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Estudos Literários II Florianópolis - 2010 Manoel Ricardo de Lima Júlia Vasconcelos Studart Período

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Estudos Literários II

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Page 1: [Livro UFSC] Estudos Literários II

Estudos Literários II

Florianópolis - 2010

Manoel Ricardo de LimaJúlia Vasconcelos Studart 4º

Período

Page 2: [Livro UFSC] Estudos Literários II
Page 3: [Livro UFSC] Estudos Literários II

Governo FederalPresidente da República: Luiz Inácio Lula da SilvaMinistro de Educação: Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MüllerPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros CamargoPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretora Unidade de Ensino: Felício Wessling MarguttiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

Page 4: [Livro UFSC] Estudos Literários II

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Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsável: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramação: Felipe Augusto FrankeFiguras: Bruno Martone NucciTratamento de Imagem: Karina Silveira, Felipe Augusto FrankeRevisão gramatical: Tony Roberson de Mello Rodrigues

Design InstrucionalResponsável: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Verônica Ribas Cúrcio

Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

L732e Lima, Manoel Ricardo de Estudos literários II / Manoel Ricardo de Lima, Júlia Vasconcelos Studart. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010. 105p.

ISBN 978-85-61482-22-0 1. Literatura – História e crítica. 2. Vida rural na literatura. 3. Vida urbana na literatura. 4. Ensino a distância. I. Studart, Júlia Vasconcelos. II. Título. CDU: 82.09 Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Sumário

Introdução ........................................................................................... 9

Unidade A ..........................................................................................11

1 O campo: o bucólico e o pastoril ............................................................13

1.1 Teócrito e a poesia pastoral ...........................................................................13

1.2 Virgílio e as suas Bucólicas .............................................................................17

2 A cidade medieval .......................................................................................25

3 O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil ........................................29

Unidade B ...........................................................................................41

4 A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire .................43

5 Poesia e processos de emergência e de modernização .................53

5.1 O Vidro e o Ferro ................................................................................................61

5.2 As Exposições Universais................................................................................63

6 Cesário Verde, Lisboa ..................................................................................67

7 Walt Whitman, o verso livre ......................................................................73

8 Sugestões de Leitura ...................................................................................79

8.1 Eça de Queirós: A cidade e as serras .........................................................79

8.2 A poesia de Alberto Caeiro e de Álvaro de Campos ...........................80

Unidade C ...........................................................................................87

9 A experiência contemporânea nos novos espaços .........................89

10 Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis. .......................................................93

10.1 Espaço Público e Literatura .........................................................................95

10.2 Algo da literatura agora ...............................................................................96

11 O transeunte “pós-moderno”: a vida contemporânea .................99

Referências..................................................................................... 103

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Page 7: [Livro UFSC] Estudos Literários II

Apresentação

A disciplina de Estudos Literários II foi pensada como uma introdu-

ção às questões entre algo da história da literatura e dois dos seus

espaços territoriais de conflito e de produção: o campo e a cidade,

para que você compreenda um pouco como a literatura está diretamente rela-

cionada ao espaço da natureza e ao espaço habitado, organizado, desenvolvido

e construído pelo homem e suas expressões políticas do pensamento. A idéia é

que você possa passear um pouco por essa história e que, principalmente, pos-

sa, ao final da disciplina, montar suas próprias articulações acerca da literatura

e de suas cartografias, da literatura e de suas fronteiras, da literatura como uma

linguagem vinculada aos espaços de onde surge, aparece e se estabelece como

percepção e como memória.

Ao olhar o Sumário você vai perceber que nos concentraremos numa idéia de

perspectiva: a cidade e o campo como lugares de fronteira e de experiência

para a literatura. Partimos, no começo de nosso passeio, de alguns textos que

falam da natureza como uma inserção do bucólico e do pastoril, de Teócrito e

Virgílio, até textos em que as cidades medievais aparecem como as primeiras

a estabelecer, de fato, um conflito entre espaço e produção literária. Depois,

com um salto no tempo, traçaremos os impasses da literatura com a cidade

moderna e suas emergências de tempo, de vida veloz, a partir da Revolução

Industrial e dos séculos XIX e XX. E aí surgem os objetos de estudo sobre os

que mais nos concentraremos durante a disciplina: a poesia urbana de Charles

Baudelaire, Walt Whitman, Cesário Verde, Álvaro de Campos, a poesia entre

o mundo natural e o mundo moderno de Alberto Caeiro, e algo da prosa de

Ítalo Calvino e Bruno Zeni.

Veremos o romance como gênero moderno e urbano, a poesia de prática expe-

rimental e de sintaxe urbana acompanhando os movimentos das novas pers-

pectivas inventadas pelo homem: do cotidiano como registro marcante destes

textos até a arquitetura do vidro e do ferro, dos novos meios de transporte

aos novos sistemas de comunicação, dos novos regimes econômicos ditados

pelos novos sistemas de produção e de trabalho até as novas formas de vida do

campo e da cidade. E, por fim, chegaremos a algumas variantes de como a lite-

ratura trata a cidade e o campo agora, neste momento, em nosso tempo, como

contrastes e como marcas efetivas de muitas de nossas experiências cotidianas.

Page 8: [Livro UFSC] Estudos Literários II

Este Livro é apenas um guia para que você possa desenvolver suas pesquisas

e leituras acerca do nosso tema, e uma pequena mostra de alguns autores, em

forma de recorte. Você vai encontrar aqui uma breve mostra dos textos se-

lecionados em seus aspectos fundamentais e a tentativa de, junto com você,

construir uma mínima cartografia da literatura através do campo e da cidade.

Procure ler os livros citados, sugeridos, indicados etc. E seja bem-vindo(a)

a nossa viagem por estas lacunas de campos e cidades e pelas marcas destes

espaços desdobradas por alguns textos muito importantes para nós. Aperte o

cinto, um trem vai começar a percorrer as páginas de nosso livro.

Manoel e Júlia

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Introdução

As relações entre literatura, campo e cidade

Imagine que você está parado, de pé, numa vasta planície de ter-ra, observando ao longe até onde é possível enxergar esta vastidão de terra, até uma linha final, onde ela parece tocar o céu e o céu, por sua vez, também parece tocá-la. Ficamos admirados diante da possibilidade deste encontro entre terra e céu, entre a força da natureza e a pequeneza do homem diante desta força. Compreenda então que o seu olhar pode atravessar todo este campo aberto e natural e atingir o que está mais distante em relação ao seu corpo parado e de pé: a linha final, a linha do encontro, a que chamamos de linha do horizonte.

O encanto do homem com este evento natural, da terra como es-paço de mundo e de vida, é que favorece toda uma produção literária, toda uma tradição histórica de pensamento bucólico voltado para as in-tenções realistas da paisagem: o campo. É a paisagem do mundo natural que se torna essência da vida, e o que está em evidência são os prazeres da vida rural, da vida no campo, numa espécie de tempo mítico.

Imagine que agora, ao seu redor, nesta planície de terra e campo aberto, começam a aparecer algumas construções movidas pela ação do homem. Imagine ao seu lado uma fábrica cheia de trabalhadores, ima-gine que ao lado da fábrica começam a surgir casas e mais casas, consti-tuindo novos espaços para ir e vir, as ruas entre as casas. E perceba que estas ruas começam a se entulhar de gente, além dos trabalhadores da fábrica, todas as pessoas de suas famílias, depois alguém constrói uma praça, um mercado público, as ruas se enchem mais e mais de gente. Novas construções, novas casas, igrejas, áreas comuns, áreas privadas, construções maiores, muros, paredes, uma incontável argamassa de concreto.

Depois, nesse novo emaranhado de paisagem, a cidade, é que o ho-mem se impressiona com o poder da máquina, das estruturas artificiais da vida, como a lâmpada e o bonde elétricos. E inventa o trem, o auto-móvel, o avião, o telefone, as novas formas de trabalho sugeridas pelas formas de produção do capital e do consumo, as novas formas de vida,

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a falta de tempo, a falta de espaço, o acúmulo de lixo, os novos barulhos etc. O homem inventa também os novos encantos e dissabores de uma outra tradição da história e do pensamento formuladas agora a partir e através daquilo a que convencionamos chamar simplesmente, como uma forma de resumo, cidade.

E durante muito tempo se disse que o “O ar da cidade liberta”, e que o campo, com seus espaços abertos para o infinito, movia-se para as relações tensas de uma classe de agricultores pobres e uma aristocracia rural mandatária emergente. Ou seja, que tudo, um dia, seria apenas cidade. Assim, está mais claro agora, para você, que pode até parecer fácil separar o campo da cidade, a cidade do campo, e distinguir dentro deles as modalidades de literatura produzidas a partir de cada dimensão e disposição do espaço que eles sugerem, mas isto só pode ser feito se você concentrar as suas atenções nas fronteiras destes espaços.

O fato é que o conflito entre estes espaços é também subjetivo, in-terno, e a literatura é parte fundamental da história dessas expressões de conflito e afeto entre o homem e o campo, entre o homem e a cidade. A literatura é parte fundamental do quanto o pensamento do homem foi atravessado pelo campo e pela cidade. Para uma melhor compreensão destas relações entramos agora em nosso primeiro ponto de estudo – o bucolismo e a poesia pastoril - e no primeiro livro que você deve procu-rar ler: as Bucólicas, de Virgílio.

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Unidade ACampo

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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1 O campo: o bucólico e o pastoril

Apresentar e compreender as primeiras articulações da expressão literária

com o espaço; e, no caso específico desta unidade, o campo.

1.1 Teócrito e a poesia pastoral

Todo o nosso começo vinculado primeiramente ao campo está na figura de Teócrito, membro da plêiade dos poetas alexandrinos e consi-derado o fundador do estilo poético pastoral. Perceba que tudo o que está relacionado com o campo tem a ver com este termo: pastoral. Quase tudo que é possível saber sobre Teócrito, que é quase nada, vem de sua própria obra. Dos seus poemas, por exemplo, que é o que nos interessa, e os quais foram denominados idílios, só temos notícia de trinta deles e de mais vin-te e quatro epigramas, o que é muito pouco. E alguns ainda têm autentici-dade imprecisa, ou seja, são atribuídos a outras pessoas, a outros autores.

Para você entender melhor a abrangência da acepção pastoral, suge-

rimos que veja o que o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa diz:

o termo pastoral é referente a ou próprio de pastor de animais; pastoril;

relativo a ou próprio do campo; campestre, pastoril. Nos séculos XV e

XVIII, pastoral era próprio de um tipo de representação teatral com mú-

sica e dança, baseada em temas campestres. Na literatura corresponde

à composição poética com tema idílico ou pastoril; também relativo à

música de temática idílica ou pastoril.

Dos poemas idílicos de Teócrito, que são poemas extremamente curtos, dez são pastorais, outros relatam a vida pequena, cotidiana, ci-tadina e outros se concentram em temas mitológicos. Esses idílios são divididos em poemas bucólicos ou pastorais, mimos e contos épicos. Note que junto com pastoral ou pastoril há um outro termo: bucólico, que é um termo demarcador desta primeira expressão poética que vem das

Poeta grego do período helenístico,

nascido em Siracusa, na Sicília, e que

viveu entre 310 a.C. – 250 a.C.

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Estudos Literários II

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relações do homem com o campo. Teócrito influenciou toda a poesia bucólica posterior, principalmente a do poeta romano Virgílio. Os seus poemas tratam da vida dos pastores no campo, do campo como um es-paço cartografado pela experiência amorosa, do campo como um lugar de tranquilidade e que tem uma relação direta com a expressão do pen-samento do homem que vê ali a sua possibilidade de vida feliz.

A linguagem que Teócrito usa é muito simples, muito próxima do mundo natural e bem mais realista do que a linguagem empregada de-pois por todos os seus sucessores. A maior parte de seus poemas, estes idílios, foram escritos como diálogos, e as personagens – que sempre são pastores com seus amores felizes ou infelizes – cantam a sua contempla-ção da vida e este lugar afetivo para a vida: o campo.

Vamos ler, a seguir, um trecho de um dos idílios mais conhecidos de Teócrito:

O Canto de Polifemo

Foi um longo dardo que Cípris cravou em seu fígado.

Mas o remédio ele o achou, sentando sobre altos

rochedos, e enquanto olhava o mar cantava assim:

“Por que repeles quem te ama, ó alva Galatéia,

mais alva de ser que a coalhada, mais macia que um cordeiro,

mais faceira que uma novilha, mais lustrosa que uva verde,

e te achegas assim quando o sono me domina

e te vais tão logo o doce sono me abandona,

fugindo como ovelha à vista de um lobo cinzento?

Eu me apaixonei por ti, menina, na primeira vez em que

vieste com minha mãe, que flores de jacinto colher

queria nas montanhas, e eu ia guiando o caminho.

Pôr fim a isso, após outras vezes ter-te visto, agora

não mais me é possível. Mas tu com nada te importas, por Zeus!”

O trecho a seguir pertence ao Idílio XI, O Ciclope, que tem um total de 81 versos.

A tradução é de Maria Celeste Consolin Dezotti,

professora de língua e literatura grega da

FCLAr-UNESP.

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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E o que é um idílio?

Idílio é qualquer poema lírico de tema bucólico ou pastoril. O ter-

mo é proveniente do grego eidúllion, que significa “pequena poe-

sia”. Entre os gregos antigos, dava-se o nome de “idílio” a qualquer

poema curto, de natureza descritiva, narrativa, dramática, épica

ou lírica. Informação disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/

Id%C3%ADlio>. Acesso em: 22 maio 2009.

Ainda segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Idílio pode significar:

1) Originalmente, entre os antigos gregos, qualquer poema curto (descritivo, narrativo, dramático, épico ou lírico);

2) Poema lírico de tema bucólico, pastoril;

3) Amor terno e delicado;

4) Colóquio amoroso; relações entre namorados;

5) Produto da fantasia; devaneio, utopia.

Massaud Moisés, no Dicionário de Termos Literários (1978), confirma estas definições do Houaiss ao dizer também que o Idílio, pri-mitivamente, designava todo poema curto de assunto variado, descri-tivo, narrativo, dramático, épico ou lírico, como você já viu acima. E acrescenta que Teócrito, um mestre nesse uso, fez do idílio o nome e o lugar para os seus poemas, porque achava que estes diziam muito bem da vida no campo, da vida pastoril, por isso o termo idílio passa a ser usado como sinônimo de poesia pastoril, da poesia que trata do campo.

Mas, o crítico Arnold Hauser, por sua vez, diz que mesmo quando Teócrito escrevia os seus idílios, a situação pastoril já não sugeria um tema novo, uma novidade. Ele justifica dizendo que as condições e si-tuações tratadas no tema pastoril já estavam entre os povos primitivos e que, principalmente, é o conflito latente entre o campo e a cidade que só ocorreria muitos séculos depois, que provocaria de fato um senti-mento de mal-estar com a civilização e moveria todo um pensamento

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em direção a vida no campo como saída, como fuga, como lugar ameno (HAUSER, 1998) Eis o bucolismo, termo e conceito muito importante para nós em nosso estudo.

Por isso que, muitos anos depois, o crítico inglês Raymond Williams vai dedicar todo um livro para estudar a formação da literatura na In-glaterra a partir dessas partições entre o campo e a cidade . Ele diz logo no começo da primeira parte de seu livro, intitulada Campo e Cidade:

Campo e Cidade são palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar,

se aquilatarmos o quanto elas representam na vivência das comunida-

des humanas. [...] Na longa história das comunidades humanas, sempre

esteve bem evidente esta ligação entre a terra da qual todos nós, direta

ou indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da so-

ciedade humana. E uma dessas realizações é a cidade: a capital, a cidade

grande, uma forma distinta de civilização. Em torno das comunidades

humanas existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se

e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a

ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes

simples. À cidade associou-se a idéia de centro de realizações – de sa-

ber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações

negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o

campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre

campo e cidade, enquanto formas de vida fundamentais, remonta à an-

tiguidade clássica (WILLIAMS, 1989, p. 11).

Assim, primeiro, vamos falar ainda de Virgílio como um exemplo possível desta expressão primeira do contraste. Se Teócrito se deleitava com as descrições mais simples da vida pastoril, Virgílio já nos apresen-ta aquilo que podemos chamar de alegoria; para ele já havia a cidade de Roma e sua organização em torno da idéia de cidade, que não se diferencia muito da que conhecemos hoje. Este uso da alegoria aparecia através do desejo, aquilo que se quer, que transformamos em projeto, em vir a ser; e o desejo nos poemas de Virgílio era o de ter a vida de um pastor, de sair da cidade e seus desamparos e ir morar no campo.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na

História e na Literatura. Trad. Paulo Henriques Brit-to. São Paulo: Companhia

das Letras, 1989.

Virgílio ou Publius Vergilius Maro,

também chamado de Vergílio, nasceu

próximo de Mântua, numa família de

camponeses, e viveu entre 70 a.C e

19 a.C. Estudou Filosofia e Retórica,

frequentou os círculos mais eruditos

da cidade e tornou-se o poeta oficial

do imperador Augusto.

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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A alegoria pode ser um modo de expressão ou interpretação usada

no âmbito artístico e intelectual, que consiste em representar pen-

samentos, ideias, qualidades sob forma figurada, e em que cada ele-

mento funciona como disfarce dos elementos da ideia representada.

Na literatura, refere-se à obra que utiliza os recursos da figuração ou

simbolismo alegórico, bem como uma sequência logicamente orde-

nada de metáforas que exprimem ideias diferentes das enunciadas.

Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

1.2 Virgílio e as suas Bucólicas

A obra de Virgílio consta de vários pequenos poemas, quase to-dos compostos na juventude, depois aparecem as Bucólicas ou Éclogas, uma composição de 10 poemas ou cantos inspirados na poesia pastoral grega de nosso já conhecido Teócrito. Mais tarde, aparecem as Geórgi-cas, uma obra que inclui quatro livros, todos tratando de temas vincula-dos ao campo, como a lavoura, a avicultura, a apicultura, também como uma espécie de elogio a sua terra, a Itália.

E, bem mais tarde, a Eneida, sua obra principal, a sua obra máxima, a epopéia nacional que eterniza Virgílio. Diz uma lenda que ele teria consi-derado esta Eneida como uma obra inacabada, ainda imperfeita, e que no leito de morte teria pedido para que ela fosse queimada. Mas, isto é uma lenda, apenas. A Eneida conta a trajetória do guerreiro troiano Enéias que, após a conhecida guerra, teria fugido de Tróia e chegado à Itália, onde se tornou o antepassado do povo romano. A Eneida, epopeia extremamente erudita, tem como objetivo dar aos romanos uma procedência original, primeira, que não passasse mais pela tradição grega. A finalidade era dar à cultura latina um status de origem não tributária da cultura helênica. O poema consta de doze livros e a sua composição serviu de modelo decisivo às grandes epopéias do renascimento, como Os Lusíadas.

