde caem e sejam consumidos eesquecidos como indigentes.

Convicção é a palavra que deve identificar um lutador dopovo. Assim se nasce, assim se vive e assim se vence. Um lutadordo povo não morre jamais pelo simples fato de que ele nunca vivepara si mesmo.

Os lutadores do povo mesmo na dúvida estão convictos deque é preciso lutar e lutar para vencer. Por isso cultivam e alimentamvalores. Destacaremos sem ordem de importância alguns deles paraque possam despertar em nós a disposição de implementá-los eresgatar nesta luta centenas de outros valores que farão de nós sereshumanos mais perfeitos.

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11111ooooo – Esperança – Esperança – Esperança – Esperança – EsperançaNão existem derrotas definitivas. A esperança é como água

que umedece o leito da estrada, no subsolo, por mais que se tentesoterrá-la sempre surpreende e renasce mais adiante. Há umprovérbio popular muito sábio que diz: ninguém consegue cercara água e quando tentam os muros das represas sempre ficam abaixo.

O povo é esta fonte de água que jamais conseguem cercá-lo.Embora haja repressão, enganação e acomodação, é apenas ummomento que tentam nos deter, mas enquanto nos detémacumulamos força para voltar com mais energia e fazer ruir a represada dominação. Por isso os poderosos temem a história, porquesabem que a rebeldia sempre traz de volta sonhos que estavamdescansando em algum lugar da consciência dos que não admitemdeixar jamais a esperança morrer .

Não podemos imaginar que as coisas acabam por inteiro.Muitos ouviram falar que o socialismo morreu e acreditaram semperguntar que tipo de socialismo morreu? O nosso não pode termorrido, pois ainda não o construímos! Dizem mais; que a teoriado socialismo morreu e a classe trabalhadora não tem maisideologia, agora só tem capitalismo. Se as verdades que estão noManifesto Comunista, escrito a mais de cento e cinqüenta anos foremtornadas mentiras, mesmo assim a classe trabalhadora do mundotodo teria ideologia contrária ao capitalismo, pois a filosofia dosocialismo é a ciência da história, e como ciência da históriapertence aos lutadores do povo, que na história da humanidadeousaram construir sociedades com valores opostos aos das classesdominantes e continuam vivos abraçados com o tempo.

Onde beberão os herdeiros do Manifesto Comunista, daComuna de Paris, das revoluções por todos os continentes, dosQuilombos, de Canudos, da Coluna Prestes, das Ligas Camponeses,da luta armada da década de sessenta se tudo foi em vão? Isto tudonão foi brincadeira, mas a tentativa de lutadores de indicar econstruir o próprio destino. Os velhos e novos arquitetos só podemosbeber nesta profunda fonte da ciência da história, onde estádepositado o líquido da sabedoria produzido pela experiência delutadores sinceros que se identificam nos sonhos e na esperança,de ver um mundo melhor.

Só existem duas fontes onde se possa beber: Na fontelamacenta do capitalismo, ou na fonte da límpida esperança que éo socialismo. Não existe uma terceira fonte! Os que pensam existir,é porque não perceberam que esta terceira fonte é formada pelas

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gotas que caem do cantil da burguesia e portanto é a mesma águacolocada em cacimba diferente.

A esperança na história das lutas dos povos é uma chama queem determinados períodos diminui de tamanho mas não morre,continua lá com a mesma quentura a espera de um impulso paraerguer-se e iluminar o caminho de quem acredita na possibilidadede construir a felicidade com todas as mãos e corações interessadosa viverem a dignidade.

22222ooooo – Confiança – Confiança – Confiança – Confiança – ConfiançaEm momentos de crise, não percebendo saídas, é natural

nascer dentro da gente sintomas de desconfiança, desestímulo,frustrações, como se de agora em diante tudo será diferente.

Muitas vezes estes períodos são necessários para quedespertemos das ilusões que criamos em torno de paradigmas oumodelos que foram engolidos pela história e não nos demos conta.Passamos então a ter atitudes de repulsa como o menino que xingavaa calça por esta deixar a mostra um pedaço da canela, sem perceberque suas pernas haviam crescido e somente elas poderiam crescer,a calça não.

A confiança é o primeiro fator para a recuperação da auto-estima das pessoas. Embora a classe dominante procure ao longodo tempo estabelecer situações que levam as pessoas a sentirem-sederrotadas, através da ideologia que cria o complexo dainferioridade que as crianças assimilam desde a infância, por verembrinquedos sofisticadíssimos na televisão, e ao pedirem aos paispara que comprem um, recebem como resposta “não, porque émuito caro e nós somos pobres”. Para as crianças o reflexo que ficaé que, ser pobre é ser inferior. Ou então quando se vê na televisãopropaganda de apartamentos luxuosos e as famílias sem ter ondemorar e sem condições financeiras, percebem que aquelapropaganda não foi feita para eles, por serem pobres, vemlogicamente o sentimento de inferioridade, de fraqueza e de derrota.

Mede-se, portanto a importância das pessoas pelas condiçõesfinanceiras e pela quantidade de patrimônio que estas possuem.

Esta relação do ser humano com a propriedade é queprecisamos equacionar. O capitalismo é o sistema do “tudo se podecomprar” e não é verdade. Mesmo que tenhamos a intenção decada brasileiro ter um carro, isto será impossível, mesmo quetenhamos condição para isto, porque as estradas e cidades ficariamintransitáveis e a poluição do planeta pelo monóxido de carbono

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envenenaria as pessoas. Logo, esta ilusão deve ser desmanchada, eentender que o transporte coletivo, de boa qualidade, não tira aprivacidade de ninguém, e poderá suprir as necessidades tranquila-mente, e os recursos financeiros que se empregaria em carros aplicar-se-ão em outras coisas que trarão bem estar. Isto não significa dizerque somente os ricos terão carros. Nossa confiança nos diz que osricos não serão eternos, e como confiamos no futuro, acreditamosque eles serão extintos e a sociedade será fraterna e igualitária.

É fundamental superar o complexo de inferioridade e opreconceito que há entre nós. O analfabeto sente-se inferior aointelectual; a costureira sente-se inferior a quem sabe computação;o pobre sente-se inferior ao rico, e assim por diante. As pedras queformam a base das muralhas têm péssima aparência, são mal talhadase dificilmente consegue-se alinhá-las com precisão, mas sem elasnão há estruturas que resistam.

Confiança é isto, é saber que somos importantes com nossascaracterísticas, conhecimentos e sabedoria. Mas somente sentiremosesta importância se acreditarmos nas pessoas, na coletividade.Individualmente o capitalismo permite e oferece condições paraalguns poucos, e usam isto como exemplo para iludir a grande massade excluídos que se “você” tentar e quiser poderá também vencersozinho. Podemos vencer, mas jamais individualmente. É nisto quedevemos confiar. Aliás, devemos acreditar em três coisas pelo menosfundamentais: em nós, no povo e no futuro.

Embora muitas vezes não enxerguemos a linha do horizontepor causa da neblina, mas ela está lá em algum lugar, para vê-laprecisamos continuar caminhando.

Se a força dos impérios nos intimida, devemos pensar naquelesque já tiveram coragem de enfrentá-los e vencê-los. Os vietnamitaseram pobres, sem condições militares, inventavam suas própriasarmas, transportavam-nas de bicicleta, não tinham mochilas paracarregar seus pertences, comiam arroz que o levavam na barra dacalça. Ao contrário dos soldados dos Estados Unidos da Américaque tinham armamentos sofisticados, com um poder de desfolhar equeimar as matas com um produto chamado “agente laranja” paradescobrir os guerrilheiros, produzidos pela mesma empresaMonsanto que hoje no Brasil produz os venenos que desfolham equeimam a vegetação, a vida e a alma de nossos camponeses,que são obrigados a passar estes venenos. Além disso, os soldadosnorteamericanos se alimentavam bem, comiam enlatados ecarregavam até 18 quilos nas costas em modernas mochilas, tinhamsacos térmicos para dormir. No entanto, para nossa alegria, foram

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derrotados porque o povo vietnamita havia decidido vencer e nãose consideravam inferiores, confiavam em suas capacidadesestratégias e lideranças. Ho Chi Minh um dos líderes daquela longaguerra, ao ser questionado se não deveriam parar com ela e ceder,pois estava havendo muita destruição no país. Pacientementerespondeu: “Deixem que destruam tudo, após a vitória nosso povoreconstruirá tudo, mais belo e melhor”.

33333ooooo – Coerência – Coerência – Coerência – Coerência – Coerência Um lutador do povo deve ser coerente, isto não significa que

não possa evoluir em seus pensamentos, ao contrário, como ahistória é dinâmica nem todo o conteúdo que explicava as coisascontinua sendo suficiente, por uma simples razão dialética: as coisasevoluem e se transformam.

Aprendemos na filosofia que nas coisas, na matéria, e mesmonas decisões políticas existe um movimento interno detransformação. Usamos o exemplo de uma fruta para compreendermelhor. Uma laranja já foi botão, depois flor, depois se transformouem fruto, depois cresceu muito ácida, depois amadureceu e ficoudoce e está no ponto de ser colhida. Se não a colhermos e achuparmos continuará com seu movimento interno e apodrecerá edeixará de ser laranja, liberando as sementes para que se transformeem planta e inicie sua transformação em outras condições. Vemosentão que a cada movimento surgem novas propriedades e algumassão eliminadas como, por exemplo: para onde foi o perfume da florda laranjeira após esta ter se tornado fruto?

Assim deve ser um lutador do povo, ser coerente eacompanhar atentamente o movimento interno de cada ação emseparado, e das ações na sua globalidade. Em tudo há estemovimento interno, que somente a atenção precisa e dedicada deum lutador social pode perceber.

Há pessoas que através de análises fundamentadas emaspectos particulares, renegam os conceitos e em muitos casosfalsificam a própria realidade. É preciso entender que sem a flornunca chegaremos a ter laranja. Negar a matriz das coisas pode sera forma mais adequada de tornarmo-nos imbecis e ignorantesmesmo permanecendo na luta política.

Houve-se falar que “a luta de classes acabou” simplesmenteporque dizem que “já não há mais classes sociais”, entendendoque a globalização do mercado “penaliza a todos”, por isso agoraa atenção deve estar voltada para as questões de “gênero”,“ecológicas” das “minorias”.

