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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LUIZ GUSTAVO PUJOL A INCIDÊNCIA DA NORMA PENAL NO ÂMBITO DO COMÉRCIO EXTERIOR E SEUS REFLEXOS NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL CURITIBA 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

LUIZ GUSTAVO PUJOL

A INCIDÊNCIA DA NORMA PENAL NO

ÂMBITO DO COMÉRCIO EXTERIOR E SEUS REFLEXOS NO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

CURITIBA

2009

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LUIZ GUSTAVO PUJOL

A INCIDÊNCIA DA NORMA PENAL NO

ÂMBITO DO COMÉRCIO EXTERIOR E SEUS REFLEXOS NO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Rios

CURITIBA

2009

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LUIZ GUSTAVO PUJOL

A INCIDÊNCIA DA NORMA PENAL NO

ÂMBITO DO COMÉRCIO EXTERIOR E SEUS REFLEXOS NO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

COMISSÃO EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Rios

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_________________________________________

_________________________________________

Curitiba, ____ de março de 2009.

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DEDICAÇÃO

Este trabalho é dedicado:

Aos meus pais, a quem devo poder hoje estar aqui (afirmativa a ser compreendida em

toda rica variação de seus sentidos).

À Bi e à Isa, amores da minha vida e companheiras involuntárias da minha angústia.

Não duvido que estes dois anos talvez tenham sido mais duros para vocês do que

para mim. Obrigado por estarem sempre ao meu lado.

Ao meu mestre, a quem aqui me permito chamar apenas Rodrigo, por tudo que com

ele aprendo sobre companheirismo, amizade, carinho, dedicação e principalmente

sobre como viver é de fato uma grande “aventura”!

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AGRADECIMENTOS

À Bianca, nem tanto pelos meus momentos de ausência, sempre compreendidos, mas,

sobretudo, pela paciência exigida quando estávamos juntos. Amo-te.

À “pequena e engraçada” Isadora, por que ela existe. Isso é o bastante, pois é tudo.

Aos meus pais. Só agora começo a entender exatamente o porquê.

Ao meu mestre e orientador, Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Rios, que mesmo durante um

breve período de afastamento lá nos idos de 1997 – a ser debitado na conta da minha

confusão profissional momentânea – me guia em direção ao estudo do Direito penal.

Ao Daniel, ao Christian, à Malu e à Camila, colegas advogados do escritório, por

compreenderem a razão pela qual, em minha mesa, costumava sempre haver mais

livros que pilhas de processos.

Ao Eversong, pelas tantas sessões gratuitas de psicologia não técnica.

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“Los buenos fines solo pueden ser logrados usando medios adequados. El fin no

puede justificar los medios, por la sencilla y clara razón de que los medios

empleados determinan la naturaleza de los fines obtenidos”.

(Aldous Huxley)

“Se alguém que anda durante todo o dia chega ao fim deste

é o suficiente”

(Francesco Petrarca)

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RESUMO

A incidência da norma penal no âmbito do comércio exterior é matéria que demanda premente investigação científica. Com efeito, sem embargo das sanções existentes no âmbito administrativo, v. g., o perdimento da mercadoria objeto da operação comercial e a aplicação de pena pecuniária, conclui-se, não raro, pela existência de um ilícito penal nas operações de importação e exportação de mercadorias. Não obstante, a ausência de critério técnico para a identificação destes delitos é evidente, acarretando investigações policiais precipitadas, acompanhadas, no mais das vezes, de pesadas medidas constritivas incidentes sobre a liberdade e o patrimônio dos investigados e de suas empresas, com evidentes reflexos negativos no âmbito social, especialmente no campo da segurança jurídica. O resultado são ações penais com imputações dissociadas dos fatos, ameaçando direitos e garantias fundamentais, notadamente aquelas inerentes ao livre exercício de trabalho, oficio e profissão. Considerando a relevância do comércio exterior para a economia do país e, por conseguinte, a necessidade de assegurar o regular desenvolvimento das atividades das empresas que operam no setor, sensivelmente ameaçadas por procedimentos criminais de idoneidade extremamente discutível, é de rigor estudar para corretamente compreender, identificar e eliminar as impropriedades de natureza penal verificadas nesta seara.

Palavras-chave: Direito aduaneiro. Livre iniciativa. Garantias constitucionais. Direito Penal Econômico. Segurança jurídica.

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ABSTRACT

The penal precept incidence in the sphere of foreign trade demands a prompt scientific investigation. So, without impediment of the existing penalty in the administrative field, that is, the loss of the goods, aim of the commercial trade and application of monetary punishment, it is possible to conclude that there is an illicit penal in import and export trades. Nevertheless, the absence of a technical criterion to identify these faults is evident, aiming unconsidered police investigations, normally followed by heavy constrictive measures that fall upon the freedom and personal estate of the investigated people and upon their companies with evident negative reflections in social environment, specially in the field of juridical security. The results are penal actions with disconnected imputations of the facts, threatening fundamental rights and guarantees, in special those inherent to the free action of labor, position and occupation. Considering the relevance of foreign trade for the economy of a country and, therefore, the necessity to assure the regular development of the companies that deal in this area visibly threatened by criminal procedures of doubtful competence, it is strictly necessary to study the subject in order to understand it correctly, to identify and to eliminate the improprieties of penal nature verified in this field.

Keywords: Custom law. Free initiative. Constitutional warranties. Economic penal law. Juridical security

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................09

1.1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA PROPOSTO ................................................................09

1.2 NECESSÁRIA INCURSÃO PRÉVIA SOBRE A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL. OS FINS DO ESTADO BRASILEIRO E AS ATIVIDADES DE COMÉRCIO EXTERIOR ........................................................................................................14

1.3 JUSTIFICATIVA DA ABORDAGEM INICIAL DE NATUREZA EXTRAPENAL. PLANO DE ANÁLISE ............................................................................................................20

2 ASPECTOS ADUANEIROS ESPECIALMENTE RELEVANTES NO Â MBITO JURÍDICO-PENAL ...............................................................................................................22

2.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS..........................................................................22

2.2 ANOTAÇÕES SOBRE A EXISTÊNCIA, CONCEITUAÇÃO E EFETIVA AUTONOMIA DO DIREITO ADUANEIRO.........................................................................24

2.3 DIREITO ADUANEIRO E DIREITO TRIBUTÁRIO. UMA DIFERENCIAÇÃO NECESSÁRIA .........................................................................................................................28

2.4 AS MODALIDADES DE IMPORTAÇÃO DE MERCADORIAS ..................................30

2.4.1 Importação direta ou por conta própria .....................................................................32

2.4.2 Importação por conta e ordem de terceiro e por encomenda....................................36

2.5 A FIGURA DA INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA DE TERCEIROS NAS OPERAÇÕES DE COMÉRCIO EXTERIOR (OCULTAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO OU DO EFETIVO ADQUIRENTE DAS MERCADORIAS IMPORTADAS) ............................42

3 NOTAS SOBRE A TRIBUTAÇÃO NO COMÉRCIO EXTERIOR.... ..........................48

3.1 GENERALIDADES...........................................................................................................48

3.2 APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A VALORAÇÃO ADUANEIRA – A BASE DE CÁLCULO DOS IMPOSTOS ADUANEIROS ......................................................................51

3.3 ASPECTOS RELEVANTES DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS INCIDENTES NO COMÉRCIO EXTERIOR ........................................................................................................57

3.3.1 Imposto de importação (II)...........................................................................................58

3.3.2 Imposto de exportação (IE) ..........................................................................................61

3.3.3 Imposto sobre produtos industrializados (IPI)...........................................................64

3.3.4 Imposto sobre operações de câmbio (IOC – espécie do IOF) ....................................65

3.3.5 Outros tributos incidentes sobre o comércio exterior ................................................67

4 OS DELITOS NAS ATIVIDADES DE COMÉRCIO EXTERIOR ... ............................71

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4.1 DELIMITAÇÃO DA ATIVIDADE DELITIVA NO ÂMBITO DO COMÉRCIO EXTERIOR ..............................................................................................................................71

4.2 A RESPONSABILIDADE DE NATUREZA CRIMINAL DECORRENTE DAS IRREGULARIDADES VERIFICADAS NAS OPERAÇÕES DE IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE MERCADORIAS...................................................................................77

4.3 OS MODELOS DE FATO PUNÍVEL. NOSSA OPÇÃO .................................................85

4.4 TIPOS PENAIS INERENTES À ATIVIDADE DO COMÉRCIO EXTERIOR. O CONTRABANDO E O DESCAMINHO ................................................................................90

4.4.1 Aspectos gerais sobre as duas figuras típicas..............................................................90

4.4.2 Particularidades político-criminais sobre o princípio da insignificância e o delito de descaminho. Uma análise jurisprudencial ...........................................................................99

4.4.3 A irrelevância penal do fato........................................................................................107

4.4.4 A questão das cotas de isenção ...................................................................................111

4.4.5 Breves considerações sobre as figuras equiparadas ao contrabando e ao descaminho............................................................................................................................115

4.4.6 Facilitação ao contrabando e ao descaminho............................................................118

4.5 PONDERAÇÕES CRÍTICAS A RESPEITO DE OUTRAS FIGURAS TÍPICAS RELEVANTES. .....................................................................................................................121

4.5.1 Os crimes contra o sistema financeiro nacional........................................................121

4.5.1.1 Disposições preliminares a respeito do sistema financeiro nacional e o mercado cambial ...................................................................................................................................121

4.5.1.2 A Lei 7.491/86. Aspectos gerais.................................................................................124

4.5.1.3 O crime de falsa identidade para a realização de operação de câmbio (artigo 21 e parágrafo único, da Lei 7.492/86) ..........................................................................................127

4.5.1.4 O crime de evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86) .............133

4.5.2 Delitos contra a ordem tributária relacionados com as atividades de importação e exportação .............................................................................................................................141

4.5.2.1 Direito tributário penal e direito penal tributário........................................................141

4.5.2.2 A Lei 8.137/90 e o comércio exterior.........................................................................143

4.5.3 Anotações acerca da lavagem de dinheiro e as operações de comércio internacional................................................................................................................................................150

4.5.3.1 Considerações de ordem geral....................................................................................150

4.5.3.2 A Lei 9.613/98 e o comércio exterior.........................................................................157

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................169

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................174

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1 INTRODUÇÃO

1.1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA PROPOSTO

A presente investigação tem por objeto imediato, inevitavelmente permeado por temas

jurídicos correlatos, o emprego da norma penal como instrumento de combate às

irregularidades verificadas nas operações de importação e exportação de mercadorias, com

ênfase, em razão da amplitude do tema, em algumas figuras típicas especialmente

selecionadas.

O comércio exterior tem chamado a atenção desde muito tempo, mas, muito

especialmente, a partir do século XVI, com o início das grandes navegações1. Entretanto, o

fenômeno da globalização, sobretudo após a consolidação do paradigma da modernidade até o

presente momento (de transição, denominado pós-modernidade, e que está intrinsecamente

atrelado ao desenvolvimento do modo capitalista de produção),2 estreitou as fronteiras entre

os Estados Nacionais e possibilitou importante incremento das negociações comerciais

desenvolvidas nesta área. Nas palavras de Luiz Antônio BONAT (2004, p. 341):

(...) este fenômeno da globalização faz com que os Estados e as pessoas, inseridos em um contexto maior, global, relacionem-se de forma constante e ativa. Transações bancárias são realizadas da própria casa ou empresa, por computadores. Quebram-se as barreiras da distância e tempo, hoje inexistentes.

Por outro lado, tem sido possível, também por conta da intensa cobertura exercida

pelos veículos de comunicação, acompanhar o considerável crescimento da atividade

1 De acordo com a observação de Sosa (2000, p. 33), existem indicativos da presença de dispositivos legais relacionados ao comércio exterior desde o Código de Hamurábi, mas é somente com “Espanha e Portugal e suas colônias da América, com a França expansionista de Bonaparte, com a Inglaterra em cujo território o ‘sol nunca se põe’, e outros países europeus a início da Idade Moderna que se pode falar de comércio exterior, como técnica, ciência ou arte.”. 2 Ilustrando o período de transição mencionada, Santos (2006, p. 76) observa que “o paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes deste último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um processo de superação e em parte um processo de obsolescência. É superação na medida em que a modernidade cumpriu algumas de suas promessas e, de resto, cumpriu-as em excesso. É obsolescência na medida em que a modernidade está irremediavelmente incapacitada de cumprir outras das suas promessas. Tanto o excesso no cumprimento de algumas das promessas como o défice no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta superficialmente como de vazio ou de crise, mas que é, a nível mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transações são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade. Mas, à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação.”.

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desenvolvida, nos últimos anos, pela Polícia, pelo Ministério Público e pelos órgãos de

fiscalização aduaneira no combate às irregularidades verificadas na importação e na

exportação de mercadorias.

Paralelamente às sanções existentes na própria área administrativa, como o perdimento

da mercadoria objeto da operação comercial e a aplicação de pena pecuniária, bem assim as

sanções de ordem política, que podem culminar, inclusive, com o cancelamento do Cadastro

Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e com a declaração de inaptidão das empresas

envolvidas, a investigação conjunta das instituições públicas referidas no parágrafo anterior

freqüentemente conclui pela existência de um ilícito de natureza penal.

No entanto, a experiência prática tem revelado a ausência de critério técnico para a

identificação e correta adequação típica desses delitos, acarretando investigações policiais

precipitadas, acompanhadas, no mais das vezes, de pesadas medidas constritivas incidentes

sobre a liberdade e o patrimônio dos investigados e de suas empresas. Daí decorrem,

conseqüentemente, ações penais com imputações dissociadas dos fatos, ameaçando direitos e

garantias fundamentais do cidadão, máxime no tocante ao devido processo legal e seus

corolários.

Esta divergência na subsunção do fato à norma penal – com as graves conseqüências

acima destacadas – se dá por vários fatores. Desde já, contudo, pode-se afirmar que o

problema está relacionado com a necessária interpretação de uma legislação extremamente

difusa e complexa, fato que, aliás, não passou despercebido por Folloni (2005, p. 14) quando

asseverou: “A legislação aduaneira é de uma complexidade impressionante. Dominar seus

conceitos e conhecer seus diversos procedimentos que institui é tarefa hercúlea”.

Em uma inicial análise comparativa, restringindo o campo de exame à realidade do

Mercosul, percebe-se que o problema se repete no Direito Aduaneiro argentino, embora já

exista, no país vizinho, um Código Aduaneiro que reúna inclusive disposições de natureza

penal sobre a matéria.3 Aliás, Trevisan (2008, p. 5) também lança a observação de que o

Brasil é “um dos poucos países (e o único Estado-Parte do Mercosul) que ainda não possui

um Código Aduaneiro”, o que impede uma visão mais ampla e sistematizada dos problemas

atuais inerentes a este campo de estudo.

Portanto, medida certamente salutar na tentativa de solucionar as impropriedades

advindas da profusa legislação aduaneira pátria, que reflete em problemas relativos à

aplicação das normas penais no âmbito do comércio externo, seria o advento de um Código

3 A propósito, Tosi (2002, p. 11) analisa as “normas penales previstas tanto en el Código Aduanero (Ley 22.415), como asimismo, em la profusa legislación complementaria existe...”.

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Aduaneiro, de maneira a reunir as disposições pertinentes em um só Diploma Legal. Nesse

sentido, destaca-se a recentíssima lição do mestre Figueiredo Dias (2008, p. 11), para quem:

“Novos Códigos em matéria penal continuam a ser indispensáveis, não me parecendo que

deva ceder-se ao movimento, hoje muito propagandeado, da descodificação.” Isso porque, é

da interpretação desta legislação de complexidade ímpar e até o presente momento

absolutamente dispersa no ordenamento jurídico brasileiro, que deverão ser extraídos os

elementos necessários a identificar a existência de um possível injusto penal no campo das

atividades inerentes ao comércio exterior, explicando, em grande parte, a confusão

generalizada em torno da questão.

Atualmente, procura fazer as vezes de um Código Aduaneiro, no ordenamento jurídico

pátrio, o recente Decreto 6.759, de 05 de fevereiro de 2009, que revogou o Decreto 4.543, de

23 de dezembro de 2002, este editado com o objetivo de substituir o antigo Decreto 91.030,

de 05 de março de 1985, que visava condensar a legislação aduaneira vigente e, muito

especialmente, regulamentar – no que concerne à matéria procedimental4 – o primeiro e mais

importante Diploma legal surgido acerca da matéria, o Decreto-Lei 37, de 18 de novembro de

1966.5 Esse instrumento normativo (o Decreto-Lei 37/66), conforme observa Folloni (2005, p.

75), surgiu sob a égide da Constituição de 1946 e do Ato Institucional n.º 2, de 27 de outubro

de 19656, como manifestação do poder conferido ao chefe do Executivo para “decretar o

recesso dos Poderes Legislativos da União, dos Estados e dos Municípios e, sendo esse o

caso, legislar mediante decretos-leis”. Em que pese ter vindo a lume sob condições políticas

hoje inimagináveis, o Decreto-Lei 37/66 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988,

estando em plena vigência7, com força de Lei Ordinária.

Assim, o Decreto-Lei 37/66 e o denominado Regulamento Aduaneiro atualmente

vigente (Decreto 6.759/2009)8 são os instrumentos normativos mais importantes às questões

aduaneiras, tendo, este último, a incumbência de regulamentar o primeiro (Decreto-Lei que

4 Na exata medida da tarefa exclusiva dos regulamentos admitidos pela ordem jurídica brasileira, refratária aos regulamentos autônomos. 5 Para Werneck (2001, p. 53): “O Regulamento Aduaneiro foi elaborado com o objetivo de sistematizar as leis sobre a matéria, como podemos ver na remissão às suas fontes, artigo por artigo, eventualmente até em seus parágrafos e incisos”. 6 O artigo 31, do Ato Institucional n.º 2 de 1965, assim estabelecia: “Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente, fica autorizado a legislar mediante decretos-lei em todas as matérias previstas na Constituição e na Lei Orgânica”. 7 Tanto quanto é possível, considerando a sobreposição legislativa própria do Direito brasileiro, potencializada sensivelmente em matéria de Direito aduaneiro. 8 Oportuno sublinhar, com Folloni (2004, p. 79), que “ainda que não se autodenomine ‘regulamento aduaneiro’ como fazia o Decreto anterior no seu art. 1.º, trata da mesma matéria do anterior e expressamente o revoga; por esta razão, vem sendo denominado o novo Regulamento Aduaneiro”. A passagem se refere ao Decreto 4.543/2002, mas em tudo e por tudo se aplica ao novo Decreto 6.759/2009, atualmente vigente.

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possui a qualidade de Lei Ordinária) e de, tanto quanto possível, condensar as demais leis

constantemente editadas para normatizar a matéria. Sem embargo, as freqüentes elaborações,

pela Secretaria da Receita Federal, dos mais variados instrumentos infralegais destinados a

regulamentar as atividades de comércio exterior (Portarias, Circulares, Instruções Normativas

e similares), bem assim a ausência de disposições gerais de natureza penal no Decreto-Lei

37/66, ainda que meramente orientadoras da atividade dos agentes responsáveis pela

formulação das representações ao Ministério Público nos casos de irregularidades verificadas,

não permitem afirmar, com a segurança necessária, que o Decreto-Lei em referência possa ser

considerado um autêntico Código aduaneiro. Ademais, e, de fato, o que parece ser mais

decisivo em desfavor da caracterização do Decreto-Lei 37/66 e de seu respectivo

Regulamento como verdadeiros Códigos Aduaneiros, Trevisan (2008, p. 30) assevera, com

acerto, “que o nome Código Aduaneiro não prosperou, de certa forma, porque se pregava (e

ainda se prega, embora em menor proporção) a redução do universo aduaneiro à temática

tributária.” Essa confusão entre o Direito tributário e o Direito aduaneiro – que urge ser

desfeita – será mais bem analisada em capítulo apropriado deste estudo (vide item 4, do

Capítulo II).

De qualquer forma, mesmo reconhecendo que o advento do Decreto 4.543/2002

(substituído pelo atual Decreto 6.759/2009) representou, de fato, “um avanço na

sistematização da legislação pertinente”, como quer Costa (2004, p. 35), não se tem um

Código aduaneiro propriamente dito9, permanecendo atual a afirmativa de que a confusão e a

fugacidade da legislação sobre a matéria prejudica, sobremaneira, a sua adequada

compreensão, com reflexos diretos na correta aplicação da norma penal no âmbito do

comércio exterior.

De outro canto, a escassez de estudos doutrinários dedicados a investigar

juridicamente as questões relativas aos procedimentos aduaneiros, e especificamente o

problema penal no âmbito do comércio exterior, em contraposição à intensa atividade prática

verificada atualmente nesta mesma área – seja no tocante à própria atividade regular de

importação e exportação, seja no que respeita à atuação dos órgãos controladores por meio

dos procedimentos respectivos (Polícia Federal, Ministério Público Federal e Receita Federal) 9 Ainda a este propósito, para Trevisan (2008, p. 31-32): “O movimento de efetiva codificação da legislação aduaneira na América do Sul ganhou força somente na década de 1980. Nesse cenário, a Argentina foi a pioneira,, com seu Código Aduaneiro de 1981. O Uruguai e o Paraguai publicaram seus códigos em 1984 e 1985, respectivamente. No Brasil, não se viabilizou a elaboração de um código, mas tão somente uma regulamentação consolidada da Lei Aduaneira e dos demais dispositivos legais que versavam sobre matéria aduaneira.” Trevisan também lembra a tentativa de elaboração, por um grupo de juristas Ad Hoc de todos os Estados-Parte, de um Código Aduaneiro para o MERCOSUL. Os acordos para a sua implementação, entretanto, não evoluíram.

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– recomenda maiores reflexões a respeito. Essa constatação é espelhada na oportuna

observação de Vladimir Passos de Freitas, em trecho de menção que entendemos obrigatória,

notadamente, pela talvez involuntária – talvez não – ligação que estabelece entre os trabalhos

desenvolvidos na academia e os reflexos práticos que aqueles invariavelmente ensejam; uma

ligação que, apoiada na abalizada opinião de José Roberto Vieira10, defendemos abertamente,

não obstante a resistência oferecida por aqueles que insistem em afirmar a absoluta

independência das pesquisas acadêmicas relativamente à atividade prática respectiva,

sugerindo, inclusive, uma total e definitiva separação entre elas. Demonstrando o completo

equívoco desse pensamento, com propriedade vaticinou Passos de Freitas (2004, p. 5) por

ocasião da apresentação de obra jurídica específica sobre questões de Direito aduaneiro:

No ano de 1985, estava eu no meu gabinete, na 5.ª Vara Federal de Curitiba, quando recebi a visita de um dos mais ilustres e conceituados advogados paranaenses. Amigos fraternais que éramos, com a franqueza e humildade dos grandes, confessou-me ele que necessitava entrar com uma ação envolvendo bens importados apreendidos e não tinha a menor idéia de como peticionar. Nesse dia dei-me conta das dificuldades que todos os profissionais do Direito, juízes inclusos, tinham para tratar as questões de Direito Aduaneiro. Legislação esparsa, centenas de atos administrativos de grande relevância prática, jurisprudência hesitante e doutrina quase que inexistente. Passam os anos. Sigo na carreira. Chego ao Tribunal Regional Federal da 4.ª Região em 1990. Passo por diversas turmas com matérias diversificadas. Passa rapidamente a década de noventa, atravessa-se o milênio e os primeiros anos do século XXI transcorrem em velocidade proporcional ao dinamismo da vida dos habitantes dos grandes centros. Mas na área do Direito Aduaneiro as dificuldades permanecem as mesmas. Enormes.

Não se pode olvidar, igualmente, da relevância econômica do comércio exterior para o

país11 e, por conseguinte, da necessidade de assegurar o regular desenvolvimento das

atividades das empresas que operam no setor, sensivelmente ameaçadas por procedimentos

criminais de regularidade discutível, circunstância que também exige maior atenção da

comunidade jurídica especializada.

10 “Todo conhecimento que seja apenas teórico é parcial e insuficiente, do mesmo modo que todo conhecimento tão-somente prático é igualmente imparcial e insuficiente.” (VIEIRA, 1998, p. 535). 11 Apesar da crise econômica que atingiu o mundo a partir do mês de outubro do ano passado, informações colhidas junto ao website do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior dão conta de que no ano de 2008, as exportações somaram US$ 197,942 bilhões, valor recorde histórico para o período. Sobre 2007, as exportações cresceram 21,8%, pela média diária, e 23,2%, em valor. As importações somaram US$ 173,207 bilhões, aumento de 41,9%, pela média diária, sobre o mesmo período anterior, constituindo-se igualmente cifra recorde. O superávit comercial encerrou o ano com US$ 24,735 bilhões, valor 38,2% abaixo do registrado em equivalente período anterior (US$ 40,032 bilhões). A corrente de comércio alcançou recorde de US$ 371,149 bilhões, representando um aumento de 32,0%, em valor, sobre o mesmo período anterior, quando a corrente totalizou US$ 281,266 bilhões. Disponível em <http://www.mdic.gov.br/portalmdic/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=567>, acesso em 06/01/2009, 15h.13min.

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14

Em suma, portanto, o estudo que se segue pretenderá examinar, tanto mais

contemporaneamente possível e sob o enfoque jurídico ausente em outros trabalhos, alguns

aspectos relacionados à atividade aduaneira e fiscal, mas, principalmente, a aplicação da

norma penal no âmbito das operações de importação e de exportação.

1.2 NECESSÁRIA INCURSÃO PRÉVIA SOBRE A ORDEM ECONÔMICA

CONSTITUCIONAL. OS FINS DO ESTADO BRASILEIRO E AS ATIVIDADES DE

COMÉRCIO EXTERIOR

Em caráter preliminar, parece imprescindível traçar algumas considerações acerca do

panorama constitucional em que estão inseridas as atividades de importação e exportação de

mercadorias, notadamente porque as conclusões extraídas deste exame servirão para orientar

de que maneira, e em que medida, deve-se enfrentar o problema da norma penal no âmbito do

comércio exterior.

À partida, importa salientar que de acordo com o artigo 1.º, inciso IV, da Constituição

Federal, o Brasil é uma República Federativa composta pela união indissolúvel dos Estados,

Municípios e do Distrito Federal, organizada na forma de um Estado Democrático de Direito

que tem como fundamentos, dentre outros, “os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa.”

A livre iniciativa privada, em conformidade com o que dispõe o artigo 170, da Carta

Magna12, também é fundamento da ordem econômica e financeira constitucional. Por

imprescindível, sobreleva ressaltar que o parágrafo único desse dispositivo (artigo 170,

CF/88) acrescenta, expressamente, que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer

atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos

previstos em lei.”

Não se pode olvidar, igualmente, do que vem disposto no artigo 5.º, inciso XIII, da

Carta Constitucional de 1988, no sentido de que “é livre o exercício de qualquer trabalho,

ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Tal

dispositivo, dessa forma, reafirma a livre iniciativa como direito individual do cidadão, ou nas

12 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...).

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15

palavras de Silva (2001, p. 256), a liberdade de exercício de ofício e de profissão, pois confere

ao cidadão a opção de “exercer o que fora escolhido, no sentido apenas que o Poder Público

não pode constranger a escolher e a exercer outro”. Com efeito, a livre iniciativa, no dizer de

Eros Grau (2008, p.202), “expressa desdobramento da liberdade”.

Na literatura comparada o panorama não é diverso. Canotilho e Vital Moreira (2007,

p. 789) observam que a Constituição portuguesa13 assegura à iniciativa econômica privada o

status de direito fundamental, de maneira que “as limitações ou restrições terão de ser

justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e sempre com respeito de um ‘núcleo

essencial’ que a lei não pode aniquilar”.

De fato, o reconhecimento constitucional da liberdade de ofício e de profissão como

direito fundamental do cidadão14 não o torna absoluto. O seu exercício possui dupla limitação.

Em um primeiro momento, está condicionado pela parte final da própria disposição

constitucional já examinada (5.º, inciso XIII CF/88), isto é, pelo atendimento das

qualificações profissionais estabelecidas pela lei infraconstitucional, quando for o caso. Aqui,

se faz mister observar, com Gilmar Mendes (2007, p. 38), “que as restrições legais à liberdade

de exercício profissional somente podem ser levadas a efeito no tocante às qualificações

profissionais”. Em segundo lugar, como ocorre com qualquer direito individual fundamental,

o livre exercício de trabalho, ofício ou profissão estará condicionado por interesses de

natureza coletiva, em determinadas hipóteses.

Entretanto – e aqui reside o ponto nodal da questão – o Poder Público só deve limitar o

direito individual de livre escolha de ofício e profissão, seja por intermédio de leis

infraconstitucionais destinadas a regulamentar o seu exercício, seja em virtude da necessidade

concreta de prestigiar elevados interesses coletivos, até o ponto em que, com este

procedimento, não inviabilize a opção por determinado ofício ou profissão, obrigando o

cidadão a escolher outra atividade qualquer. Se assim o fizer, utilizando-se abusiva ou

indevidamente o seu poder, estará ferindo a Constituição da República, pois não se pode

olvidar dos objetivos da política econômica e social do Estado, os quais são realizáveis, em

grande parte, por meio do comércio exterior.

Neste particular, Silva (2002, p. 268) é categórico:

13 Art. 61.°, 1, da Constituição da República Portuguesa: “A iniciativa econômica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”. 14 O dispositivo encontra-se no Título II (dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) da CF/88.

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16

Tudo isso constitui modos de restrições das liberdades, que, no entanto, esbarram no princípio de que é a liberdade, o direito, que deve prevalecer, não podendo ser extirpado por via da atuação do Poder Legislativo nem do poder de polícia. Este é, sem dúvida, um sistema importante de limitação de direitos individuais, mas só tem cabimento na extensão requerida pelo bem-estar social. Fora daí é arbítrio.

Aliás, para Sosa (2000, p. 33), a expressão mesma “comércio exterior” sinaliza:

(...) a atividade do Estado com relação ao seu comércio externo, aí incluídos a política de comércio a ser empregada visando os fins nacionais, sejam eles econômicos, sociais etc. Nesse campo, o Estado ainda é autor majoritário, sobretudo com ente regulador e controlador do comércio praticado pela sua cidadania. Nesse ponto é que surge o particular como agente da troca internacional, da compra e venda, isto é, da importação e da exportação nacionais.

Mais adiante, Sosa (2000, p. 33) acertadamente observa que o poder regulador do

Estado no controle das atividades desempenhadas pelos agentes envolvidos no comércio

exterior é amplo e extremo, surgindo a partir da Constituição Federal e irradiando-se por meio

da legislação ordinária, mas não é, em absoluto, imotivado. Ele está “inserido no contexto dos

objetivos permanentes do Estado na promoção do progresso sócio-econômico-cultural da

nação.”

Nesse contexto, o artigo 174 da Constituição Federal estabelece que “como agente

normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções

de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e

indicativo para o setor privado”. Claro está, portanto, que a fiscalização e o incentivo andam

juntos e, evidentemente, o primeiro não pode obstar o segundo, sob pena de imperdoável

incoerência do postulado constitucional. A corroborar tal constatação, Filho (1994, p. 314)

observa: “é inequívoco que o artigo 173 dá à iniciativa privada a primazia no plano da

atividade econômica”.

A extrema relevância econômica das atividades desempenhadas pelas empresas que se

dedicam ao comércio exterior, já revelada nas espetaculares cifras geradas pelo volume de

importação e exportação de mercadorias às quais se fez referência no item imediatamente

anterior, possui um reflexo social facilmente detectável, pois, consoante pondera Folloni

(2005, p. 13):

Muitas empresas brasileiras têm fontes de renda consideráveis (quando não as maiores, ou mesmo as únicas) advindas do comércio exterior. Assim, por conseqüência, milhões de brasileiros tiram o seu sustento da atividade de comércio exterior, seja diretamente como donos de empresas que exercem tais atividades, seja indiretamente como funcionários dessas empresas, ou ainda como funcionários dos funcionários das empresas.

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17

A advertência encontra ressonância na precisa lição de Eros Grau (2008, p. 200), para

quem “a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do

Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso”.

Essa é uma constatação que não pode ser ignorada e, ademais, deve pautar a atividade

do Estado no campo do comércio internacional, seja no tocante à edição de normas

regulamentadoras das atividades desempenhadas neste meio, seja por ocasião da aplicação

destas normas pelos agentes fiscais e aduaneiros designados para acompanhar situações

concretas nas quais a sua intervenção se faça necessária.

Sosa (1999, p. 26-27) observa, ainda, que o Sistema Aduaneiro não é fechado ou

orientado exclusivamente, de maneira estanque, na direção de um objetivo fixo. Ele “obedece

a uma espécie de sístole/diástole cujo grau de intensidade é determinado pela política

econômica externa do Estado” e, portanto, “ser ou não protecionista ou arrecadatório, ou

qualquer outro tipo de adjetivação que se pretenda, é um efeito destes movimentos de

regulação, e não mais que isso.” 15

Em consonância com tal orientação, a doutrina especializada tem sustentado a

necessidade de uma revisão no papel desempenhado pelos poderes de polícia da

Administração, os quais em que pese necessários para o controle e a repressão de desvios

verificados em qualquer área de atuação humana e em especial da atividade privada, devem

ser empregados apenas na medida exigida pelo caso específico em discussão e com

observância irrestrita aos princípios maiores ditados pela Constituição.16

Por óbvio, não se desconhece que o intervencionismo estatal restritivo no âmbito

aduaneiro é necessário, notadamente, dentre outros motivos, para a proteção da indústria

nacional, do pleno emprego, da estabilidade da economia interna e do próprio propósito

arrecadatório. Todavia, esse intervencionismo não pode olvidar a outra face da moeda, qual

seja a política de incentivo às atividades de comércio exterior, sob pena de eliminar ou

prejudicar a iniciativa das empresas que se dedicam a operar neste setor e, por conseguinte,

em um plano coletivo, os interesses econômicos e sociais do Estado brasileiro, previstos, em

larga escala, na Constituição da República.

15 Consoante nota do citado autor, o denominado Sistema Aduaneiro é composto por quatro elementos, a saber: a organização aduaneira, entendida como a estrutura orgânica incumbida do exercício das funções a ela atribuídas; as políticas aduaneiras, que estabelecem as metas e os objetivos da sua atuação; as técnicas aduaneiras, relativas ao modo de execução das tarefas; e finalmente a lei aduaneira, destinada a reunir e organizar os demais elementos. 16 Vide, a propósito, TÔRRES, 2008, p. 197-244, especialmente p. 198.

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18

Invocando, novamente, a experiência comparada, constata-se que se firmou, na

Alemanha, o entendimento a favor na neutralidade político-econômica da Grundgesetz (a

Constituição alemã), o que permite ao legislador infraconstitucional desenvolver a política

econômica que pareça mais adequada, mas sem descuidar, por óbvio, do exigido respeito às

liberdades asseguradas no texto da Lei Fundamental.

Realmente, em sede de controle concreto de constitucionalidade de ato normativo, o

Tribunal Constitucional Federal Alemão, examinando questão relativa à determinação legal

que ampliou a participação de trabalhadores na administração de determinados tipos de

sociedade, assim posicionou-se:

O reconhecimento indelével que ora surge tem um significado essencial para a questão da constitucionalidade de leis que configuram a ordem econômica: sob o ponto de vista dos direitos fundamentais, um tal significado é a defesa da liberdade do indivíduo, a qual o legislador também, junto à determinação da ordem econômica, deve respeitar. A questão da constitucionalidade não pressupõe uma ‘coesão institucional da Constituição econômica’, que se fundamenta por meio de objetivações tornadas autônomas, que vão além do conteúdo de direito subjetivo dos direitos fundamentais. Também não pressupõe algo mais além do que garantem seus elementos constitucionais da ‘coesão da ordem e proteção dos direitos fundamentais’. Corresponde a este reconhecimento a expressão do Tribunal Constitucional Federal quando afirma que a Grundgesetz é neutra do ponto de vista político-econômico: o legislador pode perseguir qualquer política econômica que lhe pareça apropriada, conquanto que ele respeite a Grundgesetz, sobretudo os direitos fundamentais (BVerfGE 4,7 (17 s.) – Investitionshilfegesetz). A ele é dada, portanto, uma ampla margem de configuração (poder discricionário legislativo) (cf. BVerfGE 7, 377 (400) – Apotheken; 25, 1 (19 s.) – Mühlengesetz; 30, 292 (317, 319) – Erdölbevorratung). O elemento de relativa abertura da ordem constitucional que ora aflora é importante, a fim de que, por um lado, se atente para a transformação histórica que caracteriza, em grande medida, a vida econômica e, por outro, não se coloque em risco a força normativa da Constituição. Todavia, a observância da margem de configuração do legislador não pode levar a uma redução das liberdades individuais que são garantidas nos direitos fundamentais individuais, sem as quais uma vida com dignidade humana não é possível, segundo a concepção da Grundgesetz. A tarefa (do controle de constitucionalidade) consiste, portanto, em unir a liberdade fundamental própria da configuração político-econômica e político-social, que deve permanecer reservada ao legislador, com a proteção da liberdade, à qual o indivíduo tem direito justamente também em face do legislador (BVerfGE 7, 377 (400)).’17

Relembrando, ainda a este propósito, a necessidade de reverência às liberdades

constitucionais no âmbito econômico – a despeito da reconhecida inexistência, na

Constituição alemã, de um prévio modelo econômico a ser seguido pelo legislador – Papier

(2001, p. 563) vaticina:

17 Decisão do Primeiro Senado de 01/03/1979 prolatada na audiência de 28, 29 e 30 de novembro e 1.° de dezembro de 1978 – 1 BvR 532, 533/77, 419/78 e BvL 21/78. In Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer, p. 158-159.

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19

(...) la indiscutible constatación de que la Ley Fundamental no contiene una decisión fundamental explícita en favor de un determinado modelo de coordinación económica, y que se ha omitido una obligación expresa de institucionalizar una determinada constitución económica, no debe distraer la atención de la tarea de garantizar la efectividad de las libertades individuales también en los processos económicos.

De tudo o que se disse e voltando os olhos, uma vez mais, à realidade nacional, extrai-

se a conclusão, com Eros Grau (2008, p. 190), no sentido de que a Constituição Federal de

1988:

(...) só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado, quer do embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário dos lucros – mas sua posição corresponde à do neoliberalismo ou social-liberalismo, com a defesa da livre iniciativa.

Portanto, a conclusão sobre a excepcionalidade da atuação estatal na atividade

econômica permeará todo o estudo a seguir desenvolvido, servindo de diretriz, inclusive, e

principalmente, para a análise da norma penal como instrumento de combate às

irregularidades verificadas no comércio exterior, campo em que a subsidiariedade do Direito

penal deve reluzir a toda evidência.

Finalmente, cumpre destacar que – conforme oportuno e mais detalhado

esclarecimento (vide item 4.3, do Capítulo 4 deste estudo) – adotaremos, no desenvolvimento

das matérias essenciais de Direito penal, o modelo finalista do fato punível, permeado,

todavia, por considerações de política criminal, de modo a permitir uma maior aproximação

da doutrina funcionalista (ou teleológico-racional). Desse modo, possibilita-se que,

eventualmente, se possam introduzir valorações político-criminais reitoras nas categorias do

delito (ROXIN, 2002, p. 251-252), como forma de resolver problemas concretos de aplicação

da lei penal.

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1.3 JUSTIFICATIVA DA ABORDAGEM INICIAL DE NATUREZA EXTRAPENAL.

PLANO DE ANÁLISE

Ainda a guisa de introdução e a fim de sedimentar as bases do presente estudo – cujo

objetivo principal é analisar os problemas relativos à aplicação da norma penal no âmbito do

comércio exterior – mostra-se imprescindível examinar, sem qualquer pretensão de esgotar a

matéria, alguns dos mais importantes aspectos relacionados especialmente ao Direito

aduaneiro, mas, também, aos tributos incidentes nas atividades de comércio exterior. Essa

digressão se faz necessária, porquanto, conforme já referido no capítulo antecedente, é

justamente da interpretação dos institutos jurídicos e dos regramentos administrativos que

disciplinam as atividades inerentes ao comércio exterior que deverão ser extraídos os

elementos aptos a identificar adequadamente, em cada caso concreto e ao lado de infrações de

natureza administrativa, um injusto penal e, conseqüentemente, a validade do recurso ao

Direito penal como instrumento de combate aos desvios perpetrados18.

Por outro lado, tendo em vista a dispersão, a confusão e a fugacidade da legislação e

dos regulamentos aduaneiros19, é de fundamental importância, para o alcance do objetivo

proposto, compilar e fazer referência suficiente, ao menos, àquelas normas e conceitos

administrativos que possam estar relacionados, mais de perto, a condutas que porventura

possam revelar a prática de um ilícito penal.

Não será possível, sob pena de imperdoável distanciamento e desvirtuamento do foco

deste trabalho20, adentrar de modo profundo e pormenorizado aos institutos administrativos

(mais especialmente aduaneiros), tributários, de Direito internacional ou comunitário

(MERCOSUL) e demais disciplinas pertinentes ao tema central do estudo a ser desenvolvido.

Não será igualmente possível, por motivos idênticos, abarcar todos os institutos extrapenais

que guardam intimidade com o comércio exterior. Ademais, tal abordagem, demasiado ampla,

afigura-se desnecessária para o desenvolvimento e alcance do desiderato da pesquisa.

18 Vale, aqui, a advertência do Ministro Eros Grau (2008, p. 172), no sentido de que “o ensaio constitui um todo, de tal modo resultando integradas entre si as suas partes (ou seus capítulos) que a conclusão ao final enunciada não encontraria estáveis pilares de sustentação, equilibrada, se qualquer delas viesse a ser amputada ou seccionada”. 19 Circunstância que, como bem anota Costa (2004, p. 17), é decisiva para a escassez de estudos jurídicos acerca do tema. 20 A propósito dos trabalhos tais como o presente, serve-se da lição de Umberto Eco (1977, p. 35), para quem “... quanto mais se restringe o campo melhor se trabalha e com mais segurança. Uma tese monográfica é preferível a uma tese panorâmica. É melhor que a tese se assemelhe mais a um ensaio do que a uma história ou a uma enciclopédia”.

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21

O que importa, na medida do possível, é limitar o objeto da análise àqueles postulados

extrapenais relacionados às atividades de importação e exportação de mercadorias que, de

alguma maneira, por conta da observação da realidade, reflitam de forma mais relevante,

direta ou indiretamente, na correta tipificação criminal de condutas praticadas neste campo.

Feitas essas considerações iniciais, antes de nos debruçarmos definitivamente no tema

específico da norma penal no âmbito do comércio exterior, trataremos, nos capítulos

seguintes, de alguns aspectos vinculados ao Direito aduaneiro e ao Direito tributário que são

especialmente importantes.

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2 ASPECTOS ADUANEIROS ESPECIALMENTE RELEVANTES NO Â MBITO

JURÍDICO-PENAL

2.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

A atividade aduaneira é, na sua integralidade, suscetível a irregularidades de toda a

sorte. Tal constatação se extrai dos aspectos identificáveis em qualquer operação de comércio

exterior, os quais, segundo Werneck (2002, p. 14), podem ser divididos em quatro espécies

(negocial, logístico, cambial e fiscal) assim estabelecidas:

O aspecto negocial inclui a negociação do preço e condições de pagamento, a elaboração do contrato e a emissão da fatura comercial (invoice). (...) O aspecto logístico compreende o que deve ser feito para que a mercadoria seja entregue em boas condições ao comprador. Envolve a embalagem, o transporte interno até o local de embarque, o transporte internacional, o transporte interno do local de desembarque até o destino final, as operações de embarque e desembarque de cada um destes transportes e as armazenagens nas diversas fases. O aspecto cambial abrange a definição das moedas a serem utilizadas, as operações de câmbio envolvidas, e a transferência do dinheiro do pagamento do comprador para o vendedor. Finalmente, o aspecto fiscal envolve a emissão dos documentos necessários aos despachos de exportação e de importação, aos dois despachos, o pagamento dos impostos e taxas aplicáveis e os desembaraços aduaneiros de exportação e de importação.

Sem embargo de que é naturalmente possível detectar desvios de conduta em

quaisquer dessas fases, alguns aspectos fáticos e jurídicos relacionados às operações

realizadas no comércio exterior merecem especial atenção e tratamento apartado, por se

mostrarem particularmente importantes no que toca ao objeto de estudo aqui desenvolvido.

Isso não significa, obviamente, que os demais institutos aduaneiros devam ser

olvidados. Eles serão mencionados na medida em que os apontamentos relativos aos crimes

verificados no comércio exterior demandem tal referência, como no caso do desembaraço

aduaneiro, expediente por meio do qual a mercadoria importada se considera nacionalizada e

que, por caracterizar-se como fato gerador do imposto de importação, será analisado em

conjunto com o tópico relacionado aos impostos incidentes sobre o comércio exterior.

Assim sendo, procurar-se-á, em princípio, delinear os contornos da existência de um

efetivo Direito aduaneiro autônomo, indicando quais os seus princípios informadores e,

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ademais, os motivos pelos quais não se deve confundir – como no princípio de regra se fazia

e, ainda agora, por vezes, se faz – a disciplina do Direito aduaneiro com o Direito tributário.

Em seguida, cabe fazer expressa e particular referência às regras que disciplinam as

modalidades de importação de mercadorias no ordenamento jurídico brasileiro. Em seguida,

merece destaque o expediente da interposição fraudulenta, também identificado com

ocultação do sujeito passivo ou do efetivo vendedor ou adquirente das mercadorias que são

objeto da negociação. Por fim, faz-se necessário tecer considerações especiais a respeito do

modo de pagamento das transações comerciais realizadas em âmbito internacional.

A incursão sobre esses temas em particular se justifica por conta do exame da

realidade fática, que permite observar uma maior incidência do Direito Penal como

instrumento repressor das irregularidades verificadas nos campos citados.

Nesse sentido, como dito, demandam especial atenção – ainda que não

demasiadamente aprofundada, por conta dos limites naturais e do propósito original deste

trabalho – as modalidades de importação previstas pela legislação aduaneira, a saber: a

compra direta de mercadorias pelo importador; a importação por conta e ordem de terceiros; e

a importação por encomenda. Cada uma dessas espécies de importação coloca as partes

envolvidas em situações diversas no tocante às exigências fiscais e administrativas

(obrigações aduaneiras propriamente ditas) e, por conseguinte, refletem problemas

particulares e diferenciados quando se analisa a responsabilidade de natureza criminal

decorrente das irregularidades eventualmente verificadas no decorrer de seu procedimento.

De igual forma, e guardando estreita relação com as modalidades de importação acima

destacadas e com os demais dispositivos legais destinados a regulamentar as operações de

comércio exterior, merece destaque o que tem sido entendido como interposição fraudulenta

de terceiros (ou ainda ocultação do sujeito passivo ou do real adquirente ou vendedor das

mercadorias que são objeto da transação) durante o desenrolar de uma operação de

importação ou de exportação de mercadorias. Este expediente se destinaria a acobertar os

reais interessados na operação de comércio exterior, os quais se estivessem às vistas das

autoridades competentes seriam atingidos, por força das disposições legais aplicáveis à

espécie, pelas incidências fiscais e aduaneiras correspondentes. Por óbvio, essa conduta

também gera responsabilidade de natureza criminal, não só porque exige, para a sua

configuração, a prática de vários crimes definidos no Código Penal (como a falsidade de

documentos, o uso de documentos falsos, a falsidade ideológica, a prestação de declarações

falsas, entre outros), mas também porque, na sua origem, como se verá oportunamente,

possuem relação com o combate à lavagem de ativos decorrente da prática de crimes

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considerados antecedentes pela Lei 9.613/98 e, igualmente, em razão de que servem para a

perpetração de ilícitos de natureza fiscal.

Por derradeiro, o pagamento das operações de comércio exterior, como é cediço, é

feito por meio do fechamento de contrato de câmbio, o que sugere uma necessária incursão

sobre as principais regras que disciplinam o setor cambiário, a fim de que se possa estudar as

principais figuras delitivas contra o Sistema Financeiro Nacional ligadas ao comércio exterior.

2.2 ANOTAÇÕES SOBRE A EXISTÊNCIA, CONCEITUAÇÃO E EFETIVA

AUTONOMIA DO DIREITO ADUANEIRO

Não é dado olvidar que a complexidade da regulamentação necessária para o controle

das atividades desenvolvidas no campo do comércio exterior demanda o estabelecimento de

uma plêiade de normas – em sentido amplo, englobando tanto as leis em sentido formal

quanto os regulamentos editados no âmbito administrativo (Portarias, Circulares, Instruções

Normativas etc.) – específicas sobre a matéria, notadamente em decorrência da progressiva e

natural intensificação do tráfego de pessoas e de mercadorias. Não obstante, a questão sobre a

existência e a autonomia de um Direito aduaneiro ou alfandegário21 ainda é controvertida na

doutrina especializada.

Como reflexo direto da constatação inequívoca a respeito da existência das normas

aduaneiras referidas no parágrafo anterior e relacionadas no tópico precedente, e considerando

que, em razão de sua especificidade, algumas destas normas não se enquadram perfeitamente

em nenhum outro ramo da Ciência jurídica, Costa (2004, p. 18-19) posiciona-se a favor da

autonomia do Direito aduaneiro, não sem antes observar, com acerto e em consonância com

as anotações lançadas nos capítulos introdutórios desta pesquisa, que “uma das dificuldades

que justificam o pequeno desenvolvimento do Direito Aduaneiro, como ramo da ciência

jurídica, no Brasil, vem a ser a ausência de uma legislação sistematizada neste âmbito”.

Apesar disso, a autora conceitua o Direito aduaneiro como sendo o “conjunto de normas

jurídicas que disciplinam as relações decorrentes da atividade estatal destinada ao controle do

21 Deixar-se-á propositadamente fora de alcance da análise outras variantes específicas, como a questão sobre a existência de um Direito Portuário. Em defesa da autonomia deste ramo da Ciência Jurídica, vide: PASOLD, 2007.

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tráfego de pessoas e bens pelo território aduaneiro, bem como à fiscalização do cumprimento

das disposições pertinentes ao comércio exterior.”

No mesmo sentido, opina Carluci (2001, p. 21), para quem “sob muitos aspectos

podemos chegar à conclusão da existência de um direito aduaneiro”, identificando o comércio

internacional, na qualidade de antecedente, e a relação aduaneira conseqüente, como os dois

fatores condicionantes de um verdadeiro Direito aduaneiro, portador de regras e princípios de

notável especificidade.

Essa relação aduaneira decorrente de uma tratativa internacional precedente tem como

partes, de um lado, o Estado e, de outro, uma entidade pública ou privada; o seu objeto são as

coisas, com ou sem natureza mercantil; e a sua finalidade é o desenvolvimento de uma relação

comercial em caráter mundial, regulamentada pela política aduaneira por meio de normas que

possuem nítido caráter transnacional, uma vez que são elaboradas, em grande parte, por

organismos internacionais que visam à uniformização do tratamento a ser dispensado à

matéria. O conjunto dessas normas compõe, então, o que Carluci (2001, p. 21-24) identifica

como Direito aduaneiro formal. O fato gerador da relação aduaneira é a “ultrapassagem da

mercadoria da linha teórica que separa dois territórios aduaneiros submetidos a normas

jurídicas diferentes, mesmo que o novo território se encontre sob a mesma soberania política”,

o que ocorre nos casos de depósito da mercadoria nacional depositada em entreposto para

exportação.

Prosseguindo na defesa pela efetiva existência do Direito aduaneiro, e com apoio na

lição de Ildefonso Sánchez Gonzales, o supracitado autor (2001, p. 24) conceitua o Direito

aduaneiro como o “conjunto de normas e princípio que disciplinam juridicamente a política

aduaneira, entendida esta com a intervenção pública no intercâmbio internacional de

mercadorias e que constitui um sistema de controle e de limitações com fins públicos”. Já

para Trevisan (2008, p. 41), em definição que não esconde a opção por uma verdadeira

autonomia do Direito aduaneiro, este pode ser conceituado como o:

(...) ramo autônomo do Direito integrado por um conjunto de proposições jurídico-normativas que disciplinam as relações entre a Aduana e os intervenientes nas operações de comércio exterior, estabelecendo os direitos e as obrigações de cada um, e as restrições tarifárias e não-tarifárias nas importações e exportações.

Por seu turno, aprofundando o estudo em torno da conceituação do Direito aduaneiro e

da sua autonomia, Folloni (2005, p. 56), um dos poucos escritores não ligados estritamente à

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atividade aduaneira a enfrentar a questão22, adverte, com apoio na Teoria Geral do Direito,

para a diferenciação que se deve fazer entre a Ciência do Direito aduaneiro, identificada como

sendo os postulados necessários para explicação adequada na normativa existente em torno da

prática aduaneira, e o próprio Direito aduaneiro positivo, sendo certo que este nada mais é do

que um ramo específico do Direito administrativo, destinado a regulamentar e fiscalizar as

atividades de comércio exterior. Nesse sentido, criticando a posição da doutrina nacional no

enfrentamento do problema, pondera que é “inaceitável a confusão de planos lingüísticos

comumente verificada entre o direito positivo (plano das proposições prescritivas, linguagem

objeto) e a Ciência do Direito (plano das proposições descritivas, metalinguagem explicativa

da linguagem objeto – linguagem de sobrenível).”

E, na linha desse pensamento, não duvida da existência de um Direito aduaneiro

positivo autônomo, porquanto tal conclusão advém da simples percepção da realidade, qual

seja a existência de normas específicas destinadas a regulamentar e fiscalizar a atividade

desempenhada no âmbito do comércio exterior e, bem assim, a lançar e arrecadar os tributos

decorrentes desta atividade. Destarte, afirma que esse Direito aduaneiro positivo autônomo

autoriza a conclusão pela existência da Ciência do Direito aduaneiro, isto é, a série de

proposições explicativas do conjunto das normas aduaneiras. Em suas palavras (FOLLONI,

2005, p. 60):

Pode-se falar, portanto, de direito aduaneiro como conjunto de normas jurídicas reguladoras das atividades exercidas na Aduana, como igualmente se pode falar em Direito Aduaneiro enquanto ciência que descreve este objeto específico. Tanto enquanto conjunto de normas como enquanto ciência que as tem por objeto, há um ‘direito aduaneiro’, portanto.

Revisando em parte essa definição – o que certamente não a invalida, mas

oportunamente a complementa – ao lançar observação que guarda estreita intimidade com a

defesa da livre iniciativa das empresas que operam no comércio exterior e, portanto, com os

objetivos do Estado brasileiro já analisados em capítulo anterior, Folloni (2008, p. 79) volta os

olhos ao aspecto funcional das normas de Direito aduaneiro, advertindo, agora, que qualquer

conceito de Direito aduaneiro que faça referência ao conjunto das normas que o compõem

(Direito aduaneiro positivo), “peca ao negligenciar as normas que, contrariamente a controlar

e limitar, incentivam as importações e as exportações”. Propõe, portanto, a seguinte definição

do Direito aduaneiro, em complementação ao seu pensamento anterior: 22 A observação é de Trevisan (2008, p. 37), e faz parte da constatação mais ampla no sentido de que no mundo todo – mas especialmente no Brasil – os trabalhos sobre Direito aduaneiro têm normalmente ficado a cargo daqueles que possuem vínculo empregatício com a Aduana.

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O direito aduaneiro positivo é o sistema de normas jurídicas que disciplina as atividades de importação e de exportação, incentivando-as ou restringindo-as, e que prescreve os regimes de fiscalização e de controle dessas operações, prescrevendo, também, o lançamento e a cobrança dos tributos que incidem sobre aquelas atividades.

Não obstante, conforme anota Carvalho (1996, p. 12) relativamente ao Direito

tributário – em lição que por tudo e em tudo se amolda ao Direito aduaneiro – esta autonomia

do Direito positivo e de sua respectiva Ciência jurídica é meramente didática, e não científica,

porquanto o ordenamento é uno, divisível em ramos apenas para fins explicativos.23 A

propósito, Vieira (1993, p. 59), com a objetividade e perspicácia que lhe são peculiares,

assevera: “Afortunadamente, o cânone da unidade do sistema jurídico já sepultou no passo a

falácia da autonomia científica de qualquer dos ramos do Direito”.

