[livro ufsc] estudos literários iv

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Estudos Literários IV Florianópolis - 2011 Tânia Regina Oliveira Ramos Gizelle Kaminski Corso Período

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Estudos Literários IV

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  • Estudos Literrios IV

    Florianpolis - 2011

    Tnia Regina Oliveira RamosGizelle Kaminski Corso8

    Perodo

  • Governo FederalPresidente da Repblica: Dilma Vana RousseffMinistro da Educao: Fernando HaddadCoordenador da Universidade Aberta do Brasil: Celso Jos da Costa

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-Reitora de Ensino de Graduao: Yara Maria Rauh MllerPr-Reitora de Pesquisa e Extenso: Dbora Peres MenezesPr-Reitor de Ps-Graduao: Maria Lcia de Barros CamargoPr-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Joo Batista FurtuosoPr-Reitor de Assuntos Estudantis: Cludio Jos AmanteCentro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretora Unidade de Ensino: Felcio Wessling MargottiChefe do Departamento: Izabel Christine SearaCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Renato Miguel BassoCoordenao Pedaggica: LANTEC/CEDCoordenao de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti-Rizzati

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Laboratrio de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenao Geral: Andrea LapaCoordenao Pedaggica: Roseli Zen Cerny

    Produo Grfica e HipermdiaDesign Grfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiCoordenao: Cristiane Barbato Amaral, Talita vila NunesAdaptao do Projeto Grfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramao: Camila Dvila, Grasiele Pilatti, Joo Paulo Battisti de AbreuFiguras: Angelo Bortolini, Cristiane Barbato AmaralCapa: Gustavo Sags MagalhesTratamento de Imagem: Cristiane Barbato Amaral, Raysa SpaniolReviso gramatical: Renata de Almeida

    Design InstrucionalCoordenao: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Daiana da Rosa Acordi ColaboradoresAna Maria Alves de Souza, Daniel Soares Duarte, Jade Gandra Martins, Vanessa Gandra Martins

    Copyright 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Ficha Catalogrfica

    E82 Estudos literrios IV : literaturas de expresso portuguesa e outras linguagens - Tnia Regina Oliveira Ramos, Gizelle Kaminski Corso - Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2011. 149p. : il.

    Inclui bibliografia UFSC. Licenciatura em Letras Portugus na Modalidade a Distncia ISBN 978-85-61482-48-0 1. Literatura portuguesa Estudo e ensino. 2. Literatura Inovaes tecnolgicas. 3. Linguagem. I. Ramos, Tnia Regina Oliveira. II. Gizelle Kaminski Corso

    CDU: 869.0:37

  • Sumrio

    Unidade A - Poticas do olhar ...................................................... 9

    1 Para alm do livro .........................................................................................11

    2 As imagens e a literatura ou Estudos literrios/visualidade .........31

    Unidade B - Poticas do gesto ....................................................47

    3 Teatro: uma potncia milenar ou Estudos literrios/teatro ..........49

    Pensemos em primeiro lugar na fora da trama ..........................................50

    4 A literatura incorporada ou Estudos literrios/performance .......75

    5 O cinema e as adaptaes ou Estudos literrios/adaptaes

    cinematogrficas ...............................................................................................79

    Unidade C - Poticas dos sentidos ............................................95

    6 Literatura e oralidade ou Estudos literrios/oralidade ..................97

    7 Em busca do som ou Estudos literrios/msica .............................107

    8 Formas da memria ou Estudos literrios/memria ....................121

    Encontro final - Literatura e outras linguagens ................. 131

    9 O texto literrio e as pluralidades poticas ...................................133

    Referncias ...................................................................................... 141

    Referncias das figuras ............................................................... 147

  • Apresentao

    E sse o ltimo livro-texto de Estudos Literrios de nosso Curso de Letras. Um livro que procurar mostrar o dilogo da literatura com outras linguagens. Um livro para o qual fizemos escolhas e procura-mos dialogar com outros leitores dessas tantas linguagens: Ana Maria Alves

    de Souza, formada em Artes Plsticas; Daniel Soares Duarte, formado em Le-

    tras e msico; Jade Gandra Dutra Martins, jornalista e especialista no teatro

    de Nelson Rodrigues; e Vanessa Dutra Martins, historiadora e especialista na

    linguagem das correspondncias. Ana Maria Mestra em Antropologia e Lite-

    ratura; Daniel Mestre e Doutorando em Literatura; Jade e Vanessa, Doutoras

    em Literatura. Fizemos questo que cada um deles contribusse com o nosso

    conhecimento e o conhecimento de vocs. Gente que faz.

    Qual o objetivo dessa disciplina? Projetar a futura prtica como docentes,

    como profissionais e como leitores para essas outras linguagens. Formados em

    Letras, professores, devero estar abertos para essas novas linguagens. Na me-

    dida em que nossos olhos se voltam para o sculo XXI, preciso que os estudos

    literrios se voltem para a esttica das novas tecnologias, para a msica, para o

    cinema, para as artes plsticas, para o teatro, para a memria, para a oralidade.

    Se a esttica tem um papel to dominante no pensamento moderno, isto resul-

    ta, em parte, da versatilidade do conceito. Preferimos aqui ler a ideia mesma do

    mundo como artefato.

    Na relao esttica e modernidade, que norteou o nosso olhar sobre as coisas

    ditas, o que se revelou mais do que a necessidade de procurar o oculto foi a

    facilidade de adentrar o simblico. Lendo deste lugar, verificamos com grata

    surpresa o quanto os estudos literrios, em dilogo com outras linguagens ar-

    tsticas, tornam-se uma audaciosa tentativa de ler o moderno e a modernidade,

    ou reler a tradio, para caracterizar produtos culturais de certas formas dspa-

    res na sua caracterizao esttica. Ou no seriam to diferentes assim? Por que

    no considerarmos os atos da vida social como obras-de-arte? Literatura, artes

    plsticas, msica, cinema, textos memorialsticos, fotografia, correspondncia,

    dramaturgia, convive(ra)m harmonicamente sem fronteiras e reconhecendo

    os limites de suas representaes.

    Para voc, leitora, leitor, uma oportunidade de olhar diferente por diferentes

    olhares. Pretendemos aguar em voc uma percepo mais atenta, sensvel,

  • perspicaz, mas no menos crtica, nas relaes (in)findveis que a literatura es-

    tabelece com as outras linguagens. E, para que esse percurso ocorra de manei-

    ra proveitosa e eficiente, elaboramos nove captulos que problematizam, discu-

    tem, evidenciam algumas dessas relaes que aqui denominamos: Poticas do

    olhar, Poticas do gesto, Poticas dos sentidos, divididas mas no encerradas,

    estagnadas e definidas por aquilo que lhes primeiramente predominante:

    o olhar, o gesto, o sentido. Em Encontro final Literatura e outras linguagens,

    apresentamos uma leitura de um livro contemporneo que procura mostrar a

    possibilidade de usarmos esta potica dos sentidos nos estudos literrios. Um

    nmero mpar de possibilidades, de relaes, de liames, de emaranhamentos.

    Tnia e Gizelle

  • Unidade APoticas do Olhar

    Figura 1 - La Lectrice soumise. Ren Magritte. 1928.

  • Captulo 01Para alm do livro

    11

    Para alm do livroUma educao pela pedra, por lies; para aprender da pedra frequent-

    las. Joo Cabral de Melo Neto. In: A Educao pela Pedra.

    Vamos comear nossa disciplina com uma cena. Em pleno scu-lo XXI, dois intelectuais do sculo passado clamam pela eternidade do livro. Inconformados com a era virtual? Resistentes parafernlia tec-nolgica? Embora no nos seja conveniente arriscar uma resposta, essas so algumas das perguntas que pairam na cabea de alguns dos leitores a respeito do discurso-manifesto instaurado em No contem com o fim do livro (2010). Em tempos de se pensar nas relaes que a literatura estabelece com as novas tecnologias , algo que importante ressaltar no de hoje, Umberto Eco e Jean-Claude Carrire aparentemente movimentam-se em sentido contrrio (ou no?!): querem tranquilizar os leitores para a impossibilidade do fim do livro em seu formato tal qual o conhecemos. Precisamos ter em mente que o semilogo e escri-tor italiano e o dramaturgo e roteirista francs so colecionadores natos de incunbulos e biblifilos assumidos; so capazes de pagar caro por exemplares antigos e de correr atrs de livros que a crtica e a histria sempre trataram por inexistentes.

    Essa discusso ainda nos direciona para o clssico ensaio de Wal-ter Benjamin, A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica, originalmente publicado em francs, na revista do Instituto de Investi-gao Social Zeitschrift fr Sozialforschung, em 1936. Se os incunbu-

    1

    Figura 2 - No contem com o fim do livro. Humberto Eco e Jean-Claude

    Carriere Ed. Record, 2010.

    Figura 3 - Jean-Claude Carrire. Figura 4 - Umberto Eco.

    BiblifilosAmantes, colecionado-res de livros, especial-mente raros, antigos, preciosos.

    IncunbulosLivros impressos nos primeiros tempos da imprensa, anteriores a 1500.

  • Estudos Literrios IV

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    los so os livros impressos nos primeiros tempos da imprensa, ou seja, antes de 1500, e possuem sua validade tambm por causa dos poucos exemplares que deles existem, as tcnicas de reproduo reti-raram o carter de unicidade, originalidade dessas e de tantas outras obras artsticas. A autenticidade da obra de arte vem definida pelo hic et nunc do original, e as reprodues sobremaneira desvalori-zam-no pondo em questionamento a noo de (ou a perda da) aura do objeto artstico e o seu valor de culto como realidade exposta. , talvez, por essa

    relao entre aura, valor cultual e autenticidade, uma espcie de expe-rincia religiosa, ritualstica, sobre as obras de arte e, acrescentemos, os incunbulos, que Eco e Carrire manifestam-se a respeito da perma-nncia do livro. E, como Benjamin (2000, p. 223) salienta em seu ensaio, so notrias as imensas transformaes introduzidas na literatura pela impresso, isto , pela reproduo tcnica da escrita. De 1936 para c muita coisa mudou, e no foi apenas a tcnica de impresso que alterou nossa maneira de encarar a literatura, as artes, e as suas (re)produes, mas a internet, aliada s evolues da tecnologia, foi uma das respon-sveis para que pensssemos em estabelecer relaes como literatura e tecnologia, literatura digital, literatura eletrnica e passssemos a pensar na existncia de um Homo zappiens (VEEN; VRAKKING, 2009).

    O livro de Eco e Carrire foge dos padres tradicionais de um texto terico. Trata-se de uma conversa-entrevista informal, na qual os estudiosos dialogam livremente sobre diferentes temas e as-suntos (estritamente relacionados a livros, leitura, cultura por exemplo) intermediados pelo jornalis-ta francs Jean-Philippe de Tonnac. Assim, em seu discurso-manifesto, ou, poderamos dizer, em sua slida homenagem a Gutemberg, os autores pro-curam demonstrar que o livro (o cdex impresso) sobreviveu e ainda sobrevive por sculos. Embora no seja intencional, e talvez os dois in-telectuais pretendam demonstrar o contrrio, seu

    Figura 6 - Volume antigo, manuscrito, organizado em cadernos, unidos entre si por costura e encadernao.

