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LUIZ CARLOS PARANÁ:o boêmio do leite

Por Thiago Sogayar Bechara

1ª Edição2ª Reimpressão

2012

Ficha técnica:Capa: André SiqueiraDiagramação: Thais Sogayar Carolina Sogayar de Siqueira

Revisão: Giovanna Crispim Costacurta Mário Sérgio Baggio Thiago Sogayar Bechara

Páginas: 377Contato: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoFundação Biblioteca Nacional

Bechara, Thiago Sogayar, 1987 - Luiz Carlos Paraná: o boêmio do leite/ Thiago Sogayar Bechara. - São Paulo: título independente, 2012. 377p. : il.

ISBN 978-85-87765-37-6

1. Jornalismo - Brasil - Biografia 2. Editoração e imprensa documentária e educativa - Brasil - Biografia 3. Música 4. Paraná, Luiz Carlos, 1932-1970 I. Bechara, Thiago Sogayar II. Título

Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autorLei nº 9.610. de 19/02/1998

Impresso no Brasil /2012Todos os direitos reservados

A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seu organizador. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados.

5LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

Thiago Sogayar Bechara

4 ÍNDICEBiograf ia e Monograf ia

5LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

ÍNDICE

BIOGRAFIA “O BOêmIO dO leIte”

Apresentação Ubiratan Lustosa 07

Nota do autor 13

Capítulo 1 - Ribeirão Claro (1932 a 1955) 15

Capítulo 2 - Curitiba (1956 e 1957) e

Rio de Janeiro (1957 a 1959) 83

Capítulo 3 - São Paulo (1959 a 1970) 149

Capítulo 4 - Conclusão (1970 a 2012) 287

Posfácio afetivo do autor 295

Um boêmio abstêmio 299

Posfácio Giovanna Crispim Costacurta 301

mONOGRAFIA SOBRe memÓRIA CUltURAl 307

Agradecimentos 309

Introdução 311

Capítulo 1 - As condições da memória 317

Capítulo 2 - Um olhar analítico de

intenção biográfica 331

Capítulo 3 - A cultura da Metrópole:

Tradição e Modernidade 345

Conclusão 357

Agradecimentos 361

Referências Bibliográficas 371

Acervo Amélia Carlos

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Thiago Sogayar Bechara

7LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

Thiago Sogayar Bechara

Apresentação

Thiago Bechara e o radialista Ubiratan Lustosa: uma amizade transmitida. Acervo do autor.

ertamente não consegui dis-farçar minha surpresa quan-do pela primeira vez me

encontrei com Thiago Sogayar Be-chara. O que causou admiração, a mim e à minha esposa, foi a juven-tude do escritor que nos visitava. Já havíamos conversado pela Internet, contato propiciado pela jovem pes-quisadora Thais Matarazzo, mas era a primeira vez que nos víamos pessoalmente.

Veio-me logo à cabeça a curio-sidade: como alguém, com pouco mais de 20 anos, poderia já ter li-vros de poesia publicados e estar empenhado com extraordinário afinco na elaboração da biografia de Luiz Carlos Paraná, poeta pa-ranaense que conheci no início de sua carreira de compositor, na dé-cada de 1950, mas que àquela época encontrava-se em relativo ostracis-mo, pelas razões sondadas nesta pesquisa.

ApresentaçãoPor Ubiratan Lustosa

LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

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C

6 Apresentação

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Thiago Sogayar Bechara

9LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

Thiago Sogayar Bechara

Apresentação

Thiago foi a Curitiba em busca de informações a respeito de Paraná, sobre quem estava escrevendo. Numa estafante pesquisa, já havia entrevistado muita gente, em diversas cidades como Rio de Janeiro, Sorocaba, Santo Antônio da Platina e São Paulo, onde mora. Lá em casa, conversamos muito e falei o que fui lembrando, desde o primeiro con-tato que tive com Luiz Carlos, na antiga Rádio Marumby, quando era cognominada “a Emissora das iniciativas”. Eu havia escrito sobre o assunto e o texto estava em meu site (www.ulustosa.com) que foi visitado, inclusive, por Thia-go. O grande interesse do jovem escritor, seu empenho e sua elogiável cultura me deixaram empolgado. Ficamos amigos de graça. Quando contei que meu colega e can-tor Léo Vaz e Carlos Paraná haviam morado numa mesma pensão no Rio de Janeiro, ele decidiu visitá-lo e, pouco depois, esteve no Rio.

Passado algum tempo, tivemos outro encontro em Curi-tiba e dessa vez Léo Vaz também estava na cidade; os dois participaram de meu programa “Revivendo”, na Rádio É Paraná, antiga Educativa, e a íntegra da entrevista foi dis-ponibilizada em sete belos vídeos no Youtube. Explorei no que pude os meus amigos nessa audição dedicada exclu-sivamente a Carlos Paraná. Thiago nos contou passagens da vida de seu biografado com desenvoltura e numa agra-dável fluência de fatos. Após o programa, fomos almoçar no bairro de Santa Felicidade e foi uma verdadeira festa, o Léo sempre jovial, cantando e contando causos que nos fi-zeram rir muito. A partir daí, Thiago continuou suas bus-cas e nós ficamos esperando ansiosamente a publicação do livro. Lamentavelmente, Léo Vaz faleceu em 2011 e quem me telefonou para comunicar sua partida foi o próprio Thiago, a pedido da querida Roberta, filha de Léo. Uma tristeza enorme para nós todos.

O trabalho de um escritor de biografias, vale dizer aqui, implica muitas pesquisas, visitas sem conta a entrevista-dos (Thiago fez mais de cem), muita paciência e persistên-cia. Curioso que sou, um dia fiz algumas perguntas por e-mail ao meu amigo e ele prontamente respondeu. Vale a pena a transcrição de alguns trechos do nosso diálogo:

Ubiratan: Gostaria que você me dissesse, Thiago, quais as maiores dificuldades encontradas por um escritor de biografias.

Thiago: Bira, eu penso que uma das maiores atenções que se deve ter ao escrever uma vida está no equilíbrio que o au-tor precisa encontrar entre si e o próprio biografado. Trata-se, antes de tudo, de uma questão ética, de um duelo que empre-endemos com a gente mesmo, internamente.

Ubiratan: Quando você fala em equilíbrio, o que quer di-zer exatamente?

Thiago: Estou me referindo a duas coisas. Primeiro ao fato de que não se pode nunca perder de vista que o terreno em que adentramos, apesar de ser em grande parte público, pos-sui seu lado privado e há que se saber respeitar determinados limites, apesar da inquestionável liberdade do pesquisador. Em segundo lugar, porque, na realidade, escrever de um modo geral implica questões de ordem subjetiva. Pensando psicanaliticamente, tudo o que escrevemos, em última aná-lise, escrevemos sobre nós mesmos. Sendo assim, falar sobre outra pessoa, necessariamente envolve as projeções que nós, como autores, inevitavelmente fazemos sobre a personagem. A visão que um biógrafo dará sobre seu biografado, por mais distanciamento profissional e abrangência de pesquisa que se tenha, estará sempre impregnada de seu acervo cultural, seus valores e pontos de vista sobre o mundo. Há formas e técni-cas, evidentemente, não de suprimir este fato, mas de tentar incorporá-lo à metodologia de modo saudável.