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É verdade que estas são questões importantes e que no passadonão se dava muita atenção, mas não podem ser tratadas fora destaperspectiva da luta de classes, se não vejamos: podemos lutar econquistar direitos iguais entre mulheres e homens, mascontinuaremos pobres. Podemos salvar as plantas e todas as espéciesde animais e insetos, mas continuaremos pobres. Podemos acabarcom o racismo e o preconceito e continuaremos pobres e exploradospelo imperialismo. Logo, todos estes aspectos são fundamentais,mas não podemos tratá-los fora da perspectiva da luta de classes.Os problemas de discriminação, preconceitos, negação de direitos,são produtos da estrutura e do modelo de sociedade exploradora eexcludente por natureza. Certamente estas contradições serãosolucionadas na medida em que forem eliminadas as diferençasentre as classes sociais e reconstruirmos a sociedade brasileira emoutras bases.

Ser coerente não significa dogmatizar conceitos e explicações.Os dogmas existem para coisas que completaram seu ciclo dedesenvolvimento, muito utilizados na filosofia idealista e nasreligiões, ou em fatos consumados. Por outro lado também nãosignifica mudar totalmente simplesmente porque as ondasideológicas estão em alta em algum momento.

Um lutador do povo deve ser coerente com seu poderaquisitivo. Há exemplos de “ex-lutadores” do povo que foram setransformando aos poucos, por mudarem de atividaderepentinamente como por exemplo muitos que assumiram algumcargo em administrações, e viram rapidamente seu patrimôniocrescer como que por milagre. Moravam no bairro mudaram-se parao centro da cidade; tinham um carro velho, aparecem com carrosnovos, construíram casas de ótima aparência etc. É claro que somosa favor ao progresso econômico e ao bem estar individual, masacontece que isto as vezes parece ser tão inexplicável que apenasalguns evoluam e a grande maioria tanto de funcionários, quantode militantes que ajudaram a conquistar estes espaços, fiquem nomesmo patamar econômico sem nunca verem melhorias.

A coerência também deve estar relacionada com a prática.Para um lutador do povo não tem tarefa mais importante e menosimportante, todas elas fazem parte do mesmo plano tático. Por issonão é justo negar-se a fazer algumas tarefas por achar que estaspertencem a um nível “inferior” de militância.

Os privilégios também devem ser evitados. Há pessoas quefazem questão de tratar melhor os dirigentes e lideranças, às vezes,é até por demonstração de carinho, mas não pode ser uma

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constante, pois isto vicia e dá mau exemplo aos novos lutadores.Os mesmos sacrifícios que pertencem ao povo pertencem tambémaos lutadores e estes devem ser os primeiros a fazê-los.

Coerência com a história e com as origens. A história dos povosé feita de esforços, sacrifícios, lutas, derrotas e vitórias, que servemcomo inspiração e motivação para seguirmos em frente. Hámomentos em que houve-se análises relativizando oudesclassificando longas lutas, duras batalhas simplesmente porquehá aspectos metodológicos que não concordamos. É muito fácilcriticar hoje os erros e desvios da revolução Russa, pois estamos a82 anos de sua realização. Embora tenham sido derrotadosrecentemente pelas investidas do neoliberalismo, não podemosdiminuir a importância de terem tentado construir e por algum tempoterem experimentado viver a liberdade. E o que fazer com 28milhões de mortos daquele país para defender o socialismo nasegunda guerra mundial? De nada valeu? Nem a razão pela quallutaram e morreram? Portanto criticar olhando pelas janelas dosescritórios e apartamentos pode ser muito importante para nãocometermos erros, mas parece ser muito cômodo quando não temoscoragem de dar se quer um passo para resgatar e continuar a buscadaquele mesmo sonho utópico, construído nas circunstânciashistóricas que eles encontraram, derrotado pela incoerência decertos dirigentes.

A coerência com as origens também é fundamental. Oprincípio marxista que define a “consciência social sendo fruto daconvivência social” é verdadeiro. O meio influi na conduta, nopensar e no agir das pessoas. Por isso é preciso cuidar para que oslutadores do povo ao mudarem de lugar social não neguem suasorigens de classe. Para isso devemos aperfeiçoar constantementeas reflexões sobre a prática. Cargos em instâncias ou em repartiçõespúblicas, são apenas tarefas e não profissão. E tarefas têm períodospara serem cumpridas. Pessoas que permanecem por muito tempona mesma tarefa podem ter deformações de postura e de conduta.Devemos seguir o princípio de que ninguém é insubstituível e nemimprescindível, e dentro da luta de classes, todos tem defeitos, mastambém qualidades, basta que saibamos aproveitá-las.

44444ooooo – Solidariedade – Solidariedade – Solidariedade – Solidariedade – SolidariedadeMais do que nunca a solidariedade se torna um valor

fundamental, mas devemos entendê-la e desenvolvê-la a partir denossos interesses de classe, dentro de nosso território e fora dele.

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Há um processo acelerado em andamento no mundo de“desconstrução” das nações. O mundo passa ser um campo abertopara o mercado e para o capital financeiro. O pior é que estáhavendo também uma desconstrução dos valores e dos sereshumanos.

Ao mesmo tempo em que o mercado estabelece sua relaçãoeconômica entre empresa e consumidor, amplia sua influênciaideológica fazendo a diferenciação entre “incluídos” e “excluídos”.Entre os incluídos a solidariedade passa ter caráter de “colaboração”,quando vem dos incluídos para os excluídos de caráter de“assistência”.

Embora estas atitudes amenizem algumas dificuldades não sepode confundir solidariedade entre pessoas da mesma classe comdoações ou ajuda nacional e internacional.

Estima-se que o Banco Mundial e outros agentes liberam maisde 4 bilhões de dólares por ano nesta política de “colaboração”para Organizações não Governamentais ( ONGs) que passam adesenvolver políticas localizadas que além de isolar as iniciativas,retiram delas o caráter de classe.

A solidariedade representa atitudes completamente inversa àcolaboração. Deve ser a ação consciente de pessoas da mesmaclasse na busca de alternativas conjuntas para se buscar soluçõesdefinitivas e para todos.

O neoliberalismo, sistema ideológico da globalização, emnome do mercado, cruelmente asfixiou sindicatos, reduziu aimportância de determinadas categorias, intimidou trabalhadoresque no passado foram por demais combativos e estabeleceu comonorma o controle rígido sobre os estados nacionais, para que estesse transformem e se enquadrem dentro da visão e do conceito deestado dos países ricos.

Sendo assim muitas categorias sentem-se impotentes paraenfrentar este monstro repressor e engolidor da dignidade. Asolidariedade de classe é fundamental para que outras categorias,de empregados, estudantes, camponeses e operários, se somem naslutas pela defesa de direitos conquistados e a garantia do respeito àdignidade humana no trabalho.

Também a solidariedade internacional passa ser um marcono horizonte da luta de classes. Embora tenhamos que reavivar osprojetos nacionais pois é onde cada nação deve resistir e portantonão podemos fechar-nos para soluções de nossos problemasdomésticos, isto porque muitos problemas domésticos somente seresolvem com lutas amplas e internacionais.

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Mesmo que o esforço empregado não seja para resolver nossosproblemas particulares, contribuindo para a solução dos problemasdos outros povos, é um grande passo que estamos dando noaperfeiçoamento da consciência humana através da solidariedade.

Salta aos olhos o exemplo de solidariedade do governo e dopovo cubano, que embora sofrendo um bloqueio econômico desde1959 e todos os tipos de agressão, abre 800 vagas para jovenslatinoamericanos iniciarem em 1999, com todas as despesas pagas,mais um salário mensal, o curso de medicina durante 6 anos, paraassimilarem o que eles desenvolveram de mais avançado nestaárea da saúde. Enquanto que em nosso país nega-se o direito deestudar e fecham-se escolas, lá além de garantirem educação paraseus habitantes, ainda acolhem esta quantidade de jovens de umasó vez. E olha que muitos dizem que lá não tem democracia.

Quem são as elites dominantes de nossos países eprincipalmente os Estados Unidos da América para questionaremdireitos humanos em Cuba, quando matam de fome milhões decrianças em toda a América Latina por cobrarem altas taxas de jurospela impagável dívida externa? Quando foi que eles criaram umprograma de estudo para nossa juventude para que pudéssemosassimilar os conhecimentos que já descobriram para salvar vidashumanas? Os conhecimentos que sempre tiveram prazer em passarpara os países pobres, foi através da Escola das Américas, ondetreinaram militares para reprimirem e torturarem nossos povos, paragarantir-lhes condições de nos explorar ainda mais.

Solidariedade é, portanto buscar alternativas para elevar o serhumano a uma nova categoria, tanto na qualidade de vida quantona qualidade de consciência e na construção de novos valores.

Solidariedade é mais do que doar o que nos sobra, mastambém o que nos pode fazer falta, por entendermos que o serhumano tem esta possibilidade de permitir que todos os povostenham o direito de satisfazer suas necessidades mesmo que istodependa da ajuda e da participação solidária de todos.

55555ooooo – Indignação – Indignação – Indignação – Indignação – IndignaçãoA indignação é uma qualidade que um lutador do povo jamais

pode perder. Indignar-se contra as injustiças e contra as atitudes dequem as comete.

Embora se ouça governantes falarem contra a violência eprometerem segurança, são eles os primeiros responsáveis por elasexistirem.

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Não podemos acreditar que miséria econômica e financeirasignifica violência, se assim fosse a população norte americana nãoestaria temendo a pela vida de seus filhos estudantes nas escolas.Se aceitarmos isto, estaremos contribuindo para fortalecimento dopreconceito de que “pobre é violento” e por isso quando assistirmosna televisão programas ao vivo de caça á jovens pobres que vivemnas periferias das grandes cidades, ficaremos torcendo para que apolícia os alce e os exterminem. Desta forma, um dia poderemosser nós os lutadores, sendo obrigados a correr da polícia paradefendermos a vida, e a população ficará, também, do mesmo sofá,torcendo para que nos matem.

A violência é fruto do incentivo ideológico velado quepropositalmente a classe dominante impõe à sociedade, seja paravender armas, seja para que os pobres se exterminem por contaprópria.

Há outros tipos de violência que os governantes e a elite sãoos principais responsáveis. Embora seja antiga esta pesquisa, há umacomprovação que temos nos estados do nordeste 300 mil meninascom menos de catorze anos na prostituição. A virgindade de umamenina fugida da seca, refugiada em alguma capital nordestina,com idade entre 10 e 12 anos, vale R$ 20,00 (vinte reais) pagos aospais e vendida para turistas norteamericanos a preços que nãosabemos. A origem desta prostituição está na fome e não na pobreza,causada pela falta de decisão política de resolver o problema daseca.