Os estudiosos mais importantes das Bucólicas de Virgílio dizem que uma bucólica é, como gênero literário, um poema escrito em versos que procuram reproduzir o mesmo formato do verso de Homero e de

Você já leu essa obra de Luís Vaz de Camões duran-te a disciplina de Literatu-ra Portuguesa I. Veja mais em: FERRAZ, S. Literatura Portuguesa I. Florianópo-lis: UFSC/CCE/LLV, 2008.

Veja as obras Odisséia e Ilíada.

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Estudos Literários II

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Hesíodo, sempre tomando o campo como cenário e construindo as suas personagens principais favoritas: os pastores-cantores. Esses pastores-cantores vivem cercados por uma paisagem aprazível, amena, conhe-cida através da expressão latina ‘locus amoenus’, que quer dizer lugar ameno, tranquilo, bom; e vivem às sombras das árvores, numa espécie de acalanto, dizendo e cantando os seus amores possíveis e impossíveis, a sua vida utópica toda misturada com a terra, com o cultivo da terra, a criação de ovelhas etc.

“Os poemas mostram os pastores sentados ou reclinados, estendidos

no chão; interrompida a lide no campo, é assim que eles se entregam

às musas, numa posição espacial que parece simbólica, metapoética.

De fato, é como se assim se representasse a feição mais ‘humilde’, ‘baixa’,

‘terra a terra’ (humilis) desse canto, se comparado à grandiosidade da

épica e à sublimidade da tragédia. Camões, na sua epopéia, contrasta a

épica pastoril, indicada através dos instrumentos musicais dos pastores

(Os Lusíadas, Canto I, estrofe 5, versos 1 a 3):

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa...”

(VIRGÍLIO, 2008, p. 10)

É importante lembrar que o adjetivo bucólico significa, segundo o

Dicionário Aurélio, “pertencente ou relativo à vida e costumes do

campo e dos pastores; campestre; pastoril.” Os pastores na Grécia

antiga eram os bukolói, termo usado para os pastores de bois. Virgí-

lio usa o termo ‘bucólicas’, no plural, que são poemas em que apare-

cem os pastores exaltando cenas e costumes de suas vidas comuns,

simples, serenas. Por isso que as principais personagens de suas Bu-

cólicas são os pastores de cabras e ovelhas.

Assim, começamos a entender que as Bucólicas de Virgílio fun-dam um espaço ideal para a vida do homem, um lugar harmonioso, bom, espaço este que no imaginário do ocidente está plenamente vin-culado a qualquer idéia de literatura e campo, um espaço que recebeu o nome de Arcádia. Neste lugar é que surge a Flauta de Pan ou Flauta de Pã, que foi denominada assim por causa do deus grego Pã. Era muito

Veja Teogonia e Os Tra-balhos e os Dias.

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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popular entre os etruscos e gregos, já no século VI a.C., um instru-mento musical de sopro direto constituído por um conjunto de tubos fechados numa extremidade, graduados e de diferentes tamanhos, que é o símbolo da poesia pastoril. Em Virgílio, a Arcádia é um grande espaço vazio, impossível de ser localizado e é, principalmente, um lugar fora do mundo real, da realidade exterior que nos cerca, é um espaço todo feito a partir dos sonhos e dos desejos. Tanto é assim que se costuma dizer que a linguagem utilizada por Virgílio é uma linguagem fora de uso, que nenhum pastor de sua época faria uso dela assim como ele, que nenhum pastor daria um emprego a sonhos e desejos da maneira que Virgílio o fez. Assim, a partir dessas pequenas impressões, você pode começar a pensar e a entender que o campo sugere para a literatura a construção de um texto que não é senão um reflexo de sua dimensão contemplati-va para o infinito, um lugar harmonioso, tranquilo e longe da agitação civilizatória da cidade.

O deus grego Pã ou Lupércio/Lupercus para os romanos, era con-siderado o “deus dos pastores”, o deus dos bosques, dos campos e dos rebanhos. Residia em grutas e vagava pelos vales e pelas montanhas, caçando ou dançando com as ninfas. Era representado com orelhas, chifres e pernas de bode. O deus Pã era amante da música e trazia sem-pre consigo uma flauta. Acreditava-se que os ruídos que se ouviam nas montanhas e nos vales eram provocados por esse deus. Assim, era te-mido por todos aqueles que necessitavam atravessar as florestas à noite, pois comumente eram acometidos de pavores súbitos (“terror, pânico”), desprovidos de qualquer causa aparente e que eram atribuídos a Pã; daí a origem do nome pânico. Os latinos chamavam-no também de Fauno e Silvano. Tornou-se símbolo do mundo pagão por ser associado à natu-reza e simbolizar o universo. Fontes: Dicionário Houaiss da Língua Por-tuguesa e <http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3_(mitologia)> Acesso em: 25 mai. 2009.

Vamos agora conhecer um pouco do poema de Virgílio, Bucóli-cas, quando os pastores-cantores entoam os seus versos e celebram seus amores cercados pela natureza e todos os seus encantos. No poema de Virgílio, todo ato ou caráter que se aproxima de uma idéia de trabalho foi deixada de lado. Tudo no poema é o desenho de um lugar acolhedor, como a relva, repleto e coberto pelas sombras das árvores, quando o

Pã e sua flauta.

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sono dos homens pode ser doce e afável. Estamos diante de um cenário que é todo voltado para o descanso da vida atribulada, um cenário que é todo voltado para a utopia, ou seja, para um modelo abstrato e imagi-nário de sociedade ideal que se arma também como crítica à uma orga-nização social existente. E se formos mais fundo no que a palavra utopia pode ainda nos sugerir, encontraremos derivações do tipo: projeto de natureza irrealizável; ideia generosa, porém impraticável; quimera, fan-tasia. Assim, é o amor o tema central desses poemas de Virgílio, porque para ele o amor a tudo vence, como está na expressão latina: ‘Omnia vincit Amor’. A natureza, então, acolhe o coração daquele que sofre por amor, porque a natureza parece entender que há certas fissuras e marcas que o amor provoca e que jamais podem ser sanadas.

Importante é lembrar que nas éclogas I e IX há uma tentativa de

Virgílio em dizer coisas sobre a expropriação de terras, quando al-

guns proprietários foram expulsos de suas posses, para que estas

servissem de recompensa a alguns veteranos do exército. Dizem

que o próprio Virgílio foi ameaçado de perder suas terras, e foi salvo

a tempo por alguns amigos influentes, como Asínio Polião, Alfeno

Varo e Cornélio Galo.

Escolhemos um trecho do poema de Virgílio para que você possa começar a se familiarizar com todo o texto das Bucólicas: a écloga de número VII, que narra um diálogo entre os pastores Melibeu, Coridon e Tírsis. É só você seguir as abreviaturas correspondentes respectivamente a cada um dos pastores, elas abrem algumas partes do trecho: Mel, Cor e Tír.

Tente ler atentamente, procure encontrar sentido nos termos empre-

gados, discuta com os seus colegas e, durante as aulas, veja como o

diálogo é montado e quais os interesses de Virgílio diante do que você

já viu até agora. Procure também fazer uma leitura crítica e analítica do

que diz ou tenta dizer o poeta. Importante é que você procure ler todas

as Bucólicas de Virgílio. Ao final do trecho, colocamos pra você algumas

notas esclarecedoras que podem ajudar a compreensão de sua leitura.

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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Mel. Sentado sob arguto azinho Dáfnis,

Em mó juntaram Coridon e Tírsis,

Tírsis ovelhas, Coridon cabrinhas

Retesadas; em flor e Árcades ambos,

Ambos no canto iguais, na aposta agudos.

Quando acautelo o frio às mírteas ramas,

Do fato esgarra-se o cabrum marido,

E enxergo a Dáfnis, que me avista e logo:

“Depressa, Melibeu; tens salvo o capro

E os chibos; se hás vagar, descansa ao fresco:

Do prado cá beber vêm teus novilhos;

Cá verde o Míncio as ribas de caniços

Forra, em santo carvalho enxames zumbem”.

Que faria? não tinha Alcipe ou Fílis

Que os destetados anhos me apriscasse,

E ia travar-se Coridon com Tírsis:

Pospus sério negócio ao brinco deles.

Os dous estréiam pois o verso alterno,

Que alterno verso as Musas lhes ditaram,

A Coridon agora, agora a Tírsis.

Cor. Doces ninfas Libétrias, igual veia

Dai-me à do Codro meu, que emula a Febo,

Ou, se impossível é, do sacro pinho

Aqui penduro a fístula sonora.

Tír. Árcades, ornai de hera o vosso aluno;

De inveja estoure Codro, ou se em gabar-me

Persiste, à fronte bácaro cingi-me:

Que medre o vate língua má não tolha.

Cor. Galhos de vivaz cervo e esta cabeça

De cerdo o meu Micon, Delia, te oferta:

Vou, sés o consigo, em mármore pulir-te,

Com borzeguim puníceo atados às penas.

Tír. Bilha de leite e bolos, de horto pobre

Guarda és, Priapo, só cad’ano esperes:

Pude esculpir-te em mármore, de crias

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Estudos Literários II

22

Supra-me o gado, avultarás em ouro.

Cor. Nerina Galatéia, que alvacentas

Heras passas mimosa, nívea o cisne,

Grata Hibleu timo, ao vir do pasto o armento,

Vem, se o teu Coridon inda em ti mora.

Tír. Vil como alga arrojada, que a sardônia

Eu mais te amargue, mais que o rusco espinhe,

Se hoje o dia sem ti não julgo um ano.

Fartos bois, é vergonha: à casa, à casa.

Cor. Musgosa fonte, ao sono ò doce grama,

Que não basto medronho assombra, as reses

Do solstício amparai; torrado estio

Já se apressa, o bacelo agoma e viça.

Tír. Aqui sempre há bom fogo, há pingues teias,

Sempre tisna os portais fuligem negra;

Aqui Bóreas tememos, quanto o lobo

Teme a bando ovelhum, torrente e margens.

Cor. Zimbros em cima e ouriços de castanhas,

Estão sob os seus pés lastradas frutas;

Ri-se tudo: verás, se o lindo Aléxis

Destes montes se for, secar-se os rios.

Tír. Mau ar, sequioso o campo, as ervas mata;

Líbero umbrosa parra à encosta nega:

Chegue-nos Fílis, eis verdeja o bosque,

Eis Jove desce em criadora chuva.

Cor. O álamo Alcides ama, Iaco a vide,

Seu louro Febo, Vênus pulcra o mirto;

Fílis ama aveleiras: ame-as Fílis,

Que nem mirto nem louro há de vencê-las.

Tír. Freixo embeleza em matas, pinho em hortos,

Choupo em ribeiras, na montanha abeto:

Se, Lícidas gentil, bem me freqüentas,

Ceda-te em matas freixo, em hortos pinho.

Mel. Lembra-me isto, e que em vãos certara Tírsis,

Daí por Coridon Coridon temos.

(VIRGÍLIO, 2008, p. 135-141)

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Capítulo 01O campo: o bucólico e o pastoril

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Notas para ajudar a compreensão do trecho:

1) Dáfnis é um pastor que assiste à contenda poética entre Cori-don e Tírsis, uma espécie de juiz da competição que Melibeu, um outro pastor, relata;

2) Estas contendas são desafios entre os pastores-poetas, que têm de responder aos versos cantados pelo outro, o seu adversá-rio; isto é uma tradição que terminou desembocando no sertão nordestino brasileiro, nos repentistas;

3) Melibeu é o pastor que narra a história e quem recorda a dispu-ta entre Coridon e Tírsis;

4) Alcípe e Fílis são as amantes dos pastores Coridon e Tírsis;

5) Fístula é a flauta dos pastores, quando se pendurava a flauta em alguma árvore próxima à contenda, significava que se renun-ciava ao canto, à contenda;

6) Délia é o nome atribuído à deusa da vida selvagem, Diana, que nasceu na ilha de Delos;

7) Galatéia é uma ninfa do mar, filha de Nereu, descrito por Ho-mero como um sábio e bondoso deus. A história de amor de Polifemo, o gigante, pela ninfa Galatéia é uma das favoritas de quase todos os escritores bucólicos;

8) Líbero é uma antiga divindade italiana, tida como deus da ferti-lidade e do vinho. Muito tempo depois, Líbero passou a ser iden-tificado com o culto a Dioniso, ou a Baco, como se diz na Itália;

9) Alcides, o neto de Alceu, é um nome atribuído a Hércules, o herói grego dos 12 trabalhos;

10) Lícidas é uma personagem que aparece também no Idílio 7, de Teócrito. Nota-se que Virgílio não esquece de seu mestre;

11) Coridon vence a disputa de versos. A sua habilidade poética o torna, a partir de então, conhecido como um hábil poeta.

Estas pequenas notas fo-ram feitas a partir das notas desta Bucólica ou Écogla, a de número VII de VIRGÍLIO. Bucólicas. Trad. Odorico Mendes / Notas. Grupo de Trabalho Odorico Mendes. São Paulo, Unicamp / Ateliê Editorial, 2008.

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Capítulo 02A cidade medieval

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2 A cidade medievalCompreender as relações da literatura com a cidade medieval até um

princípio da cidade moderna, e perceber como a literatura se manifesta

a partir destas relações.

Raymond Williams diz que a realidade histórica dos contrastes en-tre o campo e a cidade são surpreendentemente variadas. Isto nos pare-ce claro. Não apenas variam de um país a outro, de um continente a ou-tro, como também de uma época para outra, que é exatamente a nossa tarefa aqui: fazer você compreender que estas perspectivas de variação movem as maneiras de pensar e de produzir pensamento, no nosso caso, a literatura, e quais são algumas dessas variações literárias que surgiram a partir desses contrastes.

Ele diz também que as formas de vida campestre englobam as mais diversas práticas, desde a caça ao pastoreio, do cultivo de fazendas até o empresariado agroindustrial, e que a organização destas formas de vida recebe variações por causa das tribos, dos feudos, dos camponeses, dos pe-quenos arrendatários, das comunidades rurais, dos latifúndios, das gran-des empresas agroindustriais capitalistas e fazendas estatais. E, também, do quanto a cidade aparece das formas as mais variadas: como capital do estado, centro administrativo, centro religioso, centro comercial, porto e armazém, base militar, polo industrial, entre várias outras. E conclui dizen-do que o que há entre as cidades antigas e as cidades medievais e as metró-poles e conurbações modernas é o nome e as suas funções como espaço.

É por isso que o historiador francês Jacques Le Goff , um pesquisa-dor muito interessado nas coisas que tratam da cidade, principalmente nos temas da Idade Média que perpassam os séculos XII e XIII, vai di-zer que uma de suas ideias preferidas é que há muito mais semelhanças entre a cidade que nós conhecemos agora, a cidade que chamamos de nossa contemporânea, e a cidade medieval, do que qualquer um de nós pode pressupor. É a cidade medieval que de fato começa a determinar alguns sentidos outros para a literatura, como, por exemplo, a renova-ção do tema do bucolismo e a ampliação dos contrastes de espaço. Um livro muito importante para a compreensão desta passagem da cidade medieval para a cidade moderna, das tarefas e da vida do homem no

Raymond Williams (1921-

1988) nasceu no país de Gales e é

considerado um dos mais influentes

pensadores e críticos da Nova Es-

querda inglesa. Foi um estudioso das

questões que atravessam a história

da cultura do pós-guerra e também

um dos idealizadores dos chamados

“estudos culturais”. No Brasil, já foram

publicados Cultura e Sociedade, 1780-

1950, Marxismo e Literatura, O campo

e a Cidade: na história e na literatura e

Cultura e Tragédia Moderna.

Jacques Le Goff nasceu em Tou-

lon, na França, em 1924. Publicou obras

de referência para os estudos das ques-

tões medievais como, por exemplo, Os

Intelectuais na Idade Média, em 1957,

Para um Novo Conceito da Idade Média,

em 1977, O Imaginário Medieval, em

1985, Dicionário Temático da Idade

Média, com Jean-Claude Schmitt, em

2001, O Deus da Idade Média, em 2003,

Em Busca da Idade Média, 2003 etc.

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Estudos Literários II

26

campo para as tarefas e a vida do homem na cidade é Por amor às cida-des: conversações com Jean Lebrun.

Uma das importâncias da cidade medieval para Jacques Le Goff é a valorização do trabalho. Ele comenta que esta é uma das funções e transformações históricas fundamentais da cidade: porque é nela que se pode ver quais são os resultados e os produtos que vêm do trabalho. Outra questão importante é que a cidade é que traz de volta o riso. Sim, o riso, não se assuste. O riso havia sido banido da vida cotidiana pelos radicalismos da igreja católica, mas a cidade recupera algo que é próprio do homem, algo que é e está no homem contra o pranto. Você deve lembrar que o pranto funciona, para a igreja, como a expressão contrita do homem, como o arrependimento que é o maior caráter do homem pecador. E o riso é libertador, assim como a cidade se pensa: uma liber-tação que se dá através da urbanidade de seu ajuntamento. Depois, há a praça pública, há o mercado público, estes espaços de ajuntamento para a vida pública, fora de casa, fora da esfera privada, e estes espaços é que fazem com que a linguagem se modifique, se transforme, seja outra.

Uma pergunta que podemos nos fazer agora é: Quais as formas de

literatura que se produzem a partir de todas estas mudanças e na

percepção dessas mudanças?

Mas, não podemos nos esquecer de que a cidade medieval ainda era, ao mesmo tempo em que um espaço urbano com tendências à li-berdade de ação, também um espaço fechado, cercado de muralhas. É “a muralha que define a cidade medieval”, diz Le Goff. Isto porque a mu-ralha era uma questão de segurança, de abrigo. Procure ver fotografias ou assistir a filmes que retratam as cidades medievais, construídas sobre montes, colinas, lugares altos e sempre, sempre, cercadas de muralhas. Mas, com o passar do tempo, estas estruturas se tornam não mais ape-nas sistemas de segurança contra os exércitos inimigos e os visitantes indesejáveis, mas também verdadeiras marcas de aprisionamento, de exclusão, de separação. Não à toa até hoje em nossas cidades, mesmo quando pequenas, uma das questões que mais os dirigentes discutem é acerca da segurança pública, quais ações ou políticas podem ser feitas sobre a segurança pública; isto se deve a uma manifestação nossa, nos

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conver-sações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello

Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora

da UNESP, 1998. [Prismas]

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Capítulo 02A cidade medieval

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avisa Le Goff, porque a segurança é uma “obsessão urbana, muito cons-ciente e muito viva. A cidade é, com relação ao campo, à estrada e ao mar, um pólo de atração de segurança” (LE GOFF, 1998, p. 72).