Ubiratan: E quais seriam essas formas?Thiago: Uma das principais maneiras é que o autor tenha

consciência desse processo de projeção. Não existe nunca “o” relato de algo. Existe “um” relato de algo. Para tudo, há vários pontos de vista e várias formas de narrar. Escolher o tom dessa estrutura narrativa de forma lúcida, isto é, optar de fato, conscientemente por um caminho, é que constitui o grande embaraço inicial que se reflete, claro, por todo o pro-cesso. E está nisso também o grande prazer. A possibilidade de descoberta do outro e de nós mesmos. Porque a partir da primeira palavra jogada no papel, seu texto ganha vida. As palavras têm vida! Existem em si, por sua sonoridade, força, poder de associação subjetiva. Quase seres biografáveis tam-bém (risos).

Ubiratan: E no caso do Carlos Paraná, como foi?Thiago: De modo mais específico, digo que uma das maio-

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Thiago Sogayar Bechara

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Thiago Sogayar Bechara

Apresentação

res dificuldades, por incrível que pareça, foi encontrar as pes-soas. O resto não é propriamente dificuldade, mas trabalho. Braçal e intelectual. Em iguais medidas. A documentação estava relativamente acessível, e os jornais, fotos, revistas, a família disponibilizou, bem como discos, LPs, compactos, 78 rpm, etc. Agora conseguir o contato de uma geração de boêmios que não deixaram rastro quase nenhum na música brasileira, isso foi sempre uma preocupação aterrorizante, já que estou me remetendo a um tempo distante, ainda mais em se tratando de um país que valoriza pouco sua memória e sua documentação histórica. E não se pode fazer a biografia de Carlos Paraná sem ouvir Paulo Vanzolini, Mário Edson, Joãozinho Parahyba, Inezita Barroso, Elza Soares ou Pedro Miguel. Alguns foram fáceis; outros só encontrei com o livro já sendo diagramado, como o maestro Waltel Branco, graças a você, diga-se de passagem!

Ubiratan: Você me contou uma vez sobre como pediu au-torização para o próprio Carlos Paraná, mesmo 40 anos de-pois de sua morte...

Thiago: Ah, esse é um caso engraçado: apesar de meus ce-ticismos todos, resolvi visitar o túmulo dele, em Ribeirão Cla-ro, antes de iniciar as pesquisas. Cheguei, cuidadosamente, fechei os olhos e me concentrei em sua figura. Depois, subi no mármore e, de pé, olhando para sua foto na lápide, falei em voz alta: “Olha, vou começar a pesquisa! Se você tiver alguma coisa contra, por favor, me avise para eu não ter tanto traba-lho à toa, hein?”. Fiz o sinal da cruz e fui embora me achando meio maluco, mas, em todo caso, com o sentimento de dever cumprido e recado dado (risos). Uma semana depois, minha avó materna se pôs a fazer faxina nos maleiros de casa e en-controu uns documentos do meu falecido avô referentes ao Carlos Paraná, com algumas matérias de jornais, inclusive. Ela achou estranho, mas em todo caso, guardou para que eu visse. Quando entrei em contato com aquilo, percebi que não era nada mais, nada menos do que todo o formal de parti-lha do Luiz, com um roteiro material completo do progres-so financeiro do compositor, que em muito me ajudaria, com noções concretas do status que ele conquistou em vida com sua arte. Meu avô havia sido advogado da família, logo que o Paraná morreu e essa papelada toda que eu não tinha conse-guido com os irmãos, simplesmente despencou no meu colo. Jamais poderia imaginar que depois de tanto tempo, ainda

houvesse resquícios disso. Foi então que entendi que a au-torização que eu pedi lá no cemitério de Ribeirão havia sido abençoada. Desde então, outras tantas coisas surpreendentes como essa me aconteceram, inclusive o modo como conheci você e o Léo Vaz.

Ubiratan: Parece que o nosso companheiro gostou da ideia! E como você fez com a questão histórica, da época, sen-do tão jovem?

Thiago: Reconstituir os contextos foi uma grande preocu-pação. Não propriamente um problema, mas como se trata de um tipo de matéria sempre em aberto, dadas as interpreta-ções da História, recolher esses fragmentos e criar uma visão mais una dessas décadas que eu não vivi, foi algo que me exigiu muita energia e dedicação. Não sei até que ponto fui bem-vindo. Mas sei que dei o meu melhor, o que já faz com que eu durma em paz, na esperança de que o fantasminha do Carlos Paraná esteja satisfeito com o resultado (risos).

Caros leitores, mencionei tudo isso para dar uma ideia do trabalho realizado por Thiago Bechara. Mais de uma centena de pessoas ouvidas, um sem número de perguntas e respos-tas nem sempre claras, leituras e cruzamentos de dados sem conta, apenas para fazer o arcabouço do livro. Em seguida os ajustes, a coordenação de fatos e épocas, a escolha da li-nha narrativa e tantas outras preocupações que só um indi-víduo talentoso como ele para superar com tão pouca idade. Em suma, grandes foram os obstáculos e grande é o valor de resgate deste trabalho; estou certo de que Luiz Carlos Para-ná aprovaria entusiasmado o movimento de entrega a que se lançou seu biógrafo. Logo Luiz: um perfeccionista obcecado pelo detalhe e pela excelência de seu legado.

Numa de suas músicas Carlos Paraná diz assim: “Queria que nunca fosse preciso esquecer...”. O poeta visionário não será esquecido e se, para além da saudade de seus amigos e fãs, agora o público leitor também tem acesso à beleza dessa trajetória, devemos isso à produção deste livro que eterniza, com as palavras de Thiago, uma vida repleta da mais pura poesia. Que nas próximas horas de leitura, o boêmio do leite renasça no coração de cada um de vocês.

Ubiratan LustosaMarço de 2012

13LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

Thiago Sogayar Bechara

NOTA DO AUTOR

Aos meus avós Bechara e Jorge.

ste trabalho que o leitor agora tem em mãos, encontra sua pré-história no dia 10 de novembro de 2008, quando iniciei as primeiras pesquisas sobre o ribeirão-clarense que deixou marcas em nossa música popular. Motivado

principalmente pelo fato de sua memória estar em quase total esquecimento nos dias de hoje, foi que abri uma primeira pasta preta e comecei a nela arquivar dados que então coletava sobre as etapas de sua vida, iluminado pelo sonho de preenchê--la com o melhor dos meus esforços. Aos poucos, vi nascer de mim o livro que, a 3 de novembro de 2011, seria base para a defesa em banca do trabalho monográfico de pós-graduação lato sensu apresentado à Fundação Armando Álvares Pentea-do e incluído no final deste volume como anexo, cujo título – extenso como seu desejo de perdurar – ficou: “Memória cultural: uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas décadas de 1950 e 1960 a partir da vida e da obra do compositor brasileiro Luiz Carlos Paraná”.

Não carece dizer que, dadas as naturezas independentes de ambos os materiais aqui apresentados, adaptações foram necessárias para minimizar a repetição de informações presentes nos dois, o que nem sempre foi possível, consideradas as estruturas argumentativas que, por vezes, não prescindiram de tais coincidências. O leitor encontrará, assim, em contextos distintos, algumas ressignificações que operam de modo complementar.

Escolher, ainda, as palavras para este livro, foi como colher os melhores frutos de uma lavoura que meu coração tem regado desde a infância com os melhores sentimentos. Foi bom experimentar um pouco dessa vida de roceiro. Quem dera a terra fosse sempre fértil.

T.S.B.

1514 CAPÍTULO 1Ribeirão Claro: 1932 a 1955

Capítulo 1Ribeirão Claro (1932 a 1955)

Com o sobrinho João Gilberto, filho de Chico Carlos, em 1970. Acervo Amélia Carlos.