Há também que indignar-se com as estatísticas, pois elas nãosão apenas números enfileirados em tabelas, representam sofrimento,fome, desnutrição e morte. Dizem as pesquisas, que 72% do leiteproduzido no mundo, alimenta apenas ¼ da humanidade dohemisfério norte, ou seja, dos países ricos, e os outros 28% ficapara o restante da humanidade. Cerca de 92% dos automóveiscirculam no hemisfério norte e 81% do papel produzido no mundotambém gasta-se por lá. Esta grande disparidade de produção econsumo faz com que os países subdesenvolvidos fiquem cada vezmais em desvantagem, além de terem que pagar enormes dívidasexternas, como a nossa brasileira que, nos últimos dez anos, o Brasiljá pagou 216 milhões de dólares de juros e ainda devemos 212bilhões de dólares da dívida, que a cada dia aumenta mais.

Indignar-se contra qualquer injustiça deve ser a característicafundamental de um lutador do povo, seja ela de caráter local ouinternacional.

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Se perdermos a capacidade de nos indignar, perdemos avirtude da sensibilidade humana, e nos identificaremos com asmáquinas, que nascem e morrem sem sentimentos e sem coração.Por isso não devemos esquecer de ouvir o grito do velho Chaplinque disse: “Não sois máquinas, homens é que sois”.

A indignação deve porém tornar-se atitude, ação concreta deprotesto e de defesa dos injustiçados, em se tratando de identidadede classe. Há casos de injustiças, contra algum representante daclasse dominante que não se tratando de desrespeito a vida humana,não deve nos comover, por se tratar de resposta a outras injustiçasanteriormente cometidas. Respeito á vida não significa impunidade.

Há também que festejar e alegrar-se quando conseguimos ouvislumbramos sinais de justiça, pois assim também exercitamosnossa sensibilidade. Como exemplo podemos citar a prisão docarrasco e ditador General Augusto Pinochet na Inglaterra. Aindanão é a justiça que queremos pois o povo chileno deverá fazer asua justiça, edificando sobre os destroços de seus sonhos, um novopaís, porque alguns anos de cadeia não trazem de volta todos osrevolucionários assassinados, mas servem pelo menos comoconsolo, sem perder de vista o objetivo estratégico.

66666ooooo – Compromisso – Compromisso – Compromisso – Compromisso – CompromissoCompromisso é uma atitude de permanente vigilância sobre

os propósitos feitos coletivamente.O caminho para a liberdade é longo e tortuoso, nem todos

resistem até o fim. Há muitas tentações que nos querem confundir.Muitas vezes pensa-se encurtar o caminho para chegar mais rápido,mas aí poderá estar uma armadilha colocada no caminho para iludir-nos de que alinhando-nos com determinadas forças será maistranqüilo o caminhar e chegar ao lugar desejado.

É fundamental entender que na mesa dos ricos não há espaçopara aqueles que não são de seu meio. Retratamos bem na poesia“Na mesa dos ricos” simbolicamente representada pelo cão e oslobos o que significa esta limitação de espaço que muitosdespercebidos para fazerem carreira, ou para garantirem privilégios,iludem-se que lá há lugares vagos para sentarem-se à mesa. Vejamoseste exemplo.

“Um cão oportunista que vagueavaAo ver uma cadeira vazia

À mesa dos lobos se assentava.Estes lhes sorriam... e a eles fiel se dedicava.

Imaginava o cão por ser bem parecido

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Que os lobos o tratariam eternamente,Se tornaria um deles certamente

E ali ficaria bem servido.Um certo dia um lobo ao chegar

Viu o cão sentado e o convidou a levantar.- Veja bem fiel cão, chega a horade deixar este lugar e cair fora!

- Mas como? – fala o cão sem entender –Era eu quem cuidava deste posto e garantia-lhes o poder!

- Certo é fiel cão. Agradeço por ter-nos bem servido!A verdade por termos permitido

sentar-se à mesa e o poder com nós ter divididoera porque nosso filho menor

não tinha ainda crescido”.

Os ricos têm também seus compromissos de classe. Assimcomo eles não querem fazer parte de nossas fileiras, também nãoaceitam que alguém de nós desfrute dos privilégios que lhespertence, a não ser que sirvamos como mão-de-obra, mas isto serápor tempo determinado. Há momentos em que eles se negam adeixar que comamos até as migalhas que caem de suas mesas fartas.

77777ooooo – Alegria – Alegria – Alegria – Alegria – AlegriaA luta para os revolucionários não é um martírio, é um prazer,

pois está-se construindo o caminho que leva à conquista dos sonhoscoletivos. Assim muitos pais e mães às vezes levam dias e mesessem terem contato com seus filhos, e os filhos menores às vezessentem dificuldade em pronunciar seus nomes e chamar por eles.Isto poderia nos entristecer mas é apenas uma das faces da saudade.

O lutador do povo por estas circunstâncias aprende adesenvolver a virtude da contemplação e vê seus filhos e seuscompanheiros em pequenas coisas, nas flores do campo, nas árvoresno caminho, nas rochas gigantes que parecem despencar e tantasoutras coisas que só os revolucionários são capazes de sentir.

O contato físico não encerra toda a amplitude das relaçõeshumanas, porque o ser humano não é composto apenas deelementos materiais mas também sentimentais. Há pessoas quelevam décadas sem se verem, mas continuam amando-se como sefossem encontrarem-se no dia seguinte. Quando se encontramrealizam os planos do sentimento. Se o prazer viesse apenas porcontatos físicos seríamos os seres mais infelizes do universo.

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Se não acreditamos nisso, não poderia ter existido Gandhi,que a partir de um período de sua vida transformou-secompletamente, pois no começo de sua vida, sua índole etemperamento eram diferentes quase o oposto do que setransformou. Aos 38 anos de idade mesmo casado e vivendo coma esposa e em combinação com ela, tornou-se celibatário.

Mas ao contrário, viver e praticar valores é uma virtude quesomente os seres desinteressados pela naturalidade das coisaspodem alcançar, pois procuram o extraordinário nas coisas de formapermanente.

Havia no passado práticas em organizações partidárias que,embora eficientes, burocratizaram tudo, inclusive a alegria e asrelações humanas. A formalidade dos encontros levaram adeformação das qualidades de um ser humano em atividade. Sorrir,cantar e dançar não quebram com a disciplina e nem reduzem ovalor, a profundeza e a seriedade das idéias. Isto não pode significarporém quebra de disciplina e unidade interna da organização.

Em nome do marxismo muitos dirigentes políticos instituírama frieza nas relações como se isto lhes desse mais poder. A razão detudo isto pode ser também porque o povo sempre esteve de fora,tanto das organizações quanto da tomada das decisões, por nãoserem “quadros” e por isso sempre estiveram em esferas inferiores.Sendo assim as instâncias partidárias foram ficando tão distantesdas pessoas, semelhantes aos funcionários do estado que se atribuemsuper-poderes, que a simples insistência do cumprimento de umdireito seu podem lhe prender por “desacato á autoridade”.Participar de uma instância da organização ou de qualquer cargopúblico não pode dar mais poder a ninguém, pois estes espaçosforam criados para servir as pessoas e a sociedade.

A luta não pode ser triste se tivermos consciência de queestamos preparando o berço para as futuras gerações nascerem ecrescerem felizes. Elas nascerão e herdarão de nós o prazer de fazera história com alegria.

É claro que há momentos de dificuldades onde a tristeza, ainsegurança, o cansaço, as divergências, a morte, enfim osatrapalhos, nos querem roubar a possibilidade de ver a felicidadeacontecer. Mas são momentos apenas de dificuldades como os quea mãe passa durante o parto. Por um momento sente-se insegura,mil preocupações, mas logo é abraçada pelo alívio com o anúncioda vida, pela voz que entoa a canção do choro, a canção donascimento, dizendo-lhes que o perigo passou, e o sorriso nos lábiose no coração vai engolindo as dores levando-as para o

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esquecimento, já iniciando a preparação do ventre para prepararoutra pessoa e passar pelas mesmas apreensões novamente quandochegar o tempo. E assim repete dez, doze ou mais vezes. É o mistérioda vida que sempre se repete.

A luta é assim também. Mesmo que repitamos os mesmosgestos, soframos as mesmas dificuldades, um lutador do povo sempreestá produzindo coisas novas, como a mãe que repete a geraçãocontínua de filhos, mas cada qual com suas características equalidades.

A sociedade que sonhamos construir deverá ser alegre porqueteremos prazer em viver nela. Mas a alegria é como um músculo senão a exercitarmos todos os dias, atrofia e seca.

A tristeza não pode construir nada de belo, embora as vezestenhamos que conviver com ela, mas seu ciclo deve ser forçado aser curto.

As formalidades são importantes, mas desformalizar tambémé uma forma de fazer as coisas sem diminuir a importância e agrandeza das cerimônias. Isto porque a maior pare da vivemosinformalmente e não podemos agir como se tivéssemos duaspersonalidades; na rua, no trabalho, em casa, somos descontraídose alegres e nos encontros ou na lutas somos calados e sérios.

A vida de um lutador do povo se compõe de todas asdimensões possíveis: trabalho, estudo, lazer, festa, encontros etc.Há momentos que isto acontece separadamente, mas há momentosque isto pode acontecer ao mesmo tempo.

A alegria deve ser um referencial básico para um lutador dopovo pelo simples fato de que em qualquer lugar para onde vamos,levamos junto nosso coração e nossos sonhos, é neles queplantamos nossa utopia.

88888ooooo - Ternura - Ternura - Ternura - Ternura - TernuraTernura significa reconhecimento. Reconhecer que há vida

em tudo. Como disse Gandhi: “Tudo o que vive é teu próximo”, edesta forma é possível acreditar que um ser humano conseguechegar à plenitude do amor e, poderá neutralizar o ódio de milhões.

Na luta de classes esta virtude de buscar a plenitude é tãodifícil pois os fatos são nobres de contradições que as vezes emboramantendo coerência no comportamento, na primeira oportunidadenos igualamos aos torturadores. A vingança não pode libertarninguém. Ernesto Che Guevara, que certamente tinha suas fraquezas,nos dizia que devemos saber punir sem se quer deixar tremer umúnico músculo da face. Significa dizer que mesmo punindo deve

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haver um profundo respeito pela dignidade do ser humano, edevemos fazer sempre sem ódio.