Desta maneira saímos das muralhas da cidade medieval para den-tro de nossas chaves e cadeados que fecham as nossas portas, para den-tro de nossos muros e de nossas grades de proteção, de nossos portões eletrônicos, nossas cercas elétricas, nossas janelas fechadas, e produzi-mos uma outra janela para o mundo: um computador ligado a uma in-fovia, a internet. Mas, este é um outro assunto, para um outro momento.

Mas, não deixe de pensar sobre isso e, principalmente, não deixe de se

perguntar outra vez numa reavaliação da questão: De quais e quantas

maneiras, então, agora, com a internet, se produz literatura, diante de

todos estes encurtamentos de distância e dessas velocidades e estados

de participação da vida?

A cidade da vida burguesa é, pois, a cidade fechada não mais por muralhas, mas trancada à chave. A cidade, desde a idade média, virou também um lugar que fervilha de ladrões, de todos os tipos. São muitos os viajantes, são muitas visitas, são muitas guerras, são muitas as sus-peições e interesses por poder. Mas, é muito por causa da vida na rua, a rua como lugar de lazer e estar, de negócios e de trabalho, que as portas das casas se fecham. Tudo isso gera um outro tipo de escrita, tudo isso gera um desprezo pelo camponês e a sua campesina, frágil, esperançosa, lenta, amena etc., e surge então um extremado fascínio pela vida nas cidades. Le Goff vai dizer que:

A sociedade burguesa é, ela também, vivamente desigual: os grandes

contra os pequenos (os miúdos), os ricos contra os pobres, mas o mo-

delo teórico burguês inicial é aquele dos homens iguais no direito. As

cidades são, portanto, uma revolução, porque, como já se disse, sua

aparência torna os homens livres e iguais, mesmo que a realidade, com

frequência, permaneça longe do ideal (LE GOFF, 1998, p. 91).

É por essas e outras que os poetas árcades em pleno século XVIII vociferam contra a cidade, e tentam promover a qualquer custo uma volta a um estado primeiro, primitivo, que para eles é pleno e pacífico: a vida no campo, o bucolismo.

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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3 O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

Compreender como algumas manifestações literárias brasileiras

entenderam e se manifestaram a partir das relações da literatura com o

campo e com a cidade no ocidente.

Você já aprendeu que bucolismo é um termo utilizado para as-sinalar uma espécie de poesia pastoral, que exalta as belezas da vida no campo e a natureza, que descreve a vida permeada por costumes rurais. Essa exaltação da natureza é a característica principal do Arcadis-mo, uma escola literária surgida na Europa em meados do século XVIII numa referência direta à Arcádia. A região campestre do Peloponeso, na Grécia, nomeada Arcádia, aparece sempre como ideal de inspiração poética. E isto você também já sabe.

Geograficamente, a Arcádia é uma região e uma prefeitura da Gré-

cia, localizada na península do Peloponeso, ao sul do país (o nome re-

mete ao semideus Arcas, da mitologia grega, filho de Zeus e da ninfa

Calisto). Era uma região de pastores dados à música e à poesia. Sua

capital é a cidade de Tripolis. Mas, para a literatura (e esse dado é o

que mais nos interessa aqui) a Arcádia se transformou no nome de um

país imaginário, que foi descrito por diversos poetas e artistas, sobre

tudo do Renascimento e do Romantismo. Neste lugar utópico gover-

naria a felicidade, a vida simples e bucólica, em um lugar habitado

por pastores que vivem em comunhão com a natureza. Neste sentido

possui quase as mesmas conotações que o conceito de Utopia, como

vimos anteriormente. Assim, a Arcádia é apresentada como o resulta-

do espontâneo de um modo de vida natural, ainda não corrompido

pelo progresso. O termo também representa uma designação comum

a sociedades literárias dos séculos XVII-XVIII que cultivavam o classi-

cismo e cujos membros adotavam nomes de pastores na simbologia

poética. Fontes: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa; <http://

pt.wikipedia.org/wiki/Arc%C3%A1dia>. Acesso em: 26 mai. 2009.

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Estudos Literários II

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Um exemplo que vamos usar desta passagem da variação do con-traste entre o campo e a cidade é algo dos poetas árcades brasileiros. No Brasil, o movimento árcade toma forma a partir da segunda metade do século XVIII, principalmente a partir do surgimento das nossas cida-des e das suas respectivas modernizações, mesmo que ainda incipientes. Junto a isso, surgem os novos problemas trazidos pelos novos conglo-merados urbanos, que discutimos um pouco no item anterior. Os po-etas árcades promovem a primeira manifestação literária ligada à vida na Colônia, entre a metrópole colonizadora e a vida rural que se levava aqui, no Brasil. E no auge da Inconfidência Mineira, escolhem um ver-so de Virgílio, o poeta clássico e a referência maior da poesia bucólica, como lema: “libertas quae sera tamen”. Esta frase é retirada da primeira Bucólica de Virgílio. E se você não lembra, numa rápida pesquisa você vai encontrar este lema grafado na bandeira do estado de Minas Gerais.

Para estes poetas é a natureza que recupera uma cena aparente-mente mítica e ancestral, numa tentativa quase desesperada do resga-te dos sentimentos mais primitivos, que para eles foram corrompidos pela ideia de civilização, de progresso, pela mercadoria e pelas novas cenas urbanas. E aqui não podemos esquecer de indicar um caráter fun-damental nesta transformação: as perspectivas acerca do cotidiano, da vida doméstica, do dia-a-dia, da rotina, do hábito. A vida na cidade su-gere outra percepção, outra forma de comportamento, outro lugar de acesso a estes mesmos sentimentos primitivos e a um estado ameno e contemplativo da relação do homem com a natureza. Por isso, a tarefa

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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poética destes homens é simples: os poetas árcades queriam um ideal de vida comum, pleno, ou seja, idílico e bucólico, longe da agitação cita-dina que é a vida nas grandes cidades, porque a cidade assim se impõe.

Uma das perguntas que Jacques Le Goff se faz é: “Conseguiremos hoje reencontrar um tal ideal de comunidade urbana fraternal?” (LE GOFF, 1998, p. 91) E continua dizendo que foi a cidade medieval que reformou as nossas formas de vida e, podemos dizer, que a cidade refor-mulou as nossas formas de ser e estar no mundo, definitivamente.

Entre os mais importantes poetas árcades brasileiros encontramos os nomes de Tomás Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Ba-sílio da Gama. Assim, o que se segue é apenas um pequeno recorte de cada um deles para que isso possa nos ajudar a compreender como se deu a incorporação desse espaço natural, bucólico, de que estamos fa-lando, como uma espécie de resistência, no trabalho poético de cada um desses autores. É claro que fica o convite para que cada um de vocês pro-cure conhecer um pouco mais dos principais poetas árcades brasileiros, aqui apenas citados rapidamente.

Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810) nasceu em Porto (Portugal) em 1744 e faleceu em Moçambique, em 1819. Fez os primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas, em Salvador (BA), e formou-se em Direito na Universidade de Coimbra (Portugal) em 1768. Depois viveu em Vila Rica (Ouro Preto-MG), onde passou a conviver com intelectuais e poe-tas, como Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa e Cônego Luís Vieira. É o autor de Cartas Chilenas, poemas epistolares satíricos, de oposição ao governador Luís da Cunha Meneses, que circularam em manuscritos anônimos na cidade, em 1786. Em 1792 foi publicada a primeira parte de sua obra poética Marília de Dirceu, em Lisboa (Portu-gal). Participou ativamente na Inconfidência Mineira em 1789. A poesia de Tomás Antonio Gonzaga apresenta as típicas características árcades e neoclássicas: o pastoril, o bucólico, a Natureza amena, o equilíbrio, a busca do locus amoenus etc.

Vejamos um trecho de Marília de Dirceu, da parte III, a Lira V, em que o poeta-pastor, o cantor-pastor, que se diz não ser um pastor gros-seiro, faz uso de um discurso próximo ao de Virgílio, com o recurso das mitologias de origem e da paisagem bucólica para cantar o seu amor e

Autor de Marília de Dirceu e Cartas

Chilenas

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Estudos Literários II

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a sua aventura de seguir os deuses em busca desse amor e de uma vida feliz com ele cercado das sombras de um lugar tranquilo:

Lira V

Eu não sou, minha Nise, pegureiro,

que viva de guardar alheio gado;

nem sou pastor grosseiro,

dos frios gelos e do Sol queimado,

que veste as pardas lãs do seu cordeiro.

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

A Cresso não igualo no tesouro;

mas deu-me a sorte com que honrado viva.

Não cinjo coroa d’ouro;

mas Povos mando, e na testa altiva

verdeja a Coroa do Sagrado Louro.

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

Maldito seja aquele, que só trata

de contar, escondido, a vil riqueza,

que, cego, se arrebata

em buscar nos Avós a vã nobreza,

com que aos mais homens, seus iguais, abata.

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

As fortunas, que em torno de mim vejo,

por falsos bens, que enganam, não reputo;

mas antes mais desejo:

não para me voltar soberbo em bruto,

por ver-me grande, quando a mão te beijo.

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

Pela Ninfa, que jaz vertida em Louro,

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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o grande Deus Apolo não delira?

Jove, mudado em Touro

e já mudado em velha não suspira?

Seguir aos Deuses nunca foi desdouro.

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

Pretendam Anibais honrar a História,

e cinjam com a mão, de sangue cheia,

os louros da vitória;

eu revolvo os teus dons na minha idéia:

só dons que vêm do céu são minha glória

Graças, ó Nise bela,

graças à minha Estrela!

Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) nasceu em Vargem do Ita-colomi (hoje Mariana-MG), em 5 de junho de 1729 e morreu em Vila Rica, em 4 de julho de 1789, foi um jurista e poeta luso-brasileiro. Tor-nou-se conhecido principalmente pela sua obra poética e pelo seu en-volvimento na Inconfidência Mineira. Contudo, foi também advogado de prestígio, fazendeiro abastado, cidadão ilustre, pensador de mente aberta e mecenas de Aleijadinho.

Segue um soneto de Cláudio Manuel da Costa. Nele você pode notar todo o tema pastoril vinculado à vida no campo como um contraponto à vida civil, na cidade. A vida no campo como uma ventura, uma riqueza de sentimentos, tomada por um ar mais nobre, mais perto da vida feliz. O poeta deixa claro que quem abandona o campo ou desconhece o rosto da violência ou nunca provou um retiro da alma pacificada:

Quem deixa o trato pastoril, amado,

Pela ingrata, civil correspondência,

Ou desconhece o rosto da violência,

Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos, trasladado

No gênio do Pastor, o da inocência!

Autor de Labirinto de amor (1753),

Numerosos harmônicos (1753), Obras

Poéticas (1768), Vila Rica (1773) etc.

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E que mal é no trato, e na aparência

Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira Amor sinceridade;

Aqui sempre a traição seu rosto encobre;

Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna que soçobre;

Aqui quanto se observa é variedade:

Oh! ventura do rico! oh! bem do pobre!

Basílio da Gama (1741-1795) nasceu em São João del-Rei, em 1740, e morreu em Lisboa, em 1795. Filho de pai português e mãe brasileira. Ficou órfão e foi para o Rio de Janeiro. Entrou para a Companhia de Jesus em 1757. Dois anos depois, a ordem foi expulsa do Brasil e o poeta foi para Portugal e depois para Roma, onde foi admitido na Arcádia Romana.

Um dos trechos mais bonitos do poema de Basílio da Gama é A morte de Lindóia. E em todo o trecho você pode notar a descrição da paisagem natural como um lugar e uma atmosfera fecunda para a cena que se passa toda no campo:

A morte de Lindóia

Um frio susto corre pelas veias

De Caitutu que deixa os seus no campo;

E a irmã por entre as sombras do arvoredo

Busca com a vista, e treme de encontrá-la.

Entram enfim na mais remota, e interna

Parte de antigo bosque, escuro e negro,

Onde, ao pé duma lapa cavernosa,

Cobre uma rouca fonte, que murmura,

Curva latada e jasmins e rosas.

Este lugar delicioso e triste,

Cansada de viver, tinha escolhido

Para morrer a mísera Lindóia.

Lá reclinada, como que dormia,

Autor de O Uraguai, de 1769, que trata

da guerra movida por Portugal aos

índios das missões do Rio Grande do

Sul (Sete Povos das Missões).

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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Na branda relva e nas mimosas flores,

Tinha a face na mão e a mão no tronco

Dum fúnebre cipreste, que espalhava

Melancólica sombra. Mais de perto

Descobrem que se enrola no seu corpo

Verde serpente, e lhe passeia e cinge

Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.

Fogem de a ver assim sobressaltados

E param cheios de temor ao longe;

E nem se atrevem a chamá-la e temem

Que desperte assustada e irrite o monstro,

E fuja, e apresse no fugir a morte.

Porém o destro Caitutu, que treme

Do perigo da irmã, sem mais demora

Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes

Soltar o tiro, e vacilou três vezes

Entre a ira e o temor. Enfim sacode

O arco e faz voar a aguda seta,

Que toca o peito de Lindóia e fere

A serpente na testa, e a boca e os dentes

Deixou cravados no vizinho tronco.

Açoita o campo com a ligeira cauda

O irado monstro, e em tortuosos giros

Se enrosca no cipreste, e verte envolto

Em negro sangue o lívido veneno.

Leva nos braços a infeliz Lindóia

O desgraçado irmão, que ao despertá-la

Conhece, com que dor! no frio rosto

Os sinais do veneno, e vê ferido

Pelo dente sutil o brando peito.

Os olhos, em que Amor reinava, um dia,

Cheios de morte; e muda aquela língua,

Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes

Contou a larga história de seus males.

Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,

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Estudos Literários II

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E rompe em profundíssimos suspiros,

Lendo na testa da fronteira gruta

De sua mão já trêmula gravado

O alheio crime, e a voluntária morte.

E por todas as partes repetido

O suspirado nome de Cacambo.

Inda conserva o pálido semblante

Um não sei quê de magoado, e triste,

Que os corações mais duros enternece.

Tanto era bela no seu rosto a morte!

Como já vimos, a principal característica desta escola é a exaltação da natureza e de tudo o que pode estar ligado a ela. É por essa razão que muitos poetas ligados ao arcadismo adotaram pseudônimos de pastores gregos ou latinos. O arcadismo, também chamado de setecentismo (do século XVIII, ou os “anos de 1700”) ou neoclassicismo é o período que caracteriza principalmente a segunda metade do século XVIII, tingin-do as artes de uma nova tonalidade burguesa. A primeira metade do século XVIII marcou a decadência do pensamento barroco – ou seja, a abundância de ornatos, a ousada elaboração formal, o uso de recursos retóricos tais como alegorias e metáforas, e os jogos de palavras, que eram reflexos da estética pertencente à Contra-Reforma católica –, para a qual colaboraram vários fatores: a burguesia ascendente, voltada para as questões mundanas, passou a deixar em segundo plano a religiosida-de que permeava o pensamento barroco; além disso, o exagero da ex-pressão barroca havia cansado o público, e a chamada arte cortesã, que se desenvolvera desde a Renascença, atingia um estágio estacionário e apresentava sinais de declínio, perdendo terreno para a arte burguesa, marcada pelo subjetivismo. Surgiram, então, as primeiras arcádias que passaram a cultivar o classissismo, na busca pela pureza e pela simplici-dade das formas clássicas.

Duas passagens de Arnold Hauser podem ilustrar bem as questões do bucolismo para concluirmos esta parte de nosso estudo. Na primeira, diz ele sobre as pinturas de Antoine Watteau (1686-1721) , um pintor apaixonado pelo espetáculo da vida campesina e que se desdobrou para fazer jus ao lugar de um camponês entre os nobres; Watteau pintava Antoine Watteau (1686-1721)

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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aquilo que ele chamava de Fête Galante, uma reunião, festa campestre, que representava o divertimento da vida serena e despreocupada que se pode ter no campo, porém, Watteau os pintava com trajes elegantes e sofisticados, longe da vida da cidade e tocados por um ambiente natural:

O elemento predominante da fête galante, que é sempre uma festi-

va reunião campestre e retrata os divertimentos de jovens que levam

uma vida despreocupada de pastores e pastores na linha de Teócrito,

em meio à música, danças e cantos, é o bucólico. Descreve a paz dos

campos, o abrigo seguro do grande mundo e a generosa felicidade dos

apaixonados. Já não se trata, porém, do ideal de uma vida idílica, frugal

e contemplativa que o artista tem no espírito, mas o ideal arcádico da

identidade entre natureza e civilização, beleza e espiritualidade, sensu-

alidade e inteligência. Esse ideal nada tem de novidade, é claro; trata-

se meramente de uma variação em torno da fórmula dos poetas do

Império Romano, que combinavam a lenda da Idade do Ouro com a

idéia pastoral. A única novidade, em confronto com a versão romana, é

que o mundo bucólico se apresenta sob o disfarce dos costumes pecu-

liares de uma sociedade requintada, os pastores e pastoras vestem os

elegantes trajes da época, e tudo o que resta da situação pastoril são as

conversas dos amantes, a ambientação natural e o distanciamento da

vida da corte e da cidade (HAUSER, 2003, p. 511-512).

Jovens Casais com Guitarra e Pastor

Procure ver mais imagens das fête galante, de Antoine Watteau. É im-

portante para ampliar o seu conhecimento das expressões literárias

acerca do campo.

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Estudos Literários II

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A segunda passagem problematiza a situação bucólica e a relação desta situação com a poesia pastoril e a com as pinturas de Watteau, recupera o começo a partir de Teócrito e nos lembra do quanto era im-portante para estes artistas uma reprodução aproximada da realidade da vida no campo. Esta passagem serve como nossa reflexão final, mas muito mais para que você possa pensar nos desdobramentos desta va-riante de expressões que são a pauta deste modo de uso da literatura e da arte a partir da vida no campo:

A situação bucólica em si constituía sempre mero pretexto, nunca o ob-

jetivo real da representação, a qual, em conseqüência, tinha sempre um

caráter mais ou menos alegórico, nunca simbólico. Em outras palavras, a

poesia pastoril tinha um propósito perfeitamente claro, que comportava

uma única interpretação válida. Esgotava-se imediatamente, não guarda-

va segredos e resultava, mesmo num poeta como Teócrito, num quadro

algo indiferenciado, embora extraordinariamente atraente, da realidade.

Nunca pôde superar as limitações da alegoria e permaneceu frívola, jovial,

carente de tensão e profundidade. Watteau é o primeiro a conseguir em-

prestar-lhe profundidade simbólica, e fá-lo, sobretudo, excluindo da tela

todos aqueles elementos que não podem ser também concebidos como

uma simples e direta reprodução da realidade (HAUSER, 2003, p. 518).

