[livro ufsc] história da língua

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História da Língua Florianópolis - 2012 Rodrigo Tadeu Gonçalves Renato Miguel Basso Período

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História Da Língua

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História da Língua

Florianópolis - 2012

Rodrigo Tadeu GonçalvesRenato Miguel Basso6º

Período

Governo FederalPresidenta da República: Dilma RousseffMinistro de Educação: Aloizio MercadanteSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowskyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane NeckelVice-Reitora: Lúcia Helena Martins PachecoPró-Reitora de Graduação: Roselane de Fátima CamposPró-Reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy FilhoPró-Reitor de Extensão: Edson da RosaPró-Reitora de Pós-Graduação: Joana Maria PedroPró-Reitor de Planejamento e Orçamento: Luiz AlbertonPró-Reitor de Administração: Antônio Carlos Montezuma BritoPró-Reitora de Assuntos Estudantis: Beatriz Augusto de Paiva

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor Unidade de Ensino: Felício Wessling MargottiChefe do Departamento: Rosana Cássia KamitaCoordenador de Curso: Sandra QuarezemimCoordenador de Tutoria: Cristiane Lazzarotto-Volcão

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosSilvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos Cristiane Lazzarotto Volcão

Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Coordenação: Ane GirondiDesigner Instrucional: Daiana AcordiDiagramação: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli MichelonCapa: Raquel Darelli MichelonIlustração: Kamilla SouzaTratamento de Imagem: Pedro Augusto Gamba & Raquel Darelli Michelon

Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina.

G635h Gonçalves, Rodrigo Tadeu História da língua / Rodrigo Tadeu Gonçalves, Renato Miguel

Basso. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010.190p. : il. Inclui bibliografia

UFSC. Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância ISBN 978-85-61482-32-9 1. Língua portuguesa – História. 2. Linguística histórica.

3. Sociolinguística. 4. Ensino a distância. I. Basso, Renato Miguel.II. Título.

CDD 806.90(091)

Sumário

Apresentação ...................................................................................... 7

Unidade A - Do Latim ao Português ........................................... 91 Do Indo-Europeu ao Latim: primórdios da história

das línguas ......................................................................................................11

Introdução ..................................................................................................................11

1.1 O desenvolvimento da linguística histórico-comparativa .................12

1.2 O protoindo-europeu e as línguas indo-europeias ..............................13

1.3 Do protoindo-europeu ao latim ..................................................................19

2 Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o português? ......21

2.1 Brevíssima história do latim ..........................................................................21

2.2 Características do latim clássico e do latim vulgar ...............................26

3 A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução .........................41

3.1 Conceituação de România .............................................................................41

3.2 Inovações panromânicas ...............................................................................43

3.3 Influências do substrato, superestrato e adstrato nas línguas românicas ............................................................................................................44

3.4 As línguas românicas .......................................................................................48

Unidade B - História do português ...........................................594 A Península Ibérica e sua formação linguística .................................61

Introdução ..................................................................................................................61

4.1. Catalão .................................................................................................................61

4.2. Espanhol ..............................................................................................................62

4.3 Formação histórico-linguística da Península Ibérica ...........................65

5 O português arcaico ....................................................................................77

5.1 Periodização .......................................................................................................77

5.2 O português arcaico ........................................................................................79

5.3 Textos comentados ..........................................................................................87

6 O português clássico ...................................................................................97

Introdução ..................................................................................................................97

6.1 Características do português clássico .......................................................98

6.2 Texto “Décadas da Ásia” ................................................................................103

7 O Português em Portugal depois de 1500 e a Língua

Portuguesa no mundo ............................................................................107

7.1 O português europeu depois de 1572 ....................................................108

7.2 Português no mundo ....................................................................................111

Unidade C - História do Português na América ................. 1178 Chegada do Português na América: a delimitação das

fronteiras e a periodização do português brasileiro ....................119

8.1 A formação do território nacional.............................................................124

8.2 Panorama linguístico da América portuguesa .....................................128

8.3 A periodização do português brasileiro .................................................133

9 O português brasileiro e suas características ..................................135

9.1 Fase formativa (1550 a 1700) ......................................................................136

9.2 Fase diferenciadora (1700 a 1800) ............................................................137

9.3 Fase de desenvolvimento da escrita e do ensino (1800 a 1950) ....141

9.4 Fase de nivelamento (1950 em diante) ...................................................144

10 Línguas indígenas e africanas na formação do português

brasileiro, sua unidade e diversidade .............................................149

10.1 Indígenas, africanos, europeus e brasileiros: o caldeirão do português do Brasil .....................................................................................149

10.2 Unidade e diversidade no português falado no Brasil....................157

Epílogo ............................................................................................. 167

Conclusão ........................................................................................ 171

Cronologia ...................................................................................... 173

Referências ...................................................................................... 177

Glossário .......................................................................................... 179

Apêndice – Atividades ................................................................ 181

Apresentação

E ste livro tem por objetivo introduzir o leitor ao vasto e diversifica-

do domínio da história das línguas. Nosso objeto aqui é a língua

portuguesa e sua história. Procuraremos entender um pouco so-

bre as origens do português, sua relação com o latim, sua fixação enquanto

língua de um Estado e, posteriormente, seu translado e fixação na América,

na Ásia e na África.

Talvez a característica que mais chame a atenção do leitor seja o fato de que

não é possível entender a história de uma língua sem levarmos em conta os

eventos políticos e históricos pelos quais passou o povo que falava essa língua.

Usando os termos da linguística histórica, para entender a história interna de

uma língua, é imprescindível que levemos em conta sua história externa. É por

isso que em vários momentos apresentamos a situação política de um determi-

nado país, seus interesses econômicos e suas dinâmicas populacionais.

O presente livro está dividido em três unidades. Na primeira delas, traçaremos

uma história da língua latina, de sua origem até o início das línguas români-

cas, salientando as principais características da língua latina, a expansão do

Império Romano e a formação e dissolução da România. Na segunda unida-

de, olharemos para a história da língua portuguesa desde os seus primeiros

documentos até a chegada do português ao Brasil, pontuando cada uma das

grandes mudanças estruturais detectadas ao longo de sua história. Finalmente,

na terceira unidade, apresentaremos a história do português no Brasil, algu-

mas das hipóteses sobre sua formação e ofereceremos um panorama da língua

portuguesa no Brasil de hoje.

Ao longo deste livro, apresentaremos vários excertos e textos antigos que serão

analisados, além de mapas e imagens, para ajudar o leitor a se situar no longo

percurso histórico que o espera nas próximas páginas. No fim deste livro, o

leitor encontrará uma série de atividades sugeridas para a sala de aula; procu-

raremos mostrar com as atividades que estudar a história de uma língua pode

servir como uma ponte interessante para as disciplinas de História e Geografia,

além de despertar o interesse dos alunos sobre as razões de o português ser

como é hoje, ter a ortografia que tem e suas características distintivas. Ain-

da para auxiliar nessas atividades, o leitor encontrará um Glossário com os

História InternaAspectos relacionados às mudanças estruturais que uma língua sofreu ao longo do tempo.

História ExternaEventos de ordem não linguística, políticos, econômicos, bélicos etc. que influenciaram uma dada língua.

principais termos técnicos utilizados e uma Cronologia com as datas mencio-

nadas no texto e outras que são importantes para a história do português.

Antes de terminar a Apresentação, gostaríamos de deixar registrado nosso agra-

decimento à leitura cuidadosa e às várias sugestões da profa. Izete Lehmkuhl

Coelho, que em muito contribuíram para este livro.

Boa leitura!

Rodrigo Tadeu Gonçalves

Renato Miguel Basso

Unidade ADo Latim ao Português

Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...

11

1 Do Indo-Europeu ao Latim: primórdios da história das línguasO objetivo deste capítulo é compreender o processo de origem do latim,

a partir de uma análise da história da hipótese do indo-europeu. O capítulo

aborda o processo da história das línguas e da filologia, a fim de

compreender as origens históricas do latim.

Introdução

Ao dizermos que o português é uma língua latina, automaticamen-te indicamos a filiação do português ao latim e também a outras línguas românicas, isto é, às outras línguas que têm como origem o latim.

Do ponto de vista de sua estrutura gramatical e de seu léxico, dizer que o português é uma língua latina significa dizer que encontramos no latim as palavras que deram origem ao léxico do português, mas também que encontramos certas características sintático-morfo-fonológicas es-pecíficas do latim e das línguas românicas no português. Exploraremos a fundo algumas dessas características ao longo deste livro.

Do ponto de vista de sua história, dizer que o português é uma língua

latina, como vimos, significa dizer que o latim é a língua-mãe do portu-

guês. Essa constatação pode levar o leitor mais curioso a se perguntar

não apenas sobre como se deu a passagem do latim ao português, mas

também sobre a origem do latim. Ora, assim como o português se ori-

ginou do latim, podemos perguntar de qual língua se originou o latim.

A resposta a tal pergunta nos leva a um passado muito remoto, do qual

não temos praticamente nenhum registro escrito (e obviamente ne-

nhum falado!) e, portanto, a um terreno de bastante especulação. Não

obstante, a investigação sobre a origem do latim e de outras línguas de

cultura da antiguidade europeia levou linguistas, historiadores e arque-

ólogos a descobertas no mínimo fascinantes.

História da Língua

12

1.1 O desenvolvimento da linguística histórico-comparativa

Desde há muito tempo, diversos estudiosos viram semelhanças en-tre o latim e o grego clássicos que não podiam ser resultado do acaso. No entanto, os estudos dos períodos anteriores ao século XIX eram muito esparsos e baseados em suposições muitas vezes infundadas, como a de que o latim derivava diretamente do grego, e este diretamente do he-braico, a suposta língua original cujo dialeto mais antigo Adão teria fa-lado. Aos poucos, as hipóteses que ligavam o latim e o grego ao hebraico foram sendo descartadas, em grande parte devido ao interesse crescente pelas línguas do Oriente, que passaram a ser mais bem conhecidas pelo Ocidente europeu em virtude dos contatos crescentes entre os povos, derivados de um trânsito comercial e colonialista mais intenso, acirrado pelos movimentos expansionistas europeus.

Muitos estudiosos, principalmente aqueles que participaram dos estudos linguístico-comparativos entre o século XIX e começo do sé-culo XX, descobriram semelhanças também entre diversas línguas da Europa, organizando essas línguas em famílias linguísticas, que, por sua vez, também eram aparentadas entre si. Exemplos mais comuns são jus-tamente as línguas românicas, como o francês, o espanhol, o italiano, o romeno, o português etc., cujo percurso do latim até seu estado moder-no foi documentado através dos mais diversos tipos de texto (políticos, literários, jurídicos etc.), e também as línguas germânicas, como o in-glês, o holandês, o alemão, o islandês, o dinamarquês etc., que descen-dem de uma língua chamada de protogermânico.

O parentesco entre o grego, as línguas latinas (e o latim), as lín-guas germânicas e outras da Europa já estava razoavelmente estabele-cido quando um jurista, filólogo e humanista inglês, Sir William Jones, demonstrou, em 1786, que o sânscrito, uma língua bastante antiga da Índia, era inequivocamente próximo ao latim, ao grego, ao protogermâ-nico e também ao persa, língua falada no Irã. Seu discurso para a Socie-dade Asiática (fundada por ele mesmo em 1784), publicado em 1788, foi considerado o pontapé inicial da Linguística Histórico-Comparativa. Em uma passagem célebre, o filólogo afirmou que:

Para que você possa relembrar como os pes-quisadores estabelece-ram o parentesco entre as línguas, sugerimos a releitura do livro-texto de História dos Estudos

Linguísticos, de Heronides Moura e Morgana Cam-brussi, especialmente o

Capítulo 4 da Unidade A.

Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...

13

O sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura

maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais ex-

traordinariamente refinado do que ambos. Mantém, todavia, com estas

duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais quanto nas

formas gramaticais, que não é possível tratar-se do produto do acaso. É

tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine o sânscrito,

o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de

uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica, embora

menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma

origem que o sânscrito. (ROBINS, 1983, p.107)

Com tal descoberta, estava aberto o caminho para que o termo “indo-europeu” fosse cunhado, em 1813, pelo polímata inglês Thomas Young. O século XIX foi o período em que uma série de filólogos de-senvolveu gramáticas comparativas entre várias línguas indo-europeias, entre eles Rasmus Rask, Jakob Grimm, Franz Bopp, August Schlegel, Wilhelm Von Humboldt e August Schleicher. Trata-se do primeiro ca-pítulo da história da linguística moderna, que viria a culminar em abor-dagens cada vez mais cientificizantes, como a dos chamados neogramá-ticos do final do século, que abriram caminho para o estruturalismo no início do século XX.

1.2 O protoindo-europeu e as línguas indo-europeias

Entre as realizações mais interessantes dos filólogos/linguistas comparativistas do século XIX estão alguns estudos sobre mudanças fo-néticas das línguas indo-europeias, como as Leis de Grimm, e tentativas de reconstrução do protoindo-europeu, como a de August Schleicher, que inclusive chegou a tentar escrever textos na língua reconstruída.

Irmão de Wilhelm Grimm, com quem escreveu os famosos contos de fadas dos Irmãos Grimm.

Hermann Osthoff e Karl Brugmann são os mais conhecidos.

História da Língua

14

Box 1: Leis de Grimm

Vejamos alguns exemplos famosos de leis de mudança fonética de-

senvolvidas por Jakob Grimm em 1822, em seu livro Deutsche Gra-

-matik (Gramática Alemã):

Consoantes oclusivas surdas do PIE e/ou das línguas mais antigas da

família passam a fricativas surdas nas línguas germânicas, como em

p → f, t → θ.

Consoantes oclusivas sonoras do PIE e/ou das línguas mais antigas

da família passam a oclusivas surdas, como em b → p, d → t.

Consoantes oclusivas aspiradas sonoras do PIE e/ou das línguas

mais antigas da família tornam-se oclusivas sonoras, como em

bh → b e dh → d.

Alguns exemplos de aplicações das Leis de Grimm podem ser vistos

a seguir:

d → t: PIE *dékm(t) “dez”, latim decem, grego antigo déka, sânscrito

daśan → inglês ten, alemão zehn, pronunciado [tze:n]

p → f: PIE *póds “pé”, latim pēs, grego antigo poús, sânscrito pāda →

inglês foot, alemão Fuss

bh → b: PIE *bhréhater- “irmão”, sânscrito bhrātŗ → inglês brother, ale-

mão Bruder

Dos diversos estudos desses filólogos, linguistas, gramáticos com-paratistas e humanistas, foi possível descobrir que o latim e o sânscri-to eram aparentados o suficiente para terem uma origem comum, nos moldes em que dizemos que o francês e o português têm origem no la-tim. A suposta língua que deu origem ao latim, ao grego, ao sânscrito, ao protogermânico etc. foi chamada de “protoindo-europeu”. No entanto, como dissemos, não há praticamente nenhum resquício escrito da pas-sagem do PIE para as línguas da família indo-europeia e sua reconstitui-

Doravante, neste livro, abreviada como PIE.

Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...

15

ção é feita com base nas mudanças linguísticas atestadas historicamente e também na comparação entre as diversas línguas indo-europeias. Os estudiosos foram capazes de identificar os ramos da família indo-euro-peia mais antigos, como o anatólico, que se desenvolveu provavelmente por volta de 2000 a.C.; o indo-iraniano, por volta de 1400 a.C.; e o grego por volta de 1300 a.C. ou mesmo antes. Assim, o PIE foi falado prova-velmente antes de 2500 a.C., mas as datações são todas muito difíceis de estabelecer e muito hipotéticas. Para termos ideia da extensão cro-nológica envolvida nas transformações entre as línguas indo-europeias, pode-se dizer que o latim tem origem em torno do século XI a.C. e o sânscrito entre 1500 e 1000 antes de Cristo. Vejamos abaixo exemplos das semelhanças no vocabulário de algumas das línguas indo-europeias, lembrando que em linguística histórica, formas marcadas com asterisco são aquelas que não foram atestadas em documentos, mas reconstruídas a partir de dados da história da mesma língua ou das que derivaram dela; usaremos essa notação neste livro.

Português pai mãe irmão lobo

Latim pater mater frater lupus

Grego Antigo pater meter phrater lykos

Sânscrito pitar matar bhratar vrkas

Espanhol padre madre hermano lobo

Francês père mère frère loup

Inglês father mother brother wolf

Alemão Vater Mutter Bruder Wolf

PIE *phatér *méhater *bhréhater *wlkwos

Podemos ver como as palavras são semelhantes, e as reconstruções do PIE apresentadas, embora pareçam estranhas por causa da notação fonética, são muito próximas das línguas antigas apresentadas cujos da-dos foram atestados, o sânscrito, o grego antigo e o latim.

O quadro a seguir ilustra as principais famílias linguísticas que se originaram do protoindo-europeu:

O símbolo “†” indica que se trata de uma língua que não tem mais falantes nativos, ou seja, de acor-do com a terminologia corrente, trata-se de uma língua morta.

As inscrições mais antigas encontradas datam do século VII, embora Roma tenha sido fundada por Rômulo, segundo as len-das, em 753 a.C.

História da Língua

16

Protoindo-europeu

(†) ramo anatólico (†) assírio, (†) hitita

ramo helênico (†) grego antigo grego moderno

ramo indo-iraniano persa, (†) sânscrito

ramo itálico (†) latimfrancês, romeno, italiano, português, espanhol etc.

ramo céltico galês, gaélico irlandês, gaélico escocês, bretão

ramo balto-eslavo (†) antigo prussiano, (†) proto-eslavo

letão, lituano, russo, tcheco, polonês, ucraniano, croata etc.

ramo germânico (†) protogermânicoislandês, norueguês, sueco, alemão, inglês, holandês, faroês etc.

ramo armênio armênio

(†) ramo tocário

ramo albanês albanês

Podemos ver a extensão da cobertura das línguas indo-europeias em seus espaços de ocupação originais no Mapa 1:

Indo-europeia - Românica

Indo-europeia - Germânica Setentrional

Indo-europeia - Germânica

Indo-europeia - Eslava

Indo-europeia - Báltico

Indo-europeia - Helênica

Altaica- Turcomana

Urálica

Afro Asiática - Semítica

Mapa – As línguas indo-europeias em seus espaços originais. (Adaptado do mapa disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7f/L%C3%ADnguas_da_Europa_por_Fam%C3%ADlia.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)

Perceba que outras famí-lias linguísticas também

aparecem no mapa.

Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...

17

O indo-europeu não é, obviamente, a única família de línguas do planeta. Línguas como o árabe, o chinês e o turco não são indo-euro-peias e cada uma pertence a uma família linguística, respectivamente, o semítico, o sino-tibetano e o altaico. Os métodos de comparação e reconstituição de línguas que foram empregados para o caso da famí-lia indo-europeia e que resultaram no protoindo-europeu poderiam, a princípio, ser aplicados às outras famílias linguísticas do mundo, in-cluindo certamente as línguas indígenas brasileiras e do resto do conti-nente americano. Qual seria o resultado de tal aplicação? Seria possível reconstituir todas as protolínguas? Se sim, o que isso nos mostraria? Teriam todas as línguas uma mesma origem? Ou talvez não haja paren-tesco entre as protolínguas e a linguagem surgiu em momentos, lugares e com estruturas diferentes nos vários grupos humanos?

Essas são perguntas extremamente interessantes, mas também extre-

mamente complexas e qualquer resposta a elas seria nada mais do que

especulação. Aqueles que defendem a hipótese de que todas as lín-

guas (e protolínguas) descenderam de uma mesma língua ancestral

são chamados de monogenistas; em oposição aos monogenistas estão

os poligenistas, que defendem a ideia de que as línguas não tiveram

um único ancestral. Para complicar ainda mais o quadro, há paleontólo-

gos, linguistas, biólogos e historiadores que defendem que a origem da

língua não está sequer na língua falada como a conhecemos, mas sim

na língua de gestos talvez próxima a que as comunidades de surdos

usam atualmente. Essa hipótese, bastante interessante, abre também

mais um leque de perguntas: seriam as atuais línguas de sinais próxi-

mas a uma ou mais protolínguas? Como proceder a tal investigação?

Supondo que a origem da língua é gestual, como e por que se deu a

passagem para a língua falada?

Como é possível ver, há ainda inúmeras perguntas a serem respondidas

(e feitas) sobre a história e a origem das línguas.

O estabelecimento do turco na família altaica é incerto, mas esta família inclui também o coreano e o japonês, entre outras.

História da Língua

18

Box 2: A fábula de Schleicher

Transcrevemos a fábula que Schleicher escreveu em protoindo-eu-

ropeu, intitulada Avis akvāsas ka (A ovelha e os cavalos):

Avis, jasmin varnā na ā ast, dadarka akvams, tam, vāgham garum

vaghantam, tam, bhāram magham, tam, manum āku bharantam.

Avis akvabhjams ā vavakat: kard aghnutai mai vidanti manum

akvams agantam. Akvāsas ā vavakant: krudhi avai, kard aghnutai

vividvant-svas: manus patis varnām avisāms karnauti svabhjam

gharmam vastram avibhjams ka varnā na asti. Tat kukruvants avis

agram ā bhugat.

Uma tradução aproximada para o português seria:

Uma ovelha que não tinha lã viu cavalos, um puxando uma carro-

ça pesada, um carregando um grande fardo, e um carregando um

homem rapidamente. A ovelha disse aos cavalos: “meu coração me

dói ao ver um homem conduzindo um cavalo”. Os cavalos disseram:

“ouça, ovelha, nossos corações nos doem ao vermos isto: um ho-

mem, o senhor, transforma a lã de uma ovelha em uma vestimenta

quente para si e a ovelha não tem lã”. Tendo ouvido isto, a ovelha

foge para o campo.

Embora vários pesquisadores tenham refinado o tratamento lin-

guístico dado aos termos do protoindo-europeu por Schleicher,

apresentamos esta versão, de 1863, para mostrar que, uma vez que

a reconstituição é feita a partir dos dados das línguas derivadas que

podem ser atestadas através de inscrições (no caso das línguas mor-

tas que deixaram material escrito, como o latim, o grego antigo e o

sânscrito) e daquelas que ainda possuem falantes (como é o caso do

português, inglês, russo, romeno, entre outras), algumas palavras e

morfemas apresentam semelhanças tanto com o latim como com o

português, uma língua já mais afastada. Alguns exemplos são: *avis

do PIE assemelha-se muito com ovis em latim e mesmo com “ovelha”

em português. *Magham, “grande”, deriva o latim magnum, que resul-

ta em formas eruditas portuguesas como “magnitude” e “magnífico”.

Capítulo 01Do Indo-Europeu ao Latim...

19

*Manum assemelha-se com o radical latino homin- “homem”, mas

mais ainda com o inglês man e o alemão Mann. *Agram, “campo”,

deriva a forma latina agrum, que em português também é radical

erudito que podemos encontrar em “agricultura”, “agrícola”, entre

outros. Das formas morfológicas, podemos verificar a terceira pes-

soa do singular do presente do indicativo em *ast, “tem”, que apre-

senta o morfema –t assim como em habet no latim, ou ainda em hat

no alemão. Um estudo sobre o PIE estaria longe do escopo deste

livro, mas maiores informações podem ser encontradas em biblio-

grafia especializada sobre o indo-europeu e línguas derivadas dele

(veja-se, por exemplo, Mallory; Adams, 2006).

1.3 Do protoindo-europeu ao latim

Uma história do protoindo-europeu demandaria muito mais do que pretendemos com este livro, mas algumas características impor-tantes da passagem dos dados hipotéticos reconstruídos para o que conhecemos do latim serão importantes para entender alguns para-lelos entre esse movimento e os movimentos posteriores da passagem do latim ao português.

Na morfologia, podemos verificar alguns fenômenos interessantes de simplificação ocorridos no percurso PIE-latim. Por exemplo, o PIE declinava seus substantivos em número e gênero, como em português, mas também em caso, como em latim, grego, sânscrito e algumas lín-guas modernas como o russo e o alemão. Trata-se da flexão morfoló-gica relacionada com funções sintáticas, como a que vemos ainda nos resquícios de morfologia casual em português nos pronomes pessoais “eu” (forma de sujeito) e “me”. Dizemos “eu vi o cachorro” e “o cachorro me viu” com formas diferentes para o pronome “eu” por causa do mes-mo fenômeno. Considera-se que o PIE possuía oito casos gramaticais, sendo eles o nominativo (caso basicamente de sujeito), acusativo (caso do objeto direto, como o “me” do português), o vocativo (o caso usado quando chamamos um interlocutor), o genitivo (caso de posse, como o genitivo woman’s “da mulher” do inglês), o dativo (caso do objeto indi-

Forma átona que serve, por exemplo, como obje-to; no próximo capítulo exploraremos mais a fundo o conceito de caso e suas manifestações.

História da Língua

20

reto), o ablativo (caso usado geralmente para denotar afastamento espa-cial, proveniência, entre outras coisas, como em “ele veio da fazenda”), o locativo (caso que se usava para dizer algo como “estou em casa”) e o instrumental (caso usado para especificar o meio ou o instrumento que se usou para fazer algo, como em “ele quebrou a porta com o machado”).

No próximo Capítulo, explicaremos melhor o funcionamento dos casos

em latim, mas, por ora, é importante saber que é seguro afirmar que o

PIE possuía esses oito casos, mas na passagem para o latim sobrevive-

ram apenas os seis primeiros, de modo que o locativo e o instrumental

tiveram seus usos acolhidos pelo ablativo, que passou a ser um caso

bastante polivalente. Alguns poucos exemplos esparsos de locativo

são encontrados em latim, mas basicamente o sistema de casos latino

apresenta: o nominativo, o vocativo, o acusativo, o genitivo, o dativo e

o ablativo. Como um exemplo de derivação diferente do PIE para uma

língua clássica, o sânscrito antigo manteve os oito casos listados acima.

Outra característica interessante para este panorama é a da flexão de número dos nomes. O PIE, assim como o grego antigo, flexionava os nomes em singular, plural e dual. Este último número denota dois obje-tos ou elementos. Assim, se “casa” significa basicamente “uma casa” em oposição a “casas”, que podemos entender como “mais de uma casa”, o PIE e o grego ainda tinham uma flexão para dizer “duas casas”. O latim não conservou a categoria do dual como flexão dos nomes, que sobre-viveu apenas em formas como duo, “dois”, ambo, “ambos”, que também temos em português e que denotam somente pares de objetos.

Há várias características do PIE que foram transmitidas ao latim diretamente, como a terminação -m de acusativo singular, que deriva do *-m PIE. Outro exemplo seria o *-a, terminação de neutro plural do PIE que aparece exatamente dessa forma em latim. Se você já estudou latim, seria interessante lembrar ou retomar o que viu.

Isso não significa, de modo algum, que essas

sejam as mudanças mais importantes nem as úni-

cas que ocorreram do PIE para o latim.

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

21

2 Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o português?Neste Capítulo, fazemos uma breve história do latim, identificando as

diferenças básicas entre o que chamamos de latim clássico e latim vulgar, bem

como entre seus períodos históricos, como o latim arcaico e o latim tardio.

Além disso, avaliamos algumas diferenças básicas entre as estruturas do latim

clássico e vulgar.

2.1 Brevíssima história do latim

O latim era a língua falada na região central da Itália, chamada de Lácio, durante o primeiro milênio antes de Cristo e que, juntamente com o Império Romano, estendeu-se por grande parte da Europa, pelo norte da África e por diversas regiões da Ásia, até se transformar, através do curso natural das línguas, em dialetos incompreensíveis entre si, que acabaram dando origem às línguas românicas. Para entendermos a his-tória do português, será necessário compreender o percurso que o latim trilhou até se diferenciar em línguas românicas, especialmente porque a língua que resultou nos romances e nas línguas românicas modernas

Bretanha

Espanha

Africa

Italia

RomaMacedonia

Grecia

Asia Menor

Mar Negro

Judeia

Egito

Rio Nilo

Mar Mediterraneo

Gália Mar Cáspio

Mar Vermelho

Oceano Atlantico

Mapa – O Império Romano no seu apogeu. (Adaptado do mapa disponível em: <http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/262/268312/art/figures/

KISH106.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)

História da Língua

22

não foi o mesmo latim que chamamos de clássico hoje, mas sim o latim falado pelas pessoas comuns, no dia a dia, nas mais diversas interações: o chamado latim vulgar.

Para termos uma ideia do ímpeto expansionista do Império Roma-no e de seu poderio, vejamos no mapa da página anterior as regiões que pertenceram a ele durante seu apogeu; nunca é demais dizer que o latim era levado a todas as regiões conquistadas.

O latim que normalmente aprendemos hoje corresponde à variante literária e estilizada de um período muito importante para a história do Ocidente: o período que, de maneira geral, compreende os séculos I a.C. e I d.C. Nesse período, grandes autores escreveram obras literárias que ajudaram a moldar as bases culturais, políticas, sociais, filosóficas e religiosas da Europa e, consequentemente, do mundo ocidental. Den-tre esses autores, podemos destacar o poeta Virgílio, que, entre outras obras, escreveu a Eneida no final do século I a.C. Nesse poema, Virgílio narra as origens históricas e mitológicas da grandiosa Roma, governada, no seu tempo, por Augusto. Após longas décadas de guerras civis, havia sido declarado imperador em Roma, e criaria um período de paz e pros-peridade para a capital de um Império que, se já vinha se expandindo enormemente ao longo dos séculos precedentes, levaria as fronteiras de seus domínios para lugares tão distantes quanto as Ilhas Britânicas, a costa do Norte da África (incluindo o Egito), e vários territórios do atual Oriente Médio, até as bordas do Mar Negro.

Estudamos o latim por meio de seus registros escritos, que são dos mais

variados tipos, como inscrições em muros, monumentos fúnebres, do-

cumentos transcritos e copiados em várias épocas, citações de textos

mais antigos em textos de autores mais recentes, entre outras fontes.

Assim, há documentos de vários períodos, e há, obviamente, escassez

maior de registros escritos de estágios mais antigos da língua. A história

do latim que faremos aqui é, portanto, bastante resumida e de caráter

didático.

Virgílio sentado entre as musas Clio, da história, e Melpômene, da tragédia. Sousse, séc. III d.C.

De nome Gaio Júlio César Otaviano, Augusto rece-

beu esse título quando se tornou o primeiro impera-

dor de Roma. Nasceu em 63 a.C. e morreu no ano 14

da nossa era. Sob seu im-pério, cessam quase cem

anos de guerras civis entre os romanos, em especial a

mais importante, travada entre seu tio, Júlio César, e

Pompeu.

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 a.C.

perto de Mântua, na Gália Cisalpina, e morreu no ano

19 a.C.

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

23

2.1.1 Latim arcaico

Os primeiros registros do latim escrito encontrados datam de VII ou VI a.C. Mais tarde, por volta do século III a.C., começam a ser pro-duzidos textos literários em latim, em grande parte através de um pro-cesso de assimilação da cultura e literatura gregas do período.

Roma, já então uma potência, conquistava territórios de vários fun-dos culturais diferentes, e, em pouco tempo, por volta do século II a.C., o Mar Mediterrâneo já era praticamente dominado pelos romanos.

É desse período, por exemplo, o texto literário mais antigo do qual temos notícia escrito em latim: uma tradução da Odisseia de Home-ro feita pelo escravo grego Lívio Andronico para propósitos educacio-nais. Do texto de Lívio sobreviveram apenas alguns fragmentos, e temos acesso a menos de cem versos da obra completa. Nesse período, ainda, outros autores produziram textos mais ou menos adaptados da tradição grega, como as comédias de Plauto e Terêncio, de gosto popular, que se-guem a tradição da Comédia Nova grega, e as tragédias (em grande par-te perdidas) de Névio e Ênio, por exemplo. Seguindo o caminho aberto por Lívio, Névio e Ênio também escrevem os primeiros textos épicos em latim, dos quais, infelizmente, também restaram apenas fragmentos. O latim desse período é ainda considerado menos polido e estilizado do que o que viria a ser utilizado no período seguinte, quando a língua literária é levada ao seu ápice criativo.

2.1.2 Latim clássico

Convencionou-se chamar de latim clássico o estilo literário culto da língua ao longo do primeiro século a.C. até o início do primeiro século da Era Cristã. São desse período a prosa elaborada do político, filósofo e orador Cícero; a poesia lírica e a épica nacional de Virgílio, com as suas Bucólicas e a sua Eneida; e a lírica amorosa de Catulo, Propércio, Tibu-lo, Horácio e Ovídio, além de textos de historiadores como Tito Lívio. Em geral, o latim que ensinamos hoje em dia é a língua literária desse período, tanto por causa da beleza do estilo cuidadosamente trabalha-do desses autores quanto pelo fato de que grande parte do corpus mais substancial dos textos clássicos é literário, o que nos deixou sem muito

A Comédia Nova grega surge no período da virada do século IV para o III antes de Cristo e baseia--se em tramas familiares, convencionais, com perso-nagens caricaturais, como o velho imbecil, seu filho sem responsabilidades e, em geral, apaixonado por uma moça que não pode se casar com ele, o escravo sagaz do velho que ajuda o filho em suas desventu-ras etc. O principal autor grego dessa tradição é Menandro.

Estátua do imperador Augusto. Museu do Vaticano

História da Língua

24

acesso aos outros registros linguísticos do período. Ao contrário do que se pensa, não é do latim clássico que as línguas românicas se desenvol-veram, mas sim das variantes faladas ao longo da história do latim.

2.1.3 Latim culto

O latim culto era a variedade falada pela classe culta de Roma. Esse dialeto era a base do latim clássico, a variante literária, mas não se confunde com ela. O latim culto era regido pelas mesmas regras gramaticais através das quais estudamos latim, mas certamente muito menos estilizado do que a língua literária. Documentos escritos nessa variedade linguística são menos comuns, mas é possível encontrar esse tipo de registro, por exemplo, em cartas de autores antigos, como as de Cícero para seu irmão ou as de Sêneca para sua mãe, nas quais a estilização e o trabalho estético consciente com a linguagem são menos intensos, ainda que presentes. Nas cartas, portanto, temos acesso ao dialeto que as pessoas cultas escreviam quando não estavam preocupa-das com a criação estética.

2.1.4 Latim vulgar

A variedade do latim chamada de latim vulgar é a língua do povo romano em geral. Os registros dessa língua são mais difíceis de encon-trar, pois não se escrevia nessa variante de propósito, mas dão testemu-nhos muito interessantes da evolução do latim. As inscrições encontra-das em muros, em banheiros públicos, e até mesmo em obras literárias que tentavam retratar a variedade linguística nos mostram uma língua viva, muito frequentemente aberta às mudanças que ocorrem natural-mente nas línguas, especialmente em se tratando da língua de um im-pério que se espalhou por regiões com substratos linguísticos bastante diferentes.

Um texto extremamente interessante é o chamado Appendix Pro-bi, anônimo, provavelmente datado do século III a.C., que se constitui simplesmente de uma lista na forma de “X non Y”, que funcionaria para evitar que os falantes usassem as formas consideradas incorretas, Y, e usassem as formas cultas, X. Um dos exemplos interessantes do Appen-dix é a linha: auris non oricla. Essa linha nos diz muita coisa sobre como

Um exemplo de obra literária que retrata varian-

tes do latim é o romance chamado Satyricon, de

Petrônio, autor do século I d.C., que apresenta longas

passagens que tentam simular a língua do povo

de Roma.

Sobre os substratos linguísticos das regiões romanizadas, veja-se o

Capítulo III.

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

25

as pessoas falavam e sobre como a língua seguia seu curso de mudança natural. A forma auris, em latim culto, que significa “orelha”, na fala po-pular possivelmente recebia o sufixo diminutivo –cula, resultando em auricula, “orelhinha”. Daí para a forma oricla, que deveria ser evitada, temos a mudança do ditongo au para simplesmente o, e a queda da vo-gal u entre c e l.

Ao estudarmos a passagem do latim para o português, veremos que

é sistemática e regular essa mesma mudança de ditongos a vogais

plenas. Além disso, veremos que frequentemente formas como –cla

resultam em “-lha” e que vogais como i podem resultar em e. Assim,

“orelha” em português descende diretamente de auris ou de oricla?

Parece claro que, ao menos nesse caso, a instrução do Appendix não

funcionou. Quase vinte séculos depois, sobrevive a forma “errada”!

Curiosamente, como vimos acima, oricla já era uma forma diminuti-

va, então, etimologicamente, quando dizemos “orelha”, remetemo-

-nos historicamente ao jeito de dizer “orelhinha” em latim, seguindo

o estilo do dialeto popular latino. O mesmo se dá com a nossa pala-

vra “abelha”, que deriva do latim apicula, diminutivo de apis, o que

mostra que o diminutivo em latim vulgar era bastante utilizado e

que várias formas das línguas românicas derivam de substantivos

em sua forma diminutiva.

Curiosamente, a pronúncia de au como o, que já ocorria em latim, como quando o próprio Cícero escreveu oricula em suas cartas, em tom jocoso, portanto já fazendo parte do chamado sermo vulgaris ou plebeius (língua vulgar ou do povo, denominação do próprio Cícero), acaba se transformando em um fato fonético na passagem do latim vulgar para as línguas românicas.

É fundamental, portanto, entender que o conceito de latim vulgar ul-

trapassa fronteiras temporais ou geográficas e que os exemplos de tex-

tos escritos nessa variante do latim são colhidos ao acaso, já que não

se escrevia dessa forma de propósito. Assim, o material do qual tiramos

conclusões é esparso, inconstante e muito variado em sua natureza.

