revista de estudos literários, lingüísticos, culturais e da … · 2020. 10. 3. · revista de...

928
Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS da UPE-Garanhuns N.° 16 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499. UPE/Garanhuns - PE – Brasil D.O.I: 10.13115/2236-1499 ANAIS DO VOLUME II AUTORES DE F a L 11 a 14 de maio de 2015 Universidade de Pernambuco UPE Campus Garanhuns

Upload: others

Post on 13-Mar-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade

Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS

da UPE-Garanhuns

N.° 16 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.

UPE/Garanhuns - PE – Brasil

D.O.I: 10.13115/2236-1499

ANAIS DO

VOLUME II

AUTORES DE F a L

11 a 14 de maio de 2015

Universidade de Pernambuco – UPE

Campus Garanhuns

Page 2: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Ficha catalográfica

REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 16 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de

Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.

(2015, Garanhuns, PE). Vol. II

Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e

Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,

PE, UPE.

Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais

1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária

ISSN: 2236-1499

CDU 869.0(81)

CDD B869

Page 3: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE

Campus Garanhuns

REITOR

Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão

VICE-REITORA

Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante

DIRETOR

Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior

VICE-DIRETORA

Profª. Ms. Rosângela Falcão

COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS

Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes

VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS

Profª. Ms. Dirce Jaeger

COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO

COORDENADORA

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)

Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)

Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)

Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS)

Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)

Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)

Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)

Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)

Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)

Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)

Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)

Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)

COMISSÃO EDITORIAL

Page 4: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

APOIO

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES

Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE

Page 5: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

SUMÁRIO

VOLUME I

PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO

ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................

Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)

Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)

23

GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE

LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................

Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)

30

ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA

MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E

FERRÉZ..............................................................................................................................

Adriano Carlos Moura (IFF)

40

O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A

METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............

Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)

50

MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,

IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................

Ágatha Costa Salcedo (UFAL)

59

DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM.................

Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

67

OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................

Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)

74

ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA

COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................

Alberto Felix da Hora (UPE)

86

POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS

JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA...

Alberto Roiphe (UFS)

98

INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO

DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”..........................................................................

Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)

108

Page 6: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)

A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA

NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ

ELÉTRICA..........................................................................................................................

Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)

119

A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE

RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................

Aline Peixoto Bezerra (UERN)

131

A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE

EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................

Almir Almeida de Oliveira (UFAL)

143

UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE

QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................

Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)

Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)

155

ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS

PERSONAGENS................................................................................................................

Amador Ribeiro Neto (UFPB)

Rafael Torres Correia Lima (UFPB)

164

CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS.............

Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)

176

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE

LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................

Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)

184

METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO

RECIFE POR CARLOS PENA FILHO..............................................................................

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

189

DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS

ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................

Ana Carolina A. de Barros (UFPE)

199

O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS

LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................

Ana Cátia Silva de Lemos

Maria Margarete Fernandes de Sousa

211

O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA

CONTEMPORANEIDADE................................................................................................

Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)

222

QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS

DO TRABALHO COM A IMAGEM.................................................................................

Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)

230

A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO

Page 7: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................

Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)

239

LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE

SAUSSURE.........................................................................................................................

Ana Paula El-Jaick (UFJF)

250

DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA

FERRANTE........................................................................................................................

Ana Paula Raposo (UFMG)

256

O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA

LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO

NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................

Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)

Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)

266

GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,

DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO

SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................

André Cavalcante (UFPE)

277

POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA....................................................................

André Cervinskis (UFPE)

287

O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA

ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO

CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................

Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)

294

O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA

A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º

ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL...............................................................................

Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)

Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)

305

PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA

LISBOA...............................................................................................................................

Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)

317

A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO

DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER

ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................

Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)

327

O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA

DA ESTRELA.......................................................................................................................

Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)

Roniê Rodrigues da Silva (UERN)

336

O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA

INTERACIONAL...............................................................................................................

345

Page 8: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)

INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM..................

Antonielle Menezes Souza (UFS)

Marcio Carvalho da Silva (UFS)

355

O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)

363

O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................

Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)

375

A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................

Arturo Gouveia (UFPB)

383

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA

WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE

EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA...........................................................

Asenati Araújo de Melo (UNEB)

Juliana C. Salvadori (UNEB)

392

USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE

GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA

COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?.........................................................

Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)

401

O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO.

Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)

Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)

413

ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE

SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................

Bruna Bandeira (UFPE)

423

AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA

PETROBRAS......................................................................................................................

Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)

Rosilene Felix Mamedes (UFPB)

435

A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR

Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)

Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

446

A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA

IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................

Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)

455

AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..

Camila M. Burgardt (UFPB)

465

O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO

Page 9: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

JURAMENTO......................................................................................................................

Camilla Rodrigues Protetor (UPE)

Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)

477

NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA

LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................

Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)

487

A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:

UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA

UNEB..................................................................................................................................

César Costa Vitorino (UNEB/FVC)

498

SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA

EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)

509

DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO

SETE....................................................................................................................................

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)

Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)

519

ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO

CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)

528

FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O

TEXTO................................................................................................................................

Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)

540

DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM

PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................

Dalva Patricia de Alencar (URCA)

Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)

551

FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E

ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................

Dayanne Teixeira Lima (UFAL)

560

A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA

LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................

Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)

571

DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-

RACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E

ALTHUSSER......................................................................................................................

Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)

Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)

Edair Gonçalves (IFECT-SP)

578

OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO

DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO

Page 10: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

COMO LÍDER MESSIÂNICO...........................................................................................

Deividy Ferreira dos Santos (UPE)

593

PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE

APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS.....................................

Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)

Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)

605

ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE

PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE

PERNAMBUCO.................................................................................................................

Diana Pereira Costa Alves (UPE)

Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)

616

ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO

EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS..........................................................................

Diego Paulo da Silva (IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

628

ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,

LITERATURA E CINEMA................................................................................................

Diogo dos Santos Souza (UFAL)

Victor Mata Verçosa(UFAL)

639

FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM

“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................

Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)

Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)

648

DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM

SALA DE AULA................................................................................................................

Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)

Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)

659

LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE

ESCRITORES”...................................................................................................................

Edilaine P. de Sousa (UPE)

Magna Kelly Sales (UPE)

670

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS

PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................

Edmilson José de Sá (CESA)

684

O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................

Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)

695

HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA

INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................

Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

704

O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................

Elias Coelho da Silva (UFPB)

713

Page 11: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO

CARRERO..........................................................................................................................

Eliene Medeiros da Costa (UEPB)

725

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE

CLARICE LISPECTOR......................................................................................................

Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)

Elisabeth Battista (UNEMAT)

736

ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO

BRASILEIRO......................................................................................................................

Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)

Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)

746

MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA

NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................

Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)

Carla Moreira de Paula (UNICAP)

756

A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS

DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA

LINGUAGEM.....................................................................................................................

Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)

764

AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER

LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................

Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)

776

AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....

Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)

781

CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E

INTERTEXTUAL...............................................................................................................

Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)

790

A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........

Expedito Ferraz Júnior (UFPB)

798

VOLUME II

O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................

Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)

Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)

804

OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO

EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................

Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)

816

O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........

Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)

828

SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................

840

Page 12: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)

TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S

CREED................................................................................................................................

Felipe Cezar Menezes (UNEB)

Juliana Cristina Salvadori (UNEB)

Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)

852

CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........

Felipe de Castro Cruz (UFPB)

Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)

863

TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA......................

Felipe Vigneron Azevedo (IFF)

871

LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS..........................................

Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)

883

“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO....................................................................

Flávio Passos Santana (UFS)

894

A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA

NO ANTIGO ENEM...........................................................................................................

Francielle Santos Araújo (UFS)

Fabíola dos Santos Lima (UFS)

906

RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............

Francigelda Ribeiro (UFMG)

Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)

916

ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E

MULTIMODAL DO GÊNERO..........................................................................................

Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)

Roberta Caiado (UNICAP)

924

O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS

VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO

DA EAD..............................................................................................................................

Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)

936

RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A

PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................

Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)

Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)

948

O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA

FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................

Francisca Fabiana da Silva (UFRN)

960

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES...............................

Francisco Canindé de Assunção (SABERES)

971

DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981

Page 13: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)

AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................

Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)

993

A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE

ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA.......................................

Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)

1.002

A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO

FREIRE...............................................................................................................................

Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)

1.011

ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS

CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA

MEDEIROS.........................................................................................................................

Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)

1.024

VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO

SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................

Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)

1.037

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À

LEITURA DE POEMAS LÍRICOS....................................................................................

Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)

1.048

INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM

OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................

Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)

1.061

RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO

TEÓRICO À LUZ DO ISD.................................................................................................

Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)

1.070

A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO

SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................

Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)

Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)

1.083

GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR

AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............

Ilka Souza dos Santos (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.096

A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE

DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................

Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)

Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)

1.109

O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO

CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS..............................................................

Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)

1.113

PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO

Page 14: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL

DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................

Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)

1.126

A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA

DE HILDA HILST..............................................................................................................

Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)

Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)

1.140

REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO

MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN

POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................

Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)

1.149

OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..

Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)

1.159

O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA.......

Janicreis Gomes de Souza (UFPB)

Expedito Ferraz Júnior (UFPB)

1.170

A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO

DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................

Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)

1.180

PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA

PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................

Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)

1.190

O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS

DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................

Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)

1.203

COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,

DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................

Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)

Anderson de Souza Frasão (UFS)

1.211

REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON

HATOUM............................................................................................................................

Joanna da Silva (UFAM)

1.218

INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE

COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................

João Batista da Silva (UFRPE/UAG)

Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)

1.231

CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................

Jociane da Silva Luciano (UFRN)

1.243

PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM

LETRAS..............................................................................................................................

Joelma da Silva Santos (UFPB)

1.255

Page 15: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE

ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................

John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)

1.268

A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA

DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ..........................................................................

Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)

1.280

A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................

José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)

1.287

ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:

PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS...................

José Aurélio da Câmara (UFRN)

1.300

VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA..............................................

José Helber Tavares de Araújo (UFPB)

1.312

O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.

CUMMINGS.......................................................................................................................

José Vilian Mangueira (UERN)

1.325

ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL

LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA.....................................................

José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)

1.335

EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE

GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................

Josefa Maria dos Santos (UPE)

Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)

1.348

A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA

FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................

Josivaldo Silva Menezes (UPE)

1.361

A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE

INGLÊS...............................................................................................................................

Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)

Adriana Nunes de Souza (IFAL)

1.371

O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO

DRUMMOND.....................................................................................................................

Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)

1.382

O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS

DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)

APROVADOS PELO PNLD-2014.....................................................................................

Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)

1.393

A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA

NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................

Júlio César Martins de Sales (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.406

Page 16: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............

Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)

1.417

NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE....................................................

Karina Kelly Amâncio (IFAL)

1.432

UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA

ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................

Karine Alves David (UFRN)

1.438

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE

CRÍTICA.............................................................................................................................

Karla Karine Claudino Tenório (UPE)

1.450

A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE

ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....

Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)

Adna de Almeida Lopes (UFAL)

1.463

CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS

RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE

SOCIAL FACEBOOK.........................................................................................................

Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)

1.476

PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O

ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...….

Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)

Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)

1.486

GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA

PORTUGUESA...................................................................................................................

Katiane Silva Santos (IFAL)

1.498

UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS

CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE

BAKHTIN...........................................................................................................................

Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)

Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)

1.506

A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................

Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

1.519

FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM

REDE...................................................................................................................................

Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)

Benedito Gomes Bezerra (UPE)

1.529

CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINO-

AMERICANAS...................................................................................................................

Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)

1.541

DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS

PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO

Page 17: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................

Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)

1.553

GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO

ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................

Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)

1.564

O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO

GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS

PELO APRENDIZ..............................................................................................................

Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)

Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)

1.575

MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA

ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR...................................................................

Leonildo Leal Gomes (UFRN)

1.587

GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O

TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?...........................................

Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)

1.596

BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................

Lindjane Pereira (UFPB)

Líllian Régis (UFPB)

1.608

A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO

CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................

Luana Machado (UFAL)

Léa Maria da Silva Borges (UFAL)

1.617

APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A

CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................

Lucas Antunes Oliveira (UFPE)

1.625

O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS

TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA.............................

Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)

1.637

UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................

Luciana Bessa Silva (FALS)

1.648

A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS

COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................

Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)

Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)

1.659

UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO

COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO..............................

Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)

Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)

1.671

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –

PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS

DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................

1.679

Page 18: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................

Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)

1.689

AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –

UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................

Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)

Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)

1.697

VOLUME III

CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA

PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................

Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.707

O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR

UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA

POLÍTICA...........................................................................................................................

Manassés Morais Xavier (UFCG)

Maria de Fátima Almeida (UFPB)

1.718

LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE

DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................

Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)

Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)

1.729

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA

ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA

DE LÍNGUA.......................................................................................................................

Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)

Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)

1.741

O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO

ENSINO..............................................................................................................................

Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)

1.752

MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E

MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................

Márcia Oliveira (UFPE)

1.762

O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS..........................................

Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)

1.772

CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E

INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA......................................................................................

Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)

1.783

CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A

PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............

Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)

1.794

Page 19: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA

INGLESA............................................................................................................................

Marcus V. Matias (UFAL)

1.800

O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA

EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................

Maria Angela Lima Assunção (UFRN)

1.812

SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O

LETRAMENTO..................................................................................................................

Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)

Erivaldo José da Silva (UFPE)

1.823

SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO

ANTUNES..........................................................................................................................

Maria Aparecida da Costa (UERN)

José Juvêncio Neto de Souza (UERN)

1.833

DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO

DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE

ESPANHA...........................................................................................................................

Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)

1.841

O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS

PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA...................................

Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)

1.851

A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................

Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)

1.859

MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA

SALA DE AULA................................................................................................................

Maria das Graças da Costa (UFCG)

Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)

1.866

EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA

NA SALA DE AULA.........................................................................................................

Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)

Maria Marlene dos Santos (UFRN)

1.875

MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO

PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS.................................

Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)

Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)

1.887

A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........

Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)

1.897

MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA

REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE

GILVAN LEMOS...............................................................................................................

1.909

Page 20: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)

ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE

ENGENHO..........................................................................................................................

Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)

1.920

MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E

CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO..............................................................................

Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)

Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)

1.929

ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL.............

Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)

Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)

1.942

“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE

CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES...........................................

Maria Rosane Alves da Costa (UPE)

1.952

ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO

DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................

Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)

1.963

LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE

PORTUGUÊS......................................................................................................................

Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)

1.974

MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO

MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................

Mariana da Silva Gouveia (UFCG)

1.981

AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM

DIÁLOGO...........................................................................................................................

Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)

1.988

A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA

DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA..........................................................................

Marília Gomes Teixeira (UFPE)

2.000

UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................

Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)

Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)

2.010

O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR

MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS...................................................

Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)

Camilo Rosa Silva (UFPB)

2.021

UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................

Max Silva da Rocha (UNEAL)

José Bezerra da Silva (FACESTA)

2.033

DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO-

APRENDIZAGEM DE LÍNGUA.......................................................................................

2.044

Page 21: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Mayara Oliveira Feitosa (UFS)

Elaine Vieira Gois (UFS)

ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA

TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….

Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)

2.052

ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................

Micheline Barros Chaves (UEPB)

2.062

DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS

PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............

Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)

2.075

A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS

ARGUMENTATIVAS........................................................................................................

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

2.087

O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO

DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................

Nadiana Lima da Silva (UFPE)

Monique Alves Vitorino (UFPE)

2.098

DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE

SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................

Naylane Araújo Matos (UNEB)

Juliana C. Salvadori (UNEB)

2.114

RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA

CARDOSO..........................................................................................................................

Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)

2.126

ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA..........................

Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)

Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)

2.138

LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO

FAZER?...............................................................................................................................

Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)

2.146

A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE

GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO..............................................

Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)

Manassés Morais Xavier (UFCG)

2.158

A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA

DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................

Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)

2.168

LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E

FORA DA SALA DE AULA..............................................................................................

Paula Tenório dos Santos (IFAL)

2.179

A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL

Page 22: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

BARRETIANA...................................................................................................................

Paulo Alves (UFPB)

2.186

OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO

POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE

ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................

Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)

Frederico de Lima Silva (UFPB)

2.198

ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO..............................................................................................

Pedro Santos da Silva (UFS)

2.210

POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:

INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO

ESTADO.............................................................................................................................

Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)

Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)

2.216

“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA

MODERNA.........................................................................................................................

Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)

2.229

A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE

SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA....................

Rebeca Sales Pereira (UFC)

2.240

A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA...................

Renata Xavier Moreira (UFPB)

2.252

CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES

SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................

Renato Lira Pimentel (UFPE)

2.259

PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE

APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................

Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)

Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)

2.266

A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)

2.277

CULTURA DIGITAL E ENSINO......................................................................................

Rosana Cardoso Gondim (UNEB)

2.286

REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:

VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................

Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)

2.297

TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO

FEMININO EM NELSON RODRIGUES..........................................................................

Rosana Trevisol Seibt (IFAL)

2.308

A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O

Page 23: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR..........................................

Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)

2.320

PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO

ENSINO MÉDIO................................................................................................................

Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)

Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)

2.328

A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:

ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO

MIDIÁTICO........................................................................................................................

Samuel Barbosa Silva (UFAL)

2.344

ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................

Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)

2.354

A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............

Sara de Miranda Marcos (UPE)

2.366

DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................

Sarah da Silva Barretto (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

2.379

ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E

ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE

PORTUGUÊS......................................................................................................................

Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)

2.388

FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE

CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................

Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)

2.400

O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO

BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS...................................................................

Sheila Alves de Oliveira (UFPE)

2.407

TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA

CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU.................

Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)

Antonia Marly Moura da Silva (UERN)

2.418

A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO

LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO

LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–

...........................................................

Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)

2.426

ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO

ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................

Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)

Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)

2.434

(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO

Page 24: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................

Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)

Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)

2.442

TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES

DE MIA COUTO................................................................................................................

Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)

2.454

MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............

Susana Souto Silva (UFAL)

2.464

ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A

APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA.....................................................................

Tamiris de Almeida Silva (IFAL)

Adriana Nunes de Souza (IFAL)

2.472

MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO.....................

Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)

2.481

SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE

MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA......................................................................

Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)

2.489

O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,

UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................

Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)

2.501

UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER

LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A

NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................

Thays Albuquerque (UEPB)

2.508

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE

FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO

SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................

Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)

2.516

LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS

TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................

Valfrido da Silva Nunes (UFAL)

2.525

A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................

Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)

2.536

LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA

DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI....................................................................

Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)

2.549

SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:

INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................

Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)

2.559

SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A

LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................

2.570

Page 25: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)

A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES

NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO

FUNDAMENTAL...............................................................................................................

Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)

2.581

SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA

METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................

Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)

2.592

LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É

PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................