Alguns termos e expressões importantes do bucolismo e do ar-cadismo:

Ӄ fugere urbem (fuga da cidade);

Ӄ locus amoenus (lugar aprazível, ameno);

Ӄ aurea mediocritas (mediocridade áurea - simboliza a valoriza-ção das coisas cotidianas focalizadas pela razão);

Ӄ inutilia truncat (cortar o inútil - eliminar o rebuscamento barroco);

Ӄ carpe diem (aproveite o dia);

Ӄ Pseudônimos pastoris (fingimento poético para não revelar sua identidade)

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Capítulo 03O campo e a cidade: o Arcadismo no Brasil

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Leia mais!

MARX, Leo. A vida no campo e a era industrial. São Paulo: Melhora-mentos, 1976.

Este livro trata da passagem do que podemos chamar de formas de vida, do campo para a cidade, do espaço linear para o espaço fragmentado, do jardim aberto para a máquina impositiva. Não deixe de ler.

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Unidade BCidade

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Capítulo 04A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

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4 A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

Perceber as transformações trazidas pela cidade moderna para o homem

que a habita – as formas de vida –, e como estas novas formas de vida sugerem

novas estruturas de texto, novas maneiras e outros desdobramentos para a

literatura.

Agora, num salto, vamos começar a pensar os contrastes entre o campo e a cidade a partir de todo o advento da cidade moderna que se configura definitivamente durante o século XIX. O campo deixa de ser um lugar de acesso à vida tranquila e o homem se mostra fascinado com a vida na cidade, com a cidade e suas artificialidades, suas possibilidades e suas novas formas de vida e de linguagem. Aqui, perceberemos as mu-danças de tom e as variações de uso da palavra, a literatura passa a ser outra porque passa a seguir de muito perto as interferências deste novo espaço de convivência. Assim, a imagem mais comum para representar a cidade moderna é a do trem invadindo uma estação, o trem com todos os seus entornos de barulho e solavanco numa velocidade impressio-nante aos olhos dos homens, os passantes da cidade.

Se ampliarmos nosso olhar sobre esta imagem, para que possamos entender um pouco de nossas relações com a cidade moderna e seus artifícios, com um misto de nossos fascínios e de nossos sobressaltos, ficamos diante de outro elemento encantador ao homem da cidade mo-derna: a multidão. Esta multidão, como a que espera na estação, é a que está sempre de passagem, ela é constituída de passantes, de transeuntes, dos homens que andam pela rua num vai e vem incessante. E ao mes-mo tempo em que esta multidão parece rejeitar as máquinas modernas, como o trem, ela também procura se aproximar para adentrar cada uma delas, como no caso dos vagões de passageiros. Aos poucos, enquanto o pensamento se move atrás de um lugar para entender estes novos move-res, a multidão procura adaptar seus corpos à máquina, confortando-os por dentro da medida paradoxal do como é que é isso de se adequar, de se ajustar, de se moldar à máquina. Tudo isso para encontrar algum

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Estudos Literários II

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equilíbrio entre o homem e o aparelho, entre a nossa condição humana e a dimensão de prótese que passamos a ter e a ser em relação à máqui-na. É um remanejamento social, uma “deportação da atenção, do face a face humano, do contato urbano, para a interface homem / máquina.”, diz Paul Virilio (VIRILIO, 1999, p.12).

O pensador francês Paul Virilio diz também que a rapidez dos des-locamentos ferroviários provoca na multidão um “tempo quase parado, um tempo que para eles passa com desesperadora lentidão, afetando-os com uma marcha lenta psicomotora que evita com que eles se movam por si mesmos” (VIRILIO, 1999, p. 74). É esta imagem do trem chegan-do à estação (capturada pelas câmeras do invento que mais impressio-nou o homem da cidade moderna, o cinematógrafo, o cinema) que vai mudar de vez as relações do homem com o espaço da cidade. Imagine então que esta imagem exposta pela primeira vez numa grande tela pla-na se impondo sobre olhos assustados não faz outra coisa senão quebrar bem no meio a noção da perspectiva clássica do espaço. E aqui, começa-mos a tentar entender o que isto a que chamamos de cidade moderna e de quantas formas a literatura pode manifestar a partir dela.

Paul Virilio nasceu em Paris em 1932, de pai italiano, refugiado político, e de mãe bretã. Arquiteto, urbanista e filósofo, ex-diretor da Escola de Arquitetura de Paris, Virilio se destaca como um dos princi-pais críticos sobre os meios de comunicação, a “guerra da informação” e o mundo virtualizado. Nos últimos anos, Paul Virilio vem se sobres-saindo como uma voz descrente, que define a era da informática como algo perigoso, que nos leva à perda da noção da realidade, quebrando distâncias e territorialidades, alterando as relações dos indivíduos com a natureza etc. Publicou no Brasil, entre outros, O Espaço Crítico (1993), Velocidade e política (1996), A bomba informática (1999), Estratégia da decepção (2000), Guerra e Cinema (2005).

Vamos, então, tentar entender esta imagem do cinema: uma ima-gem que surge abruptamente nessa tela plana e vem crescendo em dire-ção aos olhares fantasmáticos da multidão estupefata, rompendo tam-bém toda a noção de tempo que se tinha até então. A imagem vem sem se desviar de seu eixo imaginário, vem de frente, com força, como uma manada de elefantes ou bois selvagens, desgovernada; vem em direção

Paul Virilio

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Capítulo 04A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

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a esta massa de gente, esta multidão (agora composta de outro nome: espectadores) fica entre assustada e fascinada e se esforça para tentar adaptar-se a esse outro aparelho e a essa outra dimensão do espaço que não é mais apenas o trem, mas uma ilusão do trem provocada pelas imagens do cinema.

O cinema é, naquele momento, uma convergência entre o mecâ-nico e o orgânico, entre as características da noção de ambiente e as perturbações na percepção e no conhecimento do tempo e do espaço, muda nosso modo de ver a história e provoca de fato uma sensação de perigo e de vertigem na linguagem que conhecemos até então e sua ca-pacidade de representação. Uma linguagem que oscila entre o que seria um peso e o que seria uma leveza dos objetos no espaço do mundo, como a nossa experiência da inércia e da aceleração do mais ordinário e precário da vida nas grandes cidades: o cotidiano, a rua, o passante.

Desta forma você pode começar a entender que com tantas mu-danças, tão rápidas, trazidas pela cidade moderna, a literatura aparece também – obviamente – de uma outra maneira. E são tantas as maneiras de que ela se manifesta que vamos tentar passear agora por alguns pon-tos importantes e quase fundamentais dessas manifestações. A literatura tenta acompanhar as novas sintaxes trazidas pela cidade moderna, uma sintaxe urbana, quebrando com algumas regras e impondo outras su-gestões de ação com a palavra, mais livres, mais velozes, mais perto da experiência do homem nas grandes cidades.

Paul Virilio nos diz ainda um pouco mais sobre a cidade, numa entrevista para um documentário intitulado América, de 1989, com di-reção de João Moreira Salles:

Toda a organização da história passada das cidades, e também das

sociedades, baseou-se no privilégio do tempo longo, sobrepujando o

tempo curto. O tempo curto não era levado em consideração, era frá-

gil, provisório, incerto. Hoje há uma inversão radical. O tempo curto e

ultracurto, o tempo real, o tempo da imediação é privilegiado, contra-

riamente ao tempo longo. [...] A arquitetura, por exemplo, não foi feita

para edificar a instantaneidade. Ela foi feita para a longa duração. Eis a

expressão da crise estética arquitetural diante do advento daquilo que

chamo de tele-realidade, isto é, a substituição da janela, um elemento

determinante da arquitetura, pela tela (AMéRICA, 1989).

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Estudos Literários II

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Mais adiante, na mesma entrevista, Virilio diz ainda que “a cidade era o que aproximava os homens”, e que foi para isso que elas foram feitas. No campo, as pessoas estavam separadas. É na cidade, e dá como exemplo Atenas e Esparta, que as pessoas se reuniram primeiro, mesmo que para combater. Daí, depois, a praça pública, as estações, o perímetro urbano etc., enfim, todos lugares de encontro, de troca de experiências, mesmo quando apenas cumprindo rituais da passagem do transeunte, do passante. Mas, com as novas tecnologias a cidade passa a ter uma função totalmente oposta, ela se parte. É que provavelmente, diz Virilio, “há algo nascendo que vai ultrapassar a forma urbana”, ao menos da for-ma que conhecemos. É o que podemos pensar como o fim da geografia, e o surgimento do que ele chama de cronogeografias. Diz ele:

O espaço é o que impede que tudo ocupe o mesmo lugar. Ora, o espa-

ço que impedia que tudo ocupasse o mesmo lugar não existe mais, na

verdade, já que nossa época é aquela em que o tempo real se mostra

superior ao espaço real. A era da geografia é a era do espaço real, a era

das regiões, do centro e da periferia. Hoje em dia, somos todos hiper-

centrados, egocentrados, girando em torno de nossas atividades e nos-

sas técnicas. E o que resta nas margens de tal centralização? Um mundo

que caminha para o no man’s land – a terra de ninguém (América, 1989).

O crítico G. M. Hyde, por sua vez, num texto intitulado A Poesia da Cidade, afirma que na segunda metade do século XIX a cidade era intrinsecamente não-poética, mas ao mesmo tempo era também intrin-secamente o material mais poético dentre todos ao que se tinha acesso naquele momento. O que nos faz entender que poético não era mais o campo, ou apenas o campo, a vida do homem a partir do surgimento de tantas transformações se modificara para sempre. A cidade moderna é plural, é múltilpla, é uma variante de coisas, sentidos, gentes etc. E tudo começa com o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867, Paris), ele e a sua poesia são o nosso ponto de partida agora.

O poema mais célebre de Charles Baudelaire sobre estas questões da cidade diz exatamente do passante na figura de uma mulher. É ela, a pas-sante, a nossa outra imagem de representação da cidade que a literatura apresenta. Ele dedica a ela o seu poema e diz do quanto a vida na cida-de é passageira, fugaz, rápida, sem tempo e noutra dimensão do espaço. O poema é intitulado A uma passante, e tem como cenário a Paris do

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Capítulo 04A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

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século XIX. O poema ilustra um novo olhar que se dá diante do agigan-tamento das cidades, da vulnerabilidade das relações estabelecidas com o outro, do individualismo, do acaso, da pressa entre outras impressões.

Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 1821-1867) foi um poeta e teórico da arte. É considerado um dos precursores do Simbolismo, um estilo li-terário (teatro e artes plásticas) que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao Realismo e ao Naturalismo. Em 1857 lança o livro Les fleurs du mal (As flores do mal), considerado a maior referência para a poesia moderna e simbolista. O livro, composto por 100 poemas, foi fortemente acusado pelo poder público de ferir a moral pública. Os exemplares foram censurados e, depois, seis poemas tiveram de ser su-primidos da publicação.

A mais nova experiência moderna nas cidades, uma multidão em desvario absoluto, indiferente a quem passa ao lado, as novas fisiono-mias e novas formas de vida e convivência, o olhar vago e distraído que se lança no espaço e se perde em meio a outros tantos olhares aturdidos, milhares deles, e também extremamente aterrorizados e angustiados diante do fenômeno moderno, do “monstro” urbano: a cidade e seus tentáculos. Charles Baudelaire retrata uma nova forma de experiência, a do tempo efêmero, passageiro: a da efemeridade do encontro e das relações pessoais de uma multidão que se acotovela, reagindo, como em pequenos choques, ao outro que lhe é completamente estranho e lon-gínquo, o olhar em trânsito no ritmo frenético das ruas, num tempo que ruge e urge nesta nascente modernidade. A cidade é a metáfora, diz G. M. Hyde, a única metáfora adequada com a qual podem se expressar os novos problemas relacionais.

E Baudelaire nos coloca diante do homem fragmentado por um tempo voraz, único, veloz demais, numa linguagem corrente para se fa-zer ouvir. É o poeta tentando ainda existir no mundo reformado, impu-ro e contaminado pela metrópole e suas conurbações. Vejamos o poema de Baudelaire numa tradução feita por Ivan Junqueira:

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,

Charle Pierre Baudelaire (1821 - 1867)

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Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.

Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia

No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,

A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade

Cujos olhos me fazem nascer outra vez,

Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!

Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,

Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

(BAUDELAIRE, 1985, p. 345)

Apesar de falar de amor, o poema fala também sobre o desencon-tro, o amor impossível no encontro que se dá na rua, este lugar público, mas tão vazio e sempre de passagem. O rápido contato com uma “efê-mera beldade” e a crise de um encontro inacabado, impossível talvez de se repetir senão na eternidade. Baudelaire refere-se a uma multidão anônima, atarefada, que pode ser qualquer homem ou mulher na sua condição de passante, com o seu olhar vertiginoso, superficial, confina-do em sua consciência e no tempo de sua percepção. Temos a rua, então, o espaço público, não apenas como um lugar de encontros efêmeros, mas como um lugar onde também se dão as inúmeras perdas de nossa vida. Um destino que não se cumpre, olhares que não se entrecruzam, amores que não se dão, verdadeiras histórias que passam em branco. Verdadeiros vazios: “Nunca talvez”, “Tarde demais”.

Esta ideia de uma multidão atarefada vem de um outro poema de Charles Baudelaire, desta vez num poema em prosa e não mais num so-neto. O poeta começa a entender que o verso metrificado, clássico, não dá conta dos movimentos de um espaço tão acelerado quanto a cidade e por isso começa uma procura para uma outra forma de expressão possí-

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Capítulo 04A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

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vel para o verso. Daí, o poema em prosa, o poema também contaminado pela fala prosaica, da rua, do homem que habita a rua como seu lugar de experiência poética.

Este poema em prosa de Baudelaire que vamos conhecer agora tem como título o elemento que mais fascinava a ele e de onde ele tira a sua passante, a multidão. Ele escreve o título no plural: As Multidões. No poe-ma, ele elabora os seus dois conceitos mais interessantes: solidão povoada (quanto maior o tamanho da cidade e da quantidade de sua população maior o tamanho de nossa solidão) e multidão atarefada (porque a gente de uma cidade é preocupada com seus ofícios e tarefas, todo mundo cor-re em direção às suas ocupações, não há muito tempo para dedicar a si e aos outros). Baudelaire descobre que a multidão, de fato, significa solidão agora para o homem habitante da grande cidade. Segue, abaixo, o poema numa tradução feita por Antonio Pinheiro Guimarães:

As Multidões

Nem a todos é dado o prazer de tomar um banho de multidões; gozar

a turba é uma arte; e só pode fazer um festim de vitalidade à custa do

gênero humano aquele a quem uma fada insuflou no berço e no gosto

do disfarce e da máscara, o ódio ao domicílio e a paixão pelas viagens.

Multidão, solidão: termos iguais e transmutáveis para o poeta ativo e fe-

cundo. Quem não sabe povoar a sua própria solidão, também não sabe

estar no meio duma turbamulta afadigada.

O poeta goza do incomparável privilégio de poder à sua vontade ser

ele próprio ou outra pessoa. Como as almas errantes que procuram um

corpo, insere-se, quando lhe apraz, na personagem de cada um. Para ele

só, tudo está de vago; e se certos lugares parecem estar-lhe vedados, é

que a seus olhos não valem a pena visitar-se.

O passante e solitário e pensativo extrai uma singular bebedeira desta

comunhão universal. Aquele que se casa facilmente com a multidão,

conhece os prazeres febris de que ficarão privados o egoísta, fechado

como um cofre, e o preguiçoso, recolhido como um molusco. Adapta

como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que

as circunstâncias lhe apresentam.

Aquilo a que chamam amor é bem pequeno, bem restrito, e bem fraco,

comparado à inefável orgia, à santa prostituição da alma que se dá toda

inteira, em poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desco-

nhecido que passa.

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é bom ensinar por vezes aos felizes deste mundo, nem que seja só para

os humilhar um instante no seu estúpido orgulho, que há felicidades

superiores às deles, mais vastas e mais delicadas. Os fundadores de co-

lônias, os pastores de povos, os padres missionários exilados no fim do

mundo, conhecem sem dúvida qualquer coisa destas misteriosas ebrie-

dades; e, no seio da vasta família que o seu gênio constituiu, devem rir-

se algumas vezes daqueles que os lamentam pela sina tão revolta e pela

vida tão casta (BAUDELAIRE, 1991, p. 35).

Baudelaire é poeta que sonha com a modernidade e tenta ainda ex-trair da cidade, que é a personagem principal de seus poemas, um certo lirismo e ainda um olhar terno em conflito com a paisagem que salta aos olhos e se fixa, agora, na retina; uma paisagem que está longe e fora do campo, que não diz mais nada do campo. Fisionomista da cidade, o po-eta mergulha na dialética de uma imagem urbana que mescla índices do passado, as ruínas, com os novos elementos, as edificações modernas, numa outra configuração da paisagem.

E é importante que procuremos saber sobre estas cidades do século XIX: Paris, Londres, Berlim, Viena entre outras. São as chamadas cida-des cosmopolitas. Se fizer uma pesquisa, você vai encontrar muitos poe-tas que disseram de suas cidades. Como nos casos brasileiros de Manuel Bandeira com a sua Recife e Mário de Andrade com a sua São Paulo. Como o poeta americano T.S. Eliot, que se mudou para Londres e es-creveu poemas fascinados com a vida nesta cidade. Como o poeta russo Vladimir Maiakovski com a sua São Petersburgo. E são tantos e tantos. E isto fica a cargo de sua pesquisa: procurar mais poetas e escritores que disseram de suas cidades ou das cidades que escolheram para viver ou apenas para transformar em assunto de seus poemas e textos.

No caso de Baudelaire, como estamos vendo, a sua cidade é a gran-de e bela Paris do século XIX, das revoluções industriais, dos “progres-sos”, das reformas urbanísticas do prefeito Haussmann, de largas e reti-líneas avenidas e amplos passeios públicos. É esta Paris que vamos usar como exemplo para entendermos as relações do homem com a vida nas grandes cidades e sua manifestação literária.

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Capítulo 04A cidade moderna, o século XIX de Charles Baudelaire

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Georges-Eugène Haussmann (Paris, 1809-1891), também conhe-cido como Barão Haussmann - o “artista demolidor”, foi um advoga-do, funcionário público, político e administrador francês. Foi nomeado prefeito de Paris (do antigo departamento do Sena) por Napoleão III, período em que Paris tornou-se a cidade mais imponente da Europa. Haussmann foi encarregado de modernizar Paris e passou a ser o seu grande remodelador, cuidando do seu planejamento por 17 anos. Tor-nou-se muito conhecido na história do urbanismo e das cidades porque conseguiu planejar uma nova cidade, modificando parques parisienses e criando outros, construindo vários edifícios públicos, demolindo as antigas ruas, pequenos comércios e moradias da cidade e criando uma capital ordenada sobre a geometria de grandes avenidas e bulevares.