De onde vem, por exem-plo, “auricular” em portu-guês. Essa é uma palavra que, como foi muito frequente na história do português, foi empresta-da do latim muito tempo depois de a forma “orelha” já estar em uso pelos falantes de português. Esse tipo de empréstimo é considerado “erudito”, pois os falantes voltam ao latim para recuperar formas que, quando de-pois acolhidas pela língua, vivem lado a lado com as formas populares que já existiam. Os exemplos são muitos, como a forma popular “maduro” e a for-ma erudita “maturidade”, vindos do latim maturus, e a forma popular “pai” que sobrevive juntamen-te com a forma erudita “patronímico”, ambos do latim pater, patris.

História da Língua

26

2.1.5 Latim tardio

Após o período do latim clássico, o latim continuou sendo usado como língua do Império Romano, que cresceu cada vez mais, e poste-riormente tornou-se a língua oficial da Igreja Católica ocidental. Assim, ao longo de muitos séculos, o latim foi usado como língua universal para relações internacionais, para a ciência, para administração do Império e da Igreja, e, durante a Antiguidade e a Idade Média, tudo que fosse importante era escrito em latim. Aos poucos, as comunidades foram de-senvolvendo seus dialetos de forma que se afastassem mais e mais do la-tim, dando origem a línguas diferentes, mas a língua escrita continuava a seguir, na medida do possível, os padrões do latim culto, de forma que temos muito material escrito em latim “culto” por falantes nativos de outras línguas ou de outras variedades do latim. Esses registros escritos são bastante abundantes. Como exemplo, temos desde a tradução latina dos textos bíblicos, a Vulgata, vertida por São Jerônimo para o latim nos fins do século IV, até os documentos portugueses de administração e legislação, passando pela filosofia medieval e renascentista.

Muito do que se considera latim tardio, com certa frequência, foi es-

crito por falantes de dialetos já bastante afastados do latim culto

ou falantes de outras línguas plenamente desenvolvidas. Assim, é

muito comum encontrarmos traços de latim vulgar nos textos des-

ses períodos, mesmo quando os autores pretendiam escrever em la-

tim culto. As fontes do latim vulgar incluem, portanto, textos tardios

como a Vulgata, as vidas de Santos, os textos de Editos e Concílios

da Igreja, entre outros. Mais uma vez, é importante ressaltar que as

fronteiras entre as variedades linguísticas do latim são muito difu-

sas, por isso muito cuidado é necessário ao tratar dessa questão.

2.2 Características do latim clássico e do latim vulgar

Uma vez que seria muito complexo e muito distante dos objetivos desse livro apresentar um panorama vasto da estrutura do latim clás-

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

27

sico, esta sessão apresentará as características mais importantes do la-tim vulgar em contraste com o clássico para entendermos a história das línguas românicas, especialmente a do português. Os fenômenos com que lidamos aqui são relativamente comuns a quase todos os testemu-nhos do latim vulgar encontrados, e serão ilustrados na sequência com algumas passagens do já citado Appendix Probi. Selecionamos apenas algumas características do latim vulgar para comparar com o latim clás-sico, e mais detalhes poderão ser obtidos em Castro (2006), Ilari (1992) e Renzi (1982), por exemplo. As características serão apresentadas nos domínios da sintaxe, morfologia, fonologia e léxico.

2.2.1 Sintaxe

a) A ordem de palavras do latim clássico era relativamente livre, uma vez que a estrutura da língua permitia variações comple-xas, que se aliavam à estilização dos textos literários, resultando em textos que apresentam bastante variedade de ordem. Isso se devia ao fato de que a sintaxe não dependia apenas da ordem das palavras na oração, mas também da característica morfo-lógica dos casos. No entanto, a ordem básica, ou não marcada, da oração era sujeito – objeto/complemento – verbo, ou SOV. Assim, ao dizer uma frase como “Pedro vê Paulo”, um romano escrevendo em latim clássico utilizaria a ordem Petrus Paulum videt. A ordem fundamental das palavras no latim vulgar passa a ser sujeito – verbo – objeto/complemento, ou SVO. Essa ten-dência será adotada por todas as línguas românicas.

b) A ordem de palavras no sintagma nominal não marcada no latim clássico era determinante – determinado, como quando um substantivo é modificado por um adjetivo: felix homo, “ho-mem feliz”. No latim vulgar e nas línguas românicas derivadas, a ordem básica passa a determinado – determinante, como em homo felix. Assim como com relação à ordem fundamental da frase, o latim clássico apresentava algumas variações nas pos-sibilidades dessa ordem, dependendo do tipo de determinante. Contudo, no latim vulgar a ordem passa a ser mais fixa.

c) O latim clássico, como já dissemos, apresentava seis casos gra-maticais para as palavras das classes nominais (substantivos,

História da Língua

28

adjetivos e pronomes). Os casos se realizavam através de termi-nações morfológicas específicas que funcionavam para marcar as funções sintáticas das palavras na oração. Para exemplificar-mos o funcionamento dos casos, vejamos as seguintes orações:

1) Pedro vê Paulo.

2) Paulo vê Pedro.

Essas duas orações dizem coisas bastante diferentes, pois cada uma representa um evento diferente: na primeira, não se pode afirmar que Paulo também vê Pedro; e, na segunda, o contrário se dá. Isso acontece em português em virtude da ordem das palavras, pois a estrutura do evento de o sujeito ver o objeto depende em grande parte da posição do sujeito antes do verbo e do objeto depois do verbo. Em línguas com sistemas de casos plenamente desenvolvidos, como o latim, o sujeito da oração terá que ser marcado com o caso nominativo e o objeto com o caso acusativo. Assim, em latim clássico, as duas orações vão apresentar terminações diferentes para os nomes, como podemos ver a seguir:

1a) Petrus Paulum videt.

2a) Paulus Petrum videt.

Como se pode observar, temos duas formas para cada nome, Petrus (sujeito) e Petrum (objeto), nos casos nominativo e acusativo, respecti-vamente. A consequência básica desse sistema é que a ordem de pala-vras não determina sozinha a estrutura sintática da oração, de modo que (1a) pode ser reescrita em várias ordenações diferentes sem alterar o significado básico da oração:

1a) Petrus Paulum videt = Paulum Petrus videt = Paulum videt Petrus = videt Paulum Petrus = “Pedro vê Paulo”.

Em português, o único resquício do sistema de casos é encontrado nos pronomes pessoais, de modo que “eu” é a forma de nominativo e “me” é a forma de acusativo, seguindo a declinação nominal latina, em que havia ego (nominativo), me (acusativo), e mihi (dativo, que resultou em mim no português). Não temos problema para formar frases como “Pedro me viu” e “Eu vi Pedro”, por exemplo, e perceber que “eu” é o su-jeito da primeira e “me” é o objeto da segunda. Também não trocamos as formas, como “Pedro eu viu” e “Me vi Pedro”. A única diferença é que, em latim clássico, todos os substantivos, adjetivos e pronomes se flexio-

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

29

navam em seis possíveis casos, no singular e no plural, em um sistema um pouco mais complexo do que esse descrito.

Os outros casos, já mencionados no capítulo anterior, eram o voca-tivo, usado para interpelar o interlocutor, como em Petre, huc veni!, “Ó Pedro, venha cá!”; o genitivo, para indicar basicamente posse, como em exercitus Petri fortis est, “O exército de Pedro é forte”; o dativo, que deno-ta normalmente complementos indiretos do tipo Petro donum do, “Dou um presente para Pedro”; e o ablativo, que pode significar várias coisas, entre elas afastamento a partir de um local visto como ponto de referên-cia, como em abi Petro, “sai de perto do Pedro”, instrumento/modo, como em hoc scivi Petro, “eu soube disso através de Pedro”. Apesar de a forma de dativo e ablativo serem a mesma para o substantivo Petrus, diferentes classes de substantivos apresentam formas diferentes para os casos.

A questão relevante aqui é que o latim vulgar foi perdendo os qua-

tro últimos casos, de modo que o sistema básico passou a ser uma

oposição entre nominativo e acusativo. Os casos anteriores foram

sendo substituídos pelo acusativo com preposições, como de + acu-

sativo no lugar do genitivo, a + acusativo no lugar do ablativo, por

exemplo. Esses dois usos preposicionados anteciparam também o

desenvolvimento das línguas românicas, que utilizam preposições

em substituição aos casos tradicionais. O latim clássico também

apresenta preposições, e, normalmente, cada uma delas deveria ser

acompanhada de um caso específico. Nos casos das preposições de

(que significava basicamente “a respeito de”) e a (ou ab, antes de

palavra iniciada por vogal, significando “para longe de”), o caso obri-

gatório seria o ablativo. Assim, uma explicação possível para a perda

dos casos é que, na passagem para o latim vulgar, anteriormente

a essa perda, as preposições tiveram suas regências alteradas, com

uma generalização do uso do acusativo após a maioria das prepo-

sições. Isso gerou confusão nos usos de ablativo, genitivo, dativo e

acusativo, o que causou progressivamente a menor necessidade da

existência dos casos morfologicamente marcados, resultando no

uso cada vez menos frequente de casos que não fossem nominativo

e acusativo.

História da Língua

30

Assim, o sistema casual do latim vulgar apresentava-se muito mais enxuto com relação ao do latim clássico, como podemos ver na compa-ração entre dois paradigmas do mesmo substantivo:

Latim clássico dominus, i (segunda declinação, masculino, “senhor”):

Caso Singular PluralNominativo dominus domini

Vocativo domine dominiAcusativo dominum dominosGenitivo domini dominorumDativo domino dominis

Ablativo domino dominis

Latim vulgar dominus, i, “senhor”:

Caso Singular PluralNominativo dominus dominiAcusativo dominum dominos

d) O latim clássico não possuía a classe de palavras dos artigos definidos e indefinidos como temos em português. Os subs-tantivos poderiam receber determinação através de pronomes, e alguns deles significavam coisas próximas àquelas que signi-ficamos com os artigos, como o pronome quidam, “um certo”, como em quidam Petrus, “um certo Pedro”, “um tal de Pedro”. No latim vulgar, contudo, alguns pronomes demonstrativos co-meçam a ser usados com funções próximas às do artigo defi-nido, como o pronome ille, illa, illud (“aquele, aquela, aquilo”), que passa a cumprir a função de artigo definido “o, a, os, as”, ipse, ipsa, ipsum (“o mesmo, a mesma”), que também é encon-trado com o sentido mais próximo de “o, a, os, as”; e o pro-nome unus, una, unum, anteriormente numeral, que passa a ser usado como artigo indefinido “um, uma, uns, umas”. Como veremos nos próximos capítulos, é a partir desses usos específi-cos do latim vulgar que as línguas românicas desenvolvem seus artigos definidos e indefinidos.

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

31

2.2.2 Morfologia

a) Declinações nominais são conjuntos de nomes com a mesma característica morfológica, como os nossos nomes cujo radical termina em –a, –o, ou –e (“casa”, “carro”, “estudante”). As decli-nações nominais em latim clássico eram cinco:

Ӳ a primeira, dos nomes de tema em –a, normalmente femini-

nos, mas também alguns masculinos (ex. luna, “lua”, feminino,

e poeta, “poeta”, masculino);

Ӳ a segunda, de tema em –o, normalmente masculinos, mas

também neutros e alguns femininos (ex. dominus, “senhor”,

masculino, ficus, “figo”, “figueira”, feminino, somnium, “sonho”,

neutro);

Ӳ a terceira, nomes de tema terminado em consoantes ou em

–i, dos três gêneros (ex. fur, “ladrão”, masculino, aedis, “tem-

plo”, “casa”, feminino, nomen, “nome”, neutro);

Ӳ a quarta, de tema em –u, dos três gêneros, com neutros mais

raros (ex. exercitus, “exército”, masculino, manus, “mão”, femini-

no, cornu, “chifre”, neutro;

Ӳ a quinta, de tema em –e, normalmente femininos e raramen-

te masculinos (ex. res “coisa”, feminino, dies, “dia”, feminino ou

masculino).

Na passagem do latim clássico para o latim vulgar, observa-se uma simplificação dos paradigmas de declinação, antecipando os sistemas nominais das línguas românicas, que manteriam as declinações vulga-res. Assim, temos o desaparecimento da quarta e da quinta declinações e o fim dos femininos em –us, simplificando o sistema para algo mais próximo do que temos em português:

Ӳ femininos em –a;

Ӳ masculinos e neutros em –us;

Ӳ comuns (masculinos e femininos) em –e.

História da Língua

32

b) Juntamente com a simplificação das declinações nominais, desaparece o terceiro gênero dos nomes, o neutro, como pu-demos perceber pelo resultado da declinação nominal simpli-ficada acima. O gênero neutro distinguia-se morfologicamen-te do masculino e do feminino, mas, com a simplificação das declinações e com a dificuldade de separação formal entre o gênero neutro em oposição ao masculino e ao feminino, houve a incorporação daquele às declinações restantes. Assim, nomes como templum, neutro da segunda declinação em latim, pas-sam a masculino no latim vulgar, já que os temas em –o, que se realizam no nominativo como –us ou –um, se generalizam como fundamentalmente masculinos.

c) Quanto ao sistema verbal, várias mudanças foram percebidas na passagem para o latim vulgar. Entre as mais importantes, podemos mencionar a simplificação dos paradigmas de conju-gação verbal. O latim clássico possuía cinco modelos de conju-gação, como podemos ver:

Ӳ a primeira conjugação, dos verbos com vogal temática a:

amo, amas, amare (amar);

Ӳ a segunda, dos verbos com vogal temática e: habeo, habes,

habere (possuir, ter);

Ӳ a terceira, dos verbos sem vogal temática, como: dico, dicis,

dicere (dizer);

Ӳ a quarta, dos verbos com vogal temática i, como: audio, au-

dis, audire (ouvir);

Ӳ a mista, dos verbos sem vogal temática, mas com conju-

gação parecida com a quarta: capio, capis, capere (tomar,

capturar).

As diferenças fundamentais entre as cinco conjugações são o fato de que as conjugações temáticas ou vocálicas (primeira, segunda e quar-

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

33

ta) possuem vogais longas na posição final do tema, o que faz que ela seja acentuada quando paroxítona (ou seja, habére tem acento tônico na segunda sílaba, enquanto dícere tem na primeira). Alguns verbos de conjugações que não possuíam vogal temática (a terceira e sua deriva-da, a mista) foram sendo incorporados pelas temáticas, de modo que, no latim vulgar, o sistema de conjugação verbal se simplifica para três modelos: os verbos de tema em a, os de tema em e e os de tema em i, com alguns verbos ainda na terceira conjugação. Outros verbos, ante-riormente não pertencentes a nenhuma conjugação por causa de suas irregularidades, regularizam-se e passam a pertencer a alguma das con-jugações. Podemos citar como exemplos:

Ӳ fídere (confiar), de fido, da terceira conjugação, passa a fidá-

re, da primeira;

Ӳ cádere (cair), da terceira conjugação, passa a cadére, da se-

gunda;

Ӳ fúgere (fugir), da terceira conjugação, passa a fugíre, da

quarta;

Ӳ posse, do verbo irregular possum (poder), regulariza-se

como pótere, da terceira conjugação.

d) Quanto à categoria de voz verbal, o latim possuía as vozes ativa, passiva e depoente. A voz depoente, derivada da voz média do PIE, apresentava-se com morfologia de voz passiva e significa-do de voz ativa, e os verbos da voz depoente não poderiam ser flexionados em duas formas, ativa e passiva, como os verbos normais. Assim, um verbo regular como amo, “amo”, poderia receber morfologia de voz passiva, amor, para significar “sou amado”. Os verbos depoentes, por sua vez, só apresentavam a forma depoente, como minor, “eu ameaço”, ou morior, “eu mor-ro”, mori, “morrer”. No latim vulgar, a voz depoente desapare-ce, e os verbos que anteriormente se apresentavam nesta voz regularizam-se, como morio, “eu morro”, e moríre, “morrer”.

O acento tônico não era marcado ortograficamen-te em latim, e o utilizamos aqui apenas para fins didáticos.

História da Língua

34

e) A morfologia dos tempos verbais também sofre mudanças substanciais, como o desenvolvimento de um futuro perifrásti-co no lugar do futuro sintético do latim clássico. Em latim clás-sico, o futuro dos verbos se fazia da seguinte forma: para um verbo como amo, o futuro do presente do modo indicativo era feito com o infixo modo-temporal –bo, –bi, como em amabo, amabis, amabit, “amarei, amarás, amará”. Esse modelo era apli-cado aos verbos da primeira, segunda e quarta conjugações. Para a terceira conjugação e sua derivada mista, o futuro era feito com os infixos –a e –e, como em dicam, dices, dicet, “direi, dirás, dirá”. O latim vulgar deixa de usar essas flexões para o futuro e desenvolve um futuro analítico (com perífrase verbal) formado por infinitivo + habeo: amare habeo substitui amabo e dicere habeo substitui dicam. É desse futuro analítico do latim vulgar que as línguas românicas desenvolverão seus tempos futuros, como ocorreu em português, inicialmente com o au-xiliar “hei” (derivado de habeo) após o infinitivo, como “cantar hei”, passando a formas como “hei de cantar”, até chegar em “cantarei”.

f) Várias outras mudanças ocorreram, como a perda da voz passi-va sintética, a perda de alguns tempos em alguns modos (como o perfeito do subjuntivo), o desenvolvimento do modo condi-cional, que não existia em latim clássico, através da perífrase amare habebat, “deveria amar”, “amaria”.

2.2.3 Fonologia

a) Em latim clássico, as vogais poderiam ser, além de átonas ou tônicas, longas ou breves. Assim, uma vogal a longa seria per-cebida diferentemente de sua correspondente breve, como se se tratasse de uma nota musical mais longa em oposição a uma mais breve. Convenciona-se marcar essa diferença na escrita através dos sinais diacríticos “mácron” para as longas (ā, ē, ī, ō, ū) e “braquia” para as breves (ă, ĕ, ĭ, ŏ, ŭ). A diferença en-tre as vogais longas e breves era fonológica, ou seja, um par de palavras como ĕst e ēst apresentava significados diferentes (a primeira, “é”; a segunda, “come”).

De amor, “sou amado”, o latim vulgar fez amatus

sum, “sou amado”, forma que anteriormente signifi-

cava “fui amado”.

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

35

O latim vulgar perde a característica fonológica da duração das vo-gais e simplifica o sistema vocálico da seguinte maneira:

Latim Clássico ă ā ĕ ē ĭ ī ŏ ō ŭ ū

Latim Vulgar a

ε (e aberto)

e (e fechado) i ɔ

o (o fechado) u

O sistema vocálico do latim vulgar é aquele que vai servir de base

para as línguas românicas, e, especialmente no caso do português,

excluídas as vogais nasais que irão se desenvolver em outro mo-

mento, o sistema vocálico do latim vulgar pouco se altera.

Com relação ao sistema fonológico como um todo, a consequência da perda da quantidade é a fixação do acento de intensidade com valor distintivo, como na distinção entre pérvenit e pervénit, do latim vulgar, que, em latim clássico, se dava em termos de vogal longa versus breve: pervĕnit e pervēnit (“chega” e “chegou”).

b) Com relação ao sistema consonantal, ocorreram mudanças muito profundas. Isso fica claro ao compararmos o sistema do latim clássico com o sistema postulado como sendo o do latim vulgar, conforme apresentado por Ilari (1992, p.77-87):

Latim Clássico

bilabiais lábio-dentais dentais-alveolares palatais velares uvularesoclus. surdas p t k, kw

oclus. sonoras b d g, gw

nasais m nlaterais l

vibrantes rfric. surdas f s h

fric. sonorassemivogais w j

*[kw] e [gw], grafados como qu e gu são consoantes labiovelares.

História da Língua

36

Latim Vulgar

bilabiais lábio-dentais dentais-alveolares palatais velares uvularesoclus. surdas p t k

oclus. sonoras b d g nasais m n

laterais lvibrantes r

fric. surdas f s hfric. sonoras vsemivogais w j

O contraste entre as duas tabelas acima apenas mostra uma pri-meira diferenciação entre o sistema consonantal do latim vulgar com relação ao latim clássico; mas, obviamente, as mudanças não pararam por aí. Podemos dizer, grosso modo, que as línguas românicas alteram o sistema do latim vulgar representado logo acima e fixam cada uma o seu próprio sistema consonantal. Não obstante, algumas outras mudanças podem ser apontadas como tendo ocorrido, em diferentes graus, por toda a România; são elas:

a) Palatalização das velares antes de vogais anteriores: ou seja,

o fone [k] e o fone [g] seguidos de [e] e [i] passaram a ser re-

alizados com palatalização, evoluindo diferentemente nas

línguas românicas. Por exemplo, temos em português [s]

e em espanhol [ө] como resultado dessa evolução de [k]: k

(e,i)>kj(e,i)>[tʃ]>[s]>[ө] [kinkwe] > [sinko]

b) Perda do apêndice labial nas labioalveolares: as consoantes

latinas [kw] e [gw] perderam seu apêndice labial, resultan-

do apenas em [k] ou [g]: [kinkwe] > [sinko], [kwere] > [kεr]

c) Africação da labial sonora /b/: como em caballu > cavalo

d) Desenvolvimento de consoante palatal a partir de /j/: como

em iugu > jugo

e) Passagem de /w/ a consoante bilabial sonora: como em

vinu [uinu] > vinho

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

37

f) Desaparecimento da aspirada /h/: do latim herba, pronun-

ciado como [herba], chega-se ao português erva, pronun-

ciado [εrva]

g) Sonorização das consoantes surdas intervocálicas: como

em jocat > joga, maturu > maduro

h) Queda das consoantes finais: como em hominem > omene,

lumen > lume

Não podemos esquecer que também houve mudança e evolução na realização dos vários grupos consonantais latinos, como:

a) Grupos iniciais em s-, como sc-, st-, sp-;

b) Grupos de consoantes seguidas de -l, como pl-, cl-, tl-, fl-;

c) Consoante + [j] (com grafia “i”): ti, di, ki, li, ni, pi, bi etc.;

d) Consoante + dental: pt-, ps-, ct-, cs-, gn-, mn-, rs-, ns.

Novamente, cada língua românica evolui de modo próprio, mas é possível identificar características gerais. Para o caso do grupo a), a so-lução adotada pelo português, por exemplo, foi a inserção de uma vogal antes do grupo, e assim temos “escrever” do latim scribere. Para os gru-pos b) e c) a solução foi, via de regra, através de palatalização; assim, em português temos:

b) plenu > cheio

c) folia [folja] > folha

Por fim, para o grupo d) há às vezes queda e às vezes vocalização:

d) fructa > fruta; derectu > direito

2.2.4 Léxico

Também quanto ao léxico, o latim vulgar apresenta tendências claras de mudanças com relação ao latim clássico. O léxico das línguas românicas deriva muito mais substancialmente do latim vulgar. Além disso, muitas palavras do léxico vulgar que, embora existissem, eram menos comuns em latim clássico, foram as formas que resultaram no

História da Língua

38

léxico das línguas românicas. São exemplos desse fenômeno termos como casa, do latim vulgar, que, em latim clássico, significava um tipo muito específico de habitação, um casebre, enquanto que as formas mais tradicionais como domus ou aedis significavam “casa” de maneira mais geral. É, todavia, da forma vulgar que deriva o português “casa”, e não do léxico clássico. Outros exemplos podem ser citados, como “cavalo”, que deriva do latim vulgar caballus, e não do latim clássico equus; ou “campo”, que vem de campus do latim vulgar, que significava “campina” em latim clássico, e não do termo mais comum do latim clássico ager. É importante apontar também para o fato de que, ao longo da história da língua, quando necessário, foram sendo feitos empréstimos de termos mais eruditos para preencher funções semânticas diferentes. Assim, ao lado de “casa”, temos “domicílio” e “edificação”, de domus e aedis; ao lado de “cavalo” temos “equitação”, de equus; e ao lado de “campo” temos “agricultura”, de ager.

Através desse panorama das alterações ocorridas do latim clássico para

o latim vulgar, pretendemos mostrar que foi a partir deste último, mais

dinâmico e vivo do que a língua literária erudita de Roma, que se de-

senvolveram o romance e seus dialetos, que mais tarde se transforma-

ram nas línguas românicas como as conhecemos hoje.

Box 3: Texto comentado

Para verificarmos algumas características do latim vulgar relevan-

tes para a história do português, listaremos algumas das linhas do

Appendix Probi, o documento anônimo citado anteriormente que

apresenta um catálogo de formas “incorretas” à direita e a forma

“correta” iniciando a linha. O Appendix é uma das fontes mais inte-

ressantes do latim vulgar, pois revela características da linguagem

popular que muitas vezes evidenciam tendências de mudanças lin-

guísticas que não seriam controladas pela vontade dos gramáticos

e acabariam se mantendo na passagem para as línguas românicas.

Vejamos algumas das linhas interessantes:

Capítulo 02Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português?

39

3. speculum non speclum

A queda da vogal breve ŭ na forma clássica specŭlum resultava em

speclum, que já antecipa a forma do português “espelho”, com o

acréscimo do e inicial para evitar sílaba iniciada por sp e com a mu-

dança regular de cl em lh.

5. vetulus non veclus

Aqui ocorre o mesmo que com speculum, apenas com o acréscimo

da etapa vetulus > vetlus > veclus.

25. formica non furmica

A mudança do timbre da vogal aqui é semelhante à que ocorre em

alguns dialetos do português, em que o o pretônico é pronuncia-

do mais alto no ponto de articulação, como ocorre, na fala popular,

quando dizemos “durmir” no lugar de “dormir”. O processo também

foi produtivo em mudanças do latim para o português, como em

locus > “lugar”.

53. calida non calda

Mais uma vez, a queda de uma vogal breve pós-tônica parece ser

comum no léxico do latim vulgar, e se trata de uma tendência que

vai ser produtiva na passagem do latim para as línguas românicas.

58. umbilicus non imbilicus

77. flagellum non fragellum

Aqui vemos exemplos de “erros” ortográficos comuns também em

português moderno, que revelam tendências de mudanças fonoló-

gicas. No segundo caso, a passagem da líquida l para o tepe r, fe-

nômeno comum de mudança que caracteriza barbarismo para os

gramáticos tradicionais, mas que foi muito produtivo na passagem

do latim para o português, como vimos em ecclesia > “igreja”.

História da Língua

40

174. rivus non rius

Neste exemplo, vemos a perda da semivogal v (pronunciada, em la-

tim clássico, como o w em “kiwi”), criando um hiato na forma vulgar

da qual derivaremos “rio”.

201. viridis non virdis

Mais uma vez, uma queda de vogal átona breve produz um resul-

tado que é claramente a origem das formas românicas derivadas,

como “verde”.

203. sirena non serena

Aqui, a forma criticada dá testemunho de processos de mudança

bastante comuns também na passagem do latim para o português.

A mudança da vogal i > e vai se seguir da perda do n intervocálico

gerando *serea, que se resolverá no português “sereia”.

219. numquam non numqua

A queda da consoante nasal final aqui resulta em uma forma vulgar

já bastante próxima do resultado em português, “nunca”, faltando

apenas a perda da palatalização [kwa] > [ka].

220. noviscum non noscum

221. vobiscum non voscum

Essas duas entradas dão testemunho importante do uso vulgar de

noscum e voscum no lugar de nobiscum e vobiscum, formas agluti-

nadas da preposição cum com os pronomes “nós” e “vós” no ablativo,

que, em latim vulgar, estavam sendo substituídas pelas formas nos

e vos no acusativo. Na passagem dessas formas para o português

contemporâneo, foi adicionado ainda um segundo “com”, dessa vez

como prefixo, de modo que retemos “com” + “nosco” e “vosco”, eti-

mologicamente acumulando duas preposições de mesmo sentido

na mesma palavra “cum + vos + cum”.

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

41

3 A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

Aqui, investigamos o conceito de România, enquanto unidade linguístico-

-cultural instaurada pela dominação romana em sua extensão de alcance

máximo. Avaliamos algumas características das inovações comuns encontra-

das em toda a România, e também apresentamos informações básicas sobre

algumas das línguas românicas.

3.1 Conceituação de România

O termo romanus foi usado originalmente como sinônimo de ha-bitante da cidade de Roma. Mais tarde, com a expansão do império, o termo foi estendido a todos os cidadãos romanos sob proteção do impe-rador, em todas as províncias. Com o tempo, o termo passou a significar “aquele que não é bárbaro”, ou seja, todos os não estrangeiros. O império atingiu seu apogeu no início do século II d.C., como se pode ver no mapa da página 21, Capítulo 2. Após esse período, por vários motivos, que incluíam a própria vastidão do império, os romanos passaram a ser atacados frequentemente por povos de origem germânica que vinham do norte da Europa, pressionados pela invasão de outro império ao les-te, o dos hunos. Ao conjunto de províncias que constituíram o Império Romano neste período dá-se o nome de România Antiga.

Com as invasões germânicas no Ocidente e eslavas no Oriente, ocorreu uma grande fragmentação política e linguística, e os povos fa-lantes de latim localizados em províncias tão distantes como a Dácia e a Lusitânia mantiveram traços de romanização em graus variados, que de-pendiam, basicamente, da antiguidade da romanização, do período em que ficaram submissas ao Império, e da profundidade dos contatos; es-sas províncias, então, acabaram desenvolvendo dialetos mais ou menos próximos ao latim vulgar. O desenvolvimento da România posterior, ou România Medieval, deu-se em parte por causa desses fatores, mas tam-bém dependeu dos contatos linguísticos com os povos falantes de outras línguas que já se encontravam nos territórios conquistados (falantes das chamadas línguas de substrato), com os falantes das línguas dos povos

História da Língua

42

que vieram a conquistar os territórios romanizados (falantes das línguas de superestrato) e com os povos falantes de línguas como o grego, que conviveram com os falantes de latim em várias regiões em situação de bilinguismo por muito tempo (falantes de línguas de adstrato).

Com a queda do Império Romano, em 476 da nossa era, o conceito de România passou, então, a ser mais cultural e linguístico do que geo-político, e as regiões que tiveram mais contato com a romanização aca-baram por desenvolver dialetos derivados do latim vulgar, que viriam a se transformar nas línguas românicas como as conhecemos. As regiões do Império que foram fracamente romanizadas, como a Inglaterra, a região dos bascos, parte da Bélgica, o norte da África e os Bálcãs, aca-baram desenvolvendo línguas não românicas, ainda que mantivessem influências do latim vulgar como língua de substrato.

A România Moderna compreende todos os territórios de fala ro-mânica após o desenvolvimento das línguas românicas propriamente ditas, que inclui todos os territórios dominados pelos países de fala românica, como a América do Sul, parte do Canadá, alguns países da África e da Ásia, onde vemos o português, o espanhol e o francês como línguas oficiais até hoje.

Podemos ter ideia de como os falantes dos romances já não enten-diam latim por volta do século IX através, por exemplo, do texto do Con-cílio de Tours, convocado por Carlos Magno em 813, que apresenta a de-cisão dos bispos de que se traduzissem as homilias (sermões religiosos) para a rusticam romanam linguam aut Theodiscam, quo facilius possint intellegere quae dicuntur, ou seja, para a “língua romana rústica ou para

Como vimos no capítulo anterior, não há uma fronteira clara entre o la-

tim clássico e o latim vulgar. Da mesma forma, entre o latim vulgar e os

dialetos românicos não se pode estabelecer limites cronológicos claros.

Os dialetos que chamamos de romances têm seu nome derivado da

expressão latina romanice fabulare, ou “falar à maneira dos românicos”,

em oposição a expressões já consagradas, como latine loqui, “falar la-

tim”, que era o modo como os romanos do período clássico se referiam

à sua própria língua.

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

43

a língua germânica, para que se possam entender mais facilmente as coi-sas que são ditas”. Isso já mostra a diferença radical entre a língua latina oficial da Igreja, artificial, e as línguas faladas na região da França.

Já em 842 temos o texto dos Juramentos de Estrasburgo, documen-to mais antigo escrito em uma língua românica, que são juramentos de ajuda mútua pactuados pelos netos de Carlos Magno, Carlos, o Calvo, e Luis, o Germânico, contra seu irmão Lotário. Esse é o primeiro testemu-nho do romance então mais claramente diferenciado do latim, que viria a se tornar a língua francesa. Vejamos um trecho dos Juramentos:

Pro deo amur et pro christian poblo et nostro commun salva-ment, d’ist di in avant, in quant deus savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fradre Karlo et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om per dreit son fradra salvar dist, in o quid il mi altresi fazet, et ab Ludher nul plaid nunquam prindrai, qui meon vol cist meon fradre Karle in damno sit.

Pelo amor de Deus e pelo povo cristão e nosso bem comum, a par-tir deste dia, enquanto Deus me dará sabedoria e poder, eu darei socorro a meu irmão Carlos com minha ajuda e toda outra coisa, como se deve ajudar seu irmão por igualdade, à condição que ele faça o mesmo por mim, e não passarei nenhum acordo com Lotário que, de minha vonta-de, possa ser prejudicial a meu irmão Carlos.

Já se podem notar certos desenvolvimentos românicos que virão a se confirmar nas línguas românicas todas, como o futuro sintético salva-rai > salvare habeo e a sonorização de oclusivas como em fradre > frater.

3.2 Inovações panromânicas

Embora o desenvolvimento do latim vulgar para as línguas româ-nicas tenha dependido de muitos fatores, como a duração da romaniza-ção nos territórios conquistados e o momento em que a romanização se deu em cada local, é possível verificar certa uniformidade em algumas características das línguas românicas, que se deve a determinados fenô-menos de inovação que chamamos de panromânicos. Entre eles, pode-mos destacar os seguintes (cf. CASTRO, 2006, p.52):

Localidades muito dis-tantes, como a Dácia ou a Lusitânia, tendem a desenvolver dialetos mais arcaizantes, por exemplo.

Texto disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Oaths_of_Stras-bourg>. Acesso em: 05 abr. 2010. Imagem dispo-nível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/29/Sacramen-ta_Argentariae_%28pars_brevis%29.jpg> Acesso em: 05 abr. 2010. Tradução nossa).

História da Língua

44

1. Todas as línguas românicas desenvolveram o artigo definido a

partir do pronome ille (com exceção do sardo e do catalão, que

o desenvolveram a partir de ipse);

2. Todas as línguas generalizaram os usos das preposições de e a para substituir as funções dos casos oblíquos, ou seja, o genitivo,

o dativo e o ablativo;

3. Todas formaram comparativos analíticos a partir de magis ou

plus, enquanto o latim clássico fazia o comparativo sintético

com desinências como –ior ou –ius;

4. Todas as línguas românicas desenvolveram tempos verbais

analíticos baseados nos verbos auxiliares habere, tenere e esse

(“ser”).

5. Todas utilizam o pronome pessoal para marcar as pessoas ver-

bais (em latim, o padrão era não usar os pronomes, que apare-

ciam apenas para dar ênfase ao sujeito);

6. Todas formaram o novo futuro a partir das formas vulgares ha-bere + infinitivo (com exceção do romeno, com volo (“quero”) +

infinitivo, e do sardo, com debeo (“devo”) + infinitivo);

7. Todas desenvolveram advérbios a partir do ablativo mente afi-

xado aos adjetivos (o latim clássico formava advérbios com os

sufixos –e ou –iter);

8. Todas usam sufixos e prefixos estranhos ao latim clássico

3.3 Influências do substrato, superestrato e adstrato nas línguas românicas

Muitas das influências locais que o latim falado recebeu nas regiões romanizadas se deveram às línguas já existentes nessas regiões anterior-mente à chegada dos romanos. A essas línguas chamamos de “línguas de substrato”. É natural percebermos que as populações preexistentes ao

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

45

domínio romano falavam outras línguas e acrescentaram ao latim que passaram a falar diversas características de suas línguas, algumas fono-lógicas, outras lexicais. As influências foram maiores em regiões onde o latim ficou mais tempo em contato com as línguas de substrato.

O substrato da península itálica foi basicamente o das línguas itá-licas, faladas pelas populações que ali habitavam quando os romanos começaram as conquistas territoriais. Trata-se de línguas do ramo itá-lico, aparentadas do latim, como osco, o umbro e o sabélico. Uma das características incorporadas dos itálicos na passagem para as línguas românicas foi a assimilação de -nd- e -mb- em -nn- e -mm-, em regiões onde antes se falava osco, como o centro-sul da Itália.

O substrato do mediterrâneo ocidental foi basicamente o conjunto

das línguas faladas pelos povos não romanos que ali estavam, como

os lígures (dos quais quase nada se sabe), os iberos (não indo-euro-

peus, dos quais deriva a língua basca), os sardos, entre outros. Uma

das características mais importantes derivadas de substrato ibérico,

por exemplo, é a passagem de f a ø no espanhol (fabulare > hablar,

com h não pronunciado), característica derivada do basco. Outras

línguas importantes de substrato para o mediterrâneo ocidental fo-

ram as indo-europeias grego e celta.

Os substratos mais importantes da região da França, na região dos Alpes e na região do vale do Pó foram as línguas celtas dos gau-leses. Os celtas invadiram grande parte da Europa por volta do sé-culo VI a.C. e se estabeleceram nas Ilhas Britânicas, na Ibéria (onde se mesclaram com os iberos, dando origem ao povo que conhecemos como celtiberos), no norte da Itália e até na Galácia, na Ásia Menor. Do celta antigo não restou nada a não ser pelo testemunho que deixou no vocabulário das línguas influenciadas, mas as línguas celtas que se desenvolveram a partir dele sobrevivem ainda hoje no irlandês, esco-cês, galês, manques e bretão.