LUIZ CARLOS PARANÁO boêmio do leite

Página do livro de registros em que está a certidão de nascimento de Luiz

Carlos, 1932.

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Thiago Sogayar Bechara

16 CAPÍTULO 1Ribeirão Claro: 1932 a 1955

Thiago Sogayar Bechara

dia 15 de maio estava longe de raiar na Chácara Boa Vista quando Ida Fonte-que aos vinte e três anos teve seu segundo filho. Fazia somente trinta minu-tos que o relógio da casa de Braz Carlos dera meia noite quando o pequeno

Francisco perdeu seu reinado de filho único, aos dois anos, para Luiz. Em 1932, a cidade de Ribeirão Claro, Paraná, não passava de um vilarejo recém-promovido ao posto de município administrado então pelo prefeito Cristiano Rodrigues de Cam-pos e, enquanto o Brasil ainda cantarolava as marchinhas carnavalescas de Lamar-tine Babo e preparava-se para a eclosão da revolução constitucionalista transmitida pela Rádio Record, a família vivia como meeira nesta propriedade de 47,8401 hecta-res comprada em 1922 pelo agropecuarista José Bernardo de Faria Néia (que atendia por Juquinha), das mãos de José Antunes Ferreira.

Além do novo e quinto elemento que passava agora a habitar a casa, vivia com eles a mãe de Braz Carlos, senhora baixa e de porte franzino, cuja força no olhar jamais deixara dúvidas sobre o respeito que era capaz de impor à família, sem que prescindisse um instante sequer da terna doçura com que acolhia sobretudo os netos – desde que a acompanhassem às missas de domingo, claro! Dona Cândida Lauria-na da Conceição fora das figuras mais emblemáticas naquela família e nos muitos dedos de prosa que adorava ter com todos, lembrava-se com frequência de fatos passados. Contava, por exemplo, que seus pais José Mendonça e Ana Lauriana da Conceição haviam morado na região de Avaré e Itatinga, próxima à atual rodovia Castelo Branco, em São Paulo, embora nada, além disso, tenha se conservado sobre suas origens mais precisas, na memória de seus netos.

Carlos Paraná e a avó Cândida, por volta de julho de 1970. Acervo Amélia Carlos.

Com os longos e escuros cabelos enroladinhos num coque, dona Cândida vivia alegre e disposta a ajudar como ninguém nos serviços domésticos. Não foi à toa que uma cena marcou as infâncias rurais dos pequenos da casa, onde quer que a família sentasse morada ao longo de suas andanças: a avó concentrada na espécie de rendado feito manualmente às bordas de um tecido, de sorte que a amarração dos fios fosse sustentada por nós dados habilmente com o apoio dos dedos. Este tipo de tecelagem antiga, conhecida como broia, abrolho ou macramé, resulta numa grande variedade de efeitos decorativos que vão das franjas aos cruzamentos, mas nem sempre foi encontrado assim, agregado à bainha de alguma fazenda, como se popularizou chegando a Ribeirão Claro a partir do início do século XX1.

Dona Cândida não tinha remota notícia de que este conhecimento fora introduzi-do na Espanha antes de difundir-se por toda a Europa, após a conquista da Penínsu-la Ibérica. Mas o trabalho artesanal tanto fora a especialidade da mãe de Braz Carlos, que ela tratava de complementar a renda doméstica vendendo seus paninhos.

Outra verdadeira prenda da avó do pequeno Luiz era a farinha torrada batida no monjolo - coisas que quem viveu no campo conhece muito bem! Pacientemente, ela imergia o milho cru em água e deixava “curtir” por longos quinze dias até que os grãos inchassem. Depois de azedos e bem grandes, ficam também mais moles. Era a hora certa de batê-los e depois coar numa peneira. Nada se perdia. A quirera era uti-lizada pelo talento da cozinheira para preparar sopas, frangos, ou mesmo no terreiro como alimento para a criação. Por baixo da peneira, ficava o fubá que era torrado e rendia a cobiçada farinha de milho de dona Cândida. Lembranças de uma vida apenas comum e singela, para quem não pudesse ver beleza em gestos cotidianos como estes.

Na minha terra dá de tudo o que plantarO Brasil dá tanta coisa que eu nem posso decorarDona Chiquinha bota o milho pra pilarPro angu, pra canjiquinha, pro cheirinho, pro mugunzá(...)Oi, pisa o milho, penerô xerem!

(Penerô Xerem, Luiz Gonzaga e Miguel Lima)

Às 22 horas do dia 20 de maio, no longínquo ano de 1910, dona Cândida dava à luz Braz Carlos. Mas só o registrou cinco dias depois. Por um erro bastante comum em cartórios de cidades pequenas, o sobrenome de Braz (originalmente Carli, segun-do algumas suspeitas), perdeu o “de Oliveira” do pai (com o qual apenas seu irmão caçula – Manuel Carlos de Oliveira – seria agraciado).

1 É bem verdade que, desde a Pré-história, homens já amarravam fibras para produzir agasalhos e objetos decorativos. Ao longo de sua evolução – durante a qual são imprecisas as origens idiomáticas da palavra macramé, que quer dizer nó, apesar de não se saber se deriva do turco, do árabe ou do francês –, diversos foram os materiais utilizados. Fios grossos e barbantes introduzidos na França são exemplos recorrentes - assim como foram variadas também as utilidades deste artesanato, verificado até em viagens marítimas, durante as quais marinheiros, para deixar correr mais fluido o tempo, difundiam a técnica pelo mundo sem que soubessem e “amarravam a broia”, igual faria dona Cândida.

18 CAPÍTULO 1Ribeirão Claro: 1932 a 1955

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Acervo Amélia Carlos.

Puro descuido do escrivão, fazendo com que Carlos pas-sasse a ser também o sobrenome de seus filhos.

Muitos exemplos de como era a estrutura dos cartórios naquela época poderiam ser dados para dimensionar a fre-quência com que erros, omissões e acréscimos eram delibe-radamente efetuados pelo serventuário encarregado dos

registros. Muitas vezes, esses es-crivães eram obrigados a deduzir ou simplesmente registrar aquilo que entendessem. Os resultados variavam do trágico ao cômico.

Quando Braz completou oito anos de idade, seu pai Francisco Carlos de Oliveira (por sua vez, fi-lho de Manuel Carlos de Oliveira e Maria do Carmo) faleceu precoce-mente, deixando viúva dona Cândi-da. Foi por esta razão que ela pas-sou a morar com o filho, assim que este saiu de casa para unir-se, aos dezoito, com a jovem Ida. A cerimô-nia realizou-se a 20 de outubro de

1928, sob o regime de comunhão de bens e, em seguida, os três passaram a morar na zona rural de Ribeirão Claro. Provavelmente como empregados ou meeiros, destino de quase todos os italianos e descendentes diretos que, neste começo de século, pisassem em chão brasileiro buscando serviço, caso dos pais da moça, primeira menina de um desses casais recém-aportados nas redondezas.

maria Ferreira

Foi por volta de 1890, logo após o fim do Segundo Império e a Proclamação da República, que chegaram de estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, os primeiros colonizadores e agricultores a desbravarem aquelas paragens até então pratica-mente desconhecidas e cobertas em sua maioria apenas por uma densa camada de vegetação nativa. Localizadas ao norte do es-tado do Paraná, numa altitude de 700 metros acima do nível do mar, aquelas terras férteis tinham à sua disposição as águas do Itararé, rio que foi logo transposto numa pequena balsa impro-visada por estes homens até alcançarem sua margem esquerda.