A Paris de Baudelaire é pois a cidade dos boulevards, a maior re-presentação da burguesia capitalista e vaidosa, os quais se apresentavam como vias de circulação de pessoas e produtos, vitrinas onde a moda passa e onde são lançadas as sementes de uma nova era – a da mercado-ria como fetiche, uma experiência que seria vivida, em sua excelência, no século XXI, principalmente no interior dos shoppings centers. Como descreve Annateresa Fabris, “o boulevard parisiense representava uma burguesia dinâmica e um estado ativo, que desenvolvem novas forças produtivas e novas relações sociais” (FABRIS, 2000, p.27).

Perceba que um outro elemento importante da cidade que vai afe-tar diretamente a literatura é a mercadoria, porque a mercadoria vai afe-tar todas as formas de vida a partir do século XIX.

Inicia-se, assim, uma profunda reflexão sobre o culto às aparências, à exibição, à solidão causada pelas relações efêmeras e passageiras com o outro e com a mercadoria. O tempo uniforme começa a se dissolver diante do imperativo da velocidade sem limites da vida moderna, do “novo” em detrimento de todo um passado e uma memória histórica, da perda de nossas referências mais sólidas. Os grandes passeios e as largas avenidas impelem um movimento frenético, e instauram-se, definitiva-mente, como lugares de passagem: as estações de trem, a praça pública, o mercado, as galerias, as ruas, os bulevares, as calçadas etc.

Georges-Eugène Haussmann

(1809 - 1891)

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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5 Poesia e processos de emergência e de modernização

Entender como a poesia se mobiliza e aparece dentro dos processos de

modernização da cidade, da vida nas cidades.

O progresso e o ideal embelezador perseguidos por Haussmann deixavam marcas irreparáveis na paisagem urbana: fendas profundas, espaços de desesperança, ruínas e um doloroso aniquilamento de uma tradição cultural. Esta cidade, ao mesmo tempo em que desperta fascí-nio, desperta também no seu habitante uma melancolia extrema, o sen-timento de incompletude que se registra na outra subjetividade quase suprimida do homem moderno. O homem começa a entender que o progresso é também excludente, que ele expulsa do centro da cidade a população mais pobre, deslocando-a para a periferia, onde se instala-vam as unidades dos trabalhadores das fábricas, estes mesmos trabalha-dores que abriam os caminhos e os belos acessos, largos e caprichados, para o trânsito da burguesia.

Esta transfiguração do espaço moderno apresenta-se muito clara-mente na poesia de Charles Baudelaire, como já vimos nos dois exemplos do capítulo anterior. Um outro exemplo dessas questões é o poema O Cis-ne, que revela a cidade de Paris através de suas ruínas. O olhar do poeta aqui é melancólico diante de uma Paris que mudou, de uma multidão desesperançada e assustada diante da destruição, dos destroços de um tempo outro, da “lembrança antiga que ressoa infinda”, do olhar perdido sem as referências de outrora. “Alguém que perdeu o que o tempo não traz. Nunca mais”. Pode uma lembrança doer? Pois, no poema de Baude-laire, você vai notar que as lembranças doem na medida em que denotam o próprio esfacelamento do indivíduo, da nossa memória, da perda de nossas identidades. Lembranças que “pesam mais do que rochedos” sobre o novo indivíduo moderno. Vejamos um pequeno trecho desse poema:

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Estudos Literários II

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Fecundou-me de súbito a fértil memória,

Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história

Depressa muda mais que um coração infiel);

Só na lembrança vejo esse campo de tendas,

Capitéis e cornijas de esboço indeciso,

A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,

E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.

[...]

Paris muda! Mais nada em minha nostalgia

Mudou! Novos palácios, andaimes, lajedos,

Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,

E essas lembranças pesam mais do que rochedos

(BAUDELAIRE, 1985, p. 327-9).

O pensador alemão Walter Benjamin, baseando-se na obra de Bau-delaire, diz que a cidade traz uma experiência “gravada no íntimo do su-jeito” a partir de uma “ruptura” em relação ao passado e uma experiência subordinada a tudo o que parece ser novidade, uma redefinição dos mitos e dos sonhos que compõem a essência da sociedade e que foram sinteti-zados pelo poeta quando descreveu as passagens parisienses, as galerias, a mercadoria exposta, os fetiches e, principalmente, o olhar poético do flanêur: que é um sujeito da multidão sempre tão atarefada que tenta atra-vessar a cidade distraidamente, cumprindo um percurso de observador, de apreciador das coisas da vida neste novo espaço. Não podemos nos esquecer que uma multidão é feita de indivíduos, quase sempre solitários.

Walter Benjamin (Berlim, 1892 - Portbou, 1940) foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas (Georg Lukács e Bertolt Brecht) como pelo místi-co judaico (Gershom Scholem). O seu trabalho, combinando idéias apa-rentemente antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui uma contribuição original para a teo-ria estética. Entre as suas obras mais conhecidas estão A obra de arte Walter Benjamin (1892 - 1940)

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) e a inacabada Paris, capital do século XIX. O seu ensaio A tarefa do tradutor também constitui uma referência para os estudos literários e de tradução.

Quanto mais este indivíduo amplia os seus sentidos na tentativa de sentir tudo o que acontece ao seu redor, para capturar um pouco da cidade, menos ele consegue apreender destas mesmas coisas em volta dele, tamanha é a confusão da vida que se movimenta nas ruas de uma grande cidade. São infinitas as formas e os elementos de uma grande cidade. E foi nessa cidade de Paris do século XIX, reorganizada a partir das reformas de Haussmann e tão descrita por Baudelaire em sua poe-sia, que se estabeleceu uma nova relação entre o homem e o espaço, a arquitetura e seu universo onírico.

Paris viu nascer o flanêur, esta personagem tão trabalhada por Bau-delaire, um sujeito da multidão e dos novos espaços urbanos. A cidade era a sua vida, o seu sustentáculo. Alimentava-se dela, vivia por ela. O flanêur encontra na multidão anônima a sua segurança, mas também a sua ruína. Nesse tempo, as transformações ainda se davam “lentamente”, a rua era o seu lugar de passagem e de encantamento, a velocidade vertiginosa da modernidade em sua excelência ainda não havia se concretizado em ave-nidas velozes, em cidades verticalizadas, condensadas e alucinantes.

O flanêur, ao mesmo tempo em que faz parte da nova configuração citadina, abstrai-se dela como em um sonho ou uma “embriaguez anes-tésica”. Conhece cada lugar, cada fisionomia e tem um interesse especial pelas ruínas, pelas histórias incrustadas nas ruas, nas esquinas. Não dei-xa de ser um olhar poético e ainda pouco contaminado sobre os espaços urbanos e suas várias personagens.

Nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet, o flanêur é: “Alegorista da

cidade, detentor de todas as significações urbanas, do saber inte-

gral da cidade, do seu perto e do seu longe, do seu presente e do

seu passado, reconhecendo-a sempre em seu verdadeiro rosto – um

rosto surrealista –, vendo em todos os momentos seu lado de pai-

sagem, em que ela é natureza, e seu lado de interior, em que ela é

quarto” (ROUANET, 1992, p. 50).

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Estudos Literários II

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A personagem de Baudelaire, o flâneur, que traduz todo o espírito moderno, era o verdadeiro detetive da cidade, envolto em suas tramas, seus mistérios e suas seduções. Sabia como agradá-la e como retirar dela a sua satisfação e seu gozo. Vivia em uma busca infindável por extrair da transitoriedade, do efêmero, o que há de eterno e imutável. No exercí-cio da flânerie, o homem tenta escapar da crise, da diluição de todas as suas referências e memórias, buscando no fugaz, na mais nova experi-ência moderna, a sua dimensão de sonho e de eternidade, na tentativa de registrar uma outra história para o seu tempo e de achar a si mesmo dentro da cidade. É na metrópole que o flanêur tenta capturar a beleza das coisas perdidas, deixadas ou esquecidas. Procura extrair da novida-de, da moda e das passagens um tempo incontável, inimaginável e rico em experiências, um pouco da eternidade que existe em cada momento.

Homem da multidão, em que os acasos marcam os encontros nos limites da urbe, da cidade, tem também um olhar de desespero que ful-mina estes novos espaços urbanos, vitrinas que compõem a paisagem em sua flânerie pela cidade, em seu ócio e em sua lascívia. O flanêur traz um pouco do Homem da multidão, conto do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), que Baudelaire tantas vezes traduziu. Este ho-mem desloca freneticamente o olhar sobre os espaços e as fisionomias, tem um caráter persecutório, seja de perseguidor ou de perseguido, e é um sujeito curioso e instável.

No conto de Poe, a sua personagem se detém durante horas sen-tada em um bar de Londres, outras destas grandes cidades modernas e cheias de nuanças interessantes. Este homem observa o movimento das ruas, os passantes, atento às mais diversas fisionomias que compunham a multidão em trânsito. Vejamos um pequeno trecho do conto que você deve procurar ler por inteiro:

Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e

pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as

sobrancelhas vincadas e seus olhos moviam-se rapidamente; quando

davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de

impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu cami-

nho (POE, 1958, p. 236).

Lembre que o livro de Raymond Williams que citamos na Unidade A

trata das relações entre o campo e a cidade na Inglaterra, então você

já sabe que é Londres o exemplo de grande cida-

de que Williams usa em seu livro.

Edgar Allan Poe (1809-1849)

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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Em certo momento, a imagem de um velho decrépito chama a sua atenção e o faz emergir de sua inércia e de sua afasia, colocando-se na condição de observador e de perseguidor do pobre ser enfraquecido e desgastado pelo passar do tempo. Depois de segui-lo por horas, de enve-redar-se pela rua e pela multidão indistinta, desiste. O velho decrépito, quando o fluxo da multidão diminui, procura sempre outras multidões para perder-se nelas. Busca inútil, pois, talvez, deste homem já se saiba tudo ou mesmo nada se saiba: corresponde ao habitante da multidão, aquele que recusa estar só e que “jamais se deixa ler”. Vejamos outro pequeno trecho:

[...] Senti-me singularmente exaltado, surpreendido, fascinado. ‘Que ex-

traordinária história – disse a mim mesmo – não estará escrita naquele

peito!’ Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob mi-

nhas vistas... de saber mais sobre ele.

[...] Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança.

Surpreendi-me ao ver, que, tendo completado o circuito da praça, ele

voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar.

[...] Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me

mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamen-

te o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto

eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este

velho – disse comigo, por fim – é o tipo e o gênio do crime profundo.

Recusa-se a estar só. É o homem da multidão” (POE, 1958, p. 239-243).

A flânerie é esta forma de experimentar a vida na cidade moderna. Um olhar sobre aquilo que se foi e sobre o fugaz, o transitório, o efêmero que entremeia todas as relações. Uma nova percepção de mundo gerada pela grandeza e pela complexidade de uma cidade “que sobe”, “que sobra para os lados”, que se redefine a cada instante e que se ergue contra a na-tureza, contra o mundo natural, numa espécie de vingança contra a vida campesina e aberta ao bucólico tão difundida nos séculos anteriores. A cidade é um novo olhar, uma resposta ao mundo natural, uma epopéia da velocidade, da urbanização desenfreada e autofágica. O habitante da cidade introjeta na rua o interior da sua residência, o seu espaço de influ-ência e de permanência. Sente-se em casa, nos seus passeios, na sua flâ-nerie pelas ruas, através das galerias. Perde-se na multidão indistinta, fei-to o velho decrépito de Poe, para, inutilmente, sentir-se menos sozinho.

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No entanto, o flanêur tende a desaparecer também através da mul-tidão que o constituiu. Essa multidão flutuante tornar-se-ia uma massa ávida e consumidora de valores e de mercadorias. O flanêur perde-se nas luzes do espetáculo que se anuncia, nos novos espaços de trânsito, no contingente da vida e das relações. O passante baudelairiano não resiste à luxúria, à futilidade e a toda beleza cambiante que os novos espaços despertam, principalmente aqueles que atualizam as galerias na contem-poraneidade: os nossos tão conhecidos e tão iguais Shoppings Centers.

A cidade, agora reordenada, transformada, com o seu novo fluxo, seus espaços de circulação, ampliados através das primeiras utilizações do ferro e do vidro, na construção de lugares de passagem, e através da ascensão do comércio têxtil, inaugura um outro momento, caracteriza-do pelo despertar para a mercadoria, luxuosamente exposta nas gale-rias, para o desejo e para o fetiche. A mercadoria concretiza a ansiedade do homem moderno pelo sempre “novo” e o seu repúdio a tudo aquilo que configura ainda uma estética antiga, campesina, bucólica.

Desta forma, as necessidades são revistas e reordenadas a partir das novas disponibilidades do mercado e da forma como esta mercadoria está exposta e sacralizada ante o olhar da multidão. Charles Baudelaire, em outro de seus poemas, chamado O convite à viagem, faz referência a esse caráter sagrado da mercadoria que chega de todos os lugares do mundo para agradar em abundância a burguesia, deixando-a em estado de graça pela sensação de domínio sobre os produtos mundiais e pela satisfação do desejo ou do “menor prazer”. A cidade agora é o mundo, tudo no mundo é cidade. E enquanto a cidade adormece, mercadorias de todas as partes são cuidadosamente movimentadas para alimentar o luxo, a beleza e o langor do homem moderno. Você pode ler em seguida o poema na tradução de Ivan Junqueira:

O convite à viagem

Minha doce irmã,

Pensa na manhã

Em que iremos, numa viagem,

Amar a valer,

Amar e morrer

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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No país que é a tua imagem!

Os sóis orvalhados

Desses céus nublados

Para mim guardam o encanto

Misterioso e cruel

Desse olhar infiel

Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,

Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,

Pelos tempos idos,

Decorariam o ambiente;

As mais raras flores

Misturando odores

A um âmbar fluido e envolvente,

Tetos inauditos,

Cristais infinitos,

Toda uma pompa oriental,

Tudo aí à alma

Falaria em calma

Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,

Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais

Dormir junto aos cais

Barcos de humor vagabundo;

é para atender

Teu menor prazer

Que eles vêm do fim do mundo.

— Os sangüíneos poentes

Banham as vertentes,

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Estudos Literários II

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Os canis, toda a cidade,

E em seu ouro os tece;

O mundo adormece

Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,

Luxo, beleza e langor.

(BAUDELAIRE, 1985, p. 237)

O espaço urbano, percebido segundo uma nova utilização somada à criatividade do homem moderno e ao emprego de novos materiais de construção, configurando um modelo arquitetônico original e espeta-cular, ganha um novo cenário, fantasmagórico e onírico, destinado ao trânsito, à exibição da burguesia capitalista e à exposição de suas mer-cadorias de luxo – as galerias. As galerias são as primas distantes dos nossos Shoppings Centers. Lugar passageiro e “atemporal”, as galerias surgem por volta de 1837 e materializam uma nova expressão de vida baseada na aparência e nos imperativos do mercado. Misto de rua e in-terior, “público” e “privado”, na galeria coexistem a natureza particular da burguesia e o universo característico da rua (BOLLE, 2000, p. 79). Surgidas entre ruínas e sucessivas transformações no espaço, as galerias se constituem como um lugar de culto das aparências e do divertimento, com as suas passagens cobertas de vidro e seus caminhos de mármore.

Por outro lado, a novidade das primeiras iluminações a gás esconde as luzes naturais da noite, evidenciando as personagens tipicamente no-turnas de uma “cidade-inferno”, “cidade-cabaré”, onde o homem moder-no se “fragmenta necessariamente”, mas que, paralelamente, proporcio-na à burguesia uma vida mais movimentada, protegida e agora também noturna, ao eliminar os resquícios de uma vida outrora privada. Desta forma, qualquer hora do dia ou da noite era hora de percorrer os cami-nhos das galerias e contemplar a majestosa exposição das mercadorias e de uma burguesia naturalmente exibicionista (FABRIS, 2000, p.72).

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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5.1 O Vidro e o Ferro

A utilização do vidro na construção das galerias do século XIX, por exemplo, marca o início da indistinção entre público e privado, entre o estar fora e o estar dentro. Materialidade transparente e imagética, o vidro intensifica sensações conflitantes como o estar na rua e o estar pro-tegido no interior da residência. O espaço parece tornar-se volátil e irreal frente ao olhar que o penetra, agora capaz de ver, através da matéria, uma realidade que se assemelha à fantasia. O vidro corresponde a essa subs-tância sólida, lisa e transparente, incapaz de afixar resquícios, armando novas marcas da passagem do tempo. Um material sem a natureza, uma janela das visualidades urbanas e modernas acontecendo em tempo real, o vidro evidencia a condição “atemporal” típica da modernidade, no seu esvaziamento de sentido e de memória, na sua efemeridade.

Não por acaso, o vidro, atualmente, compõe a paisagem dos shop-pings centers, das lojas e suas vitrinas. Uma idéia de proximidade, mas, por outro lado, de “inacessibilidade”, vencida apenas pelo ato da com-pra. A fantasmagoria do dentro/fora acrescida do desejo moderno in-contido de estar mais dentro do que nunca e adquirir o produto em exposição a qualquer custo. A vitrina e o seu rico universo imagético construído pelo vidro prometem tirar o homem do meio da massa, do anonimato e lhe conferir uma outra “identidade singular e distintiva” (BIGAL, 2001, p.10).

O ferro, por sua vez, além de representar o primeiro material arti-ficial a ser empregado na arquitetura da época, representa também um olhar nostálgico, que se volta ao passado através da sua utilização em construções marcadas por uma herança nitidamente clássica. Essa condi-ção ambígua de coexistência entre o novo e o antigo corresponde a mais uma fantasmagoria da modernidade, como aquela criada através do vidro nas suas relações de dentro/fora. Semelhante ao sonho, essa fantasma-goria é identificada por Walter Benjamin como fundamental para que o olhar possa compreender as relações e as transformações ocorridas na sociedade do seu tempo e no espaço em que ela interfere. Por outro lado, a sua primeira utilização sob a forma de trilhos de trem já sugeria a ideia de

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um lugar de impermanência, passageiro, onde nada se fixa e, desta forma, também um lugar onde não se constitui passado, nem história.

Nas passagens de Charles Fourier, a utopia típica da sociedade do século XIX mostra-se mais claramente. Com uma preocupação noto-riamente estética, Fourier idealiza ruas com vista sobre paisagens do campo ou monumentos, com o objetivo de tornar os passeios da bur-guesia menos monótonos e mais prazerosos. Sugere uma cidade inteira composta de galerias, uma cidade onírica onde todo o céu parecesse ser reproduzido artificialmente pelo vidro, como em uma brincadeira com espelhos. Uma cidade onde a natureza pudesse contemplar e dar diariamente as boas-vindas ao homem moderno que percorre os seus caminhos. Uma verdadeira cidade-jardim.