Os superestratos mais importantes para as línguas românicas fo-ram, de um lado, os “bárbaros” (germânicos no ocidente e eslavos no

História da Língua

46

oriente da România) no período de queda do Império Romano, e os árabes, que invadiram e conquistaram o norte da África, a Ibéria e parte da Sicília por volta do século VIII.

Dos povos germânicos que constituíram reinos em lugares onde anteriormente se falava latim, os mais importantes foram os visigodos, os vândalos, os burgúndios, os alamanos, os ostrogodos, os ânglios e saxões, os francos, os normandos e os longobardos.

Os vândalos vieram da Hungria e conquistaram uma região na Ibé-ria na qual ainda sobrevive o nome Andaluzia (derivado de Vandalucia). Os visigodos conquistaram grandes porções das atuais Itália, França e Espanha, e foram aliados dos romanos por um período, até serem em-purrados para a Ibéria pelos Francos, que os tiraram da região da França em 507. Ali, o reino romano-gótico dos visigodos resistiu aos outros rei-nos bárbaros até ser dominado pelos árabes em 711. A presença dos visi-godos na Ibéria exerceu muita influência no léxico dos romances locais, como na antroponímia (Álvaro, Fernando, Afonso, Rodrigo, Gonçalo), nomes comuns (gans > ganso, fat > fato, raupa > roupa, entre outros).

Outro reino germânico importante como superestrato foi o dos francos (de cujo nome derivou o atual termo “França”), que conquistou grande parte da Gália e posteriormente, vencendo os visigodos, parte da Ibéria. No século VIII, Carlos Magno instaura o Sacro Império Ro-mano, um Estado franco, numa tentativa de reunificar o Império, que abrangeu a França, grande parte da Itália e da Espanha.

Alguns empréstimos notáveis dos povos germânicos foram ter-mos como werra > port. guerra, fr. guerre, borg > port. burgo, fr. bourg, it. borgo.

O superestrato árabe foi importante pela presença desse povo por vários séculos em grande parte da Península Ibérica e do Mediterrâneo. Após conquistar o Egito e o norte da África do Império Bizantino, os árabes lá se instalam e conquistam grande parte da Península Ibérica, onde ficaram do século VIII até o século XV, e de onde só saíram após longas guerras instauradas pelo chamado movimento de Reconquista (do qual falaremos no próximo Capítulo). Muitas palavras dos roman-ces dessa região vieram como empréstimos do superestrato árabe, e eles

Também chamado Im- pério Romano do Oriente, que se inicia em 330 com

a fundação de Constan-tinopla pelo imperador

romano Constantino, para servir como capital da

seção oriental do Império e que segue existindo

independentemente da queda do Império do

Ocidente até a tomada de Constantinopla pelos

turcos em 1453.

FatoVestimenta, em portu-

guês europeu.

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

47

são reconhecidos normalmente pelo início al-, como álcool, álgebra, al-caide, entre muitas outras.

O superestrato eslavo foi mais importante na seção oriental da ro-mânia, especificamente na região onde se desenvolveu o romeno. O ro-meno foi escrito com o alfabeto cirílico por muito tempo e grande parte do seu vocabulário é de origem eslava, em virtude das invasões eslavas na região.

A noção de adstrato, como vimos, tem a ver com a coexistência de

línguas em situação de bilinguismo. Assim, para a formação das

línguas românicas, foi importante a presença constante do grego e

mesmo do latim literários, especialmente com relação aos emprés-

timos lexicais. Assim, podemos ver um caso bastante citado, como o

do grego parabolé, “parábola”, que substitui o latim verbum, “pala-

vra”, inicialmente no contexto bíblico, e resultou em formas das lín-

guas românicas como port. palavra, esp. palabra, fr. parole, entre

outras. A influência do grego também foi muito grande no emprés-

timo de prefixos e sufixos como –logia, “estudo de”, que vemos em

biologia, fisiologia, entre outros.

A influência do latim culto nas línguas românicas se deu de modos diferentes, em épocas diferentes, como os períodos do Renascimento Carolíngio (do império de Carlos Magno), o Renascimento propria-mente dito a partir do século XIII, entre outros. Desse modo, em alguns períodos, formas vulgares foram substituídas por formas cultas, como a forma antiga portuguesa chor, que foi substituída pela forma latina flor. Dependendo do modo como o empréstimo é feito, a língua mantém a palavra e recebe a outra em contextos específicos, como quando utiliza-mos cultismos como “magnitude”, do latim magnitudo, “grandeza”, mas mantemos os vocábulos derivados de formas mais populares, como as derivadas de grandis, do latim vulgar.

História da Língua

48

Assim, em virtude de vários fatores diferentes, como a ação de su-

perestratos, a distância com relação aos grandes centros, o tempo

maior ou menor de romanização, as invasões bárbaras, a queda do

poder do Império, o declínio das atividades intelectuais, entre ou-

tros, diferentes regiões desenvolvem os romances em diferentes

épocas, que se transformam em línguas incompreensíveis entre si

já por volta do século IX. Desse modo, a România onde se falava

latim se fragmenta e dá origem à România onde se falarão as línguas

românicas, que apresentaremos brevemente a seguir, na ordem ge-

ográfica do Extremo Oriente (romeno) até o Extremo Ocidente (por-

tuguês).

3.4 As línguas românicas

PortuguêsEspanhol

Catalão

Occitano Galo-Itálico

Frânces

Italiano

Rético

Sardo

Romeno

Franco-Provençal

Português

Espanhol

Catalão

Occitano

Frânces

Franco-Provençal

Galo-Itálico

Legendas

Italiano

Rético

Romeno

Sardo

Mapa – Os sistemas dialetais na România Antiga. Adaptado de Ilari (1992, p. 169).

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

49

3.4.1 Romeno

A província romana da Dácia foi conquistada pelo imperador Tra-jano entre 101 e 106 da nossa era e foi abandonada pelo imperador Au-reliano em 270, sob pressão dos visigodos e dos sármatas. Embora a ocupação romana tenha sido muito breve, ela foi profunda o bastan-te para que um dialeto românico se desenvolvesse ali. Dessa forma, as outras regiões continuaram a ter contato com o latim medieval, mas a Dácia foi sendo ocupada por vários povos, especialmente eslavos, o que explica grande parte das características bastante conservadoras do romeno. O eslavo foi a língua de contato mais importante, pois a Igreja a adotou como língua escrita, enquanto a população falava o romance que viria a se tornar o romeno. Os primeiros textos em romeno são muito recentes, traduções de textos religiosos do século XVI.

O romeno apresenta quatro dialetos principais, o daco-romeno, falado hoje na Romênia e em algumas localidades próximas, na Bulgá-ria e Hungria; o macedo-romeno, ou aromeno, encontrado em algumas regiões na Grécia, Bulgária e Macedônia; o megleno-romeno, falado na região da Tessalônica, na Grécia, e em algumas localidades isoladas da Ásia Menor; e o ístrio-romeno, falado na península da Ístria. O molda-vo, língua da Moldávia, é uma variedade bastante próxima do romeno.

3.4.2 Dalmático

Uma língua românica morta, o dalmático foi falado na antiga re-gião da Dalmácia, província romana situada na península balcânica, e seu último dialeto, da ilha de Veglia, foi extinto no século XIX. O dal-mático mostraria que há uma continuidade dialetal entre o romeno e os dialetos românicos da península itálica, mas foi suplantado pelo servo-croata e por outros dialetos românicos. Os documentos escritos em dal-mático são pouco numerosos e os estudos se deveram principalmente a esforços de romanistas como Mateo Bartoli, que documentou todo o material existente nessa língua.

3.4.3 Italiano

O grupo dos dialetos da região da Itália é muito variado, e o ita-liano padrão hoje na Itália é o dialeto da Toscana, que foi estabelecido

História da Língua

50

como dialeto principal pelo esforço de autores como Dante, Boccacio e Petrarca, que o elevaram à categoria de língua nacional. No entanto, na península itálica, bem como na Córsega, Sardenha e Sicília, muitos dialetos bastante variados ainda convivem com o toscano. É possível classificar esses dialetos em três grandes grupos:

Ӳ O italiano setentrional: piemontês, lombardo, lígure, venezia-no, entre outros;

Ӳ O italiano central: toscano, corso, úmbrico;

Ӳ O italiano meridional: campaniano, apuliano, calabrês, siciliano.

Os dialetos italianos começam a se desenvolver separadamente do romance por volta do século IX, e a profusão de manifestações literárias a partir do século XII levou a um impasse, já que o grau de diferenciação entre os dialetos da Itália sempre foi bastante grande. Dante, contudo, inspirado na língua literária comum dos provençais, promoveu uma tentativa de identificar o dialeto italiano que tivesse a maior quantida-de de características comuns entre todos os dialetos, e acabou elegendo uma mescla de dialetos de prestígio, como o toscano e o florentino, para compor a sua Divina Comédia. Apesar da grande quantidade de polê-micas sobre a influência que o toscano-florentino passa a ter depois, é por causa desse mesmo prestígio literário que esse dialeto acaba se tornando o dialeto preponderante da Itália, diferentemente de outras regiões, em que a eleição do dialeto-padrão acaba seguindo critérios políticos, de prestígio ou de localização.

3.4.4 Rético

O que chamamos de rético hoje é, na verdade, um conjunto de dialetos falados na região do extremo-norte da Itália e na Suíça, rela-tivamente semelhantes entre si, e que foram identificados como rema-nescentes de uma antiga faixa de dialetos reto-romance falados na pro-víncia romana da Récia (Raetia), invadida pelos alamanos no século V. Os dialetos ali restantes acabaram sofrendo pressão das línguas germâ-nicas ao norte e dos dialetos do italiano ao sul e acabaram se isolando em três pequenas regiões na fronteira entre Itália, Suíça e Áustria. A variedade mais oriental do rético, localizada no cantão dos Grisões, na

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

51

Suíça, compreende os dialetos chamados engadino e sobressilvano. A partir de 1938, a Suíça reconhece o rético dos Grisões (também chama-do de romance) como língua nacional, ao lado das três línguas oficiais, alemão, francês e italiano. A variedade central do rético, o ladino, é fala-da no norte da Itália e o friulano é o dialeto rético mais oriental, no nor-deste da Itália. O rético foi abordado num importante estudo de 1873 de G. Ascoli, chamado Saggi Ladini, que expôs a questão da unidade dos dialetos e sua caracterização. Linguisticamente, os dialetos réticos não se distinguem muito dos dialetos galo-itálicos e demais dialetos români-cos, mas há uma característica em especial que é bastante interessante, e que afasta o rético do romance oriental (italiano, romeno e dalmático): a manutenção do –s final latino nos substantivos (pectus > pez, mas port. peito, it. petto e tempus > temps, mas port. tempo, esp. tiempo), cuja queda, na maior parte dos dialetos orientais, gerou plurais em –i (cf. italiano ragazzi, “meninos”, e romeno lupi, “lobos”).

3.4.5 Sardo

O que chamamos de sardo é um conjunto de dialetos falados na ilha da Sardenha, a oeste da Itália. A Sardenha e a Córsega foram conquista-das pelos romanos já em 238 a.C., que lá permaneceram por muito tem-po. Como a romanização foi lenta, os dialetos do romance que se desen-volveram ali se mantiveram mais próximos ao latim em vários quesitos, de modo que o sardo é uma das línguas românicas mais conservadoras e arcaizantes. Podemos verificar, por exemplo, através do desenvolvi-mento de algumas palavras do sardo, que ele não desenvolveu certas mudanças que a maioria dos dialetos românicos desenvolveu, como lat. domum > sar. domo, “casa”, quando a maioria das línguas românicas de-rivou “casa” do latim vulgar casa, como já vimos, e lat. scire > sar. ski-re, “saber”, que as outras línguas românicas derivaram do latim vulgar sápere, “provar, sentir o sabor de algo”. Vários traços fonéticos gerais corroboram esse caráter arcaizante, como a manutenção da semivogal ‘i’ em palavras como iugum > iugu (o português palatalizou a semivogal e fez “jugo”, assim como maior parte das outras línguas românicas), a conservação da articulação velar de c, mesmo antes de ‘e’ e ‘i’ (Cicero, em latim, era pronunciado “Kikero”; a maioria das línguas românicas fricativizou o c antes de ‘e’ e ‘i’, de modo que temos o som /k/ antes de

Diferentemente do –s final do nominativo latino presente na ortografia do francês, que não é pronunciado, cf. fr. temps, pronunciado “tã”.

História da Língua

52

a, o, e u e /s/ antes de ‘e’ e ‘i’). Outra característica interessante do sardo é o desenvolvimento do artigo definido a partir do demonstrativo ipse, ipsa, ipsum, do latim, ao invés do pronome ille, illa, illud, como ocorreu nas outras línguas românicas. Assim, em sardo temos so, sa, sos, sas, e em português, o, a, os, as.

Os dialetos mais importantes do sardo são o logudorês, o mais re-presentativo; o campidanês, do sul da ilha; o galurês, no território da Gallura, no nordeste; e o sassurês, ao redor da região da Sassura, no noroeste.

ALEMÃES

RÉTICOS

FRANCO-PROVENÇAIS

PROVENÇAIS

ITALIANOS SETENTRIONAIS

TOSCANOS

ITALIANOS CENTRO-MERIDIONAIS

GALURIANOS

CORSICOS

ESLAVOS

SARDOS

campidaneses

logudoreses

toscanos

italianos setentrionais (IS)

córsicos galurianos

sardos

provençais (Pr.) franco-provençais (FPr.) catalães (C)

réticos

albaneses (Al)

gregos (G)

eslavos (E)

alemães (A)

romenos (R)

italianos centro-merdionais

calabreses

salentinoslucanos

campanianos

apúlicos setentrionais

abruzesesmolisanos

marquigianovsv

úmbrios

lacais

genoveseslunigianos

piemontesesvênetos

lombardos friulanoseslovenos

croatasromenos

Carloforte (Gen.)

Alghero

Cargese

Bonifácio (Gen.)

Guardia (Pr.)

S. Fratello(IS)

Nicosia(IS)Piana dei Creci (Al)

S. Michele di Ganzaria (Al)

NovaraPiazza (IS)

Bova (G)

Faeto

Badessa (Al)

(Al)

(Al)

(C)

(C)

(A)(A)(A)

(A)

(Al)(E)

(G)

(Al)

(FPr)

Aosta

Gressoney

VII Comuni

XIII Comuni

Canton Ticipo

Veglia

EmilianiRomagnoli

limite político anterior à guerra

limite dialetais maiores

limite dialetais menores

Mapa – Línguas e dialetos na Itália do século XX. Adaptado de Ilari, (1992, p. 186).

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

53

3.4.6 Francês

O francês é a língua românica desenvolvida na região da antiga Gá-lia, derivada do conjunto de dialetos medievais identificados como lan-gue d’oil, em oposição ao grupo identificado como langue d’oc (dialetos do provençal). A oposição se dá a partir do vocábulo utilizado para di-zer “sim”, oil ou oc, e a distribuição dos dois conjuntos é geograficamente marcante. A langue d’oil se desenvolveu no norte da França e Bélgica de fala românica e apresentava muitos dialetos diferentes, que acabaram por sucumbir à força política e cultural do dialeto de Paris. Assim, o francês padrão culto hoje é basicamente equivalente ao dialeto de Paris, assim como o italiano padrão, que se identificou com o dialeto toscano-florentino. No entanto, isso se deu principalmente pela importância po-lítica da França ao longo dos últimos séculos, fazendo com que muitos dialetos d’oil fossem incorporados pelo francês literário.

O francês é uma das línguas românicas que apresentaram mais inovações com relação ao latim. Isso se dá em grande parte pela rapi-dez com que certas mudanças, típicas de todas as línguas românicas, se deram em francês. Um exemplo é a tendência das oclusivas surdas a se sonorizarem e depois se transformarem em fricativas. O francês apre-sentou essas mudanças mais rapidamente, de modo que uma nova etapa frequentemente se encontra após a fricativização: a perda da consoante, seguida de encontros vocálicos que se monotongam. Um exemplo ca-racterístico é aqua > eau (pronunciado “ô”).

Uma das características inovadoras do francês que decorrem da rapidez nas inovações fonéticas é a obrigatoriedade da presença do pronome pessoal na conjugação dos verbos: como muitas desinências número-pessoais têm a mesma pronúncia, é fundamental a presença do pronome – j’aime, tu aimes (sem pronunciar o “s”), il aime, ils aiment, todos pronunciados igualmente, exceto pelo pronome.

Também em virtude dessas inovações fonéticas rápidas, a ortogra-fia do francês é uma das mais peculiares entre as línguas românicas, pois muitas palavras mantêm ortografias mais antigas que não dão conta de representar a pronúncia da palavra de modo mais aproximado.

História da Língua

54

3.4.7 Provençal

O provençal, do antigo grupo chamado de langue d’oc, é um dos dialetos do ocitânico, com o qual muitas vezes se confunde, e é falado ainda hoje em uma extensa área do sul da França. As diferenças prin-cipais com relação ao grupo das línguas d’oil é que, enquanto o norte foi dominado pelos francos, o sul foi dominado pelos visigodos. No sul provençal, predominou o direito escrito, em oposição ao consuetudiná-rio do norte, o que favoreceu um contato maior com o latim culto no sul, propiciando características mais conservadoras em oposição às mu-danças fonéticas mais radicais no norte. Várias características de con-servadorismo fonético podem ser vistas nas comparações a seguir: lat. caprum “cabra” > prov. cabro, fr. chièvre, lat. canem, “cão” > prov. can, fr. chien, lat. cor, “coração” > prov. cor, fr. coeur.

O provençal se desenvolve muito cedo, e já é possível encontrar tra-ços do léxico e frases soltas em documentos dos séculos VII a IX, e o pri-meiro documento totalmente em provençal é um testamento de 1102. No entanto, uma grande tradição literária iria se desenvolver a partir das poesias líricas dos trovadores, cujo auge se deu entre os séculos XI e XIII. Uma das características mais interessantes do movimento literário dos trovadores é o uso de uma espécie de koiné (língua comum) literá-ria, com pouca variação dialetal entre as regiões e autores diferentes, e mesmo trovadores de outras regiões, como da Itália ou da Catalunha, escreviam nessa koiné literária provençal. A popularidade do provençal durou até meados do século XIV, por causa de guerras contra os albin-genses. Houve pelo menos dois grandes movimentos de renascimento literário do provençal: um no século XVI e outro no século XIX, e a língua ainda é falada no sul da França, ainda que em um território bem menor do que aquele ocupado entre os séculos XI e XIV.

3.4.8 Franco-provençal

O franco-provençal é um conjunto de dialetos falados no centro-leste da França na fronteira com a Itália e a Suíça, países em que tam-bém há alguma extensão coberta por eles. Não é possível caracterizar o franco-provençal como francês ou como provençal porque ele apresenta características de ambos, e constitui uma língua diferente. Há vários do-

São conhecidos nomes de mais de 400 poetas líricos

provençais!

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

55

cumentos escritos já nos séculos iniciais da independência do romance, mas pouca literatura foi escrita em franco-provençal.

Como características linguísticas importantes, temos o vocalismo, que se aproxima do provençal, e o consonantismo, que se aproxima do francês. Assim, do latim pane temos em franc.prov. pan, em prov. pan, mas em francês pain, e do latim casa temos franc.prov. chieu, fr. chez, mas prov. casa. O franco-provençal mantém o o final latino, enquanto que o provençal e o francês, não, por exemplo lat. vulg. quattro > franc.prov. quatro, fr. quatre e prov. quatre. Outra característica do franco-provençal é a grande quantidade de elementos pré-romanos no léxico, em virtude do isolamento geográfico da região, em geral montanhosa.

Langue d’oil

Bretão

Basco

Angevino

Valão

Picardo

Normando

D. de Berry

Borgonhês

Alemão

Flamengo

Romando

Lyon

Italiano

Provençal

Bearnês

Linguadócio

Bordéus

Limosino

Pictavo

Auvernês

Saboiano

LorenêsParisfrâncico

Franco provençal

Langue doc

Mapa – Os dialetos galo-românicos antes da absorção pelo francês. Adaptado de Ilari (1992, p. 183).

História da Língua

56

Trataremos das línguas ibero-românicas, o catalão, o castelhano e o português, no próximo capítulo, em virtude da maior afinidade temáti-ca. Por ora, vejamos a tabela e os mapas apresentados a seguir como um resumo das línguas românicas, suas filiações e sua geografia.

Classificação das Línguas Românicas

Balcano-Românico Italo-Românico Galo-Românico Ibero-Românico

Romeno

DalmáticoItalianoRéticoSardo

FrancêsProvençalFranco-provençal

CatalãoEspanholPortuguês

Mar Mediterrâneo

Mar Mediterrâneo

Mar Negro

Daco-Romeno

Megleno-Romeno

Catalão

Galego

PortuguêsCastelhano

Basco

Gascão

Frânces

Provençal(Occitano)

África

Sardo

Corso

Maltês

Italiano

GréciaTurquia

Bulgária

MoldavoHungria

Iugoslávia

MacedôniaMácedo-RomenoAlbânia

Croácia

BósniaVeglioto

Eslovênia

Áustria

AlemanhaBélgica

Inglaterra

Irlanda

Suíça

Franco-Provençal

Oceano Atlântico RéticoCentralRético

Ocidental

RéticoOriental

Mar Tirreno

Mar Adriático

Dalmático

Limites políticosLimites linguísticos

Istrio-Romeno

Mapa – As línguas românicas e alguns de seus dialetos na Europa atual. Adaptado de Basseto, (2005, p. 379).

Capítulo 03A Expansão do Latim: a România e sua Dissolução

57

Resumo

Nesta unidade, fizemos um percurso sobre a história do latim, in-vestigando suas origens no protoindo-europeu, suas diferentes fases e sua fragmentação nos vários dialetos que posteriormente resultaram nas línguas românicas. Vimos também algumas noções-chave da lin-guística história como a história interna e a externa, regras de mudanças fonético-fonológicas etc. É com essas ferramentas que abordaremos a história do português nas próximas unidades.

Leia mais!

Se você quiser se aprofundar sobre a linguística românica, ou seja, sobre o estudo da formação e estrutura das línguas românicas, há vários livros muito bons sobre o assunto, alguns dos quais citamos nas Referências. O leitor interessado pode começar, por exemplo, por Lingüística Româ-nica, de Ilari (1992), que é um manual introdutório voltado a um só tempo à história externa e interna das línguas românicas. De um ponto de vista mais filológico, o leitor pode consultar Elementos de Filologia Românica, de Bassetto (2005), no qual encontrará mais informações sobre a história externa. Há ainda o importante manual de Lausberg (1974), intitulado Lingüística Românica; e Introducción a la Filología Ro-mânica, de Renzi (1982), ambos bastante amplos e ao mesmo tempo profundos. Certamente há inúmeros outros livros e artigos que lidam com a linguística românica e com a formação das línguas românicas, mas o leitor pode começar pelos livros citados e, a partir deles, um ver-dadeiro mundo de estudos se abrirá.

Unidade BHistória do português

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

61

A Península Ibérica e sua formação linguística O objetivo deste capítulo é abordar a Península Ibérica como um todo,

apresentando as principais línguas que ali se desenvolveram. Também proce-

demos a uma história específica do desenvolvimento linguístico das línguas

românicas da Península.

Introdução

Continuando o capítulo anterior, voltaremos agora nossa olhar para as principais línguas românicas da Península Ibérica. Na sequên-cia, apresentaremos um histórico da formação da Península e do desen-volvimento dessas línguas.

4.1. Catalão

O catalão é, hoje, a língua nativa de mais de 5 milhões de pessoas. É a língua oficial de Andorra e de várias regiões da Espanha, especial-mente da comunidade autônoma da Catalunha, no nordeste, além de alguns territórios na França e na Itália, nas proximidades da fronteira com a Espanha.

O catalão é uma língua derivada do chamado pan-ibero-romance, o romance falado na Península Ibérica que, por volta do século X, ainda era relativamente uniforme ao longo da península. Ao longo do período da Reconquista, o catalão acaba se diferenciando bastante do espanhol e do português. A história do catalão se divide em três fases: a fase nacio-nal, dos primórdios até o século XV; a fase da decadência, até o século XVIII; e a fase do renascimento, do século XIX em diante. Durante a fase nacional, o catalão era falado pela maioria dos habitantes do reino de Aragão e rivalizava com o latim literário e com o provençal, língua que, como vimos, nos primeiros séculos do segundo milênio, gozou de bastante prestígio na România.

Após a união política de Aragão com Castela, o catalão entra em declínio, e a liberdade dos falantes foi sendo restrita em favor do caste-

Veremos esse período mais pormenorizadamen-te na seção 4.3, que deta-lha a formação histórico--linguística da Península Ibérica.

4

História da Língua

62

lhano, até que, no século XIX, com o renascimento literário do catalão, o estatuto da língua foi restaurado e o reconhecimento da língua foi sendo conquistado, de modo que hoje é uma das línguas oficiais da Espanha, além de ser a língua oficial de Andorra, como vimos.

Em virtude de suas características linguísticas, bem como de sua história, o catalão foi considerado por vários romanistas como uma língua pertencente ao grupo das línguas galo-românicas, mas hoje é considerada como parte do grupo das ibero-românicas. Algumas des-sas características são as seguintes: (i) diferentemente do espanhol, o catalão não ditonga as vogais e e o breves latinas, como em septem > set, diferentemente do espanhol siete; (ii) assim como o provençal, o catalão perde o e e o o átonos finais, como em lat. vulg. parte > part, mas esp. e port. parte; o catalão mantém o f inicial, como em português e proven-çal, diferentemente do destino dessa consoante em espanhol: lat. vulg. furmica > formiga, port. e prov. formiga, esp. hormiga; (iii) cl e li são pa-latalizados como em português e em provençal, mas não em espanhol: lat. vulg. veclu > cat. vell, prov. vielh, port. velho, esp. viejo.

Algumas características do catalão o aproximam, no entanto, do espanhol e o afastam do provençal, como o destino do u, que em pro-vençal e francês passa a ü: lat. vulg. luna > cat. lluna, port. lua, prov. lüna, ou do ditongo au, que nas línguas ibéricas passa a o, diferentemente do provençal, que o mantém: lat. auru > cat. or, esp. oro, port. ouro.

Uma outra característica interessante do catalão é que, assim como o sardo, ele também desenvolve o artigo definido a partir do latim ipse, ao invés de ille. Assim, os artigos definidos do catalão são es, as, sos, ses.

4.2. Espanhol

O espanhol, como grupo de dialetos, compreende o castelhano, a variante de maior prestígio, mas também o galego, falado mais na região da Galiza; o leonês, falado no noroeste da Espanha; o aragonês, mais ao nordeste; o estremenho e o andaluz. O castelhano foi uma das principais línguas faladas no norte da península durante o período da Reconquis-ta, e o desenvolvimento da retomada dos territórios conquistados pelos árabes foi levando a língua para o sul, assim como ocorreu com o portu-guês, mas de forma a ocupar uma área bastante extensa da península.

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

63

As influências do substrato ibérico, além do substrato basco, deram ao castelhano uma feição diferenciada com relação às outras línguas de-senvolvidas a partir do pan-ibero-romance. Além disso, a latinização posterior da região de Castela, de substrato ibérico e incorporada ao império em 19 a.C., torna o castelhano mais livre da influência do latim, que se deu de forma mais intensa no caso do português, por exemplo. Várias dessas características tornaram o castelhano uma língua com ino-vações diversas das que encontramos no português e no catalão. Uma delas é a passagem do f latino a h, posteriormente não pronunciado, característica que se costuma atribuir ao substrato basco.

Algumas outras características peculiares do castelhano são:

1. ditongação do e e do o latinos, como em bono > bueno, porta

> puerta, terra > tierra;

2. palatalização em ll /λ/ dos grupos latinos formados por conso-

ante + l, como plenum > lleno, flamma > llama;

3. sonorização das oclusivas surdas intervocálicas e posterior frica-

tivização, como em lúpus > lobo /loβo/, digitus > dedo /ðeðo/;

4. palatalização das consoantes geminadas ll e nn, como ad illic >

alli /aλi/ “ali”, ante anno > antaño “então”;

5. passagem dos grupos ct e lt à africada /tʃ/: multum > mucho

/mutʃo/.

O castelhano já possui documentos escritos desde meados do sécu-lo X, ao menos com palavras e expressões em meio a textos latinos, e sua literatura, de grande relevância para o período medieval, se desenvolve a partir do século XII. O poema épico de autor desconhecido Cantar del mio Cid, composto por volta do final do século, de quase quatro mil versos, narra a história de Rodrigo Díaz de Vivar, ou El Cid Campeador, importante personagem histórico do período.

Vejamos um trecho da obra:

História da Língua

64

De los sos oios tan fuertemien-tre llorando,Tornava la cabeça e estavalos catando;Vio puertas abiertas e uços sin cañados,alcandaras vazias, sin pielles e sin mantos,e sin falcones e sin adtores mu-dados.Sospiro Mio Cid, ca mucho avie grandes cuidados.Fablo mio Cid bien e tan mesu-rado:«¡grado a ti, Señor Padre, que es-tas en alto!»Esto me an buelto mios enemi-gos malos.»Alli pienssan de aguiiar, alli suel-tan las rriendas;ala exida de Bivar ovieron la cor-neia diestrae entrando a Burgos ovieronla siniestra.Meçio Mio Cid los ombros e en-grameo la tiesta:«¡Albricia, Albar Fañez, ca echa-dos somos de tierra!»[»Mas a grand ondra tornaremos a Castiella.»]

De seus olhos tão fortemente chorando virava a cabeça e os estava ven-do viu portões abertos e portas sem cadeados cabides vazios, sem peles nem mantos e sem falcões e sem açores mu-dados.Suspirou Meu Cid, pois tinha muitas preocupações.Falou Meu Cid bem e com muita serenidade:“Obrigado a ti, Senhor Pai, que estás nas alturas! Isto meus maus inimigos fize-ram a mim.” Ali pretendem esporar, ali sol-tam as rédeas; Ao sair de Bivar viram o corvo à direita, e ao entrar em Burgos, viram-no à esquerda. Meu Cid deu de ombros e balan-çou a cabeça: “Boas notícias, Álvar Fañez, pois fomos banidos da terra! Mas logo retornaremos a Caste-la”.

Tradução livre/nossa

Manuscrito disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/cid/80283852878795052754491/ima0000.htm>. Acesso em: 05 maio 2010.

Neste trecho, já é possível perceber várias características que viriam a se fixar no castelhano posterior, como a ditongação do o em puertas, do e em tierra e Castiella, a sonorização das oclusivas como em mutados > mudados, Pater > Padre. Algumas características do castelhano mo-derno ainda não aparecem, como o a perda do f inicial, por exemplo em fablo “falou”, que hoje se escreve habló, com h mudo.

Em 2010, o espanhol contabiliza cerca de 500 milhões de falantes no mundo todo, sendo 390 nativos e 110 milhões falantes de espanhol

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

65

como segunda língua. Nas Américas, é língua oficial de 20 países, mas também é falado em vários estados norte-americanos, em diversos paí-ses africanos (Guiné Equatorial, Ilhas Canárias, Ceuta), no Pacífico, na Ilha de Páscoa, e em comunidades de imigrantes na Austrália e em vá-rios países europeus.

O castelhano se firmou como o dialeto principal entre os dialetos

restantes principalmente por causa da literatura produzida ao longo

dos séculos XIV a XVI. Mas foi especialmente o século XVII, chamado

siglo de oro, que viu grandes autores como Miguel de Cervantes,

autor de Don Quijote, Lope de Vega e Calderón de La Barca, autores

de peças teatrais desenvolverem a língua espanhola literária a um

nível de excelência antes inalcançado. Também por causa da expan-

são territorial decorrente da colonização das Américas, no século

XVI, o castelhano foi levado para as colônias, onde convive como

língua oficial em todos os países da América Latina, com exceção do

Brasil. Nas Américas, o castelhano entrou em contato com as línguas

indígenas, como o guarani, no Paraguai, o quéchua, no Peru, Bolívia

e Equador, e o nauatl, no México, enriquecendo-se em cada um des-

ses países de maneira diferente. Hoje em dia, o espanhol europeu e

os espanhóis latino-americanos apresentam diferenças decorrentes

dos séculos de desenvolvimento e empréstimos, mas ainda se man-

têm como uma só língua.

4.3 Formação histórico-linguística da Península Ibérica

Os romanos chegam à Península Ibérica por volta de 218 a.C., du-rante a Segunda Guerra Púnica, contra os Cartagineses, seus maiores rivais no momento. Os cartagineses ocupavam parte da península, mas, em 209 a.C., os romanos os derrotam na Espanha e iniciam a ocupação do território. Inicialmente, a península é dividida em Hispania Citerior (literalmente, “Hispânia mais próxima”, na região nordeste) e Hispa-nia Ulterior (literalmente, “Hispânia mais distante”, na região sudeste), como podemos ver no mapa a seguir:

Povo fenício que ocupava o norte da África, com ca-pital em Cartago, no atual território da Tunísia, e que começou a se mostrar ameaçador aos romanos ao iniciar a conquista de vários territórios ao redor do Mediterrâneo, especial-mente a Sicília, a partir do século III a.C.

História da Língua

66

Pallantia

Cauca

Segovia

Pompaelo

Salmantica

Scalabis

Olisipo

Pax Iulia

Italica

Gades

Corduba Castulo

Sexi

Libisosa

ValentiaSaguntum

Ebusus

Palmariu

Pollentia

Tarraco

Emporion

Cartago Nova

Lucus

Bracara

LegioGemina

HispaniaUlterior

HispaniaCiterior

Mapa – Hispania Romana. Adaptado de: <http://www.cprcalahorra.org>

Sob o império de Augusto, a Hispania Ulterior é dividida em duas províncias: a Lusitania, ao norte, e a Baetica, ao sul. Posteriormente, a Hispania Citerior é transformada na província Tarraconensis, e separa-se da província da Gallaetia, ao norte. As conquistas na península foram demoradas, já que, do final do século III a.C., quando os romanos der-rotaram os cartagineses, até a pacificação completa da Hispania, foram necessárias várias campanhas, incluindo as de Júlio César em 61 a.C., que prepararia a província para a pacificação completa por Augusto, em 27 d.C. O resultado, no império de Diocleciano, é a seguinte configura-ção de províncias:

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

67

Limite de provincia

Limite de convento jurídico

Gallaecia

Lusitania Carthaginensis

Tarraconensis

Baetica

Balearica

Mapa – Hispania Romana sob o império de Diocleciano (244-311 d.C.). Adaptado de: <http://bachiller.sabuco.com/historia/images/Hispania%20romana.jpg>. Acesso em: 10 jun. 2010.)

O resultado desse laborioso processo de conquista romana são os diferentes graus de romanização das províncias. Naquelas em que os ro-manos chegaram primeiro, os dialetos românicos desenvolvidos foram mais conservadores. Contribui para isso também a distância em relação a Roma e a dificuldade de acesso a essas regiões. O tipo de romanização que se deu nas províncias também foi diferente. Na Baetica, por exem-plo, pelo isolamento, falava-se um latim mais conservador e purista, em oposição ao falado no nordeste, na província Tarraconensis, que era rota de legionários, o que gerou mais instabilidade e mudança na língua fala-da na região, em virtude da variedade mais popular de latim falada pelos legionários. Assim, os centros mais urbanizados da península acabaram por se influenciar pelo latim culto da Baetica, e a Tarraconensis acaba por desenvoler inovações típicas do latim vulgar, que se refletiriam nas línguas desenvolvidas ali posteriormente, como o catalão.

História da Língua

68

Ao longo dos séculos V, VI e VII da Era Cristã, como parte do movi-

mento de invasões bárbaras que deram fim ao Império Romano do

Ocidente, os visigodos sobrepujaram vários outros reinos germâni-

cos e tentaram unificar a Península Ibérica, dominando grande parte

dela. Ao longo de todo esse período de instabilidade política, que se

inicia já no século IV d.C., o latim permanece sendo a língua de cul-

tura da península, de modo que os dialetos germânicos visigodos

pouco contribuíram para o desenvolvimento das línguas românicas

que ali viriam a se desenvolver, com exceção de empréstimos lexi-

cais, toponímia e antroponímia, como vimos no Capítulo anterior.

Um dos reinos germânicos conquistados pelos visigodos ao longo desses séculos foi o dos suevos, que constituíram um reino cujas frontei-ras eram quase coincidentes com as da anterior província da Gallaecia. A permanência deles nessa região, até a conquista dos visigodos, ape-nas em 574, permitiu um relativo isolamento linguístico que acabou por propiciar certos desenvolvimentos no latim vulgar, que depois viriam a diferenciar o romance falado ali, o galego-português, que estudaremos no próximo Capítulo, dos outros dialetos românicos da península. Isso teria grande influência no desenvolvimento do galego-português, pois algumas dessas mudanças, como as quedas de l e n intervocálicos (luna > lua, soles > sóis, por exemplo) e a mudança dos grupos cl, pl e fl para ch (como em pluvia > chuva, clavis > chave, por exemplo) já se manifes-tavam no período romano (por influência dos substratos linguísticos da região).