Essa constatação também não passou despercebida por Folloni (2005, p. 59), com

apoio na doutrina de José Souto Maior Borges, uma vez que a constatação, amplamente

aceita, da existência de um Direito Tributário, Administrativo, do Trabalho etc., como

“ciências que descrevem as normas específicas reguladoras daqueles segmentos da vida

social”, conduz, igualmente, à inevitável conclusão pela existência de um Direito aduaneiro.

Sosa (1999, p. 60) enfatiza que o Direito aduaneiro tem vida própria, de modo que a

Aduana preocupa-se com a “economia do país, com a defesa do trabalho nacional, com a

defesa social”. Dentro desse contexto, insere-se, portanto, o Direito aduaneiro, a quem caberá

fornecer “os princípios que orientam as ações do Estado em matéria de regulação econômica

com o exterior”.

Nesse passo, Costa (2004, p. 21) assevera que, como disciplina jurídica autônoma, o

Direito aduaneiro revela a existência de princípios informadores particulares, em que pese

também orientar-se, por ser ramo ligado ao Direito administrativo, pelas diretrizes

fundamentais desta disciplina, quais sejam a isonomia, a legalidade, a supremacia do interesse

público sobre o privado, a impessoalidade e a moralidade. A respeito do tema, Costa é

acompanhada por Folloni (2005, p. 66), que faz recordar, ainda, no campo do regime jurídico

administrativo, dos princípios da finalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da

publicidade, da eficiência e da responsabilidade do Estado.24

Especificamente, por tocar mais de perto ao seu objeto de estudo, Costa (2004, p. 23)

destaca, ainda, os seguintes mandamentos inerentes à disciplina jurídica aduaneira: princípio

23 CARVALHO, 1996, p. 12. 24 A respeito de tais princípios, vide, na literatura pátria, por todos: SILVA, 2001. MELLO, 2001.

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da universalidade do controle aduaneiro, como desdobramento do princípio da isonomia e

segundo o qual quaisquer bens ou pessoas, sem distinção ou privilégios, devem submeter-se

ao controle exercido pelos agentes aduaneiros; princípio da competência federal, pois cabe à

União, por determinação constitucional, regulamentar a atividade de comércio exterior; e, por

fim, o que denomina princípio da excepcionalidade dos impostos incidentes sobre o comércio

exterior, identificado pela extrafiscalidade inerente aos Impostos de Importação, Exportação,

sobre Produtos Industrializados e sobre Movimentação Financeira, que permite ao Poder

Executivo alterar as suas alíquotas, colocando-os a salvo da regra da anterioridade tributária e,

apenas aparentemente, também a salvo do princípio da legalidade (art. 150, III, b, § 1.º, e art.

153, § 1.º da CF/88), como se verá a bom tempo (vide Capítulo 3, item 3.1 deste estudo).

Corolário da constatada autonomia – ainda que metodológica – do Direito aduaneiro,

surge a necessidade de apartá-lo do Direito tributário, apesar da existência de uma inegável

área de intersecção entre as duas disciplinas. É o que veremos a seguir.

2.3 DIREITO ADUANEIRO E DIREITO TRIBUTÁRIO. UMA DIFERENCIAÇÃO

NECESSÁRIA

No princípio, a atividade aduaneira guardava relação quase exclusiva com o caráter

fiscal das operações destinadas ao trânsito de mercadorias, tendo em vista que, considerando a

preponderância da preocupação financeira e arrecadatória, não havia grande diferenciação

entre os valores dos tributos incidentes, todos eles, de regra, extremamente elevados. O

panorama se alterou, sensivelmente, após a Segunda Guerra Mundial e o incremento da

industrialização, fatores que impulsionaram o viés econômico das atividades de importação e

exportação e, conseqüentemente, outorgaram aos serviços aduaneiros um perfil administrativo

próprio, desvinculado do exclusivo propósito arrecadador.

Consoante pondera Carluci (2001, p. 215), a partir desse rompimento de paradigma a

atividade aduaneira passou a estar relacionada a diversos campos – e aqui, acrescenta-se,

diferentes da primitiva vertente tributária que, todavia, continua a existir – tais como a

“segurança nacional (armas), a saúde pública (estupefacientes), a agricultura (produtos da

fauna, flora, sementes, alimentos, agrotóxicos), estatísticas comerciais (informações

econômico-fiscais)”. Há que se considerar, igualmente, que dada “a tendência mundial do

agrupamento dos países em grandes blocos econômicos e a abertura das fronteiras entre países

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de um mesmo bloco, mais e mais se acentua a vocação da Aduana no exercício de atividades

de controle, de natureza mais administrativa que tributária” e, diz-se, essa constatação apenas

reafirma a relevância do estudo sobre a aplicação da norma penal no âmbito do comércio

exterior, pois – repita-se à exaustão – é das regras que disciplinam esta atividade de controle

administrativo que se extrairão os elementos aptos a caracterizar, no caso concreto, a eventual

ocorrência de uma infração de natureza penal.

Seguindo essa linha de pensamento, Pimentel Carvalho (2007, p. 87) conclui que “não

há, portanto, que se confundir o direito aduaneiro com o tributário, posto que as relações

jurídicas compreendidas no primeiro são eminentemente administrativas, eventualmente

voltadas para fins tributários, nesse caso marcadas pela extrafiscalidade.”

Na literatura comparada, também se afirma a diferenciação existente entre o Direito

aduaneiro e o Direito tributário. Nesse sentido, a lição de Basaldúa (1992, p. 231), para quem

o Direito aduaneiro revela identidade própria, em que pese conter ponto de intersecção com o

Direito tributário, constituindo-se em um:

Conjunto de normas atinentes a la importación y exportación de mercadería, cuya aplicación se encomienda a la aduana, para lo cual se regula su estructura y sus funciones; se determinan los regímenes a los cuales debe someterse la mercadería que se importa o exporta y se establecen diversas normas referidas a los tributos aduaneros, a los ilícitos aduaneros y a los procedimientos y recursos ante las Aduanas.

No mesmo contexto, conferindo-lhe ainda mais identidade, Contreras (apud SOSA,

1999, p. 61) afirma que o Direito aduaneiro configura:

El conjunto de normas jurídicas que regulan por medio de un ente administrativo, las actividades y funciones del Estado en relación con el Comercio Exterior de mercancías, que entren o salgan en sus diferentes regímenes al o del territorio aduanero, así como de los medios e tráficos en que se conduzcan y las personas que intervienen en cualquier fase de la actividad o que violen las disposiciones jurídicas.

Veja-se que ratificando a diferenciação, Tosi (2002, p. 33) salienta a dupla função da

Aduana: “el control del ingreso y egreso de mercadería a territorio aduanero, y la recaudación

de tributos correspondientes a dichas operacionaes.”

Por outro lado, importa salientar que as normas de Direito aduaneiro são espécies do

gênero normas de Direito administrativo, elaboradas com o intuito de regulamentar, fiscalizar

e incentivar as atividades de comércio exterior, inclusive no tocante aos chamados direitos

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aduaneiros25, isto é, aos tributos incidentes nas operações comerciais respectivas. Tal

constatação, ao tempo em que confirma a estreita relação entre o Direto aduaneiro e o

tributário, trata de demonstrar que aquele não se esgota neste nem com ele se confunde,

porquanto existem normas de Direito aduaneiro que não estão relacionadas com o lançamento

de tributos incidentes nesta área, mas, apenas e tão-somente, com a restrição, incentivo ou

regularidade dos procedimentos inerentes às próprias atividades de importação ou de

exportação de mercadorias.

Em igual pensamento, para Werneck (2002, p. 53), o Direito aduaneiro e o Direito

tributário não se confundem e, embora possuam elementos em comum, como, v. g., o imposto

de importação, existem inúmeras funções estritamente aduaneiras que nada têm a ver com a

atividade tributária, assim como há institutos tributários que não guardam relação nenhuma

com a área aduaneira. A propósito, Sosa (1999, p. 60) também assevera, enfaticamente, que o

Direito aduaneiro não se confunde com o tributário, uma vez que “o primeiro visa um fim

econômico, o segundo, uma finalidade arrecadatória”, de sorte que enquanto o sistema

jurídico aduaneiro orienta-se para proteger a economia e a indústria nacionais, o Direito

tributário “objetiva arrecadar dinheiro para as burras do Estado”.

Fixadas essas premissas a respeito da autonomia metodológica do Direito aduaneiro

relativamente ao Direito tributário, considerar-se-á, a seguir, dois temas essenciais no trato da

disciplina aduaneira, quais sejam as modalidades de importação de mercadorias admitidas

pelo ordenamento jurídico pátrio e o expediente conhecido como interposição fraudulenta de

terceiros nas operações de comércio exterior. Ambos os assuntos são de capital relevância

para adequadamente enfrentar-se-ão as conseqüências de natureza penal oriundas das

irregularidades cometidas.

2.4 AS MODALIDADES DE IMPORTAÇÃO DE MERCADORIAS

Tema de fundamental importância para adequadamente compreender o atual fenômeno

da utilização do Direito penal como mecanismo de repressão às irregularidades verificadas no

25 Como adverte Costa (2004, p. 16), as expressões direito aduaneiro ou direito alfandegário, quando empregadas no plural (“direitos aduaneiros” e “direitos alfandegários”), “compreendem o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação”.

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comércio exterior diz respeito às modalidades de importação de mercadorias previstas no

Direito brasileiro.

Isso porque o conhecimento das regras que disciplinam cada uma dessas modalidades

é extremamente relevante para delinear, adequadamente, o papel das partes envolvidas e,

conseqüentemente, quais as suas obrigações que, se descumpridas, podem acarretar

responsabilidade fiscal, administrativa e eventualmente criminal.

Há, atualmente, muita confusão em torno das três espécies de importação admitidas

pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam a compra e venda direta, a importação por

conta e ordem de terceiro e a importação por encomenda, gerando autuações precipitadas por

parte da fiscalização aduaneira, das quais decorre, por seu turno, a instauração de

investigações criminais igualmente despropositadas26, nomeadamente em razão de presunções

de irregularidades – em especial da chamada interposição fraudulenta de terceiras pessoas,

que será abordada no capítulo seguinte – deduzidas da má inteligência das normas pertinentes

e da não observância das garantias constitucionais inerentes ao livre exercício de trabalho e

profissão.

A propósito do tema, advertindo que apenas a análise do contrato firmado entre as

partes em uma específica transação de comércio internacional poderá revelar, de fato, de qual

modalidade de importação se está a tratar, Tôrres (2008, p. 213) observa que:

(...) essas considerações devem ser trazidas à discussão justamente quando as situações contratuais do comércio internacional têm sido postas sob dúvida pelas autoridades aduaneiras e prestando-se, ademais, como motivo para o emprego da pena de perdimento das mercadorias importadas de forma cautelar, sem qualquer processo administrativo apto a conhecer dos negócios jurídicos praticados. E tal medida extrema, na maioria das vezes, tomada a partir de presunções absolutas, a considerar a empresa trading como ‘interposta pessoa’, usadas em operações que teriam a feição de compra e venda por conta e ordem de terceiros.

Advertência, neste particular, deve ser feita no tocante à amplitude do tema a ser

tratado. O campo de pesquisa estará restrito às modalidades de importação inerentes ao

Regime Aduaneiro Comum. Não será viável, devido ao estreito âmbito deste estudo e

considerando, ademais, o objetivo ao qual nos propusemos examinar, os pormenores relativos

aos denominados Regimes Aduaneiros Especiais27. Não obstante, far-se-á referência a tais

26 Ver-se-á, mais adiante, a questão da obrigatoriedade da formalização, por parte dos agentes aduaneiros, de representações fiscais para fins penais a serem dirigidas ao Ministério Público Federal. 27 Nos Regimes Aduaneiros Especiais não há despacho aduaneiro para consumo, e sim para admissão, de modo que a internalização da mercadoria não se dá definitivamente. Eles implicam em tratamento aduaneiro de fiscalização diverso e em incidências tributárias diferenciadas. Estão disciplinados, em regra, a partir do artigo 71 do Decreto-Lei 37/66 e artigo 307 do Regulamento Aduaneiro, podendo ser: Trânsito Aduaneiro (art. 315,

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regimes, com a indicação da norma legal ou infralegal pertinente, sempre que se fizer

necessário.

Pois bem. Como já dito, são três os modos pelos quais se pode internalizar uma

mercadoria estrangeira no território brasileiro. A seguir, veremos alguns aspectos de cada uma

delas.

2.4.1 Importação direta ou por conta própria

Antes de definir o que seja a importação direta ou por conta própria, cumpre tecer,

preliminarmente, breves considerações acerca de alguns elementos conceituais de ordem geral

e procedimentos de natureza administrativa que devem ser necessariamente observados para

viabilizar a importação de qualquer produto. Estes conceitos e procedimentos serão aplicados,

com as respectivas adaptações à sistemática própria, às outras duas modalidades de

importação que serão examinadas a seguir.

Segundo magistério de Werneck (2002, p. 14), a importação nada mais é do que o

ingresso, temporário (admissão temporária) ou definitivo, de mercadoria de procedência

estrangeira em território nacional, e importador é a pessoa física ou jurídica que compra

produtos estrangeiros para consumi-los ou comercializá-los em seu país. Quando ingressa em

território nacional, a mercadoria é submetida ao Despacho Aduaneiro de Importação28,

ocasião em que os fiscais aduaneiros avaliam a documentação que instrui a operação e as

informações prestadas pelo importador. Conforme anota Ponciano (2008, p. 252):

O despacho aduaneiro de importação pode ser considerado um procedimento, consistente numa série de atos que têm a finalidade de assegurar o desembaraço/liberação de bem proveniente do exterior, acarretando o regular ingresso do produto estrangeiro no território nacional.

RA), Admissão Temporária (art. 353, RA), Admissão Temporária para Utilização Econômica (art. 373, RA), Admissão Temporária para Aperfeiçoamento Ativo (art. 380, RA), Drawback (art. 383, RA), Entreposto Aduaneiro (art. 404, RA), Entreposto Industrial sob Controle Informatizado – Recof (art. 420, RA), RECOM (art. 427, RA), Exportação Temporária (art. 431, RA), Exportação Temporária para Aperfeiçoamento Passivo (art. 449, RA), Repetro (art. 458, RA), Repex (art. 463, RA), Reporto (art. 471, RA), Loja Franca (art. 476, RA), Depósito Especial (art. 480, RA), Depósito Afiançado (art. 488, RA), Depósito Alfandegado Certificado (art. 493, RA), Depósito Franco (art. 499, RA). Há, também, os denominados regimes aduaneiros aplicados em áreas especiais. São eles: A Zona Franca de Manaus (art. 504, RA), Amazônia Ocidental (art. 516, RA), e as Áreas de Livre Comércio (art. 524, RA). 28 Prevê o Regulamento Aduaneiro, expressamente: Art. 542. Despacho de importação é o procedimento mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo importador em relação à mercadoria importada, aos documentos apresentados e à legislação específica.

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Portanto, esse procedimento (Despacho Aduaneiro de Importação), que se inicia com

o registro eletrônico (online) da Declaração de Importação (D.I.)29 feito pelo particular junto

ao Sistema Integrado de Comércio Exterior (SISCOMEX)30 passa pela conferência

aduaneira31 e culmina com a nacionalização da mercadoria.

Considerando a sua relevância e estreita ligação com o núcleo da pesquisa aqui

desenvolvida, o procedimento administrativo fiscal relativo à conferência aduaneira merece

algumas considerações adicionais.

A conferência aduaneira é um procedimento especial de fiscalização. Nessa etapa do

Despacho Aduaneiro de importação, o produto importado é encaminhado automaticamente, e

de forma aleatória, pelo SISCOMEX, a um dos quatro canais de fiscalização existentes,

sinalizados pelas cores verde, amarelo, vermelho e cinza, cada um deles com diferentes graus

de rigidez e assim distribuídos, de acordo com a lição de Folloni (2005, p. 96):

O canal verde outorga o desembaraço imediato, o canal amarelo impõe o exame de documentos, o canal vermelho pressupõe exame de documentos e da mercadoria e, por fim, o canal cinza, em procedimento mais rígido, determina o exame documental, da mercadoria e a aplicação de procedimento especial de controle aduaneiro, em casos de necessidade de apuração do correto valor aduaneiro, desde que haja desconfiança do valor da operação declarado pelo importador quando do registro da declaração de importação.32

Entretanto, é sempre possível que as autoridades aduaneiras decidam examinar

documentos e a própria mercadoria mesmo quando estas são dirigidas, inicialmente, aos

canais verde ou amarelo. Por óbvio, não se pode deixar de ressaltar que tal procedimento deve

estar amparado em sérias e fundadas razões, em motivos concretos, amplamente externados

ao particular, que justifiquem a adoção de medida diversa daquela que seria normalmente

29 Regulamento Aduaneiro, artigo 545: Tem-se por iniciado o despacho de importação na data do registro da declaração de importação. § 1o O registro da declaração de importação consiste em sua numeração pela Secretaria da Receita Federal, por meio do SISCOMEX. § 2o A Secretaria da Receita Federal do Brasil disporá sobre as condições necessárias ao registro da declaração de importação e sobre a dispensa de seu registro no SISCOMEX. 30 Este ambiente virtual para controle, pela Secretaria da Receita Federal, das operações de comércio exterior, foi criado pelo Decreto 660, de 25 de setembro de 1992. 31 Regulamento Aduaneiro, artigo 564: A conferência aduaneira na importação tem por finalidade identificar o importador, verificar a mercadoria e a correção das informações relativas a sua natureza, classificação fiscal, quantificação e valor, e confirmar o cumprimento de todas as obrigações, fiscais e outras, exigíveis em razão da importação. 32 A regulamentação a respeito encontra-se no artigo 21, da Instrução Normativa n.º 680, de 02 de outubro de 2006, da Secretaria da Receita Federal.

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tomada se fossem observadas as regras do canal de verificação para o qual a mercadoria fora,

inicialmente, encaminhada.

Como observa Meira (2002, p. 127) a respeito do Valor Aduaneiro da mercadoria –

um dos elementos mais importantes de uma transação de comércio exterior, pois constitui a

base de cálculo dos tributos incidentes, e sobre o qual trataremos detidamente em momento

oportuno (ver Capítulo 3, item 3.2) – um em cada duzentos casos apresenta questionamento,

pelas autoridades competentes, sobre o Valor Aduaneiro informado pelo importador em sua

Declaração de Importação. Nesses casos, há previsão, conforme anota Carvalho (2007, p.

211), de procedimentos especiais de fiscalização que demandam a retenção dos produtos

importados pelo prazo de 90 (noventa) dias, prorrogáveis por igual período, com vistas “à

obtenção de provas da fraude de valor e à conseqüente apreensão dos bens e proposição da

pena de perdimento”.33

Se ao final desse procedimento especial de fiscalização não for constatada a

irregularidade suspeita inicialmente, e sim, conforme anota Carvalho (2007, p. 208), uma

subvaloração ao invés de um subfaturamento34, sendo aquele, diversamente deste, não o

resultado de uma fraude, mas de uma má interpretação das regras que disciplinam a

determinação do Valor Aduaneiro da mercadoria35, talvez já seja tarde demais para o

importador e para a destinação da mercadoria, pois, em que pese ser possível a retificação dos

elementos inseridos equivocadamente na Declaração de Importação (a teor do artigo 44 da

Instrução Normativa 680/06 da Secretaria da Receita Federal)36, o tempo de retenção dos

produtos já terá inviabilizado o negócio subjacente à importação.

Portanto, como os procedimentos mais rigorosos de fiscalização constituem, na

prática, intervenções que representam graves prejuízos ao regular desenvolvimento das

atividades do importador, eles devem ser utilizados com extremo cuidado. Como visto, a

detida análise dos documentos e o exame físico da mercadoria demanda a sua retenção por

longo período em poder dos agentes fiscais, frustrando as expectativas do importador no

33 Falar-se-á mais sobre os procedimentos especiais de fiscalização, com ênfase nos Diplomas Legais e nos regulamentos editados pela Secretaria da Receita Federal que os instituem e regulam, quando se tratar, no item 5 deste Capítulo II, da interposição fraudulenta de pessoas nas operações de comércio exterior. 34 Para Carvalho (2007, p. 208), “entende-se por subvaloração a declaração de valor aduaneiro inferior ao apurado em face de divergências quanto à interpretação do AVA e à subsunção dos fatos jurídicos a este. Por outro lado, subfaturamento é entendido com a declaração de preço inferior ao realmente pago ou a apagar pelos produtos importados.”. 35 Como se verá oportunamente, o valor aduaneiro é determinado na forma do artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas de Comércio – GATT e do Acordo para Implementação do artigo VII do GATT, denominado Acordo de Valoração Aduaneira – AVA (que incorporou a os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT), promulgado pelo Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994. 36 Art. 44. A retificação de informações prestadas na declaração, ou a inclusão de outras, no curso do despacho aduaneiro, ainda que por exigência da fiscalização aduaneira, será feita, pelo importador, no Siscomex.

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tocante aos planos traçados sobre aquela mercadoria e repercutindo no cumprimento das

obrigações assumidas com terceiros no caso de importações por conta e ordem de outrem ou

por encomenda, o que certamente acarreta prejuízos econômicos, diretos e indiretos, estes

relacionados com a perda de prestígio do importador, incalculáveis. Destarte, parece lícito

concluir que a intervenção fiscalizadora abusiva sobre as atividades do importador afeta

diretamente os Direitos constitucionais da iniciativa privada e da livre escolha da profissão.

Tecidas essas necessárias linhas a respeito da conferência aduaneira, sobreleva

ressaltar, ainda, e apenas a título de esclarecimento, que a exportação é definida como a saída

da mercadoria do território nacional, também podendo ser temporária (exportação temporária)

ou definitiva. A mercadoria, nacional ou previamente nacionalizada, é submetida ao

Despacho de Exportação37, oportunidade em que se procede à verificação de idoneidade,

pelas autoridades competentes, dos documentos e informações prestados pelo exportador.

Na mesma linha de pensamento externada por Werneck, outorgando aos conceitos de

importação e de exportação uma feição mais ampla, independente dos motivos pelos quais a

mercadoria é internalizada no país (se para consumo ou não), Sosa (1999, p. 54) observa que

tanto uma como a outra constituem um conjunto de iniciativas destinado a transferir um

determinado produto de um território aduaneiro a outro, em decorrência de uma transação

mercantil qualquer.38 Consentâneo com essa definição, o Regulamento Aduaneiro estabelece,

em seu artigo 543, que “toda mercadoria procedente do exterior, importada a título definitivo

ou não, sujeita ou não ao pagamento do imposto de importação, deverá ser submetida a

despacho de importação (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 44, com a redação dada pelo

Decreto-lei no 2.472, de 1988, art. 2o)”.

Posto isso, pode-se dizer que na importação direta ou por conta própria verifica-se

uma relação bilateral entre o importador, pessoa regularmente autorizada a operar no

comércio exterior39, e o vendedor estrangeiro, sem intermediação de quem quer que seja.

37 Regulamento Aduaneiro, artigo 580: Despacho de exportação é o procedimento mediante o qual é verificada a exatidão dos dados declarados pelo exportador em relação à mercadoria, aos documentos apresentados e à legislação específica, com vistas a seu desembaraço aduaneiro e a sua saída para o exterior. 38 No mesmo sentido, Carluci (2001, p. 215), para quem “o fato importação não implica necessariamente o fato tributação”. Diferentemente, entendendo com importação apenas a entrada da mercadoria que se destina ao consumo, vide: XAVIER, 1997; FONROUGE, 1981. 39 A habilitação das importadoras e pessoas físicas por ela responsáveis para operar no comércio exterior se dá de acordo com as regras estabelecidas pela IN SRF 650/06 e Ato Declaratório Executivo n.º 3 da Coordenadoria Geral de Administração Aduaneira (COANA). Esta habilitação é a base do Sistema RADAR (Ambiente de Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros), o qual, segundo a Receita Federal, estando disponível para consulta por todas as unidades aduaneiras, “objetiva disponibilizar, em tempo real, informações de natureza aduaneira, contábil e fiscal que permitam à fiscalização identificar o comportamento e inferir o perfil de risco dos diversos agentes relacionados ao comércio exterior, tornando-se uma ferramenta fundamental no combate às fraudes.” Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/srf/Boaspraticas/aduana/

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36

Nessa modalidade, o importador traz o produto ao território brasileiro para consumo próprio

ou para introduzi-lo no mercado brasileiro, mas sem que haja comprador previamente

identificado.

Por se constituir em uma situação de compra e venda relativamente simples40, a

compreensão da modalidade de importação direta ou por conta própria não demanda maiores

esforços e, por essa razão, é a que menos gera complicações. Uma vez que não existem

intermediários na cadeia da operação, recaem sobre o importador as obrigações de natureza

fiscal – recolhimento dos impostos incidentes sobre a transação – e também administrativas,

como as relativas à apresentação de documentos necessários para instrução do despacho

aduaneiro de importação.

2.4.2 Importação por conta e ordem de terceiro e por encomenda

A alta especialização das normativas vigentes no Direito aduaneiro e dos

procedimentos administrativos necessários para formalizar toda a operação destinada a

internalizar uma mercadoria estrangeira ou exportar um produto nacional, freqüentemente

leva os empresários a procurar os serviços especializados de pessoas e empresas que se

dedicam, exclusivamente, a este objetivo. Com efeito, nas palavras de Tôrres (2008, p. 212):

O empresário que importa mercadorias e tem neste mister a realização da sua iniciativa, de todo protegida pela Constituição (proteção dada desde o artigo 1.º), não pode se ver obrigado a suportar todos os trâmites e atos inerentes à prática de nacionalização de mercadorias, mediante necessária aquisição direta do exportador estrangeiro. O custo de tempo e dedicação a isto certamente o desestimularia a seguir no mesmo ramo. Não é este o seu meio de mercancia. O que ele deve fazer é concentrar-se no seu negócio.

Assim, quem deseja adquirir um determinado produto de procedência estrangeira pode

optar pela utilização dos serviços oferecidos por empresas, chamadas tradings, cujo objetivo

específico é justamente a compra e venda dessas mercadorias. Portanto, as tradings passam a

ser responsáveis por atender as exigências procedimentais relativas à importação.

No regime da importação por conta e ordem de terceiros, a empresa trading atua

simplesmente como prestadora de serviços ao adquirente da mercadoria, que não deseja, por

SistemaRadar.htm, acesso em 24/01/2009, às 11hs20min. 40 Em comparação com as demais modalidades de importação.

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diversos motivos – nomeadamente pela razão acima explicitada –, submeter-se pessoalmente

a todos os ônus decorrentes do procedimento destinado à importação da mercadoria.

Essa modalidade de importação surgiu no ordenamento jurídico pátrio com o intuito

de afastar das tradings a responsabilidade pelo pagamento do PIS/Pasep e Cofins incidentes

sobre a transação comercial internacional (vide, acerca dessas contribuições, o Capítulo 3,

item 3.3.5 deste estudo) quando a sua atuação se restringisse a mera prestação de serviços ao

adquirente da mercadoria importada. Isso porque se considerou que a simples prestação de

serviços relativa à compra e venda da mercadoria não é “suficiente para formar alguma

espécie de ‘faturamento’ tributável nesta proporção, mas apenas no montante do preço do

serviço” (TÔRRES, 2008, p. 213-214).

Foi assim que o artigo 81, da Medida Provisória 2.158-35, de 24 de agosto de 2001,

estabeleceu:

Aplicam-se à pessoa jurídica adquirente de mercadoria de procedência estrangeira, no caso da importação realizada por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora, as normas de incidência das contribuições para o PIS/Pasep e Cofins sobre a receita bruta do importador.

Até o advento dessa Medida Provisória não havia qualquer diferenciação sobre a

atuação das tradings, de modo que, quando estas eram chamadas a atuar, a importação era

sempre considerada por encomenda, embora não com essa nomenclatura. A partir da edição

da referida Medida Provisória, entretanto, a importação por encomenda passou a ser

considerada regra, e a nova espécie de importação por conta e ordem a exceção. Esta, repise-

se, só se verificaria nos casos em que a trading fosse mera prestadora de serviços contratada

pelo adquirente da mercadoria, sendo responsável pelo pagamento das contribuições para o

PIS/Pasep e Cofins incidentes apenas sobre a receita bruta auferida com o serviço prestado,

em conformidade com o artigo 12, da Instrução Normativa 247, de 21 de novembro de 2002,

da Secretaria da Receita Federal.41

41 Art. 12. Na hipótese de importação efetuada por pessoa jurídica importadora, por conta e ordem de terceiros, a receita bruta para efeito de incidência destas contribuições corresponde ao valor da receita bruta auferida com: I – os serviços prestados ao adquirente, na hipótese da pessoa jurídica importadora; e II – da receita auferida com a comercialização da mercadoria importada, na hipótese do adquirente. § 1° Para os efeitos deste artigo: I – entende-se por importador por conta e ordem de terceiros a pessoa jurídica que promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria adquirida por outra, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de cotação de preços e a intermediação comercial; II – entende-se por adquirente a pessoa jurídica encomendante da mercadoria importada; III – a operação de comércio exterior realizada mediante a utilização de recursos de terceiros presume-se por conta e ordem destes; e

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Outros casos, por exclusão, enquadrar-se-iam na modalidade de importação por

encomenda com a conseqüente responsabilidade das tradings pelo pagamento das

contribuições ao PIS/Pasep e Cofins incidente sobre a receita bruta auferida com a transação

comercial.

Repetindo o teor do inciso I, do § 1.º, do artigo 12 da Instrução Normativa 247/2002 já

mencionada, a Instrução Normativa 225, de 18 de outubro de 2002, em seu artigo 1.º,

parágrafo único, reafirma a definição da modalidade de importação por conta e ordem:

Entende-se por importador por conta e ordem de terceiro a pessoa jurídica que promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria adquirida por outra, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, a prestação de outros serviços relacionados com a transação comercial, como a realização de cotação de preços e a intermediação comercial.

Circunstância importante diz respeito à necessidade de que a trading, ao atuar por

conta e ordem do adquirente apenas na condição de prestadora de serviços – hipótese em que

estará desobrigada do pagamento de PIS/Pasep e Cofins incidente sobre a receita bruta

auferida com a transação comercial – indique, em campo próprio da Declaração de

Importação, o nome e o CNPJ do adquirente da mercadoria, conforme reza o artigo 3.º, da

Instrução Normativa 225/2002.42

Freqüentemente, a omissão no tocante aos elementos de indicação obrigatória nos

documentos que instruem a operação de comércio exterior, nomeadamente quando se trata

dos efetivos participantes da operação, tem refletido na instauração de procedimentos

especiais de fiscalização e, na seqüência, de investigações policiais destinadas a apurar

eventual responsabilidade de natureza criminal das partes envolvidas. Nesses casos, suspeita-

se da ocorrência de interposição fraudulenta de terceiros (vide tópico 2.5 deste Capítulo) nas

operações respectivas, expediente que seria viabilizado pela prática de delitos de passagem

necessária (falsidade documental, ideológica etc.) para o alcance de outros fins, também

criminosos, como os delitos contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro e de

lavagem de dinheiro. Sobre tais temas tratar-se-á oportunamente, bastando advertir, nesta

sede, que a própria Instrução Normativa 225/2002 estabelece, em seu artigo 4.º:

IV – o importador e o adquirente devem observar o disposto na Instrução Normativa SRF nº 225, de 18 de outubro de 2002. § 2° As normas de incidência aplicáveis à receita bruta de importador, aplicam-se à receita do adquirente, quando decorrente da venda de mercadoria importada na forma deste artigo. 42 Art. 3º O importador, pessoa jurídica contratada, devidamente identificado na DI, deverá indicar, em campo próprio desse documento, o número de inscrição do adquirente no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).

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Art. 4º Sujeitar-se-á à aplicação de pena de perdimento a mercadoria importada na hipótese de: I - inserção de informação que não traduza a realidade da operação, seja no contrato de prestação de serviços apresentado para efeito de habilitação, seja nos documentos de instrução da DI de que trata o art. 3º (art. 105, inciso VI, do Decreto-lei nº 37, de 18 de novembro de 1966); II - ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, do comprador ou responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros (art. 23, inciso V, do Decreto-lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, com a redação dada pelo art. 59 da Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002). Parágrafo único. A aplicação da pena de que trata este artigo não elide a formalização da competente representação para fins penais, relativamente aos responsáveis, nos termos da legislação específica (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 e Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990).

Consoante anota Tôrres (2008, p. 216), a vantagem da operação por encomenda era a

isenção do IPI-importação (sobre o qual trataremos no Capítulo 3, item 3.3.3 desta pesquisa)

por parte do adquirente da mercadoria, tendo em vista que toda a operação era feita em nome

da trading, a qual ficava, então, responsável por este recolhimento. Já na operação por conta e

ordem, o adquirente da mercadoria era equiparado a estabelecimento industrial, por força do

disposto no artigo 79, da Medida Provisória 2.158-35/200143, e deveria recolher o IPI-

importação, pois a operação assemelhava-se a uma compra e venda direta feita pelo

adquirente, unicamente “intermediada por simples serviços de assessoria aduaneira”

desempenhado pela trading.

Sem embargo das regras trazidas pela Medida Provisória 2.158-35/2001 a fim de

distinguir a modalidade de importação recém-criada (conta e ordem) das demais atuações das

tradings (por encomenda), instalou-se verdadeira confusão na interpretação conferida pelas

autoridades administrativas a respeito da matéria. Estas passaram a considerar a modalidade

de importação por conta e ordem, criada para ser exceção, como regra. Na visão de Tôrres

(2008, p. 216), tal se deu “com a única finalidade de afastar dessas operações intermediadas

por tradings o direito à não incidência do IPI-importação”. Esse entendimento, em verdade,

encontrava amparo no inciso III, do § 1.º, da Instrução Normativa 247/2002, segundo o qual

“a operação de comércio exterior realizada mediante a utilização de recursos de terceiros

presume-se por conta e ordem deste”. Como, até então, as tradings operavam normalmente

com adiantamento de recurso do adquirente – e, ressalte-se, não havia nenhuma irregularidade

neste procedimento, porquanto não existia regulamentação distinguindo a natureza da sua

43 Art. 79. Equiparam-se a estabelecimento industrial os estabelecimentos, atacadistas ou varejistas, que adquirirem produtos de procedência estrangeira, importados por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora.

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atuação intermediária – viu-se, nesta disposição, a abertura necessária para considerar quase a

totalidade das operações de importação realizadas pelas tradings como por conta e ordem do

adquirente.

Aproximadamente cinco anos após a edição da Medida Provisória referida, com o

intuito de resolver a questão sobre a correta identificação das modalidades de importação,

sobreveio da Lei 11.286, de 20 de fevereiro de 2006, a qual, em seu artigo 11, reza que “a

importação promovida por pessoa jurídica importadora que adquire mercadorias no exterior

para revenda a encomendante predeterminado não configura importação por conta e ordem de

terceiros”.

Adicionalmente, a Secretaria da Receita Federal editou a Instrução Normativa 634, de

24 de março de 2006, destinada a regulamentar a importação por encomenda. Em seu artigo

1.º, inciso I, assim estabeleceu: “não se considera importação por encomenda a operação

realizada com recursos do encomendante, ainda que parcialmente”. Como se nota, esse

dispositivo repetiu o teor do inciso III, § 1.º da Instrução Normativa 247, de 2002. Porém, a

esta primeira disposição não se pode conferir efetiva validade no mundo jurídico, porquanto

apenas a Lei 11.281/06 veio estipular, no § 1.º, inciso I, do artigo 1144, que a secretaria da

Receita Federal deveria, mediante ato normativo interno, regulamentar as condições e os

requisitos para a atuação das tradings nas importações por encomenda, de modo que não era

dado à Receita Federal veicular estas determinações quase cinco anos antes, por meio de

Instrução Normativa (IN 247/2002), sem Lei em sentido formal que a autorizasse, sob pena de

afronta ao princípio da legalidade.45

Por essa razão, considera-se que a disposição do artigo 11 da Lei 11.281/06, que

veicula regra de cunho interpretativo e é mais benigna ao contribuinte, pode retroagir46,

atingindo fatos pretéritos praticados entre a entrada em vigor da Medida Provisória 2.158-

35/2001 e o advento da própria Lei 11.281/06, de maneira a excluir eventuais penalidades que

possam ter sido ventiladas àquelas empresas que, mesmo recebendo recurso total ou parcial

de encomendante predeterminado, atuaram de acordo com as demais regras da modalidade

44 Art. 11. A importação promovida por pessoa jurídica importadora que adquire mercadorias no exterior para revenda a encomendante predeterminado não configura importação por conta e ordem de terceiros § 1o A Secretaria da Receita Federal: I - estabelecerá os requisitos e condições para a atuação de pessoa jurídica importadora na forma do caput deste artigo 45 Art. 5.º, II, CF/88: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 46 Em conformidade com o artigo 106, inciso I, do Código Tributário Nacional, que reza: Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados.

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por encomenda. Não havia, portanto, neste período, Lei (em sentido formal) que admitisse o

enquadramento da atuação da empresa trading na modalidade por conta e ordem de terceiro

apenas pelo fato de, eventualmente, terem recebido adiantamento do encomendante da

mercadoria, procedimento que, todavia, os fiscais aduaneiros acabaram adotando para fins de

tributar, com o IPI - importação, o encomendante do produto.

Sem embargo, a Lei 11.281/06 acabou trazendo, em seu artigo 1347, disposição que

modificou a incidência do IPI nas diferentes modalidades de importação, de maneira que,

atualmente, os estabelecimentos comerciais que adquirem mercadorias estrangeiras por meio

de trading, seja na modalidade de importação por conta e ordem, seja na modalidade por

encomenda, são equiparados a estabelecimentos industriais para efeito de incidência do IPI -

importação.

Destarte, a importação por encomenda é aquela em que a trading atua em seu próprio

nome – mas seguindo as determinações do encomendante no tocante à mercadoria a ser

adquirida no exterior –, realizando todos os procedimentos inerentes ao desembaraço

aduaneiro (como o atendimento dos atos burocráticos, tais como o registro da Declaração de

Importação e a emissão de notas fiscais, promove o fechamento de câmbio com recursos

próprios e efetua o recolhimento dos impostos devidos) a moda de um contrato de comissão.48

Como visto, nessa modalidade, por expressa disposição da Secretaria da Receita Federal (IN

SRF 634 de 2006, já mencionada acima), não é admitido o recebimento antecipado, total ou

parcial, pela trading, de recursos do encomendante. Também por determinação dessa mesma

Instrução Normativa (artigo 3.º), “o importador por encomenda, ao registrar a DI, deverá

informar, em campo próprio, o número da inscrição do encomendante no CNPJ”.

Já as regras da importação por conta e ordem de terceiro, segundo o Ato Declaratório

Interpretativo n. º 7, de 13 de junho de 2002, da Secretaria da Receita Federal, aplicam-se

“somente às operações em que a pessoa jurídica comercial importadora – empresa comercial

importadora – atue apenas como prestadora de serviços”. Além disso, a trading não pode:

a) figurar como adquirente no contrato de câmbio;

b) figurar como adquirente na fatura comercial internacional (invoice);

c) emitir nota fiscal de entrada ou de saída a título de compra e venda;

47 Art. 13. Equiparam-se a estabelecimento industrial os estabelecimentos, atacadistas ou varejistas, que adquirirem produtos de procedência estrangeira, importados por encomenda ou por sua conta e ordem, por intermédio de pessoa jurídica importadora. 48 Vide, a respeito do contrato de comissão no ordenamento jurídico brasileiro, o que dispõem os artigos 693 e seguintes, do Código Civil.

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d) contabilizar a entrada ou a saída da mercadoria importada como compra e venda.

Se constatada a ocorrência de qualquer uma dessas quatro situações – não estando preenchido

também, por óbvio, nenhum dos requisitos próprios da importação por encomenda, como,

v.g., o adiantamento de valores pelo adquirente à trading – a operação não será considerada

por conta e ordem de terceiro.

Por derradeiro, resta observar que em razão da disposição do artigo 13 da Lei

11.281/06 (já analisado anteriormente), atualmente, a vantagem de escolha entre uma ou outra

modalidade pelo empresário que deseja importar determinada mercadoria, afora a questão da

incidência das contribuições para o PIS/Pasep e Cofins já examinada e que diz respeito, mais

propriamente, às tradings, restringe-se à opção que mais se enquadra nos propósitos inerentes

ao negócio específico em questão.

Problema específico relativo ao objeto de estudo aqui proposto – a responsabilidade

criminal decorrente das irregularidades verificadas nas operações de comércio exterior – diz

respeito à suspeita, cada vez mais freqüente, da utilização fraudulenta de tradings, ou

empresas que se apresentam perante a Receita Federal nessa condição, apenas com o intuito

de ocultar o real adquirente das mercadorias importadas. Vários seriam os objetivos a serem

atingidos com esse procedimento. Esse problema será abordado no tópico seguinte, no seu

aspecto legal e infralegal aduaneiro.

2.5 A FIGURA DA INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA DE TERCEIROS NAS

OPERAÇÕES DE COMÉRCIO EXTERIOR (OCULTAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO OU

DO EFETIVO ADQUIRENTE DAS MERCADORIAS IMPORTADAS)

Talvez o expediente que atualmente mais mereça a atenção da comunidade jurídica

que se dedica ao estudo do Direito aduaneiro – com amplo e direto reflexo na seara criminal –

seja aquele conhecido como interposição fraudulenta de terceiros, também denominado

ocultação do sujeito passivo ou, ainda, ocultação do real vendedor ou adquirente das

mercadorias que são objeto da negociação comercial internacional.

Essas designações alternativas da chamada interposição fraudulenta bem demonstram

o objetivo imediato dos personagens nela envolvidos, qual seja o de manter, por intermédio da

utilização de pessoas jurídicas fictícias, o efetivo exportador ou o verdadeiro destinatário da

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mercadoria estrangeira – e por vezes, em situações mais complexas, ambos – alheios ao

controle realizado pelos agentes fiscais durante as fases da transação internacional e, com

isso, possibilitar, nomeadamente, a obtenção de vantagens irregulares relativas à supressão de

tributos incidentes sobre a operação e aos meios de pagamento do preço estipulado.

A Receita Federal do Brasil procura conceituar a interposição fraudulenta como sendo

um conjunto de operações simuladas de comércio exterior, por meio do qual:

(...) busca-se ocultar os verdadeiros exportadores e importadores, de forma a reduzir, fraudulentamente, o pagamento de tributos aplicados sobre o comércio exterior e de tributos internos. Tais práticas, que não se constituem numa estratégia comercial, nem tampouco numa modalidade de planejamento tributário, são conhecidas como OCULTAÇÃO DO SUJEITO PASSIVO ou do REAL ADQUIRENTE, também denominada INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA, que apesar da aparência normal de legalidade, trata-se de um esquema de simulação de operações comerciais com a finalidade de beneficiar, tanto o real importador das mercadorias, quanto o encomendante das mesmas.49

Portanto, o objetivo da norma instituidora da interposição fraudulenta e demais

disposições a ela pertinentes – a serem vistas a seguir – é viabilizar o adequado e completo

controle das autoridades aduaneiras sobre as pessoas que tomam parte em determinada

operação de comércio exterior, durante todas as suas fases. Esse controle diz respeito,

principalmente, à regularidade na determinação do Valor Aduaneiro da mercadoria (sobre o

Valor Aduaneiro, vide item 3.2, Capítulo 3 deste trabalho), ao efetivo e integral recolhimento

dos tributos devidos (vide Capítulo 3 em sua integralidade), à idoneidade dos recursos

aplicados pelos contratantes e ao destino desses recursos no momento do pagamento do preço

do produto importado, que deve ser feito pelo modo oficial, isto é, com o devido fechamento

do contrato de câmbio, sujeito à fiscalização do Banco Central do Brasil (a respeito, vide

Capítulo 4, itens 4.5.1.1 e 4.5.1.2).

Por outro lado, o ardil empregado é destinado a fazer recair as exigências fiscais e

aduaneiras sobre pessoas jurídicas diversas das que efetivamente possuem a responsabilidade

pelas operações comerciais, que assumem as obrigações decorrentes da compra e venda

internacional. Geralmente, essas empresas, ostensivas, estão instaladas em sedes

incompatíveis com o volume e o valor das negociações efetuadas e os seus sócios, muitas

vezes, sequer têm conhecimento que fazem parte dos contratos sociais respectivos. Em outras

ocasiões, por não terem condições econômicas suficientes para, com seu patrimônio, fazer

49 Esta conceituação faz parte de um anexo explicativo do modus operandi das empresas envolvidas na denominada Operação Persona, desencadeada pela Polícia Federal em conjunto com a Receita Federal do Brasil em 16 de outubro de 2008, e disponível em http://www.conjur.com.br/pdf/opersona1.pdf, acesso em 15\12\2008, às 17h10min.

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frente às dívidas fiscais decorrentes dos tributos sonegados nas operações – o que convém aos

reais responsáveis pela transação comercial –, cedem seus nomes, voluntariamente, para

figurarem nos atos constitutivos de tais sociedades ostensivas, em troca de qualquer espécie

de vantagem econômica.

Evidentemente, como se vê, o propósito fiscalizador é nobre e plenamente justificado,

pois a ninguém é dado criar artifícios para manter-se fora do controle administrativo que recai

sobre a profissão livremente escolhida, como já visto na parte introdutória deste estudo

(Capítulo 1, item 1.2). Todavia, a regulamentação das hipóteses em que se considera haver

fraude mediante a utilização de interpostas pessoas nas operações de comércio exterior é

extremamente intrincada, confusa e polêmica, muitas vezes tangenciando o limite

estabelecido pela Constituição Federal ao poder de polícia da Administração e prejudicando, a

pretexto de combater desvios de natureza fiscal, aduaneira e penal, o desenvolvimento das

atividades de empresas que se dedicam ao comércio internacional regular.

Com efeito, a interposição fraudulenta é figura instituída e regulada pela Medida

Provisória 66, de 29 de agosto de 2002, posteriormente convertida na Lei 10.637/2002, que

por meio do seu artigo 59 alterou o artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/76, dispositivo definidor

das infrações aduaneiras caracterizadoras de dano ao Erário, incluindo mais um inciso (inciso

V) e quatro novos parágrafos. Na parte que interessa, após a alteração legislativa em questão,

assim restou redigido o normativo em referência:

Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias: (...) V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros. § 1o O dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias. § 2o Presume-se interposição fraudulenta na operação de comércio exterior a não-comprovação da origem, disponibilidade e transferência dos recursos empregados. § 3o A pena prevista no § 1o converte-se em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria que não seja localizada ou que tenha sido consumida. § 4o O disposto no § 3o não impede a apreensão da mercadoria nos casos previstos no inciso I ou quando for proibida sua importação, consumo ou circulação no território nacional.50

Da simples leitura do artigo acima transcrito depreende-se que não existe uma

conceituação legal do que seja a interposição fraudulenta. A Lei limita-se a afirmar, no inciso

V deste artigo 23, que a ocultação do sujeito passivo da relação tributária advinda de uma 50 Todas estas disposições foram repetidas pelo artigo 618 – incisos e parágrafos – do Regulamento Aduaneiro (Decreto 4.543/2002), com a redação conferida pelo Decreto 4.765/2003.

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transação comercial internacional, ou do real vendedor ou comprador da mercadoria objeto

desta transação ou, ainda, do responsável por ela, por meio de fraude ou simulação e inclusive

por intermédio de interposição fraudulenta de terceiros, é infração considerada dano ao

Erário. E, nesta condição, de acordo com o supracitado § 1.º e para todas as infrações

definidas como dano ao Erário nos incisos do artigo 23, está prevista a pena de perdimento

das mercadorias importadas ou, alternativamente, a conversão em pena de multa no caso de

não localização ou consumo da mercadoria (§ 3.º).

Cumpre relembrar, brevemente, alguns aspectos conceituais básicos relativos à figura

do sujeito passivo da obrigação tributária, em razão da menção expressa a ela existente no

dispositivo acima transcrito e, notadamente, porque a interposição fraudulenta visa justamente

a sua ocultação e conseqüente afastamento do controle administrativo exercido pelos agentes

fiscais. Na lição de Carvalho (1996, p. 208), “sujeito passivo da relação jurídico-tributária é a

pessoa – sujeito de direitos – física ou jurídica, privada ou pública, de quem se exige o

cumprimento da prestação”, que pode ser pecuniária no caso da obrigação tributária principal,

ou caracterizar deveres instrumentais, se se tratar da denominada obrigação tributária

acessória, nos termos do artigo 113 e parágrafos do Código Tributário Nacional.51 São

diversos os tributos incidentes sobre o comércio exterior, de maneira que são variadas,

também, as relações jurídicas tributárias passíveis de verificação nesse âmbito. Este tema será

objeto de estudo no capítulo imediatamente seguinte.

Ademais, frise-se que de acordo com o disposto, respectivamente, nos incisos I e II, do

artigo 121, do Código Tributário Nacional, o sujeito passivo denomina-se contribuinte,

“quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador” ou

responsável, “quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua disposição decorra de

disposição expressa em lei”.

De outro canto, o § 2.º do artigo 23 estabelece a presunção de ocorrência de

interposição fraudulenta de terceiros quando não for comprovada a origem, a disponibilidade

e a transferência dos recursos empregados na transação. Esse específico dispositivo possui

clara e estreita ligação com os objetivos da Lei que combate a "lavagem" ou ocultação de

bens, direitos e valores (Lei 9.613/98). Ainda a este propósito, exercendo a atribuição 51 Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

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constitucional de fiscalizar e controlar o comércio exterior, a Secretaria da Receita Federal –

órgão vinculado ao Ministério da Fazenda – editou a Instrução Normativa 228, de 21 de

outubro de 2002, que dispõe sobre procedimento especial de verificação da origem dos

recursos aplicados em operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta

de pessoas. Essa particular Instrução Normativa – complementada por outros Diplomas

regulamentares veiculados pela Secretaria da Receita Federal, como as Instruções Normativas

225 e 229 – contém normas que têm sido extremamente criticadas por prejudicarem o regular

desenvolvimento das atividades das empresas que se dedicam ao comércio internacional.

Nessa sede, cabe sinalizar, ainda, e a modo de conclusão, que a infração prevista no

caso de constatação da interposição fraudulenta de pessoas nas operações de comércio

exterior, consoante prescrição do § 1.º do dispositivo analisado, caracteriza dano ao Erário,

estando sujeita à aplicação da pena de perdimento da mercadoria importada.

A esse propósito, Tôrres (2008, p. 230) lembra, com acerto, que o Decreto-Lei

1.455/76 – que prevê originariamente a possibilidade da decretação da pena de perdimento

nas hipóteses descritas em seus incisos – foi editado sob a égide da Constituição Federal de

1967, a qual estipulava, em seu artigo 150, § 1152, que lei superveniente deveria dispor acerca

do “perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no

exercício de função pública”. Como se percebe, essa disposição constitucional não submetia a

aplicação da pena de perdimento à instauração prévia de processo administrativo capaz de

oportunizar, ao argüido, o legítimo exercício da ampla defesa.

Hoje, contudo, não há dúvida de que o dispositivo em referência deve ser interpretado

à luz da Constituição de 1988. A atual Carta Política ainda prevê a pena de perda de bens em

seu artigo 5.º, inciso XLVI53. Todavia, o seu mesmo artigo 5.º, inciso LV, reza: “aos

litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o

contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Faz-se necessário,

52 Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: (...) § 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, nem de banimento. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação penal aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento no exercício de função pública. 53 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: (...) b) perda de bens; (...).

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portanto, interpretar o dispositivo legal em comento conforme a Constituição, método

interpretativo que, segundo Barroso (2009, p. 301):

(...) permite que o intérprete, sobretudo o tribunal constitucional, preserve a validade de uma lei que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional. Nessa hipótese, o tribunal, simultaneamente, infirma uma das interpretações possíveis, declarando-a inconstitucional, e afirma outra, que compatibiliza a norma com a Constituição. Trata-se de uma atuação ‘corretiva’, que importa na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.

Assim, é apenas pela aplicação do método de interpretação de acordo com a

Constituição que se pode atestar a recepção, pela Carta Política de 1988, da prescrição do

artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/76, admitindo a possibilidade de ser decretada a pena de

perdimento da mercadoria em caso de constatação de interposição fraudulenta, pela própria

autoridade administrativa, mas sem olvidar da necessidade de instauração de procedimento

administrativo prévio, com os instrumentos e recursos a ele inerentes.54 Este também é o

pensamento de Ferreira (2004, p. 182), cuja opinião é no sentido de que “o perdimento por

dano ao erário não atenta contra a garantia do devido processo legal, sendo, portanto,

constitucional”.

Em sentido contrário, entendendo que a inexistência, na Constituição de 1988, de

expressa previsão admitindo o perdimento de bens para ressarcimento de dano ao Erário

afirma a inconstitucionalidade do dispositivo em comento, Lima (1991, p. 174), para quem “o

perdimento de bens como ressarcimento de dano causado ao erário somente seria possível

com relação ao acusado da prática de crime de apropriação indébita, compulsão, corrupção

passiva, sonegação fiscal, depósito infiel, ou dos crimes de contrabando ou descaminho” e,

em todas estas circunstâncias, apenas “após o trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Sem embargo dessa discussão, importa salientar que no âmbito das medidas

assecuratórias existe previsão legal expressa para retenção da mercadoria importada nos casos

de suspeita de irregularidade passível de pena de perdimento, a teor do artigo 68, da Medida

Provisória 2.158-35/2001, segundo o qual “quando houver indícios de infração punível com a

pena de perdimento, a mercadoria importada será retida pela Secretaria da Receita Federal, até

que seja concluído o correspondente procedimento de fiscalização”.

54 Nesta matéria, a única exceção constitucional à inadmissibilidade de aplicação automática da pena de perdimento de bens vem prevista no parágrafo único do artigo 243, que reza: “Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias”.

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3 NOTAS SOBRE A TRIBUTAÇÃO NO COMÉRCIO EXTERIOR

3.1 GENERALIDADES

Depois da preliminar análise acerca de alguns aspectos do Direito aduaneiro – aqueles

que se reputam mais relevantes e que guardam relação mais estreita com o objetivo desta

pesquisa – faz-se necessário tecer breves considerações, de ordem genérica e com o mesmo

desiderato que pautou a abordagem anterior sobre o Direito aduaneiro, a respeito da tributação

no comércio exterior, justamente porque a eventual supressão no recolhimento das exigências

fiscais incidentes nas operações de importação e de exportação acarretará, ao lado das

conseqüências de natureza administrativa, o surgimento da responsabilidade criminal

respectiva.

Pois bem. Como acertadamente pondera Folloni (2005, p. 18), a tributação sobre o

comércio exterior é o “ponto de intersecção entre o direito constitucional, o direito tributário,

o direito administrativo, o direito aduaneiro e o direito internacional”. Por essa exata razão,

propôs-se a analisar tão-somente alguns aspectos relacionados ao Direito tributário,

assoalhando adequadamente o caminho para a abordagem específica de cada um dos tributos

que incidem nas importações e exportações. Do contrário, nos perderíamos em temas próprios

de outros campos jurídicos que, isoladamente, proporcionariam trabalhos específicos.

A Constituição Federal estabelece, no seu artigo 22, inciso VIII, que a competência

para legislar a respeito do comércio exterior é privativa da União. Como anota Carvalho

(1996, p. 145-146), a competência legislativa é a “aptidão de que são dotadas as pessoas

políticas para expedir regras jurídicas, inovando o ordenamento jurídico positivo”, sendo que

a competência tributária nada mais é, pois, que uma porção desta prerrogativa outorgada aos

entes federativos no tocante à produção de “normas jurídicas sobre tributos”. No mesmo

sentido, aponta Roque Antônio Carraza (1996, p. 266), para quem a competência tributária “é

a aptidão para criar, in abstracto, tributos”.