François Marie Charles Fourier (1772 – 1837) foi um socialista francês da primeira parte do século XIX, um dos pais do cooperativis-mo. Foi também um crítico ferrenho do capitalismo de sua época, da in-dustrialização, da civilização urbana, do liberalismo e da família basea-da no matrimônio e na monogamia. Em 1808, Fourier já argumentava abertamente em favor da igualdade de gênero entre homens e mulheres, apesar da palavra feminismo só ter surgido em 1837. Diante deste pa-norama Fourier propunha uma alternativa cooperativista: permitir com que as pessoas realizassem livremente suas inclinações ou paixões para que se produzisse um estado de equilíbrio entre todos, que ele chamou de harmonia. Como fundamento da tese de Fourier estava a possibilida-de de se estabelecer uma sociedade verdadeiramente justa, para a qual propôs a fundação de falanstérios (comunidades).

Mas, não seria esse ideário uma forma já disfarçada de exclusão social em nome do embelezamento promovido pelo homem moderno do século XIX? O repúdio pelas ruas e lugares essencialmente públicos, o projeto da criação de galerias em substituição a esses espaços expulsa a massa, os jovens e os meninos destes lugares, desviando-os para os interiores e provocando neles “um tédio enclausurado” (YÁZIGI, 2000, p. 311). Dessa forma, as diferenças são acentuadas e a sociedade começa a gerar os novos estranhos e vagabundos, excluídos da vida moderna e das regras que regem o mercado que a contemporaneidade tenta, inutil-mente, eliminar, punir, controlar e vigiar (BAUMAN, 1997).

Charles Fourier (1772 - 1837)

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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5.2 As Exposições Universais

São as Exposições Universais que, por sua vez, marcam o apogeu da mercadoria como objeto de desejo e de fetiche nas grandes cidades. Somadas às novas tecnologias, à ascensão de uma burguesia capitalista e à própria imagem fantasmagórica das galerias, as Exposições repre-sentam o centro de peregrinação da multidão e a maior materialização do poder da mercadoria. Templos do consumo, do exibicionismo e da diversão, as grandes Exposições representam o ápice do espírito capita-lista burguês, que sacraliza seus produtos e impõe a todos sua adoração. Exposta para ser adorada e consumida, a mercadoria passa a ser abri-gada e protegida por grandes cidades efêmeras, suntuosas e também sa-gradas, recorte em miniatura dos imperativos e das leis que agora regem a vida moderna, precursoras dos nossos grandes centros comerciais do século XXI, igualmente suntuosos e sagrados.

As Exposições Universais são precedidas pelas exposições nacio-nais da indústria no final do século XVIII, que objetivam, além de se estabelecer como centros da modernidade e do conhecimento huma-no ilimitado e cosmopolita, divertir as massas, ou melhor, fazer com que elas abstraiam o mal-estar e as inseguranças que foram despertados por causa do advento da industrialização e do progresso, criando uma nova dimensão mítica para o dia-a-dia do proletariado, transformar o trabalho em espetáculo. As Exposições contemplam o que mais tarde fi-cou conhecido como a indústria da diversão. Os trabalhadores ganham status de mercadoria entregues ao espetáculo e à sua própria alienação, como ilustra Walter Benjamin:

As exposições transfiguram o valor de troca das mercadorias. Criam uma

moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo pla-

no. Inauguram uma fantasmagoria a que o homem se entrega para se

distrair. A indústria de diversões facilita isso, elevando-o ao nível da mer-

cadoria. O sujeito se entrega às suas manipulações, desfrutando a sua

própria alienação e a dos outros (BENJAMIN, 1985, p.35-36).

Assim, criou-se um universo de sonhos e de desejos tidos agora como realizáveis. Uma nova cidade, dentro da cidade, para abrigar a mercadoria e o espetáculo da multidão. Uma forma de entronizar aquilo que seria a mola propulsora do homem moderno e das gerações que se

Portal de Entrada. Exposição Universal

de 1900. Paris.

Cartaz da Exposição de 1900. Paris.

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seguiriam – a mercadoria. Um estado de graça, uma religião nitidamente moderna, arraigada no seio da burguesia do século XIX e tida também como realidade pela multidão alienada, ávida por viver as suas fantasias e por consumir o imaginário que se construiu em torno da novidade.

Annateresa Fabris assim nos descreve:

[...] na exposição, o público coleciona experiências e fatos, é educado e di-

vertido, percorre um espaço sem dimensão e sem tempo, capta totalmen-

te a imagem como superfície brilhante e colorida, vive de perto a sensação

do progresso. O espetáculo é reforçado pelas arquiteturas exóticas e folcló-

ricas dos pavilhões, pela exibição da técnica como maravilha, criando-se

um grande cenário no qual a burguesia celebra seus ritos e seus mitos,

vividos pela sociedade como realidades coletivas (FABRIS, 2000, p. 27).

No caso da versão brasileira das visitas às Exposições, em 1908, é o poeta Olavo Bilac quem identifica uma burguesia que “cobre-se com máscara de polidez e tenta se diferenciar da multidão indistinta” e que tem todo o seu comportamento regido por uma “solenidade que irrita”. O evento corresponde, apenas parcialmente, à idéia de espetáculo, pois, embora a mercadoria fosse cultuada e festejada em sua magnitude, ao evento faltava a animação que lhe seria peculiar, divertindo indistinta-mente, “ao mesmo tempo, a gente grave e a gente fútil, a gente pobre e a gente rica”, com seus “palhaços”, com a multidão embriagada em diver-timento e euforia, como nos descreve Bilac; veja um trecho da crônica:

[...] as Exposições não são feitas apenas para divertir banqueiros e diplo-

matas; e o povo tem o direito de exigir os divertimentos que são modes-

tos e inocentes como a sua alma rude. Tudo isso falta à nossa Exposição, e,

faltando-lhe isso, falta-lhe o barulho, falta-lhe a animação, falta-lhe a vida.

A gente chic é adorável; mas o seu mesmo chic lhe impõe o dever de ser

sisuda, entediada, enjoada e melancólica (BILAC apud FABRIS, 2000, p. 28).

Já nas exposições universais do século XIX, fazia-se sentir a frag-mentação do homem moderno, a desagregação social que se tornaria o traço mais marcante de nossa vida agora nas cidades. O efêmero pare-cia mediar as relações sociais, mas principalmente aquelas estabelecidas com a mercadoria. Um sentimento de inacessibilidade, pequenez ante a grandiosidade e a majestade dos eventos e dos monumentos e um esva-ziamento da memória e do sentido na medida em que cessa a agitação das exposições e a vida volta ao seu sempre mesmo lugar.

Olavo Bilac (1865-1918) Foi jornalista

e poeta, fundador da Academia Brasi-

leira de Letras.

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Capítulo 05Poesia e processos de emergência e de modernização

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As Exposições Universais inauguradas em 1851, em Londres, são ainda realizadas periodicamente em diferentes cidades do mundo. A última aconteceu em Hannover, na Alemanha, em 2000. Represen-tam grandiosas vitrines que exibem os avanços das técnicas, da ciência e da arte para o “benefício” de toda a humanidade. Erguem o Palácio de Cristal, em Londres (1851), a torre Eiffel, em Paris (1889), o Arco do Triunfo, em Barcelona (1888). Julgam-se cerimônias ímpares que co-roam pomposamente o progresso como majestade e como o único meio para se alcançar um modelo de mundo ideal. Mas, não seria todo esse fausto inútil, visto que a novidade anunciada se tornaria obsoleta dentro de pouco tempo?

Torre Eiffel. Exposição Universal de Paris, 1889. Torre Eiffel.

Palácio de Cristal. Exposição de 1851. Londres. Arco do Triunfo. Exposição de 1888. Barcelona.

Na verdade, as exposições universais não mudaram, apenas cres-ceram na proporção dos avanços, efemeridades e ansiedades modernas. Continuam refletindo a ânsia sempre pelo novo, a adoração da merca-doria e das tecnologias, a abstração e alienação das massas e o deleite dos grandes homens, novos burgueses de nosso tempo agora. Hoje, da

Petit Palais. Exposição Universal de

1900. Paris.

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mesma forma, erguem-se grandes e suntuosas estruturas que contem-plam a mercadoria, o espetáculo e o novo sujeito moderno. Cidades que parecem “imperecíveis”, ideais, onde a modernidade se legitima e pas-seia exuberante – os shoppings centers: galerias infinitamente ampliadas, exposições essencialmente perenes. Os shoppings sintetizam a grande experiência das sociedades tidas como pós-modernas e representam, hoje, o império da mercadoria sobre a vida citadina, sobre as subjetivi-dades, uma nova configuração do espaço que o tem como centro, ponto de referência e uma temporalidade outra que define o ritmo e o com-portamento do homem contemporâneo.

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Capítulo 06Cesário Verde, Lisboa

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6 Cesário Verde, Lisboa

Conhecer algo da poesia de Cesário Verde e da relação que ele constrói

com a cidade de Lisboa no final do século XIX.

Um outro exemplo é o poeta português Cesário Verde (1855-1886, Lisboa), um leitor atento e voraz de Charles Baudelaire, que escreveu um de seus poemas mais importantes sobre a cidade moderna de Lisboa, onde nasceu. O poema se intitula O sentimento dum Ocidental. Dividi-do em 4 partes (confira nos trechos do poema, a seguir), Cesário Verde organizou o seu passeio por Lisboa a fim de entender os movimentos da cidade onde morava e do quanto esta cidade, agora, fazia parte desta nova cartografia da cidade moderna.

José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 1855 — Lumiar, 1886) foi um poeta português que se dividia entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as atividades de comerciante, herdadas do pai. Morre de tuberculose e ainda inédito em livro. No ano seguinte, 1887, o amigo Silva Pinto organiza O Livro de Cesário Verde (disponível ao público em 1901), com a sua poesia reunida. Os cenários mais recorrentes em sua poesia eram, sem dúvida, a Cidade e o Campo, retratados sempre de forma mais natural do que lírica. Mas, na poesia de Cesário Verde o Campo passa a ser representado não em seu aspecto idílico, bucólico, mas como espaço real, autêntico, espaço de alegria e vitalidade.

O poeta e crítico Carlos Felipe Moisés diz que Cesário Verde adota os temas desse espaço porque tem que andar por ele, é o poeta pintor, retratista do cotidiano, é “o poeta das coisas ao redor: formas, cores e cheiros do ambiente urbano e rural; pessoas e objetos palpáveis; idéias, sentimentos e aspirações enraizados nas reais circunstâncias de vida” (MOISÉS, 2001, p. 209). É óbvio que a atmosfera de Cesário Verde está vinculada a algo da atmosfera de Charles Baudelaire e suas correspon-dências – “Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.” (BAU-DELAIRE, 1985, p. 114) – e de toda a relação que este tinha com seus temas como poeta ao apontar para esta rua do mundo e do que disse

Cesário Verde (1855 - 1886) retrata a

cidade e o campo em sua poesia

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Estudos Literários II

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dele, por exemplo, Walter Benjamin: que é o poeta que “[...] vê refletida em tudo a própria melancolia.” (BENJAMIN, 1991, p. 84); é o poeta que tem interesse pela multidão, pela massa em sua flanêrie: “a massa lhe é algo tão pouco exterior que nos permite seguir de perto, em sua obra, pelo modo como ele resiste ao seu envolvimento e à sua atração” (BENJAMIN, 1991, p. 84); e que é o poeta que entende que “As corres-pondances são os dados do ‘rememorar’. Não são dados históricos, mas da pré-história. Aquilo que dá grandeza e importância aos dias de festa é o encontro com uma vida anterior” (BENJAMIN, 1991, p. 133).

Vejamos então um trecho do longo poema de Cesário Verde e ten-temos ler nele o passeio deste poeta pela cidade de Lisboa, pelo espaço e pelo tempo da cidade de Lisboa. É importante que você procure ler o poema de Cesário Verde na íntegra.

O Sentimento dum Ocidental

1. Ave Maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia,

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando-me à via férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista, exposições, países:

Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, no mundo!

[...]

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Capítulo 06Cesário Verde, Lisboa

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2. Noite Fechada

[...]

Na parte que abateu o terremoto,

Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.

[...]

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

[...]

Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

[...]

3. Ao Gás

[...]

“Dó da miséria!... Compaixão!...”

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim?

4. Horas mortas

[...]

Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

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Estudos Literários II

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[...]

Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

[...]

E enorme, nesta massa irregular

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

A Dor Humana busca os amplos horizontes,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

(VERDE, 1995, p. 97-105)

Este poema é talvez a marca entre a sua existência e Lisboa, que ele chamava de “cidade-cadáver”. O poeta como aquele que se lança à rua para cumprir uma responsabilidade com a poesia: o que é material antipoético, a cidade, o que é o espaço onde a poesia parece não haver, onde a poesia não há, é também o único princípio para uma poesia que se quer agora como leitura do presente, uma saturação de tempos, de todos os agoras como é exatamente a cidade. A Lisboa de Cesário Verde é um presente porque tem presença, diz o crítico português Eduardo Lourenço: Lisboa tem uma presença para um outro Portugal, presença

da qual cada um escolhe a face simbólica idealizante ou denunciadora:

procissões de um colorido miserabilista sem igual, moleirinhas e pegu-

reiros ideais, lojistas distraídos, varinas apopléticas, mães-coragens de

um povo sem ela, burguesinhas oferecendo-se de graça à fenda do so-

nho [...] (LOURENÇO, 1978, p. 99).

Por isso Cesário Verde se lança à rua, para ter na rua uma expe-riência de poesia que não havia na tradição portuguesa até então, para dizer do quanto a cidade como “realidade comparece na sua dupla face arcaizante e contemporânea” (LOURENÇO, 1978, p. 99). Basta ver num trecho de um outro poema, chamado “Num Bairro Moderno”. Vejamos, a seguir, um trecho do poema:

Dez horas da manhã; os transparentes

Matizam uma casa apalaçada;

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Capítulo 06Cesário Verde, Lisboa

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Pelos jardins estancam-se os nascentes,

E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada.

[...]

Bóiam aromas, fumos de cozinha;

Com o cabaz às costas, e vergando,

Sobem padeiros, claros de farinha;

E às portas, uma ou outra campainha

Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.

Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia,

E nuns repolhos seios injectados.

[...] (VERDE, 1995, p. 64)

A rua de Cesário Verde não é mais apenas uma cartografia da cida-de moderna, mas uma coleção íntima de suas circunstâncias citadinas, com brita, breu e areia, e o que nela pode constar de assombro e desam-paro. A rua é uma figuração do rosto do poeta que precisa lançar-se ao chão, sem mito e sem história, para criar uma variante de expressão que faz da rua o seu mundo e do mundo um lugar desamparado para fazer a poesia, fazer a poesia como um novo corpo orgânico que acompanha todos os movimentos da cidade.

Assim, estamos diante desse caleidoscópio urbano que é a cidade, ela revela sempre um novo espaço, um novo detalhe, um olhar que antes passara distraído e agora descobre novos caminhos, objetos, peculia-ridades, uma cor nova que o dia privilegia, cores diversas que o vidro evidencia feito magia, luz bíblica que se derrama por entre as passagens. E são estas passagens que correspondem aos sonhos coletivos do século XIX, modernos, dinâmicos e utópicos, “imagens do desejo” e projeções do subconsciente coletivo, materializados através das suas construções. A cidade representa naquele momento uma nova forma de subjetivação.

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Capítulo 07Walt Whitman, o verso livre.

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7 Walt Whitman, o verso livre

Compreender como o verso livre é uma manifestação das novas formas de

vida impostas pela cidade. Uma nova sintaxe. A poesia de Walt Whitman.

Que outra forma de escrever o poema seria possível agora, na cida-de? Esta talvez seja a primeira pergunta que você deve se fazer. Porque o pensador alemão que você já conhece, Walter Benjamin, se pergunta-va a partir desta mesma questão em seu ensaio chamado Sobre Alguns Temas em Baudelaire. E ele diz no início do último parágrafo da parte III: “Surge uma interrogação: de que modo a poesia lírica poderia estar fundamentada em uma experiência, para a qual o choque se tornou a norma?” (BENJAMIN, 1989, p. 110)

Seguindo adiante, Benjamin comenta que a esta norma, o choque, estaria vinculada uma poesia com “um alto grau de conscientização”, uma poesia que teria “um plano atuante em sua composição” e dá como exemplos a poesia de Charles Baudelaire (que para Benjamin é seu exemplo mais acabado), depois, Edgar Allan Poe, como um antecessor de Baudelaire e Paul Valéry, como um seu sucessor. A poesia então, já sabemos, a partir do século XIX, está complemente vinculada à experi-ência da vida nas grandes cidades. Isto nos possibilita refazer a pergunta de Walter Benjamin: “Surge uma outra interrogação: de que modo a poe-sia poderia estar fundamentada em uma experiência, para a qual o tempo transitório se tornou a norma?”

É com o poeta americano Walt Whitman (1819-1892, Long Island, NY, USA) que vamos tentar entender um uso formal da palavra muito próximo da transitoriedade da vida trazida pelas grandes cidades. Whitman é o po-eta do novo lugar, a América; é o poeta da grande cidade americana, Nova Iorque. E entende que não pode mais escrever em versos metrificados, que a cidade impõe uma outra forma de respiração, que o poema precisa respirar como a cidade, a partir de seus fragmentos, de sua falta de ar, de sua mistura contaminada de tantos sentidos e sensações; Whitman liberta o verso.

Neste ensaio, ele discute, principalmente, a opo-sição entre duas formas de saber a experiência da vida moderna, os termos em alemão: Erfahrung e Erlebnis.

Procure saber mais sobre estes poetas!

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Estudos Literários II

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Walt Whitman (West Hills, 1819 – 1892) foi um revolucionário po-eta norte-americano, tanto nas questões da forma, como nas temáticas de sua poesia. Defendeu a abolição da escravatura, os direitos da mu-lher, o amor livre e o desenvolvimento tecnológico. Em Nova York tra-balhou como tipógrafo e jornalista. O livro de poemas Leaves of Grass (Folhas de Relva), sua principal obra, foi publicado pela primeira vez em 1855 e reeditado com revisões e ampliações durante muitos anos. O livro, que foi repudiado pelos críticos da época, introduz o verso livre, dá tratamento poético a fatos do cotidiano, como o progresso técnico e o sexo e eleva a condição do homem moderno. Em fins de 1891 publica a última edição de Leaves of Grass e morre poucos meses depois.

O poeta brasileiro Paulo Leminski escreveu assim sobre a poesia de Whitman:

Uma dicção algo entre a poesia e a prosa, determinada, por um movi-

mento retórico [...]. Tão forte, talvez, quando a influência, sobre a poesia

moderna, do primeiro grande poeta da Revolução Industrial. A incorpo-

ração da máquina ao mundo poético, o futurismo de Marinetti, no início

do século, apenas consolidou-a. Já está lá, no Whitman de ‘A uma loco-

motiva no inverno’, ‘signo do moderno’, ‘beleza de voz feroz’, mecânica

musa, prenunciando os biônicos tempos que vivemos e vocês ainda

não viram nada (LEMINSKI, in WHITMAN, 1989, p. 8-9).