Wanderly Alves Ferreira (UPE)

José Laécio de Oliveira (UPE)

Jairo Nogueira Luna (UPE)

2.601

LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO

DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”....................................................................

Wellington Lopes dos Santos (UFPB)

2.612

CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM

CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................

William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)

Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)

2.623

MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO

PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........

Zaine Guedes da Costa (UFPE)

Rafael Alves de Oliveira (UFPE)

2.634

O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE

DISCURSIVA.....................................................................................................................

Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)

Antônio Luciano Pontes (UERN)

2.645

Page 26: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 804

O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL [Voltar para Sumário]

Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)1;

Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)2.

1. Introdução

Antes de nos aprofundarmos sobre o tema o qual nos propusemos trabalhar, convém

que façamos uma breve reflexão acerca da evolução da língua, e para isso faz-se necessário

que admitamos a característica dinâmica de evolução das línguas, como esclarece Martelotta:

A mudança é um fator inerente às línguas naturais, que se desenvolveram para veicular a

comunicação entre os seres humanos. [...] Como essas concepções se estabelecem

culturalmente, com os humanos interagindo entre si e cristalizando formas de significar a

realidade, é na própria interação que essas concepções se alteram, motivando as mudanças

estruturais que as línguas sofrem com o passar do tempo. (MARTELOTTA, 2011, p. 122).

É fato que as línguas mudam. Essa mudança, é claro, não acontece da noite para o

dia, são necessárias décadas, e muitas vezes séculos para que elas sejam percebidas numa

dada língua. Assumindo uma postura linguística embasados na teoria sociofuncionalista, que

admite o caráter social e interativo da linguagem, poderíamos afirmar que no processo de

mudança linguística existem vários fatores envolvidos; tais como, questões históricas, sociais,

políticas, entre outras.

O ser humano, único da espécie animal com a capacidade cognitiva do uso de um

sistema linguístico, o que o diferencia dos demais, sente a necessidade de nomear e renomear

objetos, seres etc., daí um dos motivos da mudança linguística.

A mudança linguística acontece também através do fenômeno chamado neologismo

que, de acordo com Alves (2007), se subdivide em neologismo fonológico, neologismo

sintático, neologismo semântico e neologismo por empréstimo. Aqui nos deteremos ao

neologismo sintático que trata da criação lexical. A partir da premissa de que as palavras

sofrem alterações na sua forma escrita. Para isso, nosso corpus linguístico será formado a

1 Graduanda em Licenciatura Plena em Letras - Universidade Federal Rural de Pernambuco - Unidade

Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST). 2 Professor Adjunto 3 de Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural de Pernambuco - Unidade

Acadêmica de Serra Talhada.

Page 27: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 805

partir de palavras presentes em canções do cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil. Após a

seleção de algumas palavras buscaremos classificá-las segundo as classes gramaticais

estabelecidas na gramática normativa e identificando o tipo de formação neológica.

O trabalho está organizado em cinco momentos: introdução, já apresentada;

desenvolvimento, com reflexões teóricas sobre o fenômeno, apresentação e análise dos dados;

conclusão, com algumas considerações finais e referências.

2. Algumas reflexões teóricas sobre o fenômeno

Apresentamos a seguir algumas reflexões teóricas acerca do fenômeno da neologia,

segundo a concepção de alguns estudiosos.

Para Castilho,

Na lexicalização por neologia, criamos uma nova palavra, não herdada da língua-

fonte, porém organizada de acordo com as regras morfológicas da língua-alvo. É o

caso de coisar, um verbo-omnibus, calcado num substantivo igualmente amplo,

coisa. (CASTILHO, 2010, p. 113).

Já Bechara destaca que

Os neologismos [...] penetram na língua por diversos caminhos. O primeiro deles é

mediante a utilização da prata da casa, isto é, dos elementos (palavras, prefixos,

sufixos) já existentes no idioma, quer no significado usual, quer por mudança do

significado, o que já é um modo de revitalizar o léxico da língua. [...] Outra fonte de

revitalização lexical são os empréstimos e calcos linguísticos, isto é, palavras e

elementos gramaticais (prefixos, preposições, ordem de palavras) tomados

(empréstimos) ou traduzidos (calcos linguísticos) ou de outra comunidade linguística

dentro da mesma língua histórica (regionalismos, nomenclaturas técnicas e gírias) ou

de outras línguas estrangeiras – inclusive grego e latim –, que são incorporados ao

léxico da língua comum e exemplar. (BECHARA, 2006, p. 351).

Em Castilho, “língua-fonte” refere-se à língua de origem da palavra, e não ao idioma

que o vocábulo faz parte atualmente, sendo assim, a maioria dos neologismos seriam criados a

partir de palavras em uso. É possível entender que em ambas as gramáticas o fenômeno é

tratado de forma muito parecida.

Voltando-se para a origem da palavra neologismo sua função se explicaria através de

sua estrutura, de acordo com publicação no site da Revista Nova Escola, “‘neo’, prefixo grego

que significa ‘novo’, une-se a ‘logo’, do grego ‘logos’, que exprime a ideia de palavra, e o

‘ismo’, sufixo também grego (ismos), que forma substantivos.”.

Page 28: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 806

Desde sempre todas as línguas vivas passaram e passam por transformações, assim

muitas palavras usadas em um determinado momento histórico acabam caindo em desuso e

desaparecendo do sistema linguístico. Mas não para por aí, a capacidade dinâmica das línguas

e o uso interativo de seus falantes, fazem com que algumas palavras já existentes ganhem

novos sentidos – passando por um processo chamado gramaticalização, que não abordaremos

aqui – e outras surgem através da junção de vocábulos pré-existentes ou do contato com

outras línguas. Embora existam críticas com relação à criação de neologismos, é inegável que

eles desempenham um papel de fundamental importância numa língua, uma vez que a

ampliação do léxico duma língua acontece através desse fenômeno. Referindo-se a isso

poderíamos retomar ao período Antiguidade Clássica onde Horácio na “Arte Poética” indaga:

“Por que haveria eu de ser repreendido por acrescentar algumas palavras ao vocabulário, se a

linguagem de Catão e de Ênio enriqueceu o nosso idioma pátrio com a introdução de novos

termos?”. Nesse contexto Horácio referia-se a criação de novas palavras, o que hoje

entendemos por neologismo. Na área da literatura contemporânea tem como destaque na

criação neológica o escritor João Guimarães Rosa, que além da sua genialidade na escrita

literária, era conhecido pela criatividade linguística com a capacidade de sempre inventar

novas palavras para nomear as coisas que compunham seu universo literário.

A formação de palavras por neologismo está dividido entre derivação e composição3.

Bechara (2006, p. 351), com um olhar sobre o processo de criação de novos vocábulos,

esclarece que “De todos [...] procedimentos de revitalização do léxico, merecem atenção

especial para a gramática a composição e a derivação, tendo em vista a regularidade e

sistematicidade com que operam na criação de novas palavras.”

Com base em Castilho (2010), para melhor compreendermos o fenômeno montamos,

a seguir, um diagrama contendo as categorias linguísticas abordadas:

3 É importante ressaltar que derivação e composição não são os únicos processos de formação de palavras, ainda

existem oniônimos, os acrônimos e as amálgamas, porém eles não têm tanto uso quanto derivação e composição.

Page 29: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 807

Figura 1: Diagrama de categorias linguísticas, com destaque em cinza para as categorias

trabalhadas.

A composição dá-se pela junção de dois vocábulos formais, independentes, esse

processo pode ocorrer por: aglutinação, quando há perda de material fonológico e

justaposição, quando conserva integralmente todas as partes, que em alguns casos vêm apenas

separada por hífen. Já a derivação pode ser caracterizada em sete classes: regressiva,

abreviação, sufixação, prefixação, parassintética, prefixação e sufixação e imprópria.

Resumindo, a derivação sempre ocorrerá pela união de base com um afixo e na maioria dos

casos ocorrerá mudança de classe gramatical. (cf. Basilio, 2005).

2.1. Neologismo musical

Há vários motivos para a criação de novas palavras na música, até mesmo questões

políticas, sociais, como a censura que vigorou na época da ditadura militar no Brasil onde

vários artistas encontraram na música subterfúgio para expressar sua arte e sua opinião

perante o que estava acontecendo na sociedade e tratando nelas os assuntos que não eram

permitidos pelo governo militar (cf. Revista Língua Portuguesa, p. 22-25).

Gilberto Gil, compositor e intérprete baiano, iniciou sua carreira na época da

ditadura militar, o que influenciou na sua obra e que consolidou seu destaque na cultura

brasileira, já que suas letras mostram que o compositor não recuou e continuou a produzir

suas canções altamente politizadas, revolucionárias e engajadas que iam contra o governo

militar, razão pela qual foi perseguido, mas isso não o intimidou, e mesmo assim ele

continuou a expor o que estava acontecendo na sociedade vigente.

Page 30: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 808

3. Apresentação e análise do corpus

O corpus do trabalho foi submetido a uma minuciosa pesquisa de verbetes presentes ou

não nas seguintes obras de referência:

Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa que apresenta 228 mil verbetes e

308 mil acepções, e está disponível em: http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame; e

o

Novo Aurélio da Língua Portuguesa (2004), com sua publicação na 3ª edição,

revisada, com um total de 435 mil verbetes, definições, locuções e acepções.

Os dicionários apresentados acima foram escolhidos pela sua contemporaneidade no

mercado editorial brasileiro e credibilidade neles pregados pela comunidade acadêmica.

A nossa análise levará em consideração a interpretação dos dez casos de neologismos

encontrados em nove canções4 do cantor, compositor e intérprete Gilberto Gil. Devemos

considerar também que a maioria delas foram compostas durante o período da ditadura militar

(1964-1985) e do movimento Tropicalista (1967 – início), do qual Gil fez parte, movimento

este que tinha como principal objetivo utilizar a música como “arma” de combate político à

ditadura militar.

Figura 2: Tabela contendo a seleção e pré-análise do corpus linguístico5.

N

º

Casos

de

neolo

gismos

Formações por

composição

Formações por

derivação

Cl

asses atuais

1

.

Gang

amorada

Ganga (Subst.

próprio) + morada ([nesse caso,

Gir. para namorada] Subst.) –

aglutinação.

- Su

bstantivo.

2

.

Mini

mistério -

Mini (Pref. de

pequeno) + mistério (Subst.)

– prefixação.

Su

bstantivo.

3

.

Mini

mina -

Mini (Pref. de

pequeno) + mina ([Gir. para

menina] subst.) –

prefixação.

A

djetivo.

4

.

Viole

ntidão

Violenta (Adj.) +

lentidão (Subst. derivado) - -

Su

bstantivo.

4 Verificar, nos anexos de 1 a 9, as letras, integrais, das canções. 5 Verificar, no anexo 10, tabela de abreviações, retirada de Ferreira (2004), usadas na classificação das palavras

da figura 2.

Page 31: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 809

aglutinação.

5

.

Parab

olicamará

Parabólica (Subst.) +

camará[+da] (Adj.) –

aglutinação.

- A

djetivo.

6

.

Vira

mundo

Vira (V.) + mundo

(Subst.) – justaposição. -

A

djetivo.

7

.

Marm

undo

Mar (Subst.) + mundo

(Subst.) – justaposição. -

Su

bstantivo.

8

.

Demo

grafizada -

Demografi[+a]

(Subst.) + zada (Suf.) –

sufixação.

A

djetivo.

9

.

Gaivo

taria -

Gaivota (Subst.) +

ria (Suf.) – sufixação.

V

erbo.

1

0.

Zoiló

gico

Zoo (Abrev. de

zoológico) + ilógico (Adj.) –

aglutinação.

- A

djetivo.

3.1 Neologismo 1:

Namba, a gangamorada

(Gilberto Gil)

Namba deita pa Ganga

Olha nos olhos

[...]

Namorada de Ganga

Nambamorada

Nambamorada de Ganga

Nambamorada

No contexto musical de Gilberto Gil a palavra “gangamorada”, é composta pelo

vocábulo Ganga, que aparece como nome de pessoa, substantivo próprio, e morada que

aparece como uma espécie de gíria para namorada, substantivo comum. Com a junção desses

substantivos surge o neologismo: gangamorada. Sintetizando, Namba e Ganga seriam

namorados, a junção entre ganga+morada (no título) seria entendida como “Namba, a

namorada de Ganga”.

3.2. Neologismos 2 e 3:

Minimistério

(Gilberto Gil)

[...]

Ande por onde andam

Aquelas minas

Aquela velha gama

E aquela nova

Aquela nova minimina, flor do ministério

Quero dizer, do mistério

(Que mistério tem Clarice?)

[...]

Procure conhecer melhor

Seu minimistério interior

Procure conhecer melhor

Page 32: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 810

O cemitério do Caju

Procure conhecer melhor

[...]

A palavra “minimistério” é composta pelo mini, prefixo de pequeno, e mistério,

substantivo comum. Aqui poderíamos supor que se trata do mistério envolvido no

desaparecimento de várias pessoas durante a ditadura, nesse caso, em especial, o

desaparecimento da “minimina, flor do ministério”, isto é, da pequena menina que poderia

trabalhar em uma repartição pública (ministério). Ao usar “minimistério” o autor nos faz

inferir que aos olhos dos ditadores o desaparecimento da garota era um pequeno mistério, sem

importância, mas na verdade para seus amigos e família se tratava de um grande mistério. No

caso de “minimina” a palavra é composta por mini prefixo de pequena e mina gíria que vem

do vocábulo menina (substantivo comum).

3.3. Neologismo 4:

Violentidão

(Gilberto Gil)

A do ladrão é a violência bruta

Não é a mesma da televisão

Televisão é violenta

Lenta, lenta

Violentidão

[...]

E com tanta ciência

Quem nem parece ser tão violenta

A violência que sofre o freguês

No caso de “violentidão” temos uma formação por dois vocábulos formais:

violência, adjetivo, e lentidão, substantivo derivado. Com a junção das duas palavras temos a

perda de alguns elementos fonéticos transformando duas palavras distintas em apenas uma.

Certamente o autor quis referir-se à “violência” transmitida, indiretamente, ao telespectador

de forma lenta, gradual, através da televisão. É importante destacar que nesse caso não

interpretemos como sendo uma violência física, mas sim algo parecido com uma violência

ideológica. As pessoas podem ser influenciadas por programas de televisão.

3.4. Neologismo 5:

Parabolicamará

(Gilberto Gil)

Antes mundo era pequeno

Porque Terra era grande

Hoje mundo é muito grande

Porque Terra é pequena

Do tamanho da antena parabolicamará

Page 33: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 811

Ê, volta do mundo, camará

Ê, ê, mundo dá volta, camará

[...]

“Parabolicamará” vem de parabólica, substantivo comum, e camará(+da), adjetivo,

ou seja, uma “parabólica camarada” (amiga). Parabólica, na música, é um referente ao avanço

da tecnologia e informatização da época. Com essa tecnologia a terra passaria a ser pequena

como em um dos versos da canção: “Porque Terra é pequena”, isto é, a globalização seria

trazida aos lares através do sinal analógico.

3.5. Neologismo 6:

Viramundo

(Gilberto Gil e Capinan)

[...]

Gritando para assustar

A coragem da inimiga

Pulando pra não ser preso

Pelas cadeias da intriga

[...]

Sou viramundo virado

Pelo mundo do sertão

Mas inda viro este mundo

Em festa, trabalho e pão

Virado será o mundo

E viramundo verão

[...]

A palavra “viramundo” é formada por vira, do verbo virar, e mundo, substantivo

comum. Nesse caso, “viramundo” é referente à vontade do eu poético em transformar a

situação em que a sociedade vivia no momento da ditadura. No trecho “Mas inda viro este

mundo/ Em festa, trabalho e pão”, fica clara três das necessidades básicas ao ser humano:

festa (lazer), trabalho e pão (alimento), direitos estes que para muitos eram privados durante o

regime militar.

5.6. Neologismo 7:

Marmundo

(Gilberto Gil)

O mar do mundo sujou

Manda o mundo se limpar

O mar do mundo secou

Manda o mundo se molhar

O mar do mundo entornou

Manda o mundo se fechar

O mar do mundo acabou

Manda o mundo se acabar

O mar do mundo ficou

Um mar imundo demais

Page 34: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 812

Se a barra mundo pesou

O mundo sabe o que faz

[...]

Em “Marmundo” temos uma palavra formada pela união de dois substantivos

comuns mar e mundo. Nesse contexto, mar está relacionado a pessoas, ou uma grande

quantidade de pessoas, como na expressão popular “um mar de gente” e mundo o lugar, a

sociedade, onde elas habitam.

3.7. Neologismo 8:

Banda Larga Cordel

(Gilberto Gil e Capinan)

[...]

Rio Grande do Sul, Germania

Africano-ameríndio Maranhão

Banda larga mais demografizada

Ou então não, não adianta nada

Os problemas não terão solução

Piraí, Piraí, Piraí

Piraí bandalargou-se um pouquinho

Piraí infoviabilizou

Os ares do município inteirinho

Com certeza a medida provocou

Um certo vento de redemoinho

[...]

A palavra “demografizada”, formada por demografi(+a), substantivo comum, e -zada,

sufixo, certamente, na canção, aparece com o sentido de levar a tecnologia da internet banda larga à

população (demografia), isso fica evidente nos versos “Piraí bandalargou-se um pouquinho/ Piraí

infoviabilizou”.

3.8. Neologismo 9:

A gaivota

(Gilberto Gil)

[...]

Gaivota, te amo e gaivotaria sempre em ti

Gaivotar seria poder te eleger para mim

Eu te quero, e se fosse o caso, quereria mais ainda

Ser, eu mesmo, gaivota sobre mim

Sobrevoar meus temores, meus amores

E alcançar o alto, alto, o mais alto dos teus sonhos

Dos teus sonhos de subir

[...]

A formação da palavra “gaivotaria” acontece pela junção de gaivota,

substantivo comum, e -ria sufixo. Esse neologismo surge na canção como um verbo e pelo

contexto pode tratar-se de um caso em que o eu poético expressa o amor pela sua “Gaivota”, e

certamente a concretização desse amor.

Page 35: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 813

3.9. Neologismo 10:

Zoilógico

(Gilberto Gil e Capinan)

Zoológico

Ilógico

Logo, sou

Zoológico

Ilógico

Logo, sou

O menino que abriu a porta das feras

No dia em que todas as famílias visitavam o Zoo

O Zoo, o Zoo

O Zoo, o Zoo

O Zoo

[...]