Ressalte-se, ainda com Carraza, que por conta das inúmeras garantias previstas na

Constituição não se pode falar, no Brasil, de “poder tributário (incontrastável, absoluto), mas,

tão somente, em competência tributária (regrada, disciplinada pelo Direito)”. A referência é

oportuna para recordar que, também e principalmente no concernente à disciplina tributária

sobre o comércio exterior, em que as contingências econômicas internas e externas são

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extremamente relevantes na orientação da Política Fiscal do Estado – a qual, portanto,

costuma variar ao sabor dos ventos55 –, os contribuintes detêm, a seu favor, uma série de

direitos e garantias oponíveis contra o próprio Estado e que devem ser por ele respeitadas.

Não é demais lembrar a importância desses instrumentos de defesa do contribuinte ante a sua

posição reconhecidamente desigual relativamente ao Fisco, circunstância sabiamente ilustrada

nas palavras de Barreto (2005, p. 10):

Avultam em iniqüidade e deformidade os odiosos privilégios do Fisco. Estranha coisa que, dos tempos coloniais aos imperiais, dos imperiais aos republicanos, atravessando os três regímens, guardasse, até hoje, nas unhas, o mesmo ‘visco’ de que se queixava o povo, há dois séculos e meio, quando se escreveu, em Portugal, ‘A Arte de Furtar’. Nasceram elas, logicamente, do absolutismo romano, Coerentemente, preservaram-se debaixo da coroa portuguesa, quando o patrimônio nacional se confundia com o de El-Rei, por isso chamado de ‘A Minha Real Fazenda’. E, no presente, sob o domínio de uma Constituição que pretenda acabar com a justiça privilegiada para os feitos da Fazenda, submetendo-a aos tribunais ordinários da União, mantêm-se os ranços dos privilégios espúrios e inconcebíveis, em antagonismo flagrante, descomunal, indecoroso com o desideratum das nossas instituições e com o inescusável equilíbrio das partes.

Essa desigualdade possui contornos históricos muito bem definidos. Beccaria (2005, p.

76-77) já anotava que em épocas passadas as penas por delitos cometidos costumavam recair

sobre o patrimônio dos delinqüentes, resultando em um conflito de natureza eminentemente

privada, em que o juiz era o patrono do Fisco. Em suas palavras:

O juiz torna-se inimigo do réu, desse homem acorrentado, à mercê dos tormentos, da desolação, e do mais terrível porvir; não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiro o delito, e o insidia, e se considera perdedor se não consegue, e crê estar falhando naquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas. Os indícios para a captura estão em poder do juiz; para que alguém seja provado inocente deve antes ser considerado culpado.

Rui Barbosa (1950, p. 695-696) também alertou para essa situação em sua celebrada

Oração aos Moços, discurso proferido aos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo,

em 29 de março de 1921, oportunidade em que deixou assentado:

55 Werneck (2002, p. 89) lembra que o importador deve estar atento a estas variantes, pois ao verificar a alternativa de ofertas no exterior é de suma importância atentar, primeiro, para a classificação fiscal da mercadoria desejada para, logo em seguida, obter a alíquota respectiva do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados incidentes sobre ela, o que se torna tarefa inglória, pois o “Poder Executivo pode alterar a qualquer momento estas alíquotas” e “as alíquotas a serem consideradas serão aquelas vigentes na data do registro da Declaração de Importação, ou seja, o valor calculado no momento em que o interessado está decidindo se realiza ou não a importação, ou mesmo aquelas vigentes no momento em que o negócio é fechado, podem variar, sem aviso prévio, para mais ou para menos”.

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Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Govêrno, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de ‘ fazendeiros’. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Govêrno, ou ao Estado. Antes, se admissível fôsse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveis, rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de tais atentados os que os pagam), acumulam, contínuamente, sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades. No Brasil, durante o Império, os liberais tinham por artigo do seu programa cercear privilégios, já espantosos, da Fazenda Nacional. Pasmoso é que êles, sob a República se cem-dobrem ainda, até, a Constituição, em pontos de alto melindre, para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa, e que ainda haja quem, sôbre tôdas essas conquistas, lhe queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência judiciária, no fôro íntimo de cada magistrado.

No campo do comércio exterior o assunto ganha ainda mais relevância, tendo em vista

que grande parte dos tributos incidentes sobre as operações de importação e exportação de

mercadorias – mais especificamente o Imposto de Importação, de Exportação, o Imposto

sobre Produtos Industrializados e o Imposto sobre Operações Financeiras – possui a

característica da extrafiscalidade.

Consoante lição de Machado (1995, p.47), o tributo é extrafiscal quando a sua função

é a “interferência no domínio econômico”, de modo que, pelo seu emprego, busca-se “um

efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros”. Para atingir tal desiderato, as

alíquotas desses impostos podem ser alteradas por simples ato do Poder Executivo, de

maneira que tais espécies tributárias excepcionam a regra da anterioridade tributária e, apenas

aparentemente, também o princípio da legalidade. Nesta oportunidade e a respeito da questão,

vale citar, por todos, Vieira (1993, p. 130), que analisando magistralmente a regra-matriz de

incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados, sustentado pelo magistério de Carraza,

afirma que a faculdade constitucional de alteração de alíquotas dos impostos extrafiscais pelo

Poder Executivo conduz à conclusão de que tais espécies tributárias constituem exceção ao

Princípio da Anterioridade (art.150, III, B e § 1.º, CF/88). No entender de Machado (1995, p.

27), o princípio da anterioridade determina que “nenhum tributo será cobrado, em cada

exercício financeiro, sem que a lei que o instituiu ou aumentou tenha sido publicada”.

Portanto, para esses tributos extrafiscais, nos quais a alteração da alíquota é promovida por

ato do Poder Executivo e não por lei em sentido formal, não vigora a regra da anterioridade56,

56 A respeito do polêmico e interessante debate sobre a nomenclatura a ser utilizada, se princípio ou regra da anterioridade tributária, gostaríamos de deixar registrado, em consonância com a opinião externada por Ferraz (2003, p. 389-401) – ao apoiar-se na sempre abalizada doutrina de Humberto Ávilla e Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da distinção entre princípios e regras –, que não constitui princípio aquilo que puder ser

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de modo que estes podem ser exigidos no próprio exercício financeiro em que tais alíquotas

foram alteradas.

De outro canto, não há, aqui, verdadeira exceção ao princípio da legalidade, pois,

segundo Vieira (1993, p. 129):

(...) a licença do Código Máximo para que o executivo promova alterações nas alíquotas do IPI não é ampla e irrestrita, mas subordinada às demarcações que a lei impuser, com todo o desvelo que pressupõe o alto encargo da representação popular, tarefa da Casa de Leis Federal. E vem bem a tempo a alusão ao mandato do povo, porque nos enseja afirmar a exclusividade da lei ordinária para fixação das condições e limites em que o executivo pode fazer uso desta faculdade.

Destarte, a autorização constitucional para que as alíquotas dos impostos extrafiscais

possam ser alteradas por ato do Poder Executivo representa, apenas, exceção aparente ao

Princípio da Legalidade tributária.

3.2 APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A VALORAÇÃO ADUANEIRA – A BASE DE

CÁLCULO DOS IMPOSTOS ADUANEIROS

Estabelece o artigo 2.º, inciso II, do Decreto-Lei 37/66 (com a redação conferida pelo

Decreto-Lei 2.472/1988), que a base de cálculo do imposto sobre as importações, quando a

alíquota for ad valorem – caso do Brasil, como será visto quando se estudará o imposto de

importação – é o “valor aduaneiro apurado segundo as normas do art. 7.º do Acordo Geral

sobre Tarifas Aduaneiras – Gatt”.57

identificado como circunstancial, de aplicação restrita e sem relevância para a interpretação das demais normas, como é o caso do equivocadamente denominado “princípio” da anterioridade, que caracteriza, na verdade, apenas uma regra tendente a garantir a segurança jurídica, essa sim, verdadeiro princípio constitucional. A evidenciar que a anterioridade não configura um efetivo princípio jurídico está, ainda, o elevado número de exceções ao seu comando (circunstancialidade) e o fato de que seu mandamento não é repetido em outros sistemas jurídicos (não-universalidade). Daí decorre a conclusão de que os princípios são mandamentos universais e que não admitem exceções, na medida em que caracterizam uma “idéia força” do sistema jurídico e representam, essencialmente, a percepção de realidades universais, tal qual o princípio da igualdade, corolário da dignidade da pessoa humana. E não é aceitável que uma constatação universal desta natureza admita exceções, da mesma maneira que as virtudes só podem ser concebidas de forma integral, e não parcialmente. Não obstante, sempre lembrando a distinção de ordem técnica acima destacada, advertimos que, quando se fizer necessário durante o desenvolvimento deste trabalho, utilizaremos as duas expressões indiscriminadamente, uma vez que a extensão do tema nos impede de prosseguir com a digressão e, ademais, a denominação princípio da anterioridade já está, entre nós, consagrada. 57 No mesmo sentido o artigo 75 do Regulamento Aduaneiro: Art. 75. A base de cálculo do imposto é (Decreto-lei no 37, de 1966, art. 2o, com a redação dada pelo Decreto-lei no 2.472, de 1o de setembro de 1988, art. 1o, e Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral

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Pois bem. O GATT - Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras (em inglês, General

Agreement on Tariffs and Trade) foi criado em 1947 como parte dos esforços empreendidos

por diversos países, capitaneados pelos Estados Unidos da América, na tentativa de derrubar

barreiras comerciais existentes após a Segunda Guerra Mundial e que, portanto, poderiam

obstar a reconstrução das nações européias atingidas pelo conflito e, conseqüentemente,

refletir negativamente no regular desenvolvimento das relações comerciais em nível mundial.

Tal Acordo, aprovado no Brasil pela Lei 313, de 30 de julho de 1948, pautou as futuras

negociações destinadas a derrubar as tarifas e barreiras comerciais, as quais culminaram, em

1994, com a Rodada Uruguai (Oitava Rodada de Negociações), ocasião em foi assinada a Ata

Final e criada a Organização Mundial do Comércio (OMC). Faz parte integrante desta Ata

Final e do acordo para a criação da OMC o denominado Acordo sobre a Implementação do

Artigo VII do GATT, também conhecido por Acordo de Valoração Aduaneira (AVA), ao qual

o artigo 2.º, inciso II, da Lei Aduaneira – transcrito no parágrafo anterior – faz referência

como sendo a diretriz para a fixação da base de cálculo do Imposto de Importação.

O AVA – que já havia surgido na Sétima Rodada de Negociações do GATT (Tóquio,

1979), mas que posteriormente, em 1994, acabou sendo ligeiramente modificado – foi

aprovado, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n.º 30, de 15 de dezembro de 1994 e, em

seguida, promulgado pelo Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

Encontra-se o conceito de valor aduaneiro na lição de Sosa (1999, p. 20), que fazendo

breve menção ao antecedente histórico para a sua adoção, opina:

Optou-se então, e em nível de comunidade internacional, por um sistema de valoração de mercadorias que pudesse conjugar a realidade dos preços internacionais com a fixação adequada das bases de cálculo tributárias, de tal ordem, que todas as nações signatárias desse Acordo passassem a dispor de uma única metodologia. Para esses efeitos foi estabelecido o conceito de valor aduaneiro, que incorpora o princípio de que o valor de uma mercadoria é função de seu preço de venda, de modo que sua determinação contemple as variáveis que influenciaram a definição do preço da mercadoria para uma venda em condições de livre-concorrência. Dito valor, ajustado por inclusões e exclusões, passa a ser utilizado com a implementação do artigo VII do Acordo geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), como base de cálculo tributária.

sobre Tarifas e Comércio - GATT 1994 - Acordo de Valoração Aduaneira, Artigo 1, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo Decreto no 1.355, de 30 de dezembro de 1994): I - quando a alíquota for ad valorem, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio - GATT 1994; e II - quando a alíquota for específica, a quantidade de mercadoria expressa na unidade de medida estabelecida.

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Destarte, o Acordo para Implementação do artigo VII do GATT estabelece seis

critérios ou métodos que devem ser observados pelos Países signatários na determinação do

valor aduaneiro – e conseqüentemente, entre os brasileiros, da base de cálculo do Imposto de

Importação – da mercadoria objeto da transação comercial internacional. Conforme observa

Meira (2008, p. 126), a utilização de tais métodos deve ser seqüencial, “de modo que,

somente na impossibilidade de se pautar pelos anteriores, deve ser adotado o método

subseqüente”.

O denominado método primeiro é o método por excelência da valoração aduaneira e

consiste exatamente no valor real da mercadoria, ou seja, no “valor realmente pago ou a pagar

pela mercadoria” (SOSA, p. 39) em sentido amplo, o qual deve ser estabelecido em

consonância com o artigo 8.º do Acordo. Coelho (2006, p. 31) esclarece que os ajustes

previstos neste artigo 8.º se referem à necessidade de inclusão, no valor declarado pelo

importador – e desde que, obviamente, já não estejam aí considerados –, do montante

suportado pelo comprador com “comissões e corretagens; custo de embalagem e recipientes;

custo de embalar, compreendendo os gastos com mão-de-obra e com materiais; bens e

serviços como, por exemplo, projetos de engenharia; royalties e direitos de licença”.

É importante notar que este método primeiro, em consonância com os princípios do

AVA 58, busca afastar a possibilidade de arbitramento do valor pelas autoridades aduaneiras, o

que resultaria em uma incidência fiscal de exigência questionável. Portanto, o que se pretende

é tornar o valor aduaneiro o mais fiel possível àquele correspondente às práticas de comércio

internacional daquela determinada mercadoria, sem descuidar do momento em que ocorre a

transação e da condição pessoal dos envolvidos na troca.59

Nesse passo, por guardar relação direta com o surgimento de responsabilidade

administrativa e criminal do importador por indicação de valor considerado “suspeito” pelas

autoridades aduaneiras, faz-se absolutamente necessário referir que, conforme a opinião de

Hilú Neto (2003, p. 179):

Se o desconto por fidelidade é uma prática comum, não há que se questionar esta vantagem auferida por um importador fiel a seu exportador. Da mesma forma, se os juros normalmente praticados no mercado internacional ficam abaixo da média do mercado financeiro nacional, é de formar o valor aduaneiro tomando aqueles por parâmetro, e não os praticados no âmbito deste.

58 O artigo VII, 2, a, do GATT estabelece: “O valor em alfândega das mercadorias importadas deverá se fundar no valor real da mercadoria importada à qual se aplica o direito ou de uma mercadoria similar, e não deverá se fundar no valor de produtos de origem nacional ou valores arbitrários ou fictícios”. 59 Neste sentido, Hilú Neto (2003, p. 176), para quem: “Determina-se o valor de uma coisa, portanto, levando em consideração as pessoas envolvidas na transação, as determinantes de quantidade, tempo e espaço e, em relação às operações internacionais de troca, as práticas comuns do mercado internacional”.

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Via de conseqüência, em princípio, deve-se considerar o valor declarado pelo

importador na Declaração de Importação como sendo o real valor da transação e, destarte, a

base de cálculo para incidência dos impostos aduaneiros60. Essa presunção só pode ser

afastada mediante prova em contrário produzida pela administração, “a qual dispõe de

informações suficientes para determinar a acuidade ou não do valor aí consignado” (HILÚ

NETO, 2003, p. 184).

Segundo o AVA, a autoridade aduaneira poderá desconsiderar o valor aduaneiro

declarado pelo importador e, conseqüentemente, adotar um dos cinco métodos substitutivos

para sua fixação, quando presentes os requisitos previstos nos artigos 2.º a 7.º do Acordo para

Implementação do Artigo VII do GATT.61 Da mesma forma, o próprio importador, quando

não tiver informações suficientes para informar o valor aduaneiro em consonância com o

método primeiro, deve, subseqüentemente, adotar os métodos seguintes (COELHO, 2006, p.

30), sem prejuízo de solicitar, às autoridades aduaneiras, as informações necessárias para que

assim possa proceder.

Ainda a esse propósito, baseado na abertura conferida pelo artigo 17 do Acordo para

Implementação do Artigo VII do GATT62, O Regulamento Aduaneiro (Decreto 4.543/2002)

estabelece, ainda, em seu artigo 82, que:

Art. 82. A autoridade aduaneira poderá decidir, com base em parecer fundamentado, pela impossibilidade da aplicação do método do valor de transação quando (Acordo de Valoração Aduaneira, Artigo 17, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 1994, e promulgado pelo Decreto no 1.355, de 1994): I - houver motivos para duvidar da veracidade ou exatidão dos dados ou documentos apresentados como prova de uma declaração de valor; e II - as explicações, documentos ou provas complementares apresentados pelo importador, para justificar o valor declarado, não forem suficientes para esclarecer a dúvida existente. Parágrafo único. Nos casos previstos no caput, a autoridade aduaneira poderá solicitar informações à administração aduaneira do país exportador, inclusive o fornecimento do valor declarado na exportação da mercadoria.

60 Importa frisar que, de acordo com o artigo 77, do Regulamento Aduaneiro, integram o valor aduaneiro, “independentemente do método de valoração utilizado (Acordo de Valoração Aduaneira, Artigo 8, parágrafos 1 e 2, aprovado pelo Decreto Legislativo no 30, de 1994, e promulgado pelo Decreto no 1.355, de 1994): I - o custo de transporte da mercadoria importada até o porto ou o aeroporto alfandegado de descarga ou o ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro; II - os gastos relativos à carga, à descarga e ao manuseio, associados ao transporte da mercadoria importada, até a chegada aos locais referidos no inciso I; e III - o custo do seguro da mercadoria durante as operações referidas nos incisos I e II. 61 Sucintamente, de acordo com a denominação proposta por Meira (2008, p.127), os métodos substitutivos são: método do valor de transação de produtos idênticos ao importado; método de transação de produtos similares; método dedutivo; método computado; método dos critérios razoáveis ou método residual. 62 Art. 17. Nenhuma das disposições do presente Acordo poderá ser interpretada como restringindo ou contestando o direito de uma administração aduaneira de se assegurar da veracidade ou da exactidão de qualquer afirmação, documento ou declaração apresentados para efeitos de determinação do valor aduaneiro.

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Portanto, como se constata, a disposição do artigo 17 do AVA permitiu a elaboração

de um dispositivo que, a toda evidência, confere maior amplitude para a atuação da

administração no tocante à desconsideração do valor aduaneiro declarado pelo importador. A

autorização para que a autoridade desconsidere o método primeiro quando “houver motivos

para duvidar da veracidade ou exatidão dos dados ou documentos apresentados como prova

de uma declaração de valor” ou, ainda, quando as explicações e os documentos apresentados

pelo importador “não forem suficientes para esclarecer a dúvida existente”, deixa, sob o ponto

de vista da segurança jurídica, uma larga e indesejada margem de atuação subjetiva a cargo da

autoridade aduaneira.

Prosseguindo na tentativa de combate a eventuais fraudes relativas à informação do

Valor Aduaneiro, o Regulamento Aduaneiro prevê, em seu artigo 86 e parágrafo único, o

seguinte:

Art. 86. A base de cálculo dos tributos e demais direitos incidentes será determinada mediante arbitramento do preço da mercadoria nas seguintes hipóteses: I - fraude, sonegação ou conluio, quando não for possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação (Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 88, caput); e II - descumprimento de obrigação referida no caput do art. 18, se relativo aos documentos obrigatórios de instrução das declarações aduaneiras, quando existir dúvida sobre o preço efetivamente praticado (Lei no 10.833, de 2003, art. 70, inciso II, alínea “a”). Parágrafo único. O arbitramento de que trata o caput será realizado com base em um dos seguintes critérios, observada a ordem seqüencial (Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 88, caput; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 70, inciso II, alínea “a”): I - preço de exportação para o País, de mercadoria idêntica ou similar; ou II - preço no mercado internacional, apurado: a) em cotação de bolsa de mercadoria ou em publicação especializada; b) mediante método substitutivo ao do valor de transação, observado ainda o princípio da razoabilidade; ou c) mediante laudo expedido por entidade ou técnico especializado.

Por derradeiro, é de se fazer referência expressa a motivo especial de afastamento do

método pelo valor da transação – o método primeiro – para apuração do valor aduaneiro, em

virtude de sua presumida eficácia na manipulação do valor declarado e, portanto, na

adulteração da base de cálculo dos impostos aduaneiros: trata-se da hipótese de existência de

vinculação entre o importador e o exportador.63 Consoante observa Folloni (2005, p. 89), a

63 O artigo 15, n.° 4, do Acordo para Implementação do Artigo VII do GATT estabelece: “Para efeitos do presente Acordo, as pessoas só serão consideradas coligadas: a) Se uma fizer parte da direção ou do conselho de administração da empresa da outra e reciprocamente; b) Se tiverem juridicamente a qualidade de sócios; c) Se uma for o empregador da outra;

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vinculação entre o importador e o exportador poderia indicar a possibilidade de

subfaturamento do preço da mercadoria envolvida na transação, exceto quando demonstrado

que apesar desta vinculação – cuja existência, advirta-se, não é proibida pelo ordenamento

jurídico – não houve qualquer modificação do valor aduaneiro declarado pelo importador. O

artigo 87, da Medida Provisória 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, estabelece que:

Presume-se a vinculação entre as partes na transação comercial quando, em razão de legislação do país do vendedor ou da prática de artifício tendente a ocultar informações, não for possível: I - conhecer ou confirmar a composição societária do vendedor, de seus responsáveis ou dirigentes; ou II - verificar a existência de fato do vendedor.

Por seu turno, o próprio AVA, no artigo 1.º, n. º 2, item b64, expressamente prevê que

a constatação de vínculo entre o importador e o exportador não é suficiente, por si só, para

desconsiderar o valor da transação declarado por aquele. Por essa razão, a autoridade

aduaneira deve ser muito cuidadosa na avaliação da situação concreta, e adotar métodos

substitutivos para valoração aduaneira apenas em casos extremos, em que os indícios de

manipulação de preços sejam muito claros e efetivos.

d) Se uma possuir, controlar ou detiver direta ou indiretamente 5% ou mais das ações ou títulos emitidos com direito a voto em ambas; e) Se uma delas controlar a outra direta ou indiretamente; f) Se ambas forem direta ou indiretamente controladas por uma terceira pessoa; g) Se, em conjunto, controlarem direta ou indiretamente uma terceira pessoa; ou h) Se forem membros da mesma família”. 64 “Para determinar se o valor transacional é aceitável para efeitos de aplicação do n.º 1, o fato de o comprador e o vendedor estarem coligados na acepção do artigo 15.º não constitui, em si mesmo, motivo suficiente para considerar o valor transacional inaceitável. Em tal caso, serão examinadas as circunstâncias próprias da venda e o valor transacional será aceite desde que essa coligação não tenha influenciado o preço. Se, tendo em conta informações fornecidas pelo importador ou obtidas de outras fontes, a administração aduaneira tiver motivos para considerar que a relação de coligação influenciou o preço, comunicará os seus motivos ao importador e dar-lhe-á uma possibilidade razoável de responder. Se o importador assim o solicitar, os motivos ser-lhe-ão comunicados por escrito”.

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3.3 ASPECTOS RELEVANTES DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS INCIDENTES NO

COMÉRCIO EXTERIOR

No que pertine às espécies tributárias de interesse ao objeto de estudo, o artigo 153 da

Carta Magna dispõe que compete à União instituir impostos sobre: importação de produtos

estrangeiros (inciso I) e exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados

(inciso II). Essas duas espécies tributárias são comumente denominadas impostos aduaneiros.

O mesmo dispositivo constitucional também confere à União a competência para instituir

outros dois impostos incidentes sobre as operações de comércio exterior: o imposto sobre

produtos industrializados (inciso IV) e o imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro,

ou relativas a títulos ou valores mobiliários (inciso V). É igualmente de competência da União

Federal, por força do que dispõe o artigo 145, inciso II, a instituição de taxas em razão do

exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos

específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição. No âmbito das

atividades de comércio internacional, exercitando essa específica competência tributária, a

União criou a Taxa de Utilização do Sistema Integrado de Comércio Exterior (SISCOMEX) e

a Taxa de Utilização do Sistema Eletrônico de Controle de Arrecadação do Adicional ao Frete

para a Renovação da Marinha Mercante. Finalizando os tributos de competência federal

ligados às operações de comércio internacional, o artigo 149 da Constituição estipula a

competência exclusiva da União para instituir contribuições sociais, de intervenção no

domínio econômico, as quais, de acordo com o § 2.º, inciso II, deste mesmo dispositivo,

incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços. Seguindo essa

diretriz constitucional, foram instituídos a Contribuição de Intervenção no Domínio

Econômico Incidente sobre a Importação e a Comercialização de Petróleo e seus Derivados,

Gás Natural e seus Derivados, e Álcool Etílico Combustível (denominado simplesmente

CIDE) e o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante, bem assim estendidos à

importação a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do

Patrimônio do Servidor Público (PIS-Pasep) e a Contribuição Social para o Financiamento da

Seguridade Social (Cofins). Por fim, cumpre salientar que o Imposto sobre Circulação de

Mercadorias e Serviços é a única espécie tributária incidente sobre as operações de comércio

exterior que não é de competência da União. De acordo com o artigo 155, inciso II, a sua

instituição compete aos Estados e ao Distrito Federal.

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A seguir, tratar-se-á, de forma breve, dos elementos mais importantes de cada uma

dessas espécies tributárias, com maior ênfase nos impostos de característica extrafiscal (II, IE,

IPI e IOC), sempre lembrando que essa abordagem se justifica, notadamente, porque a

supressão no recolhimento de quaisquer desses tributos ensejará a respectiva responsabilidade

por crime contra a Ordem Tributária (Lei 8.137/90) ou, ainda, por descaminho (art. 334 do

Código Penal), de maneira que se faz necessário conhecer as características essenciais desses

tributos para corretamente subsumir a conduta do agente à norma penal respectiva. Para tanto,

no intuito de dissecar a norma tributária em sentido estrito – aquela que define a incidência

fiscal –, utilizar-se-á a regra-matriz de incidência tributária, de acordo com a qual, na lição de

Carvalho (1996, p. 158):

(...) a hipótese trará a previsão de um fato (se alguém industrializar produtos), enquanto a conseqüência prescreverá a relação jurídica (obrigação tributária) que vai instaurar, onde e quando acontecer o evento cogitado no suposto (aquele alguém deverá pagar à fazenda Federal 10% do valor do valor do produto industrializado).

Faz-se mister esclarecer, da mesma forma e pelos mesmos motivos, quando analisadas

as questões aduaneiras relativas às modalidades de importação (vide Capítulo II, item 4), que

o exame de natureza tributária que se seguirá estará restrito ao Regime Aduaneiro Comum,

não sendo possível analisar o tratamento específico inerente aos Regimes Aduaneiros

Especiais.

3.3.1 Imposto de importação (II)

Juntamente com o Imposto de Exportação, a ser examinado no tópico seguinte, o

Imposto de Importação é típico tributo incidente sobre o comércio exterior. Ambos os tributos

são designados impostos aduaneiros, conforme já destacado no item imediatamente anterior,

oportunidade em que também analisou-se, brevemente, a regulamentação constitucional

relativa às espécies tributárias ligadas à atividade do comércio internacional.

No plano infraconstitucional, a instituição do Imposto de Importação se deu por

intermédio do Decreto-Lei 37/66, a chamada Lei Aduaneira, conforme denominação

empregada por Trevisan (2008, p. 29).

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A hipótese de incidência65 do Imposto de Importação, de acordo com disposição

expressa do artigo 1.º, do Decreto-Lei 37/66 (repetida no artigo 19 do Código Tributário

Nacional), é a entrada de mercadoria estrangeira em território nacional, ou ainda, de

mercadoria nacionalizada que anteriormente haja sido exportada, com as ressalvas contidas no

§ 1.º, do artigo 1.º do mesmo Diploma legal.66 A propósito dessa possibilidade de tributação,

via imposto de importação, de produtos nacionais ou nacionalizados reintroduzidos no país,

Folloni (2005, p. 116) observa que a legislação infraconstitucional suplantou a autorização

concedida pela Carta Magna, porquanto esta, em seu artigo 153, inciso I, confere, à União, a

competência para tributar, apenas, a entrada de produtos estrangeiros em território nacional, e

“produtos nacionais reimportados não são produtos estrangeiros”. A opinião já era defendida

por Vieira (1993, p. 100), para quem a legislação infraconstitucional em comento:

(...) altera o conceito de produto estrangeiro, utilizado expressamente pela Constituição Federal para definir competência tributária, violando a regra do artigo 110 do Código Tributário Nacional; mas sobretudo porque a alteração conceitual alarga o campo de incidência do imposto, violentando a Lei das Leis em inconstitucionalidade flagrante.

De acordo com a lição de Meira (2002, p. 116), entretanto, pode ser tributado o

produto nacional que, no exterior, sofra modificação, transformando-se, assim, em produto

estrangeiro.

Por outro lado, Hilú Neto (2003, p. 80) vaticina que, embora a Lei Aduaneira tenha

utilizado, no caput do seu artigo 1.º, a expressão “mercadoria”, termo que eventualmente

poderia sugerir uma restrição da autorização constitucional para a instituição do Imposto de

Importação e, portanto, uma limitação de sua incidência àqueles bens que se destinassem

exclusivamente ao comércio, é certo que a interpretação sistemática da legislação pertinente

conduz a conclusão diversa. Com efeito, o próprio Decreto-Lei 37/66, em seu artigo 13, prevê

65 Dá-se por superada, aqui, a discussão doutrinária existente a respeito das expressões fato gerador e hipótese de incidência, entendendo, com Geraldo Ataliba (2008, p. 54), que se deve designar por hipótese de incidência o “conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e ‘fato imponível’ ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência”. Não obstante, quando nos referirmos, doravante, ao “fato imponível”, utilizaremos, igualmente, a expressão fato gerador, mantendo coerência com a expressão empregada pelo legislador. 66 Art.1.º - O Imposto sobre a Importação incide sobre mercadoria estrangeira e tem como fato gerador sua entrada no Território Nacional. § 1º - Para fins de incidência do imposto, considerar-se-á também estrangeira a mercadoria nacional ou nacionalizada exportada, que retornar ao País, salvo se: a) enviada em consignação e não vendida no prazo autorizado; b) devolvida por motivo de defeito técnico, para reparo ou substituição; c) por motivo de modificações na sistemática de importação por parte do país importador; d) por motivo de guerra ou calamidade pública; e) por outros fatores alheios à vontade do exportador.

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que a tributação também ocorre sobre bagagens, sempre e quando ultrapassados os limites

estabelecidos em ato editado pelo Ministério da Fazenda. Bagagem é exemplo de bem que

não constitui mercadoria, de modo que “na legislação infraconstitucional, em que se lê

‘mercadorias’, leia-se ‘produtos’”, termo este utilizado pela Constituição Federal no

dispositivo que autoriza a União a instituir o Imposto de Importação (art. 153, I) e que,

destarte, não faz restringir a incidência desta espécie tributária aos bens destinados

exclusivamente ao comércio.67

Viu-se, em capítulo anterior (Capítulo 2, item 2.4.1), que o despacho aduaneiro de

importação é procedimento administrativo que se inicia com o registro da declaração de

importação, pelo particular, no ambiente virtual do SISCOMEX. No caso de mercadoria

importada para consumo68, é exatamente o registro da declaração de importação no

SISCOMEX o momento em que se considera ocorrida a hipótese de incidência descrita na

norma, ou seja, quando se concretiza o fato gerador do imposto de importação. Nesse sentido,

ensina Melo (2003, p. 72), em passagem que remete aos procedimentos práticos necessários

ao pagamento das exigências fiscais respectivas: “o recolhimento dos tributos federais e dos

valores exigidos em decorrência da aplicação dos direitos antidumping, compensatórios ou de

salvaguarda será efetuado no ato do registro da DI, por débito automático em conta-corrente

bancária, por meio de Darf eletrônico”. Sem embargo, pode haver a entrada da mercadoria em

território nacional sem que haja o registro da Declaração de Importação pelo importador,

hipótese em que a obrigação tributária surge com o vencimento do prazo estipulado para

armazenamento do produto. Portanto, de acordo com Folloni (2005, p. 119):

O critério temporal da hipótese de incidência tributária do Imposto de Importação é o momento em que se esgota o prazo de permanência do produto importado no local alfandegado, se não houver, antes disso, o registro de Declaração de Importação. Essa coordenada de tempo vem prescrita no art. 18, parágrafo único da Lei n. 9779, de 19 de janeiro de 1999.69

67 No mesmo sentido, vide: LOPES FILHO, 1984; MEIRA, 2002. 68 Já vimos que nos Regimes Aduaneiros Especiais não há despacho aduaneiro para consumo e, portanto, não existe incidência tributária por ocasião do registro da Declaração de Importação. O critério temporal para incidência tributária nestes regimes é, em regra, consoante anota Folloni (2004, p. 189) “o momento da entrada do produto no território aduaneiro”. De fato, vigora, nestes casos, o mandamento genérico previsto no artigo 1.º do Decreto-Lei 37/66 e no artigo 72 do Regulamento Aduaneiro, segundo os quais: “o fato gerador do imposto de importação é a entrada de mercadoria estrangeira no território aduaneiro”. 69 Art. 18. O importador, antes de aplicada a pena de perdimento da mercadoria na hipótese a que se refere o inciso II do art. 23 do Decreto-Lei no 1.455, de 7 de abril de 1976, poderá iniciar o respectivo despacho aduaneiro, mediante o cumprimento das formalidades exigidas e o pagamento dos tributos incidentes na importação, acrescidos dos juros e da multa de que trata o art. art. 61 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e das despesas decorrentes da permanência da mercadoria em recinto alfandegado. Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo, considera-se ocorrido o fato gerador, e devidos os tributos incidentes na importação, na data do vencimento do prazo de permanência da mercadoria no recinto alfandegado.

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61

No que pertine ao critério espacial da hipótese de incidência do imposto aqui tratado,

Carvalho (1996, p. 174) pondera que: “(...) o acontecimento apenas se produz em pontos

predeterminados, chamados de repartições alfandegárias”. Deve-se, no entanto, harmonizar

esse critério espacial com o critério temporal já examinado (momento do registro, no

ambiente virtual do SISCOMEX, da Declaração de Importação), adaptando-se a regra-matriz

de incidência tributária de modo a fazer com que se admita a aplicação da lei brasileira

extraterritorialmente, para declarações de Importação registradas fora do país, por meio da

internet. Dessa maneira, estarão necessariamente harmonizados, de acordo com exigência

contida na lição de Lacombe (1977, p. 23), os dois critérios da hipótese de incidência do

imposto de importação.

O sujeito ativo da obrigação tributária, aqui, é a União, conforme autorização

constitucional e determinação legal já examinadas. Por seu turno, consoante prescreve o

artigo 31 da Lei Aduaneira, contribuinte do Imposto de Importação é o destinatário da

remessa postal, o adquirente da mercadoria entrepostada e o importador. Esse o critério

pessoal da hipótese de incidência do Imposto sobre as Importações.

Por derradeiro, o critério quantitativo da hipótese de incidência guarda relação com a

base de cálculo e a alíquota do imposto estudado. A base de cálculo é determinada pelo Valor

Aduaneiro da mercadoria, já abordado no item 2 deste Capítulo, ao qual se remete. Por seu

turno, a alíquota do Imposto de Importação, como já se afirmou alhures, é ad valorem, isto é,

uma percentagem a ser aplicada sobre a base de cálculo respectiva, em conformidade com o

artigo 90, do Regulamento Aduaneiro. Vale novamente ressaltar que, tendo em vista o caráter

essencialmente extrafiscal do imposto tratado, essas alíquotas podem sofrer alteração por ato

do Poder Executivo sem observância do princípio da anterioridade tributária.

3.3.2 Imposto de exportação (IE)

O Imposto sobre Exportações está previsto e regulamentado nos artigos 23 a 28 do

Código Tributário Nacional, bem assim, especificamente, no Decreto-Lei 1.578, de 11 de

outubro de 1977 e no Regulamento Aduaneiro, artigos 212 e seguintes. Sua hipótese de

incidência, de acordo com tais dispositivos, é a saída do território nacional, para o estrangeiro,

de produto nacional ou nacionalizado. Sobreleva ressaltar que nacionalizada é aquela

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mercadoria estrangeira que, em conformidade com o disposto no art. 212, § 1.º do

Regulamento Aduaneiro, fora anteriormente importada a título definitivo.

Da mesma maneira que o Imposto de importação, a sua hipótese de incidência, de

acordo com o artigo 213, parágrafo único do Regulamento Aduaneiro, concretiza-se, no

aspecto temporal, com o registro eletrônico da exportação no sistema integrado de comércio

exterior (SISCOMEX). A respeito, dispõe, ainda, o artigo 1.º e § 1.º do Decreto-Lei 1.578/77:

Art.1º - O Imposto sobre a Exportação, para o estrangeiro, de produto nacional ou nacionalizado tem como fato gerador a saída deste do território nacional. § 1º - Considera-se ocorrido o fato gerador no momento da expedição da Guia de Exportação ou documento equivalente.

Entretanto, como observa Faria (2004, p. 62), existem, nas operações de determinados

produtos, dois tipos de registros eletrônicos que antecedem o propriamente dito Registro de

Exportação no SISCOMEX: trata-se do Registro de Venda e do Registro de Crédito. Tal

dicotomia costumava gerar dúvida a respeito da efetiva ocorrência da hipótese de incidência

do tributo em questão, circunstância que, dada a possibilidade de alteração de suas alíquotas

por simples ato do Executivo, acarretava problemas consideráveis para o exportador em caso

de aumento do valor da alíquota após o Registro da Venda, mas antes de efetivado o Registro

do Crédito.

Examinando a questão, o excelso Supremo Tribunal Federal, em voto da ministra

Ellen Gracie, modificou entendimento antes prevalecente – que aceitava apenas o Registro de

Venda como critério temporal da hipótese de incidência do Imposto de Exportação – e decidiu

que não é “qualquer registro no SISCOMEX que corresponde à expedição do documento

equivalente à guia de exportação previsto no § 1.º, in fine, do art. 1.º do Decreto-Lei 1.578/77,

como determinante da ocorrência do fato gerador do tributo”, de modo que “somente o

Registro de Exportação corresponde e se equipara à Guia de Exportação”.70

Os sujeitos da obrigação tributária, aqui, são, de um lado, a União, enquanto ente

político constitucionalmente autorizado a instituir e cobrar o Imposto sobre Importação, e, de

outro, na condição de sujeito passivo, o exportador, entendido este como “qualquer pessoa

que promova a saída do produto do território nacional” (art. 5.º, Decreto-Lei 1.578/77).

O critério quantitativo da hipótese de incidência do Imposto sobre Exportações é

composto – como visto no item anterior quando se tratou sobre o Imposto de Importação –

por sua base de cálculo e por sua alíquota. O artigo 2.º do Decreto-Lei 1.578/77 estabelece

70 STF – 1.ª Turma – RE 223.796-PE – DJU 14.12.2001.

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que a base de cálculo do imposto é o “preço normal que o produto, ou seu similar, alcançaria,

ao tempo da exportação, em uma venda em condições de livre concorrência no mercado

internacional”. Segundo o § 1.º deste artigo 2.º, o valor considerado como preço normal é

aquele conhecido como FOB (Free on Board), em que o exportador se compromete a arcar

com os gastos verificados até o embarque do produto no navio. Conforme Folloni (2005, p.

127), contudo, esse valor nem sempre é de fácil aferição, de modo que são freqüentes as

hipóteses de fraude. Portanto, há critérios legais de determinação do valor, que vêm

estabelecidos no art. 2.º, § 2.º e § 3.º da Lei do Imposto de Exportação.71

Já a alíquota do Imposto de Exportação varia, consoante já restou consignado, de

acordo com a Política econômica do Estado. Todavia, a alíquota base é de 30%, em

consonância com o disposto pelo art. 3.º do Decreto-Lei 1.578/77, não podendo ultrapassar

cinco vezes este valor (parágrafo único do mesmo dispositivo). Não há limite, por outro lado,

para a sua redução, que pode atingir 0%.

De fato, convém relembrar, finalmente, que o Imposto de Exportação possui caráter

eminentemente extrafiscal (conforme visto no item 3.1 deste Capítulo). Ademais, como

adverte Coelho (2006, p. 84), há uma considerável omissão doutrinária no que pertine a

estudos específicos em torno de sua natureza jurídica, nomeadamente porque tal tributo incide

sobre um número muito pequeno de produtos. Com efeito, para Folloni (2005, p. 124),

“atualmente de adota uma política de aumento de exportações e, em razão disso, a tributação

nas exportações e fenômeno raro”. No mesmo sentido, para finalizar o tema, posiciona-se

Gurgel de Faria (2004, p. 60):

Em face da importância do volume de recursos oriundos da remessa de produtos nacionais para o exterior, com a entrada dos dólares tão necessários para honrar os compromissos internacionais, além da geração de empregos em setores vitais, como a indústria e a agricultura, e do aspecto altamente positivo que o superávit da balança comercial acarreta para a economia brasileira, na grande maioria dos produtos a alíquota do IE foi reduzida a zero, de modo a incentivar cada vez mais a exportação.

3.3.3 Imposto sobre produtos industrializados (IPI)

71 § 2o Quando o preço do produto for de difícil apuração ou for susceptível de oscilações bruscas no mercado internacional, o Poder Executivo, mediante ato da CAMEX, fixará critérios específicos ou estabelecerá pauta de valor mínimo, para apuração de base de cálculo. (Redação dada pela Medida Provisória n.º 2.158-35, de 2001) § 3o Para efeito de determinação da base de cálculo do imposto, o preço de venda das mercadorias exportadas não poderá ser inferior ao seu custo de aquisição ou produção, acrescido dos impostos e das contribuições incidentes e de margem de lucro de quinze por cento sobre a soma dos custos, mais impostos e contribuições. (Parágrafo incluído pela Lei n.º 9.716, de 26.11.1998).

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O imposto sobre produtos industrializados está disciplinado nos artigos 46 a 51 do

Código Tributário Nacional e na Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964, bem como no

Decreto 4.544/2002 (Regulamento do IPI). Em que pese ostentar importância arrecadatória

importante para os cofres públicos, sua principal função é a extrafiscalidade (FARIA, 2004, p.

65).

Por força de determinação constitucional72 o Imposto sobre Produtos Industrializados

possui as características da seletividade e da não-cumulatividade. Portanto, quanto mais

essencial, ou, nas palavras de Coelho (2006, p. 63), “quanto mais significativo for o produto

para economia”, menor será a alíquota aplicada sobre a respectiva base de cálculo

(seletividade). Por outro lado, a não-cumulatividade, “alçada a nível constitucional” (VIEIRA,

1993, p. 122), como visto, vem assim definida pela legislação ordinária (artigo 49, do Código

Tributário Nacional):

Art. 49. O imposto é não-cumulativo, dispondo a lei de forma que o montante devido resulte da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele entrados.

O IPI incide nas importações por força do que dispõe o artigo 2.º, inciso I, da Lei

4.502/64, segundo o qual é fato gerador do imposto, “quanto aos produtos de procedência

estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro”. De forma diversa, não ocorre a incidência

do IPI nas exportações, em razão da imunidade prevista no artigo 153, § 3.º, III, da

Constituição Federal.

Segundo Vieira (1993, p. 10), o critério material da hipótese de incidência do Imposto

sobre Produtos Industrializados, em geral, é a efetiva “realização de uma operação com

produtos industrializados”, não bastando, portanto, a tão só industrialização do bem.

Especificamente no tocante ao IPI vinculado à importação, o critério material será, então, a

importação de produtos industrializados estrangeiros.

72 Art. Compete à União instituir impostos sobre: (...) IV - produtos industrializados; (...) § 3º - O imposto previsto no inciso IV: I - será seletivo, em função da essencialidade do produto; II - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores; (...)

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65

Já o critério temporal, como observa Folloni (2005, p. 130), é o desembaraço

aduaneiro, malgrado haver recolhimento do imposto de modo antecipado, e eletronicamente,

no momento do registro da declaração de importação, que antecede o desembaraço aduaneiro.

Assim sendo, se, exemplificativamente, houver extravio da mercadoria após o recolhimento

do imposto (Registro da DI), mas antes do desembaraço, a exigência deverá ser restituída, a

teor do que dispõe o artigo 237, § 1.º, inciso I, do Regulamento Aduaneiro.73

Os sujeitos da obrigação tributária são os mesmos do Imposto de Importação, de

maneira que se remetem às considerações já tecidas, a este propósito, no item 3.1 deste

Capítulo, bem assim aos argumentos relativos às modalidades de importação, abordadas no

item 2.4 e seguintes do Capítulo 2, ocasião em que se fez referência aos responsáveis pelo

recolhimento do IPI nas operações de importação por conta e ordem de terceiro e por

encomenda.

Por fim, a base de cálculo do Imposto sobre Produtos Industrializados vinculado à

importação será “o valor aduaneiro (base de cálculo do Imposto de Importação), acrescido

ainda do montante devido a título de Imposto de Importação” (cf. FOLLONI, 2005, p. 131).

3.3.4 Imposto sobre operações de câmbio (IOC – espécie do IOF)

Encerrando o rol de tributos de característica extrafiscal relacionados com as

operações de comércio exterior encontra-se o Imposto sobre Operações de Câmbio. Mister

salientar, à partida, que a sua incidência não guarda relação direta com a entrada ou a com

saída de produtos do território nacional, mas sim com a operação relativa à cobertura cambial,

uma vez que os pagamentos realizados nas trocas comerciais internacionais são feitos em

moeda estrangeira, o que justifica a sua abordagem, ainda que breve.

Há, destarte, a indeclinável necessidade de conversão dos valores pagos em moeda

nacional, o que “se faz por intermédio de instituições financeiras para tal autorizadas pelo

Banco Central” (FOLLONI, 2005, p. 161). De fato, conforme anota Sosa (2000, p. 98), a

propósito do fluxo dos pagamentos realizados, “seja na compra, seja na venda, o trâmite se

realizará através de um sistema internacionalmente consagrado, que é conhecido como

73 Art. 237. O imposto de que trata este Título, na importação, incide sobre produtos industrializados de procedência estrangeira (Lei no 4.502, de 1964, art. 1o, e Decreto-lei no 34, de 18 de novembro de 1966, art. 1o). § 1o O imposto não incide sobre: I - os produtos objeto de extravio ocorrido antes do desembaraço aduaneiro;

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câmbio ou sistema cambial”. Falar-se-á mais sobre as operações de câmbio no item 4.5.1.2,

Capítulo 4, deste estudo, quando se tratará da questão relativa aos crimes contra o Sistema

Financeiro Nacional no âmbito do comércio exterior.

A Constituição Federal, em seu artigo 153, inciso V, estabelece que é de competência

da União a instituição de impostos sobre “operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas

a títulos ou valores mobiliários”. Essas operações são normalmente designadas, em conjunto,

como operações financeiras. Entretanto, como se percebe, trata-se de quatro hipóteses de

incidência diversas e, portanto, de quatro espécies tributárias distintas, como bem se vê a

partir do exame do artigo 63, do Código Tributário Nacional.74 Sobre o tema, vale citar a

crítica de Machado (1995, p. 243):

É importante ressaltar a insuficiência da denominação imposto sobre operações financeiras. Na verdade o conceito de operação financeira é exageradamente vago, e por isso mesmo não se compatibiliza coma regra constitucional definidora do âmbito deste imposto, que só poderá ter como fato gerador ‘operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários’ (CF, art. 153, item V).

A espécie que interessa, nesse passo, é apenas o imposto incidente sobre as operações

de câmbio, regulado, infraconstitucionalmente, pela Lei 8.894, de 21 de junho de 1994, em

que pese tal Diploma Legal referir-se, genericamente, ao Imposto sobre Operações

Financeiras, e pelo Regulamento do Imposto (Decreto 4.494/2002).

O critério material de sua hipótese de incidência é, como visto, a realização de

operações de câmbio. Por seu turno, em conformidade com o que dispõe o art. 11, do Decreto

4.494/2002, o critério temporal é o ato da liquidação da operação. No tocante ao critério

espacial, em que pese Melo (2003, p. 118) sustentar que “a incidência tributária ocorre em

todo o território nacional”, conclusão extraída da competência federal para a instituição de tal

exigência fiscal, Folloni (2005, p. 162) adverte que como apenas as instituições

expressamente autorizadas pelo Banco Central do Brasil podem realizar operações de câmbio,

o âmbito espacial dessas instituições será o critério espacial da hipótese de incidência do 74 Art. 63. O imposto, de competência da União, sobre operações de crédito, câmbio e seguro, e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários tem como fato gerador: I - quanto às operações de crédito, a sua efetivação pela entrega total ou parcial do montante ou do valor que constitua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição do interessado; II - quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou de documento que a represente, ou sua colocação à disposição do interessado em montante equivalente à moeda estrangeira ou nacional entregue ou posta à disposição por este; III - quanto às operações de seguro, a sua efetivação pela emissão da apólice ou do documento equivalente, ou recebimento do prêmio, na forma da lei aplicável; IV - quanto às operações relativas a títulos e valores mobiliários, a emissão, transmissão, pagamento ou resgate destes, na forma da lei aplicável.

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imposto, pois “em qualquer outro local em que sejam feitas tais operações haverá incidência

de norma penal”.

O sujeito ativo da relação jurídica tributária é a União, e o sujeito passivo, a teor do

artigo 6.º da Lei 8.894/94 serão “os compradores ou vendedores da moeda estrangeira na

operação referente a transferência financeira para ou do exterior, respectivamente”, sendo

que, de acordo com o parágrafo único desse mesmo dispositivo, as “instituições autorizadas a

operar em câmbio são responsáveis pela retenção e recolhimento do imposto”.

A Base de cálculo do imposto é “o montante em moeda nacional, recebido, entregue

ou posto à disposição” (art. 64, II, do CTN), e a alíquota base é de 25%, sendo este o teto

máximo para eventuais aumentos por ato do Poder executivo (art. 5.º, caput, da Lei 8.894/94).

Não há, ademais, limite para sua redução, que pode atingir 0%.

3.3.5 Outros tributos incidentes sobre o comércio exterior

Como já afirmado no item 2 deste Capítulo, as operações de comércio exterior

revelam a incidência, ao lado dos quatro tributos analisados separadamente acima, de outras

espécies tributárias, as quais serão relacionadas, sucintamente e em conjunto, a seguir.

O Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência

Estadual consoante já referido anteriormente, incide nas importações por força do artigo 155,

§ 2.°, inciso IX, alínea a, da Constituição Federal, segundo o qual a exigência aplica-se:

(...) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço.

Conforme ensina Folloni (2005, p. 139 e seguintes), o critério temporal da sua

hipótese de incidência coincide com o do Imposto de Importação, qual seja o registro da

Declaração de Importação no SISCOMEX. A identidade se repete com o critério espacial

(ambiente virtual do SISCOMEX) e material (importação de qualquer bem). O sujeito ativo

da relação jurídica tributária será o Estado ou o Distrito Federal, ao passo que o sujeito

passivo é o importador, seja ou não comerciante, de acordo com o dispositivo constitucional

acima transcrito (“ainda que não seja contribuinte habitual do imposto”).

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Segundo o artigo 13, inciso V, da Lei Complementar 87/96 a base de cálculo do ICMS

incidente nas importações é a soma do “valor da mercadoria ou bem constante dos

documentos de importação; do imposto de importação; do imposto sobre produtos

industrializados; do imposto sobre operações de câmbio; e de quaisquer outros impostos,

taxas, contribuições e despesas aduaneiras”. Inclui-se ainda na base de cálculo o valor do

próprio imposto e outras despesas, a teor do artigo 13, § 1.°, I e II, da mesma Lei

Complementar já mencionada.75

Por fim, sobreleva ressaltar que o ICMS, assim como o IPI, também possui a

característica da seletividade (art. 155, § 2.°, III, da CF/88).

Sobre as importações incidem igualmente as contribuições relativas ao PIS/Pasep

(Contribuição para os programas de integração social e de formação do patrimônio do

servidor público) e à Cofins (Contribuição para o financiamento da Seguridade Social), em

razão do que dispõe a Lei 10.865/2004. Possuem a mesma hipótese de incidência do Imposto

de Importação quando se trata de internalização de bens, sendo considerados, portanto, como

adicionais dessa espécie tributária. Ostentam, entretanto, hipótese de incidência própria

relativamente à importação de serviços. Seu critério material de incidência encontra-se no

artigo 3.°, I e II da Lei de regência, segundo o qual o “fato gerador” será a “entrada de bens

estrangeiros no território nacional” ou “o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a

remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação por serviço

prestado”. Assim também os critérios temporal (registro de declaração de importação),

espacial (ambiente virtual do SISCOMEX) e pessoal (União como sujeito ativo e importador

como sujeito passivo) são os mesmos do Imposto de Importação. A base de cálculo, por seu

turno, vem estipulada no artigo 7. ° da 10.865/2004, que reza:

Art. 7o A base de cálculo será: I - o valor aduaneiro, assim entendido, para os efeitos desta Lei, o valor que servir ou que serviria de base para o cálculo do imposto de importação, acrescido do valor do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições, na hipótese do inciso I do caput do art. 3o desta Lei; ou

75 § 1o Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo: I - o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle; II - o valor correspondente a: a) seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, bem como descontos concedidos sob condição; b) frete, caso o transporte seja efetuado pelo próprio remetente ou por sua conta e ordem e seja cobrado em separado.

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II - o valor pago, creditado, entregue, empregado ou remetido para o exterior, antes da retenção do imposto de renda, acrescido do Imposto sobre Serviços de qualquer Natureza - ISS e do valor das próprias contribuições, na hipótese do inciso II do caput do art. 3o desta Lei.

Merece referência, ainda, a Contribuição de Intervenção sobre o Domínio

Econômico Incidente sobre a importação e a Comercialização de Petróleo e seus

Derivados, Gás Natural e seus Derivados, a Álcool Etílico combustível (designada

simplesmente Cide), que, conforme sinaliza Folloni (2005, p. 158), possui característica de

verdadeiro imposto e não de contribuição, pois não “se refere a qualquer atividade estatal

relativa ao contribuinte”. O critério material de sua hipótese de incidência é a importação dos

produtos ali descritos. O critério temporal, espacial e pessoal são os mesmos do Imposto de

Importação. A base de cálculo, definida pelo artigos 4.° e 5.° da Lei 10.336/2001, é uma

unidade de medida, que pode ser o metro cúbico ou a tonelada. As alíquotas vêm estipuladas

no seu artigo 5.°.76

Por fim, incide na importação o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha

Mercante (AFRMM), regulamentado pela Lei 10.893/2004 e que possui, em consonância

com o artigo 3.° deste Diploma Legal, a função de “atender aos encargos da União no apoio

ao desenvolvimento da marinha mercante e da indústria de construção e reparação naval

brasileiras”. Seguindo magistério de Folloni (2005, p. 155-156), o critério material de sua

hipótese de incidência é a contratação de transporte aquaviário (art. 5.° Lei 10.893/2004)77; o

critério temporal é o “início da operação de descarregamento”; o critério espacial é o âmbito

do porto; o sujeito ativo é a União e o sujeito passivo é o “consignatário da carga

transportada”, isto é, “aquele que recebe a carga no porto”, com responsabilidade solidária do

seu proprietário (art. 10, § 3.° da Lei 10.893/2004). O artigo 6.° dessa mesma Lei estabelece

que a base de cálculo é o valor do frete, isto é “a remuneração do transporte aquaviário”. O

mesmo dispositivo relaciona, em seus incisos, as alíquotas respectivas.78

76 Art. 5o A Cide terá, na importação e na comercialização no mercado interno, as seguintes alíquotas específicas: I – gasolina, R$ 860,00 por m³; II – diesel, R$ 390,00 por m³; III – querosene de aviação, R$ 92,10 por m³; IV – outros querosenes, R$ 92,10 por m³; V – óleos combustíveis com alto teor de enxofre, R$ 40,90 por t; VI – óleos combustíveis com baixo teor de enxofre, R$ 40,90 por t; VII – gás liqüefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e da nafta, R$ 250,00 por t; VIII – álcool etílico combustível, R$ 37,20 por m³. 77 Art. 5o O AFRMM incide sobre o frete, que é a remuneração do transporte aquaviário da carga de qualquer natureza descarregada em porto brasileiro. 78 Art. 6o O AFRMM será calculado sobre a remuneração do transporte aquaviário, aplicando-se as seguintes alíquotas: I - 25% (vinte e cinco por cento) na navegação de longo curso;

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II - 10% (dez por cento) na navegação de cabotagem; e III - 40% (quarenta por cento) na navegação fluvial e lacustre, quando do transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste.