Vale mencionar, para efeito de registro histórico, que a região

ainda inexplorada da futura Ribeirão Claro e, portanto, do rio Itararé fez parte da rota de transporte de gado no século XVIII, quando da atuação dos tropeiros na região, visando ao comércio – como alternativa para a atividade mineradora – e consequen-te introdução da pecuária no interior da colônia. Segundo Mary del Priore e Renato Venancio, em “Uma breve história do Bra-sil”, o itinerário de São Paulo para o “continente de Viamão” partia de So-rocaba e atingia as proxi-midades de Curitiba após rumar para Itapetininga, atravessar o rio Itararé e dirigir-se para a região de Ponta Grossa.

Outras correntezas, no entanto, demarcavam o entorno, pois o largo Pa-ranapanema estabelecia com seu grande volume de água a divisa de estado entre São Paulo e Paraná naquele trecho; e o humil-de ribeirão Claro serpen-teava em torno de onde, quase vinte anos depois, seria instalada a sede do município que – pasmem! - levaria seu nome.

A história da cidade de Ribeirão Claro ini-ciou-se praticamente ao mesmo tempo em dois lugares. O primeiro de-les foi o vilarejo de Maria Ferreira, assim chamado em reverência a uma das primeiras moradoras da Fazenda Cachoeira, situ-ada próxima às margens do rio Itararé. Foi esta propriedade de terras de-volutas que os desbrava-

Luiz e os pais, Braz e Ida, em 1970: amor matuto. Acervo Amélia Carlos.

Com a avó, nas dependências da futura casa dos pais, em 1970. Acervo Amélia Carlos.

20 CAPÍTULO 1Ribeirão Claro: 1932 a 1955

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dores encontraram ao porem seus pés por ali. O segundo lugar era a vila de Taqua-ral que, a partir de 1895, começou a despontar próxima ao mesmo ribeirão Claro, enquanto o vilarejo de Maria Ferreira trocava o nome de sua centenária fundadora passando a chamar-se Vila do Espírito Santo do Itararé: devoção ao Divino Espírito Santo, padroeiro da capela construída por seus moradores ainda em 1886, antes mes-mo da Abolição da Escravatura.

Desde esse início, grande quantidade de imigrantes italianos passou a ser atraída para o local pela qualidade da terra roxa, especialmente propícia ao desenvolvimen-to da cafeicultura. Recém-requerida pelo Capitão Antônio Lopes Monteiro junto ao Governo do Estado do Paraná, a região onde futuramente seria estruturada a histó-rica Fazenda Monte Claro deu a largada no chamado ciclo cafeeiro da cidade.

Nascido no Brasil a 1873, Antonio Manuel Alves de Lima passou parte de sua vida profissional na Alemanha. Quando de lá retornou, recebeu as terras da Monte Claro como paga da dívida que um cliente de uma casa comissária de café de San-tos resolveu honrar por volta de 1908, ano de fundação do município de Ribeirão Claro. Herdada por seu filho, o engenheiro elétrico Jorge Alves de Lima (1899-1988) - que acompanhou de perto as obras da ponte pênsil próxima à cidade, construída pelo pai -, a fazenda futuramente permaneceria em família, nas mãos do neto do velho Antonio Manuel, nascido, por sua vez, a 1º de junho de 1929, o administrador Eduardo Alves de Lima. E com ele, a preservação de parte dos tradicionais 1581

Sede da Fazenda Monte Claro, 2011. Foto: Giovanna Crispim Costacurta. Acervo do autor.

alqueires que fizeram constar em sua folha de pagamento aproximadamente 300 famílias – em torno de 1400 pessoas - com 1 milhão de pés de café entre os anos de 1945 e 1950. Em seus tempos áureos, a fazenda fora dotada de uma estrutura sem igual, composta de armazém, cinema, consultório odontológico, hospital com oito leitos, barbeiro, farmácia e campo de futebol iluminado (suspeita-se que o primeiro do Paraná) – requintes de que a cidade não desfrutava. Atualmente, ainda nas mãos de seu Eduardo, a Monte Claro possui 563 alqueires, dedica-se predominantemente à pecuária e não preserva senão nas ruínas de algumas poucas construções e no conjunto de casas da sede ainda habitada pelo dono, a memória do que representou para a cidade.

Pois foi essa região que abrigou as quatro primeiras famílias que ali chegaram pe-las picadas abertas no meio do mato: Cirelli, Gaviolli, Gulinelli e Frigeri. Não tardou para que, tempos depois, fosse erguida também uma capela próxima ao morro hoje conhecido como Cruzeiro e, assim, ambos os vilarejos aumentavam suas pequenas populações residentes em casebres de pau a pique.

Do mesmo modo, famílias de outras e variadas origens continuaram engrossan-do o caldo populacional das duas pequenas vilas. No enorme fluxo migratório que fora desencadeado, árabes, portugueses, espanhóis e – embora em quantidades bem menores – japoneses, adotaram também aquele espaço e contribuíram definitiva-mente com a ascensão do povoado. Consta, aliás, que os primeiros imigrantes ja-poneses a se radicarem no norte do Paraná, fizeram-no em Ribeirão Claro a partir de 1912 com a chegada de Kinsuke Kato para trabalhar na Fazenda Monte Claro. O primeiro nissei do Paraná nasceu nesta propriedade, a 12 de dezembro de 1914 e chamou-se Massao Nishikava.

Outros tantos sobrenomes como Saad, Abubarham, Bechara, Sogaiar (Sogayar), Cabral, Pereira, Camacho, Prado, Bacon, Baggio, Beneti, Bellia, Consulin, Carnieli, Fávaro, Fabiani, Fonteque, Giacóia, Ormeneze, Ruvina ou Pirola marcaram em defi-nitivo a história do futuro município.

Com o crescimento acelerado das populações dos dois vilarejos e, consequente-mente, do comércio a partir dos primeiros armazéns de secos e molhados abertos por homens como Domingos e José Russo, tudo parecia ir de vento em popa quando uma verdadeira calamidade acercou-se do Espírito Santo do Itararé, atingindo a vila em cheio para desespero de seus moradores. Um surto de malária espalhou focos da doença matando inúmeras pessoas, e difícil era conter a epidemia com a total falta de conhecimento da época e a evidente ausência de vacinas e remédios apropriados. Assim, uma solução de urgência foi cogitada após algumas discussões entre os no-mes de maior proeminência do convívio comunitário: a vila teria de ser transferida para Taquaral.

No dia estipulado O Dia da Mudança, homens, mulheres, crianças e idosos des-locaram-se a pé, a cavalo, em carroças e carros de boi, levando consigo pertences e animais numa legítima procissão, após terem adquirido terrenos e terminado de construir suas casas pouco antes. Foi em 8 de março de 1908 que se promulgou a Lei Estadual 737. Com ela, passava-se a denominar como Ribeirão Claro o novo distrito;

22 CAPÍTULO 1Ribeirão Claro: 1932 a 1955

Thiago Sogayar Bechara

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Thiago Sogayar Bechara

e a instalação solene do município homônimo deu-se a 13 de maio daquele mesmo ano, data em que se comemora seu aniversário, tornando-se, enfim, em um único, os dois antigos vilarejos.

No dia 22 de setembro de 1908 tomaram posse as autoridades eleitas em 21 de julho; dentre elas, para primeiro prefeito, o Coronel Joaquim Ribeiro Gomes, com hegemônicos 86 votos. A política local era então profundamente dominada pelo coronelismo.