Você começa a perceber que a poesia de Whitman é um contrapon-to radical à poesia de Virgílio, que tinha como musa a natureza mitoló-gica e bucólica. A musa de Whitman, como diz Leminski, é mecânica e livre, é uma musa erótica e cheia de tentáculos, como a cidade mo-derna: “Uma poesia que tem como herança o libertarismo individua-lista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do capitalismo na América, o otimismo ativista de um povo de vikings, a vertigem da abertura de inimaginadas fronteiras geográficas, econômicas e técnicas. E também emocionais, existenciais e pessoais” (LEMINSKI, in WHIT-MAN, 1989, p. 8).

Vamos ler então dois poemas de Walt Whitman, ambos em tradu-ções de Geir Campos e André Cardoso. Estes poemas estão em seu livro Leaves of Grass e foram retirados de uma pequena edição brasileira que publicou parte destes poemas, a edição tem como título Folhas das Fo-

Leia e procure escrever algo sobre os poemas a seguir. Tente montar re-

lações com o que discuti-mos até aqui.

Walt Whitman (1819 – 1892)

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Capítulo 07Walt Whitman, o verso livre.

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lhas de Relva. O primeiro poema se chama Cidade de Orgias, o segundo Poetas de Amanhã e o terceiro é a primeira parte de um poema longo chamado Eu canto o corpo elétrico.

Cidade de Orgias

Cidade de orgias, passeios e alegrias,

Cidade que por eu ter residido

e cantado em seu meio

um dia ainda hei de tornar famosa,

não são as suas exposições,

seus quadros sempre mudando,

não são seus espetáculos

o que me recompensa,

nem suas filas de casas intermináveis,

nem os navios nas docas

nem as procissões nas ruas,

nem as vitrinas brilhando

cheias de mercadorias,

nem a conversa com pessoas ilustradas,

nem o quinhão que eu acabo levando

em festas e soirées

- nada disso, ó Manhattan,

mas, quando eu passo,

o seu constante e ligeiro brilhar de olhos

me oferecendo amor,

oferecendo resposta ao que sinto,

o que me compensa é isto:

amantes, continuados amantes,

tão-só me recompensam.

(WHITMAN, 1989, p. 63-64)

Poetas de Amanhã

Poetas de amanhã: arautos, músicos,

cantores de amanhã!

WHITMAN, Walt. Folhas das Folhas de Relva. Trad. Geir Campos. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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Estudos Literários II

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Não é dia de eu me justificar

e dizer ao que vim;

mas vocês, de uma nova geração,

atlética, telúrica, nativa,

maior que qualquer outra conhecida antes

- levantem-se: pois têm de me justificar!

Eu mesmo faço apenas escrever

uma ou duas palavras

indicando o futuro;

faço tocar a roda para a frente

apenas um momento

e volto para a sombra

correndo.

Eu sou um homem que, vagando

a esmo, sem de todo parar,

casualmente passa a vista por vocês

e logo desvia o rosto,

deixando assim por conta de vocês

conceituá-lo e prová-lo,

a esperar de vocês

as coisas mais importantes.

(WHITMAN, 1989, p. 16-17)

Eu canto o corpo elétrico

Eu canto o corpo elétrico:

os pelotões daqueles a quem amo

me cercam e eu os cerco,

e eles não me deixarão sair

até que eu vá com eles

e a eles corresponda

e os descarregue e os carregue todos

com a carga da alma.

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Capítulo 07Walt Whitman, o verso livre.

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Foi posto em dúvida

que os que corrompem seus próprios corpos

segregam a si mesmos?

E se aqueles que profanam os vivos

forem tão maus

quanto aqueles que profanam os mortos?

E se o corpo não fizer plenamente

tudo quanto a alma faz?

E se o corpo não for a alma

– que será a alma?

(WHITMAN, 1989, p. 44)

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Capítulo 08Sugestões de Leitura

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8 Sugestões de Leitura

Entender, a partir de dois exemplos, a passagem entre a literatura e a

vida na cidade moderna do século XIX para o século XX.

8.1 Eça de Queirós: A cidade e as serras

Na passagem do século XIX para o século XX, exatamente no ano de 1900, o escritor português Eça de Queirós publicou o seu último ro-mance, intitulado A cidade e as Serras. Este romance, que se modula entre a vida na cidade e a vida no campo, como você pode perceber desde o título, elege como cenário – não por acaso – a Paris encantada, a mesma do poeta que você já conheceu, Charles Baudelaire. Em Paris se dá toda a primeira parte da narrativa, quando a personagem protagonis-ta, Jacinto, defende a vida na cidade, o seu fascínio pela vida na cidade. Num segundo momento Jacinto, que é um português que vive há mui-to tempo em Paris, é obrigado a voltar para Tormes, uma região rural portuguesa, para cuidar de umas terras da família que recebeu como herança. Este é o padecimento de Jacinto que relata ao seu amigo, José Fernandes, que vive em Portugal e o visita sempre em Paris: voltar a viver no campo. Mas, aí se dá a grande surpresa da narrativa e o conflito entre a vida na cidade e a vida no campo se estabelece definitivamente neste romance, que está dentro da tradição mais interessante das narra-tivas dos romances do século XIX: a vida tal como ela se apresenta.

Depois da leitura, aproveite para escrever algo sobre este romance e

discutir nas aulas e com os seus colegas.

José Maria de Eça de Queirós (Póvoa de Varzim, Portugal, 1845 — Paris, França, 1900) é considerado um dos mais importantes escritores realistas portugueses do século XIX. Foi autor, entre outros romances, de Os Maias e O crime do Padre Amaro. Este último, publicado em 1875, marca o início do romance realista em Portugal e apresenta forte crítica da vida social portuguesa, assim como denúncia da corrupção do

Na Unidade B de Litera-tura Portuguesa II, você pode reler mais sobre Eça de Queirós e sua obra! Veja em: FURLAN, S. Literatura Portuguesa II. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2008.

Eça de Queirós (1845 - 1900)

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Estudos Literários II

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clero e da hipocrisia dos valores burgueses, características que se acen-tuam com a publicação do romance O Primo Basílio (1878). Com Os Maias, publicado em 1888, Eça de Queirós entra na sua fase mais rea-lista-naturalista, para depois, com romances como A cidade e as serras (1901) e A ilustre casa de Ramires (1897), dar lugar a um lirismo que passa a valorizar a vida no campo e as virtudes nacionais.

8.2 A poesia de Alberto Caeiro e de Álvaro de Campos

Alberto Caeiro e Álvaro de Campos são dois dos heterônimos de Fernando Pessoa, o poeta português que mudou a história da poesia em seu país, em língua portuguesa e, principalmente, a história do mo-dernismo. Fernando Pessoa tem muitos outros heterônimos, mas estes são particularmente os que registram o contraste entre a vida no campo e a vida na cidade. O mesmo fascínio que Eça de Queirós colocou na sua personagem Jacinto se desdobra nestes dois poetas que são também duas outras faces da poesia de Fernando Pessoa. Veja o que ele diz numa anotação sobre a arte moderna:

A Arte Moderna é Aristocrática

“QUE ESSA ARTE não é feita para o povo? Naturalmente que o não é –

nem ela nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é feita para

as aristocracias, para os escóis, que é o que fica na história das socieda-

des, porque o povo passa, e o seu mister é passar.

A nossa arte é supremamente aristocrática, ainda, porque uma arte aristo-

crática se torna necessária neste outono da civilização européia, em que a

democracia avança a tal ponto que, para de qualquer maneira reagir, nos

incumbe, a nós artistas, pormos entre a elite e o povo aquela barreira que

ele, o povo, nunca poderá transpor – a barreira do requinte emotivo e da

ideação transcendental, da sensação apurada até à sutileza [...]

A nossa civilização corre o risco de ficar submersa como a Grécia (Ate-

nas) sob a extensão da democracia, de cair inteiramente nas mãos dos

escravos, ou então de ficar como Roma, não nas mãos de imperadores

filhos do acaso e da decadência, mas de grupos financeiros sem pá-

tria, sem lar na inteligência, sem escrúpulos intelectuais e sem causa em

Deus. O único antídoto para isto é uma lenta aristocratização. é pela arte

que, supremamente, essa aristocratização pode ser feita.

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Capítulo 08Sugestões de Leitura

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Raiava, já antes da guerra, no horizonte o triste sinal da plebeização das

elites. Bailados, espetáculos e outros desvios semelhantes da arte supe-

rior iam tomando vulto. é preciso reagir contra esta corrente.

Depois da guerra, é de crer que aumente o espírito patriótico. Nada mais

ignóbil. Reporto-me às palavras sublimes de Goethe quando falou de

quão pouco o sentimento patriótico sobe até às paragens de ar puro

e raro onde vivem os Superiores. Permita-me que lhe recorde aquele

passo das conversações com Eckermann em que o mestre de Weimar

registrou essa ideia (PESSOA, s/d, p. 299).

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 1888-1935) é consi-derado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Viveu parte de sua adolescência na África do Sul, o que fez com que a língua inglesa também tivesse um lugar de destaque em sua vida, na sua produção e em trabalhos com tradução. Teve uma vida discreta; atuou no jor-nalismo, na publicidade, no comércio e, principalmente, na literatura, onde se desdobrou em várias outras personalidades conhecidas como heterônimos. Os mais conhecidos são Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Mas é sempre bom lembrar que não são só esses e que entre pseudônimos e heterônimos, Fernando Pessoa conta com cerca de 72 nomes. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fer-nando_Pessoa

Alberto Caeiro é o mestre de todos os heterônimos, é o primeiro deles. E preferiu ter na natureza a sua referência primeira de mundo, de vida, de pensamento, de poesia. Seu poema mais conhecido se chama O Guardador de Rebanhos. E é por este poema que você deve começar a ler este poeta. A seguir, colocamos um trecho, que é a primeira parte do poema, para você começar a sua leitura:

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente

Fernando Pessoa (1888 - 1935)

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Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol

Para a nossa imaginação,

Quando esfria no fundo da planície

E se sente a noite entrada

Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego

Porque é natural e justa

E é o que deve estar na alma

Quando já pensa que existe

E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos

Para além da curva da estrada,

Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,

Em vez de serem contentes e tristes,

Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva

Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é uma ambição minha

é a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes

Por imaginar, ser cordeirinho

(Ou ser o rebanho todo

Para andar espalhado por toda a encosta

A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

é só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.

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Capítulo 08Sugestões de Leitura

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Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,

Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me vêem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,

E que as suas casas tenham

Ao pé duma janela aberta

Uma cadeira predileta

Onde se sentem, lendo os meus versos.

E ao lerem os meus versos pensem

Que sou qualquer cousa natural —

Por exemplo, a árvore antiga

À sombra da qual quando crianças

Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

E limpavam o suor da testa quente

Com a manga do bibe riscado.

(CAEIRO, 2001, p. 23-25)

Álvaro de Campos é o poeta engenheiro. Um fascinado pela vida na cidade e pelas formas estruturais com as quais a cidade se organiza. Tanto que no seu poema mais conhecido, Ode Triunfal, o poeta traça

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um percurso de encantamento com a máquina e com a cidade moderna. Então, você já sabe, o poema Ode Triunfal é a sua porta de entrada neste poeta urbano, veja um trecho abaixo:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do ésquilo do [século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e

[por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à [alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

Assim como Walt Whit-man, também encantado

com a máquina, com o futurismo de Marinetti,

com a vida futura, com a vida sugerida a partir da

cidade grande.

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Capítulo 08Sugestões de Leitura

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A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de [transmissão!

(CAMPOS, 2002, p. 83-84)

Agora é com você. Faça as suas leituras e procure relacionar e discutir a

partir do que leu.

Leia mais!

CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Este é um clássico do pensamento acerca das novas estruturas urbanas, pu-blicado originalmente em francês em 1972, e já traduzido para várias outras línguas. Castells faz uma leitura da cidade como fenômeno, passando pelo seu desenvolvimento, ideologias, políticas, emergências etc., até tocar os movimentos sociais e formas de expressão. Leitura indispensável.

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Unidade CEspaços

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Capítulo 09A experiência contemporânea nos novos espaços

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9 A experiência contemporânea nos novos espaços

A cidade agora e a literatura agora: que relações podemos pensar?

Vamos conhecer alguns exemplos e entender algumas possibilidades

desse enfrentamento.

Vamos dar um outro salto dentro do século XX para entendermos algo também do nosso século XXI. Um salto para que você possa começar a compreender também os deslocamentos ininterruptos da modernida-de, das suas construções e das suas demolições. A cidade converge para uma nova organização do espaço e tempo e inaugura uma outra experiên-cia voltada para o fugaz e efêmero. A nova experiência urbana, iniciada no século XIX, é vivida, em sua plenitude, no século XXI, no interior de shoppings centers, uma das representações mais fortes e consistentes da contemporaneidade, que é objeto de análise neste trabalho e que remonta das galerias e da grandiosidade e suntuosidade das Exposições Universais, um misto de exposição, aparência, espetáculo e diversão.

Esta nova experiência que podemos chamar de contemporânea promove também uma outra forma de se produzir literatura, numa ou-tra relação com o campo e com a cidade. Estamos definitivamente mer-gulhados nos lugares de passagem, de trânsito perene, desde a internet até os antigos lugares outros, que de alguma forma todos conhecemos, como as vias expressas, os viadutos, os aeroportos, as rodoviárias, as estações de trem e metrô, os grandes centros comerciais, as redes de su-permercados e os hotéis. Todos lugares de passagem que sempre foram destinados àqueles que chegam e àqueles que partem. A estes lugares podemos chamar de “não-lugares”, e são unidos pela sua semelhança, por uma ausência de memória e história, por um movimento obrigató-rio para a mais concreta solidão.

O pensador francês Marc Augé que tem se dedicado a estudar estes lugares de passagem diz que:

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Estudos Literários II

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Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acele-

rada de pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos)

quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comer-

ciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estaciona-

dos os refugiados do planeta (AUGé, 1994, p 36).

A idéia desse não-lugar é indicar um lugar fluido, vazio, para onde parece ter convergido toda a experiência anterior do homem com a cida-de e com o campo, principalmente aquelas anteriores ao século XIX e as do século XIX, com a passagem de uma vida campesina para uma vida de fragmentações, dobras, fendas e crises de referência. A cidade do sujeito que se vê sozinho, sem Deus, que se perde, que se deteriora. A cidade que aparece em alguns romances formadores do romance urbano, cotidiano, citadino, como Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert, publicado em 1857, e que expressa a crise do homem com o espaço e com a vida social, a cisão do homem do fin-de-siécle; as obras filosóficas de Nietzsche , o pensador alemão que decretou que vivíamos naquele mo-mento a separação da vida perto de Deus; para Nietzsche, Deus está mor-to. É a sua personagem Super Homem, que vai sugerir também a morte da própria idéia de homem, visto o grau de perfeição por ele alcançado, atra-vés do pensamento racional e científico. Os trabalhos de alguns pintores expressionistas do pós-guerra, a partir da década de 1940, que viviam a ansiedade e o medo da guerra fria e da era nuclear, como os representan-tes da Action Painting, também conhecida por Gestural Abstraction que pintavam desbravando e desfazendo as figuras retilíneas. O pintor ameri-cano Jackson Pollock (1912-1956) é o seu maior representante.

“Prefiro atacar a tela não esticada, na parede ou no chão... no chão

fico mais à vontade. Me sinto mais próximo, mais uma parte da pin-

tura, já que desse modo posso andar em volta dela, trabalhar dos

quatro lados, e literalmente estar na pintura... Quando estou em mi-

nha pintura, não tenho consciência do que estou fazendo.” Estas pa-

lavras do pintor norte-americano Jackson Pollock (1912 - 1956), em

1947, definem de modo sintético os traços essenciais de sua técnica

e estilo de pintura, batizado de action painting pelo crítico norte-

americano Harold Rosenberg, em 1952.

Gustave Flaubert (1821-1880) é autor

também de A tentação de Santo An-

tônio (1874), A educação sentimental

(1869) entre outros.

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-

1900) filósofo alemão.

Pintor norte-americano, representan-

te do expressionismo abstrato.

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Capítulo 09A experiência contemporânea nos novos espaços

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Pollock estira a tela no solo e rompe com a pintura de cavalete. So-

bre a tela, a tinta - metálica ou esmalte - é gotejada e/ou atirada com

“paus, trolhas ou facas”, ao ritmo do gesto do artista. O pintor gira

sobre o quadro, como se dançasse, subvertendo a imagem do artis-

ta contemplativo - ele é parte da pintura - e mesmo a do técnico ou

desenhista industrial que realiza o trabalho de acordo com um pro-

jeto. O trabalho é concebido como fruto de uma relação corporal do

artista com a pintura, resultado do encontro entre o gesto do autor

e o material. “Antes da ação”, diz Pollock, “não há nada: nem sujeito,

nem objeto.” Descarta também a noção de composição, ancorada na

identificação de pontos focais na tela e de partes relacionadas. O tra-

tamento uniforme da superfície da tela e o abandono de ideias tra-

dicionais de composição - por exemplo a de que a obra deve ter um

centro - levam à pintura denominada de all-over pelo crítico norte-

americano Clement Greenberg. Fonte: http://www.itaucultural.org.

br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_

texto&cd_verbete=350

É importante que você saiba que nunca uma sociedade produziu tanto e esteve tão dependente desses chamados não-lugares ou lugares de passagem quanto agora. Estes lugares vazios de qualquer expressão simbólica são incapazes de estabelecer uma relação de identidade com o homem moderno. Estes lugares são extraídos da cartografia urbana e do imaginário citadino. Cada vez mais, o espaço urbano se vê inva-dido e “colonizado” por esses modelos de lugares de trânsito, com suas fórmulas, semelhanças e falta de significados. Seria o Shopping Center um imenso não-lugar? Como, nas palavras de Bauman, estes lugares “desencorajam a idéia de ‘estabelecer-se’, tornando a colonização ou do-mesticação do espaço quase impossível” (BAUMAN, 2001, p. 119). Se a própria cidade foi idealizada para se fixar nela, hoje, inevitavelmente, passa-se por ela como na condição de um grande não-lugar.

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Capítulo 10Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

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10 Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis.

Entender, a partir do exemplo de Ítalo Calvino e Bruno Zeni, as relações

entre a literatura e a cidade como um espaço público.