É claro que na luta de classes existem sempre dois ladosinimigos e um deve derrotar o outro, e a derrota definitiva quasesempre exige derramamento de sangue. Não há outra forma de seconseguir a libertação total da classe trabalhadora. Mas isto nãosignifica que haja um desmerecimento da dignidade humana.

Como disse Mao Tse Tung “há vidas que possuem o peso deuma pena e outras que possuem o peso de uma rocha” mas ambassão vidas.

A ternura como valor está na linha do aperfeiçoamento docomportamento político e humano de um lutador do povo na suarelação com a coletividade.

A ignorância é o oposto da ternura. Os torturadores sãoignorantes e incompetentes, quanto mais torturam mais demonstramsuas fraquezas. Por não terem a capacidade suficiente de recolherinformações através de seus sistemas de investigação e infiltração,usam a ignorância como forma a ter aquilo que são incapazes dealcançar através da inteligência. Através da ignorância tentam dizerque estão derrotando a verdade que está com o inimigo, mas nofundo sabem que dependem dele para dar seqüência a seu esquemade repressão e isto depende da decisão do torturado.

Ternura, portanto não significa perdoar o inimigo e deixá-lo irpara que se reabilite e volte mais preparado para nos atacar, masjamais se pode desqualificá-lo enquanto ser humano obrigando-oa fazer coisas que estão em desacordo com a lógica da continuidadeda vida humana.

Recentemente alguns companheiros militantes do MST noParaná, foram presos torturados e obrigados a comerem esterco degado em grande quantidade, com uma faca encostada na garganta.A baixeza destes torturadores os desqualifica enquanto sereshumanos, e os transforma em monstros, pois não se tem notícia dequalquer ser vivo que respire que se alimente de esterco de gado,isto está contra a lógica do desenvolvimento da vida. E tudo issopor caprichos e para garantir algumas moedas em dinheiro. Mascomo as causas justas são invencíveis, a reforma agrária tambémserá, mais dia menos dia e daremos aos filhos destes torturadoresalimentos verdadeiros extraídos da terra e do trabalho. Provaremosassim que somos seres mais perfeitos e a punição que lhes daremosnão será a tortura, mas a perda do poder de torturar e terem de viverdo esforço do trabalho produtivo se quiserem viver.

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É difícil admitir isso, mas se não tivermos a capacidade de noscomportarmos de forma diferente, a sociedade que sonhamosconstruir jamais se iniciará, pois sempre haverão, mesmo na novasociedade, pessoas que estarão procurando atrapalhar a construçãodo caminho e cometendo atrocidades, saber punir não pode serum ato de vingar mas de interromper o caminho do erro que ameaçaa verdade. Os torturadores, são chamados assim porque combatema verdade para legitimar o erro. Jamais podemos nos igualar a eles.É baixo demais.

Muitos revolucionários do passado nos ensinaram quedevemos tratar bem os inimigos quando estes estiverem dominados,para que reconheçam que somos diferentes e se envergonhem pelopapel que desempenham.

Os torturadores são hipócritas. Recentemente vimos quandoo exército Iugoslavo capturou 3 soldados norteamericanos queinvadiram seu território. Logo os Estados Unidos da América, o paísmais hipócrita do mundo, por querer dominar o mundo a custa douso dos instrumentos que lhe convém, se pronunciaramimediatamente que queriam tratamento digno e humanitário aosprisioneiros. Mas eles jamais pediram e nem retrocederam nosúltimos 40 anos na América Latina quando assassinaram naGuatemala 75 mil revolucionários onde usavam como instrumentoestacas pontiagudas em pé obrigando as pessoas sentarem-se sobreelas, até verem a ponta sair pelo pescoço, o mesmo tanto naNicarágua, em El Salvador, no Chile, na Argentina, no Brasil, noPeru onde os guerrilheiros e revolucionários estão presos em túneissem claridade e cadeias submarinas, na Colômbia, na investidasanguinária contra a guerrilha, e no México contra os Zapatistas eComunidades Indígenas.

Jamais podemos agir desta forma hipócrita, exigir que os outrosnos tratem bem quando já não sabemos explicar o que é o bem.

Mesmo que muitas vezes o que nos sobra são as lágrimas,devemos nos propor a sermos diferentes, para que se construamrelações humanas e fraternas na humanidade toda.

Um lutador do povo não pode em nome da ternura e dosdireitos humanos fraquejar e deixar de ser “duro” e “enérgico” nosmomentos precisos, mas esquecer jamais a lição do Che. “Endurecer-se pero sin perder la ternura Jamás”. De modo que a ternura nãoimplica em evitar a luta e a guerra, apenas nos ensina sermoshumanos dentro dela.

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É verdade, mesmo sabendo que a ternura é um valor,cometeremos erros e excessos, pelo simples fato de sermos sereshumanos em desenvolvimento, e poderemos passar várias geraçõespara que consigamos implantar completamente alguns valores, masmais do que nos cuidar para não cairmos neste desvio, devemosavaliar permanentemente nossas atitudes para sabermos se estamostendo progresso. Punir sim, mas vingar-se jamais. Queremos edesejamos que nossos descendentes sejam melhores do que nós.

99999ooooo – A mística em forma de utopia – A mística em forma de utopia – A mística em forma de utopia – A mística em forma de utopia – A mística em forma de utopiaA utopia é colocada aqui como valor, no sentido de que

devemos contestar a ideologia da incerteza sobre o futuro, como seo projeto da sociedade igualitária e a busca da perfeição não fossemmais possíveis.

Entendemos, portanto como utopia a relação existente entrea dimensão concreta de um projeto real que visa ir realizando oprojeto abstrato que é formulado com a ajuda da ciência mastambém pela imaginação humana. Ter e manter a utopia deve serpara nós um valor que se alimenta pela mística como sendo a razãoque nos faz viver e buscar esta causa.

A elevação do nível de consciência consegue manter estarelação em permanente sintonia entre três aspectos: Problema –Causa – Solução. Neste tripé é que se desenvolve a mística, ou seja,sobre a realidade concreta se estabelece as bases do projeto detransformação e a mística é esta razão que move o lutador social nabusca da realização desta causa.

O agravamento dos problemas sociais exigem ainda maisapego à utopia para que se possa apresentar soluções definitivas.Sãoos problemas que impulsionam as revoluções; a utopia se apresentacomo possibilidade de chegarmos a solução dos problemas; eladeve ser entendida portanto como conteúdo do projeto que não seconsegue alcançar nunca na totalidade, pois ela sempre está alémda realidade e quanto mais andamos mais nos convida a andar embusca da perfeição. Assim como temos às vezes a impressão deque se subirmos a montanha alcançaremos o sol com as mãos, masao chegarmos lá, veremos que ele ainda está muito distante no picode outra montanha, e se quisermos alcançá-lo devemos seguirandando, até chegarmos em outro ponto e percebermos que ascircunstâncias se ampliaram e novamente somos convidados aandar.

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Esta permanente busca é que caracteriza os lutadores utópicosa caminho da busca da verdade que cada vez mais se complexifica.Por isso nos preparamos, cuidamos da saúde, buscamosconhecimentos, fazemos treinamentos, embelezamos as casas,escrevemos poesias, como se estivéssemos sempre nos preparandopara um grande encontro. Este mistério de preparar-se e jamaisencontrar-se com a totalidade do projeto é o que nos move eimpulsiona para vivermos esta causa tão humana e tão repleta derealizações. Este prazer de saber, sentir e fazer é que chamamos demística. É esta força que nos move em busca da construçãointerminável da utopia.

Estamos vivendo um momento de profundas mudanças nahistória da sociedade humana e por isso as crises se apresentam emdiferentes espaços. O capitalismo é por excelência um produtor decrises, porque os capitalistas devem agir de acordo com as ordens ea vontade do capital.

O fenômeno das crises ocorre sempre em que estão em cursograndes transformações, principalmente tecnológicas, pois estas têmo poder de mexer com as relações das forças produtivas e dasrelações sociais de produção.

Assim ocorreu quando surgiu a máquina a vapor, depois coma eletricidade. Com o tempo estes inventos vão sendo“domesticados” e acabam por se generalizarem o uso, impondo éclaro, sistemas de vida e de relações que o capital seja semprefavorecido.

O problema que enfrentamos hoje, mais do que no passado éque o capital busca cada vez mais lucro em diferentes áreas. Nadamais se move se não tiver ganhos, mais do que nunca o capitalexige lucros para desenvolver-se e reproduzir-se, obrigando associedades aprovarem leis que lhes assegure “direitos”.

Hoje vem em primeiro lugar os direitos do capital, depois osdireitos do ser humano. Com isso patenteiam-se os inventos paraque as grandes corporações econômicas se sintam tranqüilas atrásdas muralhas legais, significando que este campo já está dominadoe ninguém pode entrar.

Foi assim que lentamente o capital e os capitalistas foramperdendo a noção da ética e tudo passou a ser válido, menos deixarde ter lucro, explorar, saquear, sacrificar para que as grandespotências mantenham a dominação sobre os pobres.

Vivemos uma situação onde a tecnologia facilita o progressocom diminuição do esforço físico no trabalho, e por outro lado as

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pessoas vão ficando sem trabalho e sem condições de reivindicarem,pois desaparece a figura física do culpado ou responsável.

Em períodos eleitorais se levantam grandes contingentes demassas acreditando nas promessas dos candidatos que irão garantirempregos, mas chega o dia da eleição, e o eleito, como se entrasseem outro mundo, inicia os trabalhos facilitando o aprofundamentoainda maior da tecnologia em detrimento do trabalho humano. Oseleitores após a eleição deixam de ser eleitores e voltam a ser seresexplorados, excluídos e desqualificados que nem os governantesnem o capital os querem tocar.

O governante embarca na nave estatal e se distancia daspessoas, dos jegues que montou durante a campanha, das feirasonde comia pastel sem usar guardanapo, e vai deleitar-se nos braçosdo capital, gerenciando o modelo imposto pelas ricas potências.

Podemos então perguntar quais foram os problemas que ocapitalismo resolveu. Na verdade os problemas se agravam cadavez mais e desta forma os lutadores do povo precisam acreditar napossibilidade de fazer as coisas acontecerem de outra forma. Autopia está viva na linha do horizonte.