Processos parecidos com este marcaram, inclusive, a formação de inúmeros outros municípios próximos à região, como menciona o célebre professor Antonio Candido de Mello e Souza em seu livro “Parceiros do Rio Bonito”, no qual analisa os modos de produção da sociedade caipira paulista ao final dos anos 1940, a partir de pesquisa realizada por ele in locu na cidade de Bofete, próxima a Botucatu: “No início, morado-res segregados. Em seguida ereção de capela em patrimônio doado, que atraía loja e depois algumas casas. Daí, passava a freguesia, já com o núcleo de população esboça-do. O povoado subia a vila, chegando afinal a cidade. Nestes casos, a população rural ia-se ampliando na periferia, onde apareciam novos bairros, que passavam a vila, e assim sucessivamente, sertão adentro. (...). Se traçarmos uma oblíqua da cidade minei-ra de Conquista à cidade paranaense de Ribeirão Claro, veremos que [as] designações [de como a origem de muitos bairros rurais da região eram inicialmente ocupados e determinados por núcleos familiares] se contêm, grosso modo, na parte oriental, isto é, aquela onde se desenvolveram as formas mais tradicionais de povoamento”2.

O casal de italianos Francisco Fonteque e Maria Corassi Fonteque, por exemplo, chega-ram à cidade e integraram-se a este processo muito provavelmente vindos da Calábria, já com o filho Paulino nos braços, em data imprecisa. A 1º de abril de 1909, deram ao mundo a futura esposa de Braz Carlos, registrada três dias depois como uma autêntica ribeirão clarense, assim como também o seriam seus futuros irmãos Salvador, José e Marieta.

A documentação que se tem da geração dos bisavós de Luiz, por parte de mãe, é nenhuma. Sabe-se apenas que os avós paternos de Ida chamavam-se Benedito e Joana Fonteque, e que os maternos atendiam por Francisco e Clementina Corassi. Como inúmeras famílias imigrantes, os pais de Ida buscaram na pequena Ribeirão Claro trabalho nas lavouras de café. Uma das curiosas lembranças que a mãe de dona Ida costumava ter era a de que em sua terra natal havia deixado um irmão com relevantes dotes artísticos, tendo inclusive alçado carreira de cantor popular. Por certo não previa o futuro de seus próximos descendentes.

O pai de Ida (em cujo atestado de óbito tem o sobrenome grafado como Fonte-chia) nasceu em 1875 e faleceu em Ribeirão num incidente trágico. Não se pôde pre-servar até os dias de hoje detalhes do episódio, de modo que se ignoram os motivos pelos quais Francisco foi assassinado aos 55 anos de idade com arma de fogo, após ter brigado em plena Cel. Emilio Gomes, a principal rua da cidade, numa época em que Ribeirão Claro ficou tristemente marcada por uma grande onda de violência.

2 CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, p. 100 e 102.

Registraram-se, nessa fase, inúmeros assassinatos, apesar do temperamento paca-to da maioria de seus moradores. O entrave de Chico Fonteque deu-se com o genro, a 17 de novembro de 1925, três anos antes de a filha casar-se - aos dezenove -, com o rapaz um ano mais novo, cujos pais, diferentemente dos dela, eram brasileiros.

Assim, configurou-se a primeira formação familiar que Luiz encontraria ligeira-mente acrescida pela figura da avó, no dia em que veio ao mundo. Dona Cândida só mudou-se para outra chácara, dentro da cidade (onde morava o filho Tomás Carlos), em 1969, quando, do sítio, Braz e Ida fixaram residência na zona urbana, com a ajuda futura do filho cantor que, poucos anos depois da união do casal, estava ainda por nascer.

Foram-se onze dias da chegada de Luiz Carlos ao mundo, para que os olhares do chefe dos correios Corintho Nalim e de Osvaldo Maciel de Araújo fossem teste-munhas oficiais do registro feito na folha 67 do livro A-26, sob o número de ordem 266. Mais dois dias transcorreriam dali, para que o rebento fosse recebido pela Igreja Católica na austera Matriz de Ribeirão Claro, pelas mãos do sempre lembrado Padre Izidoro Keppler, e apadrinhado por Belizardo Lemes Cavalheri e Regina Maria de Jesus.

A 15 de maio de 1920 havia sido lançada a pedra fundamental da Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, cujas bênçãos foram dadas três anos depois. No entanto, somente em 1959, com Luiz já bem longe dali, é que seria feita a dedicação do templo.

Na década de 1930, a cidade nem sonhava com asfalto e a iluminação era igual-

Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus. Acervo desconhecido.

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mente precária, à base de candeeiros e lamparinas a gás – como por muito tempo se manteria. Em março de 1925, criou-se um Grupo Escolar, durante o governo de Cae-tano Munhoz da Rocha (1924-1928), futuramente batizado de Grupo Escolar Correia de Freitas, em homenagem ao Deputado Estadual e posterior vice Governador do Estado, Manuel Correia de Freitas. Entretanto, só em 11 de maio de 1948, o ensino público do município seria complementado com o curso ginasial, mais tarde inti-tulado Ginásio Estadual Dr. João da Rocha Chueiri – nome do prefeito de Ribeirão Claro no ano de sua inauguração, como atesta o Memorial Histórico do Ginásio Mu-nicipal de Ribeirão Claro, fornecido por Ovídio Fabiani (1917-2011), um dos autores de sua proposta de criação.

“Pelos idos de 1948, o então prefeito de Ribeirão Claro, Sr. Dr. João da Rocha Chueiri, convocou uma reunião na Sede Municipal de pessoas representativas da comunidade para expor as dificuldades dos jovens ribeirão-clarenses na continua-ção de seus estudos, pois só tínhamos no município, o ensino primário, por meio do Grupo Escolar Correia de Freitas e Escolas Rurais de primeiro grau. Nessa reunião ficou decidido que a Câmara de Vereadores fizesse um projeto legislativo, para a criação de um Ginásio Municipal (...). Foi então que aos onze dias do mês de maio de 1948, numa quinta-feira, às vinte horas, reuniu-se a egrégia Câmara de Vereadores para tratar de diversos assuntos referentes ao município (...)”3.

A chácara onde a família de Luiz vivia ficava próxima à cidade, e a estrada que servia de acesso a ela continuava a prolongação da pequena avenida onde hoje está endereçado o cemitério municipal. Nesta primeira infância, o segundo filho de dona Ida morou próximo à sede da propriedade, beirando as águas do ribeirão Claro. Pos-teriormente, viu-se transferido para o lado oposto, quase às margens do Barra Gran-de. Neste trecho de terra, Braz fora destinado a cuidar de um talhão de café distante da casa do dono que, por sua vez, fizera-o seu meeiro. Braz não recebia salário, mas uma percentagem da renda que ajudasse a produzir com seu esforço. A nova casa beirava a divisa com a propriedade de outro cafeicultor da cidade. Era João Leodoro de Oliveira, de quem a família de Luiz seria também meeira dentro em breve, após carpir noutros talhões.