E por final, “zoilógico” é formada por zoo – abreviação de zoológico, que nesse caso

perde a última vogal pela aglutinação das palavras – e ilógico, adjetivo. Zoilógico estaria aqui

representando um “zoológico ilógico”, ou seja, um zoológico sem lógica, no sentido de que

pessoas estariam presas por grades como animais irracionais.

Sobre a análise das canções, é imprescindível mencionar que por se tratar de, em sua

maioria, músicas com letras muito extensas buscamos interpretar apenas o fragmento que o

neologismo aparece. É possível analisar de forma bem mais ampla, complexa e

contextualizada todas as letras.

4. Considerações finais

A música popular brasileira, na sua maioria, têm letras compostas de uma riqueza

semântico-lexical. A composição dessas letras é uma forma de “brincar” com todas as

possibilidades que a língua oferece e entre elas o neologismo que nos concede a possibilidade

de criar, reinventar a língua. Esse neologismo musical pode nos fornecer informações sobre

uma sociedade em determinado momento histórico-social, como é o caso do neologismo nas

canções de Gil, que nos faz conhecedores de seu engajamento político-social contra a

opressão causada pelo regime militar.

A lexicalização por neologismo, apresentada nas canções mencionadas anteriormente,

nos mostra a capacidade de Gil em juntar palavras que, se vistas separadamente, não têm

nenhuma relação lexical ou semântica, mas que em sua criação poética, contextualizada,

ganham forma e sentido. É isso que enfatiza Antunes:

[...]se cada texto, em alguma medida, cria sua própria coerência, no texto literário,

essa possibilidade é levada ao cúmulo. Nele, as unidades linguísticas ganham

autonomia de uso e de combinação; perdem [...] a subserviência a padrões impostos

Page 36: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 814

pelas convenções do sistema. São peças de um jogo (ou de jogos), cujas regras

particulares se criam no próprio ato da enunciação, exatamente pela quebra do que

era regularmente previsível. (ANTUNES, 2012, p. 125).

Com este trabalho percebemos a complexidade do fenômeno de formação de palavras

e que a língua como sistema dinâmico que muda, renova-se para atender as necessidades de

seus falantes e essa necessidade está presente também em canções, tendo como princípio que

a música é uma forma de expressão de um indivíduo.

Num corpus com dez formações neológicas encontradas em nove músicas de Gilberto

Gil, observou-se dois vocábulos formados pelo processo de derivação prefixal, dois por

derivação sufixal e seis por composição, sendo quatro por aglutinação, onde há perda de

material fonológico, e duas por justaposição. Notamos também que o músico sempre coloca

os neologismos por aglutinação nos títulos de suas canções dando ênfase a nova palavra.

Vale ressaltar que o resultado constatado nesta pesquisa, assim como em qualquer

trabalho, não pode ser tomado como verdade absoluta, no entanto, serve como base para uma

análise posterior com uma avaliação mais abrangente de outras músicas de Gilberto Gil.

5. Referências

ALVES, I. M. Neologismos: Criação lexical. 3. ed. São Paulo: Ática, 2007.

ANTUNES, I. Território das palavras: O estudo do léxico em sala de aula. São Paulo:

Parábola, 2012. p. 21-22.

BASÍLIO, M. Teoria lexical. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. p.

351.

BRYAN, G. Outras palavras: sucesso recente de canções como “Shimbalaiê” mostra o poder

da MPB de criar palavras que não existem. Revista Língua Portuguesa. ano 4, n. 55. São

Paulo: Segmento, 2010. p. 22-15.

CASTILHO, A. T. Nova gramática do português brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto,

2010. p.113-114.

COSTA, A. C.; OLIVEIRA FILHO, C. G.; MAIA, F. L. Neologismo na música popular

brasileira: com defeito de fabricação, Tom Zé. Disponível em:

<http://www.revistaaopedaletra.net/>. Acesso em: 31 mar. 13.

CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo. 4. ed. Rio de

Janeiro: Lexikon, 2007. p. 97-131.

Page 37: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 815

FERRAZ, A. P. Neologismos no português brasileiro contemporâneo:

aplicação ao ensino de português para estrangeiros. Disponível em: <http://iberystyka-

uw.home.pl/>. Acesso em: 31 mar. 13.

FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba:

Positivo, 2004.

GIL, G. Músicas. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br/>. Acesso em: 31 mar. 13.

HORÁCIO. “Arte poética”. In: As poéticas clássicas, São Paulo: Cultrix, 1990. Trad. Direta

do latim de Jaime Bruna (p. 60-65).

MARTELOTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. vol. 1. São

Paulo: Cortez, 2011. p. 91-123.

NUNES, R. Qual a diferença entre neologismo e estrangeirismo? Revista Nova Escola.

Disponível em <http://revistaescola.abril.com.br/>. Acesso em: 06 abr. 13.

Page 38: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 816

OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL

COMO ACESSO AO EMPREGO NO BRASIL [Voltar para Sumário]

Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)

Este trabalho apresenta resultados iniciais do desenvolvimento da nossa pesquisa de

doutoramento que visa abordar questões relativas ao desvelamento dos sentidos dos discursos

produzidos pelo Estado brasileiro, em especial do atual governo, no tocante a sua política

educacional para a classe trabalhadora mostrando os mais variados sentidos, a partir dos

lugares em que são produzidos. Observando a engrenagem discursiva conforme esclarece

Cavalcante:

[...] o discurso é um modo de se pôr formas específicas de ideologia, que expressam

diferentes interesses de classes sociais, como por exemplo, a Política, a Religião, o

Direito, a Educação. Não nasce da vontade repentina de um sujeito, mas de um

trabalho sobre outros discursos com os quais o sujeito se identifica – repetindo,

reafirmando – ou desidentifica – negando, ressignificando. Assim, todo discurso

dialoga com outros que o precederam, incorpora elementos produzidos em outros

discursos, em outras épocas, que constituem uma memória discursiva. Na

perspectiva da AD, a memória discursiva compreende um conjunto de formulações

produzidas em outras épocas que constituem uma memória do saber discursivo.

Essas formulações são retomadas em novos discursos, produzindo diferentes efeitos

(de ratificação, de redefinição, de ruptura, de negação) do “já dito”. (Cavalcante,

2012, p.217).

Logo, a questão do ensino profissional, seus objetivos e a sua natureza não é um tema

novo no Brasil; remonta a uma memória discursiva que pode nos levar ao mundo colonial e às

rudimentares oficinas de artesãos ao lado das casas-grandes que eram responsáveis pela

transmissão, de maneira assistemática, de técnicas como tecer, esculpir, trabalhar o ferro,

passando por iniciativas do governo joanino como a de criação do “colégio das fábricas”, e

ainda, no segundo reinado com a fundação do Imperial Instituto de Surdos-Mudos ambos com

a finalidade de “dar profissão”.

Contudo, o que podemos perceber, a grosso modo, ao longo da história do ensino

técnico no Brasil, é a retomada de uma memória discursiva marcada pela tensão de sentidos

entre uma perspectiva defendida pela fração hegemônica da burguesia - de origem rural e

Page 39: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 817

ligada ao agronegócio - no bloco de poder de um ensino técnico como estratégia de

apassivamento da luta de classes e lugar de redenção para as classes sociais subalternas e seus

extratos mais “desafortunados” e uma outra perspectiva de ensino profissional mais ligada às

necessidades de formação de técnicos para atender as demandas de mão de obra das frações

urbanas industriais da burguesia e seu projeto de industrialização nacional. Logo, a discussão

do ensino profissional está umbilicalmente ligada ao nível de desenvolvimento das forças

produtivas e suas particularidades e a correlação de força entre as classes sociais, em especial

a correlação de forças entre os movimentos proletários e as frações burguesas nacionais com

suas conexões com a burguesia mundial.

Ao tentar desvelar os sentidos dos discursos produzidos, pelo Estado brasileiro a

respeito do ensino profissional, mostrando os mais variados sentidos a partir dos lugares em

que são produzidos, recorremos a Orlandi que esclarece a relação dos sujeitos com os

sentidos:

Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e

dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de

ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que

não dizem. De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os

sentidos se estabelecem; de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem.

(Orlandi, 2001, p. 10).

Nosso objetivo, neste trabalho, é desvelar como os sentidos do discurso do ensino

profissional são controlados/administrados pelo Estado capitalista. A A.D. à qual nos

filiamos tem como entendimento que o discurso é práxis social; dito de outra forma, o

discurso tem como função a mediação das relações sociais entre os homens, e sua marca

fundamental é a relação entre o dizer e suas condições de produção (CP). Como já foi dito, o

discurso é entendido como práxis social, e como tal ocorre em um determinado momento

histórico, estando sintonizado com as necessidades de produção e reprodução do ser social,

logo, para entendê-lo, é necessário analisar as condições sócio-históricas que possibilitam seu

surgimento.

São consideradas condições de produção do discurso (CPD) às relações que

compreendem os sujeitos, a situação ou conjuntura histórica e a memória discursiva. Os

sujeitos são os produtores, no sentido estrito do enunciado do discurso, porém determinados

sempre pela exterioridade e pela sua relação com os sentidos produzidos na memória

discursiva.

Nessa perspectiva, há que se considerar as condições de produção imediatas e amplas,

levando sempre em consideração o momento histórico que se está vivendo no momento de

Page 40: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 818

produção do discurso. E ficando a cargo da memória discursiva a tarefa de sustentar os

dizeres do discurso. Ou seja, tudo que já se disse sobre o assunto abordado.

No caso do nosso objeto em questão, trata-se de resgatar, a partir da produção

historiográfica da educação profissional no Brasil e de documentos oficiais e propagandas do

Estado brasileiro, a memória discursiva, ou o já-dito sobre a questão do “ensino técnico

profissionalizante”, e comparar com o agora, ou seja, com o dito no contexto do século XXI,

o discurso do “ensino técnico profissional como garantia de empregabilidade”. O fato de que

existe um já-dito que sustenta a possibilidade de dizer é fundamental para se compreender o

funcionamento do discurso e sua relação com os sujeitos, com a ideologia e com as condições

históricas do momento da produção do discurso.

Os fatores que constituem as condições de produção do discurso (CPD) compreendem

três fatores:

Um deles é o que se denomina ‘relações de sentido’. Segundo essa noção, os

sentidos resultam sempre de relações: ‘um discurso aponta para outros que o

sustentam, assim como para dizeres futuros.[...] não há, desse modo, começo

absoluto nem ponto final para o discurso. ’ [...]. Outro fator é o denominado

‘antecipação’ – mecanismo utilizado pelo sujeito para colocar-se no lugar do seu

interlocutor e avaliar os efeitos que suas palavras produzirão, orientando sua

argumentação de um modo ou de outro, conforme identifique seu interlocutor como

cúmplice ou adversário. Finalmente, o terceiro fator apresentado é o denominado

‘relações de força’. Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar do qual fala o

sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim se o sujeito ‘fala do lugar do Professor,

suas palavras significam diferente do que se falasse do lugar do aluno’ [...]. (Orlandi

apud Cavalcante 2007, p.38).

Para que possamos compreender melhor as relações entre: os sujeitos, os sentidos dos

discursos, a memória discursiva e a materialidade discursiva analisada, a discussão sobre essa

categoria fundante da AD, as condições de produção do discurso(CPD), torna-se

imprescindível, ainda que de maneira resumida, dentro dos múltiplos territórios da AD,

podemos concluir que essa categoria se refere às relações dos sujeitos com a infraestrutura e a

superestrutura da sociedade em um determinado momento histórico, como assevera

Cavalcante:

[...] concluímos que as condições de produção do discurso compreendem,

fundamentalmente, os sujeitos falantes em constante relação com a cultura, com a

sociedade e com a economia de um determinado momento histórico. Nessa inter-

relação os sujeitos assumem posições em relação a determinadas formações

ideológicas e discursivas. (Cavalcante 2007, p. 38).

Page 41: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 819

Por isso, a questão das CPD torna-se fundamental para penetrarmos nas brechas da

materialidade discursiva e entendermos as possibilidades do Tema da enunciação como

demonstra Bakhtin que nos diz:

“(...) O tema da enunciação é na verdade , assim como a própria enunciação,

individual e não reiterável. Ele se apresenta como a expressão de uma situação

histórica concreta que deu origem à enunciação”.(...) Conclui-se que o Tema da

enunciação é determinado não só pela formas linguísticas que entram na

composição( as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, o sons, as entoações),

mas igualmente pelos elementos não verbais. (Bakhtin 1981, p.128).

Ainda sobre a questão da importância das CPD e da processualidade histórica no

tocante a perceber os sentidos das palavras, Pêcheux, nos respalda com importante

contribuição quando assevera que:

O sentido das palavras [...] não é dado diretamente em sua relação com a literalidade

do significante; ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em

jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras e expressões são produzidas.

(Pêcheux apud Cavalcante, 2012, p. 216).

Ou seja, como nos ensina Bakhtin (1992) os discursos são compostos na sua

construção por milhares de fios ideológicos, não existindo assim, discursos imparciais, à

medida que os mesmos são construídos socialmente em um determinado momento histórico e

sintonizados com as necessidades criadas pelas relações sociais, como nos explica

Cavalcante:

Não há, pois discurso neutro ou inocente uma vez que, sendo socialmente produzido,

em um determinado momento histórico para atender às necessidades postas nas

relações entre os homens para a produção e reprodução de usa existência, veicula os

valores, as crenças, as visões de mundo que representam os lugares sociais, a

conjuntura política e ideológica que possibilitam o surgimento dos referidos

discursos. (Cavalcante 2012, p. 218)

Com base no que foi exposto até agora, buscaremos analisar o discurso do “ensino

técnico como acesso ao emprego” do governo do PT, em especial com a criação do Programa

nacional de acesso ao ensino técnico e emprego - PRONATEC, em um momento histórico

(entenda-se CPD) em que predomina uma profunda reestruturação produtiva, que comandada

pela sanha da hegemonia neoliberal do capital especulativo orquestra a ciência, a tecnologia e

a informação de tal forma que está desequilibrando a relação entre trabalho vivo e trabalho

morto. Esse fenômeno gera uma hipertrofia do último, colocando em cheque o próprio

funcionamento do modo de produção com o aumento crônico do desemprego estrutural, da

Page 42: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 820

precarização do trabalho, aumento absurdo do exercito de reserva industrial, e para aumentar

a complexidade das CPD imediata o capitalismo no atual momento está imerso em uma

profunda crise econômica, a exemplo do que ocorreu em 1929, sem perspectivas concretas de

saída, pois até o presente momento vem tentando resolver os dilemas do capital com mais

capitalismo.

É a partir dessa compreensão que tomamos partido com o nosso exercício de análise

do discurso nos propondo a examinar o discurso do “ensino técnico como acesso ao emprego”

como momento de (re)significação e cooptação que desemboca na construção do efeito de

sentido de que “ emprego tem, o problema do desemprego é a falta de qualificação dos

trabalhadores”, como podemos observar o enunciado construído na peça publicitária a

seguir:

Como podemos ver, ocorre um processo de silenciamento na sociedade brasileira,

onde os aspectos sombrios do capitalismo hipertardio ao longo do seu desenvolvimento,

produziram e produzem constantes conflitos de classe, e por suas peculiaridades esses

conflitos não são apenas de classe, mas também raciais e de gênero, pois os séculos de

escravidão e autoritarismo produziram silenciamentos, tanto no sentido de negar a

manutenção de referências ideológicas, como objetivando a construção do mito do “ensino

técnico como acesso ao emprego” pelo governo e seu principal aliado o sistema S. A

propaganda a seguir confirma a construção do mito:

Page 43: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 821

A engrenagem discursiva do “ensino técnico como acesso ao emprego” construída

pelo governo do PT e seus agentes constrói chamando as classes proletárias para que “MUDE

O RUMO DA SUA VIDA” um discurso aparentemente “novo”, mas se regatarmos à

memória discursiva a respeito do ensino técnico no Brasil traremos de imediato como

sequência discursiva nº1 (SD 1) o trecho inicial do decreto nº 7566 de 1909 que criou nas

capitais dos Estados da República, Escolas de aprendizes artífices, para o ensino profissional

primário e gratuito.

SD 1 [...]Considerando:

SD1.1 que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às

classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela

existência;

SD1.2 que para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos

desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-

los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola

do vício e do crime;

SD1.3 que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos

úteis à Nação[...] (grifos nossos)

Onde na SD1 .1 já podemos observar as estratégias políticas do estado diante das

transformações que o Brasil passava no inicio do século XX com o surgimento das grandes

cidades, acirramento das dificuldades de sobrevivência do proletariado com as constante

transformações tecnológicas no mundo fabril e principalmente as contradições do processo de

transição do trabalho escravo para o assalariado, que somados ao processo inicial de

organização dos movimentos proletários que contavam com a forte presença dos imigrantes

europeus ampliavam as contradições do capitalismo hipertardio agroexportador brasileiro, e

Page 44: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 822

assombrava as oligarquias que a todo custo tentavam se antecipar às contradições de forma

bonapartista.

A crescente organização dos sindicatos que acirravam as lutas entre o capital e o

trabalho nas fábricas, as rebeliões urbanas populares contra a urbanização conservadora, com

insurreições contra campanhas de vacinação e a carestia e as rebeliões rurais populares com

os movimentos messiânicos de luta pela terra pressionavam as oligarquias e seu bloco de

poder a tentarem, dentro dos limites da autocracia da Republica velha, a desenvolver

estratégias discursivas para as massas proletárias com o objetivo de “SD1.2[...] não só

habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e

intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da

ociosidade ignorante, escola do vício e do crime;, ou seja, afastar os trabalhadores e o

nascente exército de reserva das possíveis posições contra-hegemônicas que se desenvolviam

nos nascentes subúrbios de imigrantes europeus e ex-escravos que eram onde se

desenvolviam a teoria e a prática de correntes teóricas revolucionárias como o anarquismo e o

marxismo, daí a referencia do Presidente Nilo Peçanha a escola do vício e do crime.