Os avanços tecnológicos facilitam muito as coisas masconcentram cada vez mais renda e excluem cada vez mais o serhumano, limitando-lhes as alternativas de sobrevivência, pois ocapital não reinveste seus lucros para beneficiar e reproduzir otrabalho humano, ao contrário, investe em mais tecnologiadistanciando-se ainda mais do ser social, que não entenderá mais alinguagem da tecnologia e se sentirá culpado por não ter estudadoe por não cumprir com os requisitos básicos exigidos pelosempregadores.

É a ideologia do capital que agora transforma as vítimas emculpadas para que estas não reajam e não cobrem, pois a “culpa ésua” por estar desempregado.

O capital sempre se sustentou sobre três aspectos: matériaprima extraída da natureza, força de trabalho e meios de produção.Na atualidade vemos que há muitos investimentos em meios deprodução, mas está acabando com o trabalho humano e com anatureza de onde vem as matérias primas, significando que estemodelo de economia não serve, pois as máquinas jamais poderãorepor o que o modelo destrói; as relações humanas fraternas, oequilíbrio ecológico e a harmonia planetária entre todos os seresvivos de todas as espécies.

Desta forma o ser humano vai perdendo espaço pela tecno-logia e pela ganância do capital, facilitada pela irresponsabilidade

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dos governantes. Passamos de atores a espectadores, como se apouco tempo estivéssemos no palco e agora nos vemos sentadosna platéia sem poder entrar em cena.

O capital e a tecnologia “tudo resolvem”, basta acionar ocomputador e teremos informações do assunto que quisermos. Segostarmos de algum produto é só ligar e fornecer o número do cartãode crédito e receberemos o produto em casa. Não precisamos maisde vizinhos, nem de sindicatos.

O monstro mostra sua cara através de mil possibilidades e fazcom que as pessoas, mesmo não podendo buscar nada do que elepromete, ficam extasiadas em frente aos televisores a espera desoluções de seus problemas.

Participar. Criar referências organizativas para que as pessoaspossam encontrarem-se, discutirem seus problemas, reagiremorganizadamente contra os verdadeiros responsáveis, elevar o nívelde consciência e propor-se a mudar o modelo de sociedade ondeas pessoas coloquem a tecnologia a seu serviço e a busca do bemestar de todos os seres humanos, é o início para reanimarmos autopia, iniciando a implantação de aspectos concretos deste planoabstrato.

A utopia continua atualíssima para os lutadores do povo,somente ela tem este poder de antecipar em forma de projeção estasociedade futura que queremos construir. Este é o conteúdo de nossacausa. Vivenciá-lo por antecipação somente conseguiremos atravésda mística.

O capitalismo é fonte inesgotável de criação de problemas. Osocialismo é esta fonte inesgotável de soluções. A utopia é aperspectiva abstrata e concreta que temos para realizar o socialismode nosso modo, que sairá com imperfeições, mas que a persistênciautópica nos impulsionará sempre para que o aperfeiçoemos. Nãohá porque temer; tudo o que fizermos servirá para reduzir esforçosde nossos descendentes que darão seqüência a este sonho utópicoda libertação total do ser humano.

1010101010ooooo – Simbologia – Simbologia – Simbologia – Simbologia – SimbologiaAs pessoas precisam enxergarem-se e identificarem-se através

dos símbolos, mas símbolos que tenham significado coletivo e queestejam dentro da ética e a serviço da construção da dignidadehumana. Mais do que nunca é fundamental que se recupere e sedesenvolva no imaginário e na prática social a importância dossímbolos para fazer frente ao processo de alienação e despolitizaçãodas relações sociais.

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A ideologia burguesa por estar em pleno desenvolvimento daera do descartável, procura fazer-nos crer que tudo tem sentidolimitado e as coisas perdem seu significado rapidamente.

As propagandas eletrônicas criam um sentimento desuperação imediata. Mal o rapaz compra um carro e logo vem apropaganda de um modelo mais atualizado. Os computadores vãosendo superados por outros numa velocidade incontrolável. Oseletrodomésticos, as roupas e calçados, com suas cores exóticas, jánão se superam de uma estação para outra, mas dentro da própriaestação.

Este sentimento de “ultrapassagem” é que faz as pessoasficarem obcecadas pelos novos lançamentos. Os shoppingssimbolizam a atualização em tudo. Quem quiser saber o que denovo há em qualquer item de consumo, é só procurar o mercadocentral, ali estão à disposição todos os inventos.

Este sentimento do descartável irá arraigar-se e passará a fazerparte da consciência social, com naturalidade fora da ética e dosvalores. O perigo maior é quando a indiferença pelo descarte atingiras relações humanas e o próprio ser humano. Já ninguém reage porver o desemprego, mendigos nas ruas, crianças abandonadas, poisisto é “material” do dia anterior.

É fundamental que os lutadores do povo mantenham vivos ossímbolos que dão identidade a nossa cultura, a nossas organizações.Os símbolos podem apresentarem-se e estarem relacionados comdiferentes aspectos, materiais, espirituais, culturais, estéticos etc.

Nas organizações temos as bandeiras, os hinos, os jornais, asferramentas de trabalho, os chapéus. Na arte temos músicas,folclores, vestuários, culinária regional. No trabalho temos osinstrumentos. Na religião a cruz e demais símbolos. Tudo fazemparte da cultura que compõe a vida de nossa sociedade

É fundamental prestar atenção e preservar o que nos identificae o que nos mantém vinculados ao passado. As cores tem significadosimbólico muito importante que identificam os povos e suastradições, seja na pintura do corpo para as guerras no caso dospovos indígenas, seja no uso de lenços vermelhos no pescoço, sejanas bandeiras vermelhas da Comuna de Paris, e de todas revoluções.A classe dominante procura relativizar as cores ou atacá-las quandopercebe que elas representam mais do que cores e reproduzemideologia. As atacam no sentido de quebrar a unidade entre aspessoas e confundí-las ideologicamente.

Resgatar os símbolos, mantê-los em evidência, preservá-los edar conteúdo e significado aos que com os quais vamos nos

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identificando, como, a terra, a água, o ar, as montanhas efundamentalmente considerar os seres humanos o principal símbolopara a organização igualitária da sociedade.

O ser humano tem a capacidade de estabelecer objetivos ede alcançá-los como se fossemos pássaros buscando no vôo oinfinito.

Os ricos querem transformar a águia que temos dentro de nósem galinhas para que não voemos em busca da conquista douniverso como imaginava o camponês que capturou um filhote deáguia e o pôs junto com as galinhas.

Certa vez um camponês encontrou no campo um filhote deáguia bastante enfraquecido, tomou em suas mãos, levou-o paracasa, e após tê-lo recuperado o pôs para viver junto com as galinhasem seu terreiro, que ali cresceu. Um dia passando por ali um sábioe ao ver a ave indagou:• Esta aí junto com as galinhas é uma águia, não é?

• Era. – disse o camponês – Mas ela virou galinha. Nunca voou etambém não voará porque virou galinha!

• Mas ela tem dentro de si a capacidade de voar. – disse o sábio.

• Não voará – retrucou o camponês. – Ela virou galinha!

• Vamos então fazer a prova.Tomaram a águia nos braços e foram para o alto de um

penhasco para tirar a dúvida. O sábio tomou a ave, mostrou-lhes adireção do sol e a lançou para o alto. De início a águia começou acair como se fosse arrebentar-se no desfiladeiro, mas aos poucoscomeçou a mover as asas e a equilibrar um tanto desajeitada o pesoe começou a subir como se quisesse beijar o sol. Disse então osábio:- Uma águia jamais poderá ser transformada em galinha, mesmoque permaneça no chão por muito tempo, ela manterá dentro de sio poder de voar, basta apenas que descubra e desperte para isso.

Que cada lutador do povo desperte a águia que temos dentrode nós e parta para despertar as demais águias que existe em cadatrabalhador brasileiro, transformados em galinhas pelo capital e pelarepressão, simplesmente para que não tenhamos a vontade e acoragem de voar e ver o infinito.

Outros valores devemos desenvolver como o respeito, apersistência o companheirismo a humildade e assim por diante. Nocaminhar paciencioso eles aparecerão, basta que estejamos atentos.

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IVIVIVIVIV. O SOCIALISMO E O HOMEM EM. O SOCIALISMO E O HOMEM EM. O SOCIALISMO E O HOMEM EM. O SOCIALISMO E O HOMEM EM. O SOCIALISMO E O HOMEM EMCUBACUBACUBACUBACUBA20

 

Estimado Companheiro

  Estou terminando estas notas durante minha viagem pelaÁfrica, animado pelo desejo de cumprir, ainda que tardiamente,minha promessa. Gostaria de fazê-lo desenvolvendo o tema dotítulo. Penso que pode ser interessante para os leitores do Uruguai.

É comum ouvir da boca dos porta-vozes do capitalismo,como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, aafirmação de que este sistema social, ou o período de construçãodo socialismo que estamos atualmente vivendo, se caracteriza pelaabolição do indivíduo no altar do Estado. Não tentarei refutar estaafirmação a partir de uma base meramente teórica, mas simestabelecer os fatos tal como acontecem em Cuba e acrescentarcomentários de caráter geral. Primeiro esboçarei em pinceladas áhistória de nossa luta revolucionária antes e depois da tomada dopoder.

Como se sabe, a data exata em que se iniciaram as açõesrevolucionárias que culminaram com o 1° de janeiro de 1959, foi26 de julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castroatacou na madrugada desse dia o quartel Moncada na Provínciade Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso se transformou emdesastre e os sobreviventes foram parar na prisão, para reiniciar,logo depois de terem sido anistiados, a luta revolucionária.

Durante este processo existiam apenas germes de socialismoe o homem era um fator fundamental. Nele se confiava, eraindividualizado, específico, com nome e sobrenome, e o triunfo ouo fracasso da ação empreendida dependia da sua própriacapacidade.

20 Che Guevara -Che Guevara -Che Guevara -Che Guevara -Che Guevara - Carta dirigida a Carlos Quijano, diretor do semanárioMarcha, de Montevidéu, em 12 de março de 1965.

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Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta se desenvolveu emdois ambientes diferentes: o povo, massa ainda adormecida queprecisava ser mobilizada, e sua vanguarda, a guerrilha, motorimpulsor do movimento, gerador de consciência revolucionária ede entusiasmo combativo. Esta vanguarda foi o agente catalisador,aquele que criou as condições subjetivas necessárias à vitória. Navanguarda também, no interior do processo de proletarização donosso pensamento, da revolução que se processava em nossoshábitos e nossas mentes, o indivíduo foi o fator fundamental. Cadaum dos combatentes da Sierra Maestra que alcançou algum grausuperior nas forças revolucionárias tem em seu haver uma históriade fatos notáveis. Era em função destes fatos que ele conseguia seusgalões.