Em 9 de julho, estouraria a Revolução de 1932. Luiz tinha apenas dois meses quando São Paulo pegou em armas contra o governo federal exigindo de Getú-lio Vargas a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. “Da mesma forma, como ocorreu na [Revolução] de 1930, Ribeirão, pela sua localização fronteiriça 3 A título de registro histórico, o texto do Memorial prossegue nos seguintes termos: “(...) A sessão foi presidida pelo Sr. Vereador Benedito Antunes da Rocha Filho (PSD) e composta pelos ilustres páreos: Dr. Agnelo Marques de Souza (UDN); Ovídio Fabiani (PTB), Secretário da Câmara; Francisco Paladino (PSD); Álvaro Cesar de Camargo (UDN); Américo Baggio (PSD); Carlos de Souza Néia (PSD); Antônio Esperidião David (PSD); e Fortunato Sal-valaggio (PSD). Aberta a sessão: Logo o vereador Ovídio Fabiani, Secretário da insigne Câmara, apresentou um Projeto Lei para a criação do tão esperado Ginásio Municipal, que foi discutido pelos seus páreos e aprovado sem nenhuma oposição (...). Após a criação do Ginásio, o prefeito nomeou a senhorita Louris Esbaile David, para a secre-taria da nova escola (...). Esse evento foi redigido pelo Sr. Simão Sogayar, que fez a ata dessa comemoração assinada pela maioria dos presentes, e foi colocada dentro de uma garrafa e posta em uma caixa de concreto nos alicerces do prédio, bem no meio do corredor, em frente à porta de entrada do edifício (...). Parabenizamos o povo ribeirão-clarense por esta conquista. Professor Joaquim Adrega de Moura. Ribeirão Claro, 21 de abril de 1998”.

com o estado de São Paulo, foi ocupada inicialmente pelas tropas paulistas e poste-riormente pelos gaúchos e paranaenses do sul, que se alojaram no prédio do Grupo Escolar Correia de Freitas. Dali, as tropas se deslocavam para combater às margens do rio Itararé e Paranapanema e retornavam às bases”4.

Devido às suas vias de acesso, o município esteve sempre muito mais vinculado a São Paulo do que a Curitiba. Mesmo tendo sido destruída em 1924 pelas tropas do capitão Alberto Costa durante a Revolução Paulista; em 1932 pela Revolução Cons-titucionalista; e, posteriormente, em 1983, por uma enchente, a Ponte Pênsil Antonio Manuel Alves de Lima sobre o rio Paranapanema foi sempre reconstruída, ligando Ribeirão Claro a São Paulo por meio da Estação Ferroviária da Sorocabana, instalada no município paulista de Chavantes - e cumprindo uma de suas funções principais, a de escoar a produção cafeeira que, até sua construção no início dos anos 1920, cru-zava o rio em carroças, sobre balsas.

É o que complementa a matéria “Restaurada ponte centenária”, publicada a 16 de março de 1985 no jornal O Estado de S. Paulo, em que se lê: “Até o final do mês, deverá estar restaurada a ponte sobre o rio Paranapanema, restabelecendo-se o trá-fego na rodovia que liga o município de Chavantes ao de Ribeirão Claro, no Paraná. Trata-se de uma obra centenária, ‘de importância econômica, turística e histórica’

4 OLIVEIRA, Joaquim Néia de. A história de Ribeirão Claro – Paraná, p. 58.

Acervo Jorge Sogayar Netto (In memoriam).

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Luiz e o irmão José Carlos, na entrada da casa dos pais, atual Casa de Cultura de Ribeirão Claro, por volta de julho de 1970. Acervo Amélia Carlos.

que está interditada há quase dois anos, desde que foi parcialmente destruída por uma grande enchente. Apesar de estreita e de possuir apenas uma pista de tráfego, a ponte desempenha importante papel no escoamento da produção rural da região. É a opção lógica para a corrente de tráfego de parte do Norte Velho do Paraná com destino às rodovias Raposo Tavares e Castello Branco”.

Na mesma matéria, o então prefeito de Chavantes, Leonildo Vidal, reforçava a importância da ponte: “Ela permite o acesso tanto às praias existentes na margem paranaense como aos pontos de pesca da margem paulista. No local, pretendemos criar infra-estrutura, inclusive com área de camping, para oferecer melhores condi-ções ao crescente número de turistas que para ali são atraídos pela beleza do lugar, pela pesca e pela prática de esportes náuticos”. A construção é das poucas no Brasil a manter o estilo adotado também pela Ponte Hercílio Luz, de Florianópolis, e pela Ponte Pênsil de São Vicente, construída em 1914. Por todas estas razões – e tendo desempenhado papel fundamental no processo de colonização do Paraná –, desde a década de 1980 estudava-se a possibilidade do tombamento da ponte como patri-mônio histórico – o que se deu a 13 de novembro de 2001. Ao lado, outra ponte de concreto e mais moderna foi inaugurada, sem prejuízo do restauro e da manutenção da antiga. E a matéria finaliza, voltando a 1985: “A recuperação da obra começou no início de fevereiro e, segundo Vidal, ‘está orçada em Cr$ 180 milhões’. Ao que cons-ta, o trabalho será totalmente custeado pela Secretaria dos Transportes de São Paulo, que fixou o prazo de 90 dias para sua conclusão (...)”.

Cruzando a velha ponte e voltando à pequena casa dos Carlos, mais dois anos seriam necessários desde o nascimento de Luiz, para que na tarde do dia 16 de outubro de 1934, ele e Chico recebessem um novo irmãozinho. José Carlos veio ao mundo às 15 horas, dentro de casa como os outros - e com auxílio de uma parteira. Pouco antes de nascer Zezinho, como ficou apelidado o terceiro varão da família, Braz e dona Ida haviam se transferido para a Fazenda Anhumas. Eram os 50 al-queires de terra que o fazendeiro Ângelo Néia comprara em 11 de agosto de 1917 (embora só a tenha registrado no distante 3 de março de 1934), situados à beira da estrada que leva Ribeirão Claro ao também paranaense município de Jacarezinho. Agora seriam meeiros de Ângelo, embora a percentagem acertada entre ele e Braz seja uma informação verdadeiramente impenetrável para nossos dias. Foi também nesta casa que, possivelmente em setembro de 1936, deu-se à luz a primeira filha mulher do casal.

Inês era uma criança esperta, que muito se destacou das outras de mesma idade. Dona Ida comentava que, com um ano, a filha já tagarelava quase tudo. Todavia, a pequena Inês não chegou a completar dois. Por uma fatalidade infelizmente comum em locais mais humildes e, claro, numa época em que não se conhecia a metade das doenças que hoje são facilmente decifradas pela medicina, a menina faleceu prema-turamente em torno de um ano e oito meses após seu nascimento. A moléstia foi tratada como coqueluxe por dona Ida, que ingenuamente deu-lhe um banho certo dia e, com a criança nos braços, saiu para o corredor da casa, onde o forte vento ri-

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beirão clarense encanava pelas paredes. Acredita-se, sem que se possa afirmar, que o choque térmico associado à doença pré-existente da menina deva ter fragilizado a sua saúde, sendo esta aceita pela família como uma das causas de sua morte. Dona Ida contaria aos filhos que Inês arrepiou-se muito ao sair do banho, e que resistiu durante dois ou três dias apenas5.

No entanto, a morte da irmãzinha de Luiz passou-se já noutra propriedade - para onde Braz carregaria a família em 1938, vindos da Fazenda Anhumas. O primogêni-to Francisco lembrou-se, mais de setenta anos passados, que o pai ponteava a viola e cantava, não raro em dupla com seu mano, as modas sertanejas do momento, e que uma das cenas guardadas em sua memória, era a de Braz com o instrumento no colo e Inês numa de suas pernas, ouvindo atentamente o som das cordas acompanhando a boa voz.