    Figura 5 - Digitalizao do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e Jos Mindlin, Pr-reitoria de Cultura e Extenso Universitria da Universidade de So Paulo (USP).

  • Captulo 01Para alm do livro

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    manifesto-homenagem-a-Gutemberg os transforma muito mais em apocalpticos do que propriamente em integrados.

    Das duas uma: ou o livro permanecer o suporte da leitura, ou existir

    alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes

    da inveno da tipografia. As variaes em torno do objeto livro no

    modificaram sua funo, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos.

    O livro como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventa-

    dos, no podem ser aprimorados. (CARRIRE; ECO, 2010, p. 16-17).

    O livro, ou a ideia daquilo que comumente conhecemos por livro, no perder sua essncia, funcionalidade, especificidade porque, segun-do Eco, como a colher, o martelo, a roda, a tesoura; no pode ser apri-morado. Se o livro desaparecer completamente, algo muito semelhante a ele ser certamente inventado. Para os nostlgicos amantes dos livros, a tecnologia pode tornar-se protagonista e vtima de sua prpria evolu-o e desenvolvimento. Jean-Claude Carrire, em pginas adiante, traz tona essa questo, dizendo:

    ainda somos capazes de ler um texto impresso h cinco sculos. Mas

    somos incapazes de ler, no podemos mais ver, um cassete eletrni-

    co ou um CD-ROM com apenas poucos anos de idade. A menos que

    guardemos nossos velhos computadores em nossos pores. (CARRI-

    RE; ECO, 2010, p. 24).

    Vale lembrar, e a referncia ali no

    gratuita, que Umberto Eco escreveu

    um importante ensaio sobre a ques-

    to da cultura de massas na era tec-

    nolgica, intitulado: Apocalpticos e

    integrados. Caso tenha interesse em

    mergulhar nesta leitura, fornecemos

    a referncia completa: ECO, Umberto.

    Apocalpticos e integrados. So Paulo:

    Perspectiva, 1970.Figura 7 Capa de

    uma edio do livro Apocalp-ticos e Integrados.

  • Estudos Literrios IV

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    Se a tecnologia pode ser vtima de sua prpria evoluo, a exemplo do que cita o roteirista francs, ns tambm o somos. A respeito disso, comenta Umberto Eco: procurei desesperadamente a primeira verso de meu Pndulo de Foucault, que eu devia ter gravado em disquete nos anos 1984 ou 1985, sem sucesso. Se eu tivesse batido a mquina o meu roman-ce, ele ainda estaria aqui. (CARRIRE; ECO, 2010, p. 68). E, ciente de fazer parte de uma gerao que cresceu e amadureceu sem a presena dos computadores, o escritor italiano acrescenta:

    ns utilizamos o computador, mas imprimimos como loucos. Para um

    texto de dez pginas, imprimo cinquenta vezes. Estou matando uma

    dzia de rvores, ao passo que talvez no matasse mais de dez antes da

    entrada do computador na minha vida. (CARRIRE; ECO, 2010, p. 101).

    As novas tecnologias ocupam um lugar central nas representaes do mundo, sonhos e desejos da sociedade contempornea, discursos e instituies cujo modo de pensar organiza-se ao redor de parte da vida da sociedade e do imaginrio social. O novo est sempre relacionado ao futuro, desenvolvimento, progresso tecnolgico; novo adaptar-se sociedade que enfrenta a dificuldade do porvir, do desconhecido, do estar em constante mudana.

    Figura 9 Angelus Novus. Paul Klee. 1920.

    Figura 8 - No romance, Belbo, Diotallevi e Casaubon so os funcio-nrios responsveis pela seleo de ttulos para uma editora que desco-briu um ramo de ouro: o ocultismo. Fonte: Editora Record.

    O progresso, segundo Walter

    Benjamin.

    H um quadro de Klee que se

    chama Angelus Novus. Repre-

    senta um anjo que parece querer

    afastar-se de algo que ele encara

    fixamente. Seus olhos esto es-

    cancarados, sua boca dilatada,

    suas asas abertas. O anjo da his-

    tria deve ter esse aspecto. Seu

    rosto est dirigido para o passado. Onde ns vemos uma cadeia de

    acontecimentos, ele v uma catstrofe nica, que acumula incansa-

    velmente runa sobre runa e as dispersa a nossos ps. Ele gostaria

    de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma

    tempestade sopra do paraso e prende-se em suas asas com tanta

  • Captulo 01Para alm do livro

    15

    A cada novo aparato, uma nova modelao do tempo e espao do sujeito na sociedade. Da marcao-solar ao controle de um relgio mensurvel e calculvel do tempo, grudado ao pulso, presena di-gital da hora em celulares, painis eletrnicos de hora e temperatura em ruas, bem como na tela do computador. Cada vez mais, o sujeito desfragmenta-se dentro de si, assumindo uma postura de completa in-dividualidade. Computadores, celulares, agendas eletrnicas tornam-se a extenso do elemento materializado chamado corpo, porque a tecnologia, segundo Jean Baudrillard (1991, p. 139), a sofisticao funcional de um organismo humano, que lhe permite igualar-se na-tureza e investir contra ela triunfalmente.

    O professor Jos Lus Jobim, em O texto no meio digital (2009) efe-tua um mapeamento das alteraes que as tecnologias fizeram na nossa vida, no cotidiano, na textualidade, e o quanto cada um de ns acabou por se moldar a elas. Jobim tambm discute esquematicamente formas mais tradicionais de publicao (livros, revistas acadmicas, jornais de publicao diria) diante das formas digitais.

    Meu ponto de vista bsico que, se quisermos entender a complexida-

    de das relaes entre o universo dos textos em papel e o dos digitais,

    precisamos nos afastar de duas posies extremas: 1) a que acha que o

    meio digital significa uma inovao radical, permanente e que vai subs-

    tituir e eliminar de vez todos os suportes textuais que o precederam; 2)

    a que acha que devemos nos manter apenas no mbito do papel e das

    formas textuais relacionadas a ele. (JOBIM, 2009, p. 59).

    Em sua exposio acima, Jobim diz que precisamos nos desven-cilhar de julgamentos extremos, radicais, apocalpticos, porque o meio digital no vai eliminar por completo os suportes textuais que o prece-deram. Acrescenta que no devemos ficar alheios a ele [meio digital], numa postura saudosista, inflexvel, e glorificarmos apenas os textos

    fora que ele no pode mais fech-las. Essa tempestade o impele

    irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto

    o amontoado de runas cresce at o cu. Essa tempestade o que

    chamamos progresso. (BENJAMIN, 2010, p. 226).

  • Estudos Literrios IV

    16

    que se encontram em papel. Nunca demais lembrar, como assevera Jobim (2009, p. 61) em seu texto, tecnologias so apenas ferramentas. E o problema no reside na falta de informaes, mas em sua quantidade, de como filtr-las, de saber o que artigo confivel ou no.

    Em outro trecho de seu texto, o professor lana a seguin-te afirmao:

    se uma certa imagem de literatura, vigente no mnimo desde

    o sculo XVIII, a associa forma de livro, no h tambm como

    ignorar que parte do que chamamos de literatura no Ociden-

    te originalmente no tinha a forma de livro (por exemplo, as literaturas

    clssicas grega e latina): o que fica claro, quando comparamos o livro

    s formas anteriores a ele (como o rolo de pele de animais e tambm

    s posteriores (como os arquivos eletrnicos), que o livro tambm

    uma tecnologia. Desde o rolo at o arquivo eletrnico o que temos so

    tcnicas diferentes de processamento de texto, que se transformam em

    causa e/ou consequncia de prticas de leitura e escrita. (JOBIM, 2009,

    p. 62).

    Em 1999, dez anos antes da publicao do texto de Jobim, o pro-fessor da Universidade Carlos III, de Madrid, Antonio Rodrguez de las Heras, proferiu a conferncia El libro digital. Na sua fala, Heras atentou para uma questo interessante: a de que o livro o objeto que melhor representa, em sculos, o humanismo, tornando-se um bem simblico responsvel por apresentar a cultura e o conheci-mento acumulados. Alm disso, o livro sempre residiu em um es-pao concreto, institucionalizado biblioteca, livraria, monastrio, palcio, por exemplo , e era necessrio que o leitor se deslocasse a algum desses pontos para chegar informao. Com a inveno da imprensa e a impresso dos livros em cdice, o leitor passou a carre-gar o livro para onde bem quisesse, mas ainda precisando se deslocar at uma livraria, biblioteca, por exemplo, para ter acesso a ele. No am-biente digital, o leitor no precisa sair de casa, e um livro digital pode ser aberto ao mesmo tempo por diferentes leitores. Em consonncia com essas reflexes, o excerto acima de Jobim nos faz justamente re-fletir, que ns, da rea das Humanas, mais especificamente do curso de Letras, por conta de nosso salutar apego aos livros, acabamos por

    Rgis Debray perguntou-se o que teria acontecido

    se os romanos e gregos ti-vessem sido vegetarianos.

    No teramos nenhum dos livros que a Anti-

    guidade nos legou em pergaminho, isto , numa

    pele de animal curtida e resistente. (CARRIRE,

    2010, p. 104).

    J existem diversas inicia-tivas de digitalizao de

    livros e Bibliotecas Digitais com diferentes forma-

    tos, visite os sites www.literaturabrasileira.ufsc.br e http://aplauso.impren-

    saoficial.com.br/ para comparar as tcnicas de processamento do texto

    que foram utilizadas.

    Figura 10 - Laringafone, 1929, similar ao telefone, a novidade era conversar mantendo a boca fechada, apenas com a vibrao das cordas vocais. Disponvel em: .

  • Captulo 01Para alm do livro

    17

    reconhec-los como os nicos e exclusivos objetos que traduzem uma ideia de literatura pelo fato de eles terem sido prioritariamente o su-porte dos textos. Como bem salienta Jobim, o livro (cdice impresso) uma tcnica de processamento de texto, assim como o pergaminho e o texto digital.

    Segundo o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Alckmar Luiz dos Santos, em Leituras de ns: ciberespao e literatura (2003), a confuso e, acrescentemos, a associao entre texto literrio e livro constante, e isso ocorre porque

    o sucesso dessa base material o livro se explica por ela ter conse-

    guido associar maneabilidade a permanncia. O texto literrio nunca

    saberia permanecer idntico a si prprio, j que sua objetividade no se

    confunde com uma materialidade que na tradio impressa se assenta

    no livro. Assim, se este linear (nem todos os livros, mas aceite-se a

    simplificao em nome da imensa maioria), se o livro ento limitado

    e estvel, o mesmo no pode ser dito do texto, qualquer que seja ele,

    sobretudo o literrio. O que ocorre com a mudana da base material,

    da pgina impressa para o meio eletrnico, que, em certo sentido, o

    livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar pela fluidez, por de-

    terminada imprevisibilidade, pela no-linearidade que foram, sempre,

    as do prprio texto. Aquilo que no texto intertextualidade, no livro

    eletrnico encontra correspondncia na pluralidade de percursos e na

    heterogeneidade de materiais (associaes de matria verbal, imagens,

    sons etc.). (SANTOS, 2003, p. 21-22).