Logo, a tática de usar a educação, em particular o ensino técnico, como política de

apassivamento das classes subalternas e manutenção da ordem é centenária como podemos ler

na SD1.3 que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadãos

úteis à Nação[...], ocorrendo assim um processo de silenciamento das contradições sociais e

das reivindicações do mundo do trabalho. Assim o discurso do atual governo com o

PRONATEC não nasce da sua vontade repentina, mas de um trabalho sobre outros discursos

com os quais o Estado, como representante dos interesses da classe dominante, se identifica

repetindo, reafirmando e readaptando as CPD imediatas. Relembrando Cavalcante:

Assim, todo discurso dialoga com outros que o precederam, incorpora elementos

produzidos em outros discursos, em outras épocas, que constituem uma memória

discursiva. Na perspectiva da AD, a memória discursiva compreende um conjunto

de formulações produzidas em outras épocas que constituem uma memória do saber

discursivo. Essas formulações são retomadas em novos discursos, produzindo

diferentes efeitos (de ratificação, de redefinição, de ruptura, de negação) do “já

dito”. (Cavalcante, 2012, p.217).

Assim, o discurso do governo federal a respeito do Programa nacional de acesso ao

ensino técnico e emprego – PRONATEC, realiza um processo de seleção do que é correto e

aceito. Nesse processo discursivo quase sempre se dá, de maneira velada nos enunciados dos

sujeitos envolvidos. Como podemos ver a seguir a SD.2 o primeiro pronunciamento da

Presidente Dilma Russef a respeito do PRONATEC: SD.2 “Pouca mais de um mês depois de

Page 45: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 823

assumir a presidência. Tenho algumas coisas a anunciar na educação: vamos lançar ainda

neste trimestre o Programa Nacional de acesso à escola técnica o PRONATEC, SD.2.1 que

entre outras vantagens levará ao ensino técnico a bem sucedida experiência do

PROUNI. [...] Para concluir, reafirmo que a luta mais obstinada do meu governo será a do

combate à miséria. Isso significa fortalecer a economia. Ampliar o emprego e

aperfeiçoar as políticas sociais. SD.2.2 Isso significa, em especial melhorar a qualidade

do ensino. Pois ninguém sai da pobreza se não tiver acesso a uma educação gratuita

contínua e de qualidade. SD.2.3 Nenhum país, igualmente poderá se desenvolver sem

educar bem os seus jovens e capacitá-los plenamente para o emprego e para as novas

necessidades criadas pela sociedade do conhecimento”.

A estratégia retórica do governo do PT elabora uma materialidade discursiva com

frinchas ainda mais complexas de serem desvelada e com um efeito caleidoscópico radioativo,

porque além de encadear pode cegar os olhos mais atentos da intelectualidade critica

brasileira, por se trata de um partido que num passado próximo representava a formação

ideológica do trabalho e ao longo dos últimos 30 anos passou por uma profunda metamorfose.

Isso ocorre pela mudança de sua base social deixando de ser um partido de militantes e

ativistas dos movimentos sociais, como nos seus anos iniciais, e transformando-se ao longo

das décadas de 1990 e 2000 num partido de parlamentares que, controlando um exército

gigantesco de burocratas nas três esferas do poder e nos três poderes foram se aperfeiçoando

na corrupção do jogo estatal brasileiro, e de alianças e alianças foi-se convertendo em um dos

principais partidos da ordem no Brasil. Assim, os setores ligados aos movimentos sociais que

ficaram no seu interior ou foram cooptados pelo estado a exemplo dos sindicalistas, lideres

camponeses e estudantis ou foram reduzidos a uma ínfima minoria cada vez mais

marginalizada sem poder nenhum de decisão, que hoje tem a única função de justificar a

retórica de esquerda.

Podemos ler na SD.2.1 [...] que entre outras vantagens levará ao ensino técnico a

bem sucedida experiência do PROUNI. [...], ou seja, um dos maiores projetos neoliberais

para a educação brasileira já desenvolvidos nos últimos tempos, onde nem os governos do

PSDB conseguiram ir tão longe no repasse de recursos publico para o ensino privado e é

apresentado como uma “experiência bem sucedida”, contudo, cabe perguntar bem sucedida

para quem? Para os grandes grupos privados de ensino que puderam expandir seus domínios

por todo território nacional e consolidar a lógica da educação como mercadoria, oferecendo

cursos de nível superior precarizados( com raríssimas exceções), expandindo relações de

trabalho docente absurdamente precarizadas. No mesmo pronunciamento a retórica de

Page 46: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 824

esquerda se resigna como vamos observar na SD.2.2 [...] Isso significa, em especial

melhorar a qualidade do ensino. Pois ninguém sai da pobreza se não tiver acesso a uma

educação gratuita contínua e de qualidade. É tudo que o PRONATEC não é, na prática.

Pois como o PROUNI tem uma lógica neoliberal de repasses de recursos públicos para o setor

privado, em especial o sistema S; não é educação contínua pois na prática é o aligeiramento

da formação técnica precarizando ainda mais o ensino profissionalizante que já vem sofrendo

uma crise profunda com a expansão (des)governada dos IF,s; e a qualidade passa longe pois,

faltam laboratórios, equipamentos, salas de aulas, e docentes nas áreas específicas. E para

coroar a adesão à hegemonia neoliberal no plano da educação a Presidente Dilma vai mais

além na SD.2.3 Nenhum país, igualmente poderá se desenvolver sem educar bem os seus

jovens e capacitá-los plenamente para o emprego e para as novas necessidades criadas

pela sociedade do conhecimento”. Logo, está implícito que a educação, ou melhor, a

“capacitação” é o caminho para o emprego, ou seja, mais uma vez a questão da educação é

apresentado numa perpectiva de reforçar a ordem da propriedade privada dos meios de

produção, onde o papel do processo educativo no discurso neoliberal como nos explica

Cavalcante:

Na perspectiva do discurso neoliberal, no entanto, a educação de qualidade é vista a

partir de uma ótica econômica, pragmática, gerencial e administrativa e está

vinculada a conceitos como produtividade, otimização de recursos e redução de

custos. Assim, cabe à escola fornecer ao indivíduo algumas informações, mínimas

que sejam, para sua sobrevivência. Nessa perspectiva, a escola exime-se de função

social de possibilitar ao educando o seu desenvolvimento como ser social, uma vez

que limita a apropriação do conhecimento pelo indivíduo, reprimindo o

desenvolvimento de suas faculdades criadoras. Essa opção nada tem a ver com uma

educação emancipatória. (Cavalcante, 2012, p.222).

Com base no que foi exposto, podemos afirmar que o projeto do governo da

Presidente Dilma Russef do PT, com o PRONATEC, em particular, para a Educação

Profissional, além de não significar uma ruptura com o discurso neoliberal, significa uma

subordinação ao capital e à lógica do mercado baseado em um modelo de desenvolvimento

econômico excludente, concentrador de renda, privatista e predatório.

Contudo, cabe as seguintes perguntas: Acesso a qual ensino técnico? E que tipo de

emprego? Acesso para quem ao ensino técnico e emprego? Numa conjuntura histórica em que

o mercado e o capital podem tudo e à imensa maioria da sociedade, que são os que vivem da

venda de sua força de trabalho, resta flexibilidade e desregulamentação dos direitos,

desemprego, subemprego e exclusão.

Page 47: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 825

Considerações finais

Como podemos observar na materialidade discursiva analisada ocorre uma tomada de

posição ideológica dos enunciados analisados que se identifica com o capital. Para além dos

silenciamentos e resignificações, o modelo de ensino técnico proposto pelo governo da

Presidente Dilma russef/PT com o PRONATEC, reafirma e reforça o histórico das políticas

elitista do Estado brasileiro para a educação em geral e, particularmente, para a educação

profissional esta destinada as classes subalternas em uma perspectiva de apassivamento da

luta de classes, adestramento, acomodação, cooptação. Mesmo que nos pronunciamentos e

decretos apareçam conceitos e noções como polivalência e politecnia( numa evidente

retomada da memória discursiva das bandeiras de luta dos trabalhadores da educação), a

estruturação da educação profissional está ideologicamente e estruturalmente subordinada aos

interesses da Burguesia industrial e na nova face da divisão sócio técnica do trabalho que visa

formar um “cidadão mínimo”, que pensa minimamente e que reaja minimamente.

Logo, o ensino técnico na perceptiva do governo, visa a uma formação de sujeitos

numa ótica individualista, fragmentária e que provavelmente após serem formados nos curso

profissionalizantes não irão conseguir ser nem mesmo um “cidadão mínimo” com direito a

um emprego, a uma profissão, tornando o apenas um mero “empregável” disponível no

mercado de trabalho sob a batuta do capital num pais de capitalismo hipertardio, em crise,

onde a educação e vista pelo Estado como estratégia de alívio da pobreza e de filantropia

social.

Como apontamentos iniciais de uma concepção de Educação Profissional voltada à

causa da emancipação humana, e que se contraponha ao atual projeto do governo do PT que

vê na Educação Profissional uma política pontual para uma virtual possibilidade de geração

de emprego, e um placebo preventivo ao desemprego para colocar o Brasil no mundo

globalizado como produtor e exportador de commodities.

Para nós, o eixo de uma política de inserção do Brasil, de maneira soberana, na

economia mundial, se dá a partir de um projeto socialista com base no controle dos meios de

produção pelos trabalhadores, onde o desenvolvimento humano fosse o centro dos objetivos e

não o lucro. Nessa perceptiva, um dos principais aspectos para uma concepção emancipatória

de educação profissional pública, gratuita, obrigatória e única para todas as crianças e jovens,

teria de romper com o monopólio do conheciento técnico, tecnológico e cultural da burguesia

e seus aparelhos privados de hegemonia.

Page 48: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 826

Onde ocorre-se, a simbiose de toda produção intelectual com a produção material para

superar o abismo produzido historicamente pela propriedade privada entre o trabalho manual

e intelectual. Logo, a humanidade passaria a ter uma compreensão integral do processo de

produção superando a alienação.

Por isso, a nossa luta por um ensino técnico que prime por uma formação omnilateral

da subjetividade humana, e que possibilite aos indivíduos se apropriar da ciência, arte,

técnica, ou seja de todo patrimônio de cultura e conhecimento desenvolvido pela humanidade,

superando assim o estranhamento entre as práticas educativas e as demais práticas sociais.

Referências

BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 1981.

BERTOLDO, Edna; JIMENEZ, Susana; MOREIRA, Luciano A. L. (orgs.) Trabalho,

educação e formação humana. Maceió, Instituto Lukács, 2013. Parte 3: pag. 215-226.

CAVALCANTE, M. do Socorro Aguiar de Oliveira. “Implícitos e silenciamentos como pistas

ideológicas” In: Leitura Nº. 23 Maceió EDUFAL, 1999.

CAVALCANTE, M. do Socorro Aguiar de Oliveira. Qualidade e cidadania nas reformas da

educação brasileira; o simulacro de um discurso modernizador. Maceió: EDUFAL, 2007.

MARX, Karl. Trabalho estranhado e propriedade privada. In:____. Manuscritos Econômicos-

Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 79-90.

MARX, Karl. A mercadoria. In:____. O Capital. São Paulo: Nova cultural, 1996. V. 1, livro

primeiro, p. 165-208.

MAZZEO, A. C. Burguesia e Capitalismo no Brasil. Ed. Ática, São Paulo, 1988.

MÉSZÁROS, István, O poder da ideologia. São Paulo; Boitempo, 2004.

MÉSZÁROS, István O SÉCULO XXI – socialismo ou barbárie ?. São Paulo; Boitempo,

2003.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo; Boitempo, 2006.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo; Boitempo, 2009.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo; Boitempo, 2006.

NEVES, Lúcia Maria Wanderley. A sociedade civil como espaço estratégico de nova difusão

da nova pedagogia da hegemonia. In: _____(org.). A nova pedagogia da hegemonia:

estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005. P. 85-125.

Page 49: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 827

ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP:

Pontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Trad. de Eni Orlandi. Campinas, Pontes,1988.

SAVIANI, Demerval. Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas; Autores associados, 2005.

TONET, I. Educação e emancipação humana. IN: TONET, I. Educação, cidadania e

emancipação humana. Ijuí: Unijuí: 2005.

Page 50: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 828

O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E

DIVA CUNHA [Voltar para Sumário]

Felipe Assis Araujo

(UFRN/CERES) - bolsista Propesq (IC)

Introdução

Dentro da história da humanidade têm-se estudos que comprovam que o homem desde

os tempos remotos cultua a um Ser superior, no qual se acredita que Ele seja o criador do

Universo, responsável pela origem humana e por tudo que o rodeia. Mircea Eliade lança seu

livro O sagrado e o profano (1992), com o objetivo de mostrar-nos não apenas o “sagrado”

por um ponto de vista de uma determinada religião e de um Deus, mas com o propósito de nos

apresentar um estudo baseado na história das religiões e dos povos. Apresentando a

experiência religiosa de cada povo, ou seja, como cada grupo acredita no “sagrado”, e como

ele se manifesta através de rituais, crenças, mitos, celebrações, etc. Preocupando-se também

em mostrar o lado oposto ao “sagrado”, denominado “profano”. Afinal, como o próprio autor

conceitua “(...) a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano”.

(ELIADE, 1992, p.13). De acordo com Eliade (1992), o sagrado se manifesta ao homem por

meio da hierofania. Assim, esse processo dará a determinado “objeto” não apenas seu

significado real, visual, mas atribuirá a esse elemento uma adoração, tornando-o parte do

mundo sagrado, fazendo com que o homem religioso o adore e respeite. A hierofania

manifesta-se também por meio do espaço. O homem religioso está sempre em busca de um

espaço sagrado, no qual se utiliza de uma simbologia para representá-lo como o “Centro do

Mundo”. A sacralização de um espaço é feita por meio de uma ritualização inspirada na ação

dos deuses, ou seja, trata-se de uma ação inspirada no que se acredita que determinado deus

fez ao criar o mundo. Segundo o autor, o universo pode ser dividido em dois espaços o

“Caos” e o “Cosmos”. Podemos conceituar o cosmos como o local habitado, o nosso mundo

ao qual pertencemos povoado e organizado. Já o caos trata-se de um espaço desconhecido,

estranho à humanidade.

Page 51: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 829

Esse apreço por delimitar o “Centro do Mundo” se dá porque, de acordo com Mircea

Eliade (1992), a origem do Universo inicia-se a partir de seu centro, ele é o ponto de partida

para criação do Mundo. Dessa forma, cada povo possui uma forma simbólica de representar o

centro, como por exemplo, para os Judeus é a Terra Santa. Essa simbologia estende-se

também em algumas civilizações no momento da construção do lar, onde há uma preocupação

em construir a casa a partir de quatro pontos cardeais representando a divisão do Universo, e

alguma forma simbólica no teto que represente o céu. A passagem do “Ano Novo” também é

vista para o cristão como uma cosmogonia, para ele a cada nascimento de um novo ano há

uma regeneração do mundo, trata-se do nascimento de Cristo. Em suma, o homem religioso

dos mais variados lugares possui uma acessibilidade infinita a crenças, costumes e ações que

caracterizam o seu modo de viver. Para ele todo esse conjunto de valores é “sagrado”, ou seja,

pertencem a Deus, e é através da simbologia que eles procuram seguir e adorar ao seu Ser

superior. Mesmo o individuo estando inserido em uma sociedade contemporânea e não tendo

uma prática religiosa ativa, pode-se dizer que ele traz consigo alguma característica religiosa,

seja ela explicita, ou não; isso acontece porque ele é descendente e convive com pessoas

religiosas.

Após termos conhecimento de algumas simbologias do espaço sagrado apresentadas

por Mircea Eliade (1992), passamos a investigar sobre o espaço utilizado pelas poetisas em

suas respectivas obras, agora baseados no livro A Poética do Espaço de Gaston Bachelard

(2008). Essa obra se diferencia da obra estudada anteriormente, uma vez que o estudo do

espaço não é mais direcionado com o intuito de revelar alguma adoração íntima com Deus, e

sim com o objetivo de explorar a “imaginação poética” em cada uma, pois sabemos que a

poesia tem o poder de manifestar no poeta e no leitor imagens que tocam profundamente a

alma e o coração do ser humano. Assim, para tentar esclarecer esse problema da imagem

poética, Gaston Bachelard (2008), recorre a um estudo da fenomenologia da imaginação.

Para percebermos a ação psicológica de um poema, teremos pois de seguir dois

eixos de análise fenomenológica: um que leva às exuberâncias do espírito, outro que

conduz às profundezas da alma. (BACHELARD, 2008, p.7).

Diante desse interesse de investigação sobre o espaço, o livro, A Poética do Espaço

traz uma análise bastante interessante que busca esclarecer os valores que esses espaços

representam para o poeta no ato de sua criação. De uma forma geral, esses espaços

imaginados são espaços louvados, que carregam um valor de felicidade para o ser, é um

espaço vivido em sua intimidade e que possui uma forte carga de atração. Bachelard aborda

Page 52: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 830

ao longo dos capítulos do seu livro diversas representações de imagens poéticas, como por

exemplo: A gaveta, Os cofres e os armários; O ninho; A concha; Os cantos; A miniatura; etc.

Porém, o nosso principal interesse aqui será nos dois primeiros capítulos de seu livro,

intitulados: “A casa”. “Do porão ao sótão”. “O sentido da cabana” e “Casa e Universo”. Isso

porque o nosso principal objetivo será trabalhar o sagrado e o profano e como se encontram

representados dentro da poesia de Adélia Prado e Diva Cunha.

A religiosidade ou o sagrado pode estar expresso nos mais diversos lugares e campos

de estudo. Nesse trabalho, o nosso objetivo será identificar a presença do sagrado dentro da

poesia, mas especificamente dentro da obra de Adélia Prado e Diva Cunha. De acordo com

DIAS (2013, p. 34), “Deus e os mitos estão, portanto, no princípio e no fim da Literatura

Universal, visíveis em maior ou menor grau”.

Adélia Prado é uma poetisa Mineira, forte seguidora da religião Católica. Suas poesias

destacam-se pela beleza e pela devoção ao descrever as coisas de Deus através dos versos. A

intertextualidade bíblica é explicita em sua obra, pois ao abrirmos seu livro nos deparamos

com lindas epígrafes. Neste caso, falo do livro Poesia Reunida, no qual a epígrafe de abertura

é a seguinte: “Louvai ao Senhor, livro meu irmão, com vossas letras e palavras, com vosso

verso e sentido, com vossa capa e forma, com as mãos de todos que vos fizeram existir”.