Esta foi a primeira época heróica, na qual se disputava paraconseguir um cargo de maior responsabilidade, onde o perigo eramaior sem outra satisfação que a do dever cumprido. No nossotrabalho de educação revolucionária voltamos bastante sobre estetema educativo. Na atitude dos nossos combatentes visualizava-seo homem do futuro.

Este fato da entrega total à causa revolucionária se repetiuem outras oportunidades na nossa história. Durante a crise deOutubro ou durante os dias do furacão Flora, pudemos constataratos de valor e de sacrifícios extraordinários realizados por um povointeiro. Uma das nossas tarefas fundamentais do ponto de vistaideológico e a de encontrar a fórmula para perpetuar esta atitudeheróica na vida quotidiana.

Em janeiro de 1959, o governo revolucionário se estabeleceucom a participação de vários membros da burguesia entreguista. Apresença do exército rebelde constituía a garantia do poder, umfator fundamental de força.Em seguida ocorreram contradições sérias, resolvidas em primeirainstância em fevereiro de 1959, quando Fidel Castro assumiu achefia do governo no cargo de Primeiro Ministro. O processoculminava com a renúncia do presidente Urrutia diante da pressãodas massas em julho do mesmo ano.

Neste momento aparecia na história da revolução cubana,com características bem nítidas, um personagem que de agora emdiante estará sistematicamente presente: a massa.

Este ente de múltiplas facetas não e, como se pretende, asoma de elementos de uma mesma categoria (reduzidos, aliás, auma mesma categoria por imposição do sistema), que atua como

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um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar seusdirigentes, principalmente Fidel Castro; mas o grau desta confiançaque ele conquistou está em função precisamente da interpretaçãocabal dos desejos do povo, de suas aspirações e da luta sincera queele travou para o cumprimento das promessas feitas.

A massa participou na Reforma Agrária e no difícil empenhode administrar as empresas estatais; passou pela experiência heróicade Playa Girón; forjou-se nas lutas contra as várias hordas debandidos armados pela CIA; viveu uma das definições maisimportantes dos tempos modernos na crise de Outubro e está hojetrabalhando para a construção do socialismo.

Se olhamos as coisas de um ponto de vista superficial, podeparecer que aqueles que falam da subordinação do indivíduo aoEstado têm razão; a massa realiza com um entusiasmo e umadisciplina sem par as tarefas determinadas pelo governo, sejam elasde caráter econômico, cultural, de defesa, esportivo, etc. A iniciativaparte geralmente de Fidel ou do alto comando da revolução, éexplicada ao povo, que a acata como sendo sua. Outras vezes oPartido e o governo escolhem experiências localizadas egeneralizam-nas seguindo o mesmo procedimento.

No entanto, às vezes o Estado está errado. Quando um desseserros se produz, nota-se uma diminuição do entusiasmo coletivoatravés de uma diminuição quantitativa de cada um dos elementosque formam este coletivo, e o trabalho diminui até ficar reduzido aproporções insignificantes: esse e o momento de corrigir. Issoaconteceu em março de 1962, diante da política sectária impostaao Partido por Aníbal Escalante.

É evidente que o mecanismo não e suficiente para asseguraruma série de medidas sensatas e que falta uma conexão maisestruturada com a massa. Devemos melhorar isso no decorrer dospróximos anos, mas para o caso das iniciativas provindas dasinstâncias superiores do governo, utilizamos por enquanto o métodoquase intuitivo de auscultar as reações gerais face aos problemascolocados.

Fidel é mestre nisso e seu modo particular de integração como povo só pode ser apreciado vendo-o atuar. Nas grandesconcentrações públicas observa-se algo como o diálogo de doisdiapasões, cujas vibrações provocam outras no interlocutor. Fidel ea massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescenteaté alcançar o clímax num final abrupto coroado por nosso grito deluta de vitória.

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O que fica difícil entender para quem não vive a experiênciada revolução e esta estreita unidade dialética existente entre oindivíduo e a massa, onde ambos se inter-relacionam, e a massapor sua vez, enquanto conjunto de indivíduos, se inter-relacionacom os dirigentes.

No capitalismo pode-se verificar alguns fenômenos dessetipo quando aparecem políticos capazes de conseguir a mobilizaçãopopular, mas se não se tratar de um autêntico movimento social, enesse caso não e totalmente lícito falar de capitalismo, o movimentodurará enquanto durar a vida de quem o impulsiona ou até o fimdas ilusões populares, imposto pelo rigor da sociedade capitalista.Nesta sociedade o homem é dirigido por uma ordem fria quehabitualmente escapa ao domínio de sua compreensão. O indivíduoalienado tem um cordão umbilical invisível que o liga à sociedadeno seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos desua vida, modela seu caminho e seu destino.

As leis do capitalismo, invisíveis para o homem comum ecegas, atuam sobre o indivíduo sem que este o perceba. Ele vê apenasa amplitude de um horizonte que parece infinito. É apresentadodesse modo pela propaganda capitalista, que pretende tirar do casoRockefeller verídico ou nãouma lição sobre as possibilidades deêxito. A miséria que é necessária acumular para que surja umexemplo como este e a quantidade de desgraças que uma fortunadessa magnitude ocasionou para poder existir não aparecem noquadro, e nem sempre as forças populares têm a possibilidade deaclarar estes conceitos. (Caberia aqui uma indagação sobre como,nos países imperialistas, os trabalhadores perdem seu espírito declasse internacional por causa de uma certa cumplicidade naexploração dos países dependentes e como este fato ao mesmotempo diminui o espírito de luta das massas no próprio país; maseste é um tema que foge ao propósito destas notas).

De qualquer maneira, mostra-se o caminho com obstáculosque, aparentemente, o indivíduo com as qualidades necessáriaspode superar para chegar até a meta final. O prêmio é visualizado adistância; o caminho é solitário. Além de tudo é preciso transformar-se em lobo pode-se chegar apenas à custa do fracasso de outros.

Tentarei agora definir o indivíduo, ator desse estranho eapaixonante drama que e a construção do socialismo, em sua duplaexistência de ser único e membro da comunidade.

Penso que o mais simples é reconhecer sua qualidade denão feito, de produto não acabado. As taras do passado se

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transmitem até o presente na consciência individual e há necessidadede se fazer um trabalho contínuo para erradicá-las.

O processo é duplo: por um lado a sociedade atua com suaeducação direta e indireta, por outro lado o indivíduo se submete aum processo consciente de auto-educação.

A nova sociedade em formação deve competir muitoduramente com o passado. Isto se faz sentir não apenas naconsciência individual, na qual pesam os resíduos de uma educaçãosistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, mastambém pelo próprio caráter desse período de transição, ondepermanecem as relações mercantis. A mercadoria e a célulaeconômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitosse farão sentir na organização da produção e, em conseqüência,na consciência.

No esquema de Marx se concebia o período de transiçãocomo resultado da transformação explosiva do sistema capitalistadestruído por suas contradições; na realidade posterior viu-se comocaem da árvore imperialista alguns países que constituem os ramosmais débeis, fenômeno previsto por Lênin. Nesses países ocapitalismo se desenvolveu suficientemente para fazer sentir seusefeitos de um ou outro modo sobre o povo, mas não são suaspróprias contradições que, esgotadas todas as possibilidades, fazemexplodir o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo,a miséria provocada por acidentes estranhos como a guerra, cujasconseqüências fazem recair as classes privilegiadas sobre osexplorados, os movimentos de libertação destinados a derrotarregimes neocolonialistas, são os fatores habituais dodesencadeamento. A ação consciente faz o resto.

Nestes países não se produziu ainda uma educação completapara o trabalho social, a riqueza está longe de poder chegar às massasatravés do simples processo de apropriação. O subdesenvolvimentopor um lado e a habitual fuga de capitais até países “civilizados”por outro tornam impossível uma mudança rápida e - sem sacrifícios.Resta um grande caminho a percorrer na construção da baseeconômica, e a tentação de seguir pelos caminhos do interessematerial como alavanca impulsora de um desenvolvimentoacelerado é muito grande.

Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver obosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo graças àsarmas que nos legou o capitalismo (a mercadoria como célulaeconômica, a rentabilidade, o interesse material individual como

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alavanca, etc.), pode-se chegar a um beco sem saída. Pode-sepercorrer uma longa distância na qual os caminhos se cruzammuitas vezes e onde é difícil perceber o momento em que se erroude caminho. Entretanto, a base econômica adaptada fez seu trabalhode corrosão sobre o desenvolvimento da consciência. Para construiro comunismo, paralelamente à base material tem que se fazer umhomem novo.

Daí a importância de escolher corretamente o instrumentode mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índolemoral fundamentalmente, sem esquecer uma correta utilização doestímulo material, sobretudo de natureza social.

Como já disse, num momento de perigo extremo é fácilpotencializar os estímulos morais; para manter sua vigência, énecessário que se desenvolva um consciência na qual os valoresadquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve setransformar em uma gigantesca escola.

As grandes linhas do fenômeno são semelhantes ao processode formação da consciência capitalista em sua primeira fase. Ocapitalismo recorre à força, mas também educa as pessoas dentrodo sistema. A propaganda direta é realizada pelos encarregados deexplicar a perenidade de um regime de classe, seja de origem divinaou por imposição da natureza como ente mecânico. Isso aplaca asmassas, que se vêem oprimidas por um mal contra o qual não epossível lutar.

Em seguida vem a esperança, e neste ponto que se diferenciados regimes anteriores de casta, que não apontavam saídas possíveis.

Para alguns continuará vigente ainda a forma de castas: oprêmio para os obedientes consiste no acesso, depois da morte, aoutros mundos maravilhosos onde os bons são premiados, comoacontece na velha tradição. Para outros há inovação: a separaçãoem classes é fatal, mas os indivíduos podem sair da classe a quepertencem através do trabalho, da iniciativa, etc. Este processo e. oda auto-educação para o triunfo devem ser profundamentehipócritas: é a demonstração interessada de que uma mentira éverdade.

No nosso caso, a educação direta adquire uma importânciamuito maior. A explicação e convincente porque é verdadeira: nãoprecisa de subterfúgios. Ela se exerce através do aparato educativodo Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, pormeio de organismos como o Ministério da Educação e o aparelhode divulgação do partido. A educação penetra nas massas e a nova

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atitude preconizada tende a converter-se em hábito; a massa vaiincorporando-a e pressiona quem ainda não se educou. Essa é aforma indireta de educar as massas, tão poderosa quanto a outra.