    E, se o livro digital, por suas notveis diferenas, assombra-nos, ou tem nos assombrado quando do seu surgimento, isso tambm acon-teceu com os leitores de outros tempos, acostumados que estavam aos volumes de textos dispostos em rolos.

    Quando comeou a se difundir o cdice, o leitor de volumes enrolados

    resistia ideia de que a leitura se fragmentava ao passar a folha, acostu-

    mado que estava ao suave deslocamento das colunas de texto em rolo.

    Por que continuamos empenhados, uma vez que nos acostumamos a

    ler com essa brusca fratura, a que tambm fratura nossa leitura na tela?

    Por que no podem diluir-se lentamente essas palavras brancas no ne-

    gro da tela, e talvez no todas de uma vez, para que outras novas se en-

    caixem na parte do texto que ficou pendente? Por que no incitar com

    esses recursos a sinestesia a perceber e explorar a profundidade da

    VolumesA palavra volume vem do verbo latino volvere, que significa enrolar.

    HERAS, Antonio

    Rodrguez de las. El

    libro digital. Confe-

    rncia. Disponvel

    em: . Acesso

    em: 15 fev. 2011. [A

    traduo do excerto

    em espanhol para o

    portugus est sob

    nossa responsabili-

    dade].

  • Estudos Literrios IV

    18

    tela? Apareceriam, ento, capacidades expressivas que no so alcan-

    veis sobre o papel, mas que pertencem ao livro digital. O resultado seria

    que surgiria um livro na tela que no a virtual do cdice de papel. J

    no h papel, tampouco pgina.

    Querendo ou no, a histria da leitura, da literatura, dos leitores, est completamente ligada evoluo da tecnologia do livro. E quem apresenta essa ideia a crtica americana Katherine Hayles, em livro re-centemente traduzido para a lngua portuguesa, Literatura eletrnica novos horizontes para o literrio (2009). Afirma Hayles (2009, p. 20),

    Assim como a histria da literatura impressa est profundamente liga-

    da evoluo da tecnologia do livro, que foi sendo construda em um

    crescendo de inovaes tcnicas, a histria da literatura eletrnica se

    entrelaa com a evoluo dos computadores digitais, medida que es-

    tes foram sendo reduzidos em tamanho.

    A ensasta vai tratar de aspectos da literatura que nascida no meio digital, aquela que criada pelo uso de um computador e (geral-mente) lida por uma tela: a literatura eletrnica. Por ser fruto de um com-putador, de combinaes binrias de 0 e 1, a literatura eletrnica produz outros gneros literrios, muitas vezes, caracterizados pelas diferentes formas que o usurio os vivencia, como exemplo: a fico de hipertex-to (geralmente escrita em Storyspace programa de hipertexto criado por Michael Joyce, Jay Davi Bolter e John Smith), e a Fico interativa apresenta elementos de jogo mais acentuados. No entanto, a demarcao entre literatura e jogos de computador no ntida, pois muitos jogos tm componentes de narrativa, ao passo que muitas obras de literatura ele-trnica tm elementos de jogo. Alm disso, no podemos desconsiderar a ideia de que os atuais jogos de video game so grandes narrativas, cujo personagem principal o espectador, o jogador, melhor dizendo, aquele que l, interage e joga; aquele que constri a sua narrativa medida que avana no jogo. Se muitas geraes aprenderam ingls jogando video-game, como negar sua eficincia em matria de leitura, de narrativi-dade? E que oportunidade melhor para brincar de ser Indiana Jones, Darth Vader e at mesmo Dante, que no por intermdio de jogos? Est, sim, instaurado um novo emblema de leitores. A fico interativa apresenta elementos de jogo mais acentuados, e no avana sem a parti-cipao dos usurios. Em pginas adiante, a autora acrescenta:

  • Captulo 01Para alm do livro

    19

    Um jogador de videogames experiente tem uma percepo intuitiva

    de estratgia de jogos que pode faltar a um leitor de livros impressos;

    um leitor de livros impressos sabe como coordenar a subvocalizao

    com percepo consciente em modos que so desconhecidos para um

    jogador de videogames (HAYLES, 2009, p. 145).

    O excerto acima nos faz pensar a respeito das diferentes habilida-des de leitura e de como os leitores acabam se configurando de acor-do com os meios pelos quais realizam a leitura. Questionamos: seria a literatura eletrnica Literatura ou apenas uma continuao experi-mental da literatura impressa? Uma tentativa de resposta seria, talvez, porque experienciamos um deslocamento originrio do eletramento (ULMER apud HAYLES, 2009, p. 37). Ou seja, somos tambm leitores de textos eletrnicos, de hipertextos. Partindo da perspectiva do eletra-mento apresentada por Ulmer, ns nos tornaramos, ento: e-leitores?

    Embora o hiperlink seja considerado um trao distintivo da li-teratura eletrnica, extrapolando a habilidade do leitor de escolher o seu percurso, as notas de rodap, notas finais, referncias, j o vinham fazendo h tempos. Segundo Hayles (2009, p. 29), a pgina, outros-sim, torna-se uma topologia complexa que se transforma rapidamente de uma superfcie estvel para um espao jogvel, no qual o leitor participante ativo. Na verdade, o entendimento de pgina passa a ser o de rolo, mas um rolo que, em geral, se desenrola verticalmente (CHAR-TIER, 2002). E acrescentemos: um rolo que apenas se desenrola, nunca se fecha sobre si mesmo, extravasa possveis fronteiras, limiares, confins, e que, acima de tudo, pode ser infinito. O que so algumas pesquisas no Google seno rolos infinitos de possibilidades? E a cada site visitado, a consolidao visual e virtual de hiper-rolos? De hipertextos?

    HiperlinkAtalho para outro hipertexto.

    O caso de Georges Perec exemplar. O escritor francs imaginou

    sua obra mais importante La Vie Mode dEmploi Romans (1978)

    a partir da convivncia de dois modos de leitura: a convencional

    e a no-sequencial. O leitor pode comear a ler o texto seguindo

    a ordem dos captulos proposta pela organizao material do livro

    ou a partir do sumrio que, alm da marca de ordem convencional,

    produz links entre captulos referentes ao mesmo personagem ou Figura 11 - Capa de uma edio

    do livro A vida: modo de usar.

  • Estudos Literrios IV

    20

    Alckmar Luiz dos Santos (2003, p. 104) afirma que dois elemen-tos centrais do fisionomia prpria ao hipertexto: sua capacidade de produzir significaes: a velocidade de circulao e de desdobramento (vale dizer, de sedimentao) das obras, com base em uma arquitetura de significantes at ento impossvel. Quando se refere velocidade de circulao e de desdobramento, Santos est atentando para o fato de que, muitas vezes, passamos rapidamente (demais) de um texto a outro, bem como para os percursos ilimitados de leitura que podem ser traados na web. Ou seja, em uma leitura, podemos nos desdobrar, nos deslocar para inmeras janelas e, a cada vez que a intentarmos repetir, o percurso poder ser diferente.

    Para pensar melhor sobre essas questes que vimos colocando, sugeri-

    mos o hipertexto de Andr Vallias, Antilogia Laborntica, disponvel em:

    . Acesso em: 23 fev. 2011. Vale

    lembrar que este exemplo foi retirado de Santos (2003) para demons-

    trar que ligaes hipertextuais pr-programadas no do conta de to-

    das as possibilidades de leitura.

    Continuemos pensando essas questes por um outro vis. Segundo Hayles (2009), a literatura no sculo XXI computacional, porque qua-se todos os livros impressos so arquivos digitais antes de se tornarem

    ao mesmo espao do imvel (elevadores, escadas o romance narra

    a vida das personagens no prdio de apartamentos da rua fictcia Si-

    mon-Crubellier em Paris) atravs de uma numerao arbica ao lado

    dos ttulos dos captulos. Assim, sem obedecer sequncia dos cap-

    tulos do livro, o leitor pode seguir apenas a histria de Percival Bar-

    tlebooth (um dos personagens principais do livro) pulando da p-

    gina 148 da edio francesa para a 397, 454, 495 e, finalmente, 574.

    (VENEGEROLES, Roberto; MURAD, Samira; VICENTE, Renato. A teia do conhecimento: modo de usar. Revista USP, n. 80, fev. 2009. . Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2011.)

  • Captulo 01Para alm do livro

    21

    livros. assim que obras so escritas, editadas, compostas e enviadas s mquinas computadorizadas que as transformam em livros, nos formatos em que os conhecemos. Mas, mesmo com esse entendimen-to, Alckmar Luiz dos Santos (2003, p. 61) faz uma ressalva bastante in-teressante, ao dizer, no deve nos surpreender que o novo campo da literariedade eletrnica ainda pague tributo a elementos e perspectivas da tradio impressa. Um exemplo disso pode ser constatado com a pu-blicao em livro de uma novela folhetinesca na internet da escritora ca-rioca Ana Paula Maia. Em 2006, sua novela foi publicada apenas na web e, durante meses, os leitores acompanharam pela tela os 12 captulos de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, que foi impresso (em livro) apenas em 2009, pela Editora Record, com um novo final para possi-velmente seduzi-los/convenc-los [seus ento leitores] a adquirir o livro.

    Outro exemplo pode ser constatado na publicao de 416 mximas, ou posts do Twitter como comumente diriam alguns , do escritor ga-cho Fabrcio Carpinejar em livro intitulado: www.twitter.com/carpinejar (2009). Como se sabe, o Twitter uma rede social na qual o interlocutor, quando da elaborao de mensagens/posts/comentrios, no pode ultra-passar o nmero de 140 caracteres. Por conta disso, os comentrios so extremamente breves. Exemplificamos com dois comentrios recentes, postados em sua pgina do Twitter, em 23 de maro de 2011:

    Figura 12 - Reproduo dos twitts do escritor Fabrcio Carpinejar.

    Carpinejar, observador atento, ressalta em poucas palavras triviali-dades contemporneas e escolheu aquelas que lhe pareceram mais im-portantes para publicar, registrar em cdice impresso. Leia alguns dos posts retirados do livro:

    No casamento, escolhemos um lado da cama para ficar.

    Depois da separao, somos obrigados a sofrer pela cama inteira.

    6:00 PM Aug 13th from web

    (CARPINEJAR, 2009, p. 38).

    Leia trecho do livro em: . Acesso em: 6 mar. 2011.