(PRADO, 1992, p.7). Nessa passagem a autora deixa claro o seu agradecimento a Deus por tê-

la inspirado a escrever esse livro. Para iniciar a primeira parte do livro, Adélia utiliza-se de

uma epígrafe retirada dos salmos da Bíblia: “Chorando, chorando, sairão espalhando as

sementes. Cantando, cantando, voltarão trazendo os seus feixes”. (PRADO, 1992, p.9). O

vocabulário usado por Adélia Prado em suas poesias mostra-nos como se processa a sua

ligação poética com Deus. Quando a mesma refere-se a Ele, notamos como o tem como um

Ser íntimo de si, e o chama com um carinho digno de quem o ama e o louva. Encontramos em

suas poesias o frequente uso do nome de Deus e da família Sagrada, como: Deus, meu pai,

Jesus, Mãe de Deus, Ave Maria. E também o nome de vários outros personagens bíblicos

como: João, São Paulo, José, além de diversas passagens bíblicas intertextualizadas dentro de

sua poesia.

De uma forma geral, percebemos na poesia de Adélia Prado a presença constante da

manifestação do sagrado, através do vocabulário, dos personagens e das passagens bíblicas.

Ao lermos sua obra, sentimos que o eu lírico está interligado à presença de Deus, carregado

de uma fé que o conduz a acreditar na existência do Pai Criador e o reconhecendo como o seu

salvador. De um ponto de vista geral, notamos que as suas poesias, além de retratarem o

cotidiano vivido, remetem sempre a um agradecimento ou uma oração íntima com Deus.

Page 53: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 831

Em Diva Cunha, a presença do sagrado gira em torno da figura de Deus, em toda a sua

dimensão, fazendo-a consciente das coisas do corpo e do espírito. Tarcísio Gurgel avalia a sua

poesia da seguinte forma:

Se é necessário eleger um leitmotiv para a sua poesia este será, certamente o da

perplexidade da menina de formação católica diante do tentador espetáculo da vida.

O seu desafio: optar sem remorso entre o ascetismo de uma vida burguesa e

descolorida e a sensualidade do dia-a-dia cá fora, com o correspondente risco.

(GURGEL, 2001, p. 141)

Por essa via, Diva Cunha transmuta sua poesia em resina, na secreção que cura as

feridas da alma e do corpo através do amor de Deus. Uma particularidade da poesia dessa

poetisa é a falta de títulos para muitos de seus poemas. Neste poema abaixo, a ligação íntima

com Deus aparece de uma forma bem explícita, não havendo dificuldades para perceber que o

sagrado manifesta-se através dele. Notamos o eu lírico totalmente interligado à religião,

demonstrando uma fé enraizada, onde Deus é o centro de tudo, o detentor de todo poder:

Quando Deus me habita cresço para todos os lados quando Deus me fala apuro os

ouvidos quando somos um desapareço na luz (CUNHA, p.25)

Observa-se nos versos: “Quando Deus me habita/ cresço para todos os lados”, a figura

de Deus representando uma segurança suprema para o eu lírico. Com Ele, o cristão acredita

que conseguirá tudo, pois nada é impossível para Deus. No terceiro verso: “quando Deus me

fala/ apuro os ouvidos”, fica claro a direção de toda sua atenção para o seu Ser superior, pois

tudo que Deus “fala” é verdadeiro e essencial para seguir na vida cristã e conseguir a

salvação, como disse Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão

por mim” (João, 14:6). Nos últimos versos: “quando somos um só/ desapareço na luz”, isto é,

quando sigo os ensinamentos bíblicos tornamo-nos um só, a habitação de Deus no corpo

humano torna-se completa, surgindo assim, o caminho da luz, o caminho de Deus. O corpo

como morada de Deus permite ao eu lírico vivenciar uma transfiguração.

A sagração do cotidiano

Seguindo a linha de raciocínio de Bachelard, podemos pensar, por analogia, que o

corpo é também uma espécie de aposento, ou seja,

Page 54: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 832

Nosso inconsciente está "alojado". Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das

"casas", dos "aposentos", aprendemos a "morar" em nós mesmos. Já podemos ver

que as imagens da casa caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto

estamos nelas. (BACHELARD, 2008, p. 20).

A casa, portanto, é para o poeta como um refúgio. Nela ele encontra seu campo de

proteção e estabelece um valor íntimo com o seu local de habitação, valor esse que não se

substitui por bens materiais, isto é, trata-se de um valor extremamente sentimental,

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso

primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do

termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? (BACHELARD, op.

cit., p. 24).

Através da casa o homem é capaz de sonhar, nesse momento entra em jogo um

conjunto de lembranças, memória e imaginação se interligam e constroem a imagem desejada,

fazendo com que o homem reviva um passado que o atrai carregado de um bem-estar, e o

poeta se realiza revivendo essas lembranças que trazem um sentimento de proteção para si

próprio, ou seja,

Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa,

diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar

em paz. (...) É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas

como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós.

(BACHELARD, 2008, p. 26).

Nesse jogo nostálgico de reviver o passado é que se apresentam os poderes do

inconsciente. De acordo com Gaston Bachelard, o inconsciente está instalado no espaço da

felicidade do ser, e ele é quem é o responsável por buscar as lembranças mais antigas. Ainda

de acordo com Bachelard, podemos dizer que a casa é “um estado de alma” que remete

sempre à intimidade do poeta. Assim veremos em Diva Cunha e Adélia Prado essa relação de

corpo como morada do ser, como espaço protetor dos sonhos.

Do corpo enquanto casa

No poema que se segue, o eu lírico demonstra uma sede insaciável pela palavra de

Deus; palavra esta que alimenta o espírito cristão e o refaz na fé. Notamos a fidelidade a

Deus, onde a leitura bíblica se faz presente o tempo todo, como afirma o verso: “Leio a Bíblia

até no banheiro/ irreverente e descuidada”. Há como uma dependência da palavra de Deus,

uma necessidade dela para viver no mundo em que está inserido, tendo a bíblia como fonte de

fortalecimento para não cair diante das coisas profanas. E ainda ressalta que, mesmo estando

Page 55: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 833

distraído, o amor de Deus está presente nele. Habita os lugares inusitados da casa, como o

banheiro, que é o espaço sugestivo da limpeza do corpo. Uma segunda leitura podemos fazer,

sintetizando o poema: apesar da presença da Bíblia, o seu amor está profundamente voltado

para o lance da corporalidade, ou seja, a sua leitura bíblica não é garantia de santidade, mas é

um lance que habita a sua cotidianidade:

Leio a Bíblia até no banheiro

irreverente e descuidada

mas meu amor é profundo

com as pedras vive

firme e concentrado

no coração da matéria (CUNHA, 2009, p.38)

No próximo poema, mais uma vez notamos a temática da habitação do corpo. Nosso

corpo torna-se a casa de Deus na medida em que praticamos boas ações e o seguimos.

Tememos que Sua presença se desfaça e procuramos cultivar a semente do bem e o

visualizarmos nas coisas mais simples, para que Ele continue habitando nosso ser.

O corpo contém

o pequeno mundo de cada dia

casa de um Deus

que se teme amesquinhar

a cada gesto

para alcançá-lo

cultivo em silêncio

borboletas e formigas (CUNHA, 2009, p. 39)

No poema abaixo, o eu lírico reforça a ideia de que o que o mantém vivo é a presença

de Deus. Porém, utiliza-se de um argumento um pouco contestável pelo ponto de vista de

alguns cristãos, citando que as coisas da carne também são de Deus.

Deus me mantém

viva e ocupada

com as coisas da carne (CUNHA, 2009, p.67)

Em outro poema, percebemos mais uma intertextualidade bíblica relacionada ao

sétimo dia da criação. “No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele

descansou de todo o seu trabalho. Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi

nesse dia Deus descansou de todo o seu trabalho como criador” (Gênesis 2: 2.3). Dia em que

Deus criou o “descanso”, o sábado. O eu lírico afirma ter Deus dentro de si próprio, e em seu

corpo Ele descansa, ou seja, há uma relação de penetrabilidade matéria/espírito completando a

criação. Assim também é o poeta diante de sua criação, conforme nos diz DIAS (2013, p. 37):

Page 56: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 834

“crê na sua criação, pelo uso que faz da linguagem, é um ser transcendental, apresentando-se

como um deus, pelo poder que tem de criar, fazendo emergir seu próprio verbo, nomeando a

sua própria criação”:

Após o sétimo dia da criação

descansa um deus

em mim (CUNHA, 2009, p.148)

No poema abaixo o sagrado se apresenta por meio da figura da mãe do eu lírico. Esta

mãe deseja que sua filha viva uma vida santa, baseada nos princípios católicos e morais das

famílias tradicionais, não aceitando que ela tenha um comportamento diferente de sua época.

Para a mãe, as mulheres devem viver a exemplo das santidades do catolicismo, entregando

sua vida a Deus, não importando o quanto sofram. Tal pensamento não é compartilhado pelo

eu lírico, que não vê os santos e Deus como vingadores e, portanto, não aceita o sofrimento de

ninguém para obter a salvação:

Minha mãe diz

que eu sou da pá virada

da vida torta.

Os modelos dela são outros:

santa Terezinha do menino Jesus

santa Rita de Cássia, santas

fora as santas domésticas

que foram sacrificadas

no dia-a-dia e ninguém viu

sangradas como galinhas

maceradas em vinha d’ alhos

postas a dormir no sereno para secar odores

enfurnadas como bananas verdes

esfregadas nos ladrilhos claros dos banheiros

costuradas em botões de quatro furos

esbofeteadas e sacudidas

como colchões e almofadas

para desprender o pó da horas.

Secaram todas

Nos linhos brancos

Dos lençóis bordados

Ao morrer, não morrera

Entregaram a alma a Deus,

Que provavelmente não as perdoou

Pelo gasto inútil

Que fizeram dos seus talentos (CUNHA, 2009, p.262)

Já em Adélia Prado, temos uma relação com Deus mais intensamente espiritual. Em

alguns poemas o eu lírico demonstra um desejo exacerbado de ter um contato concreto com

Deus. Vontade essa que o faz sentir uma saudade profunda, parece que a única maneira de

confortar o eu lírico é o encontro pessoal com o seu Ser superior. Assim, dar-se a entender

Page 57: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 835

que ele deseja ir para a casa de Deus, local louvado e sonhado por todos cristãos, o Céu, como

no poema Órfã na janela (p.211)

Estou com saudade de Deus, uma saudade tão funda que me seca.

Estou como palha e nada me conforta.

O amor hoje está tão pobre, tem gripe,

meu hálito não está para salões.

Fico em casa esperando Deus,

cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,

querendo um pôster dele no meu quarto,

gostando igual antigamente

da palavra crepúsculo.

Que o mundo é desterro eu toda vida soube.

Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai,

pra casa onde está meu pai.

No poema A treva (p.333), o eu lírico faz referência ao “Getsêmani” que nos é

narrado no evangelho1 segundo São Mateus 26:36. De acordo com a passagem bíblica, no dia

anterior a sua crucificação, Jesus levou seus discípulos a um lugar chamado “Getsêmani”,

sabendo que iria ser traído por um de seus doze discípulos e entregue nas mãos dos pecadores,

Jesus ora a Deus três vezes dizendo: “Meu pai, se este cálice não pode passar sem que eu o

beba, seja feita a tua vontade!” De acordo com o evangelho segundo São Lucas 22:44, neste

momento a agonia de Jesus foi tão intensa que: “Seu suor tornou-se como gotas de sangue que

caíam no chão.”

A relação do momento sagrado com o título do poema é como se o eu lírico estivesse

passando por uma situação de angústia assim como Jesus passou no “Getsêmani”.

Percebemos a sensação de sufocamento em sua condição como pecador que pressente que a

morte está perto, como podemos observar no seguinte trecho: “/São cruas claras visões/ às

vezes pacificadas,/ às vezes/ o terror puro/ sem o suporte dos ossos,/ que o dia pleno me dá./

A alma desce aos infernos,/ a morte tem seu festim”. Dessa forma, o que deixa o

eu lírico em agonia são os pecados que o rodeia, ou seja, aquilo que de acordo com o

catolicismo será julgado no julgamento final e o encaminhará ao céu ou inferno. É esse o

motivo do título ser “treva”, pois o eu lírico vê-se rodeado de pecados mortais e a

confirmação disso aparece nos dois últimos versos, observe: “o demônio come a seu gosto,/ o

que não é Deus pasta em mim”.

Me escolhem os claros do sono

engastados na madrugada,

a hora do Getsêmani.

1 BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.

Page 58: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 836

São cruas claras visões

às vezes pacificadas,

às vezes o terror puro

sem o suporte dos ossos,

que o dia pleno me dá.

A alma desce aos infernos,

a morte tem seu festim.

Até que todos despertem

e eu mesma possa dormir,

o demônio come a seu gosto,

o que não é Deus pasta em mim.

No poema Sítio (p.74), temos uma sacralização de um espaço físico, o eu lírico exalta

a Igreja, vendo-a como um local sagrado e louvado (a casa de Deus), pois ela é o seu lugar,

transmitindo assim um valor íntimo que o atrai e o conforta. A Igreja é “a casamata de nós”, o

lugar onde reencontramos os demais cristãos; local carregado de simbologias; e onde é

encontrada a proteção necessária:

Igreja é o melhor lugar.

Lá o gado de Deus pára pra beber água,

rela um no outro os chifres

e espevita seus cheiros

que eu reconheço e gosto,

a modo de um cachorro.

É minha raça, estou

em casa como no meu quarto.

Igreja é a casamata de nós.

Tudo lá fora fica seguro e doce,

tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita.

Lá as coisas dilacerantes sentam-se

ao lado deste humaníssimo fato

que é fazer flores de papel

e nos admiramos como tudo é crível.

Está cheia de sinais, palavra,

cofre e chave, nave e teto aspergidos

contra vento e loucura.

[...]

e canto com meu lábio rachado:

glória no mais alto dos céus

a Deus que de fato é espírito

e não tem corpo, mas tem

o olho no meio de um triângulo

donde vê todas as coisas,

até os pensamentos futuros.

Lugar sagrado, eletricidade

que eu passeio sem medo.

Se eu pisar,

o amor de Deus me mata.

Em Apelação (p.219), o eu lírico fala sobre o juízo final, em que seremos julgados por

todos nossos pecados praticados na terra. Ele acredita no perdão: “Mas Deus nos perdoará”.

Ao final do poema, o último verso: “Não sou digno, Senhor”, nos faz remeter ao texto narrado

Page 59: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 837

no evangelho de Mateus: “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa. Dize uma

só palavra e meu empregado será curado.” (Mateus 8:8).

É bom que uma vez se tenha usado bainha nas calças.

No juízo final nos servirá de defesa.

Em algumas coisas fomos tão inocentes...

Houve, é certo, sob nossos telhados,

ruidoso desamor,

fel em gotas de silêncio segregado.

Mas fazemos laços tão honestos com os cordões dos sapatos

e é tão coitado o nó de uma gravata

que ao pescoço logo se perdoa.

Mais Deus nos perdoará,

Ele que sabe o que fez: ‘homem humano’.

A boca que comeu e mentiu come Seu Corpo Santo.

Eu não sei o que digo,

mesmo se o que falo é:

Não sou digno, Senhor.

No poema Instância (p.228), percebemos uma intertextualidade direta com a oração

do “Eu pecador”, a qual nós cristãos seguidores da religião católica aprendemos durante o

catecismo para orarmos no momento de nossa primeira confissão. Assim como na oração, o

eu lírico reconhece-se como pecador e realiza uma confissão a Deus, pedindo que o perdoe de

todos seus pecados, pois necessita de sua misericórdia divina para “aliviar” sua consciência e

continuar sua vida como cristão. Há um desnudamento do corpo “estragável” diante do Deus

invisível, mas propenso ao perdão:

Eu cometi pecados,

por palavras, por atos, omissões.

Deles confesso a Deus,

à Virgem Maria, aos santos,

a São Miguel Arcanjo

e a vós irmãos.

[...]

Mas eu peço perdão:

a Deus e a vós, irmãos.

O meu peito está nu como quando nasci;

em panos de alegria me enrolou minha mãe,

beijou minha carne estragável,

em minha boca mentirosa espremeu seu leite,

por isso sobrevivi.

Agora vós, irmãos, perdoai-me,

por minha mãe que se foi.

Por Deus que não vejo, perdoai-me.

No poema O poder da oração (p.229), o eu lírico fala sobre a correria da humanidade

que, muitas vezes ocupada com seus afazeres pessoais, esquece-se de agradecer a Deus por

cada dia, preocupando-se apenas com os compromissos sociais. Porém, quando surge uma

Page 60: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 838

dificuldade, um pequeno problema, o homem recorre a Deus imediatamente pedindo sua

intervenção. É por causa disso que a humanidade é considerada miserável, pois

cotidianamente prioriza as coisas materiais e acaba esquecendo-se da importância de

agradecer ao nosso Senhor. Finalizando o poema, uma prece reafirmando a consciência da

necessidade de orar para Deus e pedir perdão pelo esquecimento, ou pela desreza:

Em certas manhãs desrezo:

a vida humana é muito miserável.

Um pequeno desencaixe nos ossinhos

faz minha espinha doer.

Sinto necessidade de bradar a Deus.

Ele está escondido, mas responde curto:

‘brim coringa não escolhe’

E eu entendo comprido

e comovente esforço da humanidade

que faz roupa nova para ir na festa,

o prato esmaltado onde ela ama comer,

um prato fundo verde imenso mar cheio de estórias.

A vida humana é muito miserável.

‘Brim coringa não escolhe?’

Meu coração também não.

Quando em certas manhãs desrezo

é por esquecimento,

só por desatenção.

Conclusão

Desse modo, vimos nas duas poetisas que o sagrado se manifesta claramente, não

havendo dificuldade para que o leitor perceba essa temática religiosa dentro dos poemas.

Através da análise realizada, percebemos o quanto as autoras são ligadas à religião. Com o

auxílio dos textos teóricos que nos fundamentamos, podemos ver que essa relação pode ser

bem mais profunda do que aparenta em uma leitura superficial. Afinal, a poesia nos dá a

possibilidade de várias interpretações e nos faz tentar desvendar o verdadeiro sentimento do

eu lírico. O conteúdo expresso nos poemas aborda o cotidiano de uma forma excepcional, os

elementos do dia-a-dia se interligam com os costumes cristãos e reafirmam a presença de

Deus na vida dessas escritoras e repercutida em suas obras, pois Ele sempre estará presente

nos fatos mais simples, na vida dos seres humanos, em geral. De certa forma, a poesia dessas

duas escritoras desrezam para um Deus inatingível, transportando-o para um mundo mais

palpável, o que ratificamos com o pensamento de Eliade (1992, p. 63): “a experiência

religiosa torna-se mais concreta, quer dizer, mais intimamente misturada à Vida”.