O domínio visigodo mantém-se por algum tempo, até que no iní-cio do século VIII, mais precisamente em 711, os árabes invadem a pe-nínsula. Esses árabes muçulmanos, comandados pelo governador da província da África, Tarik Ibn-Ziad, associam-se ao visigodo Ágila II, a seu pedido, contra seu oponente Rodrigo, último rei visigodo de Toledo, na disputa pelo trono do reino visigodo. Com a vitória de Ágila, este recebe o trono, mas os árabes conquistam outros territórios, e acabam por dominar grande parte da península, com exceção de uma parte das Astúrias, ao norte, que resistiu sob o comando do visigodo Pelágio, que

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

69

iniciou, a partir de 722, o longo movimento denominado de Reconquis-ta, que só viria a se consolidar em 1492, com a conquista de Granada.

Assim, os árabes representam um momento crucial na história das línguas ibero-românicas, já que, com a resistência dos reinos cristãos ao norte, o movimento de Reconquista precisou retomar todo o centro-sul da península, e, como vimos, isso demorou sete séculos, nos quais ocorreram diversas batalhas e também a convivência pacífica entre os cristãos e os muçulmanos em diversos territórios.

Os dialetos românicos da península, no início do século VIII, já se

delineavam em uma faixa setentrional, em três grupos difusos, que

viriam a se tornar as três línguas românicas principais: no noroeste,

o galego-português, no centro, em contato com o substrato basco,

o castelhano, e, no leste, o aragonês e o catalão. No centro e no sul,

com a permanência dos árabes no território chamado de Andaluz,

a ocupação basicamente era de muçulmanos e mouros (berberes

conquistados pelos árabes e parcialmente islamizados), falantes de

árabe, e um grupo de hispano-godo-romanos subjugados pelos

muçulmanos, falantes do dialeto chamado moçárabe (derivado do

árabe, “submetido ao árabe”), além dos judeus, que, na época, eram

vistos pelos árabes como merecedores de direitos iguais, pois eram

considerados um “povo do livro” (a Bíblia).

Desses dialetos românicos moçárabes pouco restou além de alguns testemunhos poéticos escritos tardiamente, chamados de hardjas ou jar-chas. No entanto, algumas características desses dialetos serviram de superstrato posterior para os dialetos dos reinos católicos após a Recon-quista, basicamente na toponímia. O árabe, por sua vez, foi um supers-trato importante na formação das línguas românicas da península, e muitas palavras do português contemporâneo são empréstimos diretos do árabe, como vimos no Capítulo anterior. Apresentamos, a seguir, um exemplo de hardjas, retirado de Ilari e Basso (2006, p.19):

História da Língua

70

Vayse meu corachón de mib:ya Rab, ¿si me tornarád?¡Tan mal meu doler li-l-habib!Enfermo yed, ¿cuánd sanarád?

Meu coração se parte de mim:Oh Deus, acaso vai voltar?Esta dor pelo meu amado dói tanto!Está doente, quando há de sarar?

O movimento da Reconquista, como vimos, foi muito len-to e levou os reinos católicos para o sul, juntamente com suas línguas, ao longo dos sete séculos que foram necessários para a reconquista integral. No entanto, é exatamente ao longo des-se período que se desenha o mapa geopolítico e linguístico da península, já que os reinos cristãos de Portugal, a oeste, Leão e Castela, no centro, e Aragão, a leste, cada um a seu modo, ao conquistarem territórios árabes, repovoavam o local e amplia-vam os limites de seus reinos, gerando grandes mudanças po-pulacionais e reestabelecendo as monarquias de modo bastante diverso das tendências de formação de Estados germânicos an-teriores à chegada dos árabes. É assim que vemos, progressiva-mente, a Reconquista levar os dialetos românicos para o sul, definindo as fronteiras finais das línguas portuguesa, espanhola e catalã, conforme podemos ver na sequência de mapas, apre-sentada a seguir. O primeiro deles, retirado de Teyssier (1997, p.8), apresenta uma cronologia das regiões tomadas dos árabes durante algumas das batalhas da Reconquista, os outros mapas, retirados de Ilari (1992, p.175-178), ilustram como a composi-ção linguística da Península Ibérica foi se alterando:

Área primitiva do Galego-Português

DouroPorto

Coimbra

Santarém

Mondego

Lisboa

Tejo

Guad

iana

1064

1147

1168

Faro(1249)

Évora

Mapa de algumas das batalhas da Reconquis-ta. Fonte: Teyssier (1997, p. 8).

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

71

Castelhano

Lisb

oa

Coimbra

Porto

Santiago

Galaico-português

Aragonês

Basco

Toledo

Valência

Granada

Cordoba

Sevilha

Badajoz

Tarragona

BarcelonaSaragoça

Dialetos moçarabes

BurgosLeónAstorga

CatalãoLérida

Leonês

Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 930. Fonte: Ilari (1992, p. 175).

Nos anos iniciais do movimento da Reconquista, como se pode ver pelo mapa acima, o galego-português ocupa uma área bastante avanta-jada com relação aos outros dialetos. No entanto, os movimentos polí-ticos vão determinar outra configuração em pouco mais de um século, como podemos ver a seguir:

História da Língua

72

Castelhano

Lisb

oa

Coimbra

Porto

Santiago

Galaico-português

AragonêsBasco

Toledo

Valência

Granada

Cordoba

Sevilha

Badajoz

Tarragona

BarcelonaSaragoça

Dialetos moçarabes

BurgosLeónAstorgaCatalãoLérida

Leonês

Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 1072. Fonte: Ilari (1992, p. 172).

O reino de Leão e Castela inicia um movimento que não vai apenas ao sul, mas também acaba por conquistar parte das faixas verticais que deveriam ser conquistadas pelos outros reinos, gerando uma divisão que acaba por diminuir o território aragonês, relegado às faixas mais orientais da península, como podemos ver abaixo:

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

73

Lisb

oa

Coimbra

Porto

Madri

Galaico

Toledo

Valência

Cordoba

Badajoz

Tarragona

Barcelona

Burgos

León

AstorgaCatalão

Lérida

Leonês

Aragonês

Basco

Saragoça

Santiago

Castelhano

Granada

Dialetos moçárabes

Sevilha

Portu

guês

Algarve

Mapa – Línguas da Península Ibérica por volta de 1300. Fonte: Ilari (1992, p. 177).

É possível perceber que, por volta de 1300, o desenho político da península já apontava para o estado atual da distribuição das línguas românicas ali, como podemos ver no mapa seguinte:

História da Língua

74

Lisb

oa

Coimbra

Porto

Madri

Valência

Cordoba

Barcelona

Dialetos aragoneses

Basco

Castelhano

Sevilha

Portu

guês

Málaga

Dialetos leoneses

La Coruña

Área bilínguegalego/castelhano

Área bilínguecastelhano/catalão

Limites do castelhanocomolíngua de cultura

Mapa – Línguas da Península Ibérica na atualidade. Fonte: Ilari (1992, p. 178).

Além dos movimentos linguísticos esboçados, a Reconquista foi um período muito importante para o estabelecimento das unidades po-líticas da península, como o Estado monárquico de Portugal.

Um dos momentos mais importantes da história de Portugal se deu em virtude das alianças políticas derivadas dos movimentos de Recon-quista. Assim, em virtude de seu sucesso na luta contra os árabes, D. Raimundo e seu primo D. Henrique receberam, respectivamente, de D. Afonso VI, rei de Leão e Castela, sua filha Urraca e a região da Galiza, e sua filha bastarda Tareja e a região desmembrada da Galiza chamada Condado Portucalense. D. Henrique administra o condado sob a tutela de D. Raimundo, de modo que o condado ainda fosse submisso à Gali-za. No entanto, D. Henrique, ao morrer, deixa o comando do condado a

Capítulo 04A Península Ibérica e sua Formação Linguística

75

sua mulher, Tareja. Seu filho, D. Afonso Henriques, descontente com a nova vida amorosa de sua mãe, em 1128 vence a batalha de São Mamede e se proclama rei. Em 1143, Afonso VII, rei de Leão, reconhece sua rea-leza, que foi ratificada pelo papa Alexandre III em 1173. Portugal passa a ser, então, independente da Galiza, e D. Afonso Henriques continua a expansão em direção ao sul, que D. Afonso III completa em 1250, com a conquista do Algarve, de modo a fixar as fronteiras atuais de Portugal. Durante todo esse período, até o século XIV, a língua de Portugal e da Galiza era a mesma, o galego-português, do qual trataremos no próxi-mo capítulo.

Capítulo 05O Português Arcaico

77

O português arcaicoEste capítulo tem como objetivo apresentar o primeiro período históri-

co da língua portuguesa, desde suas manifestações iniciais, quando temos a

diferenciação com relação aos dialetos panromânicos, até finais do século XIV

e inícios do século XV.

5.1 Periodização

Ao lidarmos com a história de uma língua, é imprescindível que lancemos mão de alguma periodização, seja simplesmente para nos lo-calizarmos cronologicamente, seja para isolarmos, com interesses cien-tíficos, determinados estágios. Apesar de sua grande importância, as estratégias de periodização não são, contudo, nem um pouco óbvias.

Tomemos alguns casos. Como determinar, por exemplo, quando a lín-

gua portuguesa nasceu? Em outras palavras, quando exatamente as

pessoas que habitavam a atual região de Portugal deixaram de falar

latim (ou algum estágio do latim) e passaram a falar português? Há uma

data exata para tanto? Certamente, não. Por mais útil que possa ser, não

encontraremos nenhuma afirmação do tipo “A língua portuguesa nas-

ceu no dia 06 de janeiro de 1112, precisamente às 14 horas e 23 minu-

tos”. A razão para tanto é simples: as línguas são dinâmicas, assim como

seus falantes e sua história. Não há nenhum momento ou ponto preci-

so no tempo que sirva como um marco para uma mudança linguística

específica. Sendo assim, é necessário que os pontos que delimitam um

dado período sejam escolhidos pelos pesquisadores. Em geral, as da-

tas escolhidas são aquelas que têm alguma relevância histórica, seja

do ponto de vista político, cultural ou outro. Isso significa, entre outras

coisas, que diferentes pesquisadores usam diferentes marcos históricos

em suas periodizações da história de uma língua, o que resulta então

em diferentes periodizações para diferentes pesquisadores.

5

História da Língua

78

Para o caso da história do português, podemos citar as periodiza-ções a seguir (adaptadas de ILARI; BASSO, 2006, p. 20-21); na primeira coluna, indicamos datas e na primeira linha o nome do pesquisador responsável pela periodização logo abaixo de seu nome:

Leite de Vasconcelos

Serafim da Silva Neto

Pilar Vásquez Cuesta

Luís-Felipe Lindley-Cintra

Até o século IX (882)

português pré-his-tórico (até 882)

português pré-his-tórico (até 882)

português pré-lite-rário (até 1216)

português pré-lite-rário (até 1216)

900-10001000-1100

português proto-histórico (882 até

1214/1216)

português proto-histórico (até 1214/1216)1100-1200

1200-1300

português arcaico (1216 até 1385-

1412)

português trova-doresco (1216 até

1420)

galego-portu-guês (1216 até

1385/1420)

português antigo (1216 até

1385/1420)

1200-1300

1400-1500português co-mum (1420 até

1536/1550)

português pré-clássico (1420 até

1536/1550)

português mé-dio (1420 até 1536/1550)

1500-1600 português moderno

português moderno

português clássico (1550 até o séc.

XVIII)

português clássico (1550 até o séc.

XVIII)

1600-1700

1700-1800

1800-1900 português moderno

português moderno

1900-2000

Seguindo Ilari e Basso (2006), usaremos neste livro uma periodização

mais “solta”, mas nem por isso menos interessante quando se trata de

organizar os fatos de língua. Lançaremos mão de uma periodização

que divide a história do português em “português arcaico”, “português

clássico” e “português moderno”.

Neste livro, consideraremos que o português arcaico abrange o período que vai do nascimento da língua portuguesa, ou seja, fins do século XII e início do século XIII, até o início das grandes navegações portuguesas, em torno de 1415.

Data da tomada de Ceuta, no norte da África,

pelos portugueses.

Capítulo 05O Português Arcaico

79

Por sua vez, o português clássico tem início justamente por volta de 1415 e consolida-se na impressionante obra Os Lusíadas, de Camões, datada de 1572. Nesse período relativamente curto, várias inovações e consolidações importantes ocorreram na língua portuguesa, aproxi-mando-a bastante da língua que falamos hoje. E, finalmente, o portu-guês moderno inicia-se em 1572 e segue seu curso – de modo diferente no Brasil, em Portugal, na África e na Ásia – até os dias de hoje.

Vale sempre lembrar que, apesar de usar consistentemente essa pe-

riodização, ela não é a única alternativa possível e, a depender dos ob-

jetivos em questão, ela pode nem sequer ser a mais adequada. Essa

e outras características formam o caminho das pedras de quem quer

estudar a história de uma língua e servem para exemplificar como é

complexa a interação entre fatores linguísticos e extralinguísticos ao

longo do desenvolvimento histórico de uma língua.

5.2 O português arcaico

O período aqui compreendido abrange desde a passagem do latim ao romance falado na região da Galiza e cobrirá as primeiras manifes-tações escritas do português até fins do século XIV e início do XV. Mui-tas mudanças foram reconhecidas nesse período, e pontuaremos nossa análise com trechos de alguns textos reconhecidos e estudados como parte desse período, como a Carta de Fundação da Igreja de Lardosa, e os textos escritos em galego-português propriamente dito, que datam do final do século XII e início do XIII, como a Notícia de Torto, datado entre 1210 e 1216, e a Demanda do Santo Graal. Há pelo menos dois outros textos importantes com relação ao nascimento da língua portu-guesa: a Notícia de Fiadores, datada de 1175, e o Testamento de Afonso II, de 1214.

5.2.1 Características da fase pré-literária (até finais do século

XII)

Algumas inovações fonéticas específicas do noroeste da península ibérica acabam por tornar os dialetos ali falados bastante diferenciados

Escrita em uma mistura de latim vulgar e romance galego-português, de 882.

Demanda do Santo GraalTexto literário tradu-zido dos romances de cavalaria franceses, escrito ao longo da primeira metade do século XIII.

História da Língua

80

com relação aos falares moçárabes do sul e em relação aos dialetos leo-nês e castelhano, do centro-norte da península. Esses desenvolvimentos começam a se dar no período da passagem do latim vulgar para o ro-mance, mas são atestados apenas nos esparsos documentos do período, escritos no chamado latim bárbaro, que misturava o latim vulgar com características específicas do romance do local. Desses traços de inova-ção, três são reconhecidos como os mais importantes, a saber:

• Os grupos consonantais cl-,pl- e fl- passam a ch, então pro-

nunciado[tʃ]:oprocessosedáatravésdapalatalizaçãodo letambémocorreunosterritóriosdoleonêsedocastelhano.No

entanto,nogalego-português,àpalatalizaçãoseseguiuatrans-

formação da consoante inicial em t, gerando uma alteração

maisprofundadoquenosoutrosdialetos.Assim,temosclavem

>chave[tʃave],pluvia>chuva,flamma>chama.Emcaste-

lhano,porexemplo,aconsoanteinicialdogrupodemoroumais

acair,eoresultadofoiogrupo ll,comoemllave,llama,coma

consoantepalatalinicial/λ/.Háexceçõesaessalei,naturalmen-

te.Algumas,especialmenteempalavrasmenospopulares,pas-

saramapr-,cr-efr-,comoplacere>prazereflaccu>fraco.Em

portuguêsmoderno,váriaspalavrasqueforamreimportadasdo

latimposteriormente comoempréstimoseruditosmantêmos

gruposlatinosoriginais,muitasvezesladoaladocomasformas

derivadasdogalego-português,comoéocasodeclavícula,do

latimclavicula[chavinha],inflamar,pluvial,entreoutras.

• O-ℓ -intervocálicocainamaioriadoscasos.Essamudançafoné-

ticafoimuitoimportantenesseperíodo,poiscriouumasériede

palavrascomhiatos,queseresolveriamapenasmaistarde.Te-

mos,dessaforma,palavrascomodolor>door,calente>caen-te(“quente”),voluntate>voontade,diabolu>diaboo,soles>soes(pluralde“sol”;éaquedado-ℓ -quenosexplicaessetipodepluralemportuguês).Naturalmente,empalavrasmaiseruditas

eemempréstimoslatinostardios,mantém-seo-ℓ -intervocáli-co,comoéocasodaformacalor,derivadadecalere,calente,deondeanteriormentederivamoscaente>quente.Ocastelhano

Capítulo 05O Português Arcaico

81

• eo leonêsnãoapresentaramessamudança,etemoshojeem

espanhol,porexemplo,caliente,dolorevoluntad.

• O-n- intervocálicocainamaioriadoscasos.Assimcomoofe-

nômeno anterior, essa queda traz consequências importantes

paraogalego-português,que,maisumavez,odiferenciamdos

outrosdialetos românicosdaPenínsula Ibérica.Oprocesso se

deuprovavelmenteatravésdanasalizaçãodavogalanteriorao

-n-,easetapaspodemserresumidasemluna>lũna>lũ-a (ohífen,utilizadoaquicomoelementodidático,representaohia-

to)>lua(portuguêsmoderno).Maisexemplospodemservistos

aseguir:manu>mãnu>mão,bonus>bônu>bõo (bom),

arena>arẽa(areia),vinu>vĩo(vinho),lana>lãa(lã),homi-nes>homẽes.Essamudançacausagrandeimpactonogalego-

-português,pelacriaçãodeumagrandequantidadedehiatos

comvogaisnasais,queseresolveriamapenasposteriormente.

Alémdisso,osoutrosdialetosromânicosnãotiveramessaper-

da, comopodemosver comos termosemespanhol:mañana

“manhã”,luna“lua”,mano“mão”.

As características morfológicas do galego-português seguem as tendências do latim vulgar; são, portanto, semelhantes às dos outros dialetos românicos da península, como o castelhano. Podemos ver, por exemplo, que a declinação nominal latina se simplifica ao ponto do desaparecimento, e os substantivos acabam por apresentar somente as formas de singular e plural, derivadas do acusativo latino. Os gêneros reduzem-se a dois, com a perda do neutro e incorporação das palavras deste gênero ao masculino. O sistema verbal segue a tendência de sim-plificação do latim vulgar e apresenta várias formas perifrásticas novas, como o novo futuro a partir do auxiliar habere + infinitivo (amare ha-beo > amar hei > amarei). O artigo definido é desenvolvido a partir do demonstrativo latino ille, illa, illud: inicialmente, tínhamos lo, la, los, las, que, frequentemente após palavras terminadas em vogal, acabavam por seguir a tendência da perda do -l- intervocálico, o que resultou em nossos artigos atuais, o, a, os, as. Seguindo também a tendência do la-

História da Língua

82

tim vulgar, a perda das declinações resultou no uso de preposições para marcar as funções sintáticas dos antigos genitivo, dativo e ablativo, e, consequentemente, a ordem de palavras ficou mais rígida.

O léxico do português

A grande maioria das palavras que formam o léxico do português

originou-se do latim e adquiriu sua forma atual ao longo de diversos

processos fonéticos, que envolvem desde a erosão de certos fones

até a inclusão de vogais para evitar encontros consonantais. Contu-

do, ao lado dos processos naturais ou populares através dos quais

as palavras latinas adquiriram sua forma portuguesa, encontramos

também outros processos que testemunham diferentes fases dos

processos históricos que envolvem a forma do léxico.

Se tomarmos como exemplo a palavra latina planum temos como

resultado de sua derivação popular ou natural a palavra portuguesa

chão e temos, através de uma derivação erudita, a palavra plano.

A diferença entre a derivação popular e a erudita está no fato de

que temos na primeira um processo vernacular e na segunda uma

importação consciente de um étimo latino, em geral para fins literá-

rios. O mesmo se dá com o par olhos e óculos, ambos derivados da

palavra latina oculos através de derivação natural e erudita respecti-

vamente. Devido ao fato de que o latim, mas também o grego, estão

sempre disponíveis para deles emprestarmos étimos e formarmos

novas palavras ou termos (basta pensar, no caso de étimos gregos,

nos usos recentes da raiz bio, como em biocombustível, biosfera,

biodegradável, etc.), essas línguas podem ser chamadas de adstra-

tos permanentes.

Ao lado das derivações natural e erudita, encontramos às vezes uma

derivação semierudita, na qual uma forma intermediária entre as

duas é usada. Os étimos latinos macula e articulum resultaram, res-

pectivamente, nas formas populares, semieruditas e eruditas ma-lha, mancha e mágoa, mácula, e artelho, artigo e artículo.

Capítulo 05O Português Arcaico

83

5.2.2 De 1200 em diante

Conforme vimos no capítulo anterior, é no século XII que Portugal se torna independente da Galiza e de Leão, e os fatos políticos do perí-odo acabam por diferenciar os dois territórios, dando origem à fase do português propriamente dito. Dessa separação se seguem as conquistas dos territórios mouros ao sul, de modo que, em pouco tempo, o terri-tório de Portugal já estaria praticamente idêntico ao de hoje. A língua portuguesa, nascida do galego-português medieval ao norte, é levada ao sul com os movimentos da Reconquista, e com a capital transferida para Lisboa em 1255 a fixação da língua culta não mais derivará dos falares do norte, mas sim da zona de influência da capital e de Coimbra.

Os textos desse período são variados, e os principais gêneros po-dem ser classificados em:

1. Poesia lírica trovadoresca: a poesia lírica provençal influen-

ciará um período bastante fértil de produção de literatura em

galego-português. Os três cancioneiros editados desse período

são o Cancioneiro da Ajuda (de fins do século XIII), o Cancio-neiro da Vaticana e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. São compilações de poesias de trovadores classificadas

em: cantigas d’amigo, poemas de amor com eu lírico feminino;

cantigas d’amor, mais eruditas, com eu lírico masculino; canti-

gas de escárnio e maldizer; poemas satíricos de invectiva, mais

grosseiros que os anteriores. Os poemas trovadorescos mais an-

tigos datam do início do século XIII e o gênero desaparece em

meados do século XIV, com o último trovador, D. Pedro de Bar-

celos, filho bastardo de D. Dinis.

2. Documentos oficiais e particulares: trata-se de leis, forais, tes-

tamentos, títulos públicos, entre outros. Desse grande gênero

temos os dois textos mais antigos escritos em galego-português

que restaram até hoje, o Testamento de Afonso II e a Notícia do Torto, ambos com datação mais provável de 1214. Além disso,

há grande quantidade de documentos escritos em latim mes-

História da Língua

84

clado com romance galego-português desde finais do século XI

até os séculos XIII e XIV, quando a maioria dos textos já era escri-

ta apenas em português.

3. Prosa literária: O século XIII viu o início da tradição da prosa li-

terária em português. Os romances de cavalaria franceses do ci-

clo arturiano foram traduzidos para o português provavelmente

a partir do final do século XIII e ao longo do século XIV. Desse

ciclo, temos em português os romances Demanda do Santo Graal, Merlim, Livro de José de Arimateia e Livro de Tristan.

Além disso, ao longo do século XIV temos os documentos Livro

de Linhagens, de D. Pedro, conde de Barcelos, e a Crônica Geral de Espanha, de 1344, primeiros textos da historiografia escrita

em português.

4. Textos religiosos: Há diversas vidas de santos e obras de espi-

ritualidade nesse período, como a Regra de S. Bento, do início

do século XIV, Vida de S. Nicolau de Myra, e Vida de Cristo, do

início de meados do século XV.

5.2.3 Características do português arcaico

Para essa seção, nos guiaremos pela apresentação de Teyssier (1997), devido à brevidade com que ele apresenta as características do período.

a) Fonética e fonologia

O quadro de vogais do português arcaico já era bastante próximo do português moderno, com as sete vogais orais tônicas derivadas do latim vulgar (após a perda da duração das vogais do latim clássico): /a/, /e/, /ɛ/, /o/, /ɔ/, /i/, /u/. As vogais átonas finais do português arcaico eram bastante reduzidas: /i/ (pleno, não reduzido como no português moderno), /a/, /e/ e /o/. Em posição não final, as vogais átonas eram /a/, /e/, /i/, /o/ e /u/.

O sistema consonantal era bastante próximo do moderno, com as importantes exceções dos pares /ts/, /dz/ e /tʃ/ e /dʒ/, como em çapato

Para informações mais aprofundadas, leia Castro

(2006) e Hauy (2008).

Capítulo 05O Português Arcaico

85

/tsapato/, fazer /fadzer/, chaga /tʃaga/, já /dʒá/. O primeiro par de con-soantes apresentava-se em oposição a /s/ e /z/, como em cen /tsen/ X sem /sem/, e cozer /codzer/ X coser /cozer/. Já /tʃ/ apresentava-se em oposição a /ʃ/, grafado com x. A africada /dʒ/, por sua vez, apresentava flutuação em alguns casos em que a oclusiva inicial não era pronunciada, e acabou por perder a oclusão por completo, resultando em /ʒ/ apenas no portu-guês moderno. Assim, o português de então apresentava um sistema de consoantes que opunha: /ts/, /dz/, /tʃ/, /dʒ/, /s/, /z/, /ʃ/ e /ʒ/.

A criação das cinco vogais nasais se deu pela perda de consoantes nasais que as seguiam, o que foi grafado inicialmente pelo til, que era inicialmente um n abreviado acima da vogal como sinal diacrítico. Em muitos casos, as consoantes nasais não caíram na ortografia, e o predo-mínio inicial do n final foi sendo substituído por um m final, que aca-bou sendo a consoante nasal final em todos os casos. Os hiatos nasais criados pela queda do -n- intervocálico acima geraram instabilidade em muitos casos, como em vĩ-o e pĩ-o, que se resolve com a epêntese da palatal /ɲ/ em vinho e pinho, ou com a queda da nasalização, como em bõ-a > boa. Em outros casos de palatalização, ocorre ainda a epêntese da semivogal /j/, como em alheo > alheio.

A grande quantidade de hiatos criados pelas quedas de consoantes intervocálicas como -n-, -l-, -g- (como legere > leer) e -d- (sedere > seer) irão permanecer durante esse período, resolvendo-se posteriormente nas formas que vimos no parágrafo anterior, ou ainda em crase das vo-gais, como leer > ler e seer > ser.

b) Morfologia e sintaxe

Apresentamos na sequência algumas das características morfossin-táticas mais importantes desse período:

Ӳ A queda de -l- e -n- intervocálicos tem consequências para a morfologia dos plurais: assim, os nomes terminados em l man-têm a consoante no singular mas a perdem no plural, como vemos em sol > sol, mas soles > soes (port. arc.) > sóis (port. moderno);

Ӳ Os nomes derivados das terminações -anus, -anis, e –onis têm seus singulares e plurais formados a partir dos seguintes movi-

História da Língua

86

mentos: manus > mano > mão X manos > mã-os (port. arc.) > mãos; leo > leon(e) > leon (port. arc.) > leão X leones > leõ-es (port. arc.) > leões. Podemos perceber, aqui, que a queda do -n- intervocálico criou os hiatos arcaicos, que iriam se resolver em ditongos nasais posteriormente. No singular, o n final não cai, sendo pronunciado como consoante por um bom tempo, vin-do a se transformar em ditongo nasal somente muito depois;

Ӳ Os pronomes possessivos possuíam formas diferentes tônicas e átonas no feminino, como se pode ver abaixo:

Masculino Feminino

Tônicos Átonos

meu mia, mĩa, minha mia, mha, ma

teu tua ta

seu sua sa

O sistema de pronomes dêiticos (demonstrativos e advérbios de lugar) organizava-se da seguinte forma: este/aqueste X esse X aquel(e), já antecipando a forma atual de distinção entre este, esse e aquele; aqui/acá/acó X ali/alá/aló.

Havia, também, dois advérbios anafóricos derivados do latim que eram muito frequentes em português arcaico: (h)i, “aí/ aqui”, derivado do latim ibi, e ende/en, “daí, a partir de”, derivado do latim inde.

O sistema verbal já era praticamente idêntico ao do português mo-derno, com algumas peculiaridades do período, como:

• O infinitivo flexionado, um traço específico do galego-portu-

guês,jáeraencontradoemformascomoteer,teerdes,teermos,entreoutras.Essacaracterísticanãosedesenvolveunoleonêse

nocastelhano;

• Asformasetimológicasdasegundapessoadopluralem–des,derivadasdolatim–tis,aindasemantinham:amades,seerdes(futuro)eleixedes(subjuntivo);

Capítulo 05O Português Arcaico

87

• Asterceiraspessoasdosingulardoperfeitoapresentavamflu-

tuaçãode formas,comoemfizoe fez,de“fazer”,disso/dixoedisse,de“dizer”,entreoutras;

• Os verbos da segunda conjugação formavamparticípio em–

udo, como creúdo, de creer, conheçudo, de conhocer, entreoutros;

• Asformasdetratamentoeramapenasasdesegundapessoa,tu

(pessoal)evós(dedeferência),demodoqueaindasedesconhe-

ciamformascomovossa mercede >vosmecê>você.’’

5.3 Textos comentados

Para podermos ver em síntese as características arroladas anteriormente,

nada melhor do que olharmos para trechos de textos do período galego-

-português. Juntamente com os trechos, tecemos alguns comentários a

fim de ilustrar as características da língua do período. Iniciaremos com

um trecho do documento mais antigo escrito em latim bárbaro na re-

gião, a Carta de dotação e fundação da Igreja de S. Miguel de Lardosa,

de 882, que já apresenta alguns termos em romance galego-português

e algumas das tendências que se consolidarão na língua. Logo após, ve-

remos um trecho da Notícia do Torto, de 1214, e concluiremos com um

trecho de A Demanda do Santo Graal, de fins do século XIII.

5.3.1. Carta de dotação e fundação da Igreja de S. Miguel de

Lardosa, de 882

(P03) [...] damus adque concedimus ad deum et ad ipsa baselica que nos

fundamus in nomine sancti petri et pauli et sancti migaeli arcangeli [...]

Além dos vulgarismos esperados em um texto latino do século IX,

História da Língua

88

já se percebem neste texto alterações específicas do galego-português, como a redução do ditongo ae no pronome quae > que, e a sonorização da oclusiva no nome do arcanjo Miguel, michaeli > migaeli.

(P06) [...] et uia moastica obtinuerint in ipso loco sibe pro luminaria al-

tariorum u[e]strorum uel elemosias pauperum sicut lex et canonica se-

tentia doce [...]

Aqui podemos ver um dos mais antigos exemplos da queda do -n- intervocálico, em monastica > moastica e elemosynas > elemosias, “es-molas”.

(P08) [...] sint dimersit in baradro inferni ubi fletus et ullulatus et ana-

thema marenata accipiat et in conspectu domini et non abeant cum

domino in prima resurectione ressusitandi nisi perc[usu]s [...]

Mais uma vez, podemos perceber a tendência à sonorização de oclusivas no exemplo barathrum > baradro, “báratro, inferno”.

O texto latino, recheado de vulgarismos, seria um interessante

ponto de análise do percurso do latim clássico ao latim vulgar na

Península Ibérica, mas limitações de espaço e o escopo deste livro

impedem um aprofundamento neste Capítulo. Por ora, basta perce-

ber que algumas das características que o galego-português viria a

ter já se encontravam no latim vulgar, ou, neste caso, bárbaro, dos

documentos desse período, recheados de termos do romance e de

alterações que apontavam para a especialização dialetal.

5.3.2. A Notícia de Torto

A Notícia de Torto é um documento que apresenta queixas for-muladas pelo fidalgo Lourenço Fernandes da Cunha contra os filhos de um nobre que era seu vizinho e parente, Gonçalo Ramires. As queixas foram escritas pois os filhos de Gonçalo Ramires, que deveriam dividir a herança de seu pai também com Lourenço Fernandes da Cunha, não o fizeram, e além disso lhe inflingiram uma série de ofensas, chamadas de tortos, descritas no documento. Leremos apenas as primeiras linhas do documento, datado de cerca de 1210 a 1216.

Fonte do texto: Transcri-ção interpretativa estreita

do texto, publicada pelo Projecto Origens do Por-tuguês, da Faculdade de Ciências Sociais e Huma-

nas da Universidade Nova de Lisboa. Disponível em:

<http://www2.fcsh.unl.pt/philologia/CARTA882.

html>. Acesso em: 05 maio 2010.

Editado por Luís Felipe Lindley Cintra em: “Sobre o mais antigo texto não-

-literário português: A Notícia de Torto (Leitura

crítica, data, local da reda-ção e comentário linguís-

tico)”, Boletim de Filologia, Lisboa, 1990, XXXI (1986-

1987, p. 21-77).

Capítulo 05O Português Arcaico

89

1. De noticia de torto que fecerũ a Laurcius Fernãdiz por plazo qve

fece Gõcauo

2. Ramiriz antre suos filios e Lourẽzo Ferrnãdiz quale podedes sa-

ber: e oue auer, de erdade

3. e dauer, tãto quome uno de suos filios, daquãto podesẽ auer de

bona de seuo pater; e fiolios seu

4. pater e sua mater. E depois fecerũ plazo nouo e cõuẽ uos a saber

quale; in ille seem1

5. taes firmamentos quales podedes saber Ramiro Gõcaluiz e Gõ-

caluo Gõca [luiz e]

6. Eluira Gõcaluiz forũ fiadores de sua irmana que o[to]rgase aqu[e]

le plazo come illos

7. Super isto plazo ar fe[ce]rũ suo plecto. E a maior aiuda que illos

hic cõnocerũ, que les

8. Acanocese2 Laurẽzo Ferrnãdiz sa irdade per plecto que a teuese

o abate de Sancto Martino

9. que, como uẽcesẽ3, que asi les dese de ista o abade. E que nun-

qua illos lecxasẽ

10. daquela irdade4 d[.] sẽ seu mãdato. Se a lexarẽ, ĩtregarẽ ille de

octra que li plaza.

11. E dauer que ouerũ de seu pater, nu[n]qua le li5 ĩde derũ parte

Segue a reconstrução aproximada para o português moderno en-contrada em Castro (2006, p. 131 e ss.):

1seem: o segundo e foi acrescentado na entrelinha.2 acanocese: no ms. acanocerse, com r ras-pado mas ainda visível.3 uẽcesẽ: seguido de várias letras riscadas.4 irdade: seguido de uma mancha que pare-ce esconder uma letra.5 le li: le parece cortado com um traço muito leve.

História da Língua

90

1. De notícia do torto que fizeram a Lourenço Fernandes pelo pacto que fez Gonçalo

2. Ramires entre seus filhos e Lourenço Fernandes, o qual podedes saber: e havia de ter, de herança

3. e de haver, tanto como cada um de seus filhos de quanto pudessem ter dos bens de seu pai; e

foram-lhe fiadores deles seu

4. pai e sua mãe. E depois fizeram pacto novo e convém-vos saber qual: em ele constam

5. tais disposições quais podedes saber. Ramiro Gonçalves e Gonçalo Gonçalves e

6. Elvira Gonçalves foram fiadores de sua irmã, para que outorgasse aquele pacto com eles.

7. Sobre esse pacto fizeram seu preito. E para maior prova de que eles o reconheceram, que lhes

8. Reconhecesse Lourenço Fernandes a sua herança por preito, que a detivesse o abade de São Mar-

tinho,

9. que, conforme adquirissem outra, que assim lhes desse o abade parte dela. E que eles nunca alie-

nassem

10. parte daquela herança em seu consentimento. Se a alienassem, dar-lhe-iam outra a seu prazer.

11. E dos haveres que tiveram de seu pai, nunca deles lhe deram parte [...]

Fonte: MARTINS, Ana Maria. Emergência e generalização do portu-guês escrito: de D. Afonso Henriques a D. Diniz. In: BIBLIOTECA NACIONAL (Org.). Caminhos do Português: expo-sição comemorativa do ano europeu das línguas – Catálogo. 1.ed. Lisboa: BN, 2001 [reprodução da página 25, por escaneirização]. Disponível em: <http://cursodefilologiaportuguesa.blogspot.com/2008/08/2-manuscrito-portugus-sculo-xiii-notcia.html>. Acesso em: 05 abr. 2010.

Capítulo 05O Português Arcaico

91

Breve comentário:

Os comentadores e editores do texto apontam para o caráter de confusão ortográfica que provavelmente se deve à falta de familiaridade com a escrita do escriba responsável pelo texto. Vemos, então, troca de u por v, como em qve, grafia generalizada da sibilante surda intervocá-lica como s, como em asi e dese, e variações ortográficas para o mesmo vocábulo, como lecxasẽ e lexarẽ (a grafia x latina correspondia ao encon-tro /xs/, que se simplificaria no português, neste vocábulo, em /ʃ/ com a posterior ditongação da vogal anterior, resultando em leixar > dei-xar). Percebe-se também o frequente uso de termos latinos, como pater, mater, bona (“bens”), ĩde (inde, cf. vimos acima, “daí”). Além disso, os processos de assimilação das consoantes nasais pelas vogais são marca-dos pelo til, que não estavam todos apontados no manuscrito, mas que foram inseridos pelos editores.

O efeito mais importante que esperamos conseguir com esse pequeno

trecho é o de apresentar ao leitor o primeiro documento escrito em por-

tuguês de modo a mostrar como ele já é relativamente fácil de compre-

ender para um falante de português contemporâneo. As questões or-

tográficas são secundárias, e já é possível perceber que a língua, em sua

estrutura geral, se aproxima bastante do português de hoje e se afasta

radicalmente do latim vulgar que vemos no texto comentado anterior-

mente, praticamente ilegível para quem não estudou história do latim.