Mas o processo é consciente: o indivíduo recebecontinuamente o impacto do novo poder social e percebe que nãoestá completamente adequado a ele. Sob a influência da pressãoque supõe a educação indireta, ele trata de acomodar-se a umasituação que sente como justa e cuja própria falta dedesenvolvimento o tinha impedido de fazê-lo até agora. Ele se auto-educa.

Neste período de construção do socialismo podemos ver ohomem novo que está nascendo. Sua imagem ainda não estáacabada, nem poderia, já que o processo anda paralelo aodesenvolvimento de formas econômicas novas. Tirando aqueles cujafalta de educação os faz tender para o caminho solitário, para aauto-satisfação de suas ambições, aqueles que mesmo dentro dessenovo panorama de marcha conjunta têm a tendência de caminharisolados da massa que acompanham, o importante é que os homensadquirem cada dia maior consciência da necessidade de suaincorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importânciacomo motores da mesma.

Eles já não andam sozinhos por caminhos perdidos emdireção a longínquas aspirações. Eles seguem a vanguardaconstituída pelo Partido, pelos operários mais avançados e peloshomens da vanguarda que caminham ligados às massas e em estreitacomunicação com elas. As vanguardas têm os olhos voltados parao futuro e sua recompensa, mas esta não é vista como algoindividual; o prêmio é a nova sociedade, na qual os homens terãocaracterísticas diferentes: a sociedade do homem comunista.

O caminho é longo e cheio de dificuldades. Às vezes, porter-se enganado de caminho, tem que, retroceder; outras vezes, porcaminhar depressa demais, nos separamos das massas; em certasocasiões, por fazê-lo lentamente, sentimos a presença próxima dosque pisam nos nossos calcanhares. Em nossa ambição derevolucionários tentamos caminhar tão depressa quanto possível,abrindo caminhos; mas sabemos que temos que nutrir-nos da massae essa somente poderá avançar mais rápido se a animamos comnosso exemplo.

Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato deexistir a divisão em dois grupos principais (excluindo, claro, a facçãominoritária dos que não participam por uma razão ou outra da

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construção do socialismo) aponta a relativa falta de desenvolvimentoda consciência social. O grupo de vanguarda é ideologicamentemais avançado que a massa; esta conhece os novos valores, masinsuficientemente. Enquanto nos primeiros se dá uma mudançaqualitativa que lhes permite se sacrificar na sua função de vanguarda,os segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos epressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado que seexerce não somente sobre a classe derrotada, mas tambémindividualmente sobre a classe vencedora.

Tudo isto implica, para seu êxito total, a necessidade daexistência de uma série de mecanismos que são as instituiçõesrevolucionárias. Na imagem das multidões marchando para o futurose encaixa o conceito de institucionalização como o de umconjunto harmônico de canais, escalões, comportas, aparatos bemazeitados que permitam essa marcha, que permitam a seleçãonatural daqueles destinados a caminhar na vanguarda e queconcedam o prêmio aos que cumprem e o castigo aos que atentemcontra a sociedade em construção.

Esta institucionalidade da revolução ainda não foi alcançada.Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre ogoverno e a comunidade em seu conjunto, ajustada às condiçõespeculiares à construção do socialismo e fugindo ao máximo doslugares comuns da democracia burguesa, transplantados para asociedade em formação (como as câmaras legislativas, porexemplo). Foram feitas algumas experiências no sentido de se criarprogressivamente a institucionalização da revolução, mas sem maiorpressa. O freio maior que encontramos foi o medo de que qualqueraspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos faça perderde vista a última e mais importante ambição revolucionária, que é ade ver o homem libertado da alienação.

Apesar da carência das instituições, o que deve ser superadogradualmente, as massas agora fazem a história como um conjuntoconsciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. Ohomem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, emais completo; apesar da falta do mecanismo perfeito para isso,sua possibilidade de expressar-se e de influir no aparato social éinfinitamente maior.

Mas e preciso ainda acentuar sua participação consciente,individual e coletiva em todos os mecanismos de direção eprodução, e ligá-la à idéia da necessidade da educação técnica eideológica, de maneira que sinta como estes processos são

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estreitamente interligados e seus avanços paralelos. Deste modoalcançará a total consciência de seu ser social, o que equivale àsua plena realização como criatura humana, uma vez quebradasas correntes da alienação.

Isto se traduzirá concretamente pela reapropriação de suanatureza através do trabalho liberado e a expressão de sua própriacondição humana através da cultura e da arte.

Para que se desenvolva na primeira, o trabalho deve adquiriruma nova condição. A mercadoria homem cessa de existir e se instalaum sistema, que outorga uma quota pelo cumprimento do deversocial. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquinaé apenas a trincheira onde o dever é cumprido. O homem começaa libertar seu pensamento da obrigação penosa que tinha desatisfazer suas necessidades animais através do trabalho. Ele começaa se ver retratado em sua obra e a compreender sua magnitudehumana através do objeto criado, do trabalho realizado. Isto já nãosignifica deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalhovendida, que não lhe pertence mais, mas significa uma emanaçãode si mesmo, uma contribuição à vida comum, em que se reflete; ocumprimento do seu dever social.

Fazemos todos o possível para dar ao trabalho esta novacategoria de dever social e uni-lo, por um lado, ao desenvolvimentoda técnica que dará condições para uma maior liberdade e, poroutro lado, ao trabalho voluntário, embasado na concepçãomarxista de que o homem realmente alcança sua plena condiçãohumana quando produz sem a compulsão da necessidade físicade se vender como mercadoria.

Claro que existem ainda aspectos coercitivos no trabalho,mesmo quando é voluntário; o homem não transformou toda acoerção que o rodeia num reflexo condicionado de natureza social,e produz ainda, em muitos casos, sob a pressão do meio (compulsãomoral, como a chama Fidel). Ainda lhe falta conseguir a plenarecriação espiritual diante de sua obra, sem a pressão direta do meiosocial, mas ligado a ele pelos novos hábitos. Isto será o comunismo.

A mudança não se produz automaticamente na consciênciacomo também não se produz na economia. As variações são lentase não são rítmicas; há períodos de aceleração, outros de estagnaçãoe inclusive de retrocesso.

Devemos considerar também, como já dissemos antes, quenão estamos diante do período de transição pura, como o descreveuMarx na Crítica do programa de Gotha, mas numa nova fase não

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prevista por ele; o primeiro período de transição do comunismo ouda construção do socialismo. Isto se dá em meio de lutas de classeviolentas e com elementos de capitalismo em seu seio, queobscurecem a compreensão cabal de sua essência.

Se a isto acrescentamos o escolasticismo que freou odesenvolvimento da filosofia marxista e impediu o tratamentosistemático do período, cuja economia política não se desenvolveu,devemos convir que ainda estamos no berço e que é precisodedicar-se a investigar todas as características primordiais desteperíodo antes de elaborar uma teoria econômica e política de maioralcance.

A teoria resultante dará maior importância aos dois pilaresda construção: a formação do homem novo e o desenvolvimentoda técnica. Em ambos os aspectos ainda resta muito por fazer, masé menos perdoável o atraso no que diz respeito à concepção datécnica como base fundamental, a que neste terreno não se trata deavançar às cegas, mas de seguir durante bom tempo o caminhoaberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso Fidel insistetanto sobre a necessidade da formação tecnológica e científica detodo o nosso povo e mais ainda de sua vanguarda,

No campo das idéias que conduzem a atividades nãoprodutivas, é mais fácil ver a divisão entre a necessidade material ea espiritual. Faz muito tempo que o homem tenta libertar-se daalienação mediante a cultura e a arte. Ele morre diariamente oitoou mais horas por dia enquanto atua como mercadoria, pararessuscitar depois através de sua criação espiritual. Mas este remédiotraz os germes da mesma doença: é um ser solitário que buscacomunhão com a natureza. Ele defende sua individualidadeoprimida pelo meio e reage diante das idéias estéticas como um serúnico cuja aspiração é permanecer imaculado.

Trata-se apenas de uma tentativa de fuga. A lei do valor jánão e um mero reflexo das relações de produção; os capitalistasmonopolistas rodeiam-na de um complicado sistema que a convertenuma serva dócil, mesmo que os métodos empregados sejampuramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte noqual os artistas têm que ser educados. Os rebeldes são dominadospela maquinaria e somente os talentos excepcionais poderão criarsua obra própria. Os restantes se tornam assalariados envergonhadosou são triturados.

Inventa-se a investigação artística que se dá corno definiçãoda liberdade, mas esta “pesquisa” tem seus limites, imperceptíveis

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até o momento de se chocar com eles, ou seja, de se colocar osproblemas reais do homem em sua alienação. A angústia semsentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas paraa preocupação humana; combate-se a idéia de fazer da arte umaarma de denúncia.

Se as regras do jogo são respeitadas, pode-se obter todas ashonras: as que ganharia um macaco ao inventar piruetas. A condiçãoé não tentar escapar da jaula invisível.

Quando a revolução tomou o poder, produziu-se o êxododos domesticados; os demais, revolucionários ou não, viram umnovo caminho. A pesquisa artística ganhou novo impulso. Noentanto, os caminhos estavam mais ou menos traçados e o sentidodo conceito fuga se escondeu por trás da palavra liberdade. Ospróprios revolucionários mantiveram muitas vezes esta atitude,reflexo do idealismo burguês na consciência.

Em países que passaram por um processo similar, tentou-secombater estas tendências com um dogmatismo exagerado. Acultura geral se converteu em tabu e a representação formalmenteexata da natureza foi proclamada o ápice da aspiração cultural, eesta se converteu logo numa representação mecânica da realidadesocial que se queria fazer ver; a sociedade ideal, quase sem conflitose contradições, que se tentava criar.

O socialismo é jovem e comete erros. Nós, osrevolucionários, carecemos dos conhecimentos e da audáciaintelectual necessários para encarar a tarefa do desenvolvimentode um novo homem por métodos diferentes dos convencionais, eos métodos convencionais sofrem a influência da sociedade queos criou (mais uma vez se coloca o tema da relação entre forma econteúdo). A desorientação e grande e os problemas da construçãomaterial nos absorvem. Não existem artistas reconhecidos, que porsua vez tenham autoridade revolucionária. Os homens do Partidodevem assumir esta tarefa e tentar conseguir o objetivo principal:educar o povo.