Referências

Page 61: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 839

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2 ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2008.

BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Sociedade Bíblica Católica Internacional e São Paulo-

SP: Paullus, 1990.

CUNHA, Diva. Resina. Rio de Janeiro, RJ: UNA, 2009.

DIAS, Valdenides Cabral de Araújo. O retórico do silêncio. Natal, RN: EDUFRN, 2013.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. [tradução Rogério Fernandes]. São Paulo: Martins

Fontes, 1992.

GURGEL, Tarcísio. Informação da literatura potiguar. Chapecó, SC: Argos, 2001.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo, SP: Siciliano, 1991

Page 62: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 840

SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E

DISTANCIAMENTOS ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A

LITERATURA BRUTALISTA [Voltar para Sumário]

Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)

Tijolos & tijoladas: à guisa de introdução

Este trabalho nasce de uma inquietação diante de um fenômeno da literatura brasileira

ainda pouco explorado por parte da crítica e da teoria da literatura: o brutalismo. A

designação “brutalista” foi empregada por Alfredo Bosi para descrever o estilo do escritor

carioca Rubem Fonseca. Desde que o termo foi utilizado pela primeira vez, na década de

1970, muito pouco foi dito a respeito do assunto, e menos ainda houve em função de um

aprofundamento ou de uma conceituação deste estilo literário. Pelo contrário, ao longo dos

últimos 40 anos, a designação “brutalista” parece ter sido utilizada de forma deliberada por

alguns estudiosos, e ao observarmos rapidamente os ficcionistas que foram agrupados sob tal

alcunha, nos deparamos com uma lista de escritores muito plural em termos de estilo –

Moacyr Scliar, Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll. Essa pluralidade nos

leva a pensar que a melhor forma de entender o brutalismo é começando de sua gênese:

Rubem Fonseca.

No ensaio-prefácio da antologia Conto contemporâneo brasileiro (1977), Bosi afirma:

“Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país de Terceiro

Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca” (BOSI, 1977, p. 18). Bosi elege o centro

urbano como cenário da narrativa brutalista: a cidade de becos escuros e rotas soturnas, a

cidade e sua palidez cinza de concreto, suas ásperas variações de cimento, suas colunas de

fumaça; uma cidade em que o perigo está sempre à espreita, onde não há bondade ou

maldade, apenas o instinto o humano – o que é bem pior.

O centro urbano fonsequiano é o Rio de Janeiro. O universo ficcional deste autor é

povoado por sociopatas, pervertidos, prostitutas, detetives particulares e demais personas

desviantes que normalmente estão às voltas com situações de contravenção e subversão

Page 63: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 841

moral, personagens que misturam “no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e

expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto” (BOSI, 1977, p.

18).

Podemos afirmar que falar de brutalismo é falar sobre Rubem Fonseca,

inevitavelmente. Porém, ao utilizar a terminologia “brutalista” para caracterizar a literatura

deste autor, de forma consciente ou não, Bosi acabou abrindo as portas para um diálogo com

um movimento da arquitetura moderna chamado Novo Brutalismo. Neste trabalho, nos

propomos a explorar as relações existentes entre este movimento e a narrativa brutalista; a

partir disso, conceituaremos a narrativa brutalista com base na obra de Fonseca, seu precursor.

Da arquitetura, o Novo Brutalismo

O termo brutalismo deriva de béton brut (concreto bruto), que foi uma técnica bastante

utilizada e difundida pelo arquiteto e urbanista francês Le Corbusier. Cesar Grossman (2013)

afirma que o que caracteriza este movimento são as “construções despojadas, mostrando o

esqueleto de concreto armado sem nenhum tipo de acabamento, revelando até mesmo a

impressão deixada pela madeira que foi usada para criar a armação” (GROSSMAN, 2013,

n.p.).

De acordo com Kenneth Frampton (2003), a essência do movimento brutalista veio a

público pela primeira vez em 1953, através da exposição “Paralelo entre vida e arte” (ver

imagem 1), realizada no Instituto de Artes Contemporâneas, em Londres. Essa exposição foi

promovida pelo casal de arquitetos ingleses Peter e Alison Smithson, juntamente com o

fotógrafo Nigel Henderson e o escultor Eduardo Paollozi, e era composta por uma série de

fotografias que, segundo Frampton, “ofereciam cenas de violência ou visões desfiguradas ou

anitiestéticas da figura humana, e todas tinham uma grosseira textura granulada que era

claramente vista pelos seus colaboradores como uma de suas principais virtudes”

(FRAMPTON, 2003, p. 322). Ou seja, “um culto à feiura”, como afirma Reyner Banham em

seu artigo “The new brutalism” (2010). Se reside aí o ethos do movimento brutalista, se é do

abjeto que surge o seu gérmen, não é de estranhar que a linguagem desse movimento tenha

causado certa inquietação na arquitetura dos anos 60.

A linguagem impactante da exposição “Paralelo entre vida e arte” posteriormente

amalgamou-se em concreto através dos Smithson, que são nomes cruciais para o

entendimento do Novo Brutalismo, uma vez que o casal foi grande entusiasta desse

movimento na Inglaterra. Segundo Fernando Freitas Fuão (2000), o projeto dos Smithson para

Page 64: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 842

a escola de Hunstanton, em Norfolk, construída em 1954, continha estratégias de composição

que viriam a se tornar características basilares do Novo Brutalismo: “[N]a escola [...] tudo

estava aparente, pelado, destacado, desde a estrutura em aço às instalações elétricas, de água,

calefação” (FUÃO, 2000, n.p.).

De acordo com Mariana Amorim (2008), os Smithson afirmaram que o Novo

Brutalismo deveria ser apreciado a partir de uma perspectiva ética e não estética. A ética

brutalista para Fuão “estava no trabalhar uníssono com os novos cenários culturais do pós-

guerra, na contemporaneidade da linguagem arquitetônica, na tecnologia e nas mudanças

sociais” (2000, n.p.). Já a estética brutalista, consistia na “franca exposição dos materiais,

vigas e detalhes como brises em concreto aparente, combinados com fechamentos em

concreto aparente ou com fechamentos em tijolos deixados expostos [...] com certa crueza

proposital do detalhamento e nos acabamentos” (Banham apud ZEIN, 2007, n.p.).

Essa interrelação entre ética e estética brutalistas pode ser claramente percebida no

projeto do banheiro da escola de Hunstanton, no qual as pias são pregadas à parede de uma

forma um tanto rústica e os canos de fornecimento e escoamento de água ficam expostos (ver

imagem 2). Nas palavras de Amorim:

Esta imagem das baterias de pias com a canaleta a mostra transmite uma sensação de

que elas estão ali também com a função de despertar o usuário para a economia do

consumo. Poder ver todo o percurso da água até o fim, remete a idéia [sic] de que

era impossível não se pensar na questão do desperdício no período pós-guerra

(AMORIM, 2008, p. 40-1).

Deixar este cano exposto, segundo Amorim, pode gerar efeito poético, retirando os

usuários deste espaço de um estado letárgico prosaico, uma vez que ao ver o cano de

escoamento, os usuários podem observar o caminho que faz a água da pia ao esgoto. Ao

contrário dos banheiros em que o cano fica “escondido”, lá a água não “some” quando passa

pelo ralo da pia. Ou seja, é a pia enquanto elemento que exerce uma função social e política.

O esforço para comunicar-se através de uma linguagem contemporânea que

contemplasse o momento social pós-guerra, bem como a ausência de revestimentos revelando

a nudez da estrutura e a opção por acabamentos em concreto aparente fazem com que o Novo

Brutalismo se caracterize como uma arquitetura do essencial, em que os elementos (éticos e

estéticos) encontram-se justapostos de maneira precisa e enxuta.

A literatura brutalista

Page 65: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 843

Antonio Candido, em seu ensaio “A nova narrativa” (1987), faz uma análise daquela

mesma literatura matéria do ensaio-prefácio de O conto contemporâneo brasileiro. Se,

seguindo o encalço de Bosi, tomarmos a obra de Rubem Fonseca como elemento central na

compreensão do brutalismo, podemos considerar que a análise da literatura fonsequina feita

por Candido nos oferece subsídios para uma conceituação desse estilo. Para Candido, Fonseca

é um autor que agride seu leitor tanto pela temática quanto pela forma como a transmite. O

crítico refere-se aos recursos estilísticos da prosa fonsequiana como ultra-realismo sem

preconceitos e realismo feroz, que têm como características o uso da linguagem coloquial

(floreada de gírias e termos chulos), a “abolição da diferença entre falado e escrito [...], ritmo

galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a

vida do crime e da prostituição” (CANDIDO, 1987, p. 211). Nessa prosa de realismo feroz,

segundo Candido, a violência contida no enredo encontra igual impacto na narrativa em

primeira pessoa, em que narrador e conteúdo narrado se fundem e confundem, de forma tal

que “a brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade de seu agente” (CANDIDO,

1987, p. 212).

Porque foi muito bem diagnosticado por Bosi, e porque não deixou de habitar as páginas

da literatura brasileira, na contemporaneidade o brutalismo ainda provoca inquietação em

alguns teóricos. Um exemplo disso é o crítico Karl Erik Schollhammer, que abordou esse

tema em seu ensaio “Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira contemporânea”

(2000), no qual ele afirma que o brutalismo caracteriza-se “pelas descrições e recriações da

violência social entre bandidos, prostitutas, leões-de-chácara, policiais corruptos e mendigos”

(SCHOLLHAMMER, 2000, p. 343), além de ressaltar a forma enxuta e direta através da qual

se perfaz esse estilo. Se se detivesse apenas a essa definição, Schollhammer nada estaria

fazendo senão parafrasear o brutalismo de Bosi e o realismo feroz de Candido; mas ele

acrescenta a sua discussão um conceito que ajudará a melhor delinear o fenômeno do

brutalismo na literatura: o transrealismo.

Para Schollhammer, a mimesis da narrativa contemporânea implica em um processo de

criação de “efeitos de ‘realidade’, através das emoções mais violentas” (SCHOLLHAMMER,

2000, p. 343). Para dar conta da complexidade da experiência urbana, a escrita precisa criar

efeitos sensíveis, beirar o gestual. É certo que a prosa brutalista está intimamente ligada à

cidade, mais precisamente ao obscuro urbano que é habitado pelos já citados arquétipos que

compõem a escória da sociedade, aqueles que estão de tal forma excluídos que parecem não

habitar a mesma realidade social. Nesse sentido, a narrativa brutalista funciona como um

desentupidor que mergulha fundo na fossa para trazer à tona aquilo e aqueles/as que são

Page 66: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 844

excluídos/as da discursividade urbana moralizante-sensata: os/as desviantes/as. A esse

movimento de desvelamento de uma realidade social discursivamente apagada, Schollhammer

chama transrealismo, que ele define como “expressão do real além da realidade” e que

funciona “como uma contribuição concreta à ressimbolização de uma realidade incômoda e

incompreensível para o discurso ‘sensato’” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 350). Decorre

disso o fato de haver na narrativa brutalista uma imbricação lancinante e simbiótica entre as

personagens e a cidade.

Dessa forma, o brutalismo opera em duas vias de transgressão: uma no nível do discurso

social que, por meio dos seus mecanismos de significação, exclui não apenas a voz, mas a

completa figura daqueles/as que rezam pela cartilha do avesso da moral e da legalidade; e

outra no nível estético, uma vez que as situações extremas vivenciadas pelas personagens

dessas narrativas fazem a linguagem literária operar no limite, forçando, assim, a criação de

estratégias estilístico-estruturais para a efetiva realização do processo mimético.

Arquitetura & literatura brutalistas: sobre cimento & sangue

Com base no que foi exposto até aqui, é possível notar que há um forte diálogo entre a

narrativa brutalista e o Novo Brutalismo, principalmente se pensarmos a exposição “Paralelo

entre vida e arte” como aquela que contém o ethos desse movimento arquitetônico. Assim,

encontramos em ambos os brutalismos o gosto pelo abjeto, pelo feio, pelo explícito, por

aquilo que foge aos padrões; a busca por uma linguagem que comunique claramente aos seus

contemporâneos, levando em conta o momento histórico-social: se no Novo Brutalismo a

ideia era utilizar o concreto aparente (ou concreto bruto) e abrir mão dos revestimentos,

desnudando toda a estrutura dos edifícios, na narrativa brutalista impera a linguagem direta,

calcada na oralidade, nas gírias e nos termos chulos como forma de e concatenando-se com a

revelação das paixões violentas que fervem no atrito da pele das personagens com o cimento

das cidades.

Dessa forma, ambos os brutalismos apresentam um apelo ao abjeto, como forma de

opor-se ao engessamento da vida tecnocrática dos grandes centros urbanos. Este apelo, na

arquitetura, vem sob a forma de edifícios que não obedecem a um padrão convencional em

termos de disposição da estrutura, o que, em alguns casos, dá origem a construções de

desenho muito ousado (ver imagem 3); de forma concomitante, a preferência pelas texturas

rústicas, sem acabamento, comunica uma forma de arquitetura que se quer essencial e não

ornamental. A Igreja de Wotruba, na Áustria, é um exemplo disso: ao passo que temos várias

Page 67: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 845

paredes e blocos dispostos de uma forma nada convencional, nenhuma dessas paredes

apresenta acabamento, apenas o concreto bruto e as longas janelas de vidro.

Esse apelo ao abjeto e a utilização de materiais não trabalhados também aparecem,

transmutados em palavras, na literatura brutalista, sobretudo nas questões temáticas e na

construção das personagens das narrativas: cenas de violência e sexo, personas paranoicas e

perversas estampam as páginas da obra de Rubem Fonseca que, assim como os arquitetos

brutalistas fazem uso da simplicidade e do inacabamento, este autor incorpora à sua narrativa

o discurso “das gentes” da cidade.

Embora seja possível encontrar certas similaridades e criar diálogos férteis entre a

arquitetura e a literatura, ambas exigem tratamentos específicos no que tange a análise de suas

particularidades. Depois de teorizar acerca das relações entre essas duas linguagens,

concentremo-nos agora na literatura, especificamente a de Rubem Fonseca.

A narrativa brutalista de Rubem Fonseca

Após analisar as características dos brutalismos – na arquitetura e na literatura –, bem

como as relações existentes entre eles, cabe agora averiguar em que medida estas

características podem contribuir para uma conceituação da narrativa brutalista. Para tanto,

serão analisados alguns fragmentos da obra do escritor Rubem Fonseca. Optamos por nos ater

aos livros deste autor que foram publicados até o final da década de 70, período em que veio a

público a antologia Conto contemporâneo brasileiro, organizada por Alfredo Bosi.

Acreditamos que este recorte temporal é importante porque estaremos debruçados sobre o

mesmo material que estava à disposição de Bosi quando ele caracterizou Fonseca como

brutalista, dando início ao que agora é tido como uma vertente da literatura brasileira

contemporânea – o brutalismo.

Dos livros que compõem o recorte temporal aqui proposto, merece destaque a

antologia de contos Feliz ano novo. Publicada em 1975, em plena a ditadura militar, a obra foi

vetada e, um ano após sua publicação, todos os exemplares foram recolhidos, retornando a

público apenas no fim do regime fardado. Na época, o senador Dinarte Mariz, em entrevista à

Folha de São Paulo, “justificou” a censura deste livro da seguinte forma: “Suspender Feliz

ano novo foi pouco. Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida

também. [...] Não consegui ler nem uma página. Bastaram meia dúzia de palavras. É uma

coisa tão baixa que o público nem devia tomar conhecimento” (MARIZ apud ALMEIDA,

2002, p. 106).

Page 68: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 846

Além de confessar sua ignorância, a fala de Mariz revela o impacto que o livro teve na

sociedade da época. Vale ressaltar que estamos nos referindo à mesma sociedade que acusou

de pornográfica a entrevista dada pela atriz Leila Diniz aO Pasquim, ocasião em que ela disse

“Transo de manhã, de tarde e de noite” – o suficiente para criarem o decreto Leila Diniz, que

proibia a veiculação de qualquer tipo de pornografia nos meios de comunicação. O irônico é

que Feliz ano novo foi censurado com base neste mesmo decreto, e embora houvesse

referência ao sexo em alguns contos, não era o bastante para caracterizar o livro como

pornográfico. Certamente, o que incomodou a censura fardada foi o quinhão transrealista da

obra: o mais baixo calão da miséria e a alta burguesia carioca retratados de forma

explicitamente sórdida. Na apresentação de Feliz ano novo, o editor Álvaro Pacheco afirma:

“um livro engraçado e mordaz, mas também cruel e violento, que mostra a realidade

inquietante de um mundo ameaçadoramente destrutivo e corrupto” (PACHECO apud

JÚNIOR, 2013, n.p.).

Abaixo, a “meia-dúzia de palavras” que foi lida pelo Senador Mariz: o conto “Feliz

ano novo” (FAN), que abre a antologia homônima de Rubem Fonseca:

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas

ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos

finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos

macumbeiros.

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.

Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada.

Onde você afanou a TV?, Pereba perguntou.

Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você

pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?

Tô morrendo de fome, disse Pereba.

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de

sacanagem.

Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba

aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele

aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz

quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal,

prum bangue-bangue. Outra bosta.

As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o Ano-novo dançando com

os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto,

acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não

têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida

delas é dar a xoxota por aí?

Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar,

gozador, cansado, doente.

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as

madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma

punheta. Fecha os olhos e manda brasa (FAN, 1994, p. 367-8).

Page 69: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 847

Se o leitor de hoje pode ficar chocado com este trecho, o que dizer daquele da década

de 70? A incorporação da linguagem falada, sobretudo, das gírias e expressões de baixo calão,

bem como o teor da conversa entre estes dois personagens evidenciam o fato de que a partir

de Fonseca há uma reviravolta na forma de retratar a periferia dos grandes centros urbanos.

Pois o que está em questão aqui vai muito além do mero palavrão, o que está em pauta é

desigualdade de classes. A linguagem utilizada pelo narrador e por Pereba vem explicitar o

lugar de onde se fala, vem reivindicar o espaço dessas personagens no discurso social. Não é

por acaso que o conto começa com o narrador vendo na TV que as “lojas bacanas” e as “casas

de artigos finos para beber e comer” tinham vendido todo o estoque para a festa de révellion,

enquanto ele planeja esperar amanhecer para comer “os despachos dos babalaôs” na praia.

E Rubem Fonseca não dá apenas voz a estes personagens, dá voz e ação.