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4 OS DELITOS NAS ATIVIDADES DE COMÉRCIO EXTERIOR

4.1 DELIMITAÇÃO DA ATIVIDADE DELITIVA NO ÂMBITO DO COMÉRCIO

EXTERIOR

Segundo o artigo 237, da Constituição Federal, “a fiscalização e o controle sobre o

comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos

pelo Ministério da Fazenda”, sendo que o ANEXO I do Decreto 6.661/2008 confere à

Secretaria da Receita Federal do Brasil – que é considerada, ao lado da Procuradoria da

Fazenda Nacional, como Órgão Específico Singular do Ministério da Fazenda (artigo 2.º,

inciso II, alínea b) – a competência para efetivar a referida atribuição constitucional.79

Pois bem. Em consonância com a observação de Carluci (2001, pp. 215-216), para

bem desempenhar o seu mister no controle das transações inerentes ao comércio exterior, as

autoridades exercem fiscalização “visando a prevenção e a repressão às infrações e fraudes

contra as normas específicas a cada bem jurídico tutelado”. E considerando a intensidade

atual do trânsito de mercadorias e de pessoas pelas fronteiras territoriais, exige-se um nível de

preparo cada vez mais elevado dos agentes responsáveis pela fiscalização aduaneira e uma

sensível modernização de toda a estrutura administrativa orientada para este fim, capaz de

torná-la “eficiente e compatível com a natureza dos ilícitos específicos da área de comércio

79 O Decreto 6.661/2008, mais especificamente em seu Anexo I, estabelece a atual estrutura regimental da Fazenda Nacional. Ao relacionar, em seu artigo 9.º, as atribuições da Secretaria da Receita Federal do Brasil, enumera uma série de competências específicas sobre o comércio exterior e as matérias aduaneiras, tais como: interpretar e aplicar a legislação tributária, aduaneira, de custeio previdenciário e correlata, editando os atos normativos e as instruções necessárias à sua execução (inciso III); acompanhar a execução das políticas tributária e aduaneira e estudar seus efeitos na economia do País (inciso VI); negociar e participar de implementação de acordos, tratados e convênios internacionais pertinentes à matéria tributária e aduaneira (inciso XV); dirigir, supervisionar, orientar, coordenar e executar os serviços de administração, fiscalização e controle aduaneiros, inclusive no que diz respeito a alfandegamento de áreas e recintos (inciso XVI); dirigir, supervisionar, orientar, coordenar e executar o controle do valor aduaneiro e de preços de transferência de mercadorias importadas ou exportadas, ressalvadas as competências do Comitê Brasileiro de Nomenclatura (inciso XVII); dirigir, supervisionar, orientar, coordenar e executar as atividades relacionadas com nomenclatura, classificação fiscal e origem de mercadorias, inclusive representando o País em reuniões internacionais sobre a matéria (inciso XVIII); participar, observada a competência específica de outros órgãos, das atividades de repressão ao contrabando, ao descaminho e ao tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins, e à lavagem de dinheiro (inciso XIX); administrar, controlar, avaliar e normatizar o Sistema Integrado de Comércio Exterior - SISCOMEX, ressalvadas as competências de outros órgãos (inciso XX); e orientar, supervisionar e coordenar as atividades de produção e disseminação de informações estratégicas na área de sua competência, destinadas ao gerenciamento de riscos ou à utilização por órgãos e entidades participantes de operações conjuntas, visando à prevenção e ao combate às fraudes e práticas delituosas, no âmbito da administração tributária federal e aduaneira (inciso XXI).

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exterior”. Tudo isso, acrescentamos, sem olvidar a necessidade de respeito ao fomento e ao

regular desenvolvimento das atividades do setor, a fim de garantir o postulado constitucional

da livre iniciativa, fundamento da ordem econômica do Estado brasileiro, como visto

anteriormente, nos itens introdutórios deste trabalho.

Por evidente, o resultado desta atividade de fiscalização acarreta, nos casos em que é

possível detectar eventuais desvios de conduta, o surgimento concomitante de

responsabilidade de natureza administrativa, civil e penal.80 Não trataremos aqui, detida e

especificamente, das conseqüências administrativas e civis decorrentes das irregularidades

perpetradas pelas partes envolvidas nas operações de comércio exterior, sob pena de nos

distanciarmos do núcleo do estudo proposto. Ademais, considerando a amplitude e a

complexidade do tema, tal tarefa demandaria pesquisa e desenvolvimento apropriados.

Nesta oportunidade e a propósito da questão, vale apenas destacar o que se deve

entender por infração aduaneira e quais as penalidades previstas na legislação pertinente no

caso de sua ocorrência. Para Carluci (2001, p. 218), em observação que reforça a nítida

separação, já destacada, entre o Direito aduaneiro e o Direito tributário:

(...) a legislação brasileira estabelece dois grupos de infrações aduaneiras: as infrações fiscais (tributárias) e as infrações administrativas ao controle das importações (de natureza não-tributária). Assim, a infração aduaneira possui contornos mais amplos do que ser simplesmente uma sub-espécie das infrações tributárias.

No âmbito jurídico positivo, o artigo 94 do Decreto-lei 37/66 (Diploma Legal que

dispõe sobre o imposto de importação, reorganiza os serviços aduaneiros e dá outras

providências) e bem assim o artigo 673 do Decreto 6.759/2009 (o qual, já vimos, regulamenta

a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das

operações de comércio exterior – novo Regulamento Aduaneiro), estabelecem que infração

aduaneira é:

(...) toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte de pessoa física ou jurídica, de norma estabelecida ou disciplinada neste Decreto ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-lo.

Merece destaque, em função da nítida diferenciação com as infrações de natureza

penal, a expressa menção à não exigência do elemento volitivo e, igualmente, à irrelevância

80 Sobre a diferenciação entre a sanção administrativa e penal, vide, na doutrina pátria: MELLO, Rafael Munhoz de. Sanção Administrativa e Princípio da Legalidade. In Devido Processo Legal na Administração Pública. FIGUEIREDO, 2001, p. 143-185.

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73

do resultado danoso para a configuração da prática infracional aduaneira, reforçadas no § 2.º

do artigo 94 do Decreto-lei 37/66 e no parágrafo único do artigo 673 do Regulamento

Aduaneiro, que prescrevem: “Salvo disposição expressa em contrário, a responsabilidade por

infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, da natureza e da

extensão dos efeitos do ato.” Portanto, no dizer de Lugones (2004, p. 133):

(...) basta a violação para que se configure a infração, independentemente da vontade do agente, não se ingressando sequer no plano da subjetividade, a fim de verificar o dolo ou ao menos da culpa, pois basta a conduta ativa ou omissiva para que se verifique a infração.

O artigo 674 do novo Regulamento Aduaneiro (de conteúdo idêntico ao artigo 95 do

Decreto-Lei 37/66) relaciona quais são os responsáveis pelas infrações aduaneiras, estando

assim redigido:

Art. 674. Respondem pela infração (Decreto-Lei no 37, de 1966, art. 95): I - conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática ou dela se beneficie; II - conjunta ou isoladamente, o proprietário e o consignatário do veículo, quanto à que decorra do exercício de atividade própria do veículo, ou de ação ou omissão de seus tripulantes; III - o comandante ou o condutor de veículo, nos casos do inciso II, quando o veículo proceder do exterior sem estar consignado a pessoa física ou jurídica estabelecida no ponto de destino; IV - a pessoa física ou jurídica, em razão do despacho que promova, de qualquer mercadoria; V - conjunta ou isoladamente, o importador e o adquirente de mercadoria de procedência estrangeira, no caso de importação realizada por conta e ordem deste, por intermédio de pessoa jurídica importadora (Decreto-Lei no 37, de 1966, art. 95, inciso V, com a redação dada pela Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 78); e VI - conjunta ou isoladamente, o importador e o encomendante predeterminado que adquire mercadoria de procedência estrangeira de pessoa jurídica importadora (Decreto-Lei no 37, de 1966, art. 95, inciso VI, com a redação dada pela Lei no 11.281, de 2006, art. 12). Parágrafo único. Para fins de aplicação do disposto no inciso V, presume-se por conta e ordem de terceiro a operação de comércio exterior realizada mediante utilização de recursos deste, ou em desacordo com os requisitos e condições estabelecidos na forma da alínea “b” do inciso I do § 1o do art. 106 (Lei no 10.637, de 2002, art. 27; e Lei no 11.281, de 2006, art. 11, § 2o).

De se ressaltar que os incisos I, II e V salientam a responsabilidade solidária de todos

aqueles que, de uma ou de outra forma, tomam parte na infração, em redação – especialmente

no inciso I – muito assemelhada ao artigo 29, do Código Penal81. Entretanto, como bem

observa Lugones (2004, p. 135), diferentemente do dispositivo penal em referência, não há

81 Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

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menção ao princípio da culpabilidade, em posição coerente com a responsabilidade objetiva

pelas infrações de natureza aduaneira acima já destacada.

Ademais, são dignos de nota o teor dos incisos V e VI, introduzidos no dispositivo

aqui analisado, respectivamente, pelo artigo 78 da Medida Provisória 2.158-35/2001 e artigo

12 da Lei 11.281/2006, os quais estabelecem a expressa responsabilidade solidária, por

eventuais infrações aduaneiras, do importador e do adquirente das mercadorias importadas no

caso de importação por conta e ordem de terceiro, e daquele e do encomendante pré-

determinado, na modalidade de importação por encomenda. Já tratamos a respeito do tema no

Capítulo 2, item 2.4.2 deste estudo, oportunidade em que também examinamos a presunção

constante do parágrafo único deste artigo 674, do Regulamento Aduaneiro.

No tocante às sanções administrativas previstas para o caso de infrações aduaneiras, o

artigo 675 do Regulamento Aduaneiro prevê a aplicação – cumulativa ou separada – da

penalidade de perdimento de veículo, perdimento da mercadoria, perdimento da moeda, multa

e sanção administrativa.82

Sobreleva notar, ainda a propósito da atividade de fiscalização das infrações

verificadas no âmbito aduaneiro – e em virtude do seu especial reflexo na seara criminal – que

a Portaria 665/2008, da Secretaria da Receita Federal, em consonância com o disposto no

artigo 83 da Lei 9.430/9683 (Lei do Ajuste Fiscal), artigos 1.º, 2.º e especialmente 3.º do

Decreto 2.730/9884, ainda artigo 15 da Lei 9.964/200085 (Lei instituidora do Programa de

82 Art. 675. As infrações estão sujeitas às seguintes penalidades, aplicáveis separada ou cumulativamente (Decreto-Lei no 37, de 1966, art. 96; Decreto-Lei no 1.455, de 1976, arts. 23, § 1o, com a redação dada pela Lei no 10.637, de 2002, art. 59, e 24; Lei no 9.069, de 1995, art. 65, § 3o; e Lei no 10.833, de 2003, art. 76): I - perdimento do veículo; II - perdimento da mercadoria; III - perdimento de moeda; IV - multa; e V - sanção administrativa. 83 Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. 84 Art. 1.º O Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional formalizará representação fiscal, para os fins do art. 83 da Lei n.º 9.430, de 27 de dezembro de 1996, em autos separados e protocolizada na mesma data da lavratura do auto de infração, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda ou decorrente de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento, constatar fato que configure, em tese; I - crime contra a ordem tributária tipificado nos arts. 1º ou 2º da Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990; II - crime de contrabando ou descaminho. Art. 2.º Encerrado o processo administrativo-fiscal, os autos da representação fiscal para fins penais serão remetidos ao Ministério Público Federal, se: I - mantida a imputação de multa agravada, o crédito de tributos e contribuições, inclusive acessórios, não for extinto pelo pagamento; II - aplicada, administrativamente, a pena de perdimento de bens, estiver configurado em tese, crime de contrabando ou descaminho. Art. 3.º O Secretário da Receita Federal disciplinará os procedimentos necessários à execução deste Decreto. 85 Art. 15. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em

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Recuperação Fiscal – REFIS) e artigo 9.º da Lei 10.684/200386 (Lei instituidora do

Parcelamento Especial – PAES), estabelece procedimentos a serem observados na

comunicação, ao Ministério Público Federal, de fatos que configurem crimes relacionados

com as atividades da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

No que toca mais de perto ao objeto do estudo aqui desenvolvido, o capítulo I desta

Portaria, intitulado Do Dever de Representar, estabelece diretrizes de ordem geral a serem

obedecidas pelos agentes fiscais durante o seu exercício, ao passo em que os capítulos II e III

formatam, respectivamente, o procedimento da Representação para os casos de Crimes contra

a Ordem Tributária e de Contrabando e Descaminho. Por seu turno, o capítulo V do ato

normativo em análise, intitulado Dos Crimes Contra a Administração Pública Federal e a

Fazenda Nacional também pode guardar relação, ainda que indireta, com as operações

desenvolvidas no comércio internacional.

Nesta oportunidade, cabe apenas observar que as autoridades responsáveis pela

fiscalização devem estar atentas à diferenciação existente entre as infrações aduaneiras e os

ilícitos penais, uma vez que, para as primeiras, basta a responsabilidade objetiva do sujeito,

enquanto que os segundos não prescindem do exame prévio sobre a culpabilidade do agente.

Destarte, nada impede que durante a fiscalização administrativa as autoridades aduaneiras

voltem seu foco, indiscriminadamente, para todos aqueles que de alguma forma tomaram

parte em determinada operação considerada irregular, mas, diferentemente, eventual

responsabilidade criminal só pode ser imputada às pessoas que efetivamente atuaram

fraudulentamente, na medida de sua culpabilidade. Recomenda-se, portanto, que já na

Representação Fiscal para Fins Penais – de apresentação obrigatória, como atrás se destacou –

o agente fiscal deixe claro qual foi a participação de cada um dos envolvidos na operação, a

fim de que a autoridade policial e, principalmente, o membro do Ministério Público, possa

delinear exatamente a quem deve ser imputada a responsabilidade criminal pelos ilícitos

observados.

Durante a abordagem específica da responsabilidade criminal respectiva que se

seguirá, faremos referência, sempre que necessário, às questões extrapenais relacionadas às

infrações cometidas no âmbito das atividades de importação e exportação de mercadorias,

como inclusive já fizemos anteriormente, quando tratamos da pena de perdimento do produto

que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no Refis, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal. 86 Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

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importado, nos casos de interposição fraudulenta de terceiros nas operações de comércio

exterior (ver Capítulo 2, item 2.5).

Cabe salientar, ainda, que serão abordados de forma específica e apartada os delitos de

contrabando e descaminho, bem assim as figuras típicas a eles equiparadas, crimes ligados por

excelência às atividades de comércio exterior, pois dizem respeito, diretamente, a condutas

relativas à entrada e à saída de mercadorias do território nacional. Dois capítulos à parte

também estão reservados, devido à sua importância, aos aspectos mais relevantes dos crimes

contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro nacional que digam respeito, mais

intimamente, à área aduaneira. Ao final, destinamos capítulo próprio para algumas

considerações pertinentes ao delito de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.

Evidentemente, há muitos outros crimes específicos possíveis de serem detectados no

amplo conjunto de atividades desenvolvidas no campo do comércio exterior. Não obstante,

faz-se necessário anotar, primeiramente, que tais crimes costumam configurar apenas meio

empregado pelo agente para o alcance do seu real e principal objetivo, qual seja a prática de

condutas que perfazem tipos penais destinados a proteger a ordem tributária e o sistema

financeiro nacional. Portanto, tendo em vista a necessária aplicação dos mecanismos

existentes para a resolução do conflito aparente de normas, a maioria destes delitos resulta

absorvida devido à ausência de potencialidade lesiva autônoma, o que justifica a abordagem

conjunta – e eventual – com as figuras típicas já mencionadas.

Por outro lado, queremos deixar registrado que a ausência de análise específica sobre

outros delitos que eventualmente possam ocorrer no âmbito das atividades inerentes ao

comércio exterior, como v.g., crimes ambientais e de corrupção87, de pirataria ou

contrafação88, não resulta de descuido no desenvolvimento da pesquisa. Trata-se, em verdade,

de omissão proposital. O elenco de crimes específicos tratados neste estudo – além de

representar, a nosso juízo, uma relação de condutas relevantes e dignas de nota – cumpre

satisfatoriamente bem o papel de ilustrar de que modo se encontra, atualmente, o problema

penal no âmbito aduaneiro, que é, ao fim e ao cabo, o nosso desiderato principal.

87 Tratados por BONAT, 2004. 88 Conforme sugestão de abordagem feita por Rosaldo Trevisan em correspondência privada, e que, portanto, sentimos merecer justificativa para o seu não acatamento.

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4.2 A RESPONSABILIDADE DE NATUREZA CRIMINAL DECORRENTE DAS

IRREGULARIDADES VERIFICADAS NAS OPERAÇÕES DE IMPORTAÇÃO E

EXPORTAÇÃO DE MERCADORIAS

No campo do Direito penal, percebe-se, às claras, que a complexidade e a fugacidade

das regras destinadas a disciplinar as atividades desenvolvidas no comércio exterior

contribuem decisivamente para a inadequada tipificação das condutas reputadas lesivas ao

bem protegido, ameaçando a segurança jurídica.

A já examinada interposição fraudulenta, por exemplo, expediente por meio do qual

determinadas empresas procurariam ocultar o real adquirente da mercadoria importada com

vistas a se eximirem de obrigações tributárias, principais e acessórias, ou de outros deveres de

informação relacionados com a origem do dinheiro empregado e os meios de pagamento do

preço da transação, dá margem à identificação, por parte das autoridades competentes, de

mais de uma conduta delituosa. Por vezes, a discrepância revela um concurso aparente de

normas resolvido pelos princípios da consunção, subsidiariedade e especialidade89. Em outras

oportunidades, contudo, fatos idênticos apurados em processos distintos são tipificados de

maneira totalmente diversa, causando extrema perplexidade e confusão.

E de fato, consoante observa Naucke (2006, p. 1), a tarefa dos penalistas – aí incluídos

os advogados, membros do Ministério Público e magistrados – é a de resolver os casos

concretos, ou, mais propriamente, a de decidir se “en um conflicto, en uma colisión de

derechos entre ciudadanos, se há cometido um ilícito punible”. Não se trata simplesmente,

pois, de aferir naturalisticamente o número de ações praticadas e submetê-las,

mecanicamente, à subsunção legal. Muito menos fazê-lo com propósito deliberado – ainda

que nem sempre revelado – de alargar a incidência da norma penal, na esperança, vã e

equivocada, de tornar o Direito criminal, também na seara aduaneira, a regra no combate às

irregularidades verificadas.

Este é um problema constante na área de comércio exterior, uma vez que,

frequentemente, os injustos penais prévios – ou mesmo posteriores –, como, v.g., a falsidade 89 A propósito do concurso aparente de normas e referindo-se particularmente ao ordenamento jurídico-positivo brasileiro, Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 628) já escreveram, com acerto, que: “Um dos mais sensacionais desatinos, que alguma vez se escreveu, é que o concurso aparente de tipos deve ser rejeitado porque ‘não está reconhecido na lei’, o que equivale a afirmar um absurdo comparável à negação da existência da sífilis quando falta penicilina. O que a lei não prevê são as hipóteses de concurso aparente de tipos, coisa que, embora algumas leis estrangeiras o façam, carece de maior importância, porque ainda que a lei nada diga, a ninguém pode ocorrer a existência de uma concorrência – que não seja meramente aparente – entre a tentativa e a consumação do delito, sem necessidade de outros exemplos”.

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ideológica ou documental, possuem razão bem definida: possibilitar o alcance de outros

objetivos, potencialmente mais lesivos, por estarem inseridos numa hierarquia superior de

tipos incriminadores, como os crimes contra a ordem tributária, o sistema financeiro nacional

ou a lavagem de bens, ativos ou valores. Sobre o tema, imprescindível referir a lição de

Correia (1996, p. 26):

(...) desenhando-se embora aparentemente uma pluralidade de delitos, quando consideradas as atividades independentemente (por exemplo, provocação a duelo e duelo), existe, no fim de contas, olhadas as relações de hierarquia em que se encontram os respectivos preceitos incriminadores, só um crime punível e outro ou outros que, pelo menos autonomamente, não são objeto de punição direta.

Por outro lado, como já foi visto, as modalidades de importação de mercadorias

(compra e venda direta, conta e ordem de terceiro e por encomenda) possuem, assim como a

grande parte dos institutos inerentes ao Direito aduaneiro, regulamentação intrincada e

baseada em regras que se sucedem muito rapidamente, dificultando sobremaneira a exata

compreensão de seus mandamentos e, essencialmente, a correta subsunção da conduta tida

como irregular à hipótese proibitiva descrita pela norma penal.

Por outro lado, já vimos em momento anterior, mas é necessário relembrar, que a

tributação incidente sobre as operações de comércio exterior é extremamente rigorosa, seja ela

destinada para fins primordiais de arrecadação (imposto sobre circulação de mercadorias e

serviços – ICMS, o PIS/Pasep-importação e o Cofins-importação), seja porque, neste âmbito,

incidem aqueles impostos de caráter eminentemente extrafiscal, quais sejam o imposto de

importação (II) e de exportação (IE), o imposto sobre produtos industrializados (IPI), hipótese

em que se revela um adicional do imposto de importação, e o imposto sobre operações

financeiras (IOF), gênero que assume a espécie, nas atividades do comércio exterior, de

imposto sobre operações de câmbio (IOC).

Com efeito, dentre os muitos fatores sociais, políticos e econômicos que normalmente

impulsionam a prática de ilícitos civis, administrativos e criminais, a magnitude desta

incidência tributária é frequentemente decisiva para acarretar, por parte de certas empresas

que atuam no comércio exterior – leia-se, pessoas físicas responsáveis pela direção de seus

rumos –, a adoção de inúmeros expedientes destinados a burlar a fiscalização da Receita

Federal e a fugir da exação respectiva. Não sem razão deve ser destacado, igualmente, que

esta carga tributária nem sempre é motivo para a adoção de práticas ilícitas. Muitas vezes, as

empresas que operam no comércio exterior optam por medidas tributárias previstas ou não

vedadas pelo ordenamento jurídico, cabendo às autoridades – nem sempre preparadas para

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tanto e, outras vezes, inclinadas a considerar irregular qualquer prática minimamente suspeita

– identificar adequadamente a natureza do procedimento adotado, se lítico ou ilícito.

Como conseqüência, ao lado dos instrumentos administrativos de controle das

irregularidades verificadas, tem-se observado um significativo aumento na utilização de

mecanismos penais para reprimir tais irregularidades, de modo a atingir tanto o âmbito

pessoal (prisões cautelares) quanto patrimonial (arresto e seqüestro de bens) dos gerentes,

sócios e administradores das pessoas jurídicas envolvidas.

Novamente, veja-se, por exemplo, a indeclinável obrigatoriedade de comunicação ao

Ministério Público Federal – por parte dos agentes fiscais e por meio de Representação Fiscal

para Fins Penais, procedimento disciplinado na já referida Portaria 665/2008 da Secretaria da

Receita Federal – das hipóteses que, eventualmente, possam configurar crimes relacionados

com as atividades de comércio exterior. O artigo 9.º desta Portaria estabelece, expressamente,

que: “o servidor que descumprir o dever de representar, nos termos estabelecidos nesta

Portaria, fica sujeito às sanções disciplinares previstas na Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de

1990, sem prejuízo do disposto na legislação criminal.”

O dispositivo revela a clara opção pela utilização do Direito penal na tentativa de

repressão das irregularidades detectadas nas operações de importação e exportação de

mercadorias e, sob a ameaça expressa de pena ao servidor que descumprir a determinação,

não esconde o desejo de que o Direito penal cumpra o papel de resolver todo e qualquer

problema nesta seara. Com efeito, a nosso sentir, esta ameaça de pena, em circunstâncias

normais, soaria inclusive desnecessária, pois inerente ao descumprimento de quaisquer dos

deveres do agente público, não fosse pela clara intenção de fazer com que, por meio de

previsão clara e expressa, não se permita que nenhuma hipótese de irregularidade aduaneira

esteja isenta do exame de natureza criminal, reafirmando, pois, a atuação do Direito penal nos

casos ali relacionados.

Importa gizar, igualmente, que os crimes relacionados às atividades de importação e

exportação de mercadorias estão inseridos no contexto do Direito penal econômico,

sabidamente permeado, consoante apropriada abordagem de Tiedemann (2007, p. 75 et. seq.),

pela técnica legislativa da norma penal em branco, das cláusulas gerais e dos exagerados

elementos normativos do tipo, circunstâncias particulares sobre as quais, em virtude do limite

estabelecido para esta pesquisa, não poderão ser objeto de analise detalhada.

A respeito do tema, a contemporaneidade da lição de Manoel Pedro Pimentel,

precursor no estudo da criminalidade econômica no Brasil e, por isso mesmo, de menção

obrigatória por todos aqueles que se debruçam em torno do tema, é diga de nota,

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especialmente pela exata correspondência que guarda com o contexto no qual se encontra

inserida a atividade aduaneira atual e, consequentemente, o fenômeno delitivo detectado neste

âmbito. Observava o renomado penalista (PIMENTEL, 1973, p. 6), já no ano de 1973, que:

O progresso vertiginoso que atingiu o mundo dos negócios, especialmente em razão das mudanças operadas neste século, fez com que desaparecesse virtualmente o Estado liberal. O intervencionismo estatal tornou-se imperiosa necessidade, a fim de regularizar as relações negociais, coibindo os abusos do poder econômico e a exploração dos fracos pelos fortes.

Está aí, no crescente intervencionismo estatal na ordem econômica, portanto, o germe

do Direito econômico90. Este antecedente lógico possibilitou, logo em seguida, a construção

do conceito de Direito penal econômico, definido como (PIMENTEL, 1973, p. 10-11), “(...) o

conjunto de normas que têm por objeto sancionar, com as penas que lhe são próprias, as

condutas que, no âmbito das relações econômicas, ofendam ou ponham em perigo bens ou

interesses juridicamente relevantes” sendo de se destacar, dentre as eventuais opiniões

divergentes em torno da questão, um elemento comum, qual seja a necessária proteção dos

bens e interesses humanos “relacionados com a economia”.

A evolução doutrinária acerca deste particular fenômeno delitivo permitiu situar esta

primeira definição dentro de um conceito restrito de Direito penal econômico, apartando-a de

um conceito de caráter mais amplo. Com efeito, Martínez-Buján Pérez (1998, p. 33),

observando a uniformidade de posicionamento a favor da distinção entre delitos econômicos

em sentido estrito e em sentido amplo, assim os diferencia:

(...) aquellas infracciones que atentan contra la actividad interventora y reguladora del Estado en la economía, o sea, por el denominado ‘Derecho penal adminsitrativo econômico’. Esta categoría, que según la antigua concepción doctrinal era la única que constituía el Derecho penal económico, conformaría el concepto más estricto de delitos económicos. Ello no obstante, por outra parte, junto a este concepto estricto se reconoce um concepto amplio de delitos económicos, caracterizado por incluir, ante todo, las infracciones que vulneran bienes juridídicos supraindividuales de contenido económico que, si bien no afectan directamente a la regulación jurídica del intervencionismo estatal en la economía, trascienden la dimensión puramente individual, trátese de intereses generales o trátese de intereses de amplios sectores o grupos de personas.

90 Oportuno lembrar, a propósito, lição de Wiecko de Castilho (1998, p. 93), para quem: “São concepções, princípios fundamentais, direitos e limitações, mecanismos de controle e de incentivos e as intervenções púbicas destinadas a dirigir, promover ou limitar as atividades lucrativas, visando integrá-las no projeto macroeconômico, e, ao mesmo tempo, com elas, promover a justiça social. A este disciplinamento chamamos Direito Econômico”.

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Consoante se depreenderá das figuras delitivas tratadas nos itens seguintes desta

pesquisa, os crimes relacionados ao comércio exterior – quais sejam o contrabando e o

descaminho, assim como a atividade delitiva dirigida contra o Sistema Financeiro Nacional e

a Ordem Tributária, além da possível lavagem de dinheiro –, em sua grande maioria, podem

ser considerados exemplos de delitos econômicos em sentido amplo.

Por outro lado, não se pode descurar, também na seara do Direito penal aplicado ao

âmbito aduaneiro, da constante flexibilização de várias garantias materiais e processuais

contempladas inclusive pela Constituição Federal e por tratados internacionais, como o Pacto

de São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário91. Com efeito, este fenômeno é

verificado, hodiernamente, também no âmbito do Direito penal econômico, encontrando

amparo na realidade enfrentada pela Ciência penal contemporânea. Conforme observa Greco

por ocasião da introdução à obra de Roxin (2002, p. 179-180):

Afinal, a palavra ‘criminalidade moderna’ só aparentemente tem conteúdo descritivo; por trás dela sempre paira a questionável sugestão político-criminal de que, como se está diante do crime organizado, de delinqüentes de colarinho branco, de crimes de poderosos (crimes of the mighty), não é necessário atender a exigências de garantias.

Enfim, pondera que (2002, p. 180) “ainda não ficou suficientemente clara a

legitimidade desse Direito Penal de ‘duas velocidades’, que trata os ‘poderosos’ como se eles

não fossem dotados de direitos fundamentais”.

No mesmo sentido, tem-se observado a adoção de certos expedientes destinados a

estender a repressão penal para onde ela não deveria incidir, conforme acuradamente observa

Estellita (2009, p. 40) ao tratar da (falta de) coincidência na freqüente imputação conjunta de

crimes de quadrilha (artigo 288, do Código Penal) e de natureza tributária:

A imputação cumulativa do crime definido no artigo 288 com os crimes tributários tem sido a ‘válvula de escape’ para dar andamento a ações penais centradas nos crimes tributários, mas que, seja em virtude da pendência de recurso administrativo, seja em virtude de parcelamento ou pagamento do crédito tributário, deveriam ser trancadas ou suspensas.

De outro canto, este decantado expansionismo (para alguns, modernização) do Direito

penal é resultado da busca incessante pela contenção da escalada criminosa verificada a nível

internacional, em face da qual os instrumentos tradicionais de repressão muitas vezes não

91 Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.

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conseguem fazer frente. Estabelece-se, destarte, o polêmico embate entre a necessidade de

segurança social e a manutenção das garantias do processado, com visível e corriqueira

prevalência da primeira alternativa. A esse propósito destaca-se a observação de Silva Franco

(2005, p. 9-10), que, ao prefaciar a obra de Zaffaroni e Pierangeli (Manual de Direito Penal

Brasileiro, Parte Geral), observa:

Há, por toda parte, um intervencionismo penal cada vez mais intenso e abrangente. Criam-se novos delitos, em especial, na seara econômica e ambiental, e quase todos eles com a característica de crimes de perigo abstrato. Amplia-se o conteúdo de tipos já existentes. Alargam-se, sem nenhum critério idôneo e com total desrespeito ao princípio da proporcionalidade, as margens punitivas. Dissolvem-se diferenças conceituais já consagradas entre autoria e participação, entre atos de execução e atos preparatórios. Se tudo isso já não bastasse, a função nitidamente instrumental do Direito penal ingressa numa fase crepuscular cedendo passo, na atualidade, à consideração de que o controle penal desempenha uma função puramente simbólica. A intervenção penal não objetiva mais tutelar, com eficácia, os bens jurídicos considerados essenciais para a convivencialidade, mas apenas produzir um impacto tranqüilizador sobre o cidadão e sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos, individual ou coletivo de segurança..

Não obstante, esta ânsia punitiva, como não raro se sucede, resulta na inobservância de

direitos fundamentais e de garantias próprias do Direito penal, estas secularmente

sedimentadas e identificadas no caráter fragmentário de atuação, no princípio da culpabilidade

pelo fato, da ultima ratio, dentre outros. Como oportunamente observa Hassemer (2008, p.

107):

O ajustamento do Direito à contingência permite ver com maior clareza a transformação em curso: uma decisão judicial não mais é convincente apenas porque ela invoca o ‘bom e velho Direito’, ou mesmo porque ela esteja em sintonia com princípios tradicionais e amplamente consentidos. O Direito passa a ser concebido como algo disponível, com o que ganha flexibilidade e a potência de responder prontamente a demandas contingentes de seu meio. Princípios indisponíveis seriam apenas barreiras a um Direito positivo assim concebido.

Cogita-se na doutrina, igualmente, da construção e do estabelecimento de um outro

Direito penal ao lado do Direito criminal tradicional, ambos recepcionados pelo Estado

Democrático de Direito e convivendo simultaneamente, mas sendo aquele identificado como

o Direito penal do inimigo, criação alemã de Jakobs92, marcado exatamente pela supressão ou

diminuição das garantias do processado, que não é visto como cidadão (a quem está reservado

o direito penal tradicional com todas as suas garantias), mas como alguém que está fora do

92 Vide JAKOBS; MELIÁ, 2003. Confira-se, também, JAKOBS, 1997.

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sistema, e em cujo tratamento não se admite concessões, senão um regime de “tolerância

zero”.93

Não obstante, longe de proporcionar uma real segurança social por meio de políticas

estatais, o recorte de garantias constitucionais proposto pelos defensores da tolerância zero e

do chamado Direito penal do inimigo representa, além de um inadmissível retrocesso ao

vetusto Direito penal do autor94, uma sensação absolutamente falsa de contenção da

criminalidade e, paradoxalmente, uma clara ameaça à própria segurança de todos contra o jus

puniendi do Estado.

Em reflexão de obrigatória consulta acerca do tema, Figueiredo Dias (2008, p. 15

passim) propõe a redefinição do “ponto de equilíbrio ou (como se exprime a propósito a

doutrina jurídico-constitucional alemã) de concordância prática entre os direitos do Estado e

dos cidadãos”, por meio do estabelecimento de uma política criminal que diferencie a

criminalidade geral, ainda que extremamente grave, da chamada “nova criminalidade”

(especialmente o terrorismo e a criminalidade de alta organização):

(...) sob pena, de outro modo, de chegarmos, em breve prazo, a uma situação insuportável: a de nos vermos confrontados com a existência de seres humanos – os terroristas primeiro, os criminosos especialmente perigosos e brutais depois, em seguida sabe-se lá quem mais... – aos quais é retirada pura e simplesmente a proteção do Direito e são degradados à condição inumana de ‘inimigos’ ou de ‘excluídos’.

Com efeito, conforme acertadamente adverte Crespo (2006, p. 152):

(...) se não quiser retroceder no caminho empreendido há muito tempo em defesa de uma consideração garantista e humanista do Direito penal, não se pode perder de vista que a contraposição entre liberdade e segurança não pode decantar-se unilateralmente a favor desta última. Pode-se defender razoavelmente, e com bons argumentos, que ambos os pólos não estão desvinculados entre si, e que para garantir a liberdade precisa-se da segurança. Porém, em todo caso, deve-se ter em conta que o direito penal não pode por si só oferecer segurança, mas somente oferecer uma pequena e limitada contribuição a esta. Ao mesmo tempo é preciso diferenciar entre segurança através do Estado, e o conceito de segurança frente ao Estado, para não desvalorizar a saudável eqüidistância entre ambas. O Direito penal

93 Crítica ferrenha, neste particular, a tecida por Ambos (2008, p. 68): “O homem não é protegido em razão de um próprio direito por sua condição humana, senão como membro útil do grupo ou da sociedade, resultando, em definitivo, instrumentalizado e desindividualizado: ‘o indivíduo é degradado a condição de mera engrenagem dentro de um contexto de função maior, limitado a reconhecer ou assumir como próprio um ordenamento que lhe foi dado, sem atenção à qualidade concreta das normas garantidas, e sem consideração de seu próprio ponto de vista”. 94 A propósito da correta identificação do Direito penal do inimigo, em trecho que revela a indisfarçável intimidade de tal construção com um Direito penal do autor, Gracia Martín (2003, p. 122) oportunamente assevera: “Los datos concretos que sirven de base a las regulaciones específicas del Derecho penal del enemigo son la habitualidad e la profesionalidad de sua actividades, pero sobretodo su pertenencia a organizaciones enfrentadas al Derecho y el ejercicio de su actividad al servicio de tales organizaciones”.

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deve proteger bens jurídicos essenciais para a convivência e garantir por esta via a liberdade individual de todas as pessoas.

Esta discussão é extremamente presente no âmbito do comércio exterior, tendo em

vista, principalmente, as suas características transnacionais e os interesses coletivos – em

contraposição aos bens jurídicos individuais protegidos pelo clássico Direito penal –

envolvidos. Roxin (2007, p. 16) não hesita em apontar, como um dos desafios da ciência

jurídico-penal do futuro, a necessidade de posicionar o Direito penal sobre bases globais,

afirmando, justamente, que “la ciencia jurídico-penal del futuro tendrá que ser practicada

más que hasta ahora sobre uma base internacional.”

Voltando os olhos para o caráter transnacional inerente ao comércio exterior, o atual

desenho da comunidade global – disposta, muitas vezes, como se um só Estado fosse –

impulsionou, inclusive, a idéia de construção de uma República Mundial de cidadãos,

conforme proposta de Höffe (2005, p. 1), pois:

(...) já que a forma básica da organização coletiva reside em um ente jurídico e estatal, esse poder organizacional se revela imprescindível, também, em escala global. Se, entre indivíduos e grupos, devem reinar, em lugar da violência, o direito e a justiça, e se ambos devem ser ‘organizados’ democraticamente, então o mesmo princípio deveria valer para além das fronteiras dos Estados e entre os Estados.

E se é necessário instituir uma ordem jurídica que deve orientar, transnacionalmente95,

as condutas dos cidadãos mundiais, jamais se poderá olvidar que esta ordem jurídica deverá

estar pautada nos Direitos humanos, rechaçando-se, definitivamente, qualquer possibilidade

de tratamento diverso, nomeadamente no âmbito do Direito penal, ainda que este, no dizer de

Tiedemann (2007, p. 68), deva desempenhar um papel secundário96, devendo-se abrir espaço,

em um primeiro plano, para as regulamentações relativas ao “derecho aduanero, tributario,

de la competencia, del trabajo y otras áreas que garanticen el libre tráfico de productos y

95 Sempre lembrando que os delitos verificados no comércio exterior, como já afirmado, estão inseridos no contexto do Direito penal econômico, e em consonância com a realidade brasileira, vale a observação de Faria Costa e Costa Andrade (2001, p. 116-117), no seguinte sentido: “Fácil é compreender que a economia, mesmo para os mais nacionalistas, se caracteriza por um forte componente de relações internacionais. E as coisas tornam-se ainda mais complexas se tivermos em mente economias sub-desenvolvidas ou mesmo em vias de desenvolvimento. É que os Estados que se debatem com estas estruturas econômicas têm normalmente de equacionar políticas econômicas aparentemente antagônicas: por um lado, um forte pendor intervencionista (protecionismo) – e aí temos eventualmente o direito penal a ser chamado – e, por outro lado, necessidade de abertura ao exterior por manifesta carência, quer de capitais, matérias primas e mesmo know-how.” 96 Em suas palavras: “El Derecho penal, como refuerzo de estos objetivos de política econômica y de Derecho económico, juega, sin embargo, um papel por lo menos de segundo orden como garantía de las regulaciones primárias del Derecho economico.”

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servicios, así como el tráfico de capitales y las regulaciones que se segurán la protección de

los trabajadores.”

Particularmente quanto ao papel (subsidiário) do Direito penal nesta comunidade

jurídica internacional – que viria bem a calhar na padronização das regras fundamentais a

serem observadas por quem se dedica ao comércio exterior –, Ambos (2008, p. 75) não destoa

do pensamento segundo o qual “a fundamentação teria como pressuposto uma concepção de

direito penal baseada no indivíduo e sua dignidade humana inviolável”.

Finalizando estas iniciais considerações sobre a responsabilidade criminal decorrente

dos crimes verificados no comércio exterior, e em consonância com o que até aqui foi dito,

não se deve esquecer, jamais, do caráter fragmentário do Direito penal. Sua subsidiariedade e

atuação racional, características retratadas, como bem destacado por Cruz (2007, p. 41), em

“uma dogmática penal emancipatória, comprometida com o postulado intransponível do

reconhecimento da dignidade inerente ao ser humano e – como tal – destinada à contenção do

poder punitivo estatal”, encontram vasto campo de aplicação no âmbito do comércio exterior.

Isto é assim, notadamente, por força de todas aquelas circunstâncias já examinadas no

Capítulo introdutório desta pesquisa (em especial, item 1.2 do Capítulo 1) e resumidas na

importância que o comércio internacional representa para a economia mundial e, igualmente,

na necessidade de se conferir plena garantia à liberdades constitucionalmente asseguradas

àqueles que se dedicam ao seu exercício.

4.3 OS MODELOS DE FATO PUNÍVEL. NOSSA OPÇÃO

Uma última intervenção antes da análise específica sobre os delitos relacionados ao

comércio exterior se impõe. É preciso, com efeito, delimitar que modelo de fato punível será

considerado durante a incursão dogmática que recairá sobre os tipos penais examinados a

seguir. Não nos parece desarrazoado, nesse passo, traçar um breve retrospecto histórico em

torno da matéria97.

No campo dos modelos de fato punível, como se sabe, a primeira metade do século

XX foi dominada pela teoria causalista, segundo a qual todo e qualquer evento que

contribuísse para o resultado deveria ser considerado causa eficiente deste mesmo resultado.98

97 Sobre um desenvolvimento dos sistemas do fato punível, vide, inicialmente, ROXIN, 2006, p. 196-231. 98 Expoentes da teoria causalista são, dentre outros, Ernst Von Beling e Franz Von Liszt.

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Vigorava, portanto, a teoria da equivalência das condições ou da condictio sine qua non.

Nesta concepção, o tipo penal incriminador representava, apenas, a causação de um resultado,

de maneira que a adequação típica objetiva era imediatamente preenchida, sem mais

complicações, por quem quer que, de uma ou de outra forma, estivesse posicionado na linha

causal do resultado previsto. Eventuais problemas de imputação eram resolvidos, destarte,

pelo recurso ao aspecto subjetivo, representado pelo dolo e pela culpa, categorias situadas na

culpabilidade e, portanto, fora do injusto. O tipo penal reduzia-se ao plano objetivo e,

materialmente falando, o desvalor encontrava-se apenas no resultado.99

Dizia-se, por exemplo, que a simples fabricação de uma arma seria causa eficiente da

morte da vítima se, por exemplo, este objeto viesse, muitos anos depois, a ser utilizado por

outrem em um assassinato. O fabricante do armamento teria, então, preenchido objetivamente

o tipo penal de homicídio, pois a abstração mental da circunstância “fabricação” seria

suficiente para evitar o resultado.100 Inexistindo qualquer causa excludente da ilicitude do

fato, sua conduta também seria ilícita. O crime de homicídio, todavia, não lhe poderia ser

imputado em razão da ausência de dolo ou culpa, isto é, por força da inexistência de

culpabilidade.

Em seguida, contrapondo-se a esta concepção puramente objetiva do tipo penal, a

teoria finalista da ação, surgida logo após a Segunda Guerra Mundial, propugnava a

remodelação da norma incriminadora.101 Segundo os finalistas, é na própria descrição

fornecida pelo tipo que devem estar necessariamente inseridos os elementos subjetivos dolo e

culpa, uma vez que a conduta humana – justamente aquela descrita pelo tipo penal – é,

ontologicamente, um comportamento guiado por uma finalidade predeterminada. Vale dizer,

se a conduta descrita no tipo penal corresponde justamente ao conceito ontológico de ação

humana, e não a uma definição normativa, criada pelo Direito, e se o que caracteriza esta ação

humana é o seu aspecto subjetivo, este aspecto não pode estar em outro lugar que não,

justamente, na própria descrição da conduta, isto é, no próprio tipo penal.

Portanto, o que a doutrina finalista fez foi dividir o tipo penal em dois elementos: o

objetivo, que corresponde exatamente àquele da teoria causalista; e o subjetivo, integrado pelo

dolo e pela culpa, categorias que no entender dos causalistas, como visto, situavam-se na 99 Para Tavares (2000, p. 134), a maior contribuição da teoria causal foi o conceito de tipo, cunhado por Beling, que representou “verdadeira revolução no direito penal, de tal modo que depois disso, todas as construções sistemáticas do delito partem inquestionavelmente de seu pressuposto.” 100 Oportuna a referência de Anibal Bruno (1978, p. 323), para quem: “O decisivo é que sem essa condição o resultado não pudesse ocorrer como ocorreu. Que, eliminada mentalmente a condição, desaparecesse do mesmo modo o resultado – o chamado processo hipotético de eliminação.” 101 Defensores da corrente finalista são Hans Welzel, seu propulsor; Reinhart Maurach; Amir Kaufmann e muitos outros.

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culpabilidade. No âmbito material e normativo, ao desvalor do resultado (causação de lesão

ao bem jurídico), único relevante para a teoria causalista, adicionava-se o desvalor da ação,

representado pela finalidade. 102

Com esta concepção, o problema exemplificativo ao qual nos referimos linhas acima

ainda encontraria solução no aspecto subjetivo, mas já no campo da tipicidade, e não mais da

culpabilidade. A morte do sujeito não pode ser imputada ao fabricante da arma porque sua

conduta é atípica, destituída de finalidade, seja dolosa, seja culposa.

Abstraindo outras variações que as teorias do fato punível sabidamente admitem103,

chegamos aos dias atuais e, objetivamente, ao motivo pelo qual entendemos pertinente esta

digressão a respeito dos modelos de fato punível: a teoria da imputação objetiva.104 A sua

relevância não permitiria ignorá-la e, considerando-a, seria preciso fazer referência às

concepções (causalista e finalista) anteriores.

A introdução do aspecto subjetivo do tipo, novidade proposta pela teoria finalista,

monopolizou, durante muito tempo, as atenções da doutrina penal. A imputação objetiva, por

seu turno, adiciona outros elementos ao próprio aspecto objetivo do tipo penal, mantendo

intacto o seu elemento subjetivo, tal qual construído sobre as bases finalistas. O tipo objetivo

não deve esgotar-se na mera relação causal comportamento-resultado, pois, conforme anota

Greco (2007, p. 9), “é necessário algo mais para fazer dessa causação uma causação

objetivamente típica”. Os novos elementos introduzidos pela concepção analisada no tipo

objetivo são: a criação de um risco não permitido e a realização deste risco no resultado.

Disso resulta, normativamente falando, uma complementação das noções do desvalor da ação

e do desvalor do resultado. Conforme esclarece Greco (2007, p. 12):

O desvalor da ação, até agora subjetivo, mera finalidade, ganha uma face objetiva: a criação de um risco juridicamente proibido. Somente ações intoleravelmente perigosas são desvaloradas pelo direito. Também o desvalor do resultado é enriquecido: nem toda causação de lesão a bem jurídico referida a uma finalidade é desvalorada; apenas o será a causação em que se realize o risco juridicamente proibido criado pelo autor. Ou seja, a imputação objetiva acrescenta ao injusto um desvalor objetivo da ação (a criação de um risco juridicamente desaprovado), e dá ao

102 Importa salientar, com Toledo (1994, p. 95), que a evolução da concepção finalista não se deu de maneira a negar o fenômeno causal que a antecedeu, e sim “consistiu, principalmente, em adicionar-se-lhe o ingrediente da intencionalidade (mais tarde, finalidade).” 103 Vide, exemplificativamente, na doutrina nacional, Cirino dos Santos (2007, p. 75): “Na linha do sistema tripartido do fato punível, a dogmática penal conhece três modelos sucessivos de fato punível: o modelo clássico, o modelo neo-clássico e o modelo finalista...”. 104 Por todos, vide Roxin e, no Brasil, Greco. Há peculiaridades em cada uma das abordagens e aproximações feitas pelos autores estrangeiros – notadamente alemães – à teoria da imputação objetiva. Os limites deste estudo não nos permitem avançar nesta assertiva. Para um panorama geral e sintetizado destas posições (especialmente de Jakobs, Frisch e Puppe), vide: ROXIN, 2002.

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desvalor do resultado uma nova dimensão (realização do risco juridicamente desaprovado).

Sem embargo de tudo o que até agora foi dito, a doutrina finalista ainda apresenta

referências a serem consideradas em torno do fato punível, sendo empregada pelo nosso

Código Penal, com a reforma empreendida em 1984.105 A concepção causalista,

principalmente por ignorar a definição ontológica de ação humana, foi, há muito, descartada.

Por seu turno, o modelo da imputação objetiva ainda encontra, na literatura nacional,

inúmeras resistências. O atual panorama da imputação objetiva no Brasil é oportunamente

ilustrado na seguinte observação de Greco (2007, p. 1):

Em linhas gerais, e conscientes das imprecisões em que toda generalização importa, podemos caracterizar da seguinte maneira o estado da teoria em nosso país: de um lado, parece encontrar-se um reduzido número de eleitos, que incorporou em seu linguajar de modo decidido o vocabulário da nova teoria; enquanto do outro, vê-se uma grande massa – da qual fazem parte não apenas estudantes, como também práticos do direito e a maior parte dos docentes – na qual impera uma atitude que é um misto de desorientação, admiração e temor. Essa atitude é não apenas compreensão dos membros do primeiro grupo nem sempre corresponde uma análoga consistência nas afirmações.

Destarte, a doutrina da imputação objetiva ainda não está, entre nós, sedimentada o

suficiente para servir de parâmetro (exclusivo) às eventuais considerações dogmáticas que

serão tecidas durante o desenvolvimento do texto. A sua utilização pela prática jurisprudencial

ainda não encontra a receptividade almejada, o que, por outro lado, não significa –

notadamente pela produção teórica da doutrina nacional106 – que ela não venha a ser acolhida,

por nosso ordenamento jurídico positivo, em futura reforma penal. Na expectativa deste

acolhimento, é conveniente, por ora, que as referências às categorias dogmáticas dos tipos

penais considerados neste trabalho tenham, como ponto de partida, o modelo finalista do fato

punível.

Isso não quer dizer, advirta-se, que tais categorias dogmáticas devem ser encaradas

estaticamente. Elas não são, nem devem ser, inflexíveis ou refratárias a contribuições

105 “O modelo finalista de fato punível se generalizou na literatura e na jurisprudência contemporâneas, com diferenças de detalhe que não afetam a estrutura do paradigma, além de influenciar diametralmente algumas legislações modernas, como a reforma penal alemã (1975) e a nova parte geral do Código Penal brasileiro (1984)”. (SANTOS, 2007, p. 78). O próprio Roxin (2008, p. 56) identifica os motivos pelos quais o finalismo encontra-se tão enraizado na realidade brasileira, asseverando: “Meu amigo e aluno Sérgio Moccia atribui ao sistema finalista o mérito de ter, ‘numa época em que imperava um terrível positivismo jurídico, correspondente à onipotência do Estado nazista”, favorecido a ‘busca de princípios e valores que devem ser independentes da vontade estatal e que têm de fazer-lhe oposição’. E talvez não seja outro o motivo de ter o finalismo ainda tantos defensores no Brasil, entre os quais se encontra o professor Cezar Bitencourt”. 106 Outorguem-se, aqui, os devidos méritos a Luís Greco.

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científicas proporcionadas por teorias que sucederam à concepção finalista.107 Na verdade,

nenhuma concepção sistemática do delito pode reivindicar exclusividade no estabelecimento

do modelo do fato delitivo108. Aliás, nenhuma teoria a respeito dos fins da pena pode,

igualmente, ter o reconhecimento absoluto como forma de resposta ao fenômeno criminoso.

Por isso, em um modelo de unidade sistemática entre a política criminal e a dogmática – que

nos parece o mais adequado – a primeira cumpre um papel da mais alta relevância. No campo

das irregularidades verificadas no comércio exterior, destarte, haverá sempre que se indagar

acerca do efetivo merecimento de pena, isto é, da responsabilidade penal, em que pese a

presença, em um dado caso concreto, da culpabilidade. A propósito, pondera Roxin (2008, p.

61)

(...) todas as categorias do sistema do direito penal se baseiam em princípios reitores normativos político-criminais, que, entretanto, não contém ainda a solução para os problemas concretos, estes princípios serão, porém, aplicados à matéria jurídica, aos dados empíricos, e com isso chegarão à conclusões diferenciadas e adequadas à realidade. À luz de tal procedimento – de uma perspectiva político-criminal –, uma estrutura ontológica com a da ação finalista parece em parte relevante, em parte irrelevante e em parte necessitada de complementação por outros dados empíricos.

Mais adiante (2008. p. 73), o autor tedesco observa que a presença de culpabilidade

não pode ser considerada, isoladamente, condição para a punibilidade do agente: “(...) a pena

pode ser excluída no caso de culpabilidade em si existente, mas bastante reduzida, por não

existir necessidade preventiva de punição. Em tais hipóteses, não falo em exclusão de

culpabilidade e sim da responsabilidade penal.”109

As atividades de comércio exterior, exercidas sob a égide das garantias constitucionais

do livre exercício de trabalho, ofício e profissão, devem ter nesta categoria da

responsabilidade penal, paralela e independente da culpabilidade – assim como em outras

107 Como adverte Cirino dos Santos (2007, p. 78) a respeito da perspectiva adotada em sua própria análise na Segunda Parte (“Do fato punível”) da obra “Direito Penal, parte geral”: “... o texto trabalha com um modelo de fato punível construído pelo finalismo – como aliás, fazem todas as teorias pós-finalistas –, mas incorporando importantes contribuições científicas produzidas pela teoria posterior, como, por exemplo, a categoria da imputação objetiva do resultado e a teoria correlacionada da elevação do risco, desenvolvidas, basicamente, por ROXIN, que simplificam o método de compreensão e aprofundam o nível de conhecimento dogmático do conceito do crime”. Acrescentamos, ademais, que as contribuições anteriores também não são de todo descartadas. Basta verificar, por exemplo, a importância do conceito de tipo de Beling, surgido no âmbito da doutrina causalista, e que, como já citado em linhas anteriores, direciona a evolução de todas as demais correntes existentes a respeito do modelo de fato punível. 108 Neste sentido, Bacigalupo (1997, p. 136), para quem “(...) ninguno de los sistemas tiene validez absoluta. En la medida em que ninguna de las teorias de la pena la tiene, tampoco podrían tenerla los sistemas dogmáticos conectados com ellas.” 109 Esclarecedor acerca da categoria da responsabilidade penal a seguinte passagem: “À culpabilidade, enquanto condição indispensável de qualquer pena, deve ser acrescentada também à necessidade preventiva (geral ou especial), da sanção penal, de modo que a culpabilidade e exigências de prevenção limitem-se reciprocamente, e só cheguem à ‘responsabilidade’ pessoal do autor se concorrerem em conjunto” (ROXIN, 2002, p. 207-208).

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construções próprias das teorias normativas pós-finalismo – um escudo protetor adicional

contra o poder punitivo do Estado (se já não bastasse reafirmar o fato – como não tem bastado

– de que o Direito penal é a última ratio do sistema). É sob esta perspectiva que deve ser

enfrentado o problema penal no âmbito do comércio exterior: um finalismo permeado pela

discussão político-criminal.

4.4 TIPOS PENAIS INERENTES À ATIVIDADE DO COMÉRCIO EXTERIOR. O

CONTRABANDO E O DESCAMINHO

4.4.1 Aspectos gerais sobre as duas figuras típicas

O contrabando e o descaminho, figuras típicas tratadas pelo ordenamento jurídico

brasileiro de maneira conjunta, em um só dispositivo legal previsto no Código Penal (artigo

334), são os delitos mais comumente verificados no âmbito do comércio exterior, pois

guardam relação direta e exclusiva com o próprio objeto das relações internacionais, qual seja

a entrada e a saída de mercadorias do território de um determinado país.