  • Estudos Literrios IV

    22

    Eu me complico de propsito. A facilidade nunca traz recompensa.

    5:44 PM Aug 13th from web

    (CARPINEJAR, 2009, p. 38).

    Escritor se contenta com pouco. Crtico destaca voz prpria e autor sus-

    pira de alegria, festeja o que j tinha antes de publicar o livro.

    5:30 PM Aug 13th from web

    (CARPINEJAR, 2009, p. 38).

    Sou um mau exemplo dando bons conselhos.

    5:17 PM 13th from web

    (CARPINEJAR, 2009, p. 39).

    No h como no ser sbio na paixo, seno ela no acontece.

    7:07 PM 13th from web

    (CARPINEJAR, 2009, p. 39).

    O escritor j possua seu pblico garantido na rede e, por sua le-gio de fs e seguidores [followers] no Twitter, tinha mais leitores do que qualquer publicao impressa poderia angariar. Mas, a ousadia e a irreverncia de Carpinejar na publicao das mximas [comentrios] foram responsveis por instaurar a migrao de seus posts tpicos e prprios do ambiente virtual para o registro eterno, fixo, material do papel o livro, atingindo, possivelmente, outros leitores, muitos deles provveis desconhecedores de seus comentrios virtuais. Essa passagem ambiente virtual para o impresso tambm pode significar a busca por um status de literariedade, nem que o seja como epgrafe em textos, e uma provvel investida para o no esquecimento, em virtude da efeme-ridade do universo digital, onde tudo pode ser atualizado, remodelado, modificado com um clique do mouse. E, nossa reflexo a respeito do livro de Fabrcio Carpinejar, acrescentamos que nossas prticas de arte realizam-se como produo de possibilidades de produo de materia-lidades (SANTOS, 2003, p. 50).

    A literatura digital, constituda pelas relaes homem-mquina, se-gundo Hayles, ser um componente importante do cnone do sculo XXI.

  • Captulo 01Para alm do livro

    23

    O envolvimento do meio impresso com a mdia contempornea tem

    sido acompanhado pela persistente angstia de parte de autores de li-

    vros impressos de que o romance corre o risco de ser suplantado, com

    leitores sendo afastados dos livros pela televiso, por filmes de grande

    sucesso nas bilheterias, videogames e pelo vasto espao de mdia da

    World Wide Web. (HAYLES, 2009, p. 165).

    Essa afirmao toca novamente na questo da angstia relacionada ao desaparecimento do cdice impresso, e suposto (im)provvel afasta-mento dos leitores dos livros pelo interesse em outras mdias e suportes, como: televiso, filmes, video games, internet. Retomando as palavras do professor Jobim, tecnologias so apenas ferramentas, e por conta de diferentes ferramentas (e tcnicas de toda ordem) que os textos di-gitais possuem determinadas caractersticas, segundo Katherine Hayles (2009, p. 166-167), mencionadas a seguir:

    O texto mediado por computador em camadas (proces-sos de interpretao progressivos produzem o texto que aparece na tela);

    No texto mediado por computador, o armazenamento fica se-parado do desempenho (no impresso, armazenamento e de-sempenho unem-se no mesmo objeto, ou seja, quando um li-vro fechado, ele funciona como um meio de armazenamento. Quando aberto, funciona como um meio de desempenho);

    Os textos mediados por computador manifestam uma tempo-ralidade fragmentada (o leitor no tem pleno controle da ve-locidade com que o texto se torna legvel pode demorar para carregar a pgina a ponto de nunca ser lida).

    O texto eletrnico, segundo Santos (2003, p. 107), por ser o que , oscila sem cessar entre textual e hipertextual, virtual e concreto, leitu-ra e navegao, autor e leitor, linguagem verbal e multimeios, centros de significao e gnese rizomtica, limite e infinitude etc. E, por suas especificidades e caractersticas, como as apresentadas acima, os textos eletrnicos provocam diferentes experincias em ns. Entre as inmeras possveis, Alckmar Luiz dos Santos descreve uma bastante peculiar, que merece ser citada:

  • Estudos Literrios IV

    24

    Por paradoxal que parea, uma experincia importante que podemos

    ter dos textos eletrnicos ocorre justamente quando desligamos o

    computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrs

    eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia,

    um plido reflexo que somente se mostra a partir do monitor desligado.

    Desligada a mquina, o que se v ao fundo, precariamente refletida,

    ento essa nossa imagem diante da tela, trazendo tona e explicitando,

    talvez, o incmodo de uma posio em que nos surpreendemos inqui-

    rindo subjetividades e perturbando identidades. (SANTOS, 2003, p. 24).

    Embora os textos eletrnicos estejam abertos a e sejam passveis de inmeras possibilidades, por seus recursos de programao, visuali-zao, audio, por exemplo, ao se desligar a tela, volta-se justamente origem: a fisionomia de um ser humano que se v refletido no fundo ne-gro da tela emudecida e que duela com suas inquietudes permanentes. O desligamento momentneo do mundo virtual para o real se revela na prpria imagem refletida no espelho provisrio do monitor. Porque no uma nova humanidade que gerada pelo hipertexto, mas uma mesma humanidade que se desdobra continuamente, apoiando-se em instrumentos tecnolgicos sempre diferentes e, s vezes, materialmente mais complexos (SANTOS, 2003, p. 105).

    De fato, os meios eletrnico-digitais fazem com que repensemos o espao/meio em que a leitura, a literatura, oferecida; de onde fala o autor, e como interage com o leitor diante da presena da tecnologia. A noo de autoria tambm parece multiplicar-se no ambiente virtual por inter-mdio de comentrios em blogs, pginas de relacionamento, fruns, redes sociais. Experimentos de criao coletivos e multiformatos esto apare-cendo como uma alternativa de produo, inveno e inovao literria. Como exemplo disso, citamos o concurso To be continued concurso de romance ilustrado em colaborao entre usurios da internet. Tal projeto, iniciado em janeiro de 2011, surgiu com a inteno de criar um livro de qualidade escrito e ilustrado pelos usurios da rede. O primeiro captu-lo, com um final aberto, foi escrito pelo escritor jovem peruano Santiago Roncagliolo. Os demais captulos, que devem dar continuidade histria, esto sendo escritos e ilustrados por diferentes escritores-internautas e ilustradores-internautas. Assim que um novo captulo apresentado para concorrer, instaura-se um frum de discusso pessoal o qual permite que

    Disponvel em .

    Acesso em: 15 fev. 2011.

  • Captulo 01Para alm do livro

    25

    o autor receba comentrios e opinies de outros usurios, leitores hiper-textuais. Segundo Santos (2003, p. 33), o leitor do hipertexto assume a funo de produtor ou organizador de uma espetacularidade, de uma en-cenao, de uma topologizao de significantes e de significaes de que ele no pode deixar de participar.

    No podemos deixar de mencionar, quando pensamos nas relaes entre literatura e tecnologia, os blogs, pretensos dirios virtuais, que se transformaram em importante ferramenta para postar contedos na internet e tornaram-se uma forma de divulgar e produzir literatura e crtica por exemplo. Por se caracterizarem como uma publicao em etapas, instaurarem uma leitura aparentemente fragmentria, os blogs resgatam, a exemplo do projeto To be continued mencionado acima, a proposta dos folhetins do sculo XIX no Brasil, quando os textos eram publicados em captulos nos jornais da poca.

    Os blogs foram, por muito tempo, associados aos dirios pessoais manuscritos por serem tambm um espao para confisses, intimidades, segredos, mas possuem caractersticas que lhes so prprias e, portanto, os diferenciam dos dirios escritos no isolamento meia luz, como o caso de alguns blogs, usados apenas para publicar informaes, textos variados, imagens, vdeos na internet. Embora seja possvel restringir o acesso de determinados contedos, por intermdio de senhas, acesso restrito, texto cifrado, a exemplo dos pequenos cadeados dos dirios, os blogs so uma espcie de dirio aberto, de registro, de manuteno da prpria memria para o mundo. So os acessos e os comentrios dos leitores que lhe do vida e os diferenciam dos dirios ntimos. O blo-gueiro estabelece contato, dilogo, com seus interlocutores, interessados em consumir seus escritos, os quais podem coment-los livremente. E as diferenas no param por a. Segundo Corso e Ozelame (2011, p. 7),

    O prprio blog j uma contradio de escrita ntima, completamente

    exposta ao pblico leitor, ento, trata-se de um gnero transtextual,

    um gnero no propriamente dito que pode se servir de outros gne-

    ros. O que se percebe, em entrevistas feitas com blogueiros, que a

    maioria abomina que seu blog seja classificado como uma espcie de

    dirio virtual, pois ele foge do formato dirio de adolescente no qual

    predominava a caligrafia que muitas vezes deixava perceptvel o esta-

    do de esprito do redator; perdem-se os sentidos como o tato, a viso

    Inmeros romances de Machado de Assis, por exemplo, foram escritos em folhetim. Os leitores da poca, assim como os te-lespectadores de novelas e seriados, aguardavam ansiosamente a publica-o do prximo captulo.

  • Estudos Literrios IV

    26

    e o cheiro; o chiclete no pode mais ser colado na folha de papel; a

    flor recebida por um admirador secreto no pode ser inserida no meio

    das folhas para que seque com o tempo e impregne nas pginas seu

    aroma velho e sua textura spera; as cores do papel ou, at mesmo,

    as diferentes cores de caneta esferogrfica, giz pastel, giz de cera e

    lpis de cor no se veem mais. Aspectos que foram escritos no p da

    pgina, palavras rasuradas, riscadas e algumas at cortadas pela fora

    aplicada caneta no momento em que o diarista gostaria de apagar

    de sua lembrana (dirio) o que aconteceu. Perdem-se, tambm, as

    folhas perfumadas, o carto-postal recebido com atraso, fotos inteiras

    e recortadas. A prpria capa do dirio no existe mais. s vezes, uma

    capa glamorosa, com o nome do diarista escrito em alto relevo por

    letras feitas em forminhas de gesso. O dirio grosso, de vrias pginas,

    aquele que precisava na metade do seu percurso anual ser amarrado,

    ou por um elstico, ou quem sabe uma fitinha mimosa, agora no pos-

    sui mais esses adereos, nem esse formato.

    Caderno Goiabada

    A mame, a minha me mesmo, tinha um livro, um dirio, onde ela

    escrevia os seus pensamentos e um dia ela disse: Sabe filha, voc

    sabe que no bonito uma mulher casada..., olha minha me hein!,

    parece que eu estou falando exatamente. No bonito uma mulher

    casada comear escrever coisas, pensamentos, devaneios, porque

    eu me lembro que o papai dizia que mulher casada quando comea

    a escrever essas coisas s pode ser bandalheira, essa palavra ban-

    dalheira uma expresso bastante antiga, mas muito boa na poca.