“Ainda morávamos na Anhumas. Ele chegava da roça ao fim do dia, tomava ba-nho, jantava e já ia pra viola. Inês ficava sentadinha em sua coxa ouvindo-o cantar. Depois que ela morreu, nosso pai deixou a música de lado e tempos depois vendeu o instrumento. Acho que de tristeza! Isso ele nunca nos disse, mas deduzo basea-do nessas informações. Ele era um homem que gostava muito de música e jamais nos proibiria de tocar. Mas quando eu e Luiz começamos a demonstrar interesse pelo violão futuramente, embora não nos tenha censurado, também não incentivou demais. Talvez pelo mesmo motivo, não disse nem sim, nem não. Ficou na dele”, lembrou Chico, que embora não tenha seguido carreira artística, ainda canta e toca em um velho pinho, as músicas de Luiz que ganhariam os discos anos depois, inspi-radas por vários de seus ídolos.

Em 1935, um dos principais era o cantor Sílvio Caldas, que fazia um sucesso estrondoso com suas gravações do samba “Inquietação” de Ary Barroso e da valsa “Boneca”, de Benedito Lacerda e Aldo Cabral, além do saborosíssimo samba-serta-nejo “Minha palhoça” (J. Cascata), gênero em voga no momento. Tão representativa quanto, Carmen Miranda estourava com “Adeus, batucada” de Sinval Silva, que a presenteara com outro sucesso de sua autoria, após o êxito do samba “Coração”. Noel Rosa gravava sua parceria com Vadico, o samba “Conversa de Botequim”, e Francisco Alves entoava “Foi ela”, de Ary Barroso.

Por volta dessa época, Chico começou a auxiliar seu pai na roça, como era co-mum em núcleos familiares da zona rural. Desde bem cedo, crianças da comunidade eram solicitadas a dividir seu tempo de brincadeiras com a enxada, nos cafezais montanhosos de Ribeirão Claro. Com os anos, a pecuária superaria a cafeicultura – ainda presente na economia da cidade, na lida dos pequenos agricultores, mas sem honrar a importância que tivera.

E para Luiz também não tardaria que chegasse sua vez. Foi em 1937, aproximada-mente - aos cinco anos -, que principiou a carpir o mato entre as carreiras de café e a tomar parte na colheita, nos roçados, adubando o chão e secando os grãos nos terreiros 5 O cartório de Ribeirão Claro, apesar de todos os esforços dedicados à pesquisa, não conseguiu localizar as certidões de Inês Carlos, restando apenas as informações aproximadas, fornecidas por irmãos e primos, baseando-se unica-mente em suas memórias imprecisas de infância.

que, à época, eram feitos de terra batida - e não ladrilhos ou lajotões de pedra como no futuro -, o que, segundo os antigos, fazia toda a diferença no sabor da bebida. Isso porque, assim, os frutos secavam naturalmente mais devagar, de modo a se obter um padrão mais homogêneo de qualidade.

Braz Carlos ensinou tudo às crianças com seu modo bastante enérgico e matuto - ainda que não fosse o tipo de homem que batesse nos filhos. “Uma só vez apanhei porque andei aprontando umas desobediências por aí”, riu José Carlos, assumindo a culpa. “Mas lembro que ele bateu com dó!”. No entanto, era rígido e sabia exigir o devido respeito, muitas vezes temeroso. Era o tempo em que se tomava a bênção aos mais velhos, os quais só atendiam se chamados de senhor.

Mesmo assim, o relacionamento de Braz e dona Ida com os filhos foi tranquilo e baseado num grande sentido de cooperação mútua. O que se esperava de Chico, Luiz e Zezinho, era o cumprimento de suas obrigações na lida com o pai e o in-gresso de cada um, a seu tempo, na escola para se desasnarem. Era o que desejaria qualquer matriarca como dona Ida, que não chegou a ter a oportunidade de ser alfabetizada.

Em 1938, quando Braz Carlos tornou a trocar de morada, voltou para a mesma região onde nasceram Chico e Luiz, então com oito e seis anos, respectivamente. Po-rém, mudou-se para a propriedade vizinha à de Juquinha Néia, onde morara – e que ficava dentro de outra propriedade, a Fazenda Pinhalzinho, ainda existente no mu-nicípio. As terras em que trabalharia agora a família mambembe tinham 60 alqueires e, na escritura, eram do já citado João Leodoro de Oliveira desde 6 de novembro de 1922, quando este a adquiriu das mãos de uma mulher, Leduina Maria de Jesus. Mas quem administrava na prática a fatia onde Braz Carlos viveria era o genro de Leodoro, João Bacon, a quem o verdadeiro patrão cedera alguns alqueires para que sua filha vivesse com o marido.

Acontece que Braz Carlos e Bacon eram amigos de longa data, como frequen-temente ocorria em cidades tão pequenas quanto a chamada Pérola do Norte. Por esta ligação entre as famílias, bastou que vencesse o contrato com Ângelo Néia, na Fazenda Anhumas, para dona Ida ser levada mais do que depressa de volta às terras de que fora vizinha, quatro anos antes.

O que é quase certo é que Bacon dera melhores condições contratuais aos novos meeiros, com vantagens como autonomia sobre pastos, por exemplo. Na prática, isso significava que além da percentagem sobre a safra da lavoura, Braz Carlos po-deria também criar gado leiteiro na invernada do amigo, explorando como bem en-tendesse a retirada de leite e a produção dos queijos que passassem a ser vendidos por seus filhos. Não é demais frisar que toda a formalização desse acordo não passa-va de um confiante aperto de mão entre amigos. Era verbalmente que as pessoas se entendiam. E negócios como este eram fechados à beira de um curral, com imensa garantia de segurança.

Além de tais benefícios, segundo consta, os planos de Braz Carlos incluíam ainda uma facilidade. Seus dois filhos mais velhos, breve, entrariam em idade escolar. Era providencial que vivessem o mais perto da cidade quanto pudessem. Luiz, enquan-

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to isso, dava assistência a seu pai no cafezal de Bacon, e Chico dividia as mesmas atividades com a entrega diária de leite para os clientes que, pouco a pouco, Braz conquistava.

A nova casa da família era espaçosa e muito simples, mas feita de material como são referidas as construções de alvenaria. O piso de cimento e o forro de madeira abrigavam seus seis moradores. Foi nesta nova residência que, em 1939, a 10 de fevereiro, e após o falecimento de Inês, o quarto filho homem de dona Ida - mais tarde aviador profissional e teólogo -, veio ao mundo. Em poucos anos, o pequeno Lázaro Carlos já dormia no quarto de Zezinho, enquanto era Chico quem dividia o cômodo com Luiz.

Assim, lentamente, os dias transcorriam por ali, enquanto a linhagem aumentava no silêncio da vida no campo. De rotina simples e bastante parecida entre si, inúme-ras famílias como esta buscavam naquelas paragens a sobrevivência - honrando a vinda de seus ascendentes imigrantes. Rotina, aliás, cujos princípios, apesar de toda a evolução tecnológica do século XX, mantêm-se deliciosamente intactos até os turbu-lentos dias de hoje. Deste sentimento ligado ao universo idílico-rural de sua infância e de sua origem ítalo-caipira – de que ele parecia não conseguir (nem querer) des-vencilhar-se -, foi que Luiz Carlos nutriu-se para o futuro, sem que sua obra ficasse, contudo, marcada unicamente pela alcunha de música caipira, ou algo que o valesse.

Luiz, Braz e o sobrinho João. Acervo Amélia Carlos.