5.3.3. A Demanda do Santo Graal

A Demanda do Santo Graal é uma tradução para o português, da-tada do final do século XIII, de uma das novelas francesas que tinham como tema as aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Re-donda. Entre esses cavaleiros, destacam-se Lançarote do Lago, Boors, Perceval e Galaaz, filho de Lancelote, e que estava destinado a encontrar o Santo Graal. A edição que seguimos aqui é a de Augusto Magne, de 1944. O trecho que leremos é o início da obra como sobrou para nós. Dado que ela foi editada e copiada em vários manuscritos do século XIII ao XV, algumas características vistas no texto já são da fase seguinte do português, a fase de transição entre o português arcaico e o clássico.

Para uma análise mais aprofundada, veja-se CASTRO, Ivo. Introdução à história do português. 2.ed. Lisboa: Colibri, 2006.

Santo GraalCálice usado por Cristo na Última Ceia e no qual foi recolhido seu sangue quando Ele estava na Cruz.

MAGNE, Augusto (Ed.). A Demanda do Santo Graal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional / INL - Ministé-rio da Educação e Saúde, 1944. v. I e II.

História da Língua

92

1. Véspera de Pinticoste foi grande gente assũada em Camaalot,

assi que podera homem i veer mui grã gente, muitos cavalei-

ros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui

ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir; e toda rem

que entendeu per que aquela corte seeria mais viçosa e mais

leda, todo o fêz fazer.

Aquel dia, que vos eu digo, direitamente quando queriam poer as

mesas – êsto era ora de noa – aveeo que ũa donzela chegou i,

mui fremosa e mui bem vestida; e entrou no paaço a pee, como

mandadeira. Ela começou a catar de ũa parte e da outra, pelo

paaço; e perguntavam-na que demandava.

Eu demando, disse ela, por dom Lançalot do Lago. É aqui?

Si, donzela – disse ũu cavaleiro. Veede-lo: stá aaquela freesta,

falando com Dom Galvam.

Ela foi logo pera el e salvou-o. Ele, tanto que a viu, recebeu-a mui

bem e abraçou-a, ca aquela era ũa das donzelas que moravam na

Ínsoa da Lediça, que a filha Amida del-rei Peles amava mais que

donzela da sua companha.

2. Ai, donzela, disse Lançalot, que ventura vos adusse aqui? Que

bem sei que sem razom nom veestes vós?

Senhor, verdade é; mais rogo-vos, se vos aprouguer, que vaades

comigo aaquela foresta de Camaalot; e sabede que manhãa,

ora de comer, seeredes aqui.

Certas, donzela, disse el, muito me praz; ca teúdo soom de vos

fazer serviço em tôdalas cousas que eu poder.

Entam pedio suas armas. E quando el-rei vio que se fazia armar a

tam gram coita, foi a el com a raĩa e disse-lhe:

Como? Leixar-nos queredes aatal festa, u cavaleiros de todo o

mundo veem aa côrte, e mui mais ainda por vos veerem ca

Capítulo 05O Português Arcaico

93

por al: deles por vos veerem, e deles por averem vossa compa-

nha?

Senhor, – disse el – nom vou senam a esta foresta com esta don-

zela que me rogou; mais cras, ora de terça, seerei aqui.

Este trecho apresenta o momento em que a donzela entra no palá-cio em busca de Lancelote, para levá-lo ao seu castelo, onde ele tornaria Galaaz cavaleiro. Galaaz, como dissemos anteriormente, era o cavaleiro mais virtuoso, que conseguirá encontrar o Graal, após muitas aventuras.

O sentido, em geral, é bastante claro, apesar de algumas dificulda-des lexicais. A passagem mais complexa, que necessita de explicação, talvez seja: “Como? Quereis deixar-nos em tal festa, para onde cavalei-ros de todo o mundo vêm à corte, muito mais ainda para vos ver do que por outra coisa? Alguns deles para vos ver, e outros deles por ter vossa companhia?”

Do ponto de vista linguístico, há muita interferência de períodos posteriores do português, mas podemos perceber várias características específicas do período arcaico. Os trechos em negrito serão comentados a seguir.

• assũada:reunida.

• homem: o substantivo é usado aqui comoon em francês ou

Manemalemão: trata-sedeumuso impessoal,quepodeser

parafraseadocomo“alguémpodiaver”ou“podia-sever”.

• i:comodissemosacima,oanafóricoi,derivadodolatimibi,sig-nifica“aí”,“ali”,“nesselugar”.

• veer:vemosaquiumadassíncopesconsonantaistípicasdope-

ríodoarcaico:dolatimvideretemosveer,comaquedadodin-tervocálico.

História da Língua

94

• ende: conforme discutido acima, o ende, derivado do latim

inde,significa“daí”,ouainda,“porisso”.

• ledo:dolatimlaetus,“feliz”.

• rem:dolatimres,“coisa”,“propriedade”.

• seeria: do latim sedere,“estar sentado”,paraoportuguês seer,temosmudançafonéticatípicacomasíncopedodintervocálicoemudançadesentido,emqueoverboseersemesclaaoverbo

esse,“ser”,assumindoosentidomaisespecíficodoverbo“ser”em

português,opostoaoverbo“estar”,derivadodestare,“estarem

pé,estarparado”.

• poer:dolatimponere,temosaquiumdosexemplostípicosda

síncopedonintervocálicodiscutidaacima.

• ora de noa:“horanona”,comsíncopedon:equivaleàstrêsho-

rasdatarde.

• aveeo:dolatimhabere,comfricativizaçãodobecrasevocálica,

resultariaposteriormenteemhouve.Osentidoaquiépróximo

de“ocorreuque”.

• ũa:dolatimuna.Temosaquiumexemplodamudançadefun-

çãodopronomenumerallatino,quejáéusadocomoartigoin-

definido,alémdemaisumexemplodesíncopedonintervocáli-coseguidadenasalizaçãodavogalanterior.

• paaço:dolatimpalatio,comsíncopedolintervocálicoepala-

talizaçãodasequência–tio.

• pee:dolatimpedes,“pé”,comsíncopedodintervocálico.

• mandadeira:dolatimtardiomandatarius,“mensageiro”.

• catar:osentidoarcaicodoverboaquiépróximoaode“procu-

rar”.

Capítulo 05O Português Arcaico

95

• veede:doimperativolatinovidete,temosaformaveede,com

síncopedod intervocálicoemanutençãodo–decomoflexão

desegundapessoadoplural.

• ca:derivadodolatimquia,trata-sedeumaconjunçãoquesig-

nifica“pois”,“por isso”.Ofrancêsmantémumaformaparecida:

car.Emportuguês,esseusodesapareceu,sendosubstituídopor

outrasconjunções.

• ínsoa:dolatiminsula,“ilha”.Temosaquimaisumasíncopedel

intervocálico,resultandoemhiato.

• adusse:dolatimadduxit,“conduziu”.

• manhãa:do latimvulgar*maneana,derivadoda formaclás-

-sicamane.Temosaquidoisfenômenosdistintoscomrelação

aonintervocálico:elesepalatalizaemnh(/ɲ/)provavelmente

depoisdasíncopedosegundon,resultandoemhiatocomvo-

galtônica.

• teúdo:particípiopassadoem–udodasegundaconjugação,do

verbotenerelatino.

• soom:formadeprimeirapessoadosingulardoverbosum la-

tinoemsua formavulgar.Funcionacomoauxiliar juntamente

comteúdoparaformaravozpassiva:“souobrigado”.

• raĩa:dolatimregina,comsíncopesdogedonintervocálicos,criandohiatocomvogalnasal,quedepoisviráaseresolvercom

aconsoantepalatal/ɲ/em“rainha”.

• queredes:doverbolatinoquaerere,“procurar”,queespecializaseusentidonolatimvulgarenoportuguêsarcaico,chegando

aosentidode“querer”.Dopontodevistafonético,note-seama-

nutençãodo-d-nadesinênciadesegundapessoadoplural.

• u:dolatimubi,“onde”.Provavelmenteobcaiuemsíncopein-

tervocálicaeoadvérbiosimplificou-separaumasílabaapenas.

História da Língua

96

Trata-se de uma forma que ainda sobrevive, por exemplo, no où

francês, mas que não sobreviveu em português.

• ca por al: “do que por outra coisa”. Al é uma forma derivada do

advérbio latino alius, aliud, “outro”, “outra coisa”. Essa forma so-

brevive em português apenas em empréstimos eruditos, como

“alternar” e “alteridade”.

• averem: do latim habere, com perda da oclusiva e passagem a

fricativa. O verbo aqui tem o sentido de “ter”.

• cras: latinismo, cras significava em latim “amanhã”, de onde te-

mos em português, por exemplo, o verbo “procrastinar”.

Capítulo 06O Português Clássico

97

O português clássicoNeste capítulo, olharemos para algumas características do português

clássico. É nessa fase do português que se encontram importantes obras literá-

rias, como “Os Lusíadas”, assim como importantes consolidações da estrutura

da língua.

Introdução

Conforme apresentamos em nossa periodização, a fase do portu-guês clássico engloba o período que vai de 1415 até 1572, coincidindo com o início das grandes navegações portuguesas e culminando com a publicação do épico Os Lusíadas. Em 1415, com a conquista de Ceu-ta, no norte da África, inicia-se um processo que levará o português para muitas regiões para além do mar, como o Brasil e vários territó-rios na costa da África, além da Índia e de outros territórios asiáticos. Mas esse período também foi muito importante para a consolidação de uma língua literária de forte expressão, especialmente com o advendo da dinastia de Avis, ou melhor, com a chamada Ínclita Geração, dos três filhos de D. João I, que viveu entre 1385 e 1433: D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique. Os três, em graus variados, foram responsáveis por uma pro-dução erudita inspirada por autores clássicos como Arisóteles, Cícero e Sêneca, escreveram obras importantes, como o Leal Conselheiro, de D. Diniz, e várias obras traduzidas dos clássicos.

Nesse período, a Universidade de Coimbra, fundada em 1290, é instalada em Lisboa e depois retorna a Coimbra, exercendo papel im-portante na produção e disseminação das letras, da gramática, da dia-lética e da retórica. Ao longo do século XV, também floresce a prosa historiográfica, com nomes importantes como Fernão Lopes. Todo esse movimento culminaria com o estabelecimento do português clássico, especialmente em virtude da produção renascentista, no qual a língua viria a se consolidar e retomar vários aspectos do latim, perdendo diver-sas alterações vulgares que vinham se desenvolvendo desde o período galego-português.

6

História da Língua

98

O período aqui compreendido, portanto, é aquele em que vemos o

centro de cultura de Portugal ser transportado do norte conservador

galego-português para o sul, no eixo Coimbra-Lisboa. O resultado disso

é uma mudança no modo de desenvolvimento da língua do sul, que

se baseia nos clássicos para desenvolver uma língua literária comum

(como uma koiné), supradialetal, que exercerá uma forte influência nos

períodos posteriores. A ruptura com o galego-português se dá com a

independência de Portugal e com o deslocamento da corte para o sul,

além do declínio natural na atividade literária trovadoresca (e a ruptura

com a influência provençal), ocorrendo assim uma mudança geral no

panorama linguístico-literário em Portugal.

6.1 Características do português clássico

As conquistas territoriais também foram importantes para a consoli-dação da língua portuguesa. Por volta de 1500, muitas das grandes navega-ções portuguesas já haviam ocorrido, frutos do impressionante movimento expansionista português. Nessa altura, Portugal já conhecia, além das ilhas da Madeira, os Açores, bem como Cabo Verde, a América, a África e tam-bém vários domínios na Ásia, como Damão, Macau, Ceilão (Sri-Lanka), Bombaim etc. O contato com diferentes realidades, povos, culturas e lín-guas exerceu algum impacto na língua portuguesa, principalmente em re-lação ao seu léxico, que incorporou inúmeras palavras originárias desses locais então exóticos – o português teve contato, durante a sua fase clássica, com diversas línguas, literalmente das mais diferentes partes do globo. Al-guns exemplos dessas incorporações lexicais são: zebra (do etíope), canja (do malabar, língua falada no Sri-Lanka), chá (mandarim), condor e lhama (do quéchua), chocolate (azteca), manga (indonésio), sagu (malaio), várias palavras de origem tupi, como ananás, amendoim, mandioca etc.

É sempre bom lembrar que o processo de empréstimos e enriqueci-

mento do léxico nunca para; posteriormente, o português também se

enriqueceu de palavras provenientes de outras línguas europeias, como

o francês, o italiano, o espanhol e, bem mais recentemente, do inglês.

Capítulo 06O Português Clássico

99

Para além de empréstimos das mais variadas línguas, o léxico so-freu grandes mudanças. Como vimos, com a perda do gênero neutro, muitas palavras apresentaram flutuações de gênero, de modo que ora eram masculinas, ora femininas. Nos períodos anteriores, inclusive, di-versas formas terminadas em consoante não possuíam formas diferen-tes para o masculino e o feminino. Uma dessas formas, muito frequente no período galego-português, é a forma de “senhor”, usada tanto para o masculino quanto para o feminino. Ao longo do século XV, no entanto, inicia-se um movimento de regularização dos gêneros, de modo que, possivelmente por causa da influência da nova forma “senhora” para o feminino, vários nomes terminados em consoante começam a receber uma forma feminina em –a. Assim, esse processo analógico se estende a outras formas, como as terminadas em –agem, que flutuavam em gêne-ro, e passarão a ser femininas (“linguagem” e “linhagem”, por exemplo, eram masculinas anteriormente).

Ainda do ponto de vista lexical, como dissemos anteriormente, o

século XV começa a receber muitos empréstimos latinos, em vir-

tude da chegada do Renascimento a Portugal. Da Ínclita Geração

dos príncipes de Avis até Camões, o português recebe um grande

influxo de latinismos, muitos dos quais virão a se fixar como formas

principais, enquanto outras sobreviverão lado a lado com as formas

mais antigas, que derivaram do latim vulgar.

Algumas das principais mudanças desse período de transição ini-ciado no século XV, que levaria ao português clássico, podem ser perce-bidas mais facilmente no plano fonológico. Vejamos algumas das mu-danças mais importantes:

• Síncopedo-d-nasegundapessoadoplural:emD.DinizeFer-

nãoLopesjáépossívelperceberqueo‘d’dasegundapessoado

pluralestavaseresolvendodaseguintemaneira:estades>esta-

es>estais,vendedes>vendees>vendeis.Umdadoimportante

éofatodeque,naspeçasdodramaturgoGilVicente(c.1465–c.

1536),o-d-intervocálicodesegundapessoadopluralaparece

comomarcadearcaísmonafaladepessoasmaisvelhas,oque

História da Língua

100

demonstra que, para o público do período, essa característica

era percebida como um traço de arcaísmo.

• Eliminação dos hiatos: como vimos no Capítulo anterior, uma

grande quantidade de hiatos foi criada com as quedas dos l, n, d

e g intervocálicos. Além disso, a recente perda do d na segunda

pessoa do plural aumentou a quantidade de hiatos. Esse período

de transição que inicia o período clássico resolveu o problema

dos hiatos através de três processos básicos: a monotongação, a

ditongação e a epêntese. Vejamos alguns exemplos:

1. Monotongação:

• quando o hiato consistia de vogais idênticas, ocorria a crase:

dolore > door > dor;

• quando o hiato consistia de vogais diferentes, em alguns

casos houve inicialmente a assimilação de uma das vogais,

com posterior crase: palumbu > pa-ombo > poombo >

pombo.

2. Ditongação:

• Uma das vogais do hiato passa inicialmente a semivogal,

com posterior ditongação: deus > /dɛos/ > /dɛws/ > /dews/.

3. Epêntese:

Há dois tipos de epêntese para resolver os hiatos: a vocálica,

criando ditongos, e a consonantal.

• A epêntese vocálica inicial permite a criação de ditongo

posteriormente: credo > cre-o > creio

• As epênteses de consoantes preenchem o hiato com uma

consoante diferente da que havia sido sincopada anterior-

mente: vinu > vĩ-o > vinho (epêntese de //), uma > ũ-a >

uma (epêntese de /m/).

Capítulo 06O Português Clássico

101

Outro fenômeno importante do período foi a unificação das ter-minações em ditongo nasal. Formas variadas como leõ (leão) e cã (cão), entre outras, resultariam no ditongo –ão /ɐw/. Vejamos o quadro a se-guir, de Castro (2006, p. 161):

Latim Português arcaico Português clássico

tam -am

-ɐw

dant -ant dã

pane -ane pã

sum -um

sunt -unt sõ

oratione -one oraçõ

multitudine -udine multidõe > multidõ

veranu -anu-ã-u

verão

vadunt adunt vão

O sistema de sibilantes também apontava para uma simplificação. Nesse período, as sibilantes /ts/ e /dz/ já começavam a perder a oclusiva inicial, gerando algumas confusões por causa de homofonia com formas em /s/ e /z/. No século XV, no entanto, é possível afirmar que o sistema de quatro sibilantes ainda era /ts/, /dz/, /s/ e /z/, devidamente marcadas ortograficamente, gerando as seguintes oposições:

/ts/-/dz/ aceite – azeite

/s/ - /dz/ assar – azar

/ts/ - /s/ cela – sela

/s/ - /z/ cassa – casa

/ts/ - /z/ caça – casa

/dz/ - /z/ cozer – coser

A mudança para um sistema com apenas duas sibilantes, /s/ e /z/, completou-se em torno do século XVII.

Do ponto de vista morfológico, as mudanças mais importantes no século XV são:

História da Língua

102

• odesaparecimentodosparticípiosem–udodasegundaconju-

gação,queseregularizamem–ido,comoosoutros;

• regularizaçãodosparadgimasverbaisdeverboscomocrescer,

parecer, arder e perder. O subjuntivo desses verbos (paresca,nasca) e o indicativo (arço eperço) foram substituídos pelas

formaspareçaenasça,eardoeperdo(aformaatualéperco).

Com o nascimento de uma literatura mais sólida e com o forta-lecimento do Estado nacional, vemos na fase do português clássico as primeiras gramáticas portuguesas, assim como preocupações com o idioma nacional.

É interessante, neste ponto, citar um trecho do Leal Conselheiro, de D. Duarte, no qual ele discute o procedimento de tradução de palavras latinas para o português. Nota-se um cuidado grande em preservar as palavras da própria língua, evitando decalques latinos:

nom ponha pallavras latinadas ou de outra lynguagem; mas todo em

nossa lynguagem scripto, mais achegadamente geeral ao bom costu-

me de nosso fallar que se pode fazer. (Leal Conselheiro, cap. 99)

Como exemplos, podemos citar as seguintes gramáticas e textos dedicados à lingua portuguesa:

Ӳ 1536 – Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oli-veira;

Ӳ 1540 – Gramática / Diálogo em louvor da nossa linguagem, de João de Barros;

Ӳ 1576– Ortografia da língua portuguesa, Duarte Nunes de Leão.

Além de redigir uma gramática da língua portuguesa, João de Bar-ros era filho de um nobre português e foi comandante militar e tesou-reiro real em províncias portuguesas na África e na Ásia. João de Barros relatou sua estadia na Ásia, bem como a história das expedições por-tuguesas até lá, em seu livro Décadas da Ásia. Trata-se não apenas de um importante e rico documento histórico, mas apresenta também a língua portuguesa em sua fase clássica. O trecho a seguir, extraído das

Capítulo 06O Português Clássico

103

Décadas, é de fácil compreensão a um leitor de hoje, principalmente se comparado aos textos da fase arcaica.

6.2 Texto Décadas da Ásia

Fac-símile do texto Décadas da Ásia – capítulo VII, p.322-323, de João de Barros. Disponível em: <http://purl.pt/7030/1/l-79443-p/l-79443-p_item1/P370.html> e <http://purl.pt/7030/1/l-79443-p/l-

79443-p_item1/P371.html>. Acesso em: 09 abr. 2010.

A seguir, apresentamos uma transcrição do texto apresentado na figura acima; os trechos entre parênteses são formas atuais de certas pa-lavras.

Livro IV, Capítulo VII

Em que se descreve o sitio da terra, a que propriamente chama-

mos India dentro do Gange (Ganges), na qual se contém a Pro-

vincia chamada Malabar, um dos Reynos (reinos) da qual he (é) o

(ou) em que está a Cidade Calecut, onde Vasco da Gama aportou.

A Região, a que os Geografos propriamente chamam India, he (é)

a terra que jaz entre os dous (dois) ilustres, e celebrados rios Indo,

e Gange, do qual Indo ela tomou o nome; e os póvos do antiquís-

-simo Reyno Delij, cabeça per (por) sítio, e poder de toda esta região,

História da Língua

104

e assi (assim) a gente Parsea (persa) a ela vezinha, ao presente per

(por) nome próprio lhe chamam Indostan (Indostan). E segundo

a diliniação (delineação) da Tábua, que Ptolomeu faz della, e mais

verdadeiramente pela notícia que ora com o nosso descobrimento

temos, per (por) excelência bem lhe podemos chamar a grão Me-

sopotamia. Porque se os gregos deram este nome, que quer dizer,

entre os rios, áquela (àquela) pequena parte da região Babylonica,

que abraçam os dous (dois) rios Eufrates, e Tigres; assi (assim) pela

situação desta entre as correntes dos notaveis Indo e Gange, que

descarregam e vasam suas aguas em o grande Oceano Oriental, por

fazermos diferença della mais notavel do que se faz em dizer india

dentro do Gange, e Índia além do Gange, bem lhe podemos chamar

a grão Mesopotâmia, ou Indostan, que he (é) o próprio nome que

lhe dão os povos que a habitam, e vizinham, por nos conformarmos

com eles. A qual região as correntes destes dois rios per (por) huma

(uma) parte, e o grande Oceano Indico per outra, a cércão (cercam)

de maneira, que quasi (quase) fica huma (uma) Chersonezo (quer-

soneso, península) entre terras de figura de lisonja, a que os Geo-

metras chamam rhombos (rombos), que he (é) de iguales (iguais)

lados, e não de angulos retos. Cujos angulos oppositos em maior

distancia jazem Norte Sul: o do angulo desta parte do Sul faz o cabo

Comorij, e o da parte do Norte as fontes dos mesmos rios. As qua-

es (quais), peró que (por) sobre a terra arrebentem distinctas em os

montes, a que Ptholomeu chama Imáo, e os habitadores (habitan-

tes) deles Dalanguer, e Nangracor, são estes tão conjunctos huns aos

outros, que quasi querem esconder as fontes destes dous (dois) rios.

Apesar da grande familiaridade com que se nos apresenta o tex-to original, ainda há diversos traços que os diferenciam do português de hoje. As principais diferenças se referem à modalidade escrita e à ortografia; sobre isso, é interessante notar o uso de h, que pode servir para indicar abertura vocálica (he) ou ser simplesmente mudo (hum), e também a pontuação: a colocação de vírgulas e pontos finais é bastante distante do que temos hoje. Outras diferenças ocorrem em relação à marcação do acento, que, comparado ao português de hoje, ora está au-

Capítulo 06O Português Clássico

105

sente, ora difere do que temos e ora simplesmente continuou até os dias de hoje. Um exemplo interessante aqui é a notação da crase (preposição “a” + palavra iniciada por “a-”) em àquela.

Mas muito mais interessantes são algumas características do portu-guês arcaico que ainda são possíveis de detectar. Podemos ver na grafia da palavra iguales (iguais) que a queda dos -l- finais intervocálicos ainda não estava completa e na grafia da palavra cércão (cercam) que a escrita para nasalização também não estava completa. Em cércão, o acento no “e” marca a sílaba tônica da palavra e o -ão marca a nasalização. Atual-mente, as palavras não oxítonas que terminam com vogais ou ditongos nasais não são grafadas com -ão, com exceção de “órgão”, “órfão” e simi-lares, que também leva acento agudo em “ór-”.

Como comentário final, é interessante notar o ótimo domínio de João de Barros da linguagem escrita e sua argumentação sobre a “grão Mesopotamia”.

Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500

107

O português em Portugal depois de 1500 e a Língua Portuguesa no mundo

Veremos, neste capítulo, as principais mudanças sofridas pelo portu-

guês europeu depois de 1500. Num segundo momento, olharemos para a

situação da língua portuguesa no mundo de hoje, para os países que a têm

como língua oficial, o número total de falantes e outros dados globais sobre a

língua portuguesa.

Como já mencionamos anteriormente (ver Capítulo 5), estabelecer precisamente os períodos relevantes para a história de uma língua não é tarefa fácil. Na divisão que propomos, utilizamos como marco para a passagem do português clássico ao português moderno a data de publi-cação da obra Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, que é 1572.

Nunca é demais lembrar que isso não significa que as mudanças que

ocorreram na língua portuguesa esperaram essa data para acontecer

ou se solidificar. É justamente devido a esses limites movediços que

podemos também tomar a data de 1500, a virada do século XV para o

XVI, como um marco histórico importante a partir do qual considerare-

mos não apenas as mudanças que o português europeu (de Portugal)

sofreu, como também a partir do qual as diferenças entre o português

brasileiro e o europeu podem ser consideradas como conservadoris-

mos ou inovações deste em relação àquele.

Neste capítulo, veremos num primeiro momento quais foram as maiores mudanças estruturais pelas quais passou o português europeu depois do século XVII; muitas dessas mudanças ocorreram apenas em Portugal e respondem pela grande diferença que percebemos entre o português brasileiro e o europeu. Em um segundo momento, olharemos para a situação da língua portuguesa no mundo hoje, para os países em que ela é considerada língua oficial e para as localidades que têm criou-los de base portuguesa.

7

História da Língua

108

7.1 O português europeu depois de 1572

Em 1572, durante a batalha de Alcácer-Quebir, parte de uma cam-panha frustrada de conquistar o Marrocos, Portugal perdeu seu rei, Dom Sebastião, sem deixar herdeiros. Devido aos meandros dos direi-tos da sucessão de Dom Sebastião, oito anos depois, o rei Felipe II da Espanha reivindicou a sucessão real portuguesa e fez de Portugal uma província espanhola de 1580-1640. A independência foi devolvida a Portugal somente com o movimento conhecido como “Restauração”, sob o domínio da dinastia de Bragança, tendo Dom João IV à frente.

Os sessenta anos de dominação espanhola se fizeram sentir na língua

portuguesa de diversas maneiras, tanto estruturais quanto cultural-

-literárias. Do ponto de vista estrutural, podemos citar o uso da pre-

posição a antes de objeto direto (como em amar a Deus ao invés de

amar Deus), bem como a assimilação de palavras espanholas em de-

trimento a palavras portuguesas já existentes (por exemplo, a substi-

tuição do português castelão pelo espanhol castelhano). Do ponto

de vista cultural, era possível encontrar obras literárias portuguesas

escritas diretamente em espanhol, que passou então a ter, muito pro-

vavelmente, um prestígio bastante elevado, entre outras coisas, por

ser a língua da Coroa. Contudo, mesmo a influência espanhola não

barrou o desenvolvimento e a consolidação de mudanças profundas

na língua portuguesa que tiveram início ainda no século XVI.

Essas mudanças tiveram como centro irradiador a região centro--sul de Portugal e apenas algumas delas são compartilhadas pelo portu-guês brasileiro. Citamos, a seguir, algumas dessas mudanças em relação, primeiramente, à estrutura fonético-fonológica do português (cf. ILA-RI; BASSO, 2006; TEYSSIER, 1997):

Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500

109

1. o ditongo /ow/ sofreu monotongação para /o/, além de alter-

nar-se, às vezes, com /oj/, como em touro – toro, louro – loiro;

essas mudanças também ocorreram por volta do século XVII;

2. ainda no século XVII, a africada [tʃ] simplificou-se em [ʃ]; tal mo-

dificação aplica-se a casos como macho, chave;

3. passando ao século XVIII, encontramos a pronúncia “chiante” de

/s/ e /z/ em finais de sílaba e de palavras, como em dois [‘doiʃ], mesmo [‘meʒmu], paz [‘paʃ].

Das mudanças enumeradas até agora, as duas primeiras também ocorreram no português do Brasil de maneira generalizada. A realiza-ção “chiante” de /s/ e /z/ em finais de sílaba e de palavra é o caso, atual-mente, em duas situações:

a) de maneira bastante generalizada: Rio de Janeiro, Belém, algu-mas cidades litorâneas em diferentes graus (Piçarras, Garopa-ba, Florianópolis, Recife);

b) de maneira tendencial, mas não generalizada: região Nordeste, entre a Bahia e o Maranhão.

As mudanças enumeradas a seguir não são registradas no portu-guês brasileiro (ou ocorrem apenas em nichos bastante localizados):

1. do século XVIII em diante, o português sofreu uma redução das

vogais átonas, tanto das pretônicas quanto das postônicas. Atu-

almente, em Portugal, temos como vogais postônicas não finais

/i/, /e/ (realizado como [ɛ] ou [ə]), /a/ (realizado como [ɐ]), /o/

(realizado como [u] ou [ɔ]) e /u/. As formas [ə] e [ɐ] são reduções

postônicas não finais que o português do Brasil desconhece. Em

posição final, temos também a redução de /e/, /a/ e /o/ para,

respectivamente, [ə], [ɐ] e [u]. Em posição pretônica, temos as

seguintes vogais: /i/, /e/ (realizado como [ɛ] ou [ə]), /a/ (rea-

lizado como [ɐ]), /o/ (realizado como [o], [ɔ] ou [u]) e /u/. No

português europeu, justamente devido a essa evolução de

História da Língua

110

seu sistema vocálico, há ainda diferenças entre “pregar”, fixar com

pregos, que se pronuncia como [prə’gar ], e cuja origem remon-

ta ao latim plicāre, e “pregar”, dar um sermão, que se pronuncia

como [prɛ’gar], e cuja origem remonta ao latim praedicāre. O

português europeu diferencia o presente e o pretérito perfeito

da primeira pessoa do plural através da oposição entre [a] e [ɐ], como em cantamos no presente (a vogal tônica é [ɐ]) e cantá-mos no pretérito perfeito (a vogal tônica é [a]). É principalmente

essa redução das vogais do português europeu que dá a impres-

são aos ouvidos brasileiros de que eles “comem as sílabas” ou

“falam mais rápido”; o enfraquecimento das vogais átonas deu

mais saliência às vogais tônicas, fazendo com o português euro-

peu tenha sua prosódia particular;

2. ainda com relação às vogais, a partir do século XIX, os ditongos

/ej/ e /ej/ evoluem para /aj/ e /aj/ n português europeu (assim,

é possível rimar bem com mãe; e pronuncia-se “peito” como

[‘pɐjtu]);

3. redução /e/ diante de palatal, como na pronúncia [iʃ’pɐʎu] para

espelho.

Alguns pesquisadores relatam também a africação das plosivas so-

noras /b/, /d/ e /g/, resultando em /β/, /δ/, /γ/, no português euro-

peu, quando entre vogais. Ao longo deste livro, voltaremos a essas

características em contraste com o português brasileiro, tanto para

buscar sua origem quanto para salientar a especificidade das varie-

dades de português europeu e brasileiro.

Ainda sobre o português em Portugal, é interessante notar que encontramos lá uma série de dialetos de português, cada um com ca-racterísticas particulares. O mapa abaixo, extraído do site do Instituto Camões, ilustra as regiões dialetais de Portugal.

Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500

111

Área dos dialectos galegos

Área dos dialectos portuguesescentro-meridionais

Área dos dialectos portuguesessetentrionais

Mirandês

Mapa – Regiões dialetais de Portugal. Fonte: Instituto Camões. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo1_1.html>. Acesso em: 05 maio 2010.

Vejamos a seguir a condição da língua portuguesa no mundo, com exceção de Portugal e do Brasil.

7.2 Português no mundo

O sucesso das navegações portuguesas está não apenas na econo-mia e nas conquistas materiais, mas também na expansão da cultura portuguesa por todo o globo. E um desses legados culturais principais é justamente a língua portuguesa, que é língua oficial de diversos países.

Em 17 de julho de 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bis-

História da Língua

112

sau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Em 2002, com sua independência da Indonésia, o Timor Leste foi também acolhido como país integrante. Apesar de os países citados terem o português como lín-gua oficial, excetuando-se Portugal e Brasil, há diferentes graus em que o português é de fato sua língua vernácula: muitas vezes, ele está lado a lado com línguas locais e outras tantas vezes é aprendido apenas na escola, tendo como centro áreas urbanas. Não obstante, a CPLP tem um importante papel político, social e econômico, estreitando, através da língua portuguesa, laços entre países em quatro diferentes continentes. O mapa abaixo localiza os países membros da CPLP:

Países Membros

Países Associados

Cabo Verde

Portugal

Países Membros da CPLP (Comunidade de Países de Lígua Portuguesa)

Brasil

Guiné-BissauGuiné-Equatorial

Angola Ilhas MaurícioTimor-Leste

Senegal

São Tomée Princípe

Moçambique

Mapa – Países membros da CPLP. Mapa disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Comuni-dade_dos_Pa%C3%ADses_de_L%C3%ADngua_Portuguesa>. Acesso em: 05 maio 2010.

Além dos países já citados, são também membros efetivos da CPLP os territórios de Goa (pertencente à Índia) e Macau (pertencente à China).

Os países da CPLP, conforme dissemos, têm o português como lín-gua oficial. Porém, a expansão marítima portuguesa também resultou na formação de inúmeros crioulos de base portuguesa, espalhadas ao redor do mundo. O mapa abaixo ilustra alguns desses crioulos.

Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500

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História da Língua

114

A população dos países que compõem a CPLP (juntamente com Macau e Goa) totaliza mais de 240 milhões de pessoas.

País População

Angola 16.900.000 (em 2007)

Brasil 191.480.630 (em 2009)

Cabo Verde 499.796 (em 2008)

Guiné-Bissau 1.472.446 (em 2008)

Moçambique 20.069.738 (em 2008)

Portugal 10.627.250 (em 2008)

São Tomé e Príncipe 157.000 (em 2005)

Timor-Leste 1.100.000 (em 2007)

Goa 1.347.668 (em 2001)

Macau 538.000 (em 2007)

Além disso, há um grande número de falantes de português que não estão nesses países, como é o caso do elevado número de brasileiros na América do Norte, na Europa e no Japão, e de portugueses e afri-canos (falantes de português) em países que não falam português. Al-gumas vezes, a população de imigrantes é tão grande e organizada que muitos costumes são levados junto com eles, bem como a língua portu-guesa; algumas dessas comunidades contam inclusive com publicações em português em países que não o têm como língua oficial.

Não obstante essas dificuldades para estabelecer o número exato

de falantes do português, o certamente grande contingente popu-

lacional de falantes faz com que o português seja a sétima língua

mais falada no mundo, e isso o reveste de prestígio. Por exemplo, o

português é língua oficial das seguintes organizações: União Afri-

cana, União Europeia, UNASUL (União de Nações Sul-Americanas),

Mercosul, OEA (Organização dos Estados Americanos), CPLP, União

Latina; há um movimento que reivindica o português como língua

oficial da ONU; a língua portuguesa é ensinada obrigatoriamente no

Uruguai, na Argentina e em Zâmbia.

Note que é sempre difícil realizar tais estimativas,

pois muitas vezes o por-tuguês não é a primeira

língua de muitos dos habi-tantes dos países listados e é aprendido (quando o

é) em diferentes graus.

Capítulo 07O Português em Portugal depois de 1500

115

Uma população tão grande de falantes revela-se também um im-portante mercado consumidor, o que leva, em consequência, os comer-ciantes, empresas e outros a veicular seus produtos em língua portugue-sa, principalmente através de propagandas. Mais interessante ainda, do ponto de vista comercial, seria se os meios de comunicação, em especial aqueles escritos, fossem uniformes – numa situação como essa, um ma-nual de um produto qualquer poderia ser escrito numa ortografia pa-dronizada para todos os membros da CPLP e igualmente circular por todos. Assim, não é difícil ver na atual reforma ortográfica portuguesa, para além da unificação da escrita de alguns países de fala portugue-sa, também um interesse comercial. Sofreria um impacto imediato, por exemplo, todo o mercado editorial, pois as publicações não teriam mais que ter suas ortografias revistas a depender do país em que vão circular.

Resumo

Nesta unidade, investigamos a história do português antes de sua chegada à América. Apresentamos, num primeiro momento, a forma-ção linguística da Península Ibérica e os conceitos de substrato, supers-trato e adstrato. Depois de apresentarmos o problema da periodização de uma língua, exploramos as várias fases do português e suas caracte-rísticas principais. Vimos também que as línguas são dinâmicas e que as mudanças que atribuímos a determinadas fases ou períodos não têm, na verdade, limites tão bem definidos, ou seja, podem ser encontradas an-tes ou depois dos limites que impomos enquanto pesquisadores. Anali-samos uma série de textos antigos, justamente com o intuito de capturar as características que enquadram, para além de sua data, um determina-do texto num dado período da história do português.

Leia mais!

Como sugestões de leitura, podemos citar as obras de Castro (2006), Spina (org., 2008), Mattoso-Camara Jr. (1976), Teyssier (1997) e Ilari e Basso (2006), que apresentam uma visão geral sobre a formação da lín-gua portuguesa desde os seus primórdios até sua fase moderna. Sobre o português arcaico, podemos citar os trabalhos de Mattos e Silva (1991, 1991a). Novamente, a partir desses textos o leitor encontrará inúmeros outros que possam saciar sua curiosidade.