    Fala da escritora Lygia Fagundes Telles em entrevista ao programa Roda Viva, 1996. Disponvel em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/101/entrevistados/lygia_fagun-des_telles_1996.htm

    Esses detalhes e adereos, ainda nos levam a mais uma reflexo: atualmente, muitos homens (e a a faixa etria pode variar) possuem blogs, mas, certamente, no os teriam se o canal no fosse a internet. O dirio manuscrito carregou historicamente essa carga feminina, que est bem marcada no discurso acima pelas flores, fita, nome em for-minhas de gesso, tantos outros aspectos que apelam para a visualidade,

    CORSO, Gizelle Ka-

    minski; OZELAME, Jo-

    siele Kaminski Corso.

    Dirios intimamente

    pblicos: os blogs.

    In: Revista Contexto.

    Revista do Curso de

    Ps-Graduao em

    Letras. UFES, n. 20,

    2011.

  • Captulo 01Para alm do livro

    27

    e passou a ser um companheiro-confidente importante na fase/passa-gem de menina para mulher.

    O conceito de dirio, cujas declaraes e confisses eram geral-mente precedidas pelo querido dirio, modificou-se ou, pensando na sua prtica atualmente, ousaramos dizer: desapareceu. Adolescentes, jovens e adultos, por exemplo, que possuem blogs e neles escrevem, inscrevem e registram, de uma maneira ou de outra, sua marca, no reconhecem e no veem os blogs como dirios virtuais. Os blogs so, sim, um espao para suas falas, opinies, inquietaes, preferncias e, at mesmo, alteridades. E, pensando no mbito literrio, podem ser um espao de/para leitura, escritura, divulgao, mas, tambm, de avalia-o, questionamento, crtica; basta clicar no boto publish e l estar o comentrio, o artigo, a histria, a impresso, a figura, o texto, emancipa-dos para o mundo. Os blogs se transformaram em uma ferramenta de transtextualidades; de textualidades contemporneas. Um espao para textos e pretextos. Os blogs tornaram-se uma oportunidade para discu-tir literatura, para escrever literatura, para se lanar escritor sem impe-dimentos; indo e vindo de acordo com o gosto do pblico, geralmente confirmado pelo nmero de acessos, pela quantidade de comentrios.

    Assim, com este captulo, pretendemos demonstrar as relaes que a literatura estabelece com a(s) tecnologia(s), via exemplos lanados ao longo de todo texto, mas, acima de tudo, lanar o olhar do leitor para a existncia de uma literatura sem papel, de uma literatura que, segundo Hayles (2009), constituda primeiramente por arquivos digitais antes de se tornar livro, e que, portanto, j vem se fazendo eletrnica, digital, h bastante tempo sem o saber.

    Batendo papo

    1) O que literatura digital, literatu-ra eletrnica, significa para voc? E qual , ou tem sido, a sua relao com ela? Responda a pergunta dialogando com a afirmao de Katherine Hayles (2009, p. 20): Tentar ver a literatura

    Nesta oportunidade, exemplificamos com dois endereos de blogs de duas bibliotecas: o da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, dispon-vel em: < http://blog.cervantesvirtual.com/ >, e o da Biblioteca Barca dos Livros, disponvel em: .

  • Estudos Literrios IV

    28

    eletrnica apenas atravs da lente da obra impressa , de forma significativa, no v-la.

    2) Comente criticamente a seguinte afirmao de Antonio Rodr-guez de las Heras (1999):

    O homem veio sonhando com o livro-mundo, com este livro no qual se

    poderia conter tudo, neste livro nico que poderia guardar todo o saber.

    um sonho cultural que se manifestou em inmeros autores. Flaubert,

    por exemplo, intentou, nos seus ltimos dez anos, um romance enciclo-

    pdico Bouvard et Pcuchet que recorria a todos os saberes. Goethe

    projetou um romance sobre o universo e Novalis um livro absoluto. El li-

    bro de arena , na descrio de Borges, um livro com infinitas pginas no

    qual nenhuma a primeira e nenhuma a ltima. []. Uma aspirao

    que sobre o suporte material do papel no se pode alcanar. Em todo o

    caso, aproximamo-nos de sua expresso plstica como o faz o escultor

    argentino Vanarsky em sua escultura mvel, o Libro-mundo. Porm, re-

    almente, isto no possvel com os materiais que temos neste lado do

    espelho, neste lado da tela.

    3) Leia atentamente a seguinte afirmao:

    Quando a literatura salta de um meio para outro da oralidade para

    a escrita, do cdex manuscrito ao livro impresso mecanicamente, e

    textualidade eletrnica ela no deixa para trs o conhecimento acu-

    mulado e inscrito em gneros, convenes poticas, estruturas narrati-

    vas, tropos figurativos, e assim sucessivamente. Em vez disso, esse co-

    nhecimento levado adiante para o novo meio tipicamente por uma

    tentativa de reproduzir os efeitos do meio anterior de acordo com as

    especificidades do novo meio (HAYLES, 2009, p. 74).

    No decorrer deste tpico e, relembrando a poesia visual, voc pde observar algumas relaes que a literatura estabelece com a(s) tecnologia(s). Entre os exemplos mencionados, que outros poderiam ser acrescentados? Cite um exemplo de como a literatura foi levada para um novo meio por uma tentativa de reproduo dos efeitos do meio anterior. Para responder a essa questo, tenha em mente o exemplo dos blogs, pretensos dirios virtuais e de outras escritas na web.

  • Captulo 01Para alm do livro

    29

    Leia mais!

    Fornecemos aqui algumas indicaes de leitura para que voc possa se aprofundar no assunto.

    HERAS, Antonio Rodrguez de las. El libro digital. Conferncia. Dis-ponvel em: . Acesso em: 15 fev. 2011.

    JOBIM, Jos Lus. O texto no meio digital. In: Remate de Males. Campi-nas, SP: UNICAMP, 2009, p. 59-69. Disponvel em Acesso em: 12 jan. 2011.

    LVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed So Paulo, SP: Ed. 34, 2000.

    ______. O que o virtual? So Paulo, SP: Editora 34, 1996.

    NEITZEL, Adair de Aguiar; SANTOS, Alckmar Luiz dos (Orgs.). Ca-minhos cruzados: literatura e informtica. Florianpolis: Ed. da UFSC, 2005.

    SANTOS, Alckmar Luiz dos. Leituras de ns: ciberespao e literatura. So Paulo: Ita Cultural, 2003. (Rumos Ita Cultural Transmdia).

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    31

    As imagens e a literatura ou Estudos literrios/visualidade

    O barroco prolixo com todos os seus tiques e o reto, to correto, direto ao que insiste, so linguagens que raramente coexistem:

    s os vi na Capela Dourada do Recife.

    Joo Cabral de Melo Neto. In: Museu de tudo.

    Muito poderamos discorrer sobre as interligaes entre Literatura e Artes Visuais. Faremos aqui, no entanto, um recorte, procurando ver questes relativas ao entrelaamento palavra e imagem, mais especifica-mente, palavra e ilustrao, palavra e pintura, como um roteiro de leitu-ra que voc poder aprofundar e ampliar. primeira vista, poder pare-cer complexo o que aqui vamos apresentar, mas voc vai ver como, aos poucos, vai entender e assimilar noes importantes para compreender de que maneira literatura e visualidades comearam a se relacionar.

    Comecemos com as consideraes sobre as primeiras palavras e imagens.

    Na formao da linguagem por meio de signos, escrita e desenho tm uma origem em comum, medida que eram expressos para repre-sentar uma mensagem. No estudo das civilizaes mais antigas, vemos logogramas representando pa-lavras em desenhos esquemticos. Um logograma um smbolo ou um grafema nico que representa um conceito abstrato da realidade ou um conceito concreto; como seu desdobramento, temos o ideo-grama, um conceito representado por um smbolo grfico, e um pictograma, um conceito diretamen-te representado por uma ilustrao.

    Os logogramas formam a base dos sistemas de escritas mais antigos da humanidade de que temos notcia, como: a escrita cuneiforme, os

    2

    Figura 13 - Escrita Maia.

  • Estudos Literrios IV

    32

    hierglifos e os glifos maias. A escrita cuneiforme tem este nome por ser feita com objetos em forma de cunha sobre tabuletas de argila, e foi desenvolvida pelos sumrios; junto com os hierglifos egpcios foram utilizadas cerca de 3.500 anos a.C. Atravs de pictogramas, representa-vam formas do mundo, tornando-se cada vez mais estilizadas; inicial-mente feitas em sequncias verticais, passaram depois a ser desenvolvi-das em sequncias horizontais. Durante aproximadamente 3 mil anos, a escrita cuneiforme foi amplamente utilizada na Mesopotmia.

    Os glifos maias so o nico sistema de escrita mesoamericano at hoje decifrado as formas mais antigas datam do sculo III a. C. , e foi utilizada [a escrita] at pouco tempo depois da chegada dos espanhis no sculo XVI. Era gravada de diversas maneiras, seja em estuque, em peas de cermica, em cdices de papel, em madeira ou em pedra, con-sistindo em glifos laboriosamente cunhados e s vezes pintados. Seu papel era feito de folhas de figo misturadas com algodo e outros ele-mentos, mas a maioria dos cdices que resistiram at o nosso tempo so de cermica, uma vez que, na violncia da queima das cidades, a ar-gila endureceu com o fogo, tornando-se mais resistente. A escrita maia era feita em dois blocos desenhados, de cima para baixo, da esquerda para a direita, como se v nestas imagens.

    Por serem fundamentalmente logogrficos, os glifos maias repre-sentavam palavras ou slabas. Havia tambm um tipo de ttulo real que era o glifo-emblema, apresentando-se como um smbolo desenhado de forma elaborada representando a ilustrao da realeza; as cidades mais importantes tinham seu prprio glifo-emblema.

    A escrita dos sumrios e dos egpcios foi chamada de figurativa justamente por se utilizar amplamente de pictogramas. Diz-se que a palavra formada por um rbus, quando um desenho usado para re-presentar um som, uma slaba ou um fonograma, sendo lidos ao mes-mo tempo imagem e texto. O primeiro passo para a formao do siste-ma de escrita chamado de ideograma foi a associao de pictogramas, amplamente utilizado tanto no Egito, quanto na China.

    Qual a razo de estabelecermos essas informaes culturais apa-rentemente to tcnicas e to histricas? Para que chegssemos exata-mente ideia do pictrico, que comeou com os logogramas repre-

    EstuqueArgamassa feita

    geralmente com p de mrmore, cal fina,

    gesso e areia.

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    33

    sentando palavras em desenhos esquemticos, e da relao que hoje podemos estabelecer entre literatura e artes plsticas.

    Veja este quadro.

    Figura 14 - Primeira Missa. Victor Meirelles. 1861.