Ainda sem a diferenciação técnica atualmente encontrada, ao menos no ordenamento

jurídico brasileiro110, acerca do contrabando e do descaminho, Beccaria (2005, p. 117)

afirmava, já em meados do século XVIII, que a própria lei, ao estabelecer o aumento das taxas

aduaneiras, acabava por fomentar o delito de contrabando, circunstância para a qual também

contribuía a escassez de determinadas mercadorias – em uma clara referência às idéias

110 Veja-se que na Argentina, exemplificativamente, a conduta designada contrabando, prevista no artigo 863 do Código Aduaneiro daquele país (Lei 22.415), é mais ampla que a descrição do contrabando/descaminho nacional, pois não há secção do tipo. Reza o mencionado dispositivo portenho que o contrabando é a ação daquele que, por meio de “cualquier acto y omisión, impidiere o dificultare, mediante ardid o engano, el adecuado ejercicio de las funciones que las leyes acuerdan al servicio aduanero pela el control sobre las importaciones y exportaciones”. Entende-se que nesta descrição, especialmente na expressão “qualquer ato tendente a impedir ou dificultar o exercício das funções aduaneiras”, inclui-se não só condutas destinadas a abstrair da fiscalização o controle sobre mercadoria cuja importação ou exportação sejam ou estejam proibidas, mas também suprimir tributos devidos em razão da entrada ou da saída de mercadorias de negociação permitida, pois, segundo TOSI (2002, p. 24) “puede ocorrir quando se declara en diversa posición arancelaria. Esta possición es la que se le da a la mercadería, según los convenios internacionales, a los fines de su arancelamiento, es decir, otorgándole un valor para el tratamiento similar por los diferentes países”. Situação semelhante, conforme lição de Hungria (1959, p. 432), ocorria com a antiga legislação penal brasileira, uma vez que “o Código anterior abrangia todas as hipóteses sob o nome único de contrabando, embora os intérpretes fizessem a distinção, inspirados nos arts. 279 e 280 do Código português”.

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iluministas e liberais de seu contemporâneo Adam Smith – e a extensão da fronteira territorial

a ser vigiada, observando que:

(...) este delito nasce da própria lei, pois, aumentando a taxa aduaneira, aumenta sempre a vantagem e, portanto, a tentação de praticar o contrabando e a facilidade de cometê-lo cresce com a extensão da fronteira a ser vigiada e com a diminuição do volume da própria mercadoria. O confisco dos bens contrabandeados e das coisas que os acompanham é justíssimo, mas será tanto mais eficaz quanto menor a taxa aduaneira, porque os homens só se arriscam na proporção da vantagem que lhes propicia o bom êxito de um empreendimento.

Entre nós, Hungria (1959, p. 434) asseverou no mesmo sentido, invocando lição de

Ferri e mesmo de Adam Smith – o qual considerava “lei contrária a todos os princípios de

justiça a que pune o contrabando depois de haver criado a tentação, e quanto mais intensa

esta, tanto mais agrava a punição”111 – para atestar que:

Dentro das realidades atuais, o que apresenta como de boa política é tão-somente evitar a agravação dos direitos alfandegários, para não aumentar a vantagem da fraude (e...não onerar a já tão desfalcada bolsa do público); mas não se pode deixar de incriminar o contrabando, pois, de outro modo, o Direito Penal estaria a ensarilhar as armas diante um audacioso expediente de locupletação ilícita, uma espolição contra o erário, uma sonegação de rendas destinadas aos fins coletivos e uma desleal concorrência ao comércio honesto.

Realmente, como anota Fragoso (1984, p. 475), atualmente não há cogitar-se da

impossibilidade de criminalização do contrabando, pois tal conduta “ofende interesses

públicos de grande relevância, não havendo a menor possibilidade de que desapareça das

legislações modernas, que tendem visivelmente a incriminar, de forma crescente, a fraude

fiscal”. E, com efeito, o Código Penal brasileiro, no Capítulo 1 do Título XI (Dos crimes

praticados por particulares contra a Administração em geral), tipifica o delito de descaminho

– juntamente com o crime de contrabando, em descrição única – no artigo 334, assim

dispondo:

Art. 334. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

111 A propósito de tal afirmação, de feição liberal extrema, Fragoso (1984, p. 475) lembra passagem de Viveiros de Castro (1898), responsável por difundir este mesmo pensamento na literatura penal pátria, oportunidade em que categoricamente afirmou: “A fraude aduaneira não ofende ao sentimento médio de probidade de nosso povo, nem ao seu misoneísmo; portanto, ele nunca achará justo que se prive da liberdade quem, no seu conceito, não comete crime algum”.

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O § 1.º do artigo 334 relaciona quatro hipóteses de contrabando ou descaminho por

equiparação, as quais serão abordadas em tópico apropriado.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo dos delitos de contrabando e descaminho, pois

são crimes de natureza comum. Entretanto, vale ressaltar, com Machado (1998, p. 218), que:

(...) se ocorrer participação de funcionário público transgredindo o seu dever funcional de impedir o contrabando e o descaminho, dá-se a chamada secção de unidade do tipo, vale dizer, o particular será autor do delito de art. 334, enquanto que o funcionário público, que tem o dever de impedir o contrabando e o descaminho e não o fez, será autor de outro delito, no caso o do art. 318, do CP.

De acordo com Régis Prado (2007, p. 334), no contrabando o sujeito passivo é a

União, enquanto que no descaminho é o ente político a quem aproveitaria o tributo sonegado

(União, Estados-membros, Distrito Federal ou Municípios).

Consoante já restou consignado, o legislador optou por uma descrição típica conjunta

dos delitos em análise: a primeira hipótese da norma em estudo, importação ou exportação de

mercadoria proibida, perfaz o delito de contrabando, enquanto que o iludir, no todo ou em

parte, imposto devido sobre a importação ou exportação de mercadorias permitidas,

caracteriza o descaminho. Para Carvalho (1983, p. 12) a opção legislativa pelo tipo único se

justifica na medida em que:

(…) as fronteiras entre os dois ilícitos tornam-se menos rígidas quando se verifica que a proibição de importar ou exportar que diferencia o contrabando do descaminho pode ser apenas relativa. Isto é, traduz-se em mera suspensão de importação, ou seja, proibição de importar ou exportar por certo período de tempo ainda que indeterminado...Diz-se absoluta a proibição legal quando a mercadoria, conforme as legislações que integram o tipo, não pode em tempo algum, e sob qualquer forma, ser importada ou exportada...A proibição é relativa quando a mercadoria tem vedada a sua exportação ou importação como medida contingente de protecionismo estatal a determinados setores da economia intera do país.

Tendo em conta que a importação ou a exportação de mercadorias consideradas

absolutamente proibidas geralmente perfazem tipos penais autônomos (e.g., o tráfico

internacional de entorpecentes – Lei 11.343/06; e artigo 289, § 1.º, do Código Penal, que trata

da importação e exportação de moeda falsa), a primeira parte do artigo 334, do Código Penal,

ou seja, o delito de contrabando, acaba sendo reservado para os casos em que a proibição é

relativa, pois a fugacidade da legislação extrapenal destinada a estabelecer quais são as

mercadorias de importação e exportação relativamente proibidas – característica própria da

normatização estatal vinculada à contingências econômicas – faz com que a conduta possa

estar apenas temporariamente subsumida ao delito de contrabando, podendo configurar, em

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ocasião imediatamente posterior, procedimento atípico do agente ou, constatada a ausência de

recolhimento de tributos devidos pela entrada ou pela saída deste produto, conduta que se

amolda ao crime de descaminho.

Os dois delitos se identificam em vários aspectos, o que de certa forma auxilia os

defensores da opção legislativa do tipo único. Primeiramente, de acordo com a opinião da

doutrina e da jurisprudência112, ambos se consumam, onde há posto alfandegário, com a

liberação da mercadoria transportada e, onde não há controle aduaneiro, com a entrada ou a

saída da mercadoria do território nacional.

Para Fragoso (1984, p. 478-79), o exame a respeito da consumação do delito depende

do fato de a operação ter sido promovida, ou não, através de aduana, pois “não se pode dizer

que já tenha sido importada a mercadoria que ainda não foi desembaraçada”. Assim, se

realizada pela aduana, consuma-se o delito com a liberação da mercadoria pela fiscalização.

Diversamente, “se a operação não se faz através da alfândega, está o crime consumado desde

que a mercadoria chegue ao território nacional ou dele se afaste”. A opinião é compartilhada,

sem nenhum ponto dissonante, inclusive no tocante à admissibilidade da tentativa nas

hipóteses de iter fracionável, por Bitencourt (2004, p. 486); Costa Júnior (2008, p. 847); Silva

Franco (2007, p. 1571); Régis Prado (2007, p. 334), Bonat (2004, p. 350), dentre outros.

Ainda acerca do tema referente à consumação dos delitos de contrabando e

descaminho, breve parêntesis deve ser aberto para sublinhar que o posicionamento acima

destacado, amplamente aceito pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, não deixa de

causar certa perplexidade. Com efeito, tal entendimento não parece ostentar maior rigor

técnico-científico, pois estabelece dois momentos distintos para a consumação do mesmo

delito, apenas pelo fato de existir ou não controle aduaneiro por ocasião do trânsito da

mercadoria transportada pelo agente. A fixação do momento consumativo do delito está,

portanto, na dependência de um fator externo absolutamente eventual e contingente. Se

considerarmos, ademais, a posição, igualmente aceita pela jurisprudência113, ainda que não

dominante, segundo a qual a simples ausência de apresentação da mercadoria ao agente

112 Confira-se, na jurisprudência, exemplificativamente, os acórdão do STJ no HC 27689/PR e no RESP 84622/MG. 113 A propósito, vide os seguintes precedentes do STJ: RESP 259.504/RN, Rel. Min. Felix Fischer; RESP 111.501/SE, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. O próprio STF já se manifestou neste sentido: “Descaminho. Descaracterização. Apreensão pela Receita Federal, fora da zona fiscal, de mercadoria estrangeira. Bens de ingresso não proibido no País vistoriados e desembaraçados pela autoridade fazendária sem que tenha o agente empregado fraude para obter a liberação, visando a iludir o pagamento de impostos sobre eles eventualmente incidentes. Dolo específico inexistente. Hipótese de crime impossível, por resultar de flagrante preparado, uma vez neste não envolvidos os fiscais da alfândega que liberaram a mercadoria, que consta no auto como normalmente liberada. Falta de justa causa para a instauração de ação penal. Trancamento determinado. Inteligência do art. 334 do CP. Declaração de votos (STF – RHC – Rel. Carlos Madeira – RT 642/366)”.

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fiscalizador não caracteriza o delito (por ausência de dolo de iludir o Fisco), hipótese em que

singela fiscalização poderia constatar o excesso, teríamos uma situação em que o sujeito,

nesta condição, adentrando ao território nacional onde não haja posto de controle aduaneiro

estará cometendo crime consumado, ao passo que se ingressasse por via onde existisse posto

desta natureza e lá sofresse fiscalização, vindo a ser descoberta a fraude, estaria cometendo

descaminho na modalidade tentada ou, ainda, dependendo da situação, poderia recolher os

tributos incidentes sobre o excesso da mercadoria, elidindo a caracterização do descaminho.

Neste sentido, a opinião de Bonat (2004, p. 352)

O marco para a consecução da infração em comento é, como já dito, a aduana, quando existente nas fronteiras, portos, aeroportos, aonde é realizada a fiscalização das bagagens transportadas pelos viajantes ou mercadorias em geral. Se ultrapassada aquela ‘barreira’, consuma-se a infração. Até então não se pode considerar consumada, ainda que a mercadoria esteja já em território nacional, como na divisa com a Argentina, em Foz do Iguaçu, onde existe aduana integrada, localizada em território brasileiro, já há mais de quilômetros do rio Iguaçu – divisa entre os países. Enquanto não ultrapassada a barreira alfandegária, cabível a apresentação da mercadoria para liberação. Essa liberação é perfeitamente possível, desde que a importação não seja proibida, ao contrário do contrabando. Existe uma quota-limite para o pagamento de tributos, atualmente no importe de quinhentos dólares por via aérea e de cento e cinqüenta dólares por via terrestre. Pagos os impostos incidentes sobre o valor dos produtos importados que excederem a quota citada, legalizada a introdução do produto em território nacional. Outra é a situação dos locais onde não existe aduana, quando a infração consuma-se com o ingresso das mercadorias em território nacional.

Ora, se o objetivo da norma tipificadora do contrabando é evitar a entrada ou a saída

do território nacional de mercadoria considerada proibida, ao passo que o descaminho visa a

obstar a ausência de pagamentos dos tributos devidos nestas ocasiões, protegendo os

respectivos bens jurídicos tutelados, parece claro que o objetivo da norma não guarda relação

com a definição técnica de importação e de exportação. Estas operações, consoante já restou

consignado em capítulo anterior (item 2.4, Capítulo 2) só se perfazem após um conjunto de

atos administrativos praticados pelas autoridades aduaneiras e que culminam, após o seu

desembaraço aduaneiro, com a liberação da mercadoria ao agente. Veja-se que na lição de

Morais (1962, p. 265), para efeito de caracterização do tipo objetivo do contrabando e do

descaminho, importar significa “trazer para dentro do país” e, exportar, “enviar para fora do

país”. Mesmo Hungria (1959, p. 437-38), em posicionamento contrário ao manifestado pela

doutrina atualmente dominante e ilustrada no exemplo de Bonat, acima citado, dava sinais de

que não se podia considerar a Aduana como elemento decisivo para a consumação do crime,

vaticinando que:

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Nem há dizer-se que, em qualquer caso, enquanto a mercadoria se achar dentro da zona fiscal, somente poderá ser reconhecida a tentativa de contrabando ou descaminho. (...) Na hipótese de importação, o crime se consuma desde que a mercadoria entre no território nacional, não sendo necessário que seja transportada ao local a que era destinada. Somente no momento anterior a essa entrada é que poderá ser identificada a simples tentativa.

No mesmo sentido, nos parece imprescindível transcrever trecho da lição de Carvalho

(1998, p. 14-15), que assim se posiciona:

O momento da consumação do delito, na modalidade de exportação, surge quando a mercadoria ultrapassa a linha de fronteira para fora do território nacional; na forma de importação, o delito consuma-se tão logo a mercadoria se encontre em território nacional, ainda que dentro dos limites da zona fiscal. Tanto na forma de exportação quanto na de importação, o crime se consuma quer o agente evite a barreira alfandegária atravessando clandestinamente a linha de fronteira, quer o agente passe através das citadas barreiras, iludindo o pagamento dos encargos respectivos. Vale gizar, no entanto, que o descaminho na modalidade de exportação requer, para consumar-se, a ultrapassagem da linha de fronteira, quando termina, portanto, a zona fiscal; enquanto o agente não cruza a fronteira, achando-se dentro da zona fiscal, o delito permanece tentado; já no descaminho por importação, o delito consuma-se ainda nos limites da zona fiscal, não se cogitando de haver o agente ultrapassado a faixa de fronteira.

Portanto, salvo melhor juízo, não há como vincular o momento consumativo do delito

de contrabando ou descaminho com o desembaraço aduaneiro da mercadoria. Melhor seria

adotar critério geral, desvinculado da existência do controle alfandegário, fixando o momento

consumativo do delito como sendo aquele da transposição física da mercadoria em território

nacional, haja, ou não, fiscalização aduaneira.

A par desta questão, e atestando, ainda, a identidade entre contrabando e descaminho,

observa-se que ambos possuem a mesma sanção penal no preceito secundário da norma e

ostentarem elemento subjetivo também coincidente, consubstanciado no dolo. Não existe, de

outro lado, previsão de modalidade culposa para nenhuma das duas condutas delitivas.

Não obstante, há, por certo, diferenças substanciais entre os dois crimes, constatação

que impulsiona as críticas contra a já mencionada descrição única. De fato, diferentemente do

contrabando, crime que afronta bens jurídicos diversos do Erário Público (via de regra a

segurança, a saúde e a moralidade públicas), o descaminho é fundamentalmente um delito que

ostenta natureza tributária específica, porquanto referente à sonegação de tributos incidentes

em razão de operações de comércio exterior que têm por objeto mercadorias de trânsito

permitido. Nesse sentido anota Rosenthal (1999, p. 17): “(...) entendemos constituir o

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descaminho delito de natureza eminentemente fiscal, equiparável aos chamados Crimes

Contra a Ordem Tributária, descritos nos artigos 1.º e 2.º da Lei 8.137/90.”

Vale ressaltar, entretanto, que apesar da exata assimilação entre o descaminho e os

demais crimes de natureza fiscal, decorrência lógica da interpretação sistemática e

constitucional do ordenamento jurídico brasileiro, a Lei 9.249/95, ao tratar da possibilidade de

extinção da punibilidade do agente pelo pagamento dos tributos sonegados faz referência,

apenas, aos delitos previstos nas Leis 8.137/90 e 4.729/65.114 A omissão do legislador no

tocante à possibilidade de aplicação de tal benefício ao descaminho não passou despercebida

pela doutrina. A propósito, Régis Prado (2007, p. 941) observa que sem prejuízo da

literalidade do dispositivo legal em comento, “(...) entende-se que é possível a

admissibilidade deste favor legal em todos os delitos fiscais, inclusive no descaminho”,

embora não se possa, de fato, aplicá-lo ao contrabando, pois neste caso “não há tributo

sonegado”.

Historicamente, o Supremo Tribunal Federal admitia a aplicação do favor legal de

extinção da punibilidade em razão do pagamento dos tributos sonegados no descaminho,

estendendo-o também ao contrabando. Editou-se, a respeito do tema, a Súmula 560, segundo

a qual: “A extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se ao crime de

contrabando ou descaminho, por força do art. 18, parágrafo 2.°, do Decreto-Lei 157/67”.

Como anota Silva Franco (2007, p. 1572), a possibilidade de extensão do benefício ao

contrabando e ao descaminho foi afastada por expressa disposição prevista no Decreto-Lei

1.650/78 e, posteriormente, na Lei 6.910/81, até a edição da Lei 9.249/95 que, silenciando a

respeito do contrabando e do descaminho, refere-se apenas, como visto, aos delitos contra a

ordem tributária previstos nas Leis 8.137/90 e 4.729/65 (“estando esta última revogada, a

extinção só alcançaria os delitos previstos na primeira”). A doutrina, entretanto, como já

enfatizado, é categórica em afirmar a possibilidade de aplicação do benefício ao delito de

descaminho, em razão de sua natureza eminentemente tributária.115 Precisa, neste particular, a

lição de Rosenthal (1999, p. 39) ao asseverar:

(...) a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo deve, portanto, com fundamento no princípio constitucional da isonomia, atendendo ao expressamente disposto no art. 34 da Lei 9.249/95, e finalmente, em coerência com o moderno

114 Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia. 115 Além dos dois autores citados, confira-se a doutrina de: Eustáquio Nunes Silveira, Roberto Soares Garcia, Ives Gandra da Silva Martins, Paulo José da Costa Júnior, dentre outros.

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pensamento doutrinário, esboçado pelo anteprojeto do Código Penal, aplicar-se a qualquer crime de natureza fiscal, incluído neste rol, o delito de descaminho.

Em consonância com tal pensamento, Schmidt (2003, p. 123), para quem:

(...) se também o crime de descaminho tutela, de uma maneira geral, o sistema tributário nacional (Cap. I do Título VI, da CRFB/88), forçoso é concluir-se no sentido da possibilidade de aplicação analógica do art. 34 da Lei n. 9.249/95, como forma de restabelecer-se a unidade de ilicitudes do nosso sistema jurídico-penal.

E, enfim, posicionando-se da mesma maneira, o colendo Superior Tribunal de Justiça

recentemente decidiu, ao contrário da posição ainda dominante naquela Corte:

Como já estabeleciam os romanos: ubi eadem ratio, ibi idem ius. Ora, se há a previsão da causa de extinção de punibilidade do art. 34 da Lei n. 9.249⁄95 para a sonegação fiscal, evitá-la no tocante ao descaminho representa uma quebra lógica do sistema, haja vista que a opção político-criminal da eximente é-lhe plenamente aplicável.116

Ainda quanto a este aspecto, não se pode olvidar do posicionamento segundo o qual o

perdimento das mercadorias importadas, exatamente por saldar eventual prejuízo ao Erário,

deveria ser considerado, igualmente, causa extintiva da punibilidade no descaminho.

Consoante adverte Rosenthal (1999, p. 46) “(...) aplicada a pena de perdimento das

mercadorias em processo administrativo fiscal, estará inegavelmente reparado o dano ao

erário, atingido assim, o escopo do artigo 34, da Lei n.º 9.249/95”.117

A possibilidade de reconhecimento da extinção da punibilidade no descaminho pelo

perdimento das mercadorias importadas – não fosse decorrência lógica do sistema, que

admite, nos crimes tributários, a exclusão da punibilidade pelo pagamento do valor devido118

116 HC 48805/SP – 6. Turma – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – DJU 19/11/2007. Em sentido contrário, entretanto, ainda no âmbito do STJ, entendendo que a extinção da punibilidade pelo pagamento deve ser reconhecida apenas no tocante aos delitos previstos pela Lei 8.137/90, veja-se: HC 47761, Rel. Min. Laurita Vaz, HC 43591, Rel. Min. Felix Fischer, RHC 16109, Rel. Min. Felix Fischer, HC 9773, Rel. Min. Fernando Gonçalves, REsp 164492, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, e HC 46643, Rel. Min. Hélio Quaglia Brabosa. 117 No mesmo sentido posiciona-se SOUZA (1996, p. 11), uma vez que “... ao decretar o perdimento, o pagamento do tributo e acessórios será, dentro da perspectiva legal, recomposto”. Ainda a propósito, esclarece o magistrado (1996, p. 12): “A legitimidade do perdimento repousa na sua aptidão para ‘compor’ o dano ao erário.- e isto pode ir além do montante do tributo e seus acessórios – embora, repito, nem a lei, nem a doutrina, nem a jurisprudência o esclareça – mas não aquém.” Sem embargo, a jurisprudência tem sistematicamente entendido que: “O perdimento de bens de procedência estrangeira apreendidos é sanção administrativa, sem relevância sobre a extinção da punibilidade do crime de descaminho.” (STJ, HC 97621/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU em 09/01/2009). 118 Aqui, novamente, encontramos apoio na lição de Souza (1996, p. 15): “Reconhecer ao descaminho a mesma ‘ ratio’ introduzida para as demais sonegações – porque o regime jurídico repressivo do primeiro é mais severo, compulsório e instantâneo, repita-se à exaustão –, é questão de justiça, de direito estrito, imperativo de coerência do próprio sistema decisório”.

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– seria medida orientada por motivos de política criminal, à luz da desnecessidade de

prevenção geral ou especial e, portanto, mais consentânea com os fins do Direito penal.

Discutível, aqui, o merecimento de pena, pois em que pese a existência de culpabilidade, não

se poderia afirmar, categoricamente, pela responsabilidade penal do agente, como quer Roxin

(vide exposição no tópico 4.3, deste Capítulo).

Outra incongruência no tratamento conferido ao descaminho, em que pese a sua

natureza tributária, diz respeito à necessidade de prévio esgotamento da via administrativa

destinada ao lançamento do tributo para que, só então, possa ser instaurada a ação penal

respectiva. Parte da doutrina entende que em se tratando de descaminho não se faz necessário

aguardar o deslinde do processo administrativo para que se possa deduzir a ação penal

respectiva.119

Com efeito, por ocasião do julgamento proferido no Habeas Corpus 84.092, o excelso

Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do eminente Ministro Celso de Mello, entendeu

que:

Tratando-se dos delitos contra a ordem tributária, tipificados no art. 1º da Lei nº 8.137/90, a instauração da concernente persecução penal depende da existência de decisão definitiva, proferida em sede de procedimento administrativo, na qual se haja reconhecido a exigibilidade do crédito tributário ("an debeatur"), além de definido o respectivo valor ("quantum debeatur"), sob pena de, em inocorrendo essa condição objetiva de punibilidade, não se legitimar, por ausência de tipicidade penal, a válida formulação de denúncia pelo Ministério Público. Precedentes. - Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I). Precedentes.120

O precedente acima antecipou decisão do pleno da Suprema Corte, tomada no HC

61.611/DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, ocasião em que se afirmou a ausência de

justa causa para o início da ação penal nos crimes tributários de natureza material (artigo 1.°,

da Lei 8.137/90) antes de ter sido tomada decisão definitiva no âmbito administrativo no que

toca ao lançamento do tributo devido.

Destarte, considerando a natureza tributária do descaminho, impõe-se, também no

concernente a este delito, o reconhecimento da necessidade de esgotamento da via

administrativa como condição para o início da persecução criminal, como, aliás, decidiu,

muito recentemente, o colendo Superior Tribunal de Justiça em acórdão proferido nos autos

119 Neste sentido: NORONHA, 2003, p. 342). 120 Vide, também: HC 85.428 /MA, Rel. Min. Gilmar Mendes; HC 85.051/MG, Rel. Min. Carlos Velloso.

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de HC 109.205/PR e relatado pela eminente Ministra (Desembargadora Convocada do e.

Tribunal de Justiça de Minas Gerais) Jane Silva, oportunidade em que restou consignado:

(...) mostra-se necessária a constituição do crédito tributário, pois, tratando-se de crime de natureza também tributária, faz-se necessária a apuração do efeito quantum do tributo iludido, situação que, consoante o disposto no artigo 142 do Código Tributário Nacional, se opera pelo lançamento tributário, procedimento de competência privativa da autoridade adminsitrativa.

Finalizando os apontamentos de ordem geral em torno do contrabando e do

descaminho, resta observar, com apoio na opinião de Machado (1998, p. 202) que ambos se

distanciam porque este último é, sem dúvida, hipótese de norma penal em branco, uma vez

que a relação das mercadorias cuja importação e exportação não são permitidas é divulgada

por normas de natureza extrapenal. O descaminho, por seu turno, se perfaz sem o amparo de

nenhuma norma complementar, malgrado a fixação de cotas, pelo Fisco, abaixo das quais se

considera o fato penalmente irrelevante. Estes temas serão tratados nos tópicos seguintes.

4.4.2 Particularidades político-criminais sobre o princípio da insignificância e o delito de

descaminho. Uma análise jurisprudencial

Na exata linha do pensamento externado pela doutrina nacional, não se pode olvidar

que “... o princípio da insignificância representa o instrumento de maior força do Direito penal

contemporâneo, sem interromper a trajetória do princípio da legalidade, para a correção dos

desvios havidos na aplicação das leis penais ao longo do tempo” (LOPES, 1997, p. 25).

De fato, corrigir desvios de aplicação da norma penal tem sido necessidade constante

desde o surgimento da moderna ciência do Direito penal, pois, como é sabido, o Iluminismo –

campo onde se desenvolveram os postulados criminais contemporâneos121 – propugnava,

justamente, a limitação do Poder absolutista estatal e a garantia de certas liberdades

individuais aos cidadãos, desideratos frequentemente ameaçados pela inadequada

interpretação das regras de natureza penal. O Princípio da Insignificância surge e se

121 Como acentua Ferrajoli (2002, p. 29): “O Direito Penal dos ordenamentos desenvolvidos é produto predominantemente moderno. Os princípios sobre os quais se funda seu modelo garantista clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes, a presunção de inocência – são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo”.

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estabelece, então, a partir da contribuição de Roxin122 e ao lado do Princípio da Adequação

Social proposto por Welzel123, como valiosíssimo instrumento para o alcance de tais

objetivos, distinguindo, oportunamente, a mera subsunção formal da conduta humana à norma

proibitiva editada pelo poder competente, daquelas ações que, para além de se enquadrarem

na moldura do tipo penal, efetivamente importem em uma violação decisiva e relevante ao

bem jurídico protegido.

Muito ao contrário do que inicialmente se poderia imaginar, o princípio da

insignificância, ao afastar a tipicidade de uma determinada conduta que se amolda

perfeitamente à descrição normativa, não representa, em absoluto, exceção ao princípio da

legalidade; em verdade, atua de maneira diametralmente oposta, fortalecendo a idéia de que o

Direito penal está reservado apenas aos casos mais graves, não devendo ocupar-se de

bagatelas, as quais devem ser enfrentadas por outros ramos do ordenamento jurídico.124 Nas

imemoriais palavras de Von Liszt (2003, p. 143):

(...) se a missão do Direito é a tutela de interesses humanos, a missão especial do Direito penal é a reforçada proteção de interesses, que principalmente a merecem e dela precisam, por meio da cominação e da execução da pena como mal infligido ao criminoso.

Pois bem. A evolução do tratamento jurisprudencial conferido por nossos Tribunais no

que diz respeito ao reconhecimento do princípio da insignificância aos delitos de descaminho

merece atenção especial, notadamente porque revela, até certo ponto, a opção político-

criminal pela extensão do Direito penal, já referida no item introdutório deste capítulo, em

contraposição à imperiosa necessidade de restringir a atuação da pena criminal na seara do

comércio exterior.

Por ocasião da criação do princípio da insignificância, Roxin (2002, p. 46-47) já

ponderava, com propriedade, que:

(...) uma análise abrangente da evolução da jurisprudência poderia demonstrar que nossos tribunais, orientados para garantir, como quer o princípio, uma proteção tão abrangente e sem lacunas quanto possível, fizeram uma interpretação extensiva dos tipos, que levou a um crescimento considerável da criminalidade em vários delitos. Sob o ângulo do princípio nullum crimen o oposto é o correto: a saber, uma interpretação restritiva, que realize a função de Magna Carta e a `natureza

122 Política Criminal y Sistema del Derecho Penal, 1972. 123 Das Deutscheb Strafrecht, 1969. 124 Para Lopes (1997, p. 38), o princípio da insignificância é princípio “densificador do conteúdo material” do nullum crimen nulla poena sine lege, a ponto, inclusive, de justificar a construção da vertente nullum crimen nulla poena sine iuria, ou seja, não deve haver crime nem pena se não houver dano grave e efetivo ao bem jurídico protegido.

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fragmentária` do Direito penal, que mantenha íntegro somente o campo de punibilidade indispensável para a proteção do bem jurídico. Para tanto, são necessários princípios regulativos com a adequação social, introduzida por Welzel, que não é elementar do tipo, mas certamente um auxílio de interpretação pra restringir formulações literais que também abranjam comportamentos socialmente suportáveis..

É certo que, com essa consideração, o renomado professor alemão fazia referência à

realidade germânica de 1970. Também é correto afirmar que a crítica lançada se voltava para

a interpretação extensiva dos tipos penais a ser combatida, a partir de então, exatamente pelo

recém criado postulado em questão (o princípio da insignificância). Sem embargo, mesmo

após a consolidação deste princípio em nível mundial, foi possível perceber, quase quarenta

anos depois, especificamente na jurisprudência brasileira relativa à sua aplicação ao delito do

artigo 334, do Código Penal, uma gradativa flexibilização de seu postulado, tendente a

confirmar aquela inicial constatação de Roxin: uma crescente interpretação extensiva do tipo

penal, por meio, agora, da interpretação restritiva do próprio princípio da insignificância.

Pois bem. A fim de considerar a irrelevância da ofensa ao bem jurídico protegido pelo

tipo do artigo 334, do Código Penal, as decisões dos nossos Tribunais sempre foram

historicamente orientadas pelo acompanhamento do que dispunha a Lei de Execuções Fiscais

a respeito do valor limite para ajuizamento, pela Fazenda Nacional, da ação executiva. Assim,

o valor – dos tributos incidentes sobre a mercadoria objeto do descaminho – tomado para

aferir o grau de ofensividade da conduta e, consequentemente, justificar a aplicação do

princípio da insignificância identificava-se com o valor que a Fazenda Nacional tinha como

parâmetro para ajuizar a respectiva demanda de execução. O fundamento é coerente, uma vez

que se não há interesse administrativo/tributário sobre os valores devidos, com muito mais

razão o fato não poderá ser considerado penalmente relevante, sob pena de quebra da

unicidade do sistema jurídico.125

A esse propósito, a Lei 9.469 de 10 de julho de 1997 assim estabelecia em seu artigo

1.º:

O advogado geral da União e os dirigentes máximos das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), a não-propositura de ações e a não-interposição de recursos, assim como requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualizados, de valor igual

125 Especialmente considerando o caráter fragmentário do Direito penal, segundo o qual este só deve atuar quando as sanções de caráter civil ou administrativo não sejam comprovadamente suficientes para proteger o bem jurídico tutelado. Se não se cogita, por meio de expressa disposição legal, do interesse administrativo pelo fato, não se pode igualmente admitir a intervenção penal.

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ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais), em que interessadas estas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas condições aqui estabelecidas.

Portanto, em um primeiro momento, se o valor do imposto devido pelas mercadorias

descaminhadas126 não atingisse R$ 1.000,00 (mil reais), além de implicar na desnecessidade

de ajuizamento da demanda de natureza tributária, o fato era também considerado um

irrelevante penal, merecendo apenas punição de natureza administrativa pelos órgãos de

fiscalização da Receita Federal (perdimento da mercadoria). A jurisprudência assim se

posicionava, como se vê, exemplificativamente, das seguintes decisões:

A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas. Aplica-se o princípio da insignificância se o valor do tributo for inferior a R$ 1.000,00 (mil reais), mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal (Lei 9.469/97). Precedentes. 127

Se a quantia de R$ 1.000,00 é o limite que o Erário considera como dispensável da ação estatal para a realização do crédito fiscal, com mais razões deverá ser o limite que se presumirá como dano sociável reprimível, importando a tutela realizada pela norma penal. Acima deste valor, dano existe e, portanto, se imporá a criminalização da espécie. 128

Dando seguimento à sobreposição legislativa tão natural ao Estado brasileiro, foi

editada a Lei 10.522 de 19 de julho de 2002, a qual, em seu artigo 20, assim estabelecia:

Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).

Mantendo-se a coerência do pensamento jurídico que pautava, até então, as decisões

dos nossos Tribunais a respeito da matéria, este passou a ser o novo parâmetro valorativo para

a aplicação do princípio da insignificância aos delitos de descaminho:

Se a própria União, na esfera cível, a teor do art. 20 da Lei 10.533/2002, entendeu por perdoar as dívidas inferiores a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), não faz sentido apenar o recorrente pelo crime de contrabando por assimilação, pelo fato de ter introduzido no país mercadoria nacional sem o recolhimento de tributo inferior ao mencionado valor.129

Essa Eg. Corte havia consolidado entendimento no sentido de aplicar o princípio da insignificância para possibilitar o trancamento da ação penal no crime de

126 Não o valor das mercadorias, frise-se, mas o valor do imposto sonegado. 127 RESP 229542/PR – STJ – 5. Turma – Rel. Min. Félix Fischer – DJ 02/05/2000. 128 ACR 1998,04.01.079880-0 – TRF4 – 1 Turma – Rel. Des. Fed. Fábio Bittencourt da Rosa – DJ 03/03/1999. 129 RESP 308307/RS – STJ – 5. Turma – Rel. Min. Laurita Vaz – DJ 12/04/2004.

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descaminho de bens, cujos impostos incidentes e devidos fossem iguais ou inferiores a R$ 1.000,00, valor considerado pelos arts. 1.º da Lei n.º 9.469/97 e 20 da MP 1.542-28/97 como de desinteresse do erário em execução fiscal. Precedentes. Nada obstante, com a entrada em vigor da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, o legislador posicionou-se no sentido de certificar a insignificância de créditos de valor igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Precedentes. In casu, o tributo devido pelo paciente foi avaliado em R$ 1.372,27, montante inferior ao determinado pela lei e pela jurisprudência como lesivo aos cofres públicos, fato a possibilitar a incidência do princípio da insignificância. Isso porque, a conduta imputada na peça acusatória não chegou a lesar o bem jurídico tutelado, qual seja, a Administração Pública em seu interesse fiscal.130

Em que pese a redação do artigo 1.º da Lei 9.469/97 não ser absolutamente idêntica a

do artigo 20 da Lei 10.522/02, percebe-se claramente que a única modificação substancial está

justamente no valor fixado por tais dispositivos. Sem embargo da utilização de expressões

literais diversas, ambos tratam de delimitar quantitativamente o interesse da Fazenda Nacional

na cobrança do valor dos tributos iludidos pelo agente.

Da mesma forma, nota-se que o entendimento jurisprudencial modificou-se apenas no

concernente aos valores estabelecidos nas normas extrapenais. Assim sendo, na vigência da

Lei 10.522/02 a jurisprudência continuou a considerar, para fins de identificação da

irrelevância penal do fato, o mesmo fundamento empregado sob a égide da Lei 9.649/97, isto

é, o desinteresse do Fisco na cobrança dos valores respectivos, apenas levando em conta,

agora, o novo valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Manteve-se, portanto, a

coerência jurídica, na medida em que o desinteresse administrativo/fiscal sobre os valores

devidos também deve implicar no desinteresse penal, fundamentalmente porque, como já

dissemos, não se pode conceber punição criminal por fato que não revele interesse tributário

específico.

Entretanto, a Lei 11.033 de 21 de dezembro de 2004 veio alterar substancialmente este

panorama, ao conferir, em seu artigo 21, nova redação ao artigo 20 da Lei 10.522/02, que

passou a dispor:

Serão arquivados, sem baixa da distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos da execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da união pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Uma vez mais, como se verifica, a única alteração promovida pela lei superveniente

diz respeito aos valores previstos nos dispositivos em estudo, e era de se esperar que, como

antes, este fosse o único reflexo sentido nas decisões jurisprudenciais sobre o princípio da

130 HC 34281/RS – STJ – 5. Turma – Rel. José Arnaldo da Fonseca – DJ 09/08/2004.

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insignificância e o delito de descaminho, isto é, uma exclusiva adaptação valorativa, sem

modificação substancial de fundamento. Todavia, não foi isso o que se observou.

De fato, no julgamento do RESP 685.135/PR, o colendo Superior Tribunal de Justiça,

por meio do voto condutor do Ministro Félix Fischer131, entendeu que o fundamento até então

utilizado para identificar a irrelevância penal do descaminho deveria ser alterado. O parâmetro

para reconhecer a aplicabilidade do princípio da insignificância aos delitos de descaminho,

segundo atesta o julgado, não poderia mais ser pautado pelo valor que guia o interesse da

Fazenda Nacional no ajuizamento da ação executiva, mas, sim, pelo valor abaixo do qual se

pode considerar extinto o crédito tributário, este fixado pela Lei 10.522/02 em R$ 100,00

(cem reais).132. Em sua fundamentação, o Ministro relator assim deixou consignado:

A jurisprudência desta Corte tem entendido, em se tratando do delito de descaminho (art. 334 do CP), que será hipótese de matéria penalmente irrelevante se o valor do tributo devido for igual ou inferior ao mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal. Nesse sentido, os seguintes precedentes desta Corte: HC 34.827/RS, 5. Turma, de minha relatoria, DJU de 17/12/2004; HC 21071/SP, 5. Turma, Min. Laurita Vaz, DJU de 17/03/2003; REsp 246590/PR, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJU de 09/09/2002; REsp 246602/PR, 5. Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 29/10/2001; REsp 236702/PR, 5. Turma, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 22/10/2001; REsp 220692/PR, 6. Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 23/10/2000; REsp 229542/PR, 5. Turma, de minha relatoria, DJU de 02/05/2000. A Lei 9.469/97 dispensava a propositura de ações pela Fazenda Pública para cobrança de créditos no valor de até R$ 1.000,00. Assim, o descaminho de bens cujos impostos incidentes e devidos fossem iguais ou inferiores a R$ 1.000,00, na dicção da douta maioria, era hipótese de matéria penalmente irrelevante. Não obstante, com o advento da Lei 10.522/02, tal valor se alterou. Confira-se o teor do art. 20, caput, da lei em comento, verbis: ‘Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)’. Destarte, com essa nova lei, sendo devido, em razão do descaminho de bens, o valor equivalente a até R$ 2.500,00, a conduta, neste caso, consoante posição predominante, não chega a ferir o bem jurídico penalmente tutelado, tanto é que não há interesse fiscal por parte da Administração Pública. Impende ressaltar que tal valor foi novamente alterado, pela Lei 11.033/2004, para R$ 10.000,00 (dez mil reais). No entanto, acredito que esse entendimento há de ser revisto, devendo ser alterado tal critério, pois, como já vinha ressalvando, o valor limite para a execução carece de sentido mesmo em matéria extra-penal. No tocante a execução de crédito previdenciário, assim tem entendido esta Corte: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI Nº 9.441/97. PORTARIA Nº 1.105/2002 DO MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA.

131 DJU em 02/05/2005. 132 Parágrafo primeiro do artigo 18: “Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).”.

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I - A Portaria nº 1.105/2002 do MPAS apenas alterou o patamar anteriormente previsto na Portaria nº 4.910/99 para o ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa das já ajuizadas, não ocorrendo, pois, tal como na Lei nº 9.441/97, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tais dispositivos normativos para regular o valor do débito caracterizador do crime de bagatela. II - Verificando-se que a importância que deixou de ser recolhida aos cofres do INSS é superior ao patamar estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos oriundos de contribuições sociais (art. 1º, inciso I, da Lei 9.441/97 ), deve ser afastada a aplicação do princípio da insignificância. Recurso desprovido. (RESP 669.080/RS, de minha relatoria, julgado em 15/02/2005). Ora, o raciocínio a ser aplicado no caso de execução de crédito tributário é o mesmo, sob pena de se atribuir tratamento diferenciado a hipóteses semelhantes, o que seria um tanto inusitado. Consigna o art. 18, § 1º, da Lei 10.522/2002: ‘Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)’. O art. 20, da mesma lei, diz o seguinte: ‘Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)’. Confrontando os dois dispositivos conclui-se facilmente que enquanto o art. 18, §1º determina o cancelamento (leia-se: extinção) do crédito fiscal igual ou inferior à R$100,00 (cem reais), o art. 20 apenas prevê o não ajuizamento da ação de execução ou o arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito. Daí porque não se poder invocar este dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante. Com efeito, tal dispositivo apenas assevera que fica postergada a execução com vista a cobrança da dívida ativa enquanto o montante não alcançar os valores ali previstos, o que não se confunde com a extinção do crédito tributário. Impende observar que, no caso em tela, o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas é de R$ 1.249,67 (mil e duzentos e quarenta e nove reais e sessenta e sete centavos), ultrapassando, portanto, o montante de R$ 100,00 (cem reais) - limite para extinção do crédito fiscal e parâmetro para a caracterização de hipótese de desinteresse penal específico (matéria penalmente irrelevante).

De se destacar, à partida, que o artigo 1.º, inciso I, da Lei 9.441 de 14 de março de

1997133 fixa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) abaixo do qual ficará extinto o credito

previdenciário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de modo que, malgrado a

louvável tentativa de uniformização de tratamento almejada pelo eminente Ministro Relator,

tal desiderato não foi atingido, porquanto, diferentemente do crédito previdenciário, o crédito

fiscal estará extinto apenas se não alcançar o valor de R$ 100,00 (cem reais). Assim sendo,

seguindo a nova orientação jurisprudencial, uma hipotética omissão de recolhimento de

contribuição previdenciária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) não possuirá relevância

penal pela incidência do princípio da insignificância, ao passo que o descaminho de

133 Art.1.º Fica extinto todo e qualquer crédito do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS oriundo de contribuições sociais por ele arrecadadas ou decorrente do descumprimento de obrigações acessórias, cujo valor: I - total das inscrições em Dívida Ativa, efetuadas até 30 de novembro de 1996, relativamente a um mesmo devedor, seja igual ou inferior a R$1.000,00 (mil reais); (...).

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mercadorias cujo valor dos tributos iludidos totalize os mesmos R$ 500,00 (quinhentos reais)

não será considerado delito de bagatela.

De qualquer maneira, abstraindo possíveis juízos de valor sobre a precisão jurídica do

novo entendimento inaugurado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, e analisando a

questão sob o ponto de vista exclusivamente político-criminal, constata-se que este

posicionamento implicará, certamente, no aniquilamento da utilidade histórica do princípio da

insignificância, ao menos no tocante ao delito de descaminho, pois muito raramente o total

dos tributos iludidos deixará de ultrapassar o valor de R$ 100,00 (cem reais). O resultado será

– tem sido – um inevitável alargamento do tipo penal de descaminho, que incidirá, também na

sua vertente material, em um número absurdo de casos penais, acelerando o já caótico trânsito

de processos criminais em nossos tribunais.

É possível identificar a alteração do entendimento jurisprudencial referente ao

reconhecimento do princípio da insignificância aos delitos de descaminho – ainda, talvez, de

maneira relativamente incipiente, mas digna de nota e consideração – como reflexo do novo

contexto expansionista do Direito penal, já mencionado em capítulo anterior. Isso é assim,

sobretudo, quando se constata a drástica redução dos termos quantitativos antes empregados

para tanto.134 A modificação de fundamento jurisprudencial, neste campo, teve como mola

propulsora a elevação considerável do valor até então tido como parâmetro para a

caracterização do descaminho como delito de bagatela135; se não fosse isso, talvez – ou

certamente – o colendo Superior Tribunal de Justiça ainda estivesse orientando as suas

decisões e, por conseguinte, os pronunciamentos dos demais Tribunais do país, pelo valor de

desinteresse fiscal no ajuizamento da ação de cobrança dos tributos iludidos, fundamento que,

a nosso juízo, cumpre muito mais fielmente o papel político-criminal para o qual o princípio

foi inicialmente concebido.

Em bom tempo, entretanto, a 2.ª Turma do excelso Supremo Tribunal Federal,

chamada a manifestar-se sobre o tema nos autos de HC 92.438-7/PR e HC 95.749-8/PR,

reformou o entendimento do colendo Superior Tribunal de Justiça e, reafirmando a coerente

linha do posicionamento anterior, vinculou a aplicação do princípio da insignificância, quando

se tratar de descaminho, ao valor estabelecido pelo artigo 20 da Lei 10.522/02.

134 De R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para R$ 100,00 (cem reais). 135 Se se considera o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) aviltante e, portanto, insuscetível de modular a aplicação do princípio da insignificância aos delitos de descaminho, talvez fosse necessário fixar um outro valor especifico para este objetivo, desvinculado das disposições relativas à cobrança, pela Fazenda Nacional, dos tributos iludidos, antes de outorgar à matéria interpretação que representasse a inutilização do preceito em estudo, como no caso de atrelar o princípio da bagatela ao valor abaixo do qual se considera extinto o crédito tributário (R$ 100,00).

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Por ocasião do julgamento do HC 92.438-7/PR, foi concedida a ordem pretendida para

o fim de trancar ação penal por descaminho contra paciente que teria deixado de recolher, aos

cofres públicos, o valor de R$ 5.118,60 (Cinco mil, cento e dezoito reais e sessenta centavos)

devidos em razão da internalização, no território nacional, de mercadorias estrangeiras

provenientes do Uruguai. Na oportunidade, em voto da lavra do eminente Ministro Joaquim

Barbosa, restou consignado que:

À luz de todos os princípios que regem o Direito penal, especialmente o princípio da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima, é inadmissível que uma conduta seja administrativamente irrelevante e, ao mesmo tempo, seja considerada criminalmente relevante e punível!” A única conclusão a que se pode chegar, na espécie, é a de que não houve lesão ao bem jurídico tutelado.

Portanto, a precisão do entendimento esposado reafirma as esperanças na retomada do

princípio da insignificância como instrumento de política criminal garantista, muito

especialmente, no que concerne ao delito de descaminho.

Não obstante, ao passo em que esta alteração drástica de posicionamento representa

uma guinada positiva no reconhecimento dos princípios garantistas do Direito penal, ela

também revela a inexistência – ou ao menos uma importante confusão em torno da matéria136

– de uma efetiva política criminal a ser seguida neste âmbito. Em nenhum momento se fez

referência, nas decisões que antecederam o posicionamento final, nem mesmo neste, a

aspectos político-criminais diversos da correspondência traçada entre desinteresse

administrativo e desinteresse penal. O que existe é um exagerado e adstrito apego ao limite

valorativo estabelecido pela lei extrapenal, sem que se faça referência a outros valores

integrantes do sistema, como a iniciativa privada e a livre escolha de trabalho, exercício e

profissão, eventualmente transgredidos no caso concreto e que, num plano coletivo,

fundamentando a ordem econômica do Estado brasileiro, como já foi visto no item 1.2, do

Capitulo 1, deste estudo.

4.4.3 A irrelevância penal do fato

136 Que se pode detectar, igualmente, no recurso ao instituto da irrelevância penal do fato como “válvula de escape” aos dogmas penais vigentes nesta seara e na ausência de isonomia da política de cotas, matérias tratadas nos itens imediatamente posteriores desta pesquisa.

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Ao lado destes recentíssimos precedentes oriundo da Corte Suprema a respeito do

princípio da insignificância e do descaminho (HC 92.438-7/PR e HC 95.749-8/PR), e como

contraponto à constatação de que a alteração do posicionamento jurisprudencial até então

dominante, neste particular aspecto, serviu para ilustrar o atual momento expansionista do

Direito penal, visto, muitas vezes, como panacéia para todos os males, merece destaque uma

figura penal que pode ser igualmente utilizada para solução de controvérsias penais em torno

do delito aqui estudado: a chamada irrelevância penal do fato.

Com efeito, atente-se para o seguinte precedente jurisprudencial oriundo do Egrégio

Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, Relator Desembargador Federal Élcio Pinheiro de

Castro, nos Embargos Infringentes e de Nulidade 2007.70.02.005799-1/PR:

PENAL E PROCESSUAL. ART. 334 DO CP. DESCAMINHO. INSIGNIFICÂNCIA. DESCABIMENTO. ART. 18, § 1º DA LEI 10522/02. CULPABILIDADE. INFRAÇÃO BAGATELAR IMPRÓPRIA. PRINCÍPIO DA IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO. CRITÉRIOS. DESNECESSIDADE DE PERSECUÇÃO CRIMINAL E DA PUNIÇÃO NO CASO CONCRETO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. ARTIGO 397 DO CPP C/C ART. 59 DO CP. 1. Nos crimes de contrabando e descaminho, incabível a aplicação do princípio da insignificância quando o valor dos tributos sonegados ultrapassa o parâmetro contido no artigo 18 § 1º da Lei nº 10.522/02. Precedentes do STJ e dos demais Tribunais Regionais. 2. Para aplicação do princípio da irrelevância penal do fato, imperiosa a conjugação de determinados fatores, tais como ínfima culpabilidade, perdimento dos bens em prol do fisco, primariedade do agente, atuação distinta de "laranja" ou atravessador, dentre outros. 3. Sendo o fato típico antijurídico e culpável mas preenchendo o acusado tais requisitos, por razões legais e de política criminal, também em face do princípio da proporcionalidade e irrelevância penal do fato, torna-se desnecessária a continuidade da persecução penal e da punição, consoante autorização expressa contida no art. 397, IV, do CPP, bem como na parte final do art. 59 do CP.

Do corpo do acórdão, extrai-se:

Assim, tendo em conta a função pacificadora do STJ e curvando-me à evidência do que a douta maioria tem decidido, bem como a nenhuma possibilidade de êxito do atual entendimento desta Corte pelos Tribunais Superiores, cumpre reconhecer que o princípio da insignificância nos casos de contrabando e descaminho pode ser aplicado, tão-somente, quando o valor dos tributos elididos na introdução no país de produtos sem documentação fiscal, não ultrapassar o parâmetro contido no § 1º do art. 18 da Lei 10.522/02, ou seja: cem reais. Entretanto, o Direito Penal moderno, por meio da intervenção mínima e da fragmentariedade, tem proporcionado outras alternativas à ultima ratio afastando a responsabilização criminal de determinados fatos, tendo em conta a atuação do agente e a reparação do dano causado à vítima ou à coletividade. Aliás, o Estado determinou, para cada tipo de crime, que o acusado, quando condenado por infração penal (após responder a regular processo) seja punido, dentro dos limites da lei. Todavia, a pena infligida, muitas vezes não configura a melhor solução para trazer a tão almejada paz social.

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Como se pode perceber, o reconhecimento da irrelevância penal do fato surgiu como

substitutivo para se admitir, num dado caso concreto, o chamado delito bagatelar, ainda que,

por força dos critérios até então adotados relativamente ao valor de referência, não fosse

possível aplicar o princípio da insignificância.

De fato, a partir da mudança de posicionamento do colendo Superior Tribunal de

Justiça acerca do valor abaixo do qual se poderia reconhecer o princípio da insignificância aos

delitos de descaminho (vide item anterior deste Capítulo), isto é, o reduzidíssimo valor de R$

100,00 (cem reais) previsto pelo artigo 18, § 1.°, da Lei 10.522/02, foi preciso recorrer a outro

instituto a fim de que a ausência de potencialidade do delito e fundamentalmente de

merecimento da pena, no caso concreto, pudesse ser prestigiada.

O próprio Egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, adotando o novo

parâmetro estabelecido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, viu-se nesta encruzilhada,

pois passou a decidir, reiteradamente, pela impossibilidade de reconhecimento do princípio da

insignificância nos casos em que os valores sonegados ultrapassavam o limite de R$ 100,00

(cem reais)137, conforme se vê da seguinte passagem extraída de acórdão proferido pelo

Excelentíssimo Juiz Convocado Nivaldo Brunoni por ocasião do julgamento do Recurso em

Sentido Estrito 2008.71.06.000244-2/RS:

A composição originária da colenda Sétima Turma, por maioria, passou a acompanhar o posicionamento sedimentado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça adotando como parâmetro para o reconhecimento do princípio da insignificância o disposto no artigo 18, § 1º, da Lei 10.522/2002, que determina o cancelamento dos débitos inscritos em Dívida Ativa da União de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

A alteração de posicionamento das Cortes superiores em torno da matéria, fixando o

valor de referência para aplicação do princípio da insignificância em R$ 10.000,00 (dez mil

reais) – de acordo com o artigo 20, da Lei 10.522/2002 e como já vimos no final do item

anterior – acabou por orientar, também neste sentido, os demais tribunais do País, o que

ampliou consideravelmente o âmbito de incidência do princípio em referência.

137 Outros Cortes Regionais Federais assim também passaram a se posicionar. Confira-se, a propósito: TRF 1ª Região, RSE 2007.38.02.001273-4, Rel. Des. Tourinho Neto; TRF 2ª Região, RSE 2006.50.01.005134-8, Relatora Desª. Maria Helena Cisne; TRF 3ª Região, RSE 2004.61.24.000459-6, Rel. Juiz Hélio Nogueira; TRF 5ª Região, ACR 2006.83.02.000332-0, Relatora Desª. Ana Carolina Lins Pereira.

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Não obstante, permanece o registro acerca da irrelevância penal do fato, valendo

destacar que, para a aplicação deste princípio, consoante expressamente consignou o

Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro em sua decisão:

(...) mostra-se necessário (desde que o parâmetro monetário não seja elevado) a ocorrência de algumas circunstâncias objetivas e subjetivas (ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos ou devolução do objeto, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de ter o agente sido processado, preso ou ter ficado preso por um período) para a sua aferição, eis que ultrapassado o exame da tipicidade e antijuridicidade da conduta.

Críticas poderiam ser tecidas às exageradas referências de ordem subjetiva para o

reconhecimento da irrelevância penal do fato ou delito bagatelar impróprio, notadamente ao

“fato de ter o agente sido processado, preso ou ter ficado preso por um período”, na medida

em que remeteriam ao vetusto Direito penal do autor. Todavia, conforme anota Gomes (2001,

p. 455) em trecho de transcrição obrigatória:

Uma coisa é o princípio da irrelevância penal do fato, que pretende a não aplicação da sanção penal, como cláusula geral, para um determinado grupo de infrações e, outra, muito distinta, é o princípio da insignificância tout court, que dogmaticamente autoriza excluir do tipo legal as ofensas (lesões ou perigo concreto) de mínima magnitude, ou seja, nímias; Se com relação ao primeiro são plenamente pertinentes inclusive considerações pessoais (culpabilidade, vida anterior, antecedentes criminais, ocasionalidade da infração; primariedade, restituição da res ou ressarcimento etc.), porque está em jogo a necessidade da pena (o fato é formal e substancialmente típico), com referência ao segundo estes critérios pessoais não têm nenhum sentido, porque o que interessa (para o fim da tipicidade ou atipicidade) é o fato objetivo praticado e não as tendências ou inclinações subjetivas do autor (especialmente porque o fato realmente insignificante é típico tão só na aparência, mas não materialmente).