Depois do diálogo citado, o narrador, Pereba e mais um amigo, o Zequinha, vão a uma

festa de réveillon “para os lados de São Conrado” e lá, não satisfeitos em roubar as pessoas

que estão na festa, violentam uma mulher, defecam nos lençóis e se divertem tentando pregar

um homem à parede com um tiro de uma arma calibre 12:

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?

Ele se encostou na parede.

Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí.

Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão.

O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente

e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um

panetone.

Viu, não grudou o cara, porra nenhuma.

Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse (FAN, 1994, p.

370).

Além do festival de torpeza apresentado, algo que é um tanto inquietante nesses dois

trechos do conto é o tom cínico adotado pelo narrador, que comete atos de verdadeira barbárie

e relata-os de forma muito direta, simples, quase suave. Ou seja, o modo como ele diz o que

faz tem uma simplicidade inversamente proporcional ao que ele faz. Ainda há o momento em

que ele, ao dirigir-se a Maurício, um dos burgueses da festa, incorpora à sua linguagem

expressões de pura gentileza e educação, tais como “por favor” e “muito obrigado”. Ou seja,

ele adequa e ao mesmo tempo ironiza essas expressões, uma vez que as utiliza em um

contexto improvável: o narrador está posicionando Maurício para atirar com a carabina em

seu peito.

Page 70: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 848

Em outro conto deste mesmo livro, “Passeio noturno (parte I)” (PN), o protagonista,

também narrador em primeira pessoa, é um executivo, não menos nocivo que os personagens

do primeiro conto. Isso porque este executivo descobre uma nova maneira de extravasar o seu

estresse diário: atropelar pessoas à noite:

Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos

pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das

duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do

impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei

como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta

para o asfalto. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher da

mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos

de casa de subúrbio (PN, 1994, p. 397).

A forma como este executivo sociopata descreve toda a sua ação deixa claro que esta é

uma atividade que lhe rende muito prazer, principalmente pelo fato de ele mencionar cada

detalhe, sem querer perder um pormenor sequer – “bem no meio das duas pernas, um pouco

mais sobre a esquerda” –, de uma maneira quase lascívia. Embora não utilize termos chulos

ou gírias, este narrador ainda conserva uma certa dose de humor negro em sua dicção, ao

utilizar expressões como “desengonçado” e “colorido de sangue” para referir-se ao corpo da

mulher que, com o impacto da batida foi parar “em cima de um muro, desses baixinhos de

casa de subúrbio”, ele afirma, tratando com certo exotismo e distanciamento este ambiente

estranho a ele.

Com base no que foi exposto aqui, podemos elencar algumas características presentes

nesses contos de Rubem Fonseca que podem nos ajudar a delimitar algumas características da

narrativa brutalista deste escritor. São elas: o centro urbano como cenário; cinismo e humor

negro do narrador; o apelo ao abjeto; a construção de personagens desviantes; contestação dos

valores sociais, morais, religiosos; o uso da linguagem direta, sem floreios, com fortes traços

de oralidade.

Dado que esta é uma pesquisa ainda em desenvolvimento, estamos longe de dar uma

resposta ou conceituar de forma definitiva a narrativa brutalista, porém, ao elencarmos essas

características, ainda que de forma sumária, propomos, ao mesmo tempo, uma agenda mínima

para a esta vertente da literatura brasileira cuja conceituação apresenta-se ainda de forma

turva e em processo de construção.

Referências

Page 71: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 849

ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Tornar-se outro: o topos canibal na literatura

brasileira. São Paulo: Annablume, 2002.

AMORIM, Mariana Souza Pires de. O Novo Brutalismo de Alison e Peter Smithson: em busca

da ordem espontânea da vida. 2008. 154p. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

BANHAM, Reyner. The new brutalism. Disponível em <http://www.architectural-

review.com/archive/1955-december-the-new-brutalism-by-reyner-banham/8603840.arti cle>

Acessado em: 28.2.2013

BOSI, Alfredo. Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo. In: ______. (org.) O

conto contemporâneo brasileiro. São Paulo: Ed. Cultrix, 1977.

CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios.

São Paulo: Editora Ática, 1987.

FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes,

2003.

FUÃO, Fernando Freitas. Brutalismo, a última trincheira do movimento moderno.

Arquitextos. São Paulo, n. 007.09, dez. 2000. Disponível em: < http://www. vitruvius.

com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/243> Acessado em 25 de jan. 2013

GROSSMAN, Cesar. 19 exemplos da distópica arquitetura brutalista. Disponível em: <

http://hypescience.com/19-exemplos-da-distopica-arquitetura-brutalista/>. Acesso em 19 de

set. 2014.

JÚNIOR, Gonçalo. A estética da violência seminal de Rubem Fonseca. Disponível em:

<http://www.revistabrasileiros.com.br/2013/10/20-de-100-a-estetica-da-violencia-seminal-de-

rubem-fonseca/#.VB5k8PldVoZ>. Acesso em 20 de set. 2014.

SCHØLLAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:

HERSCHMANN, Micael [et al.] (Orgs.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco,

2000.

ZEIN, Ruth Verde. Brutalismo, sobre sua definição (ou, de como um rótulo superficial é, por

isso mesmo, adequado). Arquitextos. São Paulo, n. 084.00, mai. 2007. Disponível em: <

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.084/243> Acessado em 25 de jan.

2013.

Page 72: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 850

Anexos

Imagem 1: Capa do catálogo da exposição “Paralelo entre vida e arte”

Imagem 2: Banheiro do edifício Hunstanton

Imagem 3: Igreja Wotruba (Áustria)

Page 73: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 851

Page 74: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 852

TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE

ASSASSIN’S CREED [Voltar para Sumário]

Felipe Cezar Menezes (UNEB)1

Juliana Cristina Salvadori (UNEB)2

Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)3

Introdução

Baseado nos jogos Assassin’s Creed e Assassin’s Creed: Bloodlines, desenvolvidos

pela empresa Ubisoft, A Cruzada Secreta é o terceiro romance de uma franquia de livros

adaptados da série homônima de videogame por Oliver Bowden, historiador e escritor inglês.

Ambientado na Jerusalém do século XII, o livro narra a história de Altaïr Ibn La-Ahad, um

mestre assassino cujas atitudes arrogantes lhe custam seu alto posto na irmandade. O romance

faz parte de um gênero literário recente: as adaptações literárias de jogos eletrônicos. O

gênero, que conta com cada vez mais títulos, percorre o caminho inverso do usual, no qual os

livros são o hipotexto, na acepção de Genette (2010), levado a outras mídias. A franquia

adaptada abre as portas da literatura para um grupo de novos (e jovens) leitores, ao passo que

também realiza o papel inverso: levar ao mundo dos jogos aqueles habituados à literatura.

1 Graduando do 7º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado

da Bahia (UNEB), Campus IV, Jacobina. Bolsista no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação Científica

no subprojeto AS TAREFAS DO TRADUTOR: confluência entre o papel do leitor e do escritor. Membro do

grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora. 2 Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da

Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre

em Inglês e Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora do projeto de

pesquisa e extensão Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de

pesquisa Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora. 3 Professor Adjunto na Universidade do Estado da Bahia, atuando no curso de Jornalismo em Multimeios e no

Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Territórios Semi-áridos (PPGESA). Doutor pelo programa

de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Universidade Federal da Bahia (UFBA), linha

de pesquisa em cibercultura e Mestre em Comunicação, linha de novas tecnologias da comunicação e

informação, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre A

cibercultura pós-web, investigando novos caminhos para o uso da internet a partir das mídias locativas e da

computação ubíqua, adotando como referencial metodológico a teoria ator-rede.

Page 75: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 853

Este trabalho pretende, através do aporte teórico fornecido pela teoria literária, pela

literatura comparada e pelos estudos da narrativa de jogos eletrônicos e da indústria cultural,

estudar como se dá a transposição intersemiótica de dois jogos em um romance, focado na

narrativa da obra, de modo a compreender as possibilidades e limitações das mídias

multimodal dos jogos e logográfica da literatura, norteado pelas questões a seguir: como se dá

esta adaptação/transmidiação da narrativa? Para isso, é preciso estabelecer um contraste entre

os conceitos de tradução/adaptação e transmídia, de modo a reformular essa questão: qual

dessas modalidades de storytelling está em jogo na relação entre as obras estudadas? Quais

elementos estruturais são priorizados? Dito de outro modo, objetiva-se analisar como os

aspectos estruturais do hipotexto videolúdico, embasados nos estudos de Murray (2003),

Aarseth (1997) e Johnson (2012), foram adaptados/transmidiados, a partir das discussões

relativas aos conceitos de tradução intersemiótica de Roman Jakobson (1997) e transmídia de

Henri Jenkins (2009, apud PESSOA, 2011), avaliando os aspectos destas modalidades –

tradução intersemiótica e transmídia –, como e quando estes se manifestam na obra adaptada e

quais marcas da obra videolúdica foram deixadas no palimpsesto literário, na acepção de

Gérard Genette (2010).

ANIMUS e o Holodeck

Sendo o principal exemplo em se tratar de história multiforme, Jorge Luís Borges,

escritor, tradutor e poeta argentino, no conto Jardim dos Caminhos que se Bifurcam,

apresenta uma narrativa que não se mantém fixa a um único acontecimento, ou melhor, um

único evento, entre os vários que podem vir a compor um enredo, mas que reflete sobre os

eventos excludentes da vida cotidiana, pondo em conta os vários desdobramentos possíveis e

apresentando consequências causais das escolhas dos personagens. É possível observar que o

pensamento do século XX, traduzido em pressões ao formato uniforme e linear da ficção,

viria a ser aproveitado por um meio que, provavelmente, Borges não tinha em mente quando

escreveu esta obra; a narrativa eletrônica.

O próprio conceito de “caminho” está presente na palavra “ergódica”, nome atribuído

por Espen J. Aarseth (1997, p. 1), criado através da junção das palavras gregas “ergon” e

“hodos”, que significam “obra” e “via”, respectivamente. Na narrativa ergódica, presente mais

facilmente em jogos do que nos romances ou filmes, está a possibilidade maior de

experienciar a causalidade através de escolhas, sendo ainda permitido refazer o caminho em

caso de uma consequência mais fatal. Os jogadores, de uma certa forma, possuem uma certa

Page 76: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 854

ciência de que o universo ficcional da obra jogada se dividirá em possibilidades a cada

escolha importante a ser tomada. Ao passo que a acepção de Aarseth enfatiza a característica

mecânica do texto, ou seja, a possibilidade de agir dentro da obra, Janet H. Murray, além de

também estudar esta possibilidade, como será discutido mais à frente, emprega esta

característica mecânica de navegação de espaço, envolvendo no conceito de navegação a

noção dos vários caminhos existentes, para discutir duas configurações narrativas que

orientam os ambientes eletrônicos dos jogos: “o labirinto solucionável e o rizoma

emaranhado” (MURRAY, 2003, p. 130).

Para Murray, o labirinto é o elemento que transforma o espectador passivo em um

explorador heroico. O labirinto ficcional dos jogos é físico e cognitivo, mas também pode ser

emocional, moral e psicológico; ele pode ser meramente exploratório, com passagens

secretas, becos sem saída, puzzles para abrir portas trancadas e avançar, e caminhos que

regridem o percurso do jogador personagem, como pode apresentar uma metáfora de labirinto

que apresente um personagem incluso num contexto social, com Quests4 a serem cumpridas

no lugar de “simples” quebra-cabeças. Pode-se destacar que nos jogos eletrônicos é cada vez

mais notável a presença de vários labirintos que constituem um todo narrativo. Dito de outro

modo, o que conhecemos por fase constitui um caminho parcial a ser percorrido, sendo

possível notar que a saída do labirinto geralmente significa a entrada em outro, gerado uma

cadeia de labirintos que formam uma narrativa ou o simples percurso de um jogo, no caso

deste não se apoiar em uma história. Em Assassin’s Creed podemos observar esta

coexistência de vários labirintos ainda que pensemos de forma superficial, tomando como

exemplo os mapas do jogo, abertos e exploráveis, que podem tanto significar um suborno

visual para o jogador, que aprecia cenários muito bem elaborados, graficamente

impressionantes e visualmente próximos dos lugares reais aos quais referem, como confundir

os mesmos nas metas a serem atingidas. Além disso, são por eles que os jogadores passam,

cumprindo metas menores, e mesmo o grande objetivo de curto prazo pode ser observado

como conclusão parcial do todo narrativo videolúdico.

Steven Johnson nomeia esta narrativa como construto de vários objetivos parciais e a

habilidade dos jogadores de administrar simultaneamente todos eles, mantendo as noções de

longo e curto prazo com o termo telescopia, “[...] pela maneira como os objetivos se encaixam

uns nos outros, tal qual um telescópio recolhido” (JOHNSON, 2012, p. 48). Um exemplo

amplo de telescopia no jogo Assassin’s Creed é ilustrado na figura dos vilões que o

4 Optou-se por manter o termo em inglês pela convergência de sentidos atribuídos na literatura e nos jogos, onde

um herói precisa passar por provações em busca de um tesouro ou outra recompensa.

Page 77: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 855

personagem Altaïr precisa combater; figuras chave na Terra Santa, em Jerusalém, cada um é

baseado em figuras históricas da Terceira Cruzada. Enquanto o personagem precisa entender a

ligação entre seus alvos menores e Robert de Sablé, seu grande antagonista até o momento, o

jogador precisa administrar todas estas tarefas, que abarcam as tarefas menores, também

organizadas em telescopia, a serem realizadas como cumprimentos parciais.

Numa história cujo desenrolar envolve a navegação do espaço e o cumprimento de

tarefas e objetivos de curto e longo prazo, elementos como a sondagem e a agência trazem

recompensas parciais, ou seja, a conclusão de etapas menores do enredo, como também a

passagem por uma parte do labirinto. Janet H. Murray chama de agência a experiência de

participar da narrativa, realizando tarefas que geram resultados tangíveis (MURRAY, 2003, p.

127). Esta é uma premissa básica que pode ser observada em todos os jogos eletrônicos, pois,

como aponta Aarseth (1997, p. 2), o papel do leitor/jogador no desenrolar da história é

justamente o diferencial da narrativa ergódica para as não-ergódicas. O pesquisador

norueguês ilustra essa diferença com a metáfora de um espectador de um jogo de futebol que

pode especular, supor, extrapolar, mas não terá o prazer da influência de um jogador: “Vamos

ver o que acontece quando eu faço isso” (AARSETH, 1997, p. 4). Frase que ilustra, também,

o processo de sondagem, cunhado por Steven Johnson, que se dá quando o jogador explora a

física do jogo de acordo com as instruções básicas oferecidas no início (JOHNSON, 2012, p.

40). Johnson explica melhor o processo de sondagem com a divisão feita por James Paul Gee,

pesquisador especializado em videogames, onde o jogador deverá sondar o mundo virtual;

refletir sobre a sondagem feita, de modo a desenvolver uma hipótese; sondar a veracidade da

sua hipótese nesse mundo virtual e avaliar o efeito para aceitar ou reavaliar a hipótese. Esse

ciclo é chamado por Gee de “sondar, criar hipóteses, sondar de novo, repensar” (GEE, apud

JOHNSON, 2012, p. 42).

Racionalizando os conceitos apresentados até o presente momento em função da

análise do jogo Assassin’s Creed, mais precisamente do cumprimento das tarefas já citadas,

podemos ver uma relação de interdependência ente sondagem e telescopia, se retomarmos

este segundo conceito como a forma de organizar as tarefas em conjunto com a noção de

sondagem, pensando-a como a forma de exploração que guiará o jogador no cumprimento

destas. Tomando como exemplo o momento em que Altaïr precisa atingir seu primeiro alvo,

Tamir, podemos acompanhar (seja como expectador ou participante ativo) o personagem

explorando a cidade de Damascus, onde o seu alvo se encontra; pedindo informações a

pessoas, observando, ouvindo conversas, etc. Todas estas tarefas podem ser incluídas tanto

como sondagem, dado o caráter explorador destas atividades, como telescopia, pois são

Page 78: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 856

objetivos parciais para a chegada ao souk5, onde Tamir possui um comércio ilegal de armas. O

jogo, neste caso, apresenta um conjunto de enredos fixos aliados aos momentos de

participação do jogador. Dito de outro modo, a participação gera resultados tangíveis, sim, o

jogador explora a mecânica do jogo e, a partir disso, desenvolve suas estratégias, mas a saída

deste labirinto desencadeia um evento fixo, pré-concebido no enredo da história e comum a

todos os jogadores da obra.

A grande limitação do labirinto é conter apenas uma saída, inibindo percursos mais

ousados dos personagens. Aarseth atenta para os ecos das estratégias inacessíveis ou não

escutadas; caminhos não percorridos nos quais o jogador é constantemente lembrado, como

vozes que não foram escutadas (AARSETH, 1997, p. 3). “Cada decisão fará algumas partes

do texto mais, outras menos, acessíveis, você poderá nunca saber os resultados exatos das

suas escolhas; ou seja, o que você perdeu” (AARSETH, 1997, p. 3, tradução minha6). O

conceito é bastante provocativo ao caso dos jogos eletrônicos, que já apresentam

características mecânicas que implicam a possibilidade de existirem bifurcações no enredo e

finais menos limitados. Nesse ponto, os jogos de ação, gênero ao qual a franquia Assassin’s

Creed se encaixa, de modo geral, apresentam estruturas de enredo um tanto conservadoras; os

mapas são amplos e possuem vários caminhos, os objetivos/tarefas são mais abrangentes ao

jogo e extrapolam o enredo, mas os eventos fixos continuam limitando de forma causal os

resultados destas tarefas.

É inegável o avanço dos elementos cinematográficos dos videogames, possibilitando

que os títulos apresentassem dublagem e trilha sonora de qualidade, cutscenes e modelagens

3D que tornam os personagens e cenários muito próximos da realidade, que, somados à

sofisticação mecânica adquirida nas últimas décadas, demandam um esforço intelectual maior

do jogador, tanto em relação à manipulação de controles, que tem se tornado cada vez mais

complexa, quanto à leitura de códigos provenientes de diversas naturezas, como a imagem (e

isto inclui o movimento), o som, e os elementos textuais, que caracteriza o que chamaremos

de letramentos multimodal e ludológico7. Se por um lado esse avanço significou uma melhora

na forma como os jogos eletrônicos representam o mundo, por outro o investimento, em

grande parte dos casos, recaiu massivamente sobre estes recursos, em detrimento da atenção

5 Zoco, em português, termo que designa um uma feira periódica nos países árabes. Optou-se por manter no texto

a nomenclatura utilizada no jogo. 6 Each decision will make some parts of the text more, and others less, accessible, and you may never know the

exact results of your choices; that is, exactly what you missed. 7 O letramento multimodal refere-se à leitura de construções de significados provenientes de vários modos

semióticos enquanto o ludológico refere-se à leitura dos elementos de um jogo eletrônico.