    O que voc percebe que as artes plsticas ocupam fisicamente um lugar no espao e so captadas pelo olhar. A literatura, por sua vez, pre-cisa muito mais das imagens retidas pela memria. Para ilustrar ainda melhor essa relao nas experincias do olhar, escolhemos, no contexto das literaturas de expresso portuguesa, um poema de Olavo Bilac, cha-mado Profisso de F, um exerccio de metalinguagem em que compara o ofcio do poeta com o ofcio do escultor e uma passagem de O Guara-ni, em que Jos de Alencar descreve o cenrio pela mincia dos detalhes e pelo descritivismo pictrico.

    No quero o Zeus Capitolino

    Hercleo e belo,

    Talhar no mrmore divino

    Com o camartelo.

    Que outro - no eu! - a pedra corte

    Para, brutal,

    Erguer de Atene o altivo porte

    Descomunal.

    Mais que esse vulto extraordinrio,

    Que assombra a vista,

    Seduz-me um leve relicrio

    De fino artista.

    Invejo o ourives quando escrevo:

    Imito o amor

    Com que ele, em ouro, o alto relevo

    Faz de uma flor.

    Imito-o. E, pois, nem de Carrara

    A pedra firo:

    O alvo cristal, a pedra rara,

    O nix prefiro.

  • Estudos Literrios IV

    34

    Por isso, corre, por servir-me,

    Sobre o papel

    A pena, como em prata firme

    Corre o cinzel.

    Corre; desenha, enfeita a imagem,

    A ideia veste:

    Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

    Azul-celeste.

    Torce, aprimora, alteia, lima

    A frase; e, enfim,

    No verso de ouro engasta a rima,

    Como um rubim.

    Quero que a estrofe cristalina,

    Dobrada ao jeito

    Do ourives, saia da oficina

    Sem um defeito:

    E que o lavor do verso, acaso,

    Por to subtil,

    Possa o lavor lembrar de um vaso

    De Becerril.

    E horas sem conto passo, mudo,

    O olhar atento,

    A trabalhar, longe de tudo

    O pensamento.

    Porque o escrever - tanta percia,

    Tanta requer,

    Que oficio tal... nem h notcia

    De outro qualquer.

    Assim procedo. Minha pena

    Segue esta norma,

    Por te servir, Deusa serena,

    Serena Forma!

    Deusa! A onda vil, que se avoluma

    De um torvo mar,

    Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma

    Deixa-a rolar!

    Blasfemo em grita surda e horrendo

    mpeto, o bando

    Venha dos brbaros crescendo,

    Vociferando...

    Deixa-o: que venha e uivando passe

    - Bando feroz!

    No se te mude a cor da face

    E o tom da voz!

    Olha-os somente, armada e pronta,

    Radiante e bela:

    E, ao brao o escudo a raiva afronta

    Dessa procela!

    Este que frente vem, e o todo

    Possui minaz

    De um vndalo ou de um visigodo,

    Cruel e audaz;

    Este, que, de entre os mais, o vulto

    Ferrenho alteia,

    E, em jato, expele o amargo insulto

    Que te enlameia:

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    35

    em vo que as foras cansa, e luta

    Se atira; em vo

    Que brande no ar a maa bruta

    A bruta mo.

    No morrers, Deusa sublime!

    Do trono egrgio

    Assistirs intacta ao crime

    Do sacrilgio.

    E, se morreres por ventura,

    Possa eu morrer

    Contigo, e a mesma noite escura

    Nos envolver!

    Ah! ver por terra, profanada,

    A ara partida

    E a Arte imortal aos ps calcada,

    Prostituda!...

    Ver derribar do eterno slio

    O Belo, e o som

    Ouvir da queda do Acroplio,

    Do Partenon!...

    Sem sacerdote, a Crena morta

    Sentir, e o susto

    Ver, e o extermnio, entrando a porta

    Do templo augusto!...

    Ver esta lngua, que cultivo,

    Sem ouropis,

    Mirrada ao hlito nocivo

    Dos infiis!...

    No! Morra tudo que me caro,

    Fique eu sozinho!

    Que no encontre um s amparo

    Em meu caminho!

    Que a minha dor nem a um amigo

    Inspire d...

    Mas, ah! que eu fique s contigo,

    Contigo s!

    Vive! que eu viverei servindo

    Teu culto, e, obscuro,

    Tuas custdias esculpindo

    No ouro mais puro.

    Celebrarei o teu oficio

    No altar: porm,

    Se inda pequeno o sacrifcio,

    Morra eu tambm!

    Caia eu tambm, sem esperana,

    Porm tranquilo,

    Inda, ao cair, vibrando a lana,

    Em prol do Estilo!

  • Estudos Literrios IV

    36

    Leia, agora, o trecho de O Guarani, de Jos de Alencar, e obser-ve como o romancista elabora por intermdio das descries, mincias e detalhes, uma verdadeira obra-de-arte; uma tela somente arquivada pela memria da leitura.

    I CENRIO

    De um dos cabeos da Serra dos rgos desliza um fio de gua que se

    dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu

    curso de dez lguas, torna-se rio caudal.

    o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como

    uma serpente, vai depois se espreguiar na vrzea e embeber no Para-

    ba, que rola majestosamente em seu vasto leito.

    Dir-se-ia que, vassalo e tributrio desse rei das guas, o pequeno rio, alti-

    vo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos ps do

    suserano. Perde ento a beleza selvtica; suas ondas so calmas e serenas

    como as de um lago, e no se revoltam contra os barcos e as canoas que

    resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o ltego do senhor.

    No neste lugar que ele deve ser visto; sim trs ou quatro lguas

    acima de sua foz, onde livre ainda, como o filho indmito desta

    ptria da liberdade.

    A, o Paquequer lana-se rpido sobre o seu leito, e atravessa as flores-

    tas como o tapir, espumando, deixando o plo esparso pelas pontas

    do rochedo, e enchendo a solido com o estampido de sua carreira.

    De repente, falta-lhe o espao, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um

    momento para concentrar as suas foras, e precipita-se de um s arre-

    messo, como o tigre sobre a presa.

    Depois, fatigado do esforo supremo, se estende sobre a terra, e ador-

    mece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como

    em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

    A vegetao nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vi-

    gor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que

    corria no meio das arcarias de verdura e dos capitis formados pelos

    leques das palmeiras.

    Tudo era grande e pomposo no cenrio que a natureza, sublime artista,

    tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o

    homem e apenas um simples comparsa.

    Disponvel em: www.literaturabrasileira.ufsc.br.

    Acesso em: 01 abr. 2011

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    37

    No ano da graa de 1604, o lagar que acabamos de descrever estava de-

    serto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos

    de meio sculo, e a civilizao no tivera tempo de penetrar o interior.

    Entretanto, via-se margem direita do rio uma casa larga e espaosa,

    construda sobre uma eminncia, e protegida de todos os lados por

    uma muralha de rocha cortada a pique.

    A esplanada, sobre que estava assentado o edifcio, formava um semi-

    crculo irregular que teria quando muito cinquenta braas quadradas;

    do lado do norte havia uma espcie de escada de lajedo feita metade

    pela natureza e metade pela arte.

    Descendo dois ou trs dos largos degraus de pedra da escada, encontra-

    va-se uma ponte de madeira solidamente construda sobre uma fenda

    larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-

    se beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas

    grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.

    A, ainda a indstria do homem tinha aproveitado habilmente a nature-

    za para criar meios de segurana e defesa.

    De um e outro lado da escada seguiam dois renques de rvores, que,

    alargando gradualmente, iam fechar como dois braos o seio do rio;

    entre o tronco dessas rvores, uma alta cerca de espinheiros tornava

    aquele pequeno vale impenetrvel.

    A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda

    apresentam as nossas primitivas habitaes; tinha cinco janelas de fren-

    te, baixas, largas, quase quadradas.

    Do lado direito estava a porta principal do edifcio, que dava sobre um

    ptio cercado por uma estacada, coberta de meles agrestes. Do lado

    esquerdo estendia-se at borda da esplanada uma asa do edifcio, que

    abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.

    No ngulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que

    chamaremos jardim, e de fato era uma imitao graciosa de toda a natu-

    reza rica, vigorosa e esplndida, que a vista abraava do alto do rochedo.

    Flores agrestes das nossas matas, pequenas rvores copadas, um esten-

    dal de relvas, um fio de gua, fingindo um rio e formando uma pequena

    cascata, tudo isto a mo do homem tinha criado no pequeno espao

    com uma arte e graa admirvel.

  • Estudos Literrios IV

    38

    primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braas, don-

    de se precipitava um arroio da largura de um copo de gua, e o monte

    de grama, que tinha quando muito o tamanho de um div, parecia

    que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho

    uma miniatura.

    O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitao por uma

    cerca, era tomado por dois grandes armazns ou senzalas, que serviam

    de morada a aventureiros e acostados.

    Finalmente, na extrema do pequeno jardim, beira do precipcio,

    via-se uma cabana de sap, cujos esteios eram duas palmeiras que

    haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam

    at o cho; um ligeiro sulco privava as guas da chuva de entrar nesta

    habitao selvagem.

    Agora que temos descrito o aspecto da localidade, onde se deve passar a

    maior parte dos acontecimentos desta histria, podemos abrir a pesada

    porta de jacarand, que serve de entrada, e penetrar no interior do edifcio.

    A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respi-

    rava um certo luxo que parecia impossvel existir nessa poca em um

    deserto, como era ento aquele sitio.

    As paredes e o teto eram calados, mas cingidos por um largo floro de

    pintura a fresco; nos espaos das janelas pendiam dois retratos que re-

    presentavam um fidalgo velho e uma dama tambm idosa.

    Sobre a porta do centro desenhava-se um braso de armas em campo

    de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata so-

    bre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de

    vermelho, via-se um elmo tambm de prata, paquife de ouro e de azul, e

    por timbre um meio leo de azul com uma vieira de ouro sobre a cabea.

    Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mes-

    mo braso, ocultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um

    oratrio. Defronte, entre as duas janelas do meio, havia um pequeno

    dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis.

    Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarand de ps tor-

    neados, uma lmpada de prata suspensa ao teto, constituam a moblia

    da sala, que respirava um ar severo e triste.

    Os aposentos interiores eram do mesmo gosto, menos as decoraes

    herldicas; na asa do edifcio, porm, esse aspecto mudava de repente, e

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    39

    era substitudo por um quer que seja de caprichoso e delicado que

    revelava a presena de uma mulher.

    Com efeito, nada mais louo do que essa alcova, em que os bro-

    catis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves,

    enlaadas em grinaldas e festes pela orla do teto e pela cpula

    do cortinado de um leito colocado sobre um tapete de peles de

    animais selvagens.

    A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos ps

    do qual havia um escabelo de madeira dourada.

    Pouco distante, sobre uma cmoda, via-se uma dessas guitarras

    espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de

    Portugal, e uma coleo de curiosidades minerais de cores mimosas e

    formas esquisitas.

    Junto janela, havia um traste que primeira vista no se podia definir;

    era uma espcie de leito ou sof de palha matizada de vrias cores e

    entremeada de penas negras e escarlates.