Portanto, sublinhe-se, ainda, que a irrelevância penal do fato, diferentemente do

princípio da insignificância, não atinge a tipicidade da conduta (vide item anterior), mas afasta

a sua punibilidade (merecimento de pena diante do caso concreto, em consonância com o

artigo 59, do Código Penal), já tendo sido tratada, em caso específico apreciado pelo Tribunal

de Alçada Criminal de São Paulo, como “perdão judicial extralegal”.138

Nota-se que a irrelevância penal do fato é uma construção intimamente ligada à idéia

de responsabilidade penal que, juntamente com a culpabilidade, indica, segundo a idéia

funcionalista de Roxin, o pressuposto necessário para considerar a punibilidade do agente. De

fato, o desmerecimento de pena tem a ver com a absoluta ausência da necessidade de

138 RT 664/285.

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repressão especial por meio da pena criminal, nos moldes defendidos Roxin (vide item 4.3,

deste Capítulo).

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4.4.4 A questão das cotas de isenção

Problema que merece destaque no tratamento do delito de descaminho diz respeito à

política de cotas valorativas abaixo das quais se admitem ingressos, no território aduaneiro, de

mercadorias isentas de recolhimento dos tributos devidos.

Já restou consignado que o delito de contrabando é norma penal em branco, na medida

em que, para sua caracterização, é necessário recorrer a outra norma, responsável, esta sim,

pela relação dos produtos cuja importação ou exportação seja – ou esteja – proibida. No

descaminho, por outro lado, o que se tem é, apenas, uma atuação administrativa na fixação de

cotas abaixo das quais se permite o ingresso de produtos de procedência estrangeira, em

território nacional, sem que seja necessário efetuar o recolhimento dos tributos respectivos.

Assim sendo, conforme apontamento de Machado (1998, p. 203), “a doutrina entende que o

tipo penal do descaminho perfaz-se sem necessidade de qualquer complementação, vale dizer,

pouco importa a fixação de tais quotas pelo Fisco”. Tal constatação permite afirmar que o

descaminho, ao contrário do contrabando, não constitui norma penal em branco, malgrado a

existência de respeitáveis opiniões em sentido contrário.

Entretanto, e a par da inesgotável discussão – sobre se o descaminho configura, ou

não, norma penal em branco – a respeito da qual não nos cabe adicionais considerações, o

estabelecimento de cotas pelo Poder executivo deve respeitar o princípio da isonomia,

assegurado no artigo 5.º, caput, da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Esta observação decorre dos diferentes

meios de transporte mediante os quais as mercadorias podem ser introduzidas ou retiradas do

território nacional.

Com efeito, a Instrução Normativa 117, de 06 de outubro de 1998, da Secretaria

Receita Federal, dispõe “sobre o tratamento tributário e os procedimentos de controle

aduaneiro aplicáveis aos bens de viajante”, e, em seu artigo 6.º, estabelece que “a bagagem

acompanhada estará isenta relativamente a”:

I - livros, folhetos e periódicos; II - roupas e outros artigos de vestuário, artigos de higiene e do toucador, e calçados, para uso próprio do viajante, em quantidade e qualidade compatíveis com a duração e a finalidade da sua permanência no exterior; III - outros bens, observado o limite de valor global de: a) US$ 500.00 (quinhentos dólares dos Estados Unidos) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via aérea ou marítima;

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b) US$ 300.00 (trezentos dólares dos Estados Unidos) ou o equivalente em outra moeda, quando o viajante ingressar no País por via terrestre, fluvial ou lacustre.

Como se percebe do disposto no inciso III, aliena a, deste artigo 6.º, quem ingressa em

território nacional por via aérea ou marítima (a primeira hipótese, sabe-se, muito mais

comum) usufrui de isenção tributária (Imposto de Importação e Imposto sobre Produtos

Industrializados – artigo 5.º, IN 117/98139) para as mercadorias que, trazidas ao território

nacional, não atinjam, globalmente, o valor de US$ 500,00 (quinhentos dólares norte-

americanos). Por seu turno, se o ingresso ocorrer por via terrestre, fluvial ou lacustre (a

primeira, também, mais comumente observada) a isenção respectiva se restringe ao valor de

US$ 300,00140 (trezentos dólares norte-americanos), considerando globalmente as

mercadorias transportadas pelo agente. Há que se considerar, ainda, consoante anota Machado

(1998, p. 204), que “as pessoas que procedem do exterior do avião além da cota de U$ 500,00

ainda têm mais US$ 500,00 para fazer compras nos free shops dos aeroportos”, o que importa

numa quota total de US$ 1.000,00 (mil dólares).

Esta distinção de quotas tem recebido diversas críticas da doutrina e da jurisprudência

nacionais, na medida em que não parece haver justificativa plausível para a discriminação

anunciada. Há, aí, repercussões penais significativas. Em que pese a atual orientação

jurisprudencial a respeito da aplicação do princípio da insignificância ao delito de

descaminho, já examinada em item anterior e segundo a qual não há relevância penal se o

montante dos tributos sonegados permanecer abaixo do valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais),

nada impede que juízes dos mais variados tribunais do País posicionem-se a favor da

caracterização do crime pelo simples fato de que as quotas, fixadas no dispositivo acima

transcrito, tenham sido ultrapassadas, pois, como se sabe, os precedentes jurisprudenciais não

possuem absolutamente nenhum efeito vinculante.

Destarte, poderíamos estar diante de situação na qual, exemplificativamente, o sujeito

que, trazendo mercadoria avaliada em US$ 400,00 (quatrocentos dólares norte-americanos)

adentrasse ao país por simples transposição de fronteira terrestre, sem declarar às autoridades

aduaneiras o excesso da quota permitida, estaria fatalmente preenchendo o tipo penal de

descaminho. Diversamente, outro sujeito qualquer, trazendo mercadorias de igual valor, mas

adentrando em território nacional por via aérea, não estaria cometendo crime, uma vez que a

quota limite, nesta circunstância, é de USS 500,00 (quinhentos dólares norte-americanos), ou,

139 Art.5.º. A isenção aplicável aos bens que constituam bagagem de viajante procedente do exterior abrange o imposto de importação e o imposto sobre produtos industrializados. 140 Até o advento da Instrução Normativa 538, de 20 de abril de 2005, da secretaria da receita federal, que deu nova redação a esta alínea b, o valor era de apenas U$ 150,00 (cento e cinqüenta dólares norte-americanos).

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ainda, de US$ 1.000,00 (mil dólares), considerando a possibilidade de realização de compras

nos free shops dos aeroportos. Tendo em conta esta possibilidade, Machado (1998, p. 205), ao

fazer expressa referência à sua atividade judicante, adverte:

Em sentença proferida em casos desta estirpe, tenho absolvido também o acusado quando as mercadorias com ele apreendidas não ultrapassam, em viajem de ônibus, a US$ 1.000,00, afirmando: ‘Cotas de isenção diversas para turistas que viajam por via aérea e para os que viajam por via terrestre, fluvial ou lacustre. Discriminação que não pode gerar conseqüências penais. Caso de aplicação do princípio da isonomia. Benefício fiscal que aproveita ao réu exclusivamente para efeitos penais. Fato atípico. Absolvição. CPP, art. 386, III.’

Consoante sinaliza o magistrado na passagem acima transcrita, o que se tem, em

verdade, é uma inadequação de natureza penal, pois não se justificam tratamentos desiguais

nesta seara.141 Com efeito, vale, aqui, o mesmo princípio lógico que orienta a escolha do

critério adequado para a aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho,

qual seja: se o fato desinteressa ao Fisco, com muito mais razão não importa ao Direito penal,

uma vez que este constitui, como se sabe, a última ratio do sistema. De fato, consoante

magistério de Souza (1995, p. 43): “Que dois cidadãos em situações muito similares recebam

tratamentos jurídicos distintos é aceitável, salvo se isso repercutir na ordem penal sem

qualquer proveito para a sociedade”.

Este é, de fato, o posicionamento mais consentâneo com o Direito penal de bases

democráticas, como o nosso, já tendo sido anteriormente adotado pela jurisprudência pátria,

como se depreende do seguinte julgado do egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região:

Para a tipificação do descaminho utiliza-se parâmetro único por incidência do princípio da isonomia, qual seja, o limite de isenção fiscal maior, previsto para as viagens aéreas e marítimas, pois o fato de o agente viajar por via terrestre não pode ser determinante para qualificar a cota de isenção142

141 No aspecto eminentemente tributário, entretanto, aceita-se a diferenciação de quotas. Neste sentido, Souza (1995, p. 43), para quem: “O fluxo de pessoas com os países limítrofes, pela via terrestre, fluvial ou lacustre, é obviamente incomparável com o operado pela via aérea, ou, ainda, com as demais nações. O reflexo deste fato no comércio de mercadorias é notório. Estes dados objetivos da realidade demandavam tratamentos jurídicos evidentemente distintos. Preservar os interesses dos turistas, enquanto consumidores, resguardando-os de um veto total na aquisição de produtos, via carga tributária, confiscatória, sem deixar desamparadas as conveniências da indústria e do comércio nacionais, eram as balizas na edição das normas. E o caminho trilhado pelo legislador não é passível de maiores reservas. Se considerarmos a realidade do comércio exterior no mundo, nesses últimos anos, as distinções ao longo dos anos estiveram, a grosso modo, dentro do limite do razoável. O severo veto da inconstitucionalidade é impertinente neste ponto.” 142 TFR 4.ª Reg. – AC 97.04.53012-9 – Rel. Gilson Dipp – j. 10.02.98 – DJU 13.05.98, p. 621 – Bol.IBCCrim 67/262.

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Não obstante, a opinião não é pacífica, havendo enfáticas posições em sentido

contrário.143 O mesmo egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, na Apelação

Criminal 2004.71.11.000059-4/RS, decidiu, por maioria de votos, que: “descabe falar-se em

tratamento isonômico entre cotas de isenção de importação por via aérea ou terrestre, na

medida que se cuida de situações distintas, a ensejar a diferenciação estatuída pelo art. 6º,

inciso III, alíneas a e b, da IN n.º 117/1998”. No mesmo julgamento, restou vencida a

Relatora, eminente Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère:

Pois bem, de acordo com o art. 6º, inc. III, alínea "b", da Instrução Normativa nº 117, de 06/10/98, da Secretaria da Receita Federal, a isenção aplicável aos bens trazidos por quem ingressa no país pelas vias terrestre, fluvial ou lacustre, é de US$ 150,00. Contudo, fazendo valer o princípio da isonomia - art. 5º, inc. I, da Constituição da República - adoto a quota de US$ 500,00 destinada aos que viajam por via aérea (art. 6º, inc. III, alínea "a", do referido diploma). Afinal, como bem expressou o Ministro Gilson Dipp, quando ainda integrava esta Corte, "para a tipificação do descaminho utiliza-se parâmetro único, por incidência do princípio da isonomia, qual seja, o limite de isenção fiscal maior, previsto para as viagens aéreas e marítimas, pois o fato de o agente viajar por via terrestre não pode ser determinante para qualificar a cota de isenção (HC nº 0461100/97-RS, j. 25/11/97, DJ 04/02/98, p. 154).

Por fim, mister recordar, também, que a orientação jurisprudencial é no sentido de que

o sistema de cotas só se aplica quando a mercadoria não tiver destinação comercial, hipótese

em que não se cogita de bagagem, afastando a possibilidade de reconhecimento da atipicidade

da conduta.144

143 Exemplificativamente, por ocasião do julgamento da Apelação Criminal 2004.71.11.000059-4/RS, a 7.ª Turma do E. TRF4, por maioria, entendeu que “ 144 Neste sentido, julgamento do TRF4, em voto condutor da lavra do eminente Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro, que nos autos de Embargos Infringentes e de Nulidade em Apelação Criminal 2004.71.13.002589-4/RS, decidiu: “Inicialmente mister referir que não se aplicam no presente feito nenhuma das cotas previstas na Instrução Normativa nº 117/98 (US$ 500,00, via aérea, e US$ 300,00 - na data do fato era de US$ 150,00 - via terrestre, fluvial ou lacustre: art. 6º, inciso III, "a" e "b", do referido diploma legal, respectivamente) uma vez que tais cotas de isenção não podem ser consideradas quando o produto apreendido revela destinação comercial, estando excluído, portanto, do conceito de bagagem (art. 3º, inc. I, da referida norma). Assim, no que pertine a tais mercadorias, ocorre a incidência tributária, cuja sonegação dos impostos devidos caracteriza o ilícito previsto no artigo 334 do Código Penal. O crime resta afastado somente nas hipóteses em que o valor dos bens não ultrapasse a cota, nem as mercadorias revelem finalidades comerciais.”

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4.4.5 Breves considerações sobre as figuras equiparadas ao contrabando e ao

descaminho

O § 1.º do artigo 334, do Código Penal, determina que incorre na mesma pena

(reclusão, de um a quatro anos) estabelecida para a figura prevista no caput aquele que:

a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.

Estas hipóteses caracterizam o que a doutrina comumente denomina figuras

equiparadas ou assimiladas ao descaminho.

A primeira hipótese, descrita na alínea a, equipara ao contrabando e ao descaminho,

para fins de aplicação de apenamento idêntico, a navegação de cabotagem realizada fora dos

casos previstos em lei. Navegação de cabotagem vem a ser aquela que, nas palavras de Silva

Franco (2007, p. 1579) “tem por finalidade a comunicação e o comércio direto entre os portos

do País, dentro de suas águas e dos rios que correm em seu território.” A Lei 9.432/97, que

“dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário e dá outras providências”, em atendimento

a determinação constitucional prevista no artigo 178, parágrafo único, da Constituição

Federal145, também define a navegação de cabotagem, em seu artigo 2.º, inciso IX, como

sendo a “realizada entre portos ou pontos do território brasileiro, utilizando a via marítima ou

esta e as vias navegáveis interiores”.

Depreende-se da descrição típica constante da alínea a, do § 1.º do artigo 334, do

Código Penal, que estamos diante de norma penal em branco, porquanto ela “se completa com

as leis que regulamentam a navegação entre portos brasileiros” (DELMANTO, 2000, p. 600).

E é justamente a Lei 9.432/97 o Diploma Legal responsável por relacionar, em seu artigo

145 Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.

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9.º146, os casos em que a navegação de cabotagem – que, na lição de Hungria (1959, p. 439),

“em regra, só é permitida a navios nacionais” – está igualmente permitida a embarcações de

bandeira estrangeira.

Por seu turno, a alínea b do dispositivo em análise prescreve que será aplicada a

mesma pena do caput a quem “pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou

descaminho.” Como anota Hungria (1959, p. 439-440):

O Código, não por falta de técnica (como pretende Magalhães Drummond), mas para evitar a fastidiosa casuística da antiga Consolidação das Leis Penais (§ 1.º, e suas letras, do art. 265), entendeu de se limitar a fazer remissão sumária à legislação especial então vigente e que não ficava revogada (sem tal remissão, a revogação seria corolário da regra corrente de direito que a Lei de Introd. Ao Cód. Civil veio a oficializar no seu artigo 2.º, § 1.º, última parte).

A clareza da disposição não deixa margem a duvida: trata-se, a toda evidência, de

norma penal em branco.147

Incide, ainda, na mesma pena capitulada ao contrabando ou descaminho, a teor do

disposto na alínea c do § 1.º, do artigo 334, do Código Penal, aquele que “comercializa ou

mantém em depósito mercadoria estrangeira que tenha introduzido ilegalmente no País ou que

tenha importado fraudulentamente.” (FRANCO, 2007, p. 1580). Como acertadamente observa

Bitencourt (2004, p. 485) relativamente à 1.ª parte da descrição típica desta alínea c, o agente

responderá unicamente por este crime, tendo em vista que o princípio da especialidade afasta

eventual punição, pelo artigo 334, caput, do Código Penal, em razão da prévia introdução

146 Art. 9º. O afretamento de embarcação estrangeira por viagem ou por tempo, para operar na navegação interior de percurso nacional ou no transporte de mercadorias na navegação de cabotagem ou nas navegações de apoio portuário e marítimo, bem como a casco nu na navegação de apoio portuário, depende de autorização do órgão competente e só poderá ocorrer nos seguintes casos: I - quando verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte ou apoio pretendido; II - quando verificado interesse público, devidamente justificado; III - quando em substituição a embarcações em construção no País, em estaleiro brasileiro, com contrato em eficácia, enquanto durar a construção, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite: a) da tonelagem de porte bruto contratada, para embarcações de carga; b) da arqueação bruta contratada, para embarcações destinadas ao apoio. Parágrafo único. A autorização de que trata este artigo também se aplica ao caso de afretamento de embarcação estrangeira para a navegação de longo curso ou interior de percurso internacional, quando o mesmo se realizar em virtude da aplicação do art. 5º, § 3º. 147 Exemplos de leis especiais que equiparam condutas a contrabando ou descaminho são: Decreto-Lei 288/67, art. 39, segundo o qual “será considerado contrabando a saída de mercadorias da Zona Franca sem a autorização legal expedida pelas autoridades competentes”; e Decreto-Lei 399/65, art. 3.º, segundo o qual “ficam incursos nas penas previstas no artigo 334 do Código Penal os que, em infração às medidas a serem baixadas na forma do artigo anterior adquirirem, transportarem, venderem, expuserem à venda, tiverem em depósito, possuírem ou consumirem qualquer dos produtos nêle mencionados”.

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clandestina ou importação fraudulenta pelo mesmo agente.148 Aliás, de acordo com a

ponderação de Costa Júnior (2008, p. 848):

São previstas condutas que equivalem a post factum não punível (exaurimento do crime). Assim, não pode o contrabandista, depois de responder pelo contrabando, responder igualmente pela venda, exposição à venda, manutenção em depósito ou utilização da mercadoria contrabandeada. A menos que, com incriminação destas modalidades, fosse excluída a conduta precedente, da prática de contrabando.

O princípio da especialidade também se faz presente para, na 2.ª parte da alínea c

(“(...) sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação

fraudulenta por parte de outrem”), impedir a imputação adicional do crime de receptação

(artigo 180, do Código Penal). Oportuno lembrar lição de Fragoso (1984, p. 483), no sentido

de que o agente deve ter pleno conhecimento de que a coisa foi introduzida ilicitamente em

território nacional por outrem.

Por derradeiro, a alínea d deste § 1.º é hipótese de crime de receptação alçada a

categoria de delito autônomo pelo legislador. Trata-se, assim como no caso da aliena c, e

conforme lição de Costa Júnior (2008, p. 848) de tipo de “ação múltipla ou conteúdo

variável”. Vale, aqui, também, a observação de Régis Prado (2007, p. 942), no sentido de que:

Se o agente se utiliza de documentos falsos para a prática do delito definido no art. 334, § 1.°, d, responde apenas por este delito, sendo absorvido o delito do art. 304. A falsidade documental ou ideológica somente será imputada, no caso, ao terceiro que lhe entregou tais documentos.

Necessário frisar, por derradeiro, que o § 2.º do artigo 334, do Código Penal, amplia o conceito de “atividade comercial”, estabelecendo que assim também se deve entender, para os efeitos do disposto no artigo, “qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.” O § 3.º, outrossim, estabelece que “a pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou descaminho é praticado em transporte aéreo”. A causa especial de aumento de pena justifica-se, no entender da doutrina, pela maior dificuldade de controle aduaneiro que o transporte aéreo clandestino oferece.149

148 De fato, nesta hipótese, parece estarmos diante de mero exaurimento do crime anterior de contrabando ou descaminho, de maneira que esta primeira parte do dispositivo em comento soa desnecessária (cf. FRAGOSO, 1984, p. 482; FRANCO, 2007, p. 1580). 149 Cf. PRADO, 2007, p. 940; FRANCO (2007, p. 1583).

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4.4.6 Facilitação ao contrabando e ao descaminho

A facilitação do contrabando ou descaminho é conduta tipificada criminalmente por

nosso ordenamento jurídico no artigo 318, do Código Penal, situado no Título XI (Dos

Crimes contra a Administração Pública), Capítulo I (Dos crimes Praticados por Funcionário

Público contra a Administração em Geral) daquele Diploma Legal. Reza o mencionado

dispositivo: “Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou

descaminho (art. 334)”. Trata-se, portanto, de participação do agente público, nos crimes de

contrabando e descaminho, destacada para punição mais severa como crime autônomo, de

modo a excepcionar, aqui, a regra do artigo 29 do Código Penal150 (FRAGOSO, 1984, p.

423).

Com efeito, a pena prevista para o cometimento do delito, reclusão, de três a oito anos,

e multa, é substancialmente mais elevada do que a reprimenda estabelecida para o

contrabando e descaminho (reclusão, de um a cinco anos). A sanção atingiu este patamar por

força de alteração introduzida pelo artigo 21 da Lei 8.137/90 (Lei dos Crimes contra a Ordem

Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo), o que denota a relação entre o

delito em análise, ao menos no tocante à hipótese de facilitação do descaminho – e por

extensão, como já foi visto, também do próprio descaminho – com os delitos de natureza

tributária. Veja-se, ademais, que este mesmo Diploma Legal, em seu artigo 3.º, estipula que

“constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n°

2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (Título XI, Capítulo I)”, outras condutas

descritas nos incisos I a III151. A rubrica deste dispositivo reforça, expressamente, a idéia de

que a facilitação de descaminho é crime de natureza tributária.

Esta constatação, todavia, não autoriza concluir – diferentemente do que se fez a

respeito do delito de descaminho em si mesmo considerado – pela possibilidade de extensão

150 Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. 151 Prescrevem os referidos incisos: I - extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social; II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. III - patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

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do prévio esgotamento da via administrativa para a caracterização do crime aqui analisado ou

do pagamento (ou parcelamento) do montante dos tributos sonegados como condição para o

início da persecução penal. Tal pensamento advém da idéia de que a sua consumação nada

tem a ver com a definitiva constituição do crédito tributário respectivo, nem o tributo

caracteriza elemento do crime. Realmente, consoante aponta a doutrina pátria152, o delito de

consuma “independentemente da efetivação do contrabando ou descaminho” (FRAGOSO,

1984, p. 424) de maneira que “a ocorrência efetiva do contrabando ou descaminho

representará apenas o exaurimento do crime” (BITENCOURT, 2004, p. 418). Destarte, a

definitiva constituição do crédito tributário guarda relação, apenas, com o próprio

descaminho, e não com o crime relativo à sua facilitação pelo agente público.

Consoante adverte Silva Franco (2007, p. 1478), o bem jurídico tutelado pelo crime é

diretamente a moralidade pública, “a probidade que se exige dos servidores do Estado”, mas,

também, a “arrecadação tributária”, no intuito de evitar o descaminho.153

O tipo objetivo é facilitar o contrabando ou descaminho com infração de dever

funcional. Ausente o elemento normativo “dever funcional”, poderá ocorrer, por parte do

servidor público, conforme anota Bitencourt (2004, p. 419), participação no delito de

contrabando ou de descaminho. Aliás, oportuna a observação de Fragoso (1984, p. 423), no

sentido de que:

Sujeito ativo do crime somente pode ser funcionário público a quem se imponha, como dever inerente ao cargo que ocupa, a repressão ao contrabando ou a fiscalização ou cobrança de direitos ou impostos devidos pela entrada ou saída de mercadorias. Qualquer outro funcionário público que participe do contrabando ou descaminho responderá pelo crime do artigo 334 CP.

Vale, aqui, a ponderação de Carluci (2001, p. 34), pois “no Brasil as atividades

aduaneiras são exercidas por diversos órgãos” – exemplificativamente, a própria Secretaria da

Receita Federal (fiscalização arrecadatória), o Banco Central do Brasil (fiscalização

cambiária), o Departamento da Polícia Federal (integrante do Ministério da Justiça), o

Ministério da Defesa (que por meio do Comando do exército fiscaliza, por exemplo, a

152 E também a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça, que já decidiu, no HC 27.689, em voto condutor da lavra do eminente Ministro Félix Fischer e ao qual já fizemos referência neste estudo (ver item 3.1 deste Capítulo): “Consuma-se o crime de facilitação de descaminho com a omissão da autoridade policial federal que, tomando conhecimento da introdução de oito caixas de uísque no país sem o pagamento dos tributos, deixa de apreendê-las e de tomar as medidas previstas no Código de Processo Penal e libera a mercadoria”. 153 Silva Franco faz referência não só ao descaminho e também ao contrabando, após considerar que o bem jurídico tutelado pelo crime em estudo é, igualmente, a arrecadação tributária. Não obstante, como visto, natureza tributária a tem apenas o descaminho, não o contrabando.

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importação de armas e munições) dentre outros – o que multiplica os potenciais sujeitos

ativos do delito de facilitação de contrabando ou descaminho.154

O tipo subjetivo do delito em análise é o dolo, não havendo previsão de

modalidade culposa.155

154 Ainda sobre o assunto, Carluci (2001, p. 34) adverte que “os órgãos centrais devem delegar aos órgãos de ponta a competência para a solução dos casos tão proximamente quanto possível do lugar onde os fatos ocorrem, fator esse que contribui para a diminuição dos custos administrativos” e, acrescentamos, influenciam no número de pessoas que podem, empiricamente, ser consideradas sujeitos ativos do crime de facilitação de contrabando ou descaminho. Situação idêntica, observa o autor, ocorre na experiência comparada, em países como a França, os Estados Unidos, a Alemanha, a Inglaterra e o Japão. Na Argentina também é comum a delegação de funções de fiscalização aduaneira. Neste sentido, Tosi (2002, p. 27), para quem o “... servicio aduanero puede estar delegado en otras fuerzas de seguridad que cumplen esas funciones. Y esto viene al caso, en tanto y en cuanto existen diversos pasos fronterizos, atendidos por otras fuerzas como Gendarmería Nacional o Prefectura Naval. Ellas tienem funciones delegadas, y además las proprias que la ley de criación de la fuerza indica, o sea, las de seguridad que ostentam el relación al servicio aduanero”. 155 Na Argentina, a conduta dolosa de agentes que facilitam o contrabando é tratada como caso específico de contrabando qualificado, no artigo 865, letra b, do Código Aduaneiro (Le1 22.415, de 23/08/1981), que estabelece: Artículo 865.- Se impondrá prisión de 2 a 10 años en cualquiera de los supuestos previstos en los arts. 863 y 864 cuando: (...) b) Interviniere en el hecho en calidad de autor, instigador o cómplice un funcionario o empleado público en ejercicio o en ocasión de sus funciones o con abuso de su cargo; (.).. Diferentemente, há previsão de pena pecuniária para agentes fiscais aduaneiros que, atuando culposamente, facilitarem o contrabando. Dispõem, a propósito, os artigos 868, 869 e 890 do Código Aduaneiro Argentino. Actos culposos - contrabando y uso indebido de documentos Artículo 868.- Será reprimido con multa de $ 1534195 a $ 15341958: a) el funcionario o empleado aduanero que ejercitare indebidamente las funciones de verificación, valoración, clasificación, inspección o cualquier otra función fiscal o de control a su cargo, siempre que en tales actos u omisiones mediare negligencia manifiesta que hubiere posibilitado la Comisión del contrabando o su tentativa; b) el funcionario o empleado administrativo que por ejercer indebidamente las funciones a su cargo librare o posibilitare el libramiento de autorización especial, licencia arancelaria o certificación que fuere presentada ante el servicio aduanero destinada a obtener un tratamiento aduanero o fiscal más favorable al que correspondiere, siempre que en el otorgamiento de tales documentos hubiere mediado grave inobservancia de las disposiciones legales específicas que lo regularen. Artículo 869.- Será reprimido con multa de $ 1534195 a $ 15341950 quien resultare responsable de la presentación ante el servicio aduanero de una autorización especial, licencia arancelaria o certificación que pudiere provocar un tratamiento aduanero o fiscal más favorable al que correspondiere o de algún documento adulterado o falso necesario para cumplimentar una operación aduanera, siempre que se tratare de un despachante de aduana, un agente de transporte aduanero, un importador, un exportador o cualquier otro que por su calidad, actividad u oficio no pudiere desconocer tal circunstancia y no hubiere actuado dolosamente. Artículo 870.- Los importes previstos en la escala penal de los arts. 868 y 869 se actualizaran anualmente, en forma automática, al 31 de octubre de cada año, de conformidad con la variación de los índices de preciso al por mayor (nivel general) elaborados por le instituto Nacional de estadística y censos o por el organismo oficial que cumpliere sus funciones. Esta actualización surtirá efectos a partir del primero de enero siguiente.

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122

4.5 PONDERAÇÕES CRÍTICAS A RESPEITO DE OUTRAS FIGURAS TÍPICAS

RELEVANTES.

4.5.1 Os crimes contra o sistema financeiro nacional

Nos itens seguintes, traçaremos algumas linhas a respeito do Sistema Financeiro

Nacional, que como veremos, é o bem jurídico protegido pela Lei 7.492/86 e, especialmente,

sobre o mercado cambial, tendo em vista que neste contexto verificam-se os pagamentos das

transações efetuadas no âmbito do comércio exterior.

Em seguida, abordaremos alguns aspectos gerais sobre a atividade delitiva contra o

Sistema Financeiro Nacional, para, ao final, tratarmos de dois tipos penais específicos da Lei

7.492/86 – ambos diretamente conectados com o fluxo financeiro oriundo das operações de

importação e exportação de mercadorias –, quais sejam aqueles crimes previstos nos artigos

21 e parágrafo único (falsa identidade para a realização de operação de câmbio) e artigo 22

(evasão de divisas) do Diploma legal referido.

4.5.1.1 Disposições preliminares a respeito do sistema financeiro nacional e o mercado

cambial

A Constituição Federal de 1988 reservou um capítulo próprio para a regulamentação

do Sistema Financeiro Nacional (Capítulo IV), inserido no Título relativo à Ordem

Econômica e Financeira (Título VII) do Estado Brasileiro. Não obstante, com o advento da

Emenda Constitucional n.º 40, de 29 de maio de 2003, restou suprimida a maioria dos

dispositivos ali previstos, permanecendo em vigor, apenas, o lacunoso caput do artigo 192156,

que remete a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional à leis complementares

supervenientes. Até que tais diplomas legais venham definitivamente a lume, a Lei 4.595 de

31 de dezembro de 1964 – que dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias

156 Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

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e Creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências – acabou sendo

recepcionada pelo nosso ordenamento jurídico e atualmente disciplina a matéria. Neste

particular, anota Silva (2001, p. 800):

O sistema financeiro nacional será regulado em lei complementar. Fica valendo, como tal, pelo princípio da recepção, a Lei 4.595/64, que precisamente instituiu o sistema financeiro nacional. Não é, portanto, a Constituição que o está instituindo. Ela está constitucionalizando alguns princípios do sistema. Aquela lei vale, por conseguinte, como se lei complementar fosse.

O Sistema Financeiro Nacional é composto, de acordo com o artigo 1.°, da Lei

5.595/64, pelo Conselho Monetário Nacional (I); pelo Banco Central do Brasil (II), pelo

Banco do Brasil S/A. (III), pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (IV) e pelas

demais instituições financeiras públicas ou privadas (V). Estes elementos do Sistema

Financeiro Nacional possuem regulamentação própria, constituindo um “subsistema jurídico

financeiro”, que no dizer de Breda (2002, p. 12) é o “(...) conjunto de normas que regem a

atuação destas instituições, dos investidores e dos entes de fiscalização do mercado.”

No que concerne ao específico objeto do estudo aqui desenvolvido, cumpre observar

que os pagamentos efetuados no âmbito das relações comerciais internacionais devem ser

promovidos por intermédio de contratos de câmbio, pois cada uma das partes envolvidas –

comprador e vendedor – opera com moedas diversas, próprias para circulação interna em seus

países de origem. A respeito da fase cambial das operações de comércio exterior, Sosa (2000,

p. 98) esclarece:

A fase cambial diz respeito aos procedimentos de remessa e recebimento de valores em pagamento de mercadorias, indiferentemente se estamos cogitando de uma importação ou de uma exportação. Seja na compra, seja na venda, o trâmite se realizará através de um sistema internacionalmente consagrado, e que é conhecido como câmbio ou sistema cambial.

Considerando, ademais, que apenas as moedas consideradas fortes possuem regular

fluxo internacional – v. g. o EURO, o marco alemão, a libra esterlina, o Franco francês e,

principalmente, o dólar americano, que se firmou na condição de padrão para transações desta

natureza – Sosa (2000, p. 100) observa que “toda a operação de comércio exterior de compra

e venda, terá um fluxo físico (mercadorias) e um contrafluxo financeiro (dinheiro)”. Ainda a

cerca do tema, anota Ratti (1997, p. 107-108):

O fato de não se aceitar moedas estrangeiras em pagamentos das exportações, nem moeda nacional em pagamento das importações, constitui a base de um mercado

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onde são compradas e vendidas as moedas dos diversos países; mercado este denominado mercado cambial ou mercado de divisas.

De acordo com o estabelecido na parte final do artigo 2.º da Lei 4.595/64, o Conselho

Monetário Nacional tem “a finalidade de formular a política da moeda e do crédito como

previsto nesta lei, objetivando o progresso econômico e social do País” e, segundo o disposto

no artigo 11, inciso III, cabe ao Banco Central do Brasil:

Atuar no sentido do funcionamento regular do mercado cambial, da estabilidade relativa das taxas de câmbio e do equilíbrio no balanço de pagamentos, podendo para esse fim comprar e vender ouro e moeda estrangeira, bem como realizar operações de crédito no exterior, inclusive as referentes aos Direitos Especiais de Saque, e separar os mercados de câmbio financeiro e comercial.

Com o objetivo de cumprir com a competência legalmente estabelecida no que diz

respeito ao tema da regulamentação do mercado cambial, o Banco Central do Brasil, em

consonância com a observação lançada no início deste trabalho relativamente à fugacidade da

legislação pertinente, direta ou indiretamente, ao comércio exterior, trata da matéria por

intermédio de sucessivos instrumentos normativos. 157 A instituição, pela Circular 3.280, de

09 de março de 2005 do Banco Central do Brasil, do Regulamento do Mercado de Câmbio e

Capitais Internacionais (RMCCI), não alterou este panorama. As atualizações e alterações do

documento continuam a ser promovidas, com a mesma freqüência anterior, mediante

Circulares editadas por aquele órgão.158

As operações de câmbio, destinadas ao pagamento das transações comerciais

internacionais, são efetuadas mediante o fechamento de contrato de câmbio, o qual, de acordo

com o RMCCI, conceitua-se como sendo “o instrumento específico firmado entre o vendedor

e o comprador de moeda estrangeira, no qual são estabelecidas as características e as

condições sob as quais se realiza a operação de câmbio.” De acordo com Hilú Neto (1999, p.

76), “o contrato de câmbio tem a natureza de compra e venda mercantil”, uma vez que,

exemplificativamente, o exportador recorre à Instituição Financeira visando receber, em

moeda nacional, o valor referente à transação comercial entabulada com o comprador, pessoa

física ou jurídica sediada no exterior. Esta pagará, àquela Instituição Financeira, o valor

157 Pertinente a afirmação de Folloni (2004, p. 14), para quem, neste campo, ainda que não diretamente ligado à atividade aduaneira propriamente dita, mas à operação necessária para que esta seja viabilizada: “instrumentos normativos sucedem-se com freqüência impressionantemente alta, criando novas regulamentações e revogando outras que, recém criadas, se tornam já obsoletas”. 158 A última alteração foi promovida pela Circular 3.436, de 09 de fevereiro de 2009. O texto integral, já atualizado, pode ser consultado em http://www.bcb.gov.br/rex/RMCCI/Ftp/RMCCI.pdf, acesso em 21/02/2009, às 09hs47min.

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correspondente em sua moeda corrente. Por isso, o objeto é a compra e venda, pelo Banco

escolhido, das divisas relativas a uma transação comercial internacional.

Importa salientar que o nosso ordenamento jurídico reserva o exercício das atividades

relacionadas ao câmbio monetário a determinadas entidades expressamente autorizadas, a

tanto, pelo Banco Central do Brasil. Em consonância com disposição expressa do RMCCI, o

Banco Central pode conceder autorização para a prática de operações de mercado de câmbio a

bancos múltiplos, bancos comerciais, caixas econômicas, bancos de investimento, bancos de

desenvolvimento, bancos de câmbio, sociedades de crédito, financiamento e investimento,

sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários, sociedades distribuidoras de títulos e

valores mobiliários e sociedades corretoras de câmbio.

Por fim, resta observar que o RMCCI possui dois Capítulos próprios, situados em seu

Título 1 (este denominado Mercado de Câmbio), contendo normas específicas relativas a

atividade cambiária desenvolvida nas exportações (Capítulo 11) e nas importações (Capítulo

12).

4.5.1.2 A Lei 7.492/86. Aspectos gerais

Feitas as anteriores considerações preliminares especialmente relevantes ao tema da

forma de pagamento das operações de importação e exportação de mercadorias, cabe salientar

que o Sistema Financeiro Nacional, na forma estabelecida na Constituição Federal e na Lei

4.595/64, foi erigido à categoria de bem jurídico159 penalmente protegido pela Lei 7.492/86.

Alguns antecedentes históricos da Lei 7.492/86, a Lei do Colarinho Branco, podem ser

encontrados em Wiecko de Castilho (1998, p. 126), que enumera uma série de

acontecimentos, ocorridos a partir do ano de 1974, responsáveis por abalar a confiança do

Sistema Financeiro Nacional, tais como os casos Halles, Áurea, Ipiranga, Lume, Tieppo,

Delfin, Capemi, Coroa-Brastel, Haspa, Letra, Grupo Sulbrasileiro, Habitasul, Brasilinvest,

159 Na concepção de Welzel (1970, p. 17): “Bem jurídico é um bem vital da comunidade ou do indivíduo, que por sua significação social é juridicamente protegido”. Para Roxin (1997, p. 56), os bens jurídico-penais são “circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base desta concepção de fins ou para o funcionamento do próprio sistema.” Para outras definições de bem jurídico, vide: PRADO, 1993, p. 35-40.

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Comind, Auxiliar e Maisonnave.160 Em todos estes eventos, observa a autora, a malversação

dos recursos deixaram perplexos seus investidores, na medida em que:

Apesar do sentimento dos investidores de que haviam sido fraudados e de que haviam sido vítimas de crimes, os responsáveis submetiam-se apenas às regras da Lei n. 6024, de 13/3/74, que alcançavam seus bens para penhora e posterior rateio do líquido apurado entre os credores. Os administradores não eram sancionados penalmente porque suas condutas não se enquadravam na definição de crimes ou a responsabilidade pessoal era de difícil comprovação, dissimulada em deliberações coletivas da empresa.

Assim sendo, a própria Lei 7.492/86, dizendo-se definidora dos crimes “contra o

Sistema Financeiro Nacional”, parece indicar que o bem jurídico protegido é, justamente, o

próprio Sistema Financeiro Nacional, cujos contornos gerais foram delineados no tópico

anterior. Com efeito, Pimentel (1987, p. 23) já asseverava, no primeiro trabalho publicado

sobre a Lei 7.492/86, que:

(...) o sistema financeiro nacional, cuja proteção é o objeto jurídico dos crimes previstos na Lei 7.492/86, é bem, serviço e interesse da União, razão pela qual a própria lei previu que o julgamento dessas infrações penais caberá à Justiça federal, mediante a iniciativa do Ministério Público Federal.

Seguindo os mesmos passos, Breda (2002, p. 52) afirma que o bem jurídico tutelado

pela Lei 7.492/86 é o Sistema Financeiro Nacional genericamente considerado, justificando-

se as tipificações criminais trazidas pelo Diploma legal em referência, pois:

Todos os esforços da administração pública procuram manter o equilíbrio da sua economia para a atração de investimentos externos. Para isso efetivar-se, torna-se primordial a consolidação de um sistema financeiro austero, seguro, dotado de credibilidade perante o investidor, que deve acreditar na seriedade daqueles que controlam e muitas vezes definem o destino de suas aplicações.

No mesmo sentido, Tórtima (2000, p. 37), para quem, de modo geral, as figuras típicas

previstas na Lei 7.492/86 visam proteger “a higidez e a estabilidade do Sistema Financeiro

Nacional, indispensáveis, é bem verdade, à boa execução da política econômica do Governo”.

Sem discordar, mas adicionando que, reflexamente, o Diploma legal em estudo também está

direcionado à tutela dos interesses das próprias instituições financeiras e à proteção do

patrimônio particular de quem investe nestas instituições, Tigre Maia (1999, p. 15) assevera:

160 Nas páginas seguintes de sua obra, Castilho continua a discorrer sobre os demais antecedentes da Lei 7.492/86, com ênfase nos Projetos de Lei que antecederam a sua definitiva aprovação. A esse propósito consulte-se, igualmente, Pimentel (1987), em obra já citada.

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Ainda que com nuanças e especificidades marcantes, que emergem dos diversos tipos penais que a conformam, o bem jurídico que fundamenta e valida globalmente sua existência é o Sistema Financeiro Nacional. Assim, são criminalizadas aquelas ações ou omissões humanas, praticadas ou não por agentes institucionalmente ligados ao sistema, dirigidas a lesionar ou a colocar em perigo o SFN, enquanto estrutura jurídico-econômica global valiosa para o Estado brasileiro, bem como as instituições que dele participam, e o patrimônio dos indivíduos que nele investem suas poupanças privadas.

Para além da discussão do bem jurídico protegido Lei do Colarinho Branco – que, a

rigor, considerando a problemática intrínseca aos interesses de conteúdo econômico erigidos à

condição de bem jurídico tutelado pelo Direito penal, renderia trabalho apropriado161 –,

cumpre ressaltar que, já em seu artigo 1.°, a Lei 7.492/86 estabelece uma definição do que

sejam as instituições financeiras para efeito de controle por seus dispositivos, assim

estabelecendo:

Art. 1.° Considera-se instituição financeira, para efeito desta Lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários. Parágrafo único. Equipara-se a instituição financeira: I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros; II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

Consoante anotação de Tigre Maia (1999, p. 29-30), o dispositivo em questão

estabelece uma dicotomia entre “instituições financeiras propriamente ditas e instituições

financeiras por equiparação”, ampliando a proteção penal para as atividades de seguro,

câmbio, consórcio, captação ou qualquer tipo de poupança ou recursos de terceiro, de modo a

reforçar o elemento essencial para a Lei de Regência, qual seja “a presença de captação,

gestão e aplicação de recursos de terceiros ou a operação com títulos e valores mobiliários”.

Esta, aliás, a razão do veto presidencial à expressão “recursos financeiros próprios”

constante no caput do artigo. Consoante observa Baltazar Júnior (2006, p. 261), abstraindo as

161 Por tal razão, damos por encerrada, aqui, a discussão sobre o bem jurídico tutelado pela Lei 7.492/86. Agindo de modo diverso, perderíamos o foco do trabalho ao qual nos propusemos. Entretanto, cientes da complexidade e da variedade de posições existentes na doutrina pátria e estrangeira em torno da questão, para maiores esclarecimentos vide, como referência: LAUFER, 2008. Às páginas 41 a 53 da obra há pormenorizada e cuidadosa análise dos principais posicionamentos da doutrina brasileira e alienígena acerca do bem jurídico tutelado pelos crime tipificadores de condutas dirigidas contra o Sistema Financeiro.

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posições favoráveis e contrárias ao veto do Presidente162, o que se infere é que a Lei, de fato,

“pretende proteger, essencialmente, os recursos de terceiros geridos pela instituição financeira

ou equiparada”, até porque a expressão recursos de terceiro” é repetida pelo inciso I, do

parágrafo único.163

Pois bem. Traçadas estas premissas de ordem genérica em torno dos delitos contra o

Sistema Financeiro e sua lei de regência, veremos, a seguir, os dois tipos penais que nos

interessam mais de perto, justamente porque, como já se afirmou no início, guardam relação

com o modo de pagamento das transações comerciais havidas internacionalmente.

4.5.1.3 O crime de falsa identidade para a realização de operação de câmbio (artigo 21 e

parágrafo único, da Lei 7.492/86)

Reza o artigo 21 e seu parágrafo único, da Lei 7.492/86:

Art. 21. Atribuir-se, ou atribuir a terceiro, falsa identidade, para realização de operação de câmbio: Pena - Detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, para o mesmo fim, sonega informação que devia prestar ou presta informação falsa.

Lembrando a ponderação de Ratti, já destacada anteriormente (vide item 4.1.1. deste

Capítulo), Baltazar Júnior (2006, p. 313) ressalta que os delitos previstos no artigo 21 e

parágrafo único da Lei 7.492/86, bem assim no artigo 22 do mesmo Diploma Legal, que será

examinado a seguir, dizem respeito a condutas relacionadas ao mercado cambial, o qual existe

em decorrência da constatação de que não se “aceita moedas estrangeiras no pagamento de

exportações, nem moeda nacional no pagamento de importações”. Os delitos em análise

caracterizam, de fato, segundo o mesmo autor, “uma forma específica de falsidade”, assim

162 Tigre Maia (1999, p. 31) entende que o veto ignorou a força que poderosos investidores individuais possuem de abalar decisivamente o Sistema Financeiro, além de não atentar para a impossibilidade de cisão entre os recursos da própria entidade financeira e dos seus investidores. Em sentido contrário, Pimentel (1987, p. 29), para quem “na aplicação de recursos próprios, se prejuízo houver, não será para a coletividade, nem para o sistema financeiro; no caso de usura, a legislação vigente já apena de forma adequada quem a praticar”. 163 Aliás, a definição de instituição financeira conferida pela Lei 4.595/64 é mais ampla, justamente porque inclui a expressão “recursos próprios”. É o que se depreende do artigo 17, do referido Diploma legal, que dispõe: “Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”.

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também entendido por Bonat (2004, p. 374), para quem o caput do tipo em estudo “guarda

estreita semelhança com o do art. 307 do CP164, dele diferenciando, tão somente, quanto ao

fim último do agente (neste para a realização de operação de câmbio), e penas previstas.”

O elemento subjetivo dos tipos é o dolo, acompanhado do especial fim de agir relativo

à realização de operações de câmbio. Não há previsão de modalidade culposa.

Quanto ao tipo objetivo, no caput a conduta é atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa

identidade. De acordo com Pimentel (1987, p. 153), tais comportamentos independem da

verificação de qualquer resultado, configurando, pois, delito de natureza formal. Da mesma

maneira, as condutas previstas no parágrafo único, quais sejam as de sonegar informação ou

prestar informação falsa, não estão adstritas a nenhum resultado naturalístico, e, destarte,

caracterizam o crime como sendo de mera conduta, assemelhando-se ao delito de falsidade

ideológica.165

Tratando da figura descrita no caput, consoante a lição de Tigre Maia (1999, p. 130),

admite-se a tentativa, quando a falsa atribuição de identidade não é suficiente para induzir em

erro o destinatário da conduta, “ainda mais que tais operações são formalizadas através de

documentos escritos apropriados a tal mister e sujeitos, ao menos em tese, à prévia

verificação”. O autor observa, ainda, que quanto ao parágrafo único, a instantaneidade das

condutas de sonegar e de prestar informações dificulta a caracterização da tentativa, mas ela

seria possível, ao menos na modalidade comissiva prevista pelo dispositivo, uma vez que:

(...) como ocorre em todo o crime de falso, é imanente à consumação a produção do erro na esfera de representação do sujeito passivo imediato e, em tal percurso, já ultrapassados os atos meramente preparatórios, poderá ser o atuar interrompido por circunstâncias alheias a vontade do sujeito ativo sem que produza naquele a falsa compreensão da realidade ou o seu desconhecimento.

164 Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave. 165 Neste sentido manifestou-se a 6. ª Turma do egrégio Tribunal Regional Federal da 2.ª Região no julgamento da Apelação Criminal 2000.51.01509117-8, Relator o Desembargador Federal Sergio Schwaitzer: “O tipo penal descrito no artigo 21 da Lei n.º 7492/86 objetiva proteger a regularidade das operações de compra e venda de moeda estrangeira e, secundariamente, a fé pública. Para a consumação do delito não há a necessidade de obtenção da vantagem ilícita ou que sequer se concretize a operação de câmbio, tratando-se, portanto, de delito formal. Por sua vez, o crime previsto no parágrafo único do mencionado tipo penal tem a mesma objetividade jurídica do caput, sendo derivação do crime de falsidade ideológica, circunscrevendo-se em duas condutas: uma omissiva de sonegar informações e outra comissiva de prestar informação falsa, sempre com o objetivo de praticar operação de câmbio. Oportuno se ressaltar que a segunda modalidade é similar a variante de ‘inserir ou fazer inserir’ contida no falso ideológico sendo que, aqui, o autor cria uma informação fictícia ou altera de qualquer modo o conteúdo a informação verdadeira, tornando-a inverídica.”

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Em sentido contrário, Pimentel (1987, p. 154), pois nas figuras delitivas de mera

conduta, tais como as que se discutem (caput e parágrafo único), o crime considerar-se-á

consumado com a simples atividade do agente. Cuida-se, aqui, de crime instantâneo, que se

perfaz com a mera atribuição, a si ou a terceiro, de falsa identidade, ou com a prestação de

informação falsa ou sonegação de informação que deveria ser prestada, “razão pela qual a

tentativa, como em todos os crimes de mera conduta, é inadmissível”. No mesmo sentido a

opinião de Tórtima (2000, p. 139-140).

Cabe salientar, apenas, que a segunda conduta prevista no parágrafo único, qual seja a

sonegação de informação que deveria ser prestada, traduz-se em norma penal em branco, pois

a informação que deve constar no documento é de ser buscada em regulamento de natureza

extrapenal.166

Tomando em conta a apontada identidade entre os delitos do caput do artigo 21 aqui

examinado e o do artigo 307, do Código Penal, a doutrina, seguindo a orientação de Hungria

(1958, p. 306-307), costuma afirmar que:

A falsa identidade pode consistir tanto em fazer-se passar ou a terceiro por outra pessoa realmente existente (substituição de pessoa), quanto em atribuir-se identidade imaginária. O crime em questão não pode ser praticado por omissão e a falsa atribuição pode ser por escrito ou verbalmente perpetrada. A identidade abrange o estado civil e a condição social. Não é porém, necessário que o agente inculque ou simule integralmente identidade que não é sua, bastando que o faça de modo idôneo a enganar (...)

Da mesma forma, ainda com base na identidade delitiva acima destacada, vale a

opinião de Fragoso (1984, p. 374), para quem faz parte do conceito de identidade “todos os

elementos de identificação civil da pessoa, ou seja, o seu estado civil (idade, filiação,

matrimônio, nacionalidade, etc.) e seu estado social (profissão ou qualidade pessoal)”. Não

obstante, a nosso sentir corretamente, Bonat (2004, p. 375) infirma essa assertiva, pois “não é

qualquer dado identificador da pessoa que irá configurar a infração do caput, desde que, por

exemplo, a profissão ou mesmo o matrimônio, em princípio, não serviriam para atingir o

objetivo final”, qual seja, o de manter oculto o real titular da operação cambial.

Tórtima (2000, p. 138) objeta, entretanto, que apesar desta semelhança entre o delito

de falsa identidade previsto no Código Penal pátrio e o caput do artigo 21, da Lei 7.492/86, “o

166 Neste sentido a opinião de Baltazar Júnior (2006, p. 314) e Tigre Maia (1999, p. 131). Este último assevera: “Como é de sabença geral, tratando-se da modalidade omissiva, qual seja, reveladora de uma inobservância do dever de agir, tal dever deverá, na hipótese do parágrafo, que é norma penal em branco, defluir de lei em sentido amplo, qual seja, diploma legal ou regulamentar que determine em que casos e que informações deverão ser prestadas para confecção de operação de câmbio”.

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dispositivo ora abordado não deixa de ser novidade em nosso ordenamento jurídico”. Assim

já se posicionava Pimentel (1987, p. 150), ao vaticinar:

Parece-me que, até o momento da edição da Lei 7.492, de 16.06.86, era esta a única figura penal existente a respeito do câmbio de moedas”. Mais adiante, assevera que “a criação destes crimes se dá com a lei sob exame. Não havia qualquer previsão anterior.

Nesse passo, o saudoso criminalista ainda observa que dentre as funções atribuídas ao

Banco Central do Brasil (PIMENTEL, 1987, p. 151):

(...) está a de conceder autorização para a realização de operações de câmbio, sobretudo tendo em vista o comércio com o exterior, tanto para importações como para exportações. Tendo em vista a necessidade de proteger este campo, o legislador recorreu ao reforço da sanção penal, que tem na pena de prisão o ponto mais forte para repressão de condutas desviantes.

Com efeito, a objetividade jurídica específica, aqui, ao lado do bem jurídico Sistema

Financeiro Nacional, é a política cambial do estado brasileiro, objeto de preocupação

constitucional antes mesmo do próprio Sistema Financeiro Nacional, este contemplado pela

Carta Magna apenas em 1988, enquanto que, anteriormente, nas Constituições de 1934, 1937,

1946, 1967 e na emenda constitucional de 1969, já se fazia menção “à fixação da competência

da União para as operações financeiras e cambiais e para fiscalização de empresas atuantes no

setor” (MAIA, 1999, p. 128). Prosseguindo, observa o Procurador Regional da República

fluminense que, “com este tipo penal objetiva-se, precipuamente, a proteção da regularidade

das operações de compra e venda de moeda estrangeira e, secundariamente, a fé pública

indispensável à segurança das relações jurídicas”.167

Considerando a pertinência da observação com a imputação comumente verificada nos

processos criminais que envolvem a responsabilidade pelas condutas aqui debatidas, não se

pode olvidar de que, conforme orientação de Tigre Maia (1999, p. 129), o crime do artigo 21

da Lei 7.492/86 é de natureza subsidiária, no sentido de que caracteriza, frequentemente,

“meio executivo indispensável à prática de outros ilícitos, ou será por estes consumido

quando etapa usual do seu iter”.

Seguindo esta linha de raciocínio, cumpre salientar que tem sido constante a

imputação, nos processos criminais destinados a apurar irregularidades nas operações de

comércio exterior, da figura delitiva prevista no parágrafo único do dispositivo em debate,

167 Tórtima (2000, p. 138) compartilha deste posicionamento, uma vez que a fé pública é sempre protegida no crime de falsum.

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uma vez que a informação falsa constante do contrato de câmbio é corolário da tentativa de

ocultação do verdadeiro responsável pela – no mais das vezes – importação das mercadorias

objeto da negociação. Também, na maioria das vezes, a informação falsa não se restringe aos

responsáveis verdadeiros pela transação comercial, ligando-se, essencialmente, ao valor do

produto, o que viabiliza a prática do conhecido subfaturamento. Trata-se, portanto, de

desdobramento, na seara cambial, da interposição fraudulenta de pessoas em determinada

operação de comércio exterior e das demais irregularidades conectadas, principalmente, com

o valor aduaneiro declarado pelas partes. Ou seja, conseqüências lógicas das informações

falsas inseridas na Declaração de Importação.

A propósito, e para finalizar as considerações sobre o crime do artigo 21 e seu

parágrafo único, cumpre fazer referência à importante decisão proferia pelo colendo Superior

Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 108.328/PE, Relatora a

Excelentíssima Desembargadora Federal convocada Jane Silva, ocasião em que restou

consignada a possibilidade de extensão, aos demais crimes imputados aos agentes, inclusive o

do artigo 21 e parágrafo único da Lei 7.492/86, da decisão que entendeu pelo trancamento da

ação penal em virtude da pendência de discussão administrativa sobre o delito fiscal, desde

que estes outros delitos guardem relação com a constituição do crédito tributário.