Os dados completos des-sas obras se encontram nas Referências.

Unidade CHistória do Português na América

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Capítulo 08Chegada do Português na América

119

Chegada do Português na América: a delimitação das Fronteiras e a periodização do português brasileiro

Neste capítulo, exploraremos algumas questões sobre a fixação da língua

portuguesa na América. Olharemos para a variedade histórica de português

que chegou ao território brasileiro e para o substrato linguístico que havia

aqui. Por fim, discorreremos sobre os problemas relativos à periodização do

português brasileiro.

No capítulo anterior, analisamos as mudanças que o português eu-ropeu sofreu depois do século XVI. Neste capítulo e no seguinte, vamos regressar novamente ao século XVI para analisarmos a história do por-tuguês no Brasil, suas características e seu desenvolvimento, assim como sua formação para, por fim, contrastá-lo com o português europeu.

Apesar de o Brasil ter sido descoberto em 1500 por Pedro Álvarez Cabral e sua frota, a ocupação efetiva do território se deu a partir de 1532, com a expedição de Martim Afonso de Souza e a fundação da Vila de São Vicente. Logo após essa expedição, entre 1534 e 1536, Dom João III doou as 12 capitanias hereditárias do Brasil para altos funcionários da corte e comandantes militares. Tem então início a colonização por-tuguesa da América.

Poderíamos tomar a carta de Pero Vaz de Caminha como um bom

exemplo da língua que chegou ao Brasil. Ao lado dessa carta, que é

também considerada o texto fundador da literatura brasileira, po-

demos situar o texto de Os Lusíadas, de Luis de Camões. Esse gran-

de épico poético foi terminado por volta de 1556 e publicado em

1572, justamente a data que tomamos como o início do português

moderno. Podemos então concluir que o português que chegou ao

Brasil era o clássico, já em transição para o português moderno.

8

História da Língua

120

Tomemos um trecho da Carta de Caminha, na qual ele descreve os habitantes nativos do Brasil, mantendo as linhas como no original:

afeiçam deles he seerem pardos maneira dauerme

lhados de boõs rrostros e boos narizes bem feitos. / am

dam nuus sem nenhuu[m]a cubertura. nem estimam n

huu[m]a coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas. e

estam açerqua disso com tamta jnocemçia como

teem em mostrar orrostro. / traziam ambos os beiços

de baixo furados e metidos por eles senhos osos

doso bramcos de compridam dhuu[m]a maão travessa

e de grossura dhuu[m] fuso dalgodam e agudo na põta

coma furador. mete[m] nos pela parte de dentro do bei

ço e oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito

coma rroque denxadrez. e em tal maneira o trazem

aly emcaxado que lhes nom da paixã nem lhes tor

ua afala nem comer nem beber. / os cabelos seus

sam coredios e andauã trosqujados de trosquya

alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura

e rrapados ataa per cjma das orelhas. e huu[m] deles

trazia per baixo da solapa de fonte afonte pera detras

huu[m]a maneira de cabeleira de penas daue ama

rela que seria decompridam dhuu[m] couto. muy

basta e muy çarada que lhe cobria otoutuço eas ore

lhas. aqual amdaua pegada nos cabelos pena e

pena com huu[m]a comfeiçam branda coma cera e

nõ no era. demaneira que amdaua acabeleira

muy rredomda e muy basta e muy jgual que nõ

fazia mjngoa mais lauajem peraa leuantar.

(Fonte: : <http://cms-oliveira.sites.uol.com.br/1500_carta_de_caminha.html>. Acesso em: 05

maio 2010.)

Provavelmente você teve alguma dificuldade para ler este trecho, mas – e isso é bastante interessante – tal dificuldade deve-se, sobretudo, à orto-grafia, que na época estava longe de cristalizar-se. Tente ler novamente o trecho, agora numa transcrição com a ortografia ora usada no Brasil:

Capítulo 08Chegada do Português na América

121

afeiçam deles he seerem pardos maneiradauermelhados de boõs rrostros e boos narizes bem feitos. / amdam nuus sem nenhuu[m]a cubertura. nem esti-mam n huu[m]a coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas.e estam açerqua disso com tamta jnocemçia comoteem em mostrar orrostro. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles senhos ososdoso bramcos de compridam dhuu[m]a maão tra-vessae de grossura dhuu[m] fuso dalgodam e agudo na põta coma furador. mete[m] nos pela parte de dentro do beiçoe oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito coma rroque denxadrez.e em tal maneira o trazem aly emcaxado que lhes nom da paixã nem lhes tor ua afala nem comer nem beber. /os cabelos seus sam coredios e andauã trosquja-dos de trosquya alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura e rrapados ataa per cjma das orelhas. e huu[m] deles trazia per baixo da solapa de fonte afonte pera de-tras huu[m]a maneira de cabeleira de penas daue amarela que seria decompridam dhuu[m] couto. muy basta e muy çarada que lhe cobria otoutuço eas orelhas.aqual amdaua pegada nos cabelos pena e pena com huu[m]a comfeiçam branda coma cera e nõ no era. demaneira que amdaua acabeleira muy rredomda e muy basta e muy jgual que nõ fazia mjngoa mais lauajem peraa leuantar.

A feição deles é serem pardos, maneirade avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. / andam nus, sem nenhuma cobertura. nem estimam n um a coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas.

e estão acerac disso com tanto inocência comotêm em mostrar o rosto. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles seus ossos brancos de compridão de uma mão travessa

e de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador. metem-nos pela parte de dentro do beiçoe o que lhe fica entre o beiço e os dentes é feito como roque de xadrez.e em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão nem lhes estorvam a fala nem comer nem beber. /os cabelos seus são corredios e andavam tosquia-dos de tosquia alta mais que de sobre-pente de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. e um deles

trazia por baixo da solapa de fonte a fonte por detras uma maneira de cabeleira de penas de ave amarela que seria da compridão de um coto. mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas.a qual andava pegada nos cabelos pena e pena com uma confeição branda como cerae não o era. de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual que e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

Se levarmos em conta que se trata de um texto escrito em 1500, é bastante espantoso o quanto ainda podemos entender. Obviamente, há muitas coisas que nos soam estranhas, mas trata-se principalmente de certos usos de palavras ainda vivas que diferem do que temos hoje (por exemplo, ao invés de “maneira” usaríamos talvez “tipo” ou “espé-cie”); contudo, não há nenhuma construção que nos impeça de entender o conteúdo deste trecho da Carta de Caminha. Ainda como exercício, compare a simples transcrição para a ortografia contemporânea que apresentamos anteriormente com a adaptação que mostramos a seguir:

História da Língua

122

A feição deles é serem pardos, maneira de aver-melhados,de bons rostos e bons narizes, bem feitos. /andam nus, sem nenhuma cobertura.nem estimam n um a coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas.e estão acerac disso com tanto inocência comotêm em mostrar o rosto. /traziam ambos os beiços de baixo furados e meti-dos por eles seus ossos brancos de compridão de uma mão travessae de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador.metem-nos pela parte de dentro do beiçoe o que lhe fica entre o beiço e os dentesé feito como roque de xadrez.e em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão nem lhes estorvam a fala nem co-mer nem beber. /os cabelos seus são corredios e andavam tosquiados de tosquia alta mais que de sobre-pente de boa grandurae rapados até por cima das orelhas. e um deles trazia por baixo da solapa de fonte a fonte por detras uma maneira de cabeleira de pe-nas de ave amarelaque seria da compridão de um coto. mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas. a qual andava pegada nos cabelos pena e pena com uma confeição branda como cera enão o era. de maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual que e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

A feição deles é serem pardos, um tanto averme-lhados,de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma.Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhasdo que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro,de comprimento de uma mão travessa,e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador.Metem-nos pela parte de dentro do beiço;e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentesé feita a modo de roque de xadrez.E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios.E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza,rapados todavia por cima das orelhas. um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela,que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas.E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira eramui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

(Fonte: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatu-ra/carta.html>. Acesso em: 05 maio 2010)>

Capítulo 08Chegada do Português na América

123

As principais diferenças são estilísticas, ainda mais se comparar-mos o trecho em questão da Carta com o português coloquial.

Mas a Carta também apresenta elementos de um português mais antigo, que podemos depreender apenas através da escrita e de sua oscila-ção. Como exemplo, temos o uso de <u> por <v>, o que pode indicar que a pronúncia /v/ ainda não estava totalmente solidificada, as várias formas de marcar nasalização (com <m>, <n> e <~>), a oscilação do uso de <h>, e a repetição de certas vogais, provavelmente para marcar o acento.

Tomemos agora o texto de Camões:

As armas, & e os barões assinalados,

Que da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos, & guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana.

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

A língua de Camões é ainda mais próxima para nós que a de Caminha,

pelo menos em sua forma escrita. Isso mostra, entre outras coisas, como

a mídia impressa força a padronização do texto, e essa pressão à padro-

nização segue seu curso até hoje. De uma forma ou de outra, foi essa

variedade de português que aportou ao Brasil em 1500 por meio dos

colonos que chegaram mais intensamente a partir de 1532.

“[...] traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles seus ossos brancos de compri-dão de uma mão travessa e de grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta como um furador” vs. “ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossu-ra de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador”.

História da Língua

124

Vejamos então como se deu a colonização brasileira para podermos entender como essa língua se manteve num território com dimensões continentais.

8.1 A formação do território nacional

Os portugueses fundaram diversos núcleos de povoa-mento na costa brasileira, seguindo as capitanias hereditá-rias cedidas pelo rei Dom João III. A grande maioria dessas fundações se deu a partir de 1530, começando pela Vila de São Vicente, em 1532. Entre 1530 e 1570, foram fundados os povoamentos de São Vicente, São Bernardo da Borba do Campo, Recife, Ilhéus, Olinda, Santos, Salvador, Santo An-dré, São Paulo, Vitória, Rio de Janeiro, entre outros.

É bom lembrar, contudo, que em 1494, Portugal e Es-panha firmam o Tratado de Tordesilhas. Segundo o tratado, deveria ser traçada uma linha imaginária situada a 370 lé-guas a oeste de Cabo Verde, que dividiria os territórios a

serem ainda descobertos. Sabe-se hoje que tal linha imaginária passaria por Bélem, no Pará, e Laguna, em Santa Catarina. De acordo com esse Tratado, apenas a região situada ao leste dessa linha Belém-Laguna per-tenceria a Portugal.

O Brasil foi, no entanto, palco de um grande movimento de ex-ploração de seu interior, sempre partindo dos povoamentos litorâneos. Esses movimentos tiveram um papel fundamental na delimitação do que é hoje o território brasileiro e violaram completamente o Tratado de Tordesilhas, pois aprofundavam-se no território para além da linha traçada pelo Tratado.

Um dos resultados diplomáticos imediatos da expansão portugue-sa para o interior do território recém-descoberto foi a redação de diver-sos tratados entre Portugal e Espanha para a resolução dos conflitos de possessão de terras e definição de limites e fronteiras. Apenas para se ter uma ideia, somente no século XVIII, entre 1710 e 1780, houve ao menos três tratados dessa natureza, que descrevemos brevemente abaixo:

Fonte: mapa de Luis Teixeira, por volta de 1586.

Capítulo 08Chegada do Português na América

125

a) Tratado de Utrecht – 1715: devolveu aos portugueses a Colô-nia de Sacramento, disputada desde o começo do século XVI por portugueses e espanhóis; atualmente pertence ao Uruguai (1828);

b) Tratado de Madri – 1750: este foi o mais importante dos tra-tados sobre as fronteiras brasileiras e espanholas na América, vindo a substituir o Tratado de Tordesilhas. No Tratado de Ma-dri, as fronteiras foram delimitadas a partir de características geográficas (montanhas, rios, depressões) e não simplesmente em função da distância a partir de algum ponto. Para sua ela-boração prevaleceu um princípio do direito conhecido como uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato, deve possuir de direito); com este Tratado, o mapa do Brasil aproxima-se bastante do atual. Vale notar que sua negociação foi feita pelo brasileiro Alexandre Gusmão;

c) Tratado de Santo Idelfonso – 1777: este Tratado lidava com a situação das missões jesuíticas nos lados português e espa-nhol, principalmente com relação aos Sete Povos das Missões, no sul do Brasil, fazendo fronteira com Argentina, Uruguai e Paraguai.

Obviamente, a implementação desses tratados – quando eles sim-plesmente não eram o efeito tardio de uma ocupação já ocorrida – foi muito mais problemática do que a assinatura de um documento político deixa transparecer, e muitas vezes bastante sangrenta. Em especial, vale mencionar as “Guerras Guaraníticas”.

À altura da implementação do Tratado de Madri, várias missões jesuíticas estavam fixadas tanto do lado português quanto do lado es-panhol; porém, com esse Tratado, algumas missões estavam agora do “lado errado”, ou seja, missões de jesuíticas portuguesas estavam agora em território espanhol e vice-versa, e ninguém estava disposto a sim-plesmente “trocar de lado” (se é que isso era realmente uma possibi-lidade). O resultado dessa situação foi várias décadas de conflitos ex-tremamente violentos entre índios e colonizadores, com um resultado

História da Língua

126

invariavelmente trágico para os índios. A posição dos jesuítas também não foi confortável nesses conflitos: se apoiassem os índios, estariam se rebelan-do contra seu país; se apoiassem seu país, seriam considerados traidores pelos índios.

O resultado final de todos os acordos e batalhas foi o estabele-cimento de fronteiras da Amé-rica portuguesa que em muito lembram as fronteiras atuais do Brasil. Como apresentamos à es-querda, o mapa do Brasil no fim do século XVIII já é muito pró-ximo do mapa atual, as maiores diferenças estão na região Ama-zônica, como a da ausência do Acre, território que foi adquiri-do da Bolívia em 1903, e na con-figuração da região Sul.

Os diversos movimentos expansionistas para exploração e povoamento protagonizados pelos portugueses a partir da

costa brasileira, que foram de extrema importância para a constituição do território nacional e para a delimitação de suas fronteiras, partiram todas as vezes do litoral, onde estavam os primeiros núcleos de povoa-mento. O mapa da página seguinte representa alguns desses movimen-tos principais:

Ӳ De Salvador parte um movimento, ainda no século XVI, que terá como resultado a fundação da Vila de São Vicente, bem como influenciará a fundação de São Paulo. Um pouco mais tarde, também de Salvador, parte o movimento que fará os pri-

O Brasil está representado pela linha verde. Autor: Daniel Adams (1832). (Disponível em: <http://www.davidrumsey.com/luna/servlet/detail/RUMSEY~8~1~28016~1120159:South-America--Published-by-Lincoln?sort=Pub_List_No_InitialSort%2CPub_Date%2CPub_List_No%2CSeries_ No&qvq=q:south+america;sort:Pub_List_No_InitialSort,Pub_Date,Pub_List_No,Series_No;lc:RUMSEY~8~1&mi=19&trs=1396>. Acesso em: 05 maio 2010).

Capítulo 08Chegada do Português na América

127

meiros assentamentos na região da Serra do Curral, em Minas Gerais, e também um movimento que chegará ao centro do Piauí.

Ӳ Da região de São Paulo e São Vicente, partem vários movimen-tos liderados por bandeirantes, mais ao fim do século XVI. Es-

Forte de São Sebastião

Forte dos Reis Magos

Forte de S. Felipe

Fortaleza

Olinda

Recife

Salvador

Rio Contas

Porto Seguro

CurralDel Rei

Rio Grande

Vila Boa(Goiás)

Rio Guaporé

Forte Principe da Beira

Vila Bela da SS. Trindade(Mato Grosso)

Vila Real do SenhorBon Jesus do Cuiabá

Brejo do Salgado(Januária)

Vila Rica(Ouro Preto)

Rio de Janeiro

São Paulo

SantosSão Vicente

CananéiaParanaguá

São Francisco

N S. do Desterro(Florianópolis)

S Antônio dosAnjos de Laguna

Viamão

Rio

Para

guai

Rio

Urugua

i

Rio Paraná

Tape

Uruguai

Guairá

Itatim

Assunción Curitiba

Iguape

Rio Grande deSão Pedro

MontevidéuBuenos

Aires

Colônia doSacramento

TijucoDiamantina

Salto Grande

Ilhéus

Palmares

Felipéia de N. S.das neves

Aquiráz

Rio piranha

Forte de São Joséde Marabitanas

Reduto de São FranciscoXavier de Tabatinga

Rio Solimões

Rio Madeira

Barra doRio Negro

Capitania de São Josédo Rio Negro

Rio Amazonas

N. S. de Belém

Vila Mocha(Oeiras)

Rio Piauí

Rio Jequitinhonha

Francisco

S. Luís

Capitania do Cabo Norte

Rio Negro

Rio

Bran

co

Forte de São Joaquim

Natal

Rio

Parn

aíba

Rio

Itabicu

ru

Rio Itapicuru

Rio Paraguaçu

Rio Velhas

Rio

Cuiab

á

Rio

Gurg

ueia

Expansão do Núcleo Paraense

Expansão do Núcleo Baiano

Expansão do Núcleo Vicentino-Paulistano

Expansão do Núcleo Maranhense

Expansão do Núcleo Pernambucano

Ciclo de aprisionamento de indígenas

Ciclo de sertanismo de contrato

Grande ciclo do ouro

Focos de expansão

Áreas de mais forte atuação do sertanismo de contrato

Fortes e reduto

Sedes de Governos Gerais

Outras cidades ou vilas

PastosBons

OCEANO ATLÂNTICO

Rio Mamoré

Mapa – Expansão Territorial Brasileira no Período Colonial. Fonte do mapa: MEC (1973, p. 83).

História da Língua

128

ses movimentos, que tinham como objetivo inicial a captura e o apresamento de índios, acabaram levando colonos para o inte-rior do País, através, principalmente, dos rios Tietê, Paraná e Pa-raguai, chegando até o Mato Grosso e o Uruguai. Com o ciclo do ouro, há uma nova onda desses movimentos partindo da região de São Paulo que atinge não apenas Minas Gerais, mas também Goiás e o Mato Grosso; e, finalmente, há um movimento que segue o curso do rio São Francisco e chega até o Piauí. De Recife, partem os movimentos que fundarão Natal e Fortaleza; e de Be-lém, os movimentos que culminarão com a ocupação do Amapá.

Esse pequeno histórico nos dá alguma ideia de como ocorreu a forma-

ção e a ocupação do território nacional. Interessa-nos principalmente

saber como se deu a formação do português brasileiro, mas para tanto

é imprescindível que saibamos como o vasto território do País foi ocu-

pado. Vimos que podemos considerar que o português que chegou ao

Brasil já possuía todas as características distintivas do português mo-

derno, mas o português é, de fato, apenas uma das muitas línguas que

compunham o mosaico linguístico da América portuguesa do século

XVI em diante. Vejamos a seguir um pouco mais desse mosaico.

8.2 Panorama linguístico da América portuguesa

As estimativas variam entre si, mas considera-se que havia em torno de 1000 línguas indígenas diferentes, segundo Rodrigues (1993, p. 91), quando os portugueses desembarcaram no Brasil. Atualmente, considera-se que esse número tenha caído para apenas 180 – um teste-munho triste do massacre da população indígena e da não conservação de sua cultura por vários séculos. Os dados sobre a população indígena

Capítulo 08Chegada do Português na América

129

também são alarmantes: estima-se que em 1500 havia de 2 a 6 milhões de habitantes nativos; atualmente, segundo a FUNAI (2005), esse núme-ro fica entre 350 e 400 mil.

Para poder lidar com esse número estonteante de línguas diferentes que havia quando chegaram à América, os portugueses lançaram mão da estratégia das “línguas gerais”. Essas línguas serviam como lingua franca, ou seja, uma língua de contato usada em contextos específicos e com fun-ções também específicas, como o comércio. A prática portuguesa da lín-gua geral foi usada também na África e na Ásia e trata-se de usar a língua ora com maior número de falantes ora de maior circulação numa dada po-pulação, justamente para as interações necessárias. Como ocorre com os pidgins, quando uma geração mais nova nasce no seio de uma comunida-de perpassada por uma língua geral, essa geração acaba tendo como língua materna justamente a língua geral, dando origem a línguas crioulas.

No caso brasileiro, os portugueses usaram duas línguas gerais, uma para o Sul, conhecida como língua geral paulista, e uma para o Norte, conhecida como nheengatu. A língua geral paulista tinha como base a língua dos índios tupinambás e foi usada pelos bandeirantes a partir do século XVII, sendo rapidamente levada para diferentes partes do país. Ela está totalmente extinta e dela não temos praticamente nenhum vestígio. Sua extinção foi resultado, entre outras coisas, das medidas adotadas pelo governo português, na figura do Marquês de Pombal, de ensinar apenas o português e punir quem falasse outras línguas (ver Capítulo IX).

O nheengatu foi a língua usada pelos jesuítas para a catequese e também pelos portugueses na conquista e nas relações com os habi-tantes do Norte do Brasil. Diferentemente da língua geral paulista, o nheengatu continua vivo até hoje e é uma das línguas oficiais da cidade de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Tem por base também línguas do tronco tupi. Apresentamos, a seguir, uma amostra do nheengatu, com a tradução para o português:

História da Língua

130

Iautí osacemo: “Ce anama-itá! Ce anama-itá iure!”Iaureté ocenõ, osó aketé, opuranú: “Maata resa-cemo reikó iautí?”Iautí osuaxára: “Xacenoin xa icó ce anáma-ita ou arama ceremiara uausú tapira”Iaureté onheê: “Reputari xamuí tapiira indé ara-ma?”Iautí onheê: “Xaputari; remunuca iepé suaxara iné arama; ami ixé arama”.Iaureté onheê: “Aramé resó reiuca iepeá”.Iautí osó, pucusáua iaureté osupiri iximiara, oiauáu.Iautí ocyca ramé uacemo nhunto-ana tiputí, aiacáu iaureté irumo onheê: “Tenupá! Amú ara xaiuiuanti cury ne irumo.

O jabuti gritou: “Meus parentes! Meus parentes, vin-de!”A onça ouviu, foi lá e perguntou “Por que estás gri-tando, jabuti?”O jabuti respondeu: “Estou chamando meus paren-tes para comer minha grande presa, a anta.”A onça disse: “Queres que eu cozinhe a anta para ti?”O jabuti disse: “Quero; corta uma metade para ti, ou-tra para mim.”A onça disse: “Então vai buscar lenha.”O jabuti foi; enquanto isso, a onça ergueu a presa e fugiu.Quando o jabuti voltou, achou só fezes. Zangou-se com a onça e disse: “Deixa estar! Um dia eu me en-contro contigo.”

Fonte: Recolhida pelo Dr. Couto de Magalhães. In: STRADELLI , E. Vocabulário Nheengatu/Portu-guez - Portuguez/Nheengatu., Ver. Inst. Geog., 1920. Encadernação., 724. Disponível em: < http://www.aborj.org.br/museu/informativos/info_0800.htm>. Acesso em: 04 mar. 2010).

Mais à frente, analisaremos como as línguas indígenas e as línguas

gerais contribuíram para a formação do português brasileiro. Antes,

porém, devemos pôr à mesa mais uma peça do mosaico linguístico

da América portuguesa, a saber, as línguas africanas trazidas ao Brasil

como consequência do comércio de escravos.

O tráfico negreiro inicia-se oficialmente no Brasil em 1559 e os es-cravos eram provenientes principalmente da região compreendida entre a Nigéria e a Angola, mas também vinham de Moçambique e de regiões mais ao norte, do litoral do Oceano Índico. Com relação às línguas trazi-das ao Brasil por conta do tráfico negreiro, é certo que havia, entre os es-cravos, falantes de ewe, iorubá (tronco kwa), quicongo, quinbundo, um-bundo (tronco bantu), mandinga, hauça (tronco mande) e provavelmente outras, sem contar o árabe que era falado por escravos muçulmanos.

No mapa ao lado, apresentamos as famílias linguísticas africanas

Capítulo 08Chegada do Português na América

131

(cf. ILARI; BASSO, 2006, p. 75):

Mapa das famílias linguísticas africanas. Fonte: Ilari e Basso (2006, p.75).

É bastante difícil estimar quantos falantes de cada uma dessas lín-guas vieram ao Brasil e em quais locais se concentraram. Para se ter uma ideia da dinâmica populacional brasileira, apresentamos a tabela a seguir (MUSSA, 1991):

Marrocos

TunísiaMAR

MEDITERRÂNEO

OCEANOATLÂNTICO

OCEANOÍNDICO

Muritânia

Senegal

MaliNíger Chade

SudãoGuiné

Serra Leoa

Libéria

Costa do MarfimGana

Camarões

NigériaRepública

Centro-Africana

UgandaQuêniaCongo

Gabão

Angola

Zaire

Zâmbia

Tanzânia

Moçambique

MadagástarZimbábue

África do Sul

BotsuanaNaníbia

Lesoto

ArgéliaSaaraOcidental

LíbiaEgito

Eritréia

Somália

Etiópia

Afro-Asiática

Niger-Congo

Khoisiano

Nilo-Saarinanas

Outras famílias

História da Língua

132

1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

africanos 20% 30% 20% 12% 2%

negros brasileiros -- 20% 21% 19# 13%

mulatos -- 10% 19% 34% 42%

brancos brasileiros -- 5% 10% 17% 24%

europeus 30% 25% 22% 14% 17%

índios integrados 20% 10% 8% 4% 2%

Mais adiante, quanto tratarmos da formação do português brasileiro,

voltaremos a essa tabela, analisando-a com mais cuidado. Por ora, basta

dizer que “negro brasileiro” e “branco brasileiro” se referem, respectiva-

mente, aos negros e brancos nascidos no Brasil.

Sobre a população africana, sabe-se, contudo, que sua presença foi predominantemente urbana, ao passo que as zonas rurais tinham um maior convívio com populações indígenas. Esse quadro é sobremaneira transparente a partir do ciclo do ouro (que se iniciou no fim do século XVII), quando um enorme número de pessoas deslocou-se para Minas Gerais e seu interior em busca do precioso metal.

Não por acaso, é em Minas Gerais, em meio a esse verdadeiro boom de urbanização, praticamente desconhecido ao Brasil, que floresce a li-teratura, bem como outras formas de arte que, quando existentes, eram bastante incipientes, como a música, a escultura etc.

Podemos concluir, portanto, que a América portuguesa foi, desde o

início do século XVI, um território multilíngue e é o multilinguismo

uma das chaves para entender a formação e o estabelecimento do

português no Brasil, assim como boa parte das diferenças entre o

português brasileiro e o europeu.

No próximo Capítulo, trataremos da formação do português bra-sileiro e de sua história. Como vimos para o caso da língua portuguesa

Capítulo 08Chegada do Português na América

133

como um todo, é necessário que tenhamos à mão uma periodização, por mais problemática que ela possa ser, para que possamos organizar em torna dela a história da língua. Vejamos abaixo a questão da periodiza-ção do português brasileiro.

8.3 A periodização do português brasileiro

Diversos pesquisadores já propuseram periodizações, baseadas nas mais diferentes estratégias, cada uma – como não podia deixar de ser – com seus méritos e deméritos. Por exemplo, Silva Neto (1946) distingue as seguintes fases do português brasileiro:

1. de 1532 a 1654: do início da colonização até a expulsão dos ho-

landeses do Nordeste (os holandeses se estabeleceram na re-

gião Nordeste, em Pernambuco, de 1624 a 1654);

2. de 1654 a 1808: a família real portuguesa, fugindo das tropas de

Napoleão, chega ao Rio de Janeiro em 1808;

3. 1808 em diante.

Ora, essa classificação leva em conta uma data que não tem rele-vância linguística alguma – a expulsão dos holandeses, além de genera-lizar demais, afinal, é possível encontrar mais de uma fase ou período entre 1808 e 2000, por exemplo.

Um famoso estudioso da língua portuguesa, Paul Teyssier, propõe a seguinte periodização (1997, p. 93-97):

1. período colonial até 1808 (chegada da família real portuguesa

ao Brasil);

2. de 1808 até 1822 (ano da Independência do Brasil);

3. de 1822 em diante.

História da Língua

134

Novamente, há mais distinções a serem feitas entre 1822 e o presen-te. O segundo período (1808-1822) é muito mais simbólico e político do que linguístico, afinal nenhuma mudança linguística significativa pode ocorrer num período de 14 anos.

Neste livro, adotaremos a proposta de periodização de Noll (2008, p. 269-275):

a) 1500 a 1550: fase inicial, traslado da língua portuguesa para o Brasil;

b) 1550 a 1700: fase formativa, surgimento e fixação de algumas das características marcantes do português do Brasil;

c) 1700 a 1800: fase diferenciadora, nesta fase acentuam-se as di-ferenças entre o português falado dos dois lados do Atlântico e começa o reconhecimento do português brasileiro;

d) 1800 a 1950: fase de desenvolvimento da escrita e do ensino, nesta fase há implantação de políticas de ensino no Brasil e da publicação de documentos diretamente em território nacional;

e) de 1950 até o presente: fase de nivelamento, através dos meios de comunicação, como rádio e televisão, e do avanço da urba-nização, ocorre certa homogeneização do português no terri-tório brasileiro.

A nosso ver, essa periodização permite um bom entendimento das mu-

danças pelas quais o português passou no Brasil, bem como dos seus

conservadorismos e inovações em relação à língua portuguesa em Por-

tugal. Até agora, vimos com certo detalhe a fase inicial, apresentando

as línguas que atuaram no Brasil. No próximo Capítulo, analisaremos as

demais fases e a constituição e formação das principais características

do português brasileiro

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

135

O português brasileiro e suas características Neste capítulo, exploraremos as diversas fases do português brasileiro,

indicando suas principais características, de modo a entender como se deu o

percurso histórico do português em território nacional.

Neste capítulo, veremos como se deu a formação das principais ca-racterísticas do português brasileiro, apresentando os documentos nos quais elas são primeiramente citadas. Nem sempre isso é possível, como será mostrado mais adiante, e muitas vezes as conclusões precisam de mais embasamento.

No Capítulo anterior, discorremos sobre o que podemos chamar de “pano de fundo” da formação do português, apresentando algumas das línguas que o compunham. Com relação a documentos sobre o portu-guês falado no Brasil entre 1500 e 1600, há muito pouco material, mas em meio a essa escassez há o relato de três viajantes naturalistas que aqui passaram, estando tanto com os colonos portugueses quanto com os indígenas, e que registraram em diários e descrições de viagem algumas palavras usadas no Brasil. Trata-se dos relatos de Hans Staden (1550-1555), André Thevet (1557) e Jean de Léry (1578) (cf. NOLL, 2008).

Nesses relatos, encontramos o primeiro registro histórico de di-versas vozes indígenas que até hoje são usadas no português brasileiro, como biju, cipó, guará, paca, pajé, tatu, mandioca, tucano, caju, canin-dé, jacaré, aipim, arara, jaguar, entre muitas outras. Vale ressaltar que o material composto por Thevet não relata apenas convivência com in-dígenas: para compor seu relato, Les Singulatirés de la France Antarcti-que, ele utilizou o depoimento de franceses já residentes no brasil, o que confirma que a entrada de vozes indígenas no português deu-se desde o início da colonização. Léry, por sua vez, escreveu uma espécie de “guia de conversação” de mais de dez páginas, em forma de diálogo, em tupi e francês, com várias explicações gramaticais.

9

História da Língua

136

A conclusão que tiramos quanto ao português da fase inicial (1500-

1550) refere-se apenas ao léxico da língua, que se enriqueceu de mui-

tas palavras indígenas nesse período. Vejamos, a seguir, algumas das

características diferenciadoras do português brasileiro detectadas na

sua fase formativa.

9.1 Fase formativa (1550 a 1700)

Entre 1550 e 1700, a fase formativa, já é possível vislumbrar di-ferenças entre as duas variedades de português que vão além de em-préstimos vocabulares e têm a ver, principalmente, com a estrutura fonético-fonológica do português falado no Brasil. Todos os fenômenos que descrevemos abaixo têm como pano de fundo o contraste entre o português brasileiro e o europeu notados e documentados durante o período em questão.

Com relação às vogais tônicas, o português brasileiro diferencia-se do português europeu no não desenvolvimento da oposição entre /a/ e /ɐ/ para marcar a distinção entre pescamos no presente (a vogal tônica é [ɐ]) e pescámos no pretérito perfeito (a vogal tônica é [a]). Em Portugal, essa distinção já havia sido notada por João de Barros em 1540.

É interessante lembrar que a diferença entre esses tempos grama-ticais é marcada no português brasileiro coloquial, principalmente no chamado “dialeto caipira”, através da oposição “pescamos” (presente) vs. “pesquemos” (pretérito perfeito).

Sobre as vogais pretônicas, o naturalista Markgraft nota, em 1648, na sua Historia Naturalis Brasiliae, o alçamento de /e/ e /o/ para /i/ e /u/, como nas pronúncias do primeiro <e> de menino e do <o> de dormir. Nos séculos seguintes, esse processo ganhou ainda mais força e pode-se dizer que é generalizado no Brasil (com exceção de certas regiões do Nordeste que têm /ɛ/ e /ɔ/ pretônicos). Ainda nesse período, constata-se a manutenção da nasalização heterossilábica – grosso modo, a nasaliza-ção assimilada regressivamente, como em cama [ˈkɐ.ma], que em Portu-gal pronuncia-se [ˈkɐ.ma]. Sobre as consoantes, nota-se que a africação em Portugal de /d/ entre vogais (RHYS, 1569, apud NOLL, 2008).

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

137

É importante salientar que os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549,

fundando as primeiras missões para ensinar catequese aos povos

indígenas. Todos os indícios levam a crer que essa educação religio-

sa era feita por meio de uma das línguas gerais brasileiras; como

veremos abaixo, foi apenas a partir das primeiras décadas do sécu-

lo XVIII que o governo português publicou medidas efetivas para a

promoção do português no Brasil.

9.2 Fase diferenciadora (1700 a 1800)

Neste período, encontramos diversos documentos que assinalam as diferenças que há entre o português brasileiro e o europeu. Como exemplo, podemos citar a peça de teatro O periquito do ar, de Rodrigues Maia, escrita por volta de 1800 (cf. NOLL, 2008). Uma dos personagens dessa farsa é um brasileiro, estereotipicamente caracterizado por sua fala e procedência: seu nome é Dom Periquito das Alturas do Serro do Frio – na região da Comarca do Serro do Frio, em Minas Gerais, local em que foram encontrados os primeiros diamantes, em 1729.

Dom Periquito é caracterizado como café com leite e carioca, termos que, à epoca, se referiam a “pessoas de cor”, mulatos. Sua fala na peça é recheada de traços que têm por objetivo o humor e também identificar Dom Periquito com o português falado no Brasil, ainda que possivel-mente de modo exagerado. É bastante notável a escrita das vogais que são alçadas, principalmente <e> para <i>, indicando a pronúncia [i], como em: mi diga (me diga), sinhorinho (senhorinho), sinhorinha (senhori-nha), mitêlo (metê-lo), virdade (verdade), di (de). Encontra-se também a pronúncia [l] para [ʎ], como em li (lhe). A certa altura da peça, Dom Pe-riquito usa a forma sinhazinha, que pode indicar indiretamente a queda de <r> em fins de palavra: senhor > sinhor > sinhô; sinhá > sinhazinha.

Passando à morfologia, há um uso exacerbado de diminutivos, como em: mimozinho, coquinho, molestinha, mancinho, sinhorinho. Do ponto de vista sintático, registra-se a ocorrência maior de próclise com relação ao português europeu: mi deixe, le diga, mi consterna. A forma de tratamento você aparece também como típica do português brasileiro.

História da Língua

138

Em outras obras de teatro, há menção a personagens brasileiros que “falam carioca”, o que indica como já era claro entre 1700 e 1800 para os portugueses e brasileiros que havia diferenças bastante notáveis entre as duas variedades de português.

Na obra Compendio de orthografia, de Monte Carmelo, de 1767, o autor nota a diferença entre pregar (fixar, [prə’gar ]) e pregar (dar um sermão, [prɛ’gar]), que sobreviveu apenas em Portugal.

Outras características importantes do português brasileiro são identificadas nas normas educacionais do Seminário Episcopal de Nos-sa Senhora da Grasa, de Olinda – PE, e do Recolhimento de Nossa Se-nhora da Gloria do Lugar de Boa-Vista, de Recife – PE, escritas pelo bispo de Pernambuco, José J. da Cunha de Azeredo Coutinho, 1798. Nessas normas, o bispo aponta a necessidade de corrigir vários “vícios de linguagem” praticados pelos alunos. Muitos desses “vícios” já foram mencionados anteriormente; além deles, o bispo enumera:

• amudançade[ʎ]para[j]:telhadocomo[‘teja.do],milhocomo

[‘mijo],filhocomo[‘fijo];

• amonotongaçãode [ej] para [e]: janeiro como [ʒɐ neru],pri-meirocomo[priˈmeru];

• aquedado/l/final:Portugalcomo“Portugá”;

• afaltadeconcordâncianosintagmanominalparaaformação

doplural:os menino;muitas flor.

Quase todas essas características documentadas durante os séculos XVIII e XIX são ainda atestadas em maior ou menor grau no Brasil, principalmente na fala coloquial.