Uma breve análise comparativa de suas canções revela, de início, uma riqueza de gêneros que o impede decisivamente de ser classificado apenas como composi-tor raiz ou regional, entendendo a terminologia caipira desde já como sintetizado-ra do aspecto cultural – nunca etnográfico - específico de uma região interiorana do País denominada pelo historiador Alfredo Ellis Junior como Paulistânia, qual seja, basicamente aquela de “influência histórica paulista”6 ligada aos ciclos bandeiran-tes do século XVIII, ao universo rural e ao modo de vida rústico, tradicionalista, relativamente homogêneo (e não, evidentemente, às acepções pejorativas mal em-pregadas na designação jocosa de um tipo concebido preconceituosamente). Vale dizer que tal região engloba não apenas o estado de São Paulo, mas localidades específicas de seu entorno, tais como “parte de Minas e do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso, com a área afim do Rio de Janeiro rural e do Espírito Santo”, estando Ribeirão Claro, portanto, perfeitamente compreendida, por localizar-se à divisa de estado, vizinha da paulista Ourinhos.

Sobre essa temática da constituição do homem caipira, o professor Antonio Candido, ainda em “Parceiros do Rio Bonito”, remete-nos ao livro “Conversas ao pé do fogo” (São Paulo, 1921), de Cornélio Pires, em que a utilização dos termos “caipira branco”, “caipira caboclo”, “caipira preto” ou “caipira mulato” reforçam a distinção entre o modo de ser e o tipo de mestiçagem racial destas pessoas. Vale mencionar, no entanto, que a maior parte da população tradicional de São Paulo constitui-se de caboclos, isto é, do mestiço “próximo ou remoto” de branco e índio.

Em trecho extraído da apresentação “O mundo do caipira” para o LP duplo “Caipira: raízes e frutos”, lançado pela Eldorado em 1980, Candido esmiúça tam-bém outras características desse tipo de cultura, valiosas para a compreensão do universo em que Luiz cresceu: “(...) A cultura do caipira não é nem nunca foi um reino separado, uma espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a adaptação do colonizador ao Brasil e, portanto, veio na maior parte de fora, sendo, sob diversos aspectos, sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português antigo. Quando um caipira diz ‘pregunta’, ‘a mo´que’, ‘despois’, ‘vassuncê’, ‘tchão’ (chão), ‘dgente’ (gente), não está estragando por igno-rância a língua portuguesa; mas apenas conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-pátria e aqui. Até o famoso ‘erre retroflexo’, o ‘erre de Itur’ ou ‘de Tietêr’, que se pensou devido à influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas regiões de Portugal [como a do Minho]. Do mesmo modo que veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, o jogo do cacete, a dança de São Gonçalo, a Festa do Divino, a maioria das crendices, esconjuros, hábitos e concepções. [Em grande parte dos casos, sobrenadaram na cultura caipira as ma-nifestações comuns a ambos os universos – português e indígena]. Quantas vezes ouvi caipiras ‘improvisando’ na viola quadras bonitas que anos depois encontrei em coleções de folclore português!”.

6 CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, p. 28.

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Adentrando um pouco mais em alguns aspectos históricos que auxiliam na me-lhor compreensão das origens do homem rural culturalmente próximo dos Carlos – apesar de suas origens italianas -, Glauco Barsalini remontou os últimos séculos e conceituou o perfil desse tipo de homem rural: “O caipira (...) com raízes históricas no bandeirantismo era, por sua vez, um independente em essência, que dificilmente se curvava ao poder senhorial, nem mesmo da corte portuguesa. Os bandeirantes formavam, entre os séculos XVI e XVIII, uma sociedade que, por ser pobre, era pra-ticamente igualitária. Ali, senhores e índios se entendiam antes como chefes e seus soldados, do que como amos e seus escravos. A maioria da população era composta por mamelucos (mestiços de brancos com índias). As mulheres (cada homem branco tinha geralmente mais de uma) trabalhavam com o roçado e os afazeres domésticos, enquanto os homens dedicavam-se predominantemente à guerra e à caça, mas usan-do a maior parte de seu tempo para o lazer e o descanso. Daí a fama que os homens paulistas ganharam de gente birrenta e preguiçosa, fama esta que foi radicalmente alterada com o processo de modernização de São Paulo, a partir da década de 1940, em que se utilizou ideologicamente de certas raízes da paulistanidade, como o cará-ter aventureiro do paulista, em prol da construção de um mundo urbano de intenso trabalho”7.

“A marcha da urbanização em São Paulo está ligada ao progresso industrial e consequente abertura de mercados; daí a penetração, em áreas rurais, de bens de consumo até então menos conhecidos ou, na maioria, desconhecidos”, complemen-tou Antonio Candido. “Surgem assim, para o caipira, necessidades novas, que con-tribuem para criar ou intensificar os vínculos com a vida das cidades, destruindo a sua autonomia e ligando-o estreitamente ao ritmo da economia geral, isto é, da região, do estado e do país, em contraste com a economia particular, centralizada pela vida de bairro e baseada na subsistência. Doravante, ele compra cada vez mais, desde a roupa e os utensílios até alimentos e bugigangas de vário tipo; (...) Por outras palavras, surgem relações compatíveis com a economia moderna, que o vai incorpo-rando à sua esfera”8.

7 BARSALINI, Glauco. Mazzaropi: o Jeca do Brasil, p. 102.

8 CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, p. 207.

A infância

Correndo pelas campinas,À roda das cachoeiras,Atrás das asas ligeirasDas borboletas azuis!

(Trecho do poema Meus oito anos, de Casimi-ro de Abreu)

Luiz vivenciou intimamente a rotina e o modo de vida do homem rural. O som do canto de cada tipo de ave, da mata, dos animais, insetos – a tudo esteve efetivamente sintonizado, interiorizando de um modo todo particular as informações que sua terra imprimia. Foi também no correr das águas do ribeirão Claro e do Barro Grande, além do rio Itararé, que Luiz sentiu pela primeira vez o valor dessa pluralidade, como atestam diversos parentes e amigos em seus depoimentos. Como defensor ferrenho das matas e dos animais, encontrou sentido em garantir a preservação de um can-cioneiro que frutificasse como a natureza de sua meninice.

Talvez ele e o irmão Chico não se lembrassem, pois a mudança para a Fazenda Anhumas deu-se quando os dois ainda eram muito pequenos. Mas logo nos primeiros anos de suas vidas, ambos mo-raram próximos ao rio que agora corria na porta de casa. Se saísse pelos fundos da nova morada, a visão de Luiz seria exatamente a de uma colina no horizonte que descia em sua direção, bebia das águas do Barra Grande no seu ponto mais baixo, e voltava a subir até ele, encontrando seu quintal, antes de prosseguir às suas costas, pela estrada praticamente plana que levava à saída do cemitério, já na cidade.

Fora basicamente neste cenário que os principais momentos da infância do jovem ribeirão-clarense desenrolaram-se revelando aos primos e irmãos desde muito cedo, um caráter diferente do da maioria das crianças. No outro lado do regato, sobre a mesma colina e ainda ao alcance da vista, estavam as casas do vizinho João Néia (filho de José Bernardo de Faria Néia, o mesmo Juqui-nha de quem Braz fora meeiro anos atrás), do tio Paulino, irmão de dona Ida, assim como do tio Salvador Fonteque que, distante apenas um quilômetro da casa da irmã, tinha a sua pouco mais à esquerda, encoberta no horizonte por árvores e pastagem. Pauli-no e Salvador viviam, portanto, na propriedade onde Luiz nasceu,

O pequeno Luiz e um olhar que já cantava – por volta do final da década de 1930. Acervo Amélia Carlos.