    Assim, aos leitores do sculo XIX, as imagens de um cenrio, fun-damentais para a locao dos episdios, bem como as caractersticas dos personagens de O Guarani romance que tomamos como exemplo , ficavam reservadas descrio pictrica do autor. E as imagens eram desenhadas e elaboradas na mente do leitor atravs das palavras, dos artifcios e das artimanhas descritivas dos escritores. Outros exemplos, ainda, poderiam ser dados, e a lista certamente seria imensa. Voltamos, porm, a buscar entender essa outra linguagem que dialoga com o texto literrio, com a sua expresso grfica.

    Vamos continuar nosso entendimento desta linguagem to pr-xima da literatura. Os elementos mnimos constitutivos da linguagem grfica so o ponto, a linha e a cor no plano, formando uma escrita que tambm imagtica, ou seja, o aspecto visual da linguagem verbal. A ca-ligrafia, escrita a mo, formada pelos desdobramentos da linha no es-pao e o primeiro passo para a formao do livro. No Ocidente, a letra tipogrfica, ou seja, marcada pela impresso de caracteres na inveno da imprensa, ter maior importncia que seu aspecto ldico e visual, di-ferentemente da caligrafia chinesa e japonesa, em que os caracteres so apreciados tambm pela sua qualidade de desenho. Pode-se dizer que a caligrafia uma arte da linha.

    Figura 15 - Foto de uma ourivesaria.

  • Estudos Literrios IV

    40

    Nos manuscritos medievais, letras iniciais de algumas partes impor-tantes do texto eram desenhadas e apresentavam tamanho bem maior que as outras, procurando chamar a ateno do leitor. So ento chama-das de letras capitulares e podiam ter forma ornamental ou figurativa, conhecidas tambm, em seu aspecto visual, como iluminuras na medida em que passavam a haver no texto tambm ilustraes que facilitavam a leitura. Devemos fazer uma ressalva a, pois nem tudo transcorria com igual paralelismo entre as artes visuais e o texto. Muitas vezes, quando as imagens das iluminuras eram figurativas, elas continham figuras que nada tinham a ver com o texto, numa verdadeira anttese. Eram utiliza-das imagens de diferentes animais e tambm a figura humana.

    O historiador da arte, Arnold Hauser, ao comentar a Histria Social da Arte e da Literatura, menciona os diferentes estilos e influncias das iluminuras. Diz ele que as iluminuras eram uma arte refinada praticada por monges instrudos e adotadas para um pblico igualmente instru-do. Receberam, no entanto, em diversos lugares, a influncia do estilo campons. Assim, por exemplo, os monges irlandeses absorveram o estilo dos camponeses germnicos, nas migraes, com suas formas geomtricas. possvel ento observar, ainda segundo este historiador, que formas de plantas, animais e formas humanas fossem convertidas em pura caligrafia (HAUSER, 1998, p. 146), perdendo seus traos de substncia corporal e orgnica. A arte da iluminura mais conhecida, no entanto, era veiculada pelos manuscritos iluminados romanos ou bizantinos. A aproximao nas iluminuras de formas da natureza pode ser vista tambm na poesia da poca, em sua descrio da natureza, estabelecendo um jogo s vezes discrepante com a geometrizao das formas tidas como naturais.

    Ainda, aps a impresso tipogrfica dos livros, deixava-se um espa-o em branco para que as letras capitulares fossem posteriormente de-senhadas e pintadas, tamanha sua importncia, chegando, essas letras, a adquirir tramas complexas de arabescos com curvas em todas as dire-es, como na caligrafia barroca na Alemanha, nos sculos XVII e XVIII.

    Podemos ainda dizer que as palavras, de uma forma ou de outra, sempre apareceram na pintura ocidental, seja nas pinturas religiosas, res-saltando alguma passagem de algum santo, seja informando o nome do

    Figura 16 - Letra capitular e iluminuras.

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    41

    artista ou at mesmo do modelo, e isso se tornou comum depois do Renas-cimento. Na cultura popular, por exemplo, vemos muitas palavras escritas nas pinturas dos ex votos, que eram pinturas feitas em agradecimento por alguma graa alcanada, geralmente a cura de algum mal fsico.

    Deixando, no entanto, seu carter informativo e passando a com-por imagens plsticas, as palavras se proliferaram e ganharam destaque na expresso pictrica a partir do incio do sculo XX. Na revoluo cubista, por exemplo, Pablo Picasso e Georges Braque fundaram uma nova pintura, que inclua tambm recortes de jornal colados, em mea-dos de 1907 a 1914. As pinturas cubistas podiam ter tambm palavras e pedaos de palavras pintados. O historiador da arte Giulio Carlo Argan (1992, p. 430), ao comentar a Arte Moderna, ressalta que as letras do alfabeto que aparecem nas pinturas cubistas, aparentemente no guar-dam nenhuma relao com os objetos ali representados e so apenas tipos formais que indicam que letras e objetos da realidade so signos que s significam algo na medida em que so combinados entre si. Diz Argan que Picasso aproveitava as linhas retas e curvas das letras apon-tando que o princpio da significao verbal e visual o mesmo. Inse-rindo letras alfabticas de conhecimento amplo, ele abria chaves de leitura do quadro. J Braque, ao decompor os planos, contras-tava objetos como uva e ma, com a imagem plana das letras, indicando um plano-limite e reduzindo os objetos a smbolos grficos. A leitura ento se dava no por volumes, mas por pla-nos cromticos. John Golding (apud STANGOS, 2000, p. 54-55) ressalta que Braque, em 1911, pela primeira vez, fez aparecer, no quadro, letras pintadas a estncil, caracterstica esta que logo foi adotada por muitos e distinguiu a pintura cubista. Mais tarde, alm das letras pintadas e dos jornais colados, toda sorte de pa-pis tipogrficos foram utilizados, como exemplo, um mao de cigarros. A proposta cubista era a de fazer um tableau-object (quadro-objeto), onde a pintura no refletia ou imitava o mundo externo, mas recriava-o de outra maneira, competindo com a realidade da natureza. Observe como isso acontece neste quadro, de Pablo Picasso.

    Para o dadasmo as palavras foram muito importantes, no ape-nas porque pintores e poetas conviviam juntos e editavam revistas

    Ex votosDo latim, significa: por fora de uma promes-sa, de um voto ou o voto realizado.

    Figura 17 - Mulher com livros. Pablo Picasso. 1932.

  • Estudos Literrios IV

    42

    propagando suas ideias, mas porque, nas telas, essas palavras adqui-riam uma revoluo de sentido. Comeando em 1916, quando Hugo Ball, poeta e filsofo alemo, fundou o Cabar Voltaire, em Zurique, esse movimento artstico foi marcado pela contestao de qualquer espcie de tradio que o mundo em guerra colocava em questionamento. Os poemas dadastas podiam ser elaborados recortando-se frases de um jornal que, metidas num saco e agitadas, seriam retiradas ao acaso, for-mando a expresso artstica este procedimento ser utilizado tambm

    depois pelos surrealistas. Agressivos, os dadastas eram mestres em produzir obras transitrias e encenadas em demonstraes pblicas, aproximando-se do teatro e do que depois seria cha-mado de performance. Estes artistas questionavam at mesmo a existncia da arte e da figura do artista, indo contra qualquer ideia burguesa de mercadoria e apregoando que poesia e pintura podiam ser produzidas por qualquer um. Suas atitudes s vezes mobilizavam at mesmo a polcia, sob a acusao de fraude.

    Em sua forma plstica, produziam objetos destitudos de qualquer funo, uma inovao para a poca e que repercute at os nossos dias. o caso do urinol que Marcel Duchamp chamou de Fonte, inscrevendo-a na Exposio dos Independentes, em Nova York, sob o pseudnimo de R. Mutt.

    Hoje essa imagem extremamente difundida nos livros de arte, mas, na poca, causou escndalo ao jri, que a recusou. Dawn Ades (apud STANGOS, 2000, p. 97-187) menciona alguns exemplos pictri-cos dadastas, como o caso do quadro apresentado por Francis Picabia na primeira matine dad, realizada em janeiro de 1921, em Paris. Nele vemos a importncia das palavras, uma vez que consistia em uma tela com traos pretos e algumas inscries onde se lia haut (topo), escrita na parte inferior da tela, e bas (base), escrita na parte superior da tela. Havia tambm a palavra frgil e, com letras vermelhas imensas, na base da tela, lia-se L.H.O.O.Q. (Elle a chaud ao cul), inscrio esta que tem um jogo de sonoridade na lngua francesa, significando ela tem fogo no rabo. Causando polmica, outra obra de Picabia mostrava a ati-tude dadasta perante a arte: trata-se de LOeil Cacodylate, que questiona o valor de uma pintura que se baseia na assinatura do artista.

    Figura 18 - Fonte. Marcel Duchamp. 1917.

  • Captulo 02As imagens e a literatura

    43

    Figura 19 - LOeil Cacodylate. Francis Picabia. 1921.

    Figura 20 - In the car. Roy Lichtenstein. 1963.

    Nessa tela, Picabia convidou vrias pessoas, das letras e das artes, a assinarem seu nome, de forma que a tela toda fosse co-berta consistindo somente nisso, como se v na imagem.

    E a arte pop? A arte pop assim caracterizada por veicular plasticamente o cotidiano marcado pela indstria de consumo de massa. Surgindo em meados dos anos 50, floresceu rapidamen-te nos EUA e Inglaterra, espalhando-se mundialmente. Edward Lucie-Smith escreveu um interessante artigo, intitulado Concei-tos da Arte moderna: com 123 ilustraes (apud STANGOS, 2000) em 1966, ressaltando as caractersticas com que a arte pop se di-fundia, ao copiar procedimentos dadastas, porm sem o acento contestatrio. A Fonte, de Duchamp, passou ento a ser apreciada por suas qualidades estticas, assim como qualquer objeto pro-duzido pela indstria. Observando de perto, vemos que cada ar-tista adquire um modo de expresso prprio, preferindo determinadas imagens ou palavras. Andy Warhol, por exemplo, queria eliminar total-mente a ideia de arte manual. Transferia imagens fotogrficas para as telas, como as de Marilyn Monroe ou a lata de sopas Campbell, com o le-treiro de seu rtulo estampado plasticamente como composio. Roy Li-chtenstein outro artista pop que se tornou precursor de uma expresso depois muito difundida, porm fazendo suas reprodues mo, uma a uma, como salienta Argan, historiador da arte, anteriormente citado. Lichtenstein ampliava histrias em quadrinhos fazendo imensas telas com imagens e textos (veja sua tela ao lado). Para Smith, ele expressava todo um debate existente na poca com anlises profundas de velhos livros de histrias em quadrinhos, de westerns e de revistas baratas de fico cientfica.