Também neste período, encontramos alguns movimentos políticos efetivos partindo de Portugal para a promoção da língua portuguesa. Em 1702, o governador-geral João de Lencastro propôs ao rei a criação de seminários para os índios “com condição de que nos Seminários se não

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

139

havia de fallar outra lingoa mais do que a Portugueza” (CASTRO, 1986, p. 303). Alguns anos depois, em 1727, o rei de Portugal ordenou ao governador do Maranhão que proibisse a língua geral nos povoados e nas aldeias dos índios. A medida mais importante foi o Diretório dos Índios, promulgada pelo Marquês de Pombal, em 1757. Esse diretório foi proposto como uma “medida civilizatória” que tinha por objetivo, entre outras coisas, que os índios pagassem impostos e que fossem todos de fato convertidos ao Cristianismo. Em meio a esses abu-sos agora absurdos, o diretório se expressa em relação à língua do seguinte modo:

Para desterrar este perniciosissimo abuso, será hum dos principáes

cuidados dos Directores, estabelecer nas suas respectivas Povoaço-

ens o uso da Lingua Portugueza, naõ consentindo por modo algum,

que os Meninos, e Meninas, que pertencerem ás Escólas, e todos

aquelles Indios, que forem capazes de instrucçaõ nesta materia,

usem da Lingua propria das suas Naçoens, ou da chamada geral;

mas unicamente da Portugueza, na forma, que Sua Magestade tem

recõmendado em repetidas ordens, que até agora se naõ observá-

raõ com total ruina Espiritual, e Temporal do Estado.

Fonte: Disponível em: <http://www.lai.at/wissenschaft/lehrgang/semester/ss2005/rv/files/pom-bal.directorio.1755.pdf>. Acesso em: 04 abr.2010.

Apresentamos abaixo dois exemplos de textos escritos no Brasil du-rante a fase diferenciadora. O primeiro deles é uma carta escrita por uma escrava em 1770 – fato, aliás, bastante notável, devido à enorme taxa de analfabetismo da época, principalmente entre mulheres e mais ainda en-tre escravas. O documento é proveniente do Arquivo Público do Estado do Piauí (cf. NOLL, 2008, p. 169-170, para análise e mais comentários; cf. MOTT, 1979, p. 8-9, para a primeira apresentação dessa carta):

Eu Sou hua escrava de V. S. dadministração de Capam Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que oCapam pa Lá foi adeministrar, q. me tirou da fazda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira

O Marquês de Pombal expulsando os jesuítas, de Louis-Michel van Loo e Claude-Joseph Vernet, 1766

Fonte: Disponível em: <http://tinyurl.com/39uasrr> Acesso em: 04 abr. 2010

História da Língua

140

de sua caza, onde nella passo mto mal.

A Primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo uhã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q. Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.

A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar.

Pello q Peço a V.S. pello amor de Ds e do Seu valimto ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha

de V.Sa. sua escrava

EsPeranCa garcia

O segundo exemplo é um trecho do texto do Bispo de Pernambuco, Jozé J. da Cunha de Azeredo Coutinho, que comentamos mais acima (cf. NOLL, 2008, p. 170-171; CASTRO, 1986, p. 381-382):

Quanto á Arte de Lér.

§. 2. Deve o Profesor ensinar aos seus Dicipulos a conhecer as le-tras, ou caratéres de que se áde||servir, fazendo diferensa das vogaes, e das consoantes, e do sôm de cada uma delas separadas, ou juntas umas com as outras, naõ lhes consentindo que pronunciem umas em lugar de outras: v. gr. v em lugar b, nem b em lugar de v, como vento em lugar de Bento, e Bento em lugar de vento, nem acresentar letras aonde naõ á, como v. gr. aiagua em lugar de a agua, naõ aiá em lugar de naõ a á; nem tirar letras onde á, como v. gr. Janero em lugar de Janeiro; teado em lu-gar de telhado; mio em lugar de milho; nem inverter a ordem das letras, pondo em primeiro lugar as que se devem pôr em segundo, como v. gr. treato em lugar de teatro; cravaõ em lugar de carvaõ; virdasa em lugar de vidrasa; breso em lugar de berso; provezinho em lugar de pobrezinho &c. Deve ensinar-lhes a pronunciar os ditongos com clareza, e em toda sua forsa: como v. gr. meu Pai, e naõ me Pai; pauzinho e naõ pazinho; naõ, e naõ num &c.

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

141

É com o português falado no Brasil já bastante próximo da língua que

temos hoje que chegamos ao penúltimo período da história do portu-

guês brasileiro, a fase de desenvolvimento da escrita e do ensino.

9.3 Fase de desenvolvimento da escrita e do ensino (1800 a 1950)

Do ponto de vista estritamente linguístico, os principais fenômenos encontrados a partir de 1800 e exclusivos do português brasileiro são:

• aquedado /r/final,principalmentenosverbos,mas também

emalgunssusbtantivos:buscarcomobuscá,recebercomore-cebê,calorcomocalô,etc;

• amonotongaçãode[aj]antesde[ʃ]:baixocomobaxo,encaixocomencaxo,etc;

• abreviações(aférese)como:táporestá,praporpara,seuporsenhor,etc;

• aepêntesede[i]antesde/s/final:emportuguêsbrasileiro,na

maioriadosdialetos,épossívelrimarpaiscompaz,ambospro-

nunciadoscomo/pais/,omesmovaleparaseisetrêsquetermi-

namcomo/eis/,mêscomo/meis/etc.

A africação de /t/ e /d/ antes de /i/ no português brasileiro – como na pronúnica tio [ˈtʃiʊ] e dia [ˈdʒiɐ] –, bastante generalizada, parece ter se iniciado no começo do século XIX e é mencionada por Soares Barbo-sa em sua gramática de 1822. Por volta da mesma época, documenta-se também a existência do chamado “erre caipira”, o <r>-retroflexo, marca registrada do interior de São Paulo, mas que ocorre também no Paraná, em Santa Catarina (nas cidades colonizadas por paulistas), em Minas Ge-rais e no Mato Grosso. A pronúncia chiante de /s/ e /z/ em fins de palavras e de sílaba, característica do Rio de Janeiro e de Bélem e várias cidades litorâneas, é também documentada desde as primeiras décadas do século XIX no Brasil, apesar de ter se desenvolvido muito antes em Portugal.

História da Língua

142

Aliás, a realização chiante de /s/ e /z/ foi muitas vezes ligada – tal-vez de modo direto demais – à vinda da Família Real Portuguesa e sua corte ao Brasil em 1808, fugindo de Napoleão e suas tropas. Entre os vários hábitos e exigências metropolitanas que essa vinda impôs à então capital brasileira Rio de Janeiro, conta-se também a língua falada pelos recém-chegados. Não é de se espantar que alguns pesquisadores tenham assumido que os moradores brasileiros viam vantagens em falar como a corte portuguesa, afinal, deve haver muito prestígio em falar como o rei. E assim, constrói-se a hipótese de que a pronúncia chiante resultou justamente da imitação da fala dos portugueses que chegaram em 1808. Como mostra Noll (2008, p. 229-235), contudo, não é possível fazer uma relação tão direta entre a pronúncia chiante e a vinda da corte portugue-sa ao Brasil, apesar de ser possível pensar que há alguma relação entre elas. Seus argumentos, muito resumidamente, são:

1. Por volta do início do século, a pronúncia portuguesa chiante

era criticada no Brasil e vista com maus olhos;

2. Não existe nenhuma outra característica do português europeu

que tenha passado ao português brasileiro com a vinda da cor-

te, e seria no mínino surpreende que apenas a pronúncia chian-

te tenha tido esse privilégio;

3. O encontro –sc– é realizado como [ʃs] em Portugal, mas não no

Brasil, onde ele é realizado como [s];

4. Encontramos uma mesma pronúncia chiante em Belém do Pará

sem a presença de portugueses.

A hipótese então avançada por Noll é a de que a pronúncia chiante

no Brasil e em Portugal desenvolveu-se de modo independente. Essa

é uma hipótese bastante interessante, mas que ainda carece de mais

estudos e documentos para ser plenamente aceitável.

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

143

Para a fixação do português brasileiro como o conhecemos hoje, a vinda da corte contribuiu de outras maneiras, um pouco menos diretas do ponto de vista estritamente linguístico, mas não menos importantes para a história da língua. Junto com a família real, chegou ao Brasil a primeira prensa tipográfica e a partir de então o País contava com pu-blicações feitas diretamente em seu território, sem ter que passar por Portugal. Com isso, o Brasil teve o seu primeiro jornal, fundado em 10 de setembro de 1808, a Gazeta do Rio de Janeiro.

A política educacional brasileira também foi alvo de alterações. O ensino, por muito tempo nas mãos dos jesuítas, desenvolveu-se grande-mente no século XIX. Através de um decreto-lei de 1827, foram criadas no Brasil várias escolas, bem como colégios técnicos, academias e pos-teriormente faculdades.

De 1808 em diante, o Brasil passou a contar com a impressa, com

políticas educacionais e com uma urbanização cada vez mais inten-

sificada. Com a imprensa escrita, foi possível pela primeira vez fixar

normas estilísticas exclusivamente brasileiras, sem as amarras da

“sintaxe lusa”. As políticas educacionais tiveram um reflexo imediato

no número de analfabetos, que cai a partir de então. E a urbaniza-

ção, juntamente com tudo o mais que ela traz, como veremos na se-

quência, foi um fator decisivo para a uniformização e o nivelamento

do português brasileiro em nosso vasto território.

Desta fase, há uma quantidade bastante grande de textos que chega-ram até os dias de hoje. Exemplos interessantes podem ser encontrados no livro E os preços eram commodos..., organizado por Guedes e Ber-linck (2000), que traz anúncios de jornais de todas as regiões do Brasil publicados durante o século XIX. Deste livro, retiramos dois anúncios: o primeiro deles foi publicado em 1809, no Rio de Janeiro, pelo jornal Gazeta do Rio de Janeiro; o segundo, também analisado por Ilari e Basso (2006, p. 154-155), é da cidade de São Paulo, e foi publicado no jornal O Farol Paulistano, 1830. Abaixo, os textos:

Disponível em: <http://tinyurl.com/3ys6pu9>. Acesso em: 04 abr.

2010.

História da Língua

144

Na cocheira da rua Santa Tereza por detraz do Imperio da Lapa há duas

seges muito asseadas, e com boas parellas, as quaes se alugão pelo pre-

ço de 5 patacas, tanto de manhã como de tarde, até a distancia da praia

do Botafogo, ou de São Cristovão: adverte-se ás pessoas, que as manda-

rem alugar, que ensinem os seus domésticos, que no caso de acharem a

dita Cocheira fechada, se dirijão ao tendeiro Manoel Gonçalvez de Bas-

tos, que tem venda na rua das Mangueiras com frente para o Largo da

Lapa. (GUEDES; BERLINCK, 2000, p. 198)

Hontem pela manhãa se me enviou um negro do gentio de Guinè, mui-

to boçal, e trajado à maneira dos que vem em comboi, e se me dice, foi

pegado, vagando como perdido. Por intérprete apenas pude colher que

ainda não era baptisado, e que saindo a lenhar se perdeu: queira por

tanto V.m. inserir este annuncio em sua folha, a fim de apparecer dono,

sobre o que declaro, que se não apparecer por 15 dias, contados da

publicação da folha, heide remetel-o á Provedoria dos Resíduos; a quem

pertence o conhecimento das coisas de que se não sabe dono. – São

Paulo 9 de Abril de 1830. – O Juiz de Paz Supplente da Freguezia da Sè –

José da Silva Merceanna. (GUEDES; BERLINK, 2000, p. 329)

9.4 Fase de nivelamento (1950 em diante)

De 1900 em diante, o Brasil conheceu uma urbanização impres- sionante. Apenas para se ter uma ideia, em 1940, aproximadamente 69% da população brasileira vivia no campo e em áreas rurais e a população urbana estava em torno de 31%; somente 30 anos depois, em 1970, a porcentagem da população urbana girava em torno de 82%, ao passo que a população rural caía para 18%. Se somarmos a isso a taxa de nata-lidade crescente e a de mortalidade infantil decrescente nesse período, constatamos que o contingente urbano era realmente enorme – e ele continua a aumentar.

Tomemos, por exemplo, a construção de Brasília, fundada em 21 de abril de 1960. Para sua construção, houve o deslocamento de inúmeras pessoas, principalmente provenientes da região Nordeste, mas também de outras, que se reuniram num mesmo local. Obviamente essas pessoas tinham que se comunicar e cada uma delas trazia de sua região uma experiência e uma série de marcas linguísticas peculiares. Não é difícil imaginar o “caldeirão linguístico” então formado e como certo “nivela-

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

145

mento” ocorreu, justamente devido às trocas e interações linguísticas. Podemos pensar também no grande número de pessoas que se deslo-caram do Nordeste para a região de São Paulo e do Rio de Janeiro em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Juntamente com esses migrantes, vieram diversos costumes e um linguajar típico que não raramente foi incorporado pela região que recebeu os migrantes. Um bom exemplo é o forró, que veio juntamente com os migrantes da região Nordeste, atualmente comum em diversas regiões de São Paulo, junta-mente com seu “vocabulário técnico”, ou seja, os termos usados para de-signar a dança, seus passos, sua execução etc.

Para efeitos de “nivelamento”, os meios de comunicação desempe-

nharam um papel fundamental, não apenas a imprensa escrita, mas

também o rádio e a televisão; afinal, um mesmo canal poderia ser

ouvido no Brasil inteiro, transmitindo para qualquer lugar as carac-

terísticas linguísticas da região de origem.

A preocupação com uma norma ou um padrão para o rádio e a televisão foi tão forte a ponto de sua promoção e estabelecimento moti-var dois grandes “congressos” para discutir a questão. O primeiro deles ocorreu em 1936, o Congresso Brasileiro da Língua Cantada, realizado em São Paulo; em 1957, teve vez o Congresso Brasileiro de Língua Fa-lada no Teatro, em Salvador. Atualmente, é possível ouvir praticamen-te todas as variedades de português na televisão e no rádio, o que se distancia do ideal culto e aristocrático com que sonhavam os envolvi-dos nos congressos citados, que eram figuras como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Antenor Nascentes, Antonio Houaiss, Celso Cunha, entre outros. Os trechos abaixo dão uma ideia do tipo de preocupação que essas pessoas tinham em mente (apud ILARI; BASSO, 2006, p. 222):

Quem quer que freqüente o teatro nacional ficará desagradavelmen-

te ferido ante a diversidade de pronúncias que se entrechocam no ar.

Essa diversidade deriva em parte de atores estaduanos que, trazendo

consigo suas pronúncias regionais e não fazendo nenhum esforço para

unificar essas pronúncias em benefício do equilíbrio e unidade fonéti-

ca, tornam a obra-de-arte um mistifório malsoante, irregular de estilo e

de sonoridade, muitas vezes, por isso, de penosa compreensão para o

ouvinte.

História da Língua

146

E que dizer-se da quantidade de artistas, Portugueses, Espanhóis e Ita-

lianos, ou ainda mesmo Brasileiros filhos de estrangeiros, que surgem

numerosamente no palco nacional, num desprezo cego do bem dizer,

e que carreiam para a nossa linguagem sons espúrios, sutaques (sic) es-

trambóticos, desnorteando a naturalidade e a pureza da língua! (AN-

DRADE, Anteprojeto da Língua Nacional Cantada, 1936, p. 4).

O problema da língua comum [...] apresenta no Brasil a tendência es-

pontânea de realizar-se naturalmente, que deve ser apoiada por uma

política lingüística consciente. A força do Recife para certa área, desta

soberba Salvador para outra, do Rio, de São Paulo, Porto Alegre, Belo

Horizonte, cada um para sua periferia, mostra que tendemos para certos

padrões regionais amplos e pouco numerosos. Graças aos modernos

meios de comunicação viva, à distância, aliados a uma população que

se multiplica em permanente fusão de nacionais de todos os pontos

em todos os pontos é possível para a intercomunicação de âmbito uni-

versalista no nosso terrirório adotarmos lúcida e conscientemente uma

média de falar equidistante de todos os padrões regionais básicos. O

nosso Congresso, porém creio eu, não aspira a servir tão-somente à lín-

gua falada no teatro. Ao contrário, aspira à língua falada culta no Brasil

todo inteiro. Se chegarmos a um padrão culto aceitável para o teatro,

este se imporá, por vir de conseqüência, ao rádio e à televisão, ao ci-

nema e ao magistério, ao parlamento e à tribuna em geral, em suma a

todas as categorias profissionais que fazem da técnica da língua uma

finalidade, ou pelo menos um instrumento cuja finalidade seja na medi-

da do possível pan-brasileira. (CUNHA, 1959)

Podemos ainda citar como características linguísticas mais recen-tes do português brasileiro as seguintes:

• amplousodeobjetonulo,comoem“Compreiumboloecomi”

aoinvésde“Compreiumboloeocomi”;

• usoquaseexclusivodaordemsujeito-verbo,comoem“eleera

viciadoemanfetaminas”aoinvésde“eraeleviciadoemanfeta-

minas”;

• prevalecimentodasoraçõesrelativas“cortadoras”e“copiadoras”

frenteàformapadrão,comoabaixo:

Capítulo 09O Português Brasileiro e Suas Características

147

1. forma padrão: a mulher com quem divido a casa;

2. forma “cortadora”: a mulher que eu divido a casa;

3. forma “copiadora”: a mulher que eu divido a casa com ela.

Como vimos, urbanização, impressa e fluxo migratório estão entre os

principais fatores do nivelamento e, por conseguinte, da unidade do por-

tuguês brasileiro. No próximo capítulo analisaremos mais a fundo como

se deu a formação do português brasileiro, sua relativa unidade e diver-

sidade e sua relação com as outras línguas faladas no território nacional.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

149

Línguas indígenas e africanas na formação do português brasileiro, sua unidade e diversidade

O objetivo deste capítulo é investigar como se deu a formação do português

brasileiro e a contribuição para tanto das línguas indígenas e africanas que esta-

vam no território nacional e que aqui chegaram. Apresentaremos também um

rápido panorama das principais variedades de português encontradas no Brasil.

Até agora, descrevemos o cenário linguístico que recebeu o portu-guês, suas diferenças em relação ao português de Portugal, compostas tanto por conservadorismo como por inovações, e como as dinâmicas populacionais e econômicas, como a ocupação do território e a urbani-zação, desempenharam um importante papel para “forjar” a língua que hoje falamos.

No presente Capítulo, veremos com mais vagar a contribuição e as influências das línguas africanas e indígenas no que tange à formação do português brasileiro. Feito isso, analisaremos o português brasileiro hoje: ele é um só? Há dialetos? Quantos? Onde? E as línguas indígenas e africanas, elas têm lugar na política linguística nacional? Não podemos esquecer também as línguas das comunidades de imigrantes que vivem hoje no Brasil, às vezes em grande número e bastante organizadas.

10.1 Indígenas, africanos, europeus e brasileiros: o caldeirão do português do Brasil

Há pelo menos dois motivos principais para falarmos em influên-cias linguísticas indígena e africana na estrutura do português brasi-leiro: (1) o convívio durante séculos de populações indígenas e africa-nas com os europeus colonizadores, que, como vimos no Capítulo VII, eram em número muito maior do que o de europeus; e (2) diferenças linguísticas significativas entre as variedades de português faladas no

10

História da Língua

150

Brasil e em Portugal. Conclui-se, a partir de (1), do convívio durante tanto tempo de populações com línguas bastante diversas, num quadro em que o português era língua nativa de uma minoria, que o português que prevaleceu seria influenciado pelas línguas faladas por indígenas e negros africanos. A partir de (2), conclui-se que as peculiaridades do português brasileiro, em confronto com a variedade europeia, são jus-tamente o resultado das influências desencadeadas por (1). Assim, (2) é resultado – mais ou menos direto, a depender do pesquisador e de sua análise – de (1).

As motivações (1) e (2) levaram alguns pesquisadores a conside-rar que no seio da formação do português brasileiro havia uma língua crioula, e foi sobre esse crioulo de base portuguesa que se formou o português brasileiro, nesse crioulo está a raíz das principais caracterís-ticas linguísticas que opõem as variedades de português dos dois lados do Atlântico. Essa é, em linhas bastante gerais, a hipótese da criolização prévia ou inicial para a formação do português brasileiro, cuja versão mais radical é comumente atribuída ao filólogo português Francisco Adolfo Coelho, a partir de afirmações como:

Diversas particularidades características dos dialectos crioulos repetem-

se no Brasil; tal é a tendência para a supressão das formas do plural, ma-

nifestada aqui, que, quando se seguem artigo e substantivo, adjectivo

e substantivo, etc., que deviam concordar, só um toma o sinal do plural

(COELHO, 1880-86, p. 170-171).

De fato, Coelho mais chama a atenção para paralelos entre o que ocorre no português brasileiro e nas línguas crioulas do que estabelece uma relação causal entre (1) e (2).

Outros pesquisadores falam na existência de um “semicrioulo” que era falado ao lado do português, e era a “adaptação do português no uso dos mestiços, aborígines e negros” (SILVA NETO, 1950, p. 48). Contu-do, é extremamente difícil definir uma língua semicrioula. O que seria isso? Como apontam alguns, esse termo parece simplesmente acomodar a falta de documentação sobre a origem do português e preencher a la-cuna que existe entre (1) e (2) com uma relação causal mais fraca.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

151

Mais recentemente, alguns pesquisadores investiram na ideia da

“transmissão linguística irregular” ou “imprópria” para explicar (2),

relacionando-o com (1). Segundo Naro e Scherre (2007, p. 137), a

“transmissão linguística irregular”, grosso modo, é aquela que se dá

“entre adultos e/ou com base em fala não suscetível de uma análise

ordenada, talvez por ser caótica, ou por ser em quantidade insufi-

ciente, ou ainda por outras razões”.

No caso brasileiro, podemos pensar em uma transmissão linguística

que se deu entre falantes em sua imensa maioria analfabetos e sem

escolarização; ou seja, distantes de uma norma linguística ditada

por uma gramática ou mesmo de instituições de regulamentação

linguística que poderiam atuar como órgão regulador sobre a lin-

guagem, sem esquecer que esses falantes provavelmente falavam

outras línguas, como as indígenas e as africanas.

A depender de como a caracterizamos, é certamente plausível que houve “transmissão linguística irregular” no território brasileiro à epoca da formação do português do Brasil. Mais importante ainda, essa ideia nos faz considerar uma quarta personagem atuante no contexto de for-mação do português brasileiro, a saber: o brasileiro nativo – ao lado dos indígenas, dos escravos e dos europeus, cada um presumivelmente com sua língua, a pessoa nascida no Brasil aprendia uma língua, mas prova-velmente não apenas a de sua comunidade, dado que tinha que interagir também, obviamente em diferentes graus, com indígenas, escravos afri-canos e europeus. É na figura do nativo do Brasil que podemos encon-trar a chave para a formação de nossa língua.

Tomemos o quadro que apresentamos no capítulo VII, sobre a den-sidade demográfica brasileira:

História da Língua

152

1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

africanos 20% 30% 20% 12% 2%

negros brasileiros – 20% 21% 21% 13%

mulatos – 10% 19% 19% 42%

brancos brasileiros – 5% 10% 10% 24%

europeus 30% 25% 22% 22% 17%

índios integrados 20% 10% 8% 8% 2%

A faixa que podemos entender como “brasileiro nativo” correspon-de à soma das faixas de “negros brasileiros”, “mulatos” e “brancos bra-sileiros”; deixamos de lado os índios integrados, pois é sabido que essa integração se deu sobretudo fora das áreas urbanas e que o Brasil conhe-ceu, a partir de 1700, um incessante e rápido processo de urbanização. Podemos então refazer a tabela como abaixo, indicando em amarelo a porcentagem de brasileiros nativos:

1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

africanos 20% 30% 20% 12% 2%

brasileiros nativos – 35% 50% 70% 79%

europeus 30% 25% 22% 14% 17%

índios integrados 20% 10% 8% 4% 2%

A tabela acima certamente não condiz totalmente com a realidade dos fatos – é implausível pensar que não havia brasileiros nativos entre 1538-1600, por exemplo –, mas mostra como o brasileiro nativo desem-penhou um papel importante na formação de nossa língua: de 1600 em diante, um número maior do que 30% da população brasileira adquiria sua língua no território brasileiro, provavelmente através de algo como uma transmissão linguística irregular.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

153

Supondo que tudo isso esteja correto, qual é a melhor maneira de ca-

racterizar a formação do português brasileiro? Os dados que temos

sobre população e os documentos históricos nos permitem dizer que

houve uma crioulização prévia ou mesmo um “semicrioulo” no Brasil?

Como a transmissão linguística imprópria pode explicar as diferenças

entre o português brasileiro e o europeu?

A dinâmica populacional apresentada no quadro anterior é um dos argumentos de Noll (2008, p. 190) para rejeitar a hipótese da criouli-zação prévia e da existência de um semicrioulo. Estudos recentes so-bre línguas crioulas consideram que seja necessário, para a formação de uma língua crioula baseada numa língua A num dado país, que não mais do que 20% de sua população tenha a língua A como língua mater-na. O momento que mais se aproxima de tal situação é o período entre 1538-1600, no qual apenas 30% da população tinha o português como língua materna. Daí em diante, quando entra em cena a figura do bra-sileiro nativo, que, como dissemos, ou tinha o português como língua materna ou travou contato com essa língua desde cedo, o número de pessoas que têm o português como língua materna só cresce.

Essa discussão sobre a população enfraquece o primeiro dos dois motivos que apresentamos acima com relação à existência de influên-cia de línguas indígenas e africanas no português falado no Brasil. Há ainda, contudo, uma série de argumentos estritamente linguísticos que enfraquecem o ponto (2) (i.e., as diferenças linguísticas significativas entre as variedades de português faladas no Brasil e em Portugal podem ser explicadas apelando-se a tal influência).

Para podermos apreciar o ponto (2) e avaliar sua solidez, é neces-sário, antes de mais nada, que arrolemos sumariamente algumas dessas diferenças (NOLL, 2008, p. 213-218):

História da Língua

154

1. a entoação brasileira, bastante diferente da portuguesa;

2. a nasalização heterossilábica que há apenas no Brasil

[kɐ.ma];

3. a passagem de [ʎ] para [j], como no caso de milho ([mi.ʎu]

para [miju]);

4. a africação de /t/ e /d/ diante de /i/;

5. assimilação [nd] > [n], como em falando e falano;

6. queda de /r/ final;

7. queda de /l/ e /s/ finais;

8. neutralização de /r/ e /l/, como na pronúncia caipira de sol

(“sor”), animal (“animar”);

9. quebra de encontros consonantais, como advogado por “adivo-

gado”; técnico por “téquinico” (grafia, aliás, que não é incomum

encontrar);

10. a aférese, como em “tá” por está, “cê” por você;

11. uso dos pronomes ele e ela como objeto direto, como “você viu

ele?”;

12. a repetição da negação, como em “não quero não”.

Atribui-se aos itens de (1) a (5) uma influência tanto indígena quanto africana, ao item (6) atribui-se uma influência indígena, e aos itens de (7) a (12), uma influência africana.

Noll (2008, p. 213-218) apresenta uma série de problemas bastante complexos com a ideia de buscar uma explicação para os fenômenos de (1) a (12) em influências indígenas e africanas; tomemos alguns exemplos:

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

155

• hámuitaslínguasindígenaseafricanasqueestiveram(ealgu-

masaindaestão)noBrasil,portanto,sequisermosexplicarofe-

nômenoXdevidoà influênciadeumaoutra língua,devemos

serclarossobrequallínguaestamosfalandoecomosedeutal

influência–dizerqueX resultado contato comuma sériede

línguasindígenaseafricanasnãorelacionadasentreeintrasié

algomuitocômodo,maspoucoexplicativo;

• alémdadiversidadedelínguas,háumadiferençanadensidade

populacionalentreindígenaseafricanosemcontextosruraiseur-

banosqueprecisamoslevaremconta.Issosecomplicasobrema-

neiraquandolembramosqueosfenômenosarroladosacimasão

encontradospraticamenteemtodooterritórionacional;

• não encontramosna estrutura das línguas que alegadamente

influenciaramoportuguêsbrasileiroosfenômenosqueencon-

tramosemportuguês(notadamenteasquedasdeconsoantes

emfinaisdepalavraeausênciadecertostiposdeconcordância);

• todososfenômenosarroladosacimasãoatestadosemdiferen-

tesperíodosnahistóriadalínguaportuguesa,enãoénecessá-

riorecorrerainfluênciasexternasparaexplicá-los.

A posição de Noll (2008) é controversa, mas, mais do que tudo, mostra como é complicado saber as origens do português brasileiro e como ainda há trabalho a ser feito.

Ao negar a ideia de crioulização e de semicrioulização, nada dissemos

sobre a transmissão linguística imprópria. Esse tipo de transmissão tor-

na-se bastante interessante para explicar a formação do português bra-

sileiro quando consideramos o último quadro imediatamente acima,

juntamente com a antiga ideia de deriva linguística.

História da Língua

156

Durante a década de 20, o linguista americano Edward Sapir lan-çou a ideia de que as mudanças linguísticas de curto e longo prazo são condicionadas estruturalmente pelas línguas e que seguem certo cami-nho ou certo padrão, e é justamente esse caminho ou padrão que ele chamou de “deriva linguística”. Essa é uma ideia bastante intuitiva, mas também bastante poderosa, pois segundo ela as línguas não mudam ale-atoriamente e nem caoticamente, mas quando há alguma mudança, ela se conforma à deriva da língua, que tem a ver com sua estrutura.

Com esses três elementos – deriva linguística, transmissão linguística

imprópria e a constatação de que o que ocorre no português brasilei-

ro já foi registrado de maneira oscilante em momentos antigos da lín-

gua portuguesa –, podemos lançar a seguinte hipótese: o português

brasileiro é simplesmente uma variedade de português que sofreu

modificações (tanto conservando características quanto as inovan-

do) diferentes do caso do português europeu, mas ainda assim con-

soantes com sua deriva linguística, que foi, por sua vez, “acelerada” ou

“catalisada” pelo processo de transmissão linguística imprópria.

Novamente, essa é uma hipótese controversa, mas não deixa de ser bastante interessante: dá conta da ausência de uma documentação his-tória sobre uma suposta língua crioula falada no Brasil; dá conta, ain-da, das diferenças que há entre o português do Brasil e o de Portugal e atribui um papel de suma importância às populações que não tinham o português como língua materna e aos primeiros brasileiros nativos, que é justamente a aceleração ou catalisação da deriva linguística. Ecos de uma hipótese similar já podem ser encontrados nos trabalhos de Se-rafim da Silva Neto (1950, p.96), que afirmava, na década de 50, que “no português brasileiro não há, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias”. Os trabalhos de Naro e Scherre (2007) e de Noll (2008) podem ser também lidos como apontando para direções próximas à que a hipótese esboçada acima aponta.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

157

Como terá notado o leitor, e como mencionamos pouco acima, há

muito trabalho ainda a ser feito para desvendarmos e entendermos a

formação do português brasileiro. Não é nosso objetivo aqui dar uma

palavra final sobre essa questão, mas apenas chamar a atenção para sua

importância e complexidade, bem como indicar como procede esse

tipo de investigação da história de uma língua e de sua formação.

Antes de encerrarmos este Capítulo, vejamos na sequência a situa-ção do português no Brasil de hoje.

10.2 Unidade e diversidade no português falado no Brasil

Há dois slogans muito comuns relacionados ao português brasilei-ro: um deles diz que o Brasil é o maior país de língua portuguesa – e está perfeitamente correto; o outro, menos comum hoje em dia, é aquele segundo o qual o Brasil é o maior país em que se fala apenas uma língua – e isso não está correto, por mais de um motivo.

O primeiro slogan é incontestável diante de um país de dimensões continentais que conta com mais de 190 milhões de habitantes (em 2009). Mas isso não exclui duas coisas: (1) que há diversidade no inte-rior do português brasileiro, e (2) que o português não é a única língua falada no Brasil, algo que vai contra o segundo slogan.

Sobre a veracidade do ponto (1) todos estão de acordo. Afinal, basta conhecermos pessoas de diferentes regiões do país, ou ligarmos o rádio ou a televisão que veremos (ou melhor, ouviremos) facilmente a diver-sidade dos “falares portugueses” no Brasil – o que comprova, aliás, que somos excelentes “linguistas amadores”, principalmente foneticistas, e percebemos imediatamente o sotaque das pessoas.

É documentado no Brasil, desde o século XIX, que certas regiões têm sotaques diferentes de outras. Um bom exemplo foi estudado por Oliveira (2004) e trata-se de um texto de 1816, um documento poli-cial, escrito por policiais de Florianópolis (então Desterro), que relata o

Ver também Ilari e Basso (2006, p. 160-161).

História da Língua

158

encontro com oficiais de São Paulo. Os policiais de Florianópolis identi-ficaram os paulistas, entre outras coisas, pela maneira de falar:

encontramos /

pelas onze horas mais ou menos da /

mesma noite na Rua do Vinagre junto /

à porta de um tal Fayal, bem de fronte /

da travessa que toma para a Rua Augusta /

uns oito vultos, dois ou trez dos quaes com /

borretinas do uniforme de cavallaria /

de S. Paulo, ao presente destacada nesta Vª

[corroído]

os mais vestidos de ponxes com chapeos /

desabados, os quaes fomos reconhecer da par- /

te da Justiça, como era da nossa obrigação /

declarando serem soldados do Regimto /

d. São Paulo – como com effeito erão, e se /

conhecerão pela diferença e singularidad.e

da sua voz e pronúncia – que ali se acha - /

vão com licença do seu Then.e Cor.El comand.Te

[MIRANDA, F. G..; SARAIVA, J. P. A.; VIEIRA, S. F. Ofícios dos Juízes de Fora para o Presidente da Província (1814-1821), Florianópolis: Núcleo de Estudos Portugueses, 1996. Série Filológica].

Depois da virada do século XIX para o século XX, encontramos vá-

rios trabalhos que descrevem uma ou outra variedade do português

brasileiro e alguns que têm por objetivo mapeá-los; podemos citar

os seguintes trabalhos: O dialeto caipira, de Amadeu Amaral (so-

bre São Paulo, 1920 / 2a. ed. 1953); O linguajar carioca, de Antenor

Nascentes (1922); A linguagem dos cantadores, de Clóvis Monteiro

(sobre o Ceará, 1934); A língua do Nordeste, de Mário Marroquim

(sobre Alagoas e Pernambuco, 1938); Alguns aspectos da fonética sul-riograndense, de Elpídio Ferreira Paes (1938); O falar mineiro e Os estudos de dialetologia portuguesa, de J. A. Teixeira (sobre

Goiás, 1944), entre muitos outros.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

159

O trabalho de Antenor Nascentes, de 1922, traz o primeiro atlas linguístico brasileiro, classificando as variedades regionais do português do Brasil. Mesmo contando com quase cem anos, esse mapa é ainda re-lativamente fiel à realidade variacional do português brasileiro e identi-fica as seguintes variedades: Sulista, Mineiro, Fluminense, Baiano, Nor-destino, Amazônico:

Limites com o estrangeiro

Limites estaduais

Limites dos subfatores

Amazônico

Sulista

Mineiro

BaianoTerritório Incaracterístico

NordestinoFluminene

Mapa – Atlas linguístico brasileiro. Fonte: Nascentes (1922).

Apesar de sua atualidade, o trabalho de Nascentes merece alguns retoques. O primeiro deles se refere ao que o autor classificou como “Território incaracterístico”, que compreende uma região aproximada-mente do tamanho da França (cf., ILARI; BASSO, 2006, p. 170-171).

História da Língua

160

A razão para a taxação “território incaracterístico” é majoritariamente a falta de população nessas regiões, algo que mudou e muito nos últimos anos, principalmente com a migração de paulistas e gaúchos. Sobre a variedade Sulista, assim como para o caso da Amazônica, haveria mais subdivisões a fazer, opondo, por exemplo, a varidade de São Paulo à de Florianópolis e à de Porto Alegre, assim como a variedade de Manaus à de Belém. Obviamente, a depender do grau de detalhe da análise, as outras varidades de Nascentes também podem ser subdivididas.

Ilari e Basso (2006, p. 167-169) arrolam alguns fenômenos regionais do português brasileiro, que apresentamos abaixo. Antes de olharmos para tais fenômenos, é importante salientar, porém, que não se trata de uma exposição exaustiva, ou seja, pode ser que mais regiões apresentem os fenômenos que citamos ou que certas regiões os apresentem com mais frequência e de maneira mais robusta que outras:

1. fenômenos de ordem fonética:

• Palatalização de /s/ e /z/ finais de sílaba e de palavra:

<mais> pronunciado [maj∫], <rapaz> pronunciado [Rapaj∫] etc.

Encontrado principalmente na fala carioca, mas também em alguns locais do Espírito Santo, em algumas regiões de Minas Gerais e em certos falares do Pará, do Amazonas e também de Pernambuco (Recife);

• Realização de /s/ final como /h/

<mais> pronunciado [majh]

encontrado no Nordeste e no Rio de Janeiro;

• Realização de /v/ e /ʒ/ como /h/ em início de palavra.