Eis a ementa do julgado:

PENAL – HABEAS CORPUS – FORMAÇÃO DE QUADRILHA – DESCAMINHO – FALSIDADE DOCUMENTAL – CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA – CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – LAVAGEM DE DINHEIRO – EVASÃO DE DIVISAS – INSERÇÃO DE INFORMAÇÃO FALSA EM CONTRATO DE CÂMBIO – FALSA IDENTIDADE – AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – RECURSO ESPECIAL DO MPF – QUESTIONAMENTO ACERCA DO TRANCAMENTO NO QUE SE REFERE AOS DELITOS NÃO-TRIBUTÁRIOS – CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO PELO PRESIDENTE DO TRIBUNAL A QUO – LIMINAR – EFEITO SUSPENSIVO QUE ABARCOU TODO O JULGADO RECORRIDO – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO ESPECIAL QUE ATACOU TÃO-SOMENTE PARTE DAQUELA DECISÃO – EFEITO SUSPENSIVO QUE IMPOSSIBILITA A DEFESA DE EXECUTAR JULGADO QUE LHE FOI FAVORÁVEL – MEDIDA QUE DEVE SER TOMADA COM CAUTELA NO PROCESSO PENAL, PRINCIPALMENTE QUANDO CONTRA OS INTERESSES DA DEFESA – EXCEPCIONALIDADE NÃO DEMONSTRADA – ORDEM CONCEDIDA, RATIFICANDO-SE OS EFEITOS DA LIMINAR DEFERIDA. 1. O trancamento baseado na impossibilidade de apuração do crime contra a ordem tributária fundada na ausência de constituição definitiva do crédito na esfera administrativa pode, em tese, ser estendido aos demais delitos, desde que evidenciada a relação deles com a constituição do crédito. 2. O efeito suspensivo, da forma como concedido pela Corte a quo, tem o condão de impedir a total execução do julgado que se impugnou, porém, evidenciando-se que o

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Ministério Público Federal não se insurgiu, no recurso especial, contra o trancamento da ação penal no que toca ao crime contra a ordem tributária (por força do entendimento esposado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal nos autos do HC 81.611/DF), não há como estender o efeito suspensivo à sua apuração. 3. Em processo penal, a execução de julgado favorável ao acusado é a regra, em obediência ao princípio favor rei, tal como posto nos artigos 596 do Código de Processo Penal e 197 da Lei das Execuções Penais. 4. Especificamente quanto ao recurso especial, o artigo 27, §2º da Lei 8.038/1990 é claro ao dispor que seu único efeito é o devolutivo. 5. Por essa razão, a concessão de efeito suspensivo a recurso que não o tem deve ser tomada com estrita cautela, eis que excepcional ao ordenamento jurídico pátrio, notadamente quando contrário aos interesses da defesa. 6. Esta Casa tem reiteradamente repudiado a concessão de efeito suspensivo ao recurso de agravo interposto contra decisão favorável ao apenado, circunstância que, na prática, em nada se discrepa da presente situação, em que os acusados foram impedidos de executar o acórdão que determinou o trancamento da ação penal contra eles ajuizada em função do deferimento do efeito suspensivo mediante ação cautelar incidental. 7. Incabível, portanto, a atribuição de efeito suspensivo a recurso que não o tem quando contrário aos anseios da defesa, sob pena de afronta ao princípio favor rei, amplamente perfilhado pelo sistema processual penal brasileiro. 8. Ordem concedida para, ratificando os efeitos da liminar, cassar o efeito suspensivo concedido ao recurso especial do Ministério Público Federal.

A decisão nos parece correta e merece ser prestigiada. Como visto, a inserção de dados

falsos em contrato de câmbio que ampara determinada operação de comércio exterior é, na

verdade, na grande maioria dos casos, apenas conseqüência e mera repetição do que está

inserido na Declaração de Importação.

De fato, é o importador que presta as declarações relativas à operação às autoridades

aduaneiras e, igualmente, é ele o responsável pelo fechamento do contrato de câmbio

respectivo. Se existe a intenção de burlar o controle aduaneiro, mediante informação falsa

prestada na Declaração de Importação, e se esta informação falsa possuía o objetivo final

determinado de promover a redução dos tributos devidos, pois relacionada diretamente ao

propósito manifestado nas condutas dirigidas à fiscalização aduaneira, não há negar a absoluta

correlação entre o delito tributário e o crime contra o Sistema Financeiro Nacional aqui em

discussão.168

168 Há, aliás, precedentes oriundo do egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, considerando a existência de concurso entre o delito do parágrafo único do artigo 21 da Lei 7.492/86 e o crime tributário. É o que se depreende das seguintes decisões, nos trechos que interessam: RSE 95.0416897-3, Rel. Des. Fed. Gilson Dipp, DJ 14/05/96. “Uma vez ocorrida a extinção da punibilidade com relação ao deito perpetrado contra a Ordem Tributária, não subsiste o crime contra o Sistema Financeiro Nacional, eis que as falsas declarações de câmbio emitidas tiveram o fim claro e específico de enganar o Fisco, sem maior potencial lesivo. Deve-se ter presente a intenção das fraudes, e esta, inequivocamente, era a de burlar o Fisco, não remanescendo daí conduta delituosa alguma, mesmo que diversos os bens jurídicos tutelados.” AC 2002.04.01.002257-8, Rel. Des. Fed. Luiz Fernando Wolk Penteado, DJ 22/03/2006. “À luz do princípio da consunção, o crime de prestar informação falsa em operação de câmbio ficará absorvido pela imputação do artigo 1º da Lei 8.137/90 quando, na qualidade de mero instrumento para perfectibilização de um idêntico objetivo final - a supressão da carga tributária -, estiver vinculado à prática de exportações igualmente fraudulentas.”

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4.5.1.4 O crime de evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86)

O artigo 22, da Lei 7.492/86 vem assim redigido:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

À partida, cumpre observar que a análise aqui efetivada recairá, exclusivamente, sobre

a figura prevista no parágrafo único do dispositivo acima transcrito, responsável pela

criminalização da efetiva evasão de divisas do território nacional. O caput, diversamente, trata

da conduta de quem atua com o desiderato de remeter as divisas nacionais ao exterior,

mediante operação cambial à margem do controle exercido pelo Banco Central do Brasil. Em

virtude de sua especialidade, as eventuais menções ao caput do artigo serão feitas apenas

circunstancialmente, na medida em que o estudo sobre a figura prevista em seu parágrafo

único assim o exigir.

Pois bem. Qualquer abordagem que atualmente se faça sobre o crime em estudo deve,

necessariamente, levar em consideração certos aspectos relativos à atual configuração

mundial do mercado de câmbio. Em notável monografia, de consulta obrigatória a respeito do

tema, Carlos Tórtima e Lara Tórtima (2006, p. 1-2) partem de uma perspectiva constitucional

– a moda da que fizemos no introdutório desta pesquisa (especialmente item 1.2, do Capítulo

1) – para demonstrar que as restrições impostas pelo legislador infraconstitucional na seara

cambial não podem inviabilizar o regular trânsito de bens, este garantido pelo inciso XV, do

artigo 5.°, da Carta Magna, segundo o qual “é livre a locomoção no território nacional em

tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele

sair com seus bens. Neste sentido, afirmam:

(...) se é este o pensamento do legislador constitucional, para sermos com ele minimamente coerentes, cremos, sinceramente, já haver chegado a hora de começar a combater a cultura retrógrada, forjada na irracionalidade do preconceito, mas refletida, infelizmente, em nosso ordenamento jurídico penal que faz com que as pessoas adquiram moedas estrangeiras ou com elas de qualquer modo transacionem, com a mesma constrangida e envergonhada sensação de quem está a lidar com drogas proibidas.

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Em passagem ainda mais consentânea com tudo aquilo que defendemos na parte

introdutória desta pesquisa a respeito dos limites constitucionais impostos ao legislador na

regulamentação das atividades inerentes – e porque não dizer correlatas – ao comércio

exterior, adicionam:

(...) a expressão nos termos da lei, contida no mencionado mandamento constitucional, não pode, evidentemente, ser interpretada como carta branca ao legislador ordinário para opor, a seu bel-prazer, toda e qualquer sorte de restrição, notadamente de natureza penal, ao livre trânsito de bens materiais, aí compreendidos os recursos financeiros, assegurado na Lei Maior a qualquer pessoa, sob pena de frustrar-se, na prática, a referida garantia.

Tal registro prévio, crítico às ferrenhas restrições submetidas ao trânsito monetário, é

complementado pela realidade brasileira e mundial contemporâneas, totalmente diversas

daquelas vigentes à época da edição da Lei 7.492/86. O regular fluxo cambial é elemento

indissociável da globalização, de maneira que as políticas dirigidas em sentido contrário já

não possuem mais sentido. A propósito, Schmidt e Feldens (2006, p. XXVI) observam:

Hoje, na vigência do Regulamento de Mercado de Câmbio e de Capitais Internacionais (RMCCI), muito embora mantida boa parte do monopólio estatal sobre operações de câmbio, vivemos uma época de liberdade de transações internacionais, submetidas, apenas, a um controle formal do fluxo pelo BACEN.

É sintomático, aliás, que Pimentel (1987, p. 155) tenha, em momento imediatamente

posterior à edição do Diploma Legal em comento, manifestado posição claramente favorável

à tipificação, chegando a afirmar que:

O legislador ainda foi tímido, na definição dos crimes cambiários, mas o tratamento dado à matéria, nesta lei que estamos examinando, é um avanço significativo, que autoriza acreditar que, no futuro, serão cerceados comportamentos altamente prejudiciais à política econômica do Governo, através de normas bem concebidas, punindo os delinqüentes de alto coturno, que até agora conseguiram escapar por entre as largas malhas das leis geralmente feitas sob pressão de grupos interessados em outros objetivos que não a execução da política econômico-financeira do Governo.

As coisas, como visto, ao menos no tocante à conduta tipificada no artigo 22 e seu

parágrafo único, já não se passam assim. Se hoje pudesse manifestar-se, o pensamento do

saudoso penalista, muito possivelmente, seria outro.169

169 Ainda hoje, infelizmente, encontramos posicionamentos totalmente dissociados da realidade mundial na qual, fatalmente, também o Brasil encontra-se inserido. Nesse sentido, primando pelo equívoco da assertiva, que inverte, inexplicavelmente, o papel a ser desempenhado pelo Direito penal em uma sociedade que se diz

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136

O contexto eminentemente liberal anteriormente exposto, que para posições mais

radicais, espelhadas no procedimento adotado pelos países da Comunidade Européia,

demandaria inclusive a descriminalização do crime previsto no artigo 22 e parágrafo único da

Lei 7.492/86170, é que deve pautar a análise relativa às figuras típicas aqui debatidas. Veja-se

que Tigre Maia (1999, p. 132) chega a afirmar que a figura delitiva em estudo é das mais

importantes, pois, além dos prejuízos causados, é das que possuem mais incidência. Advirta-

se, nesse passo, que a magnitude da incidência do tipo decorre, justamente, do novo panorama

mundial acima traçado, e que a perspectiva indica que o fluxo de divisas entre os países só

fará aumentar. Por tal razão reivindica-se, corretamente, uma nova abordagem a respeito da

atuação do Direito penal no âmbito em discussão. Não se pugna, evidentemente, pela total

ausência de controle estatal sobre o trânsito cambiário, que deve continuar sob vigilância do

Banco Central do Brasil e demais órgãos governamentais. O que busca é a retração das

normas penais, em consideração a realidade global já referida.

Dito isso, resta a análise dogmática do tipo penal em discussão.

Grande parte da doutrina nacional entende que a objetividade jurídica do delito em

estudo é, genericamente, a “boa execução da política econômica do Estado”. Compartilham

dessa opinião Pimentel (1987, p. 157), para quem, aliás, “é este o único objeto jurídico

protegido”. Também Machado (1999, p. 58) e Tigre Maia (1999, p. 132) assim se posicionam,

este último afirmando que, ao lado da política cambial, protege-se, igualmente, a Ordem

Tributária, na medida em que a prática do delito em comento se presta, na maioria das vezes,

a lavagem de dinheiro “oriundo do caixa 2 de empresas e do chamado crime organizado, em

especial das organizações voltadas ao tráfico de entorpecentes”. Com certa variação, mas

democrática, Machado (1999, p. 59): “Para combater o crime de colarinho branco é necessária, repita-se, a adoção de outros tipos de controle sociais e prévios, já que o direito penal, sozinho, não é suficiente”. 170 Com efeito, Lara Tórtima (2006, p. 8-9), em que pese a dissidência do co-autor da obra, Carlos Tórtima, para quem o tipo penal em discussão não deve ser extirpado, mas apenas reformulado, assim se posiciona: “Enfim, a tendência em todo o mundo é a descriminalização de toda e qualquer forma de transferência de recursos financeiros (exceto as utilizadas para atividades criminosas), diante de uma realidade econômica que praticamente desconhece as fronteiras nacionais no contexto da vertiginosa dinâmica do fluxo de capitais entre as mais diversas e distantes regiões e praças comerciais do planeta”. Mais adiante (p. 36), de maneira categórica, arremata: “Em síntese, por tudo o que foi dito e, principalmente, tendo-se demonstrado, por um lado, que, na verdade, a manutenção das reservas cambiais em níveis satisfatórios pode e deve ser obtida através de políticas monetárias e cambiais eficientes e, por outro lado, que o controle das reservas cambiais cabe ao Estado Administrador, deve-se, em atenção ao princípio da subsidiariedade, tão caro a um direito penal democrático, excluir a conduta da evasão de divisas da ameaça penal”. Em sentido contrário, manifestando entendimento mais conservador, especialmente em razão da debilidade da economia nacional, própria dos países em desenvolvimento e que, nessa condição, necessitam adotar medidas mais decisivas para manter suas divisas em território nacional, Schmidt e Feldens (2006, p. XXVII), para quem: “No Brasil, entretanto, a ainda incipiente estabilidade econômica e a ausência de um efetivo comunitarismo econômico americano recomendam a continuidade do controle estatal sobre as operações de câmbio. Além disso, tais circunstâncias, associadas aos graves efeitos econômicos decorrentes dos momentâneos descontroles cambiais por que passamos, indicam que a tutela penal sobre tais operações mantêm-se legítima”.

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ainda apontando no mesmo sentido, Schmidt e Feldens (2006, p. 174) anotam que a

“objetividade jurídica generalíssima é a proteção do Sistema Financeiro Nacional, sendo

objeto genérico da tutela jurídico-penal a regular execução da política cambial do Estado”. Da

mesma maneira Bonat (2004, p. 378), que se aproxima de uma definição mais adequada ao

asseverar que:

O tratamento penal da questão apresenta-se de significativa relevância, pois vem em salvaguarda dos interesses nacionais, desde que afeta, diretamente, as reservas cambiais, como também a própria política econômica nacional, servindo ainda para coibir a sonegação fiscal.

A propósito de tais posicionamentos, Carlos Tórtima e Lara Tórtima (2006, p. 19-20)

não hesitam em tecer pertinente crítica:

De fato, soa estranho, senão assustador que o arsenal punitivo do Estado possa servir de respaldo à boa execução de políticas do Estado, sabidamente nem sempre, ou não necessariamente, comprometidas com os legítimos interesses do súditos. Elevar, portanto, tais estratégias de governo, sejam elas bem ou malsucedidas, à categoria de bem jurídico tutelado pela lei penal representa um crasso equívoco e a História nos tem dado tristes exemplos de como tal proposta não raro deriva para a mais desembuçada opressão.

E opinam, portanto, sempre com foco no momento histórico da edição da Lei

7.492/86, “marcado por gravíssimo desequilíbrio do nosso balanço de pagamentos”, que a

objetividade jurídica principal do delito é a preservação das reservas cambiais do país e,

secundariamente, o patrimônio fiscal, tendo em vista a possibilidade de que os valores

remetidos e mantidos clandestinamente no exterior tenham origem em fontes tributáveis, mas

não oferecidas oportunamente à tributação.

Esta nos parece ser a posição mais correta, não só por estar relacionada a uma

objetividade jurídica mais concreta e facilmente determinada, mas também por que respeita o

momento econômico, especialmente cambial, vivido pelo Brasil por ocasião do advento da

Lei de Regência. Ressalve-se, apenas, que a proteção do patrimônio fiscal não parece ter sido,

ao menos não originariamente, o mote do legislador ao tipificar a conduta deste artigo 22,

parágrafo único, da Lei 7.492/86. Esta objetividade jurídica pode ter sido identificada

posteriormente, com a prática corrente destinada a remeter, ao exterior, produtos que

deveriam, aqui, ser objeto de tributação.171

171 Mais uma vez, pertinente, nesse particular, a observação de Carlos Tórtima e Lara Tórtima (2006, p. 48): “Dir-se-á, e com razão, que tais remessas de recursos, à margem do sistema de controle oficial, em sua maioria, servem para ocultar rendimentos não declarados de pessoas físicas e jurídicas. É verdade, mas temos aí um

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No que concerne ao tipo objetivo do parágrafo único, é preciso observar a distinção

existente entre duas prescrições distintas. Com efeito, a primeira conduta incriminada é

promover, isto é, “levar a efeito, desenvolver, executar” (BONAT, 2004, p. 379), enfim,

efetuar a saída de divisas ao exterior à margem do controle oficial exercido pelo banco

Central. Diversos são os modos pelos quais se pode realizar o núcleo do tipo penal, sendo que

o comércio exterior é meio constantemente utilizado para tanto, consoante observa Tigre Maia

(1999, p. 137):

Dentre estas destacam-se a do superfaturamento (o importador brasileiro, atuando em conluio com o exortador alienígena, adquire mercadorias por preços propositadamente acima dos de mercado, promovendo a remessa do valor superestimado para o exterior, e obtendo do exportador a entrega da diferença mediante pagamento de comissão previamente ajustada entre eles), do subfaturamento (nos mesmos moldes de colusão, o exportador brasileiro fixa um valor subestimado para suas mercadorias e recebe, no exterior, do importador, a diferença entre o valor nominal dos bens exportados e seu efetivo valor de mercado (...)

Schmidt e Feldens (2006, p. 175) observam, oportunamente, que saída de divisas deve

ser compreendida não só sob o aspecto territorial, “senão também a operação cujo resultado

contábil gere um crédito liquidável no estrangeiro”, no que são acompanhados por Carlos

Tórtima e Lara Tórtima (2006, p. 39-40), não sem críticas, por partes destes últimos, a esta

posição dominante aceita inclusive pela jurisprudência, a qual, afrontando o princípio da

legalidade, desdenha, “em desfavor dos destinatários da lei penal, o sentido restritivo do tipo

de injusto em questão”.

Sendo crime instantâneo e material, consuma-se, se a evasão se der em espécie, com a

transposição das fronteiras territoriais pelo agente, observadas as diretrizes do artigo 65, da

Lei 9.069/95172, que trata das balizas valorativas abaixo das quais está permitida a saída do

problema de ilícito fiscal e penal tributário, não um delito cambial, do ponto de vista do bem jurídico tutelado. De resto, muitas dessas operações, à margem da via regular do sistema SISBACEN, são realizados por motivos completamente estranhos ao propósito de sonegação fiscal, tais como a oportunidade de aplicar poupança no exterior, pagando taxas de transferência eventualmente inferiores às cobradas pelos bancos, disputas familiares, ou, paradoxalmente, o próprio receio do interessado na remessa, de que possa vir a ser incomodado pelo só fato de possuir uma conta corrente no exterior, quando se sabe que, no momento em que estamos a escrever essas linhas, centenas de pessoas, senão milhares, em vários estados da Federação, responsáveis por remessas perfeitamente dentro dos cânones da lei, estão sendo chamadas às sedes das respectivas superintendências regionais da Polícia Federal para explicar os motivos dessas operações”. 172 Art. 65. O ingresso no País e a saída do País, de moeda nacional e estrangeira serão processados exclusivamente através de transferência bancária, cabendo ao estabelecimento bancário a perfeita identificação do cliente ou do beneficiário. § 1º Excetua-se do disposto no caput deste artigo o porte, em espécie, dos valores: I - quando em moeda nacional, até R$ 10.000,00 (dez mil reais); II - quando em moeda estrangeira, o equivalente a R$ 10.000,00 (dez mil reais);

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País sem declaração às autoridade competentes (BALTAZAR JÚNIOR, 2006, p. 323). Por

outro lado, “se a evasão é por meio de câmbio sacado, verificar-se-á o momento consumativo

com a concretização da operação capaz de gerar a disponibilidade no exterior” (SCHMIDT;

FELDENS, 2006, p. 175). Como todo crime de natureza material, desde que o iter seja

fracionável, é perfeitamente admissível a tentativa.

A doutrina majoritária173 considera que se trata de uma norma penal em branco,

conclusão advinda do elemento normativo “sem autorização legal”. Esta complementação

encontra-se no supracitado artigo 65, da Lei 9.069/95 e no RMCCI. Alheios à discussão,

Carlos Tórtima e Lara Tórtima (2006, p. 54-55), apoiados na nova regulamentação trazida

pelo RMCCI, indicam que já não mais se justifica falar em prévia autorização para realização

de transferências monetárias internacionais, uma vez que o Capítulo 1, Seção 1, item 3, do

RMCCI estabelece:

As pessoas físicas e as pessoas jurídicas podem comprar e vender moeda estrangeira ou realizar transferências internacionais em reais, de qualquer natureza, sem limitação de valor, sendo contraparte na operação agente autorizado a operar no mercado de câmbio, observada a legalidade da transação, tendo como base a fundamentação econômica e as responsabilidades definidas na respectiva documentação.

O que atualmente existe, portanto, é a plena liberdade de transferência monetária, sem

se cogitar da necessidade de prévia autorização para tanto, unicamente que tais transferências

devem ser feitas pelo modo legalmente estabelecido.

O tipo subjetivo é exclusivamente o dolo geral, não havendo qualquer previsão de

modalidade culposa.

A segunda conduta incriminada no dispositivo em estudo é a de manter, no exterior,

depósitos não declarados à repartição competente. Nesta modalidade, como afirma Pimentel

(1987, p. 157), “o crime é de mera conduta, de caráter permanente, requisitando a

habitualidade”. Também para Bonat (2004, p. 381), trata-se de crime de mera conduta que

não admite tentativa, “exigindo para a configuração a habitualidade, ou seja, que se prolongue

por considerável período de tempo”. Como anota Baltazar Júnior (1999, P. 328), “é elementar

do delito em exame que a abertura ou movimentação da conta no estrangeiro não seja

III - quando comprovada a sua entrada no País ou sua saída do País, na forma prevista na regulamentação pertinente. 173 Vide: PIMENTEL, 1987, p. 157-158; BALTAZAR JÚNIOR, 2006, p. 324; SCHMIDT; FELDENS, 2006, p. 177. Em sentido contrário, MAIA, 1999, p. 136-137.

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declarada, uma vez que inexiste proibição da manutenção em si dos recursos fora do Brasil,

desde que seja declarada a Receita Federal”.

Digna de nota é a posição divergente do magistrado da 2. ª Vara Federal Criminal da

Subseção de Curitiba, Seção Judiciária do Paraná, Flávio Antônio da Cruz, que por ocasião da

sentença proferida nos autos de ação penal 2003.70.00.035987-0, manifestou entendimento de

que o delito em tela possui natureza instantânea, e não permanente. Em síntese, suas razões:

A rigor, não existe a figura de ‘manutenção de depósitos não declarados no exterior’. O que há – e isso é significativo – é a omissão de declarar, no tempo e forma devidos, recursos que foram mantidos no exterior. Ora, por força da regulamentação administrativa, a declaração ao Estado somente é exigível depois que os depósitos já tenham sido mantidos. Não se cuida de uma declaração prévia, anterior à constituição da disponibilidade em solo estrangeiro. Como tem reconhecido o próprio MPF em inúmeros feitos, não é crime manter depósitos no exterior. O injusto penal está em deixar de comunicar tais depósitos, quando tal declaração for exigível. Também nesse sentido, leia-se Tigre Maia, Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, 1.ª ed., 2. ª tiragem, Malheiros, p.139. O juízo de tipicidade demanda, pois, um misto de comportamento comissivo (exige um facere) e omissivo (abstenção, inércia). Em outras palavras, o agente deve (I) ter mantido depósitos o exterior e (II) ter descumprido – consciente e deliberadamente – a obrigação administrativa de declarar, na forma e prazos devidos, tal situação patrimonial, posicionada em determinada data base. A regulamentação administrativa apenas exige declarações a posteriori. Depois de encerrado o período-financeiro, e quanto a valores mantidos em determinada data-base, reitero. Justo por isso, e que reputo que esse crime seja instantâneo.

A objetividade jurídica não difere daquela protegida pela conduta de promover a saída

de divisas ao exterior. Tigre Maia (1999, p. 139) observa, entretanto, que nesta modalidade

“há nítida predominância da proteção à ordem tributária”, valendo, nesta oportunidade, a

consideração tecida linhas acima sobre este mesmo tema. Esta diferenciação de objetividades

jurídica autorizaria, na visão do Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro, concluir pela eventual ocorrência de concurso material na hipótese de identidade do

agente que promove e mantém a divisa no exterior, sem comunicação à autoridade

competente.

Resta apontar, ainda, que como anotam Schmidt e Feldens (2006, p. 177), segundo a

posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, a declaração dos depósitos mantidos no

exterior deve ser feita à Receita Federal. Não obstante, esclarecem os referidos autores:

a) o parágrafo único, in fine, do art. 22 da Lei 7.492/86 não ostenta, sequer indiretamente, proteção jurídico-penal à ordem tributária; ou seja, dele não decorre um dupla proteção jurídica a englobar, a um só tempo, as ordens tributária (fiscal) e financeira (cambial); alias, a conduta do art. 2.°, I, da Lei 8.137/90 (ou mesmo do

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art. 1.° e incisos da Lei 8.137/90) cobriria, no particular, a proteção jurídico-penal da ordem tributária, em sendo o caso; b) ainda assim, até o advento da Circular/BACEN 3.071/2001, mostra-se razoável o entendimento segundo o qual, para efeitos de configuração típica do parágrafo único, parte final, do art. 22 da Lei 7.492/86, a exigência de que trata o dispositivo é aquela a ser prestada a Receita Federal, isso em face de um dever genérico (fiscal) de informação patrimonial, cujos dados, em sendo o caso, seriam indiretamente apreciados pelo Banco Central; c) a partir da edição da Circular/BACEN 3.071/2001, que instituiu a Declaração de Capitais de Brasileiros no Exterior, não remanesce dúvida sobre ser o Banco Central a ‘repartição federal competente’ destinatária das informações sobre a manutenção de depósitos no exterior a que alude o tipo; precisamente, e tal como anotado pelo Banco Central, esta legislação teve por objetivo ‘mapear um quadro mais preciso dos capitais brasileiros no exterior e conhecer a composição do passivo externo líquido do País’, dados esses convenientes e necessários à formatação da política cambial do País, sendo essa, precisamente, a finalidade protetiva da norma.

Fácil perceber o que toda essa confusão relativa às normas extrapenais que

complementam o preceito proibitivo da norma em estudo acarreta para o problema no erro em

matéria penal. A vastidão e a complexidade do assunto nos impedem de avançar na discussão.

Novamente, temos aqui matéria suficiente para monografia apartada. Não obstante,

interessante mencionar, nesse particular, apenas aquele que nos parece ser o entendimento

mais adequado em torno do tema. Assim, assiste razão ao posicionamento segundo o qual o

erro sobre as elementares do tipo174 aqui debatido (ausência de autorização ou declaração

pertinente) – por se tratarem de elementos essenciais que antecipam, “já no exame da

tipicidade da conduta, a ilicitude administrativa pressuposta à subsunção da conduta”

(SCHMIDT; FELDENS, 2006, p. 188) –, representa erro de tipo incriminador. Portanto, à luz

do artigo 20, caput, do Código Penal, considera-se excluído o dolo da conduta do agente,

tornando atípica a conduta. Nesse sentido advoga Bitencourt (2003, p. 101), ao afirmar:

“como o dolo deve abranger todos os elementos que compõem a figura típica, e se as

características especiais do dever jurídico forem um elemento determinante da tipicidade

concreta, a nosso juízo, o erro sobre elas deve ser tratado como erro de tipo”.

Importa ressaltar, ainda no campo da casuística ilustrativa da ligação existente entre os

crimes financeiros e o comércio exterior, a respeito da exportação sem cobertura cambial.

Nesse caso, o exportador envia as mercadorias ao importador estrangeiro, mas não promove o

fechamento do contrato de câmbio, recebendo o valor respectivo diretamente no exterior.

174 Oportuno lembrar lição de Engish (1964, p. 176) acerca dos elementos normativos do tipo, os quais “visam dados que não são simplesmente perceptíveis pelos sentidos ou percepcionáveis, mas que só em conexão com o mundo das normas se tornam representáveis. Os conceitos descritivos de ‘homem’, ‘morte’ e ‘escuridão’ são simples conceitos da experiência mesmo quando determinados a partir de norma jurídica. Pelo contrário, dizer que uma coisa é ‘alheia’ e pode ser objeto de furto, abuso de confiança ou dano patrimonial significa que ela pertence a outrem. Por conseguinte, pressupõe-se aqui o regime de propriedade do Direito Civil, como complexo de normas.”

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Como bem observam Schmidt e Feldens (2006, p. 228), não há que se falar, nessa hipótese, de

tipificação da conduta na primeira parte do parágrafo único do artigo 22 (promover evasão de

divisas), a uma porque o tipo penal se refere à saída de divisas do território nacional175 (os

dólares, a rigor, não saíram do território nacional; lá já estavam em poder do importador) e, a

duas, porque no conceito de divisas não se compreende mercadoria.176 Ambas as posições

amparam-se no princípio da legalidade, que não admite, ademais, uma interpretação extensiva

tão ampla a ponto de que, nas palavras do eminente Desembargador Federal Paulo Afonso

Brum Vaz, “não mais se distinga da analogia em desfavor do réu” (autos de Apelação

Criminal 2003.04.01.034192-5).

Por fim, cumpre notar que de acordo com o último documento divulgado a respeito

pelo Banco Central do Brasil (Circular 3.540/2008, artigo 4.°) estabeleceu-se que as pessoas

físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no País, estão desobrigadas de

formular a declaração respectiva ao BACEN, desde que, na data 31 de dezembro de cada ano,

possuam “ativos cujos valores somados totalizem montante inferior a US$100.000,00 (cem

mil dólares dos Estados Unidos da América), ou seu equivalente em outras moedas”.

4.5.2 Delitos contra a ordem tributária relacionados com as atividades de importação e

exportação

4.5.2.1 Direito tributário penal e direito penal tributário

Em caráter preliminar à análise dos delitos que atentam contra a Ordem Tributária e

que guardam relação com as atividades de comércio exterior, convém diferenciar o que seja

Direito tributário penal e Direito penal tributário, para delimitar, corretamente, qual a

amplitude do objeto abordado no tópico seguinte.

175 Aqui vale a ressalva já feita anteriormente. Se por saída entendermos, também, o procedimento contábil destinado ao recebimento dos valores respectivos (como querem Carlos Tórtima e Lara Tórtima – vide exposição neste item), então teremos, indubitavelmente, evasão de divisas na modalidade promover. Os autores, entretanto, não admitem esta interpretação extensiva do tipo, restringindo o seu alcance à transposição territorial de fronteiras. 176 Sinteticamente, e para efeito da norma criminalizadora, divisas devem ser entendidas como as “disponibilidades internacionais, ou seja, disponibilidades que estão – ou se formam – no estrangeiro, a partir de um negócio jurídico (exportação, no caso), que lhe dá causa” (SCHMIDT; FELDENS, 2006, p. 169).

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143

O Direito tributário penal se refere ao conjunto normativo que estabelece sanções de

natureza especificamente tributária e, portanto, guarda relação exclusiva com a

responsabilidade administrativa decorrente da violação de determinada disposição normativa

ou regimental. Refere-se o Direito tributário penal, portanto, às modalidades sancionatórias

decorrentes do exercício do Poder de Polícia da Administração sem cogitar da

responsabilidade criminal respectiva, embora existam infrações tributárias que possam

representar, concomitantemente, crimes definidos na legislação pertinente (CARLUCI, 2001,

p. 221). Por seu turno, o Direito penal tributário é identificado como sendo o conjunto

jurídico-positivo que reúne os dispositivos criminalizadores das condutas de suprimir e/ou

reduzir tributos. Assim manifesta-se Decomain (1995, p. 19), com apoio na lição de Igor

Tenório:

Sensato falar-se, portanto, em Direito Penal Tributário, quando se pretenda tratar dos crimes relacionados diretamente à atividade tributária do Estado, sendo possível utilizar-se, ao inverso, a expressão Direito Tributário Penal, quando se esteja a cuidar de ilícitos meramente administrativos que atinjam a normalidade da atuação tributária (Igor Tenório; Direito Penal Tributário; São Paulo: Buschatski; 1973; pág. 58). Na primeira situação estaremos diante de um ramo do Direito Penal; na segunda, de um setor do Direito Tributário.

Estabelecendo a basilar diferença entre as sanções pertinentes a cada uma destas

disciplinas, Zelmo Denari e Costa Júnior (1995, p.12-13) anotam:

(...) enquanto as infrações tributárias são punidas com sanções objetivas que afetam, prioritariamente, o patrimônio do infrator, podendo atingir seus bens empresariais ou particulares, sua atividade industrial, comercial ou profissional, ou restringir até seus direitos, os delitos fiscais são punidos com sanções subjetivas, de caráter pessoal, previstas na legislação penal e quase sempre privativas da liberdade pessoal.

Nogueira (1989, p. 197) posiciona-se no mesmo sentido, asseverando que:

(...) as chamadas infrações fiscais são os desatendimentos das obrigações tributárias ou acessórias e a cominação de penalidades para essas ações ou o missões está prevista nessa mesma legislação administrativo-tributária. Por isso, esta matéria é de Direito Administrativo Tributário Penal. Observe-se que, diferentemente, no Direito Penal Tributário a disciplina contra o crime é mais rigorosa ou destacada.

Sem discordar, Eisele (2001, p. 20) corrobora a orientação, esclarecendo:

(...) quando se alude ao Direito Tributário Penal, o objeto pertence ao Direito Tributário, e está delimitado dentro desse como a parcela dos atos ilícitos de

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natureza tributária que ensejam a aplicação de uma sanção administrativa, verificados pela inobservância de normas de Direito Tributário. Por outro lado, o Direito Penal Tributário é uma das matérias do Direito Penal, qual seja, a que trata dos crimes que tenham o tributo como objeto jurídico, direta ou indiretamente considerado.

Na visão de Sánchez Rios (1998, p. 29), é mister distinguir “o não pagamento do

tributo do delito tributário”. O primeiro dá azo à responsabilidade administrativa e sujeitará o

agente às sanções próprias desta natureza, como a multa fiscal. Por seu turno, o segundo, isto

é, o delito tributário, só existe “quando o não pagamento desses tributos provém de um fato

vinculado à fraude – como é o caso da adulteração dos livros fiscais ou da apresentação de

declarações falsas”.

Consequentemente, consoante acertadamente observa Derzi (1994, p. 220), “não pode

existir crime tributário de qualquer espécie que simultaneamente não configure transgressão

de dever tributário, ilícito fiscal”, mas a recíproca não é verdadeira, porquanto “poderá haver

infringência de norma tributária, sem que, entretanto ocorra fato delituoso”. Este pensamento

decorre do caráter fragmentário e subsidiário do Direito penal como mecanismo de controle

social.

Destarte, seguindo o objetivo que orienta a base desta pesquisa, trataremos, no tópico a

seguir, apenas acerca de elementos que configuram o chamado Direito penal tributário.

4.5.2.2 A Lei 8.137/90 e o comércio exterior

A pesada incidência tributária sobre o comércio exterior – já tratada em capítulo

anterior –, ao lado, evidentemente, de muitos outros fatores econômicos e sociais que

contribuem para o cometimento de crimes em qualquer campo das relações humanas, dá

ensejo a inúmeras condutas destinadas à supressão no recolhimento de tais exigências fiscais.

Vale, nessa oportunidade, a observação de Ives Gandra Martins, realçando passagens já

mencionadas no item 3.1 retro (MARTINS, 1995, p. 21):

(...) é princípio elementar de que quanto mais alta a carga tributária, maior a sonegação de sobrevivência, sendo correta a afirmação contrária de que, quanto menor a carga, menor a sonegação, apenas praticada em casos de inequívoca patologia fiscal, isto é, de contribuintes que são sonegadores por vício, ambição, compulsão, sem qualquer justificativa.

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A primeira vista, conforme pondera Bonat (2004, p. 360), a constatação a respeito da

existência de práticas orientadas à sonegação dos tributos vinculados às operações de

importação e de exportação de mercadorias poderia sugerir apenas a prática do delito de

descaminho, previsto no artigo 334, do Código Penal, que se refere justamente à conduta de

“iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela

saída ou pelo consumo de mercadoria”.

De fato, consoante já restou consignado anteriormente, o delito de descaminho é

considerado crime de natureza tributária específica, diretamente relacionado com o comércio

exterior, mas não é, a toda evidência, o único possível de identificação no rico universo das

relações comerciais internacionais. Muitos outros delitos definidos como crimes contra a

ordem tributária177 são possíveis de ocorrência durante os vários procedimentos destinados a

operacionalizar a importação ou a exportação de produtos. A propósito, Bonat (2004, p. 360)

adverte que:

(...) não raras vezes existe a sonegação fiscal de tributo que não necessariamente o imposto sobre a entrada e saída de mercadoria, associada ao comércio exterior, como no caso do imposto de renda, imposto sobre operações de câmbio (art. 153, V, CF; art. 63 a67 do CTN), além da possibilidade da ocorrência de evasão de divisas originárias de sonegação fiscal.

Prosseguindo em sua análise, vaticina, com acerto, que o crime de sonegação fiscal no

âmbito do comércio exterior está frequentemente ligado a um outro delito que o antecede, este

sim diretamente atrelado à operação de importação ou de exportação propriamente ditas, o

que gera, consequentemente, um habitual conflito aparente de normas e, portanto, a

necessidade de recurso aos institutos destinados à solução deste fenômeno, tais como os

princípios da subsidiariedade, do especialidade e da consunção (Tratou-se a respeito do tema,

nesta pesquisa, no item 4.2, deste Capítulo 4).

Normalmente, estes designados delitos que antecedem a sonegação fiscal dizem

respeito à falsidade dos documentos necessários ao despacho aduaneiro, quais sejam –

tratando-se exemplificativamente do caso de importação, caso mais comum – aqueles

previstos no artigo 553, do Regulamento Aduaneiro178, que dispõe:

177 Por tal razão, quando doravante fizermos referência, nesta pesquisa, a crimes contra a ordem tributária ou de sonegação fiscal, estaremos excluindo desta nomenclatura, deliberadamente, a figura específica do descaminho. 178 No tocante às exportações, estabelece o artigo 588 do Regulamento Aduaneiro. A declaração de exportação será instruída com: I - a primeira via da nota fiscal; II - a via original do conhecimento e do manifesto internacional de carga, nas exportações por via terrestre, fluvial ou lacustre; e

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Art. 553. A declaração de importação será instruída com: I - a via original do conhecimento de carga ou documento de efeito equivalente; II - a via original da fatura comercial, assinada pelo exportador; III - o comprovante de pagamento dos tributos, se exigível; e IV - outros documentos exigidos em decorrência de acordos internacionais ou por força de lei, de regulamento ou de outro ato normativo.

Este procedimento revela uma clara intenção subjacente, qual seja a supressão, total ou

parcial, da carga tributária incidente em razão da entrada ou saída de mercadorias do território

nacional, circunstância que levará à identificação do crime de descaminho. Nada obstante,

este mesmo atuar possibilitará a ausência de recolhimento de outras exigências tributárias que,

malgrado não guardem relação direta com a entrada ou saída da mercadoria, incidem por

força das circunstâncias que envolvem a operação de comércio exterior, como, por exemplo, o

Imposto sobre Operações de Câmbio (vide item 3.3.4, do Capítulo 3, supra) ou o próprio

Imposto sobre a Renda e Proventos de qualquer Natureza, na medida em que a escrituração

contábil dos valores relacionados à operação, uma vez minorados (subfaturamento) ou

majorados (superfaturamento), não representará o verdadeiro conteúdo da transação. 179

Teremos, aí, portanto, a aplicação dos dispositivos da Lei 8.137/90, que disciplina os

Crimes contra a Ordem Tributária. Desconsideraremos, aqui, os delitos específicos dirigidos,

na Lei de Regência (artigo 3.°), aos servidores públicos, na medida em que nos interessa, para

o objeto do estudo proposto, avaliar as condutas ilícitas eventualmente praticadas pelos

particulares que se dedicam ao comércio exterior. Nesse passo, dispõem os artigos 1.° e 2.° da

Lei 8.137/90:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

III - outros documentos exigidos na legislação específica. 179 Parcialmente correta, destarte, a informação de Ponciano (2008, p. 292-293), no sentido de que o subfaturamento em operação de comércio exterior “caracteriza, em tese, crime de sonegação fiscal, pois quando o sujeito lança valores inferiores aos efetivamente pagos pelo importador, além da falsidade ideológica, está cometendo também crime contra a ordem tributária (art. 2., II da Lei 8.137/90). Assim, o falso é absorvido pelo crime-fim da sonegação fiscal (consunção), no qual esgota sua potencialidade lesiva.” As coisas serão assim apenas quando não se tratar de imposto cujo recolhimento seja devido no momento do registro da Declaração de Importação, pois, nessa hipótese, o que haverá será crime de descaminho, e não da Lei 8.137/90, absorvendo a falsidade ideológica anterior.

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V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V. Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

A doutrina aponta que o bem jurídico protegido pelos delitos tributários180, aí

incluídos, evidentemente, os previstos na Lei 8.137/90, está direta ou indiretamente ligado

“com a regularidade das operações de apuração e recolhimento dos tributos (conforme seja

considerada como fim ou meio)” (EISELE, 2001, p. 29). Bonat (2004, p. 361), por seu turno,

afirma que “o objetivo da criminalização é a proteção da arrecadação da Fazenda Pública. Em

sentido mais amplo, Alvarenga (1995, p. 48) considera que a ordem tributária é o “valor

jurídico penalmente tutelado pela Lei 8.137/90”, o que é acompanhado por Baltazar Júnior

(2006, p. 346). Para este último autor, secundariamente a lei protege:

(...) a Administração Pública, a fé pública e a livre concorrência, consagrada pela Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV), uma vez que o empresário sonegador poderá ter preços melhores do que aquele que recolhe seu tributos, caracterizando uma verdadeira concorrência desleal.

Do dispositivo legal acima transcrito, depreende-se que a Lei de Regência separou a

tipificação dos crimes contra a Ordem Tributária, eventualmente cometidos por particulares,

em duas partes. O artigo 1.° cuida da supressão ou redução de tributo no caso da ocorrência

das hipóteses dos incisos I a V. A doutrina não diverge em considerar este delito como sendo

de natureza material (BONAT, 2004, p. 363):

180 Para um completo panorama acerca do bem jurídico protegido pelos delitos fiscais, vide: RIOS, 1998; ESTELLITA, 2001; PRADO, 1997.

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148

(...) desde que a consumação exige que, após uma das múltiplas condutas descritas, omissivas ou comissivas, ocorra um resultado danoso, representado pela redução ou supressão de tributos, contribuição social ou acessórios, daí porque apenado de forma mais grave.

O elemento subjetivo do tipo, por sua vez, é o dolo genérico, acrescido, para a

doutrina e jurisprudência dominante181, do especial fim de agir relativo à vontade livre e

consciente de suprimir ou reduzir tributo.

Necessário frisar que a conduta prevista no parágrafo único deste artigo 1.° é

considerada autônoma em relação ao caput, e possui a natureza de crime de mera conduta,

não sendo exigido, para a sua caracterização, o especial fim de agir (EISELE, 2001, p. 165),

mas apenas o dolo genérico.

No tocante às hipóteses delineadas nos incisos do artigo 2.° da Lei 8.137/90,

esclarecedora a lição de Costa Júnior (1995, p. 123), que após afirmar a natureza material dos

casos previstos nos incisos do artigo 1.° da Lei em comento, assevera:

Os crimes contidos nos outros cinco incisos do art. 2.°, ao contrário, apresentam-se como formais. Vale dizer, a mera declaração falsa sobre rendas, para eximir-se, ainda que parcialmente, de pagamento de tributo, prevista no item I, perfaz o crime, que não reivindica, como os demais, o resultado para seu aperfeiçoamento.

Feitas estas breves anotações de natureza dogmática sobre os crimes relacionados na

Lei 8.137/90, resta observar que a complexidade da legislação aduaneira, tantas vezes

lembrada ao longo desta pesquisa, não raro origina graves problemas nas imputações de

crimes fiscais deduzidas contra os sujeitos que atuam no comércio exterior. Exemplo

emblemático é trazido por Bitencourt.

Tratava-se de caso em que o agente, acusado de simular operação de exportação para

fazer jus ao benefício fiscal denominado Drawback na modalidade suspensão182, teve contra

181 Neste sentido, como anota Baltazar Júnior (2006, p. 356), a opinião de Faria Júnior, Mesquita, Scholz e Stoco. Vide, ainda: MACHADO, 2002. Há precedentes jurisprudenciais, oriundos do colendo Superior Tribunal de Justiça, igualmente exigindo a presença do elemento subjetivo referido (vide: RESP 113.598 e RHC 11.816). Em sentido contrário, Rios (2005, p. 391) pondera que a doutrina, ao exigir “... um elemento subjetivo ao dolo, estampado na intenção ou no fim de agir para suprimir tributo ou reduzir tributo, acaba por referendar a presença do próprio dolo genérico, o qual, por si só, exaure o elemento subjetivo do tipo. Improcede, portanto, a dedução implícita – do caput do art. 1.º e dos respectivos incisos – acerca do componente subjetivo adicionado ao dolo. Ora, a aceitação plausível deste especial elemento subjetivo ao dolo verificar-se-ia caso houvesse na descrição do tipo penal o ‘intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica’ ou ‘apoderar-se de vantagem ilícita’, nos moldes dos tipos penais contra o patrimônio a exemplo dos arts. 158 e 171 do Código Penal.”

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si recebida denúncia pela prática do delito capitulado no artigo 1.°, inciso II, da Lei 8.137/90,

tendo sido, após os trâmites legais, condenado nas sanções deste dispositivo legal. A acusação

era no sentido de que a exportação do produto que deveria ser beneficiado pela matéria prima

importada com suspensão dos impostos incidentes, justamente em razão da concessão do

benefício do Drawback, não ocorreu de fato, o que se deduziu da apreensão de conhecimentos

de transporte ideologicamente falsificados. Objetava-se, entretanto, que em se tratando de

crime de natureza material, como visto acima, era imprescindível que houvesse lançamento

definitivo do crédito tributário tido como sonegado. Nesse sentido, anota Bitencourt (2004, p.

68-73):

(...) no caso dos autos, considerando-se que o apelante restou condenado pelo delito descrito no art. 1.°, inc. II, e que tal delito, para consumar-se, depende da demonstração da supressão ou redução do tributo, o mínimo que se poderia esperar é que a espécie do tributo supostamente sonegado, bem como seu quantum, restassem evidenciados nos autos. (...) Veja-se que a denúncia narra o fato sem mencionar, sequer, qual o tributo sonegado. Ao contrário, preocupou-se em demonstrar a materialidade do crime-meio (a suposta falsidade ideológica) esquecendo-se de demonstrar a materialidade do crime-fim (a suposta sonegação fiscal). Ainda que se pretenda afirmar que o tributo sonegado seria o Imposto de Importação (já que sobre este recairia o benefício fiscal do drawback), deveria haver uma preocupação em demonstrar quais as mercadorias que foram importadas e quando isso ocorreu.

De outro canto, evidenciando a confusão de interpretação sobre a legislação aduaneira,

mais adiante assevera (p. 73):

Ainda que todos os fatos narrados na denúncia sejam verdadeiros – o que se faz tão-só como argumentação –, a suposta sonegação fiscal estaria tipificada não no art. 1.°, inc. II, da Lei 8.137/90, mas no art. 2.°, inc. IV, pois o apelante teria deixado de aplicar incentivo fiscal, ou seja, teve a isenção dos impostos de importação da matéria-prima, industrializou o produto e não o exportou. O desvio de finalidade seria evidente, pois a expectativa estatal na exportação do produto não se teria concretizado.

Ainda na área das situações concertas dignas de nota a respeito dos crimes tributários

verificados no comércio exterior, merece especial destaque decisão proferida pelo egrégio

Tribunal Regional Federal da 4.ª Região no Habeas Corpus 2007.04.00.032299-0/SC, Relator

182 O Drawbak suspensão vem previsto no artigo 383, inciso I, do Regulamento Aduaneiro, que dispõe: Art. 383. O regime de drawback é considerado incentivo à exportação, e pode ser aplicado nas seguintes modalidades: I - suspensão do pagamento dos tributos exigíveis na importação de mercadoria a ser exportada após beneficiamento ou destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada; (...).

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o Desembargador Federal Luiz Fernando Wowk Penteado. Do corpo do acórdão, que

concluiu pela concessão da ordem pretendia para extrai-se:

Segundo a denúncia, os réus realizaram operação de importação na qual, "de acordo com a declaração de importação apresentada, bem como conforme a fatura comercial (...) que instruiu aquele documento, a exportadora declarada seria a empresa ASHIRA ITOH TRADE AND INVESTMENTS, com sede em New Jersey, Estado Unidos da América". Todavia, em "diligência fiscal realizada pela Inspetoria da Receita Federal (...) conclui-se pela inexistência de fato da empresa ASHIRA ITOH TRADE AND INVESTMENTS". Assim, "constatou-se a falsidade da declaração prestada por determinação dos denunciados, quando do registro da declaração de importação (DI) nº 01/1120256-0 acerca da empresa exportadora, bem como a inidoneidade da fatura comercial nº 289/01, apresentada naquela oportunidade". Ressaltou a acusação que "Não obstante a ausência de prova de redução tributária fraudulenta, a importar, inclusive, na impertinência de alegações de extinção de punibilidade por recolhimento tributário, apresenta-se relevante a falsidade perpetrada no caso, pois prejudicou o controle aduaneiro do comércio exterior, com regras rígidas, destinadas, inclusive, a garantir a idoneidade das importações". É sabido que ao Ministério Público Federal, como dominus litis, incumbe enquadrar a conduta praticada no tipo penal que entender adequado, podendo, até antes da sentença, emendar a inicial. Ocorre que a "Falsidade que tenha por escopo suprimir ou reduzir tributo não é delito autônomo, mas sim crime-meio para a supressão ou redução, que é o crime-fim" (HC nº 2007.04.00.020319-7/PR, TRF-4ª Região, 7ª Turma, rel. Tadaaqui Hirose, D.E., ed. 01-08-2007), sendo por este absorvido, bem como "Os delitos constantes dos art. 299 e 304 do CP, somente são absorvidos pelo crime de sonegação fiscal, se o falso teve como finalidade a sonegação, constituindo, em regra, meio necessário para a sua consumação" (HC nº 75.599/SP, STJ, 5ª Turma, rel. Min. Félix Fischer, DJU, ed. 08-10-2007, p. 332). É o caso dos autos, já que a potencialidade lesiva do falso perpetrado, como se infere das circunstâncias do caso, esgota-se na importação efetuada, ou seja, foi praticado apenas com o objetivo de reduzir os impostos envolvidos na operação, não se prestando para outros fins. Assim, não há falar em crime de falsidade quando este encontra-se absorvido pelo delito fim. Relativamente ao valor que foi sonegado pela conduta dos pacientes, constata-se que foi adimplido (fls. 51-52), o que, nos termos do artigo 9º da Lei nº 10.684/03, extingue a punibilidade. Poder-se-ia entender, então, pelo enquadramento da conduta no tipo penal do artigo 334 do Código Penal. Todavia, ainda que se entenda que esse ilícito é especial em relação ao do artigo 1º da Lei nº 8.137/90, e, como tal, prevalente, não se poderia cogitar de nova denúncia pela prática daquela conduta. É que do ordenamento jurídico consta o princípio de que ninguém poderá ser punido duas vezes pelo mesmo fato, o ne bis in idem. Esse princípio possui conteúdo tanto material quanto processual. Veda a dupla punição tanto quanto o duplo processo pelo mesmo fato. Com efeito, houve uma denúncia equivocada pela prática de delito de falsidade, a qual, nesta oportunidade está se reconhecendo a extinção da punibilidade pelos fundamentos antes declinados. Não poderia o juízo, assim, admitir uma segunda denúncia, pois estaria a processar, pela segunda vez, as mesmas partes, pelos mesmos fatos e mesma causa de pedir, o que não se admite à vista do já invocado princípio do ne bis in idem.

A decisão é importante porque considera que eventuais dados falsos inseridos na

Declaração de Importação não possuem, por si só, potencial lesivo para a continuidade da

persecução penal pelo delito de falsidade ideológica, em que pese a alegação do Ministério

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Público Federal no sentido de que tal procedimento serviu para prejudicar o controle

aduaneiro sobre o comércio exterior, independentemente da existência, ou não, de crédito

tributário advindo da transação comercial. A verdade é que a falsidade perpetrada teve por

escopo a redução dos tributos devidos, cujo valor foi, posteriormente, recolhido pelo agente, o

que não justifica a persecução penal por delitos que reconhecidamente são apenas meio para o

alcance do fim pretendido. O trancamento da ação penal é medida que se impõe.

Finalmente, remetemos o leitor às considerações elaboradas por ocasião da abordagem

sobre a possibilidade de extensão, ao delito de descaminho, da orientação jurisprudencial que

consagrou a necessidade de prévio esgotamento da via administrativa para a o início da ação

penal nos crimes tributários (HC 81.611) e também sobre a existência de previsão legal

expressa (artigo 34 da Lei 9.249/95) estipulando a extinção da punibilidade no caso de

pagamento dos valores devidos antes do recebimento da denúncia (ver item 4.4.1, Capítulo 4,

supra).183

4.5.3 Anotações acerca da lavagem de dinheiro e as operações de comércio internacional

4.5.3.1 Considerações de ordem geral

O estreitamento das fronteiras entre os Estados nacionais como os conhecemos e,

consequentemente, o incremento sem precedentes verificado nas trocas de produtos e serviços

entre os países – tema já mencionado no início desta pesquisa e tratado, à exaustão, em

inúmeros trabalhos específicos sobre globalização em suas mais diversas vertentes184 –

autorizam concluir que o comércio exterior ocupa posição de destaque na discussão em torno

do combate à lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.

A propósito desta nova realidade mundial, oportuno mencionar a recente lição de

Barros (2008, p. 33-34):

Estamos envolvidos por um período de transição tecnológica sem precedentes na história da humanidade. As relações econômicas, financeiras, sociais, políticas e

183 A propósito do tema, confira-se, indispensavelmente: RIOS, 2003; SCHMIDT, 2003. 184 Confira-se, a propósito, dentre outros: SANTOS, 2006; IANNI, 2003; FERRAJOLI, 2002.

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jurídicas são hoje determinadas, em sua maioria, por processos globais, em que culturas, economias e fronteiras nacionais são redimensionadas a cada dia. (...) Contudo, esta extraordinária intervenção comunicativa do homem, como historicamente ocorre, também acabou sendo utilizada por mãos criminosas.

Com efeito, os resultados do progresso tecnológico e do natural estreitamento das

relações internacionais costumam apresentar outra faceta, na medida em que podem ser

dirigidos e empregados para fins menos – ou nada – nobres. O maniqueísmo parece ser

inevitável, mas é importante ressaltar que nada é capaz de macular as vantagens oriundas do

progresso, pois o desvirtuamento das conquistas já obtidas ou dos motivos que impulsionam a

sua obtenção é obra do pensamento turvado de apenas parte da humanidade, circunstância que

não se mostra suficiente para impedir, frear ou limitar a marcha do progresso. Aliás, esta

constatação não pode nem deve surpreender, na medida em que já se afirmou, inclusive, que a

delinqüência é um fenômeno natural, de extirpação inviável185 e útil ao progresso da

sociedade. A propósito, Hassemer e Muñoz Conde (1989, p. 40) anotam que

“…frecuentemente, el delincuente se adelanta a su tiempo, prepara los cambios sociales y

antecipa la futura moral. Necessário se faz, portanto, criar mecanismos de prevenção e

repressão dos desvios verificados, a ponto de garantir que os benefícios sejam infinitamente

maiores que as eventuais transgressões.