Essa condição da cidade como um lugar de passagem, dos espaços indistintos e sem memória é brilhantemente descrito pelo escritor Ítalo Calvino em vários de seus livros, mas o mais importante deles para o nosso estudo é seu livro intitulado As Cidades Invisíveis, com tradução de Diogo Mainardi. Neste livro, o famoso viajante Marco Pólo descreve para o imperador do oriente Kublai Khan as cidades que fazem parte de seu imenso império. Tanto que o narrador começa dizendo:

Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Pólo

quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplo-

máticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o

jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer

outro de seus enviados ou exploradores. Existe um momento na vida

dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos

territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em

breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de

vazio que surge ao calar da noite com o odor dos elefantes após a chuva

e das cinzas de sândalo que se resfriam nos braseiros, uma vertigem que

faz estremecer os rios e as montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos

planisférios, enrolando um depois do outro os despachos que anunciam

o aniquilamento dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, e

abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais nunca se ouviu falar e que

imploram a proteção das nossas armadas avançadas em troca de im-

postos anuais de metais preciosos, peles curtidas e cascos de tartarugas:

é o desesperado momento em que se descobre que este império, que

nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem

forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada

pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez

herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco

Pólo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres

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Estudos Literários II

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destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de

evitar as mordidas dos cupins (CALVINO, 1995, p. 9-10).

Uma dessas cidades invisíveis é Trude, que corresponde à cidade dos lugares indistintos, estas cidades cheias de semelhanças, das experi-ências que se repetem. E ela representa também todas as outras cidades, porque todas são iguais a Trude. Em uma analogia, vamos pensar sobre isso, de que forma poderíamos representar a padronização das coisas e dos espaços, a similitude dos lugares, os “não-lugares” e, conseqüente-mente, a experiência fugaz e repetitiva da vida nas cidades agora?

Diz o viajante Marco Polo para o imperador Khan:

Se ao aterrissar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escri-

to num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de

onde havia partido. Os subúrbios que me fizeram atravessar não eram

diferentes dos da cidade anterior, com as mesmas casas amarelinhas e

verdinhas. Seguindo as mesmas flechas, andava-se em volta dos mes-

mos canteiros das mesmas praças. As ruas do centro exibiam mercado-

rias embalagem rótulos que não variavam em nada. Era a primeira vez

que eu vinha a Trude, mas já conhecia o hotel em que por acaso me

hospedei; [...] Por que vir a Trude, perguntava-me. E sentia vontade de

partir. – Pode partir quando quiser – disseram-me -, mas você chegará

a uma outra Trude, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por

uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome no

aeroporto (CALVINO, 1990, p.118).

Assim, você começa a perceber que todos vivemos hoje em uma grande Trude e que a literatura está tentando nos lembrar de nossas formas de experiência agora a partir dos espaços de vida, de convivên-cia. Parece, nos lembra o narrador de Calvino, que estamos todos confi-nados nos mesmos lugares, acondicionados, empacotados. Esta cidade compreende o sentido de toda a contemporaneidade, de nosso tempo agora. O homem padroniza-se tal qual os espaços que produz e esvazia-se da mesma forma. Trude pode ser um grande Shopping Center. Uma cidade-shopping. Trude pode ser tudo e nada. E a literatura continua atravessando e formando o pensamento do homem sobre os espaços que ele determina para viver.

Desta forma, assistimos à substituição dos espaços públicos que an-tes eram destinados ao encontro, às relações interpessoais, à sociabilidade

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Capítulo 10Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

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por esses lugares de passagem dos quais trata Ítalo Calvino, do olhar em trânsito, lugares agora vazios de sentido e de história, lugares do contato apenas ocasional, marcados pela efemeridade e superficialidade das rela-ções com o outro, pelo declínio da sociabilidade, pela diluição dos sujeitos cordiais e afetivos na paisagem urbana, inibitória e agressiva. Definitiva-mente, esses espaços perderam a sua validade, inibiram-se diante da nova composição da urbe contemporânea. Na medida em que foi extinto o seu caráter de encontro, de passeio e de trocas de experiências, estes lugares passaram a configurar grandes vácuos, passagens sem vida para o deslo-camento do simples transeunte ou para o depósito de excluídos.

10.1 Espaço Público e Literatura

O espaço público, como define o pensador Richard Sennett, tor-nou-se um derivado do movimento que reforça o desejo outrora latente de eliminar todo o poder inibitório da geografia (SENNETT, 1988, p. 28). E essa ideia de interpenetração do espaço e movimento começa a ser possível a partir do aparecimento do automóvel. Como escreveu o escritor carioca João do Rio no começo do século XX, ao nos lembrar que foi graças ao automóvel que a paisagem morreu na medida em que passamos como um raio diante dos trechos contemplados pela exube-rância da natureza, com nossos “óculos esfumaçados por causa da poei-ra” (RIO apud FABRIS, 2000, p. 53).

Trata-se da epopeia da velocidade, do lugar da impermanência, da ânsia por um movimento ininterrupto, que jamais poderia ser o campo. E se você começar a prestar mais atenção, o campo está cheio de antenas parabólicas, as casas todas com televisão, várias delas com computado-res etc., e como descreve Sennett:

Atualmente, experimentamos uma facilidade de movimentação desco-

nhecida de qualquer civilização urbana anterior à nossa, e no entanto a

movimentação se tornou a atividade diária mais carregada de ansieda-

de. A ansiedade provém do fato de que consideramos a movimentação

sem restrições do indivíduo como um direito absoluto. O automóvel

particular é o instrumento lógico para o exercício desse direito, e o efei-

to que isso provoca no espaço público, especialmente no espaço da rua

urbana, é que o espaço se torna sem sentido, até mesmo endoidecedor,

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Estudos Literários II

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a não ser que possa ser subordinado ao movimento livre. A tecnologia

da movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um de-

sejo de eliminar as coerções da geografia (SENNETT, 1988, p. 28).

A contemporaneidade é, portanto, caracterizada e descrita pela li-teratura a partir do surgimento de um novo sujeito, fragmentado e diluí-do juntamente com as temporalidades e os novos espaços. Um tempo marcado pela elevada produção e elaboração de métodos criativos para “melhor” utilizar e transformar o espaço urbano em detrimento do de-saparecimento de lugares públicos. Dessa forma, assistimos ao advento de uma cidade que nasce com uma velocidade sem precedentes e, por essa razão, se constitui vazia de história, de passado e de sentido. Cidade que cresce verticalmente, que toca o céu majestosamente, fazendo com que o homem perca a capacidade de olhar o horizonte e o outro, tornan-do-o pequeno ante sua grandeza e dinamicidade. Onde foi parar aquela linha de horizonte que vislumbrávamos do campo aberto esticado até o infinito em meio a tantos prédios?

10.2 Algo da literatura agora

O escritor curitibano radicado em São Paulo da mais recente pro-dução de literatura no Brasil, Bruno Zeni escreve para o jornal, ilustra esta cidade verticalizada, metamorfoseada e vertiginosa, do império das máquinas e de uma “quase” automatização do indivíduo em seu livro intitulado O fluxo silencioso das máquinas. Através de pequenas “ilu-minações asfálticas”, o autor descreve a cidade, ora do confinamento, ora da submissão do homem ao espaço e à máquina. Assim podemos notar o quanto os séculos XX e XIX deixaram de lado a vida no campo para nos fazer entrar definitivamente na vida das cidades.

Os textos de Bruno Zeni nos apresentam uma relação contratual, convencionada por grandes signos da contemporaneidade que permi-tem o acesso, que comprovam a passagem. A cidade de arquitetura volá-til e flexível, de ar adensado, contaminado, adoecido, não houve mais o alarido das máquinas. A máquina passa a ser o próprio prolongamento do homem contemporâneo que se habituou à sua presença. Você ainda lembra da prótese, do homem entrando no vagão do trem no final do século XIX para se adaptar à máquina?

Escritor, jornalista, mestre em Letras e professor.

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Capítulo 10Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis

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Vejamos um pequeno trecho de uma das partes do livro de Bruno Zeni:

De cima, a cidade é um campo de luzes amarelas, brancas e vermelhas.

Um mar de luzes que piscam. [...] O cheiro grosso dos ambientes. Que

comprime os pulmões um contra o outro, fazendo-os se fechar. Uma

ficha para a máquina de refrigerantes, por favor. A queda surda de uma

latinha de refrigerante. Digite novamente a sua senha de seis dígitos. In-

sira e retire o seu cartão magnético para liberar o dinheiro. Um café fora

de hora. A ardência no contorno dos olhos de tanto habitar os andares

fechados, onde o ar pesa. O ar confinado. A luz fria. O fluxo silencioso das

máquinas: imprimindo, gravando, bipando, fazendo soar a infinita ocor-

rência do esgar. O som mudo das máquinas. O humano não-humano. A

dependência química do ar concentrado. A sedação do olhar. O fluxo de

inconsciência (ZENI, 2002, p.101-102).

A arquitetura desta nova cidade “que sobe” é flexível, efêmera como as novas relações interpessoais, com o espaço, a mercadoria e a máqui-na. A ideia de praticidade moderna, de tempo curto que urge, é incor-porada pelas suas edificações. A arquitetura antiga, pesada e sólida não atende mais as necessidades do homem contemporâneo, dinâmico e fluido. A mais nova configuração do espaço a tornou inabitável.

Dessa forma, cada vez mais as sociedades contemporâneas parecem viver os tempos áureos do movimento da arquitetura futurista italiana do início do século XX, no qual uma arquitetura nova seria aquela que in-corporaria o ritmo dinâmico da vida urbana, construções efêmeras, uma estética feita de muita elasticidade e leveza, uma arquitetura, literalmen-te, evolutiva, como nas palavras do arquiteto italiano Antonio Sant’Elia (1888-1916): “[...] os caracteres fundamentais da arquitetura futurista serão a caducidade e a transitoriedade. As casas durarão menos que nós. Cada geração deverá fabricar a sua cidade” (FABRIS, 2000, p.104).

Eis o espelho que reflete um novo século e a nova produção literá-ria de nosso tempo: “As casas durarão menos que nós”. Um construir e destruir incessante, um vazio de memória, da geografia e da literatura urbanas que se dissolvem, que se modificam.

Na verdade, assim como coloca o crítico polonês Sygmunt Bau-man, essa sociedade que emerge para o século XXI, este novo sujeito contemporâneo, não é, essencialmente, menos moderno que aquele que

Antonio Sant’Elia (1888 - 1916) foi

arquiteto ligado ao futurismo italiano,

influenciado pelas idéias de Otto Wag-

ner. Projetou inúmeros arranha-céus,

passarelas, porém não chegou a con-

cretizar nenhum deles, pois morreu

durante a Primeira Grande Guerra.

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Estudos Literários II

98

viveu as transformações estruturais, temporais e espaciais no decorrer dos séculos XIX e XX como nos apresentava o poeta Charles Baudelai-re, por exemplo. Mas, no máximo, permanece uma ansiedade sempre moderna em descobrir algo “novo” enquanto se é apenas moderno de uma maneira diferente e busca-se freneticamente vencer este caráter de incompletude e vazio da modernidade, esta crise do homem que se diz pós-moderno (BAUMAN, 2000, p.36).

Talvez esta busca por uma conceituação da contemporaneidade e deste novo homem soe como absurda, talvez pareça inútil e pretensio-sa demais para indivíduos em processo, inacabados e indefinidos como nós. E este passa a ser o tema da literatura agora. Podemos seguir o que disse o pensador jamaicano que reside na Inglaterra Stuart Hall, ao apontar que figuramos uma “modernidade tardia”, pautada ainda por conceitos e pela produção de pensamento dos séculos XIX e XX, o que sugere um possível equívoco do homem contemporâneo ao se auto-inti-tular, hoje, um sujeito pós-moderno. As questões do nosso tempo ainda são as mesmas que permeavam esses séculos tidos como modernos, e a elas o homem se volta, sempre, em busca de respostas, do entendimen-to maior das coisas do seu tempo, uma tentativa de se descobrir nas origens das transformações, encontrar a si mesmo na compreensão de quem é esse homem “moderno” ou “pós-moderno” que agora habita, transita este espaço.

Nascido em 1932, na Ja-maica, teórico da cultura,

chegou a trabalhar com Raymond Williams, teórico

citado neste livro-texto.

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Capítulo 11O transeunte “pós-moderno”: a vida contemporânea

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11 O transeunte “pós-moderno”: a vida contemporânea

Compreender quem é o sujeito ativo agora da vida nas cidades, quem

produz e quem tenta se mover nas cidades através e a partir da literatura.

Podemos nos perguntar agora: que homem é este que agora habita e transita este espaço e por onde se move a literatura para tentar dizer um pouco deste homem? Nas grandes cidades a paisagem virou imagem, o olho perdeu a capacidade contemplativa de olhar em volta, de descobrir, tal qual o olhar detetivesco e poético do flanêur. A rua, lugar da experi-ência moderna, onde se concentravam memórias e sentimentos, histó-rias diversas por objetos deixados à toa, virou avenida, vias rápidas de trânsito alucinante. As galerias transformaram-se em Shoppings Centers, onde a vida contemporânea é condensada e embalada. O flanêur sai de cena e cede lugar àquele que chamaremos de transeunte “pós-moderno”, regido pela aceleração do tempo e pela compressão dos espaços que per-dem a sua centralidade, sua continuidade e passam a se organizar de uma forma virtual. Um novo transeunte que se desenraiza e se dilui, constan-temente, na imaterialidade ou artificialidade dos lugares.

O novo passante não habita mais as ruas, que viraram condição de passagem, mas se sente em casa no interior dos Shoppings Centers, tomado pelo espetáculo da mercadoria cuidadosamente exposta nas vi-trinas, pelos apelos publicitários. Um olhar que antes era poético e con-taminado, agora percorre superficialmente os espaços e não reconhece mais as fisionomias do seu tempo, tampouco se reconhece no outro. Um olhar que fragmenta e sintetiza a vida. No seu passeio, o tempo se torna indistinto em espaços sempre contínuos.

Sobre esta mudança no caráter do passante, Bigal assim escreve:

O usuário que se prostra defronte à vitrina não é mais um flanêur, mes-

mo porque a galeria não é mais uma rua que virou interior (final do

século XIX), mas um interior que virou rua (lojas e shoppings do século

XX). O interior do flanêur, produto legítimo da multidão, foi descoberto

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Estudos Literários II

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pelo transeunte, produto bastardo da massa. As galerias, seu refúgio, são

substituídas pelas grandes lojas, sua decadência. [...] Ao perder o olhar

poético do flanêur, o usuário ganhou um olhar labiríntico, tão labiríntico

quanto o espaço urbano, tão labiríntico quanto as identidades que lhe

outorga a vitrina (BIGAL, 2001, p.31).

O transeunte pós-moderno é contemporâneo dos deslocamentos contínuos, dos lugares de passagem, da fragmentação da memória e do próprio indivíduo. Tece a sua própria cidade a partir dos seus itinerá-rios, cria seus centros e abstrai a cidade que sobra, que lhe escapa. O seu olhar aproxima-se do olhar do voyeur. Observa a cidade sem fazer parte dela, sem interferir, sem embrenhar-se nos lugares a fim de descortinar a vida, seus segredos e histórias, numa relação de completa apatia, indi-ferença com a cidade. O transeunte pós-moderno vive o tempo da sua percepção, confinado na sua própria consciência, perdido com o seu olhar labiríntico como um turista.

Os textos de um autor como Bruno Zeni, se comparados à poesia baudelairiana, mais especificamente ao poema que você já viu, A uma passante, nos indica que uma mudança no olhar se dá muito claramente entre o indivíduo moderno e o transeunte “pós-moderno”. Embora sejam leituras parecidas, que falam de um mesmo homem anônimo e sozinho e da sua impossibilidade de estar com o outro, sujeito da multidão também anônima, a expressividade literária contemporânea nos diz do quanto o sujeito contemporâneo perdeu em poesia e lirismo em relação à poesia de Baudelaire. Na verdade, a literatura, hoje, se dá de uma maneira diferente, refletida na condição de uma outra leitura de mundo, um novo olhar, con-taminado e adoecido, direto, cru, sem censuras ou eufemismos.

Vejamos um outro texto do livro de Bruno Zeni:

Atributos físico-emocionais de uma pré-cópula (frisson). Olham-se ao

mesmo tempo. Medem-se nos olhos e viram-se de novo para frente. Mas

é como se continuassem se fitando, pois ela pensa de lá, ele de cá, ficam

sonhando. Querem olhar-se de novo. Ele mede o carro dela, os detalhes

da lataria e os faróis, como se fossem o corpo dela. Dizem que os homens

escolhem as mulheres segundo as possibilidades reprodutivas delas. Por

instinto, mesmo. Ele leu o jornal. Ela, por sua vez, pensa como seria ma-

ravilhoso fazer parte do mundo daquele cara. Ele pode me salvar. Ele vai

me fazer feliz porque os homens sabem o que querem. A voz linda dele,

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Capítulo 11O transeunte “pós-moderno”: a vida contemporânea

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o jeito de pegar, as coisas que ele pensa. Se ele prefere jogar sinuca, fu-

tebol ou cozinhar. Os lugares todos aonde ele vai. Ele quer mais é saber

dos atributos. Ele olha de novo, ela não. Ele já quer machucá-la. A gente

se confunde bastante nesta vida mesmo (ZENI, 2002, p.57).

O que nos fica claro é que a contemporaneidade representada por Bruno Zeni em seu texto corresponde à perdição do flanêur, ao seu de-saparecimento. Surge um novo homem da multidão, ou das massas, que, ao contrário do passante, transita, percorre os lugares freneticamente sem interagir com eles, dilui-se no tempo, fragmenta-se. O transeunte contemporâneo, definitivamente, perdeu o olhar poético do flanêur. No texto de Zeni, os encontros são mediados pela aparência, pelas formas, pela idéia que se faz do outro e o desejo desperto apenas por um simples passear do olhar sob um corpo desconhecido, sem nome.

Na verdade, a literatura ainda muito pouco sabe sobre este novo

passante de agora. Ela procura registrar de alguma maneira a vida

nestes espaços de nossa memória. Sabe-se apenas que a literatura

produzida hoje inaugura um outro modo de experimentar a vida – o

da experiência com o volátil, o transitório ou o próprio definhamento

e a fragmentação da experiência em si em nome de uma outra vivên-

cia, que nem você nem nós conseguimos dizer direito. Mas tentamos,

o tempo inteiro. E este nosso pequeno estudo tenta, minimamente,

cartografar algo da literatura com essas experiências com o espaço.

Leia mais!

OLALQUIAGA, Celeste. Megalópolis – sensibilidades culturais con-temporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 1998.

Este livro trata do modo como vivemos agora nas cidades, do consumo ex-cessivo à alta tecnologia, atravessando as dobras artificiais e indiretas das atuais formas de vida. Onde a arte e a literatura no meio disso tudo? Celeste vai da moda até a arte e a literatura até chegar aos receios de uma era es-pacial desumanizada e tecnológica. Quais os riscos da cultura no mundo contemporâneo? Leitura fundamental para o seu aprendizado.

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