<vamos> pronunciado [hamʊ]

<gente> pronunciado [het∫׀]

encontrado em regiões do Nordeste, principalmente no Ceará;

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

161

• Diferentesrealizaçõesdo/R/(o<r>decarro):

apical múltipla na Região Sul (churrasco, espeto corrido e chi-marrão na voz dos gaúchos);

uvular [] na pronúncia carioca ([kaʊ]);

fricativa velar surda [h] no resto do País;

• Ausênciadapalatalizaçãode/t/e/d/antesde/e/e/i/:

a palatização (<dente, pratinho, disco> pronunciados [det∫׀],

[prat∫iɲʊ], [dʒiskʊ]) é fenômeno generalizado em todo o ter-

ritório brasileiro, com exceção do interior de São Paulo e da Re-

gião Sul (<leite quente> pronunciado [lejte kete]); encontrado

também em regiões de PE, do CE, do MA e do PI;

• Palatizaçãode/t/,/d/antesde/a/e/o/:

<oito, muito> pronunciados [ojt∫ʊ], [mujt∫ʊ]

encontrado em regiões do sertão, Pernambuco, Paraíba e Mato

Grosso;

• Pronúncias[o]e[e]emfinaldepalavra:

<leite quente> pronunciado [lejte kete]

encontrado em localidades da Região Sul e em localidades do

interior de São Paulo. A não ser nesta área, a oposição /e/-/i/ se

neutraliza em posição pós-tônica; idem para /o/-/u/;

• “entoaçãodescendente”:

<sei não> pronunciado com um “contorno descendente longo”

encontrado no Nordeste, acima do estado da Bahia;

• aberturadasvogaispré-tônicas:

<decente> pronunciado [dset∫׀]

encontrado na região Nordeste;

História da Língua

162

• pronúnciaretroflexado/r/,ex.<porta>pronunciado

[pɔt]:

esta pronúncia é uma das características do “dialeto caipira”, que

costuma ser associado à região não costeira de colonização mais

antiga, em São Paulo. A pronúncia retroflexa do /r/, como de res-

to muitas outras características do dialeto caipira, alcançam de

fato algumas regiões do sul de Minas Gerais, do Mato Grosso, do

norte do Paraná, de Goiás e de Tocantins. A mesma pronúncia é

dada no “dialeto caipira” ao primeiro [l] de <álcool> e ao [l] de

<sol> e de <animal>.

• pronúnciacomo[w]ou[]do-lquefechasílaba:

a primeira pronúncia é generalizada pelo Brasil afora, o que

leva à confusão de palavras como mal e mau, e a grafias erradas

como <autofalante> e <altomóvel>. A segunda pronúncia é

encontrada no Sul. Outros falares regionais, entre eles o dialeto

caipira, apresentam uma terceira alternativa de pronúncia, que

é a queda pura e simples do /l/ final;

• quedado-rfinaldosinfinitivosverbais/quedado–rfinal

dossubstantivos:

<andar>, <lugar>, <flor>, <morador> pronunciados respecti-

vamente [ãda] e [luga], [flo], [morado] ou [mɔrado]

encontrado principalmente em Minas, São Paulo, Espírito Santo,

mas também, com maior ou menos intensidade, em todo o ter-

ritório nacional;

• pronúnciadofonema/λ/:

áreas: na região do “dialeto caipira” e em muitas outras, a pro-

núncia é [j]: filho [fijo], milho [mijo]; nessas regiões, uma reação

de hipercorreção leva eventualmente a pronunciar desentupi-

dor de pia como desentupidor de pilha. Em outras regiões (par-

te do Nordeste), a pronúncia é [l]: mulher pronunciado [mulɛ];

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

163

2. fenômenos morfossintáticos:

• usoouomissãodosartigosdefinidosantesdenomespró-

priosedosnomesdeparentesco:

O assunto de que mais se falou na casa de mainha / da mãe foi o casamento de /do Luís.

a omissão se dá principalmente na região Nordeste;

• usodetuevocêcomopronomesdesegundapessoa:

há, realmente, em português brasileiro, três formas de expressar

a segunda pessoa: (i) pronome tu + verbo de segunda pessoa:

tu és / tu vais; (ii) pronome tu + verbo de terceira pessoa: tu é / tu vai; (iii) pronome você e verbo de terceira pessoa: você é / você vai. As duas primeiras soluções prevalecem nos três esta-

dos da região Sul; na fala carioca, encontramos a segunda e a

terceira; na região norte e nordeste também encontramos (i) e

(ii). A solução com você + verbo de 3ª pessoa prevalece no resto

do País.

• tendênciaaomitiropronomereflexivocomverbosprono-

minais:

Já tinha acontecido antes, por isso não preocupei (em vez de me preocupei).

encontrado em Minas Gerais, e ampliando sua área a partir de lá.

O leitor terá notado que alguns dos fenômenos acima também ocor-

rem em sua região, apesar de ela provavelmente não fazer parte da

região à qual associamos esses fenômenos. Isso se dá porque muitos

deles têm origem nos diferentes graus de escolaridade dos falantes e

não necessariamente em sua procedência geográfica; tal constatação

nos mostra que a variação linguística não se dá apenas na dimensão

geográfica (chamada de variação diatópica), mas também na dimensão

História da Língua

164

econômico-social (variação diastrática) que no Brasil está diretamente

ligada ao nível de escolaridade, e ao acesso a ela. Sobre esses pontos,

você pode consultar o material de Sociolinguística e retomar seu con-

teúdo para mais detalhes.

Diante da existência das variedades e das diferenças entre elas men-

cionadas acima, convém perguntar se é possível falar que há diferentes

dialetos do português no Brasil. Essa não é uma pergunta fácil de res-

ponder, pela simples razão de que não há definição de dialeto que seja

trivial e isenta de problemas – como decidir quanto estamos diante de

dois dialetos? Pela impossibilidade de entendimento? Pelas fronteiras

políticas? Por uma combinação de fatores? Quais?

É certo que, no Brasil, um manauense pode entender um gaúcho e as maiores dificuldade de comunicação serão encontradas no léxico, mas a questão da legitimidade político-social de variedades e dialetos é bastante delicada e que não aprofundaremos aqui. Assim, o português brasileiro de fato apresenta-se bastante homogêneo, mesmo com as di-ferenças que apresentamos logo acima.

A constatação da homogeneidade do português brasileiro, contu-do, não nos autoriza a endossar o segundo dos slogans que vimos acima, a saber: que o Brasil é o maior país em que se fala apenas uma língua. Atualmente, o Brasil tem como língua oficial o português e a língua brasileira de sinais (Libras), reconhecida oficialmente desde 2002; além disso, o município de São Gabriel da Cachoeira tem como línguas ofi-ciais, reconhecidas pelo governo brasileiro, as línguas indígenas tucano, nheengatu e baniwa.

Quanto às línguas indígenas ainda faladas no território nacional, nas diversas reservas espalhadas pelo País, encontramos cerca de 180. Não podemos esquecer também das línguas de comunidades de imigrantes que vieram mais recentemente ao Brasil e que também influenciaram o português brasileiro, como o italiano, o alemão, o japonês, entre outras.

Capítulo 10Línguas Indígenas e Africanas na Formação do Português Brasileiro

165

Resumo

Nesta Unidade, investigamos a história da língua portuguesa na América. Começamos com a chegada do português ao território ame-ricano e a delimitação de suas fronteiras, mostrando novamente como não é possível estudar a história de uma língua sem levar em conta sua história externa. Num segundo momento, investigamos as possibilida-des de periodização do português brasileiro e, depois de nos decidirmos por uma delas, exploramos as características de cada uma de suas fases. Lembramos também que o português brasileiro é composto por diferen-tes variedades; uma imagem que, por vezes, pode ficar distorcida pela ideia de que falamos “uma mesma língua”. Por fim, apresentamos e ana-lisamos algumas das hipóteses sobre a formação do português brasileiro. Essa parte é confessadamente mais especulativa e, talvez justamente por isso, mais instigante: há ainda inúmeras perguntas a serem respondidas.

Leia mais!

Há vários livros e artigos sobre a formação do português brasileiro e suas diferenças frente ao português europeu (e também africano e asiático). O leitor interessado pode começar, por exemplo, pelos textos já clássi-cos de Silva Neto (1946, 1950), Melo (1986) e Mendonça (1948). Mais recentemente, podemos citar os textos de Ilari e Basso (2006), Naro e Scherre (2007) e Noll (2008) – esses dois últimos defendem propostas específicas sobre a formação do português brasileiro. Sobre as varieda-des do português brasileiro, é sempre interessante consultar o texto de Nascentes (1922), Ilari e Basso (2006) e os diversos trabalhos mais re-centes que você deve ter visto na disciplina de Sociolinguística.

Os dados completos dos livros, cujos autores são mencionados nesta seção, podem ser encontrados nas Referências.

Epílogo

167

Epílogo: conservadorismos e inovações do português brasileiro

Em vários momentos deste livro, tratamos as diferenças do portu-guês brasileiro em relação ao português europeu como conservadoris-mos e inovações do primeiro em relação ao segundo. Tomaremos como marco cronológico para avaliar se uma dada diferença deve ser tratada como uma inovação ou um conservadorismo a data de 1500, ou seja, se uma característica que o português europeu tinha em 1500 foi mantida no português brasileiro, mas não no europeu, tal característica será con-siderada um conservadorismo do português brasileiro; se, por sua vez, um dado fenômeno não for encontrado no português de 1500 e nem no atual português europeu, mas sim no português brasileiro, podemos dizer que tal fenômeno é uma inovação do português brasileiro.

Ao longo deste livro, já nos deparamos com as diferenças entre o português europeu e o brasileiro que podem ser distribuídas entre ino-vações e conservadorismos. Como resumo, apresentamos abaixo, de modo adaptado e resumido, algumas das conclusões de Noll (2008), Ila-ri e Basso (2006) e Teyssier (1997).

Conservadorismos do português brasileiro:

1. a nasalização heterossilábica, como em cama [ˈkɐ.ma] e não [ˈkɐ.ma];

2. a ausência de oposição entre /a/ e /ɐ/, como no português euro-

peu cantámos vs. cantamos;

3. a repetição da negação, como em não sei não;

4. a manutenção das vogais pretônicas e postônicas [e], [o] e [u],

que se reduziram no português de Portugal;

História da Língua

168

5. conservação de [e] antes de palatal ([ʎ ɲ ʃ ʒ]), que em Portugal

se realiza como [ɛ ɐ ɐj];

6. conservação dos ditongos [ej ej], que em Portugal se realizam

como [aj aj];

7. conservação do gerúndio como está fazendo, e não a fazer;

8. conservação da próclise em sentenças afirmativas com sujeito

substantival anteposto.

Um conservadorismo bastante interessante, mas ainda a ser melhor estudado, refere-se à prosódia e à estrutura fonética do português. Se pedirmos para um falante nativo de português europeu para que leia os versos do poema Os Lusíadas, de Camões, ele certamente não respeitará a métrica, ou seja, ao invés das dez sílabas com as quais são construídos os versos, um português pronunciará oito ou sete. Como dissemos mais acima, isso se deve às profundas mudanças pelas quais as vogais do por-tuguês europeu passaram, possibilitando a redução drástica de sílabas. Se um brasileiro ler os mesmos versos, encontraremos, todavia, as dez sílabas em sua pronúncia. Isso pode ser uma evidência de um conserva-dorismo prosódico do português brasileiro; mas, é sempre importante lembrar, esse exemplo é apenas a ponta de um enorme iceberg a ser ain-da estudado para somente depois podermos tirar quaisquer conclusões.

Inovações do português brasileiro:

1. perda da distinção pretônica entre /e/ e /ɛ/;

2. a africação de /t/ e /d/ diante de /i/;

3. a epêntese de /i/ antes de /s/ final;

4. a vocalização de /l/ final;

5. rompimento de encontros consonantais, como na pronúnica

“adevogado” para advogado;

Epílogo

169

6. inserção de vogais finais, como na pronúncia [ˈmɛ.kɪ] e não

[mɛk] para sigla MEC;

7. o <r>-retroflexo;

8. redução de [ʎ] para [l] ou [j];

9. generalização da próclise;

10. uso dos pronomes ele e ela como objeto direto;

11. monotongação de /ou/, principalmente no sistema verbal,

como em [fa.ˈlo] por [fa.ˈlow];

12. desnasalização em finais de palavra, principalmente no sistema

verbal, como em [ˈfa.lɐ] por [ˈfa.lɐm];

13. queda de /r/, /l/ e /s/ finais.

Podemos ainda mencionar o uso mais generalizado do pronome você, a falta de concordância numeral no sintagma nominal, a simplifi-cação do sistema verbal, o uso generalizado de perífrases verbais, e ain-da uma menor resistência a empréstimos estrangeiros que o português europeu (usamos, por exemplo, frízer e não arca frigorífica).

Conclusão

171

ConclusãoEste livro apresentou o percurso histórico do latim ao português e

abordou em seguida questões sobre a formação e a consolidação do por-tuguês brasileiro. Em paralelo aos fenômenos linguísticos analisados, apresentamos também a história externa que propiciou ao português várias de suas características linguísticas e também geopolíticas; afinal, foi devido às grandes navegações portuguesas que a língua de Portugal – um pequeno país – chegou aos quatro cantos do mundo e é hoje a sétima língua em número de falantes.

Como não podia deixar de ser, há inúmeros assuntos sobre os quais nada falamos. Ao leitor mais versado em história do Bra-sil, certamente fará falta comentários mais aprofundados sobre a imigração açoreana ao Brasil e as possíveis marcas que essa imi-gração deixou no português falado, por exemplo, em Santa Ca-tarina e em Belém do Pará. Fica aqui um convite à pesquisa e à leitura sobre esse tema. O leitor interessado encontrará nos livros arrolados nas Referências e nos sites citados no corpo do texto um bom começo.

Outros temas bastante importantes na história das línguas, prin-cipalmente quando se trata da consolidação e fixação de uma norma linguística para uma determinada língua em um dado país, são aqueles ligados à ortografia, lexicologia e gramática normativa, seu estabeleci-mento e implementação. O trabalho de lexicógrafos, gramáticos e de-mais estudiosos das línguas é de suma importância para que as línguas passem a representar Estados nacionais, funcionando, às vezes, como símbolo patriótico, ao lado de sua função como símbolo cultural e polí-tico. Esses certamente são temas muito interessantes, mas nosso espaço aqui já se acaba. Fica assim, mais um convite à leitura e à pesquisa.

Cronologia

173

CronologiaPor volta de 4500 a 2500 a.C. – Desenvolvimento do protoindo-europeu

2000-1100 a.C. – Desenvolvimento do ramo anatólico (hitita, assírio)

2000-1400 a.C. – Desenvolvimento do ramo indo-ariano (sânscrito, persa)

1600-1100 a.C. – Datação aproximada do grego micênico (linear B)

1000 a.C. – Datação provável do início do desenvolvimento do latim e do grego antigo

753 a.C. – Fundação mítica de Roma

509 a.C. – Fim da monarquia etrusco-romana, início da República

390-387 a.C. – Invasões celtas na península itálica

343 – 282 a.C. – Expansão romana na península itálica

275 a.C. – Roma conquista as colônias gregas no sul da Itália

264-146 a.C. – Guerras púnicas

218 a.C. – Os romanos chegam à Península Ibérica

149 a.C – Roma conquista a Grécia após derrotar Corinto

146 a.C. – A Macedônia torna-se província romana

106 – 83 a.C. – Campanhas de Mário e Silas levam ao primeiro grande conflito interno em Roma

59-50 a.C. – Primeiras campanhas militares de César

59 a.C. – Primeiro triunvirato: César, Pompeu e Crasso

49 a.C. – César cruza o rio Rubicão e marcha contra Roma; Pompeu ordena o abandono de Roma

48 a.C. – Pompeu é derrotado na batalha de Farsália na Guerra Civil contra César; César torna-se ditador de Roma

44 a.C. – Republicanos infelizes com o poder unificado nas mãos de César o assassinam no senado

História da Língua

174

43 a.C. – Segundo triunvirato constituído pelo sobrinho de César, Ota-viano, além de Marco Antônio e Lépido

42 a.C. – Marco Antônio e Otaviano derrotam os assassinos de César na batalha de Filipos

31 a.C. – Nova guerra civil entre Otaviano e Marco Antônio, que o pri-meiro vence na batalha de Ácio

27 a.C. – Otaviano se proclama César Augusto, imperador de Roma.

14 d.C. – Morte de Augusto; seu sobrinho Tibério torna-se imperador

101 – 106 – Conquista da província da Dácia por Trajano

285 – Diocleciano divide o Império em ocidental e oriental

330 – Constantino estabelece Constantinopla como capital do Império

395 – Com a morte de Teodósio, o Império se divide permanentemente

476 – Com a pressão das invasões bárbaras e a instabilidade imperial, Rômulo Augusto, último imperador, é deposto, e o Império tem seu fim

507 – Expulsão dos visigodos da França para a Península Ibérica

711 – Invasão árabe na Península Ibérica

722–1492 – Movimento da Reconquista da Ibéria

800 – O Sacro Império Romano é instaurado com Carlos Magno, numa tentativa de reviver o Império Romano

813 – Concílio de Tours

842 – Juramentos de Estrasburgo

882 – Carta da Fundação da Igreja de Lardosa, documento latino-por-tuguês mais antigo do qual temos notícia

1173 – D. Afonso Henriques é reconhecido como Rei no condado Por-tucalense, desmembrado da Galiza

1175 – Notícia de Fiadores

1210 – 1216 – Datas prováveis da escrita da Notícia de Torto

1214 – Testamento de Afonso II

Cronologia

175

1250 – D. Afonso III completa as conquistas que definem as fronteiras de Portugal praticamente como as de hoje.

1255 – Capital de Portugal transferida de Coimbra para Lisboa

1290 – Fundação da Universidade de Coimbra

1385 – 1433 – Ínclita Geração dos nobres eruditos portugueses: D. Du-arte, D. Pedro e D. Henrique

1415 – Tomada de Ceuta, no norte da África, que inicia o movimento expansionista de Portugal

1453 – Os otomanos tomam Constantinopla, pondo fim ao Império Bi-zantino, antigo Império Romano do Oriente

1492 – Conquista de Granada, que põe fim à dominação árabe na Ibéria

1500 – Descobrimento do Brasil

1532 – Expedição de Martim Afonso de Souza

1534-1536 – Criação do Regime de Capitanias Hereditárias e doação aos governadores-gerais

1536 – Gramática da linguagem portuguesa, de Fernão de Oliveira

1540 – Gramática / Diálogo em louvor da nossa linguagem, de João de Barros

1549 – Chegada dos jesuítas ao Brasil

1559 – Legalização do tráfico de escravos para o Brasil

1572 – Publicação de Os Lusíadas

1572 – Batalha de Alcácer-Quebir, com derrota dos portugueses e morte do rei Dom Sebastião

1624 – Chegada dos holandeses ao Nordeste do Brasil

1654 – Expulsão dos holandeses

1697 – Início do Ciclo do Ouro

1715 – Tratado de Utrecht

História da Língua

176

1750 – Tratado de Madri

1757 – Diretório Geral dos Índios

1759 – Expulsão dos jesuítas

1777 – Tratado de Santo Ildefonso

1808 – Chegada da família real portuguesa ao Brasil

1808 – Fundação do jornal Gazeta do Rio de Janeiro

1816 – Fundação da Academia de Belas Artes

1822 – Independência do Brasil

1838 – Fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

1850 – Fim oficial do tráfico negreiro

1865–1870 – Guerra do Paraguai

1879 – Início do Ciclo da Borracha

1888 – Lei Áurea e abolição da escravidão

1889 – Proclamação da República

1891 – Promulgação da primeira constituição republicana

1897 – Fundação da Academia Brasileira de Letras

1903 – O Brasil compra o Acre da Bolívia

1932 – Revolução Constitucionalista em São Paulo

1937-1944 – Implementação do Estado Novo por Getúlio Vargas

1957 – Aprovação da lei que recomenda o uso da NGB (Norma Gra-matical Brasileira)

1956-1961 – Mandato de Juscelino Kubitcheck

1960 – Fundação de Brasília

1964 – Início do Regime Militar

1970-1984 – Atuação do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização)

1985 – Eleição de Tancredo Neves, pondo fim ao Regime Militar

REfERênCias

177

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glossáRio

179

GlossárioAdstrato: língua que vigora ao lado de outra numa dada comunidade, como nas situações de bilinguismo.

Aférese: queda de um ou mais fonemas do interior de uma palavra.

Africação: processo pelo qual um fone plosivo tem seu fechamento des-feito lentamente.

Alçamento: realização de vogais baixas ou médias em posição mais alta, como acontece na primeira e terceira sílabas da palavra menino /mininu/.

Assimilação: aproximação ou identidade de dois fonemas.

Caso: marcação morfológica do papel sintático de sintagmas nominais.

Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): associação fun-dada em 1996, assinada por países lusófonos para promover a amizade entre eles e também promover a língua portuguesa.

Crioulos, língua crioula: quando uma geração de crianças nasce no seio de uma comunidade que usa um pidgin, pode ser o caso que essa gera-ção tenha o pidgin como língua materna. Nesse caso, o pidgin é acres-cido de uma gramática, tem seu léxico ampliado e apresenta todas as características de uma língua natural.

Grau: o aumentativo e o diminutivo são duas possibilidades de mani-festação da categoria gramatical de grau. Em português, por exemplo, azulão e amarelinha são exemplos de aumentativo e diminutivo, respec-tivamente.

Ênclise: colocação de um pronome átono depois do verbo, como em “dá-me um cigarro”.

Epêntese: adição de um ou mais fonemas no interior de uma palavra.

Estruturalismo: O estruturalismo foi uma corrente de pensamento que se desenvolveu no início do século XX, cujos representantes principais foram Claude Levi-Strauss, na antropologia, e Ferdinand de Saussure, na linguística.

História externa: fatores extralinguísticos que influenciaram a evolução de uma língua ao longo da história.

História interna: mudanças ocorridas na estrutura de uma língua ao longo da história.

Koiné: língua comum a toda uma população que resulta do contato de diversos dialetos inteligíveis entre si.

História da Língua

180

Lingua franca: língua usada em um território entre pessoas que falam diversas línguas.

Língua geral: língua franca usada pelos portugueses, principalmente durante as navegações e as primeiras colonizações, baseadas nas línguas dos locais em que aportavam.

Língua morta: língua que não tem mais falantes nativos.

Mesóclise: colocação de um pronome átono entre o verbo e sua desi-nência temporal, como em “tê-lo-ia feito”.

Nasalização heterossilábica: passagem da qualidade nasal para uma vo-gal situada antes ou depois do segmento nasal.

Neutralização: perda de valor de oposição num sistema linguístico.

Pidgin: uma língua que serve para interações específicas entre falantes que não têm línguas em comum; em geral composto de sentenças avul-sas, úteis para a atividade em que o pidgin é empregado, e sem sistema-tização ou gramática próprias.

PIE: Ver protoindo-europeu.

Próclise: colocação de um pronome átono antes do verbo, como em “me dá um cigarro”.

Protoindo-europeu: língua hipotética, que deu origem às línguas indo--europeias.

Substrato: língua anterior falada por um povo que é abandonada em função de uma outra língua imposta a esse povo. Como exemplo, pode-mos pensar nas línguas dos povos que foram dominados pelos romanos e que passaram a falar, num primeiro momento, a língua dos romanos. Nesse contexto, a língua falada originalmente pelo povo em questão era o substrato do latim ali imposto.

Superestrato: em linguística história, entende-se superstrato como a lín-gua imposta a um determinado povo que não é falante dessa língua, ou seja, é a língua do povo conquistador que será imposta à região conquis-tada. Como exemplo de superstrato, podemos pensar no latim que foi imposto aos povos conquistados que não eram falantes de latim.

Tema: unidade morfológica que consiste de radical seguido de vogal te-mática, sem as desinências de número, pessoa, tempo, modo e voz.

apêndiCE

181

Apêndice – Atividades sugeridas para a sala de aula

Nesta parte, apresentaremos algumas propostas de atividades, que en-

volvem o conteúdo discutido neste livro, as quais podem ser desen-

volvidas em sala de aula. O professor pode, obviamente, usar, alterar

e propor outras atividades; esperamos apenas que as sugestões, apre-

sentadas a seguir, sirvam de inspirações para a elaboração de maneiras

instigantes de apresentar e discutir tópicos sobre a história da língua

portuguesa e sobre linguística histórica em geral.

Atividade 1

Como esperamos ter mostrado, a disciplina de linguística história é fundamentalmente multidisciplinar, mobilizando, a um só tempo, con-ceitos linguísticos, geográficos, históricos, políticos, econômicos e ou-tros. Essa característica da linguística história pode ser aproveitada para salientar que o conhecimento, apesar de estruturado em disciplinas, as transcende, e também para trabalhar em conjunto com outros profes-sores. Nesse sentido, você pode pensar em bolar um projeto que una os professores de português, história e geografia para analisar um período específico da história da língua portuguesa. Como exemplo, podemos pensar no período das grandes navegações e no seu impacto histórico, geográfico e linguístico. Quais as motivações históricas (políticas e eco-nômicas) por trás dessa grande época de descobrimentos? Como ela mudou o nosso conhecimento geográfico do mundo? Quais impactos ela causou à língua portuguesa?

Uma investigação desse tipo pode ser bastante profícua para alunos e professores, pois conteúdos aparentemente distintos podem ser tra-balhados sob um mesmo tópico, e os próprios professores, ao trocarem diferentes informações, podem aprender mais com seus colegas.

História da Língua

182

Atividade 2

Analise o trecho abaixo do Testamento de Dom Afonso II, de 1214. Transcreva o texto e compare com o português de hoje, indicando quais são as principais diferenças gramaticais. Há uso de perífrases verbais? O uso de artigos e demonstrativos é o mesmo que temos hoje em portu-guês brasileiro? Os pronomes pessoais são usados do mesmo modo que no português brasileiro de hoje? Quais características da ortografia do texto chamam mais atenção? Você pode também trabalhar em conjunto com um professor de história e tentar questões como: Quem foi Dom Afonso II? Qual é a importância histórica de seu testamento? Seus pedi-dos foram atendidos? Sim ou não? Por quê?

En o nome de Deus. Eu, rei Don Afonso, pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e salvo, temete o dia de mia morte, a saúde de mia alma, e a proe de mia molier, raina Dona Orraca, e de meus filios e de meus vassalos e de todo meu reino, fiz mia mãda, per que, de pós mia morte, mia molier e meus filios e meu reino e meus vassalos e todas aquelas cousas que Deus mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. Pri-meiramente, mãdo que meu filio, infante Don Sancho, que ei da raina Dona Orraca, agia meu reino entegramente e en paz. E, si este for morto sen semel, o maior filio que ouver da raina Dona Orraca agia o reino entegramente e en paz. E, si filio barõ no ouver-mos, a maior filia que ouvermos agia-o. E, si no tepo de mia morte meu filio ou mia filia que deiver a reinar no ouver revora, segia en poder da raina sã madre, e meu reino segia en poder da raina e de meus vassalos ata quando agia revora. E, si eu for morto, rogo o apostóligo, come padre e sénior, e beigio a terra ante seus pees, que el recebia en sã comèda e só seu difíndeméto a raina e meus filios e o reino. E, si eu e a raina formos mortos, rogo-li e prego-li que os meus filios e o reino segia en sã comeda. E mãdo da dezima dos moravidiis e dos díeiros que mi remaserü de parte de meu padre, que sü en Alcobaza, e do outr’ aver móvil que i posermos porá esta dezima, que segia partido pelas manus do arcebispo de Bragaa e do arcebispo de Santiago e do bispo do Portu e de Lixbona e de Coïbria e de Viseu e de Lamego e da Idania e d’ Évora e de Tui e do tesoureiro de Bragaa. E outrossi mãdo das dezimas das luctosas e das armas e d’outras dezimas que eu tenio apartadas en tesouros per meu reino que eles as departiã,

apêndiCE

183

assi como vire por derecto. E mãdo que o abade d’Alcobaza lis dê aques-ta dezima que el ten ou teiver, e eles as departiã segúdo Deus, como vire por derecto. E mãdo que a raina Dona Orraca agia a meiadade de todas aquelias cousas movils que eu ouver a mia morte, exetes aquestas dezi-mas que mãdo dar por mia alma e as outras que tenio en voontade por dar por mia alma e no’ nas uver a dar. Et mãdo que, si a raina morrer en mi vida, que de todo meu aver móvil agia ende a meiadade. Da outra meiadade solten ende primeiramente todas mias devidas. E do que re-maser fazam en três partes, e as duas partes agia meus filios e mias filias, e departiã-se ontr’ eles igualmente. Da terceira, o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago e o bispo do Portu e o de Lixbona e o de Coibria e o de Viseu e o d’Évora fazã desta guisa: que u quer que eu moira, quer en meu reino, quer fora do meu regno, fazam aduzer meu corpo per mias custas a Alcobaza. E mãdo que den a meu sénior, o Papa, iij.mr.; a Alcobaza, ij. mr. por meu aniversario; a Santa Maria de Rocamador, ij. mr. por meu aniversario; a Santiago de Galícia, ij. ccc. mr. por meu ani-versario; ao cabidoo da see da Idania, mille. mr. por meu aniversario; ao moesteiro de Sangurge, d. mr. por meu aniversario; ao moesteiro de San Vicete de Lixbona, d. mr. por meu aniversario; aos caonigos de Tui, mill. mr. por meu aniversario. E rogo que cada ün destes aniversários fazam sépre no dia de mia morte e fazam três comemorazones en três partes do ano, e cada dia fazam cantar una missa por mia alma por sepre.

Atividade 3

Usando as análises de textos e apontamentos linguísticos que vi-mos neste livro, identifique classes de palavras: substantivos, adjetivos, advérbios, artigos, verbos, preposições, pronomes, conjunções, nume-rais e interjeições, nas versões do Pai Nosso apresentadas a seguir. Ten-te explicar como cada um pode ser classificado, através dos dados. Por exemplo: “as preposições sempre aparecem antes dos substantivos”.

Uma atividade consiste em buscar palavras parecidas através das línguas e, com o resultado dessa busca, identificar a língua que não faz parte do grupo. Ou seja, você verá que há entre as línguas arroladas abaixo uma que não é românica, e poderá identificá-la através de uma comparação entre as palavras usadas.

História da Língua

184

Português:

Pai nosso, que estais nos céus,

santificado seja o Vosso nome;

venha a nós o Vosso reino;

seja feita a Vossa vontade,

assim na terra como no céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje;

e perdoai-nos as nossas dívidas,

assim como nós perdoamos aos nossos devedores.

E não nos deixeis cair em tentação,

mas livrai-nos do mal. Amém.

Latim:

Pater noster, qui es in caelis,

sanctificetur nomen tuum.

Adveniat regnum tuum.

Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra.

Panem nostrum quotidianum da nobis hodie,

et dimitte nobis debita nostra,

sicut et nos dimittimus debitoribus nostris.

Et ne nos inducas in tentationem:

sed libera nos a malo. Amen.

Italiano:

Padre nostro,

che sei nei cieli,

sia santificato il Tuo nome.

Venga il Tuo regno.

Sia fatta la Tua volontà

anche in terra com’è fatta nel cielo.

Dacci oggi il nostro pane quotidiano.

Rimetti a noi i nostri debiti,

come noi li rimettiamo ai nostri debitori.

e non esporci alla tentazione,

ma liberaci dal maligno.

perché tuo è il regno, la potenza e la gloria. Per sempre. Amen.

apêndiCE

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Espanhol:

Padre nuestro, que estás en los cielos: santificado sea tu nombre.

Venga tu reyno. Hágase tu vontad, así en la tierra como en el cielo.

Danos hoy nuestro pan cotidiano.

Y perdónanos nuestras deudas, así como nosotros perdonamos á nues-

tros deudores.

Y no nos metas en tentación, mas líbranos de mal. Porque tuyo es el

reyno y la potencia y la gloria por los siglos.

Francês:

Notre père, qui es aux cieux: que ton Nom soit sanctifié.

Que ton règne vienne. Que ta volonté soit faite sur la terre comme au

ciel.

Donne-nous aujourd’hui notre pain quotidien.

Et pardonne-nous nos offenses, comme nous pardonnons à ceux qui

nous ont offensés.

Ne nous conduis pas en tentation, mais délivre-nous du mal. Car c’est à

toi qu’appartiennent le règne et la puissance et la gloire aux siècles des

siècles.

Romeno:

Tatăl nostru carele eşti în ceruri: sfinţească-se numele Tău.

Vie împărăţia ta. Facă-se voia ta, precum in cer aşa şi pe pămînt.

Pâinea noastră cea spre fiinta dă-ne-o nouă astăzi.

Şi ne iartă nouă greşalele noastre, precum şi noi iertăm greşiţilor noştri.

Şi nu ne duce pe noi in ispită, ci ne izbăveşte de cel rău. Că a ta este

împărăţia şi mărirea in veci.

Ocitânico/provençal:

Paire nòstre que siès dins lo cèl,

que ton nom se santifique,

que ton rènhe nos avenga,

que ta volontat se faga

História da Língua

186

sus la tèrra coma dins lo cèl.

Dona-nos nòstre pan de cada jorn,

perdona-nos nòstres deutes

coma nosautres perdonam

als nòstres debitors

e fai que tombèm pas dins la tentacion

mas deliura-nos del mal.

Atal sia!

Galego:

Noso pai que estás no Ceo,

Santificado sexa o teu Nome,

Veña a nós o teu Reino,

e fágase a túa vontade,

aquí na terra como no Ceo,

O noso pan de cada día, dánolo hoxe,

E perdóano-las nosas ofensas,

coma tamén nós perdoamos a quen nos ten ofendido,

e non nos deixes caer na tentación,

mais ceibanos do mal,

Amen.

Inglês:

Our father, who art in heaven;

hallowed be Thy name;

Thy kingdom come;

Thy will be done on earth as it is in heaven.

Give us this day our daily bread;

and forgive us our trespasses

as we forgive those who trespass against us,

and lead us not into temptation;

but deliver us from evil. Amen.

Fonte: Convent of Pater Noster. Disponível em: <http://www.christusrex.org/www1/pater/index.html (1221 línguas e dialetos)>. Acesso em: 05 maio 2010.

apêndiCE

187

Atividade 4

De modo semelhante à Atividade 3, identifique as línguas abaixo, e tente encontrar uma diferença significativa entre, de um lado, as versões em francês e inglês, e, de outro, todas as outras.

“Je peux manger du verre, cela ne me fait pas mal.” - francês

“Posso mangiare il vetro, non mi fa male.”

“Vitrum edere possum; mihi non nocet.”

“Consigo comer vidro. Não me machuca.”

“Pòdi manjar de veire, me nafrariá pas.”

“Pot minca sticla. Nu ma doare.”

“Puedo comer vidrio, no me duele.”

“I can eat glass, it doesn’t hurt me.” – inglês

Fonte: “The I can eat glass project”. Disponível em: <http://web.archive.org/web/20040201212958/http://hcs.harvard.edu/~igp/glass.html>. Acesso em: 05 maio 2010.

Atividade 5

Como vimos neste livro, o Appendix Probi é uma lista que conde-na a pronúncia popular e está organizado do seguinte modo “FORMA CULTA non FORMA POPULAR”; assim, na linha 3, speculum é a forma culta e speclum é a forma popular. Vimos também que as formas popu-lares (e condenadas) do Appendix Probi antecipam e exemplificam mui-tas das mudanças pelas quais o latim culto passou até resultar, através do latim vulgar, nas línguas românicas.

Assim sendo, analise as entradas selecionadas do Appendix Probi abaixo e identifique regras de mudança linguística que também se apli-quem à história do português. Analise as palavras vulgares em sua re-

História da Língua

188

lação com as formas tidas como corretas, traduza as palavras que você conseguir através do conhecimento do português e das discussões pro-postas nos capítulos e tente identificar regras de mudança do latim ao português. Para tanto, você pode usar o capítulo em que discutimos o latim vulgar e também vários livros citados nas Referências.

3) speculum non speclum

4) masculus non masclus.

5) vetulus non veclus.

7) vernaculus non vernaclus.

8) articulus non articlus.

9) baculus non vaclus.

10) angulus non anglus.

11) iugulus non iuglus.

14) vacua non vaqua.

16) cultellum non cuntellum.

20) columna non colomna.

25) formica non furmica.tis.

27) exequiae non execiae.

29) avus non aus.

36) barbarus non barbar.

37) equus non ecus.

38) coquus non cocus.

42) pauper mulier non paupera

mulier.

44) bravium non brabeum.

53) calida non calda.

54) frigida non fricda.

55) vinea non vinia.

56) tristis non tristus.

58) umbilicus non imbilicus.

59) turma non torma.

64) senatus non sinatus.

70) alveus non albeus.

75) formosus non formunsus.

77) flagellum non fragellum.

78) calatus non galatus.

80) solea non solia.

apêndiCE

189

83) auris non oricla.

84) camera non cammara.

86) cloaca non cluaca.

88) ales non alis.

89) facies non facis.

92) vates non vatis.

95) apes non apis.

104) fames non famis.

111) oculus non oclus.

123) occasio non occansio.

126) effiminatus non

imfimenatus.

130) tabula non tabla.

140) amycdala non amiddula.

142) stabulum non stablum.

145) turma non torma.

149) persica non pessica.

152) tensa non tesa.

154) auctor non autor.

155) auctoritas non autoritas.

159) terrae motus non

terrimotium.

163) passer non passa.

174) rivus non rius.

201) viridis non virdis.

203) sirena non serena.

205) labsus non lapsus.

211) rabidus non rabiosus.

219) numquam non numqua.

221) vobiscum non voscum.