Para Baltazar Júnior (2006, p. 405), a lavagem de dinheiro pode ser conceituada,

objetivamente, “como atividade que consiste na desvinculação ou afastamento do dinheiro da

sua origem ilícita para que possa ser aproveitado” ou, ainda, para Barros (2008, p. 46),

representa um “conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação,

na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de

origem ilícita para dar-lhe aparência legal”. Nesse passo, desenvolveram-se, em todo o

mundo, mecanismos de combate à reciclagem do dinheiro oriundo do cometimento de

condutas criminosas prévias. Consoante anota Bonat (386, p. 386), a premissa do combate à

lavagem de dinheiro está, justamente, na máxima de que “nada adianta a obtenção de fortunas

com o crime se não puderem ser utilizadas”.

Dado o seu caráter eminentemente transnacional, verificou-se que as medidas adotadas

nesta seara também devem posicionar-se internacionalmente. Estas medidas iniciaram-se em

1988 com a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de

185 Nesse particular, vale a anotação de Roxin (2001, p. 11), para quem: “Criminalidade é um problema de todas as sociedades. Isso explica a internacionalização da ciência penal. Entretanto, em que pese a larga experiência com esse fenômeno, em nenhuma parte se conseguiu chegar a eliminar a criminalidade e nem sequer alcançar a sua marginalização, tampouco existe acordo sobre o caminho razoável para reduzi-la.”

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Substâncias Psicotrópicas, conhecida por Convenção de Viena186, referendada pelo Brasil em

1991.187 A respeito desta política criminal a nível internacional, pondera Albrecht (2004, p.

47-48):

La convención de Viena de 1988, dirigida justamente contra el tráfico ilícito de drogas, estupefacientes y sustancias sicotrópicas, simboliza una nueva política criminal que desplaza los puntos de atención al producto ilícito del delito y su confiscación. Esta nueva política criminal aparece explícita, por lo demás, en las actividades del Consejo de Europa, como también en algunos países de la Unión Europea. En general, la política jurídica se ha concentrado en el lavado de dinero y las ganancias de origen ilícito provocando transformaciones profundas en el derecho penal sustantivo así como en el derecho procesal penal. La política de retirar de circulación las ganancias ilicitas, cuyo objetivo específico consiste sobre todo el la necessidad de suprimir completamente del tráfico económico las utilidades del comercio organizado de narcóticos, hace parte de los esfuerzos internacionales de unificación de la legislación en el campo del lavado de activos y la extinción de ganancias ilícitas a nivel internacional.

E de fato, ampliou-se, sem precedentes no âmbito jurídico-criminal, a produção

legislativa mundial destinada ao combate da lavagem de dinheiro. A esse propósito,

imprescindível referir a opinião de Carli (2008, p. 133):

(...) um outro aspecto relativo à criminalização da lavagem de dinheiro merece ser destacado: apesar de recente, em poucos anos (a partir de 1990, principalmente) reproduziu-se em dezenas de Estados, nos quais foram elaboradas legislações bastante semelhantes entre si. Criou-se, ainda, um elaborado conjunto de medidas e de organismos internacionais de cooperação que visam à implementação de uma política uniforme de prevenção e de repressão. A expansão de normas penais ocorre raramente, em termos internacionais – mas certamente não se viu nada parecido em nível de complexidade de regulações, dos mecanismos de avaliação e de controle.

Voltando os olhos para a realidade nacional, também inserida nesta política criminal

internacional, sobreleva notar que do compromisso assumido pelo Brasil na oportunidade de

referendar a Convenção de Viena, veio à lume a Lei 9.613, de 03 de março de 1998. Em seu

186 Fazem parte, ainda, desta política: “A criação do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro – GAFI, criado em 1989 pelos sete países mais ricos (G-7)”; a “Assembléia Geral da OEA, em 1992, que edita regulamento-modelo sobre delitos de lavagem relacionados com o tráfico ilícito de drogas e outros delitos graves”; a “Conferência da Cúpula das Américas (Buenos Aires, em 1995), que emite comunicado sobre procedimentos de lavagem e instrumentos criminais”; e a “Assembléia Geral da ONU (Nova Iorque, 1998), que edita a declaração política e plano de ação contra lavagem de dinheiro”. (BONAT, 1995, p. 385). Muito outros Diplomas internacionais podem ser mencionados, dentre eles (cf. CARLI, 2008, p. 139 et. seq.): no âmbito do Conselho da Europa, em 1990, a Convenção sobre Lavagem de Dinheiro, Busca, Apreensão e Confisco dos Produtos do Crime (Convenção de Estrasburgo); as chamadas Diretivas Européias (três documentos que emitem medidas preventivas e repressivas de lavagem de dinheiro, respectivamente em 1991, 2001 e 2005); a Convenção de Varsóvia de 2005, substitutiva da Convenção de Estrasburgo; a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado de 2000 (chamada Convenção de Palermo); dentre outros. 187 Vide Decreto 154/91, aprovado pelo Decreto-Lei 162/91.

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artigo 1.º da Lei 9.613, de 03 de março de 1998188, relaciona, como antecedentes necessários

do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores189, os delitos de (I) tráfico ilícito

de substâncias entorpecentes e drogas afins; (II) de terrorismo e seu financiamento; (III) de

contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; (IV) de

extorsão mediante seqüestro; (V) contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para

si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço,

para prática ou omissão de atos administrativos; (VI) contra o sistema financeiro

internacional; (VII) praticado por organização criminosa; (VIII) praticado por particular

contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D, do Código Penal).

Cabe salientar que, em conformidade com a observação de Pitombo (2003, p. 112),

“na lavagem de dinheiro, o substantivo crime faz parte da descrição do fato típico (art. 1.º,

caput, in finis), logo, a ausência de crime – entenda-se, ausência de elementar – exclui a

configuração típica.” E, ademais, a expressão crime, aqui, deve ser entendida como injusto

penal, na medida em que o § 1.º, do artigo 2.º a Lei 9.613/90 estabelece que “a denúncia será

instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos

previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.”

Costuma-se asseverar, no entanto, e com acerto, que a referência contida na primeira parte

deste parágrafo, relativa à possibilidade de recebimento da denúncia por crime de lavagem

apenas com base em indícios da existência do crime antecedente, dispensa a comprovação

cabal da materialidade ou uma eventual sentença condenatória por este crime.190 Todavia,

lembra Pitombo (2003, p. 60), tal assertiva limita-se ao recebimento da exordial acusatória,

pois a própria exposição de motivos ressalta a “necessidade da prova da materialidade do

delito prévio na sentença penal condenatória”.

Esta relação de crimes antecedentes constante na Lei 9.613/98 representa a adoção,

pelo Brasil, de uma posição intermediária àquelas observadas por outros países. Informa

Barros (2008, p. 51-52) que depois da realização da Convenção de Viena, os seus membros

deliberaram, internamente, sobre qual seria a melhor opção para a previsão dos delitos cujo

produto poderia ser objeto de lavagem, surgindo, destarte, três posicionamentos: considerar,

exclusivamente, o tráfico internacional de entorpecentes (motivo da Convenção); considerar

todo e qualquer crime, como faz as legislações dos Estados Unidos, da Bélgica, Itália, França

188 Art. 1.º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: ... 189 Ao qual se estabelece pena privativa de liberdade de reclusão, de três a dez anos e multa. 190 Neste sentido, afirma Baltazar Júnior (2006, p. 408): “Para receber a denúncia pelo crime de lavagem de dinheiro, deve haver, no mínimo, indícios do crime antecedente ou crime base, o que não significa que deva haver condenação prévia”.

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e Suíça; ou optar uma saída intermediária, adotada pelo nosso ordenamento jurídico,

consistente na taxativa relação de crimes cujo produto pode ser objeto do crime de lavagem.

Elucidativo o esclarecimento do ex-ministro da Justiça Nelson Jobim (2000, p. 18),

membro da Comissão responsável por elaborar o Projeto que culminou com a edição da Lei

9.613/98, a respeito dos motivos que levaram à adoção desta posição intermediária no tocante

aos crimes antecedentes:

Aqui no Brasil não se tem experiência alguma, e se resolvêssemos tipificar como lavagem de dinheiro os valores oriundos de todos os crimes, banalizaríamos a legislação brasileira. Essa foi uma decisão política no sentido gradualista, ou seja, o compromisso do legislador não era, portanto, com a consistência retórica e acadêmica do sistema, mas, sim, com a viabilidade prática de realização do próprio sistema.

Merece destaque a ausência, no rol taxativo acima indicado, dos delitos contra a

Ordem Tributária, motivo de aceso debate doutrinário. A exposição de motivos da lei em

comento justifica a não tipificação de tais delitos na condição de antecedentes do crime de

lavagem de dinheiro na medida em que eles não agregam, ao patrimônio do agente, novos

bens, direitos ou valores. Haveria, apenas, manutenção do patrimônio já existente em

decorrência do não recolhimento fiscal. Contrapondo-se a estas razões, Góes (2000, p. 21)

observa que a medida da ilicitude não está no acréscimo patrimonial do agente, mas sim na

existência, ou não, de uma massa de valores produzida pelo delito antecedente que necessita

ser reciclada. Em sua visão, o contribuinte “sonega ao Fisco parte de seu próprio patrimônio,

mas ao fazê-lo macula essa parcela sonegada que passa a ser, por isso mesmo, ilícita. Isso

basta para demandar a ‘lavagem’ e deveria ter bastado para caracterizar o crime”. 191

Carli (2008, p. 240) – sem, a rigor, manifestar opinião pessoal expressa acerca do

debate – observa que por trás da resistência oferecida para inclusão do delito fiscal no rol de

crimes antecedentes da lavagem de dinheiro encontra-se uma questão de foro internacional,

uma vez que os crimes de natureza tributária parecem gozar de tratamento político e jurídico

privilegiado, podendo, inclusive, serem utilizados como fundamento para negativa de

191 Na doutrina nacional, Pitombo (2003, p. 59) também é favorável à exclusão dos delitos contra a Ordem Tributária do rol analisado, embora por razões diversas, relacionadas à falta de equilíbrio da legislação penal tributária em nosso país. Martins (1998, p. 28-32), também se posiciona a favor da ausência dos delitos tributários como antecedente da lavagem. Em sentido contrário, seguindo a orientação de Góes, Bonat (2004, p. 389): “Não rara vezes os valores decorrentes de sonegação fiscal assumem proporção gigantesca, razão pela qual busca o sonegador ocultar aqueles valores para, mais adiante, deles usufruir. Daí porque, apesar de respeitáveis manifestações contrárias, melhor seria tivesse sido também incluído dentre os demais crimes dos incisos.”

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cooperação internacional, de acordo com o que dispõe o artigo 28, n.º 1, alínea d, da

Convenção de Varsóvia.192

De qualquer sorte, vale mencionar que tramita, perante o Congresso Nacional, Projeto

de Lei (substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 209/2003) visando extirpar o rol taxativo

previsto nos incisos do dispositivo em comento, de modo que se passe a considerar, também

aqui, como antecedente do crime da lavagem de dinheiro, o produto oriundo de todo e

qualquer crime. Uma vez aprovado o Projeto, a discussão sobre a conveniência ou não da

previsão dos crimes contra a ordem tributária na condição de antecedentes à lavagem de

dinheiro perderá o objeto.193

Com base das estipulações do GAFI (em inglês, FATF – Finantial Action Task Force,

ou, em francês, FATI – Grupe D’action Financiére)194 e nas determinações da própria

Convenção de Viena, germe da profusão legislativa internacional a respeito do tema,

identifica-se, para fins meramente didáticos, três fases inerentes à lavagem de dinheiro, quais

sejam: placement (colocação ou conversão), que corresponde à separação física; layering

(dissimulação); e integration (integração). Costa (2007, p. 32) observa que a primeira fase

(colocação) se destina “à separação física do produto direto do delito que precede a posse dos

infratores”; a segunda (dissimulação) caracteriza-se pela tentativa de “dificultar o

rastreamento dos bens, direitos ou valores pelas autoridades incumbidas de fiscalização”; e a

terceira (integração) consiste na efetiva utilização “dos benefícios financeiros como se ilícitos

fossem”.

Anote-se, entretanto, que a experiência prática demonstra que estas três fases não são

passagens lógicas e cronológicas necessárias para, empiricamente, processar-se a lavagem de

dinheiro. Oportuna, neste particular, a crítica de Tigre Maia (1999, p. 37), no sentido de que

estas etapas “não são estanques e independentes, mas comunicantes e, até mesmo,

superpostas, pois a reciclagem é um processo, suscetível de análise com os instrumentos da

ciência econômica ou da ciência jurídica, mas dificilmente desdobrável em fases distintas.”195

192 Promulgada em 2005, a Convenção de Varsóvia substitui a Convenção de Estrasburgo – da qual o Brasil não é signatário – e, em matéria de cooperação internacional, estabelece que se aceita como negativa desta cooperação o argumento de que o crime sob o qual se fundamenta o pedido é um delito fiscal, “negando, todavia, esta possibilidade, quando o pedido versar sobre financiamento do terrorismo”. (CARLI, 2008, p.145) 193 O Projeto pretende que o artigo 1.º da Lei 9.613/98 tenha a seguinte redação: “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. 194 Para maiores informações, vide www.fatf-gafi.org. 195 O pensamento é compartilhado por Barros (2006, p. 49): “Na verdade, não há consenso na literatura sobre serem tais etapas obrigatórias do processo, visto que em alguns casos há manifesta interdependência de operações paralelas, que pode se comunicar ou se sobrepor no desenvolvimento do percurso da ‘lavagem’.

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Tormentosa é a questão referente à identificação do bem jurídico protegido pela

incriminação autônoma da lavagem de dinheiro, considerando a complexidade e a

multidisciplinariedade do Diploma Legal que rege a matéria. Essa discussão vem resumida na

opinião de Pitombo (2003, p. 73), quando observa a existência de três principais correntes

doutrinárias a identificarem o bem jurídico protegido pela Lei 9.613/98 como sendo:

a) o mesmo bem jurídico protegido pelo delito antecedente;

b) a administração da Justiça;

c) e a ordem econômica, sendo esta última adotada pelo autor como a mais

convincente.

Seguindo esta orientação, tendo a questão da multidisciplinar característica da Lei de

lavagem como pano de fundo, e considerando, em nosso sentir acertadamente, que os bens

jurídicos tutelados pelos crimes antecedentes podem ser diversos, o que decorre da hoje

inegável autonomia outorgada ao crime de lavagem de dinheiro, pondera Barros (2008, p. 53):

Hoje nos parece apropriado afirmar que o crime de lavagem de capitais é pluriofensivo, eis que tutela juridicamente mais de um bem. Em apertada síntese podemos dizer que estes bens tutelados são, primordialmente, a estabilidade e a credibilidade dos sistemas econômico e financeiro do País.196

Por fim, resta lembrar que a incriminação da lavagem de dinheiro não se esgota nas

condutas descritas nos incisos do artigo 1.º da Lei 9.613. Com efeito, os §§ 1.º e 2.º deste

mesmo artigo 1.º assim estabelecem:

§ 1.º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo: I - os converte em ativos lícitos; II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. § 2.º Incorre, ainda, na mesma pena quem:

196 Em sentido contrário, Tigre Maia (1999, p. 57-58), ao afirmar que a objetividade jurídica do delito em estudo é, imediatamente, a Administração da Justiça, e que, de maneira mediata, os bens jurídicos protegidos pelos delitos antecedentes. Ainda sobre os posicionamentos existentes em torno do assunto, vide: CARLI, 2008, p. 101-103. Na literatura comparada, confira-se, por todos: SÁNCHEZ, 2000. O autor, às páginas 77 a 102, traça um panorama geral da discussão européia, não muito distante da que se trava no Brasil, a respeito do bem jurídico protegido pelo crime de lavagem de dinheiro, concluindo que este pode ser identificado na ordem econômica internacional. Neste sentido, em síntese, afirma: “A la luz de estas reflexiones, no es difícil inutir que la internalización del blanqueo, así como la necesidad d euna respuesta jurídica coordinada a nível mundial, no son sino el resultado de esa dimención supranacional que caracteriza al orden económico de nuestros dias.”

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I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo; II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.

Consoante anota Bonat (2004, p. 390) o legislador procurou, nestes §§ 1.º e 2.º,

incriminar, respectivamente, a segunda (dissimulação) e a terceira (integração) fase do

processo relativo à lavagem de dinheiro, etapas sobre as quais já se fez referência linhas

acima. Interessa ao objetivo do estudo aqui proposto, essencialmente, o disposto no inciso III

do § 1.º, hipótese que será analisada a seguir, juntamente aqueles casos, relacionados nos

incisos do caput, que guardem maior relação com as atividades praticadas no comércio

exterior.

4.5.3.2 A Lei 9.613/98 e o comércio exterior

É, de fato, intensa a movimentação financeira proporcionada pelas atividades de

comércio exterior e, destarte, também costumam ser elevadas as somas de dinheiro arrecadas

com as atividades ilícitas praticadas neste meio, de modo que os beneficiários destes valores

precisam valer-se de expedientes destinados a usufruir normalmente de tais recursos,

introduzindo-os na economia regular e escamoteando a sua origem espúria (BONAT, 2004, p.

384). Esta constatação não está reservada, evidentemente, apenas aos crimes verificados no

âmbito das atividades de importação e exportação, aplicando-se a todas aquelas situações que

revelam condutas subsumidas aos tipos penais considerados, pela lei, como antecedentes do

delito de lavagem de ativos ou que, ainda, amoldem-se a uma das hipóteses abstratamente

previstas nos §§ 1.º e 2.º da Lei em questão. Não obstante, as particularidades inerentes às

operações de comércio internacional recomendam uma análise apartada.

Oportuna, na ocasião, a observação de Albrecht (2004, p. 16), no sentido de que:

El desarrollo de los mercados ilegales y la formación de mercados ilegales locales lleva a conclusión de que este es un fenómeno que tampoco sorprende, pues responde a la acumulación de capital libremente móvil que se lleva a cabo en el marco exterior de la economía controlada y convencional y que consecuentemente, ponde en marcha procesos que sirven a la reintegración del capital ilegal en el mercado legal e internacional.

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Pois bem. Da análise da relação prevista nos incisos do artigo 1.º da chamada Lei de

Lavagem, depreende-se que muitos dos delitos possíveis de serem praticados durante as

operações de comércio exterior estão ali presentes, especialmente o contrabando ou tráfico de

armas, munições ou material destinado à sua produção (inciso III), bem assim aqueles

perpetrados contra a Administração Pública (inciso V) e contra sistema financeiro nacional

(inciso VI), e os praticados por organização criminosa (inciso VII) e contra a administração

pública estrangeira (inciso VIII).

No concernente a esta relação de ilícitos antecedentes – que a propósito, como antes já

se afirmou, é taxativa197 – já tratamos especificamente, em título próprio, a respeito do

contrabando, bastando anotar que, para configurar antecedente de crime de lavagem de

dinheiro por força deste inciso III , a mercadoria proibida objeto da transação internacional há

que ser, necessariamente, arma, munição ou material destinado à sua produção. O

contrabando de outros produtos198 cuja importação ou exportação sejam vedadas não

caracterizará conduta antecedente para fins de imputação, ao agente, do crime de lavagem de

dinheiro com fundamento no inciso III, uma vez que, consoante já restou consignado, a lista

do artigo 1.º da Lei de Lavagem é taxativa e não meramente exemplificativa.199 A polêmica,

aqui, fica reservada para o inciso V do artigo em estudo, e será analisada a seguir.

Importante observar, ainda no tocante a este inciso III do artigo 1.º da Lei de

Reciclagem, que o tráfico internacional de arma de fogo é tipo penal específico, previsto no

artigo 18, da Lei 10.826/2003200, em relação ao contrabando do artigo 334, do Código penal.

Da mesma forma, o artigo 12, da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83) 201 define

197 Sem esquecer, novamente, do Projeto de Lei do Senado 209/2003 que visa extirpar este rol taxativo. 198 Exceto, obviamente, as substâncias entorpecentes e drogas afins, cujo tráfico caracteriza antecedente do delito de lavagem de dinheiro por força do inciso I do dispositivo legal em discussão. No Brasil, a Lei 11.343/2006 assim dispõe: “Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.” 199 A propósito, em consonância com a observação de Pitombo (2003, p. 115): “o contrabando e o descaminho (art. 334 do CP) não entram no rol de crimes antecedentes, por razões fundadas na objetividade jurídica da lavagem de dinheiro, mas, principalmente, porque o legislador especificou o contrabando e o descaminho que podem dar causa à lavagem, aqueles atinentes à armas, munições ou material destinado a sua produção`. Vale a regra lex specialis derrogat generalis.” Cabe, aqui, apenas a ressalva no sentido de que não há descaminho sobre armas, munições ou material destinado á sua produção, na medida em que tais bens são de importação ou exportação proibida. 200 Art. 18. Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. 201 Art. 12 - Importar ou introduzir, no território nacional, por qualquer forma, sem autorização da autoridade federal competente, armamento ou material militar privativo das Forças Armadas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.

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hipótese específica de introdução, no território nacional, de armamento privativo das forças

armadas. Portanto, em princípio, qualquer um destes três tipos penais pode ser incluído como

antecedente do delito de lavagem de dinheiro, por força do que estabelece o artigo 1.º, inciso

III, da Lei 9.613/98.

No inciso V deste mesmo dispositivo legal, está estabelecido que os crimes praticados

contra a “Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou

indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de

atos administrativos” também são considerados antecedentes de do delito de lavagem de bens,

direitos e ativos. A amplitude da redação da norma incriminadora em estudo é criticada pela

doutrina, que procura, com razão, identificar no extenso rol dos crimes que afrontam a

Administração Pública (previstos no Código Penal e na legislação penal extravagante) apenas

aqueles que, de uma ou de outra forma, possam representar vantagem econômica sujeita à

dissimulação ou ocultação.

De fato, para Pitombo (2003, p. 114), “pode-se ter certeza que só alguns tipos penais,

arrolados nesse mare nostrum de crimes antecedentes, poderão dar causa ao cometimento da

lavagem”. No mesmo sentido, Baltazar Júnior (2006, p. 406), para quem “é característica da

lavagem, então, que os crimes antecedentes produzam lucro, tais como o tráfico ilícito de

entorpecentes e a corrupção”.

Dentre estes, alguns mostram especial ligação com as atividades de comércio exterior.

Não há negar, sob pena de incorrermos em imperdoável omissão no tratamento do tema

escolhido, que as peculiaridades inerentes às operações de comércio internacional dão ensejo

à prática de diversos crimes. Os vários e intrincados procedimentos necessários para

possibilitar a entrada ou a saída de mercadorias do território nacional, o elevado número de

agentes públicos e de partes privadas interessadas na conclusão da negociação comercial, a

freqüente urgência verificada para a liberação das cargas armazenadas nos estabelecimentos

apropriados, os rigorosos procedimento especiais de fiscalização aduaneira, a pesada

tributação incidente sobre o comércio exterior, dentre outros motivos, proporcionam a criação

de inúmeras oportunidades para práticas criminosas.

Não raro, são detectados desvios de conduta por parte de servidores públicos, em

especial responsáveis pela fiscalização aduaneira, que caracterizam os crimes de concussão

(art. 316 do Código Penal)202, excesso de exação em sua forma qualificada (artigo 316, § 2.º

202 Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.

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do Código Penal)203, corrupção passiva (artigo 317, do Código Penal)204 e a facilitação de

contrabando e descaminho (artigo 318 do Código Penal, tipo penal que já foi objeto de análise

neste trabalho). Todos estes delitos, praticados por servidores públicos em detrimento da

Administração Pública, proporcionam ganhos ilícitos passíveis de ocultação ou dissimulação.

Portanto, uma vez caracterizados, podem ensejar a imputação da prática de lavagem de

dinheiro com fundamento no inciso V, do artigo 1.º, da Lei. 9.613/98.

Da mesma forma, quanto aos particulares, observa-se que estes também podem

cometer delitos contra a Administração Pública de maneira autônoma e, no que toca

especialmente às atividades relacionadas ao comércio exterior, em correspondência com a

premissa indicada anteriormente, poder-se-ia citar os delitos de tráfico de influência (artigo

332 do Código Penal)205 e de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal)206.

Problema a parte, como se destacou por ocasião do exame do inciso III, é a questão

referente ao delito de contrabando e descaminho, previsto no artigo 334, do Código Penal.

Pitombo (2003, p. 115), ao manifestar-se sobre o tema, vaticina:

(...) o contrabando e o descaminho (art. 334 do CP) não entram no rol de crimes antecedentes, por razões fundadas na objetividade jurídica da lavagem de dinheiro, mas, principalmente, porque o legislador especificou o contrabando e o descaminho que podem dar causa à lavagem, aqueles atinentes à armas, munições ou material destinado a sua produção`. Vale a regra lex specialis derrogat generalis.

De qualquer sorte, seguindo tal raciocínio e restringindo o exame ao disposto no inciso

III em comento, a configuração de crime de lavagem de produto obtido com o contrabando de

outros bens que não armas, munições ou material destinado à sua produção, estaria,

realmente, obstada em razão do princípio da legalidade em matéria penal, garantia prevista na

Constituição Federal de 1988 e na legislação ordinária.207

203 § 2º - Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa. 204 Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. 205 Art. 332 - Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. 206 Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. 207 CF/88, artigo 5. º, inciso XXXIX e CPB, artigo 1.º: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Acerca do princípio da legalidade e seus desdobramentos (nullum crimem, nulla poena sine lege praevia, scripta, stricta e certa), vide, na doutrina pátria, por todos, TOLEDO, 1994, p. 21 et. seq. Cabe, aqui, apenas, a ressalva no sentido de que não há descaminho sobre armas, munições ou material destinado

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Sem embargo, a ampla referência, feita no inciso V do artigo 1.º da Lei. 9.613/98, a

delitos praticados contra a Administração Pública, revelaria, a primeira vista, a indisfarçável

pretensão de incluir, no rol dos delitos antecedentes a figura do contrabando e do descaminho

genericamente considerados. Com efeito, para Baltazar Júnior:

O inciso deve ser entendido como abrangente não só dos crimes previstos no Título XI do CP, mas também de crimes previstos em leis especiais, como a Lei de Licitações; a Lei dos Crimes de Responsabilidade de Prefeitos; crime eleitorais e quaisquer outras condutas que atentem contra a administração pública gerando proveito econômico.

De fato, concretiza-se a previsão de Barros (2008, p. 113)

Tendo em vista que o Direito Penal considera a Administração Pública no sentido amplo, isto é, como atividade funcional do Estado em todos os setores em que se exerce o poder público, com exceção da atividade política, inúmeras são as normas do Código Penal e das leis esparsas que identificam os tipos penais correspondentes. Desta forma, a menção genérica da modalidade criminal precedente pode produzir incertezas e debates jurídicos que somente são suplantados pelo bom senso.

A celeuma está, de fato, estabelecida. Procuremos nos ancorar, portanto, no bom

senso. Assim, nos parece correto considerar que a menção à apenas uma modalidade

específica de contrabando e, por outro lado, a ausência de expressa referência ao descaminho

no inciso III do dispositivo em questão, não podem ter sido em vão. Se a proposta do

legislador fosse o estabelecimento de qualquer tipo de contrabando e de descaminho como

antecedentes da lavagem de dinheiro, o inciso III não teria razão de existir. Destarte, com

Pitombo e sem embargo de respeitáveis entendimentos em sentido contrário208, somos da

opinião de que apenas o contrabando de armas, munições ou material destinado a sua

produção pode ser considerado antecedente da lavagem de dinheiro e, ademais, para manter a

coerência deste pensamento, o crime de facilitação ao contrabando e ao descaminho,

eventualmente cometido pelo servidor público (vide item 4.4.6 deste estudo) só poderá,

igualmente, ser considerado antecedente da lavagem quando seu objeto for o mesmo (armas,

munições ou material destinado a sua produção).

à sua produção, na medida em que tais bens são de importação ou exportação proibida. Além do mais, a lei não menciona, neste inciso III, o crime de descaminho. 208 Exemplificativamente, Tigre Maia (1999, p. 75), para quem “... qualquer modalidade de contrabando ou descaminho poderá ensejar a lavagem de dinheiro, subsumindo-se ao inciso V...”; e Costa (2007, p. 44), que ao examinar a disposição do inciso III, pondera: “Deveras, é despiscienda a referência ao contrabando, porque, enquanto delito contra a Administração Pública, encontraria espeque no inciso imediatamente seguinte do artigo 1.º da Lei 9.613/1998.”

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Especificamente quanto ao descaminho, há que se considerar, ainda, que tal crime

possui inegável natureza tributária (vide item 4.4.1, Capítulo IV, supra), nada mais sendo que

uma sonegação fiscal específica, relacionada aos tributos incidentes em razão da entrada ou

saída de determinada mercadoria do território nacional. E se, por todos os motivos já

mencionados, o legislador optou, deliberadamente, pela exclusão dos delitos contra a ordem

tributária do rol taxativo do artigo 1.º, seria rematado contra-senso admitir-se, com base numa

interpretação extensiva do inciso V, a inclusão, nesta categoria, do crime de descaminho.209

Por seu turno, os crimes contra o sistema financeiro nacional, definidos pela Lei

7.492/86 e já tratados em item próprio desta pesquisa, também foram relacionados como

antecedentes do delito de lavagem de dinheiro, de acordo com o inciso VI, do artigo 1.º da lei

de regência. Novamente, da mesma maneira que procedeu quanto aos crimes praticados

contra a Administração Pública (inciso V), o legislador optou por redação extremamente

ampla do dispositivo, sem apontar especificamente quais figuras típicas previstas na Lei

7.492/86 está a considerar. Neste particular, nos valemos, uma vez mais, da observação de

Pitombo (2003, p. 115), para quem “a maioria dos tipos elencados na Lei 7.492/1986 pode vir

a caracterizar produto ou proveito, próprios para a lavagem de dinheiro, com exclusão dos

artigos 3.º, 6.º, 14, 15, 18 e 23”. No que interessa ao tema específico do estudo aqui

desenvolvido, ressalta a importância dos crimes destacados nos itens 4.1.3. e 4.1.4. do

Capítulo IV, desta dissertação.

Destaque especial merece o que vem disposto no inciso VII do artigo 1.º da Lei

9.613/98, segundo o qual são antecedentes do crime de lavagem de dinheiro os delitos

praticados por organização criminosa. Com esta determinação, o legislador – conforme

admitido pelo próprio ex-ministro da Justiça Nelson Jobim (1998, p. 15), um dos membros da

Comissão que elaborou a lei em referência – colocou “um pé da legislação brasileira na

terceira geração”, aquela que estabelece como antecedentes da lavagem o produto obtido com

a prática de todo e qualquer crime, procedimento que se pretende concluir com a aprovação

do atual Projeto de Lei em trâmite no Senado, ao qual já fizemos referência anteriormente.

Conforme anota Jobim, “qualquer tipo de ilícito, qualquer tipo de conduta criminosa que

produza dinheiro, que tenha sido efetivada e realizada por organização criminosa, conduz

também ao crime de lavagem de dinheiro”. De se ressaltar a expressão “que produz

dinheiro”, procurando manter a coerência com os motivos que ensejaram a edição do Diploma

209 A jurisprudência, não obstante, já decidiu sentido inverso (TRF3, HC 200803000404053, DJU 13/01/2009), ponderando, genericamente, que “o fato típico, em tese, descaminho, como sabido, é antecedente à lavagem de dinheiro.”

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Legal em referência. Desta forma, se uma organização criminosa praticar delitos exclusivos

de sonegação fiscal, não haverá possibilidade de imputação de crime de lavagem de

dinheiro.210

O problema, aqui, está na definição – ou mais propriamente na ausência de uma – a

respeito do que seja, efetivamente, uma organização criminosa, o que, dentre outros fatores,

contribui para a confusão comumente existente entre esta figura e o delito capitulado no artigo

288, do Código Penal (quadrilha ou bando).211 E a questão é especialmente tocante às

atividades de comércio exterior, desenvolvidas por sociedades empresárias complexas, as

quais, por outro lado, dependem e se relacionam com outras entidades semelhantes,

localizadas em território estrangeiro.

Categórica, nesse sentido, a crítica de Pitombo (2003, p. 116):

Outro inciso no rol dos crimes prévios (artigo 1.º, inciso VII da Lei. 9.613/1998) abriga outra lacuna legal, porque inexiste tipo de organização criminosa no Direito penal brasileiro. Embora possuam a previsão de quadrilha ou bando no CP (art. 288) e os dispositivos da lei especial quanto à matéria (Lei 9.034/1995 com as alterações da Lei 10.217/2001), tais disposições legais não suprem a necessidade do tipo legal, em virtude do princípio do nullum crimen, nulla poena sine legge. (...) Por enquanto não se pode falar em crime organizado antecedente à lavagem de dinheiro, o que implica deixar vácuo na política criminal.

Nessa mesma linha, a observação de Costa (2007, p. 50), para quem, nesta hipótese, “é

defeso cogitar de lavagem de dinheiro, porquanto inexiste a tipificação de crime que lhe seja

antecedente”. De se destacar, entretanto, que a disposição desse inciso VII não tipifica o delito

de organização criminosa, referindo-se a qualquer delito eventualmente praticado por

organização criminosa, conforme observa Baltazar Júnior (2006, p. 411). Por seu turno,

Barros (2008, p. 156), após referir-se a alguns projetos de lei, ainda em trâmite, que

pretendem estabelecer um conceito de organização criminosa, assevera:

210 Em sentido contrário, novamente, Tigre Maia (1999, p. 79): “Assim, para além da vontade do legislador, o fato é que, se os delitos contra a ordem tributária (arts. 1.º a 3.º da Lei Federal 8.137/90) forem cometidos por organização criminosa – hipótese bastante corriqueira –, poderá estar caracterizada a ‘lavagem’ de dinheiro”. Ora, não nos parece correto, com as devida vênia, desconsiderar abertamente a vontade do legislador para interpretar, literalmente, o texto de lei. 211 O artigo 1.º da Lei 9.034/95, com a redação conferida pela Lei 10.217/2001, não conceitua organização criminosa, disposto, apenas, que: “Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo."

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(...) ao menos por hora, é de se considerar inócua a figura correspondente ao inciso VII do art. 1.º da Lei de ‘Lavagem’, visto desatender ao comando constitucional que assegura o direito à liberdade e à propriedade por não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5.º, XXXIX, CF). Nullum Crimen nulla poena sine praevia lege.

Em primoroso estudo acerca do tema, Heloisa Estellita observa com perplexidade a

inexistência de uma definição legal de organização criminosa por nosso ordenamento jurídico

positivo, demonstrando, igualmente, a inviabilidade de utilização da definição constante na

Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional de 15 de novembro

de 2000 (Convenção de Palermo), incorporada ao ordenamento jurídico nacional pelo Decreto

Legislativo 231, de 29 de maio de 2003. Em seu artigo 2.º, letra a, a Convenção estipula que

por Grupo Criminoso Organizado se deve entender:

(...) um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.

A imprestabilidade da transposição automática deste conceito à realidade jurídica

nacional, pela tão-só ratificação dos termos da Convenção pelo Brasil – e em que pese a

recomendação pela sua utilização pelo Conselho Nacional de Justiça212 – reside no fato de que

(ESTELLITA, 2009, p. 72):

(...) o legislador nacional somente aderiu à Convenção de Palermo (como a tantas outras com o mesmo caráter punitivo) nos estritos termos de seu texto que, no que interessa ao tema deste trabalho, contém pautas programáticas para o exercício do poder dever de legislar na matéria do grupo criminoso organizado, não tendo, a referida Convenção criado, diretamente, em nosso ordenamento jurídico positivo um conceito de organização criminosa.

Ainda no rol dos crimes antecedentes trazidos pelo artigo 1.º da Lei de Reciclagem, o

inciso VIII relaciona os delitos praticado por particular contra a administração pública

estrangeira, quais sejam, aqueles previstos nos artigos 337-B, 337-C, respectivamente

corrupção ativa e tráfico de influência em transação comercial internacional.213 Tais tipos

212 Cf. BARROS, 2008, p. 156. 213 Art. 337-B. Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a funcionário público estrangeiro, ou a terceira pessoa, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício relacionado à transação comercial internacional: Pena - reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço), se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário público estrangeiro retarda ou omite o ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

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penais, bem assim a definição legal de funcionário público estrangeiro (art. 337-D, CP), foram

introduzidos no Código Penal pela Lei 10.467/2002, como resultado do compromisso

assumido pelo Brasil ao referendar a Convenção sobre Combate da Corrupção de

Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais, realizada em Paris, a 17 de

dezembro de 1997, promulgada pelo Brasil por intermédio do Decreto 3.678/2000.

A estrutura do crime previsto no artigo 337-B guarda identidade com os crimes de

corrupção ativa comum (artigo 333, CP), dele diferenciando-se apenas porque trata “de

funcionário público estrangeiro”, ao passo que o artigo 337-C assemelha-se ao delito de

exploração de prestígio (artigo 332, CP), embora possua redação mais completa. O elemento

subjetivo de ambos os crimes é o dolo genérico, ostentando, ainda, natureza formal (BONAT,

2004, p. 397).

Resta-nos fazer expressa referência ao inciso III, do § 1.º, do artigo 1.º da Lei de

Lavagem, segundo o qual incorre na mesma pena estabelecida no caput aquele que, para

ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos

crimes antecedentes referidos neste artigo, importa ou exporta bens com valores não

correspondentes aos verdadeiros. Como anota Baltazar Júnior (2006, p. 416):

O inciso III traz os casos de importação ou exportação superfaturada com o fim de dar uma aparência lícita, tipo introduzido em decorrência da facilidade e freqüência com que as operações de importação ou exportação podem ser utilizadas para fins de lavagem de dinheiro. A relação com o caput é de especialidade, uma vez que também aqui haverá dissimulação da origem dos valores.

É preciso esclarecer que, para configurar antecedente da lavagem de dinheiro, as

operações de comércio exterior devem ter sido efetuadas para camuflar proventos oriundos de

atividades ilícitas identificadas com algum dos crimes antecedentes previstos no artigo 1. º. Se

não houver esta correlação, não há que se falar em lavagem de dinheiro. O que se pretende

com a importação ou exportação cujos valores não correspondem aos verdadeiros é, como

Art. 337-C. Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada a funcionário estrangeiro. Art. 337-D. Considera-se funcionário público estrangeiro, para os efeitos penais, quem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidades estatais ou em representações diplomáticas de país estrangeiro. Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público estrangeiro quem exerce cargo, emprego ou função em empresas controladas, diretamente ou indiretamente, pelo Poder Público de país estrangeiro ou em organizações públicas internacionais.

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anota Bonat (2004, p. 390), dar conotação de licitude aos ativos, afastando-o de sua origem

ilícita. Esta também é a opinião de Barros (2008, p. 184):

(...) com a importação ou exportação de coisas sobre-faturadas ou subfaturadas, o agente quer encobrir ou dissimular o lucro ilícito obtido com a prática do crime antecedente e, ao mesmo tempo, pretende introduzi-lo no mercado econômico e financeiro com a aparência de lícito.

Assim, exemplificativamente, se o sujeito se vale de uma exportação superfaturada

para remeter valores ao exterior – valores estes que não guardam nenhuma relação com

crimes antecedentes, caracterizando fruto do próprio trabalho do agente ou de outras fontes –,

saldando o valor da mercadoria adquirida e creditando-se, em conta bancária sediada no

estrangeiro, do valor excedente, estará cometendo, como já vimos, delito de evasão de divisas

previsto no parágrafo único, do artigo 22, da Lei 7.492/86, mas não se poderá cogitar, na

espécie, de lavagem de dinheiro. Por outro lado, como anota Costa (2007, p. 51):

(...) o sujeito pode adquirir no exterior produtos com valores obtidos pela prática de crime antecedente, e simular, do Brasil, uma importação subfaturada. Remeteria ao exterior quantia aquém do valor de mercado, pela importação simulada, recebendo produtos que, negociados no Brasil, se prestariam a justificar uma lucratividade aparente.

Evidentemente, haverá, nesta hipótese, a identificação de crime de descaminho, pois o

preço efetivamente pago não representará o valor real da mercadoria, caracterizando alteração

na base de cálculo do Imposto de Importação e, por conseguinte, das demais exigências

fiscais incidentes na espécie. Mas não é este o motivo pelo qual a conduta será considerada

subsumida ao tipo de lavagem de dinheiro, e sim pela aplicação autônoma dispositivo (artigo

1.º, § 1.º, inciso III) em estudo.

Portanto, são, realmente, diversas as hipóteses em que poderá ocorrer uma operação de

comércio exterior com a finalidade de se ocultar proventos obtidos pela prática de crimes

antecedentes da lavagem de dinheiro. A propósito, o GAFI divulgou, em junho de 2006, um

relatório no qual identifica três formas básicas pelas quais as organizações criminosas e os

responsáveis pelo financiamento do terrorismo transferem o dinheiro ilícito e os integram na

economia formal: o primeiro deles é o sistema financeiro; o segundo é o movimento físico do

dinheiro, por meio de pessoas especialmente contratadas a tanto; e o terceiro é por intermédio

do comércio internacional.214

214 Extrai-se, do relatório, importantes diretrizes a respeito do comércio internacional de mercadorias como agente da lavagem de dinheiro.

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168

Conforme observa Carli (2008, p. 122-123):

A atratividade do uso do comércio internacional para a lavagem de dinheiro decorre de vários fatores: o risco de detecção é menor, e razão dos controles alfandegários serem maiores na importação do que na exportação (por causa do interesse no recolhimento de impostos); a quase inexistência de compartilhamento de informações entre as alfândegas dos países (que faz com que cada uma veja somente um lado da operação); o enorme volume das transações de comércio internacional, que obscurece as transações individuais; a complexidade das operações de câmbio e o recurso a diversas operações financeiras nesse tipo de negócio, entre outros. (...) O elemento chave é a falsa representação do preço nos documentos relativos à operação. É claro que isso só ocorre quando há conluio entre o exportador e o importador – por razões diferentes, ambos concordam na fraude.

Traçado este panorama, compreende-se a razão da edição das normas relativas ao

disciplinamento das modalidades de importação de mercadorias (tratadas no item 2.4, do

Capítulo 2) especialmente das disposições relativas à correta identificação das partes que

estão envolvidas na operação de comércio exterior, e, sobretudo, da regulamentação da figura

da interposição fraudulenta de pessoas nesse tipo de operação (vide item 2.5, Capitulo 2).

Como visto anteriormente, o § 2.º do artigo 23 da Lei 10.637/2002 estabelece a

presunção de ocorrência de interposição fraudulenta de terceiros quando não for comprovada

a origem, a disponibilidade e a transferência dos recursos empregados na transação. Não há

“The international trade system is clearly subject to a wide range of risks and vulnerabilities that can be exploited by criminal organisations and terrorist financiers. In part, these arise from the enormous volume of trade flows, which obscures individual transactions; the complexities associated with the use of multiple foreign exchange transactions and diverse trade financing arrangements; the commingling of legitimate and illicit funds; and the limited resources that most customs agencies have available to detect suspicious trade transactions. For the purpose of this study, trade-based money laundering is defined as the process of disguising the proceeds of crime and moving value through the use of trade transactions in an attempt to legitimise their illicit origins. In practice, this can be achieved through the misrepresentation of the price, quantity or quality of imports or exports. Moreover, trade-based money laundering techniques vary in complexity and are frequently used in combination with other money laundering techniques to further obscure the money trail. This study provides a number of case studies that illustrate how the international trade system has been exploitedby criminal organisations. It also has made use of a detailed questionnaire to gather information on the current practices of more than thirty countries. This information focuses on the ability of various government agencies to identify suspicious activities related to trade transactions, to share this information with domestic and foreign partner agencies, and to act on this information. The study concludes that trade-based money laundering represents an important channel of criminal activity and, given the growth of world trade, an increasingly important money laundering and terrorist financing vulnerability. Moreover, as the standards applied to other money laundering techniques become increasingly effective, the use of trade-based money laundering can be expected to become increasingly attractive. Looking ahead there are a number of practical steps that can be taken to improve the capacity of national authorities to address the threat of trade-based money laundering. Among these are the need for a strongerfocus on training programs to better identify trade-based money laundering techniques, the need for more effective information sharing among competent authorities at the national level, and greater recourse to memoranda of understanding and mutual assistance agreements to strengthen international cooperation.” Disponível em http://www.fatf-gafi.org/dataoecd/60/25/37038272.pdf, acesso em 10/01/2009, às 10hs27min.

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negar, portanto, a ligação deste dispositivo com os propósitos da Lei 9.613/98. Por seu turno,

a Instrução Normativa 228, de 21 de outubro de 2002215, a Secretaria da Receita Federal,

dispõe sobre procedimento especial de verificação da origem dos recursos aplicados em

operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta de pessoas.

Esta preocupação das autoridades fiscalizadoras, como já se afirmou em diversas

oportunidades neste estudo, é digna de nota, mas não deve, em absoluto, representar

desestímulo as empresas que se dedicam a operar no âmbito do comércio exterior.

215 Complementada por outros Diplomas regulamentares veiculados pela Secretaria da Receita Federal, como as Instruções Normativas 225 e 229.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se, nos quatro capítulos em que está divido o presente estudo, fornecer um

panorama, tanto mais atualizado possível, das questões mais relevantes em torno dos

problemas relacionados às irregularidades verificadas no âmbito do comércio exterior. O

Capítulo introdutório estabelece a base na qual deve assentar-se o exame dos elementos

administrativos subseqüentes e, notadamente, de como deve ser adequadamente considerada a

aplicação do Direito penal, em especial no que concerne aos delitos relacionados no Capítulo

4 (sobre os quais nos permitimos alguns devaneios dogmáticos), na condição de mecanismo

de prevenção e de repressão aos desvios perpetrados nesta seara.

De tudo o que se expôs, a conclusão passa necessariamente pela seguinte observação

de Folloni (2004, p. 13):

Justifica-se, dada a importância econômica e social da matéria, que cada vez mais empresas se lancem às operações de importação e de exportação. Tal iniciativa deve ser fomentada pelas políticas públicas e, dentre elas, pela políticas fiscais. Lembremo-nos que a atividade empresarial no Brasil é fundamento da ordem econômica, a teor dos arts. 170 e 173 da Constituição Federal de 1988. É, portanto, função das políticas públicas facilitar a atividade empresaria e, dentre elas, as atividades de importação e de exportação de bens.

Em nenhum momento descurou-se, neste trabalho, da necessidade de fiscalização das

operações de importação e de exportação de mercadorias. Nem poderia ser diferente. Não

obstante, se, diversamente, em razão de eventuais defeitos de exposição cuja responsabilidade

recai exclusivamente sobre o seu autor, pôde-se detectar, no texto, um mínimo indício de que

se está pugnado por uma atividade empresarial aduaneira completamente livre de

policiamento, apressa-se em afirmar que a pesquisa não possui, em absoluto, tal intenção.

Cite-se, aqui, a oportuna opinião de Tosi (2002. p. 34) a respeito da dupla função

(administrativa e tributária) outorgada ao controle aduaneiro, com a qual não se pode estar em

desacordo:

Obviamente, deviene imprescindible esse doble control del principio fundamental de realización de las funciones del Estado. Se si pretendiera no realizar las funciones indicadas, fundamentándose en la buena fe de los auxiliares de Aduana, e imoprtadores y exportadores, por redución al absurdo desaparecería la función estatal; y continuando con esta tónica, desaparecería toda autoridad represiva, bajo la idea de la buena fe o de la decencia de todos los habitantes.

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O que se sugere é, apenas, que se outorgue relevância a um aspecto sistematicamente

ignorado nos estudos destinados a abordar o problema aqui debatido e que, sobretudo, tem

sido desconsiderado empiricamente, tanto pela fiscalização aduaneira quanto, em momento

imediatamente posterior, pelos órgãos de persecução criminal e juízes ao quais se destinam a

obrigatória Representação Fiscal para Fins Penais. Este prisma de abordagem relaciona-se,

justamente, com as liberdades constitucionais que garantem a iniciativa privada e o exercício

pleno de quaisquer ofícios ou profissões, por quem quer que seja. Tais liberdades

representam, sob uma perspectiva mais ampla e fundamentalmente coletiva, peça

indissociável na engrenagem da ordem econômica do Estado brasileiro.

Essa corrente abstração das liberdades constitucionais encontra razão de ser na

verificação de que, por certo – e, frise-se à exaustão, isso não se desconhece – o comércio

exterior pode e tem sido usado para a prática de irregularidades de natureza fiscal e mesmo

penal, estas, inclusive, de gravidade indiscutível, como as condutas destinadas a lesar a

Ordem Tributária e Financeira, bem assim aquelas relacionadas à lavagem de bens, direitos e

valores. Aliás, não é difícil detectar, aí, a mola propulsora para a identificação de um

expansionismo do Direito penal no âmbito das atividades aduaneiras.

Mas isso é apenas parte do problema. Tal constatação não pode servir de carta branca

para que o legislador infraconstitucional e as autoridades de fiscalização adotem medidas

inviabilizadoras da atividade empresarial desenvolvida no comércio exterior, como de resto,

não podem ser adotadas – e não são – para impedir o livre exercício de ofício e profissão em

qualquer outro campo da economia interna do País. No âmbito do Direito penal, essas

assertivas são tanto mais verdadeiras.

É certo que os bens jurídicos dignos de proteção penal encontram seu fundamento na

Constituição. Nas exatas palavras de Tiedemann (2003, p. 21), “el derecho constitucional

influye y conforme la política criminal.” Portanto, não há negar que – a despeito das

polêmicas existentes em torno da questão sobre a objetividade jurídica de boa parte dos

delitos econômicos – a Administração Pública, o Sistema Financeiro e a Ordem Econômica

(esta inclusive na sua perspectiva internacional, especialmente no caso da lavagem de

dinheiro), recomendam, em boa medida, e guardadas as ressalvas oportunamente feitas, a

intervenção, última e subsidiária, do Direito penal.

Sem embargo, após ressaltar esta necessária correspondência material positiva entre a

Constituição e os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, Figueiredo Dias (1999, p. 67)

aponta para a existência da vertente negativa dessa mesma correlação, vaticinando:

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Correspondência que deriva, ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade punitiva do Estado. É nessa acepção, e só nela, que os bens jurídicos positivos pelo direito penal se devem considerar concretizados dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só por ela em definitivo – que os bens jurídicos se transformam em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.

Estellita (2001, p. 82) não destoa desse entendimento:

Há consenso, outrossim, em que a Constituição estabelece um limite negativo à criação de normas incriminadoras na medida em que não se pode elevar, em regra, a delito o exercício dos direitos e liberdades fundamentais atribuídos aos cidadãos pelas normas constitucionais.

Por tais razões, não hesitaríamos em afirmar – se a assertiva não representasse uma

contradição em si mesmo considerada – que o Direito penal, na seara aduaneira, deve ser

ainda mais subsidiário. Com isso, pretende-se deixar claro que ressalta, neste âmbito, o seu

caráter fragmentário, por tudo aquilo que o comércio internacional representa para a economia

do País e, igualmente, por todas as violações que o açodado recurso ao seu mecanismo

repressor pode acarretar às mencionadas liberdades constitucionalmente garantidas, em

flagrante desrespeito à dimensão negativa que deve existir entre a Carta Magna e o Direito

penal.

Antes de se cogitar, destarte, da atuação do Direito penal no âmbito do comércio

exterior, deve-se recorrer – não sem a necessária advertência a favor da observância, também

neste particular, das liberdades constitucionalmente asseguradas – às sanções administrativas

e fiscais, as quais, na maioria dos casos, mostram-se adequadas e suficientes para controlar o

fluxo de mercadorias e a atividade dos agentes que estão envolvidos nas operações

respectivas.

Poder-se-ia recomendar, nesse passo, e exemplificativamente, uma eventual revisão

das normas que impõem a obrigatoriedade da Representação Fiscal para Fins Penais em todo

e qualquer caso de autuação administrativa por parte dos fiscais aduaneiros. Mais consentâneo

com os princípios do Direito penal seria instaurar, no âmbito da própria Receita Federal,

talvez em repartição apropriada e com pessoal especializado, um procedimento técnico

através do qual se promovesse uma criteriosa análise sobre as hipóteses em que, de fato, se

fizesse necessária uma persecução de natureza criminal. Tudo isso porque, como já se afirmou

em momento anterior, é da interpretação dos institutos jurídicos e dos regramentos

administrativos que disciplinam as atividades inerentes ao comércio exterior que deverão ser

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extraídos os elementos aptos a identificar adequadamente, em cada caso concreto e ao lado de

infrações de natureza administrativa, um verdadeiro delito e, conseqüentemente, a validade do

recurso ao Direito penal como instrumento de combate aos desvios perpetrados. Ninguém

melhor para avaliar e interpretar esta intrincada legislação do que a própria Receita Federal,

submetendo ao Ministério Público, titular do jus puniendi Estatal, apenas aquelas matérias

que ressaltem, de maneira mais evidente, a possibilidade de caracterização de

responsabilidade de natureza criminal.

Por outro lado, a dicotomia da ciência global do Direito penal (Direito penal/Política

criminal), inaugurada por Von Liszt no início do século XX, foi construída no sentido de

impedir a introdução das valorações político-criminais no âmbito do Direito penal, visto que

este – tido como manifestação expressa do positivismo jurídico –, deveria constituir uma

ciência jurídica fechada, intocada pela ciência social da política criminal, na medida em que

apenas um sistema detalhadamente organizado e sob o qual se detém pleno controle e

conhecimento permitiria atingir a almejada segurança jurídica.

Contrapondo-se a esta concepção pondera Roxin (2002, p. 7):

(...) se os questionamentos político-criminais não podem e não devem adentrar ao sistema, deduções que dele corretamente se façam certamente garantirão soluções claras e uniformes, mas não necessariamente ajustadas ao caso. De que serve, porém, a solução de um problema jurídico, que apesar de sua linda clareza e uniformidade é político-criminalmente errada? Não será preferível uma decisão adequada ao caso concreto, ainda que não integrável no sistema?.

Para responder a tais indagações, conclui o renomado professor alemão: “Fica claro

que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais

introduzirem-se no sistema do Direito penal” (ROXIN, 2002, p. 20). Portanto, este

posicionamento, também a nosso sentir, não pode ser ignorado no momento em que se

pretende concluir pela subsunção de uma determinada conduta ao tipo legal de crime e,

ademais, em um segundo momento, pela efetiva responsabilidade criminal do agente.

No campo das inúmeras atividades que se desenvolvem no comércio exterior, é

preciso, pois, ao considerar a atuação do Direito penal como mecanismo de combate às

irregularidades verificadas, ter em conta que as garantias constitucionais da livre escolha de

trabalho, ofício e profissão e, enfim, da livre iniciativa (as quais, como oportunamente já foi

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visto, encerram um indubitável valor coletivo), devem conformar a política criminal do

Estado.216

Enfim, reafirmando-se o óbvio – frequentemente tem sido preciso –, a regra é a

liberdade. A política aduaneira, tributária e criminal, sobretudo esta última, deve orientar-se

de acordo com a proteção das prerrogativas constitucionalmente asseguradas a fim de

prestigiar o exercício das garantias ali consignadas, e não inversamente, impedindo que elas

se concretizem. Ficamos com Carraza (1996, p. 40), para quem “o Estado, longe de ser o

senhor dos cidadãos, é o protetor supremo de seus interesses materiais e morais. Sua

existência não representa um risco para as pessoas, mas um verdadeiro penhor se suas

liberdades.”

216 Em que pese não podermos ter detalhadamente debatido – isso em razão dos limites da pesquisa e em virtude da nossa opção inicial (justificada no item 4.3, do Capítulo 4) pelo modelo finalista de fato punível – as suas implicações específicas sobre os crimes relacionados ao comércio exterior, não poderíamos deixar de fazer referência às teorias teleológico-funcionais do delito, em especial à doutrina da imputação objetiva na versão defendida por Roxin.

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