Procura-se então a simplificação, que é o que todo mundoentende e que é também o que os funcionários entendem. Apesquisa artística autêntica é anulada e o problema da cultura geralé reduzido a uma apropriação do presente socialista e do passadomorto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialistasobre as bases da arte do século passado.

Mas a arte realista do século XIX também é de classe, talvezmais puramente capitalista do que esta arte decadente do século

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XX, onde transparece a angústia do homem alienado. O capitalismoem termos de cultua já deu tudo de si e dele não resta nada senão oanúncio de um cadáver fedorento; em arte, sua decadência dehoje.Mas por que pretender buscar nas formas congeladas dorealismo socialista a única receita válida? Não se pode opor aorealismo socialista a “liberdade”, porque esta não existe ainda enão existirá até o desenvolvimento completo da sociedade nova,mas não se deve pretender condenar todas as formas de arteposteriores à primeira metade do século XIX, desde o trono pontifíciodo realismo, pois se cairia num erro proudhoniano de retorno aopassado, colocando camisa de força na expressão artística dohomem que nasce e se constrói hoje.

Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico ecultural que permita a pesquisa e destrua a erva daninha tãofacilmente multiplicável no terreno beneficiado pela subvençãoestatal.

No nosso país o erro do mecanicismo realista não ocorreu;mas sim um outro de signo contrário. Deu-se por não se tercompreendido a necessidade da criação do homem novo que nãoseja o representado pelas idéias do século XIX nem tampouco pelasdo nosso século decadente mórbido. O homem do século XXI éaquele que devemos criar, mesmo que ainda seja uma aspiraçãosubjetiva e não sistematizada. Este é precisamente um dos pontosfundamentais do nosso estudo e do nosso trabalho e, na medidaem que consigamos êxitos concretos sobre uma base teórica ou,vice-versa, se extraiam conclusões teóricas de caráter amplo sobrea base de nossa pesquisa concreta, teremos dado uma contribuiçãovaliosa ao marxismo-leninismo, à causa da humanidade.

A reação contra o homem do século XIX nos fez cair nareincidência do decadentismo do século XX. Não é um errodemasiadamente grave mas devemos superá-lo sob pena de abrirum largo espaço ao revisionismo.

As grandes multidões estão se desenvolvendo, as novas idéiasvão alcançando ímpeto adequado no seio da sociedade, e aspossibilidades materiais de desenvolvimento integral deabsolutamente todos os seus membros tornam o labor muito maisfrutífero. O presente é de luta; o futuro é nosso.

Resumindo, a culpa de muitos dos nossos intelectuais eartistas reside em seu pecado original; não são autenticamenterevolucionários. Podemos tentar enxertar o olmo para que dê pêras,mas simultaneamente temos que plantar a pereira. As novas gerações

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estarão livres do pecado original. As probabilidades de que surjamartistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenhaampliado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. Nossatarefa consiste em impedir que a geração atual, desarticulada porseus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criarassalariados dóceis ao pensamento oficial nem “bolsistas” quevivam do amparo governamental, exercendo uma liberdade entreaspas. Logo virão os revolucionários que entoam o canto do homemnovo com a voz autêntica do povo. Ê um processo que exige tempo.

Na nossa sociedade a juventude e o Partido Comunistadesempenham um grande papel.

A primeira e particularmente importante por ser a matériamaleável com a qual se pode construir o homem novo semnenhuma das taras anteriores.

Ela recebe um tratamento de acordo com nossas ambições.Sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos suaintegração com o trabalho desde os primeiros momentos. Nossosbolsistas fazem trabalho físico durante suas férias ousimultaneamente com o estudo. O trabalho em certos casos é umprêmio, em outros um instrumento de educação, mas nunca umcastigo. Uma nova geração nasce.

O Partido é uma organização de vanguarda. Os melhorestrabalhadores são propostos por seus companheiros para integrá-lo. Ele é minoritário, mas de grande importância pela qualidade deseus quadros. Nossa aspiração e que o Partido seja de massas, massomente quando as massas tenham alcançado o nível dedesenvolvimento da vanguarda; quer dizer, quando estejameducadas para o comunismo. O trabalho é dirigido para estaeducação. O Partido é o exemplo vivo: seus quadros devem daraulas de labor e sacrifício, devem levar, com sua ação, as massasaté o fim da tarefa revolucionária, o que implica anos de dura lutacontra as dificuldades da construção, dos inimigos de classe, asmarcas do passado, o imperialismo...

Eu queria agora explicar o papel desempenhado pelapersonalidade, pelo homem como indivíduo dirigente das massasque fazem a história. É nossa experiência e não uma receita.

Nos primeiros anos Fidel deu à revolução o impulso, adireção, a tônica sempre, mas existe um bom grupo derevolucionários que se desenvolveram no mesmo sentido que odirigente máximo, e uma grande massa que segue seus dirigentes

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porque tem fé neles; tem fé neles porque souberam interpretar seusanseios.

Não se trata de quantos quilos de carne se come ou dequantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem dequantas belezas que vêm do exterior podem ser compradas com ossalários atuais. Trata-se precisamente do indivíduo se sentir maispleno, com muito mais riqueza interior e com muito maisresponsabilidade. O indivíduo do nosso país sabe que a épocagloriosa em que lhe é dado viver é de sacrifício. Os primeiros oconheceram na Sierra Maestra e onde quer que se tenha lutado;depois o conhecemos em toda Cuba. Cuba é a vanguarda daAmérica e deve fazer sacrifícios por ocupar justamente este lugar eporque indica às massas da América Latina o caminho da liberdadetotal.

No interior do país os dirigentes devem cumprir seu papelde vanguarda; e temos que dizê-lo com toda a sinceridade, em umarevolução verdadeira, na qual se dá tudo, da qual não se esperanenhuma retribuição material: a tarefa do revolucionário devanguarda e ao mesmo tempo magnífica e angustiante.

Deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que overdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos deamor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem estaqualidade. Talvez este seja um dos grandes dramas do dirigente:ele deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria, e tomardecisões dolorosas sem contrair um único músculo. Nossosrevolucionários de vanguarda devem idealizar este amor aos povos,às causas mais sagradas, e torná-lo único e indivisível. Não podembaixar com sua pequena dose de carinho cotidiano até os lugaresonde o homem comum o pratica.

Os dirigentes da revolução têm filhos que em seus primeirosbalbucios não aprendem a chamar o pai; mulheres que devem serparte do sacrifício geral de sua vida para levar a revolução ao seudestino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marcodos companheiros de revolução. Não há vida fora dela.

Nestas condições deve-se ter grande dose de humanidade,grande dose de sentimentos de justiça e de verdade para não cairem extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamentodas massas. Todos os dias deve-se lutar para que este a mor àhumanidade viva se transforme em fatos concretos, em atos quesirvam de exemplos, de mobilização.

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O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro doseu Partido, se consome nessa atividade ininterrupta, cujo únicofim é a morte, a não ser que a construção se realize em escalamundial. Se sua vontade de revolucionário diminui quando as tarefasmais prementes estão realizadas em escala local, e se esquece ointernacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de seruma força impulsionadora e acaba numa modorra cômoda da qualse aproveitam nossos inimigos irreconciliáveis, o imperialismo, queganha terreno. O internacionalismo proletário é um dever mastambém uma necessidade revolucionária. Deste modo educamosnosso povo.

Claro que existem perigos presentes nas circunstâncias atuais.Não apenas o dogmatismo, não apenas de congelar as relaçõescom as massas durante a grande tarefa, mas existe também o perigodas debilidades nas quais se pode cair. Se o homem pensa quepara dedicar sua vida inteira à revolução ele não pode distrair suamente com a preocupação da falta de um determinado produtopara o filho, com o fato de os sapatos das crianças estarem acabando,com o fato de sua família carecer de determinado bem necessário,ele, com este raciocínio, deixa de infiltrar-se pelo germe da futuracorrupção.

No nosso caso, estabelecemos que nossos filhos devem ter ecarecer daquilo que têm e daquilo que carecem os filhos do homemcomum; nossa família deve compreendê-lo e lutar por isso. Arevolução se faz através do homem, mas o homem deve forjar dia adia seu espírito revolucionário.

Assim vamos andando. À cabeça da imensa coluna – nãotemos vergonha nem estamos intimidados em dizê-lo – está Fidel,depois estão os melhores quadros do Partido e imediatamentedepois, tão perto que sua enorme força pode ser sentida, está opovo em seu conjunto; sólida armação de individualidades quecaminham até um fim comum; indivíduos que chegaram àconsciência do que e necessário fazer; homens que lutam para sairdo reino da necessidade e entrar no da liberdade.

Esta imensa multidão se ordena; sua ardem corresponde àconsciência da necessidade dela; já não e mais uma força dispersa,divisível em mil frações projetadas no espaço como fragmentos degranadas, procurando apenas alcançar, utilizando-se de qualquermeio, numa luta travada contra seus semelhantes, uma posição oualgo que dê uma segurança diante de um futuro incerto.

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Sabemos que existem sacrifícios à nossa frente e que devemospagar um preço pelo fato heróico de constituir uma vanguarda comonação. Nós, dirigentes, sabemos que temos um preço a pagar porter o direito de dizer que estamos à cabeça de um povo que está àcabeça da América. Todos e cada um de nós paga pontualmentesua quota de sacrifício, conscientes de receber o prêmio nasatisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todosaté o homem novo que se vislumbra no horizonte.

Permita-me tentar avançar algumas conclusõesNós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos;

somos mais plenos por sermos mais livres.O esqueleto da nossa liberdade completa está formado; falta-

lhe apenas a substância protéica e a roupagem; nós as criaremos.Nossa liberdade e sua sustentação quotidiana têm cor de

sangue e estão repletas de sacrifícios.Nosso sacrifício é consciente; quota para pagar a liberdade

que construímos.O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos

nossas limitações. Faremos o homem do século XXI; nós mesmos.Nós nos forjaremos na ação quotidiana, criando um homem

novo com uma nova técnica.A personalidade desempenha o papel de mobilização e de

direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações dopovo e enquanto não se afasta do caminho.

Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhoresdentre os bons, o Partido.

O alicerce fundamental da nossa obra é a juventude:depositamos nossa esperança nela e preparamo-la para tomar abandeira das nossas mãos.

Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, estácumprindo o objetivo a que me propus.

Receba nossa saudação ritual, com um aperto de mãos ouuma “Ave Maria Puríssima”. Pátria ou morte.

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