    No Brasil, Cludio Tozzi recebeu influncia direta de Li-chtenstein, ampliando tambm quadrinhos, como se v na tela intitulada A guerra acabou, de 1968, quadro destacado por Ro-berto Pontual ao comentar a coleo Gilberto Chateaubriand de Arte Brasileira Contempornea. Com suas diferentes preocupa-es estilsticas, os artistas pop abordavam a tarefa de criar cons-cincia sobre os significados da existncia contempornea. As-sim, uma mquina de cortar grama, um chuveiro, uma bacia, um hambrguer, uma vassoura, um edredom e um travesseiro etc.,

  • Estudos Literrios IV

    44

    contra um fundo de texturas pictricas, podiam compor a cena do deleite esttico. Conforme salientou o Prof. Dr. Dcio Torres da Cruz, da UFBA, em palestra na UFSC, em abril de 2010, o movimento pop teve tambm vertentes de contestao poltica, principalmente se pensarmos o perodo em que se propagou, entre ditaduras na Amrica Latina. O pop fazia manifestaes antiblicas, propunha ideias contrrias arte acadmica e lan-ava uma espcie de esttica do lixo, em oposio aos modelos

    apresentados por aqueles que controlam a sociedade de consumo. As colagens, tanto no sentido de tcnica plstica quanto no sentido lite-rrio, e at mesmo musical, so uma forma de expresso caracterstica da arte pop. O pop floresceu ao mesmo tempo em que se difundiram as ideias de ps-modernismo, questo esta que pode ser aprofundada tanto na rea da literatura quanto nas artes visuais.

    Por ltimo, vamos retomar noes do concretismo. Os poetas D-cio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos buscaram, na superfcie grfica e visual, a superao do verbalismo, do subjetivismo e da linguagem potica tradicional. Dcio Pignatari dizia: antes da poesia concreta: versos so versos. Com a poesia concreta: versos no so mais versos. Ele dizia isso exatamente pelas ligaes que a poesia passou a ter com a msica contempornea, as artes visuais e o design da linha-gem construtivista. Acreditavam que s assim haveria uma efetiva co-municao da poesia com os seus leitores. Poemas-cartazes, coloridos, visualidades, sonoridades, marcaram a poesia concreta e se fazem ainda presentes. Na mesma linha de pensamento, E. M. de Melo e Castro, poe-

    ta experimental da literatura portuguesa, destaca-se pela inven-tividade e por suas composies poticas onde as intervenes tipogrficas dialogam com as vrias linguagens.

    Para provocar ainda mais reflexes e questionamentos, trazemos, no final deste captulo, um trecho do livro infanto-juvenil Bili com limo verde na mo (2009), de Dcio Pignatari, ilustraes de Andr Bueno, e um poema eletrnico, concebido e realizado por Alckmar Luiz dos Santos e Gilbertto Prado, in-titulado Tringulo.

    Figura 22 - Pginas do livro Bili com limo verde na mo.

    Figura 21 - Mulher na janela. Cludio Tozzi. 1967.

  • Captulo 02As imagens e a literatura

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    Batendo Papo

    1) Leia o ensaio Parnasianismo e Simbolismo ao alcance de todos. Leitura de Poetas Brasileiros, de Ca-milo Cavalcanti (UFF) . Voc leu, na ntegra, o poema Profisso de f. Rena suas ideias com a do autor e destaque o que mais lhe chama a ateno do as-pecto pictrico do poema, especialmente no que se refere po-esia parnasiana. Conhea o texto de Elvira Vigna Os sons das palavras ; possibilidades e limites da novela grfica, que est na webteca para entender ainda melhor a relao entre literatura,

    sonoridade e artes grficas.

    Figura 23 - Tringulo. Alckmar Luiz dos Santos. Poema digital disponvel em .

  • Estudos Literrios IV

    46

    Leia mais!

    Propomos algumas referncias importantes sobre leitura de imagens.

    CADR, Amir Brito. Imagens escritas. Dissertao de Mestrado. Insti-tuto de Artes, Unicamp, 2007.

    FREDRIC, Jameson. Espao e imagem teorias do ps-moderno e ou-tros ensaios. Traduo de Ana Lcia Gazola. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.

    MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. So Paulo: Companhia das Le-tras, 2003.

    Revista Cerrados. Revista do Curso de Ps-Graduao em Literatura. UnB. N. 7, ano 7, 1998.

  • Unidade BPoticas do Gesto

    Figura 24 - Criao de Ado. Michelangelo Buonarroti.1511. E E.T., do filme de Steven Spielberg.

  • Captulo 03Teatro: uma potncia milenar

    49

    Teatro: uma potncia milenar ou Estudos literrios/teatro

    Por que eu truo nas minhas tragdias E Amadis de Gaula nas tragdias alheias?

    (Vinicius de Moraes. In: Elegia quase uma ode)

    Nesta viagem que estamos fazendo por outras linguagens to pr-ximas dos estudos literrios, por que no pensarmos sobre o teatro, so-bre a dramaturgia?

    O teatro uma arte milenar e suas razes ocidentais datam da Gr-cia Antiga, onde era encarado como mais uma instituio social, criada para debater as necessidades e crenas do povo. Sua constituio en-quanto forma artstica deve ainda s manifestaes populares de cul-to aos deuses, reverenciando sobretudo Dionsio, curiosamente a mais dual das personagens do Olimpo grego: bom e mau, senhor e escravo, smbolo do vinho, dos prazeres e dos excessos.

    Historicamente, o teatro cultiva em seu cerne a subjetividade tpica dos perodos pr-modernos. No mbito esttico, calcado essencial-mente no aproveitamento da palavra, ao contrrio do cinema, fundado na imagem. As relaes entre ambos, inclusive, esto na gnese da mo-dernidade: a linguagem do cinema fruto direto do drama, mais es-pecificamente do melodrama, justamente um gnero teatral. O terico Denis Gunoun (2004, p. 110) acentua a profundidade desta relao ao vislumbrar, nas tcnicas do teatro, o embrio do cinema: A referncia ao teatro um dos elementos de constituio do que ns chamamos o cinema: no o nico, mas um elemento certamente axial:

    Seguramente o cinema, na elaborao de sua gramtica, tirou uma par-

    te de seus recursos da estrutura do espetculo teatral. Ele integrou a

    maior parte dos procedimentos, englobando-os no agenciamento mais

    amplo, de seu dispositivo: dramaticidade, uso dos atores, dos cenrios,

    apropriao de uma boa parte do repertrio. (GUNOUN, 2004, p. 109).

    O teatro configura-se, antes de tudo, como uma arte do visvel, as-sim como a pintura e o prprio cinema, aponta Jacques Aumont, em O olho interminvel [cinema e pintura] (2004). Suas caractersticas de-

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  • Estudos Literrios IV

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    finem-se de acordo com essa potncia de exibio, pautada ao mesmo tempo na explorao das palavras. Acompanhe agora as especificidades do meio teatral que o diferenciam de todas as outras artes existentes.

    Pensemos em primeiro lugar na fora da trama

    Experincia viva na qual a criao potica se estrutura diante do espectador, o teatro compartilha com a literatura certa concepo de narrativa, ou seja, ancora sua consistncia artstica nas relaes entre fbula, trama e narrativa. A grande diferena que o texto teatral lida essencialmente com contextos demonstrativos, diferentemente da lite-ratura, em que o contexto apresentado fundamentalmente verbal.

    A arte teatral estrutura-se, portanto, segundo uma categoria de ao, organizada num enredo. Compreendida aqui como o arranjo da disposio dos acontecimentos e das aes das personagens, a narrati-va uma das bases comuns entre literatura, drama e cinema, ainda que muitos filmes, peas e romances apresentem justamente a inteno de promover uma espcie de desmanche da representao. Na Arte potica segundo Aristteles (1997), enquanto que a poesia pica narrativa, a tragdia a representao das aes.

    Deste modo, o teatro fundamenta sua potica numa dicotmica relao entre fbula, histria a ser contada, e trama, modo como esta his-tria contada, elementos tpicos da narrativa. Essa homologia estrutu-ral configura o teatro, assim como o cinema, como uma arte de ao e representao, diferentemente da literatura. O que ocorre aqui uma es-pcie de ao vivificada: no se conta nada, representa-se o que, na fico escrita, por exemplo, seria contado. A singularidade do universo teatral est justamente na apresentao de textos que sero realizados em sua completude num momento posterior, no campo da mise-en-scne.

    A imagem como fonte tambm deve ser um caminho de reflexo. No teatro, a imagetizao j est presente na prpria construo po-tica do autor, constituda de significao visual. Como uma categoria hbrida, situada em zona fronteiria, serve-se tanto das palavras, orien-tadoras da ao, ainda no mbito do texto teatral, quanto das imagens,

  • Captulo 03Teatro: uma potncia milenar

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    responsveis pela plasticidade cnica to objetivada pelos dramaturgos, agora j no nvel do espetculo. A arte de Dionsio, nesse sentido, a nica forma artstica a se apropriar, ao mesmo tempo, dos elementos que garantem as especificidades tanto do cinema, imagens, quanto da literatura, palavras.

    A plasticidade do texto teatral pode ser encarada como o objetivo de espetacularizao do texto, teatralizando as palavras, para atribuir significado imagtico ao que poderia ser apenas um amontoado de di-logos recitados por pessoas/personagens. O coeficiente de plasticida-de varia segundo cada autor e a importncia concedida a tal categoria teatral vem mudando de acordo com as prprias alteraes ocorridas dentro da histria do teatro ocidental. Pensando rapidamente os estilos, possvel afirmar que, enquanto o gnero trgico apresentava como ob-jetivo central a discusso de valores ticos importantes para a sociedade ateniense, sendo esta a sua funo primordial, o melodrama buscava seu projeto esttico justamente nos efeitos de palco, que configuram parte do projeto teatral de plasticidade.

    Antonin Artaud foi um dos mais incisivos tericos da dramaturgia na defesa de certo resgate do coeficiente plstico e imagtico do teatro. Em seu ensaio O teatro e seu duplo (1999), critica a importncia cada vez maior concedida pelo teatro ocidental s palavras, orientando os drama-turgos a procurar, no Oriente, aquilo que pode ser encarado como a essn-cia do drama: a plasticidade. Radical na observao do palco como uma experincia artstica para-alm dos dilogos, o pensamento teatral de Ar-taud chega a considerar, e sugerir, a liberdade de um teatro sem palavras.

    Da mesma forma que parece no haver sentido numa arte cinema-togrfica que despreza o predomnio da imagem, tambm no deveria existir significado num teatro alheio ao imperativo de relacionar pala-vras e representaes visuais. E justamente por causa desta pluralidade sgnica tpica do meio teatral, dotado de duas matrias-primas essen-ciais, que muitos semilogos definem a arte teatral como um universo de signos, fenmeno multinivelar, terra prometida da semitica.

    A riqueza do teatro, bem como sua especificidade maior, sua potn-cia, est no espao intermedirio ocupado pelo gnero dentro das artes, entre a literatura e o cinema, entre as palavras-conceito e a imagem.

    Sobre o carter poltico e social que fundamenta toda a tragdia grega, Jean-Pierre V