Page 79: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 857

voltada à criação de rumos conflitantes, cuja visão estética é representada pela figura de um

rizoma.

Para os jogadores, este outro processo é igualmente desafiador e reconfortante, pois ao

mesmo tempo em que o seu percurso seria um tanto nublado; na ausência de um caminho

certo e definitivo, “[...] encena-se uma história de perambulações, de atração por rumos

conflitantes, [...] de uma sensação de impotência para se orientar ou encontrar uma saída; [...]

o fato de o enredo não se resolver significa que nenhuma perda irreparável será sofrida”

(MURRAY, 2003, p. 133). Devemos levar em conta, também, que liberdade dada pelo rizoma

ou mesmo a navegação com limites do labirinto, que também possui interatividade e seus

níveis de sondagem e agência, podem causar no jogador uma sensação de autoria sobre a

história. A interação com os lugares e outros personagens aliada aos efeitos causados pelas

suas ações dão ao jogador a ilusão de poder máximo sobre o mundo navegado. Espen J.

Aarseth define este desejo, muitas vezes frustrado, do jogador por algo que transcenda o ato

interpretativo, constituindo um controle sobre a narrativa: “Eu quero contar a minha história;

a história que não seria possível sem mim” (AARSETH, 1997, p. 4, tradução minha8). Ele

argumenta que de fato existe um certo controle, até certo ponto, mas que este senso de

consequência individual é, na maioria das vezes, ilusório. Janet Murray (2003, p. 149), por

sua vez, aponta uma distinção entre agir, ainda que de forma criativa, dentro de um ambiente

pré-concebido e construir seu próprio ambiente. A autora atenta para o fato de que os

jogadores recebem possibilidades prescritas pela programação, que delineia, também, os

limites da experiência de navegação, além de já ser um tanto limitada no processo de autoria

(o autor dificilmente conseguirá atender à demanda de todos os jogadores possíveis durante o

processo criativo). A este processo criativo, possível através do meio ludológico e reforçado

com a mídia digital a autora dá o nome de autoria procedimental.

Para Murray, autoria procedimental “significa escrever as regras para o envolvimento

do interator, isto é, as condições sob as quais as coisas acontecerão em respostas às ações dos

participantes” (MURRAY, 2003, p. 149). Isso quer dizer que as ações de personagens como

Altaïr e as atividades dos jogadores foram prescritas através de padrões e normas

estabelecidos. Enquanto o programador pensa em um repertório de ações e resultados, cabe ao

jogador fazer a história progredir através da sua interferência, improvisando um percurso

particular dentre as muitas ações possíveis previstas pelo autor e postas ao seu dispor através

da programação e prescrição de regras. Os jogos eletrônicos destacam-se das demais

8 "I want this text to tell my story; the story that could not be without me."

Page 80: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 858

plataformas pela forma como estas regras são distribuídas e apresentadas; elas não são todas

entregues de cara, mas escondidas e apresentadas ao longo do jogo, de acordo com a sua

relevância para os objetivos mais imediatos.

Dados do manual do primeiro Assassin’s Creed para PC apresentam apenas o perfil

do(s) protagonista(s), seus controles básicos e modos de verificar o seu status, enfim o que

Janet Murray nomeia com o termo Interatividade; o jogador aprende como interagir com o

jogo, mas o que ele de fato terá que fazer com isso, os objetivos e as formas de alcançá-los só

serão revelados no momento em que forem relevantes, estes estarão mais ligados à

procedência da narrativa, uma vez que os objetivos serão revelados junto com a história e os

métodos são, na maioria das vezes, intuitivos, e precisam ser descobertos, através do já

apresentado processo de sondagem. “Essa é uma das razões pelas quais os videogames

podem ser frustrantes para os não iniciados. Você senta ao computador e pergunta: ‘O que

devo fazer?’ Quem costuma jogar vai responder: ‘Você precisa descobrir o que precisa fazer’

(p. 40)”.

Além do manual, o jogo apresenta um recurso chamado Memory Corridor, um cenário

multifuncional do jogo que, primeiramente, se apresenta como uma sala de treinamento dos

recursos do jogo e ações possíveis. Como o jogo é apresentado em camadas, onde você joga

com um personagem contemporâneo que acessará as memórias de Altaïr através de um

programa, processo que será melhor detalhado no capítulo a seguir, recursos como o Memory

Corridor podem ser vistos como uma forma metalinguística de ditar as instruções do jogo,

sem que isso o torne menos verossímil. Neste caso, o jogo Assassin’s Creed parece estar

visando não só os jogadores já letrados na mídia videolúdica, como também os jogadores

casuais e também os não-jogadores, o que talvez justifique, também, a existência da

adaptação literária do enredo dos jogos.

Uma Cruzada Multimodal

No presente trabalho, estudamos, até aqui, conceitos estruturantes da mídia

videolúdica, à qual pertence os jogos da série Assassin’s Creed. Este capítulo, então, dedica-

se à análise da tradução intersemiótica literária em contraste com os jogos. Para isso,

contaremos com a definição de Roman Jakobson, linguista russo que cunha o termo para

tratar da tradução em que signos verbais são interpretados e recriados por sistemas de signos

não verbais. O que acontece, no caso da adaptação estudada neste trabalho, é um pouco

diferente, senão contrário, uma vez que estes signos que são, desta vez, multimodais, levando

Page 81: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 859

em conta que o significante das referidas obras videolúdica usam dos signos verbais e não-

verbais, foram reinterpretados por apenas signos verbais, que é o caso da mídia literária, ou

seja, a obra literária não é a fonte de adaptação, como geralmente ocorre, mas o texto

adaptado.

Como em muitos outros casos de jogos eletrônicos, em Assassin’s Creed,

acompanhamos uma narrativa ergódica, sim, dados os esforços não triviais para moverem a

história, porém como todos os grandes eventos fixos; o jogador até pode traçar o seu caminho

até estes eventos fixos e, até certo ponto, interferir no comportamento do personagem, mas os

pontos do enredo onde eles chegarão através destas ações já foram pré-concebidos. Isto não

quer dizer que apenas os jogos que seguem a linha narrativa da série possuem essa

característica. De certa forma, todos os jogos são desenvolvidos com ações e efeitos pré-

concebidos, esta é a própria noção de programação e desenvolvimento, abordada pelos

estudos complementares de autoria procedimental por Janet Murray e física do jogo por

Steven Johnson, a diferença é existem jogos muito mais abertos que dão a liberdade ao

jogador para não seguirem um script sem que isto torne o deixe estagnado no mundo ficcional

no qual está imerso. Por outro lado, isto denota, também, uma proximidade narrativa entre as

mídias, o que torna a relação dos textos como um ponto facilitador da adaptação, em questão

de enredo.

Gerard Genette, crítico literário francês e teórico da literatura, define esta relação entre

as obras como hipertextualidade. Genette chama o texto B, que neste caso é o romance A

Cruzada Secreta, de Oliver Bowden, de hipertexto, que está relacionado a um texto A, que

neste caso são dois jogos, Assassin’s Creed e Assassin’s Creed: Bloodlines. O crítico literário

defende que todo hipertexto carrega marcas do seu texto fonte, relação que nomeia a sua obra

Palimpsesto, na qual ele discute esta teoria. “Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira

inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-

la por transparência, o antigo sob o novo” (GENETTE, 2010, p. 7). A partir deste conceito, é

possível notar, além da fidelidade semântica, vestígios de processos característicos dos

videogames, já analisados no capítulo anterior, na obra literária.

Contrastando os jogos com o livro, podemos ressaltar que, primordialmente, a

perspectiva é o maior ponto de divergência entre as obras e mesmo assim, caracteriza uma

equivalência. O jogo é narrado em duas camadas: a primeira constituída pelo núcleo de

Desmond Miles, um jovem que é sequestrado pelas Indústrias Abstergo, por conta da sua

descendência. Na mitologia do jogo, as memórias dos seres vivos são passadas

hereditariamente, sendo possível acessá-las através de um programa chamado ANIMUS.

Page 82: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 860

Detentora do programa, a empresa sequestra Miles, descendente de Altaïr Ibn-La'Ahad,

membro de uma ordem de Assassinos surgida no mediterrâneo, para acessar as memórias

deste Assassino, que combateu os cavaleiros templários no período da terceira cruzada.

Desmond Miles e todos os elementos ficcionais do seu núcleo não existem na obra literária,

mas isto não quer dizer que o livro não tenha encontrado uma forma de manter a narrativa em

duas camadas. O livro mantém a narrativa em primeira pessoa, mas na perspectiva de Niccolò

Polo, pai de Marco, e aquele que vai contar a história de Altaïr.

Nesta segunda camada, podemos observar um fenômeno que transcende o conceito de

tradução intersemiótica e adaptação, quando a história de Altaïr contada no livro caracteriza

uma convergência entre os enredos de dois jogos, indo mais além, quando apresenta uma

história não contada do herói, que vai de segredos do seu passado, contando a sua origem,

infância e entrada na Ordem, ao fim da sua vida, não contida nos jogos, que conta os

desdobramentos de suas últimas batalhas. O jogo, neste sentido, acaba amarrando histórias

que já são complementos de formatos distintos, uma vez que Bloodlines foi lançado apenas

para o Playstation Portable, diferente do seu antecessor, lançado em vários outros consoles,

com exceção desse. O que tínhamos até o lançamento do livro era um caso de composto

narrativo transmidiático, pois, apesar de ambas as obras serem videolúdicas, o jogador

deveria migrar entre as várias plataformas onde uma história era contada em partes e o livro

tenta ao máximo manter os enredos dos jogos na adaptação. A obra acaba sendo, desta forma,

um ponto de convergência entre as histórias amarradas pela adaptação e acréscimo de detalhes

inéditos deste enredo que podem ser considerados, também, como outra parte da história.

Esse tipo de narrativa se caracteriza pelo uso de diferentes mídias na formação de

sua estrutura. Para explica esse fenômeno, Jenkins (2009) se reporta ao exemplo de

Matrix, em que partes da narrativa se encontram na sequência de filmes, no game de

mesmo nome e nos quadrinhos, The Animatrix (2003). Essas partes exercem uma

relação de complementariedade formando um todo narrativo. (JENKINS apud

PESSOA, 2011)

Como decorrência desta convergência de histórias, o livro acaba suportando uma

característica predominantemente videolúdica que pode acabar espantando os leitores não-

jogadores: a quantidade de vilões. É característico dos jogos eletrônicos a divisão da narrativa

em fases, objetivos menores a serem cumpridos que vão, parcialmente, construindo a história

do jogo e que, geralmente apresentam um Boss Character, popularmente conhecido no Brasil

como “Chefão”. Em obras literárias, o mais comum é que haja um grande vilão, então, os 9

alvos, apenas no primeiro Assassin’s Creed, recebidos em lista para serem combatidos por

Page 83: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 861

Altaïr, que integram cada um o seu próprio enredo, podem tornar a narrativa um pouco mais

rápida e movimentada do que os leitores dos romances vitorianos, por exemplo, estão

acostumados. Ao mesmo tempo, esta “novidade” dá a esses leitores uma noção de como

funciona esta dinâmica ludológica de fases. O jogo também pode proporcionar um vislumbre

do que seria a sondagem através das estratégias de exploração dos lugares de Altaïr, seguidas

dos seus planos de ação, ou mesmo a hierarquização dos seus objetivos de longo e curto

prazo, que caracterizam a telescopia. Contudo, a noção de agência, ou seja, a sensação de

poder sobre o curso da narrativa jamais será vivenciada na obra literária.

Considerações Finais

Como desdobramento de uma pesquisa de Iniciação Científica, que também está sendo

reformulada como monografia para obtenção do grau de Licenciatura em Letras, Língua

Inglesa e Literaturas, este artigo surge como uma forma de organização parcial das referências

estudadas até o presente momento e desenvolvimento embrionário da análise dos objetos. A

pesquisa buscou estudar o fenômeno da tradução intersemiótica dos jogos Assassin’s Creed e

Assassin’s Creed: Bloodlines da desenvolvedora Ubisoft no livro Assassin’s Creed: A

Cruzada Secreta, amparadas nos conceitos estruturantes da mídia videolúdica e das teorias da

adaptação e transmídia. Fica então objetivado a reelaboração dos objetivos da pesquisa

anterior a partir das considerações deste trabalho.

É notável, através desta análise, que a obra adaptada assume um caráter que transcende

a noção de tradução/transmutação de Jakobson. Num primeiro momento, o livro aparenta

manter a fidelidade de um blockbuster cinematográfico, e sendo produzido no mesmo período

e, portanto, contexto cultural, pode deduzir-se que foi destinado ao mesmo público do jogo. A

teoria da cultura de convergência de Jenkins ajuda a reforçar esta ideia. Por fim, um olhar

mais atento enxerga uma tentativa de mediar não somente este enredo, como também o

gênero, visando um novo público. Pode-se considerar, ainda, que os vestígios observados, na

acepção de Genette, podem ter sido deixados de forma consciente. Neste caso, o autor

supostamente tivera em mente que parte do seu público não conhecia as convenções do

gênero videolúdico e não eram, portanto, letrados. A partir disso pôde-se delinear uma

pesquisa que visava a confluência de duas teorias que se combinam para explicar o fenômeno

estudado.

Referências

Page 84: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 862

AARSETH, Aspen J.. Cibertext – perspectives on ergodic literature. London: The Johns

Hopkins Press Ltd., 1997.

ASSASSIN’S CREED. Ubisoft Montreal., Montréal - QC, 2007.

BOWDEN, Oliver. Assassin’s Creed: A Cruzada Secreta. Tradução de Domingos Demasi –

18ª edição. Rio de Janeiro: Galera Record, 2014.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Tradução de Cibele Braga,

Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos Coutinho, Mariana

Mendes Arruda, Miriam Vieira. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2010.

JAKOBSON, Roman. Aspectos Linguísticos da Tradução. In: Linguística e Comunicação.

São Paulo: Cultrix, 2000.

JOHNSON, Steven. Tudo o que é Ruim é Bom para Você: como os games e a TV nos tornam

mais inteligentes. Tradução de Sérgio Góes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Tradução de

Elissa Khoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzzio. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003.

PESSOA, Marcos Paulo Lopes. De Volta ao Inferno: um caso de tradução entre literatura e

videogame. 2011. 143 f.. Dissertação (Mestrado em Educação e Contemporaneidade) -

Departamento de Educação, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2011.

Page 85: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 863

CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ

SANT’ANNA [Voltar para Sumário]

Felipe de Castro Cruz (UFPB)

Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)

1. Introdução

André Sant’Anna nasceu em 1964, e é filho do também escritor Sérgio Sant’Anna.

Sua primeira publicação surge apenas em 1998, com a obra Amor. Sua escrita revela-se como

um conjunto singular de traços dentro da atual produção literária brasileira. Melhor

explicando, há aspectos na escrita do mineiro que apesar de serem compartilhados com outras

produções da mesma época, são intensificados, de modo a tornar a obra de André um objeto

de destaque dentre as demais. Neste sentido, é importante observar a importância deste autor

para a constituição do que hoje se resolveu chamar de literatura brasileira contemporânea.

Alguns autores citam André como um dos escritores fundamentais neste processo de

reconfiguração da literatura. Dentre eles, Beatriz Resende e Erik Schollhammer.

Resende, em Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no Século

XXI (2008), insere André num conjunto de novos escritores, ao qual a autora se refere como

produtor de uma “ficção de importância, que merece atenção, uma literatura robusta, com

propostas de criação inovadoras” (RESENDE, 2008, p. 23). Ora, para Resende, a literatura

brasileira contemporânea tem como marco inicial a publicação de Cidade de Deus, de Paulo

Lins, em 1997. Esta obra é a que primeiro reúne as características de toda uma produção que

se intensifica com o passar dos anos: a cidade como palco principal, a violência como aspecto

recorrente e a origem do escritor. Estas características, à exceção do aspecto da origem do

escritor, são contempladas e intensificadas na obra de Sant’Anna. A violência descrita beira

os limites do suportável, e a cidade passa a ser vista por olhos críticos e ácidos. A inovação na

escrita do mineiro se dá por meio de um realismo exacerbado, que extrapola o simples retrato

de uma realidade, e com isso adentra, também o universo metaficcional, aspecto que lhe dá o

devido destaque dentre os do seu tempo.

Page 86: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 864

É justamente este realismo intenso que é destacado por Erik Schollhammer em Ficção

brasileira contemporânea (2011), com relação a André Sant’Anna. Segundo o crítico, “não é

exagero dizer que a escrita de André não se parece com nada do que vem sendo produzido por

sua geração” (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 71). Isto porque o realismo, que é um dos

aspectos mais marcantes da literatura contemporânea brasileira, extrapola o aspecto da

descrição, e passa a ser, também, constitutivo do próprio discurso construído pelo narrador. É

a este nível de realidade ficcional que o autor em questão aponta a obra de André Sant’Anna

como sendo hiper-realista.

Por estas características destaca-se o mineiro André Sant’Anna no cenário da

atual literatura brasileira. Alguns destes aspectos serão analisados daqui por diante, a partir de

um conto especificamente: A Lei (2006). O objeto estético que será estudado aponta para

abordagens diferentes na obra de André e põe em evidência aspectos emblemáticos dentro da

obra do autor, tais como o realismo levado ao seu grau máximo de efeito e a criticidade acerca

do tempo corrente, o que torna a obra do mineiro, seguindo os pensamentos de Agamben,

uma obra contemporânea.

2. Considerações sobre o realismo

Desde a publicação de Os Prisioneiros, em 1963, do escritor mineiro Rubem Fonseca,

um aspecto tem sido instituído como uma das principais vertentes da literatura brasileira: o

realismo. Este realismo tem início, primeiro, conceitualizado como brutalismo pelo crítico

Alfredo Bosi, devido ao alto grau de crueza nas descrições da violência urbana nos contos de

Fonseca. Boa parte desta brutalidade, também, tem como fundamento a presença de

personagens marginalizados. Logo, pode-se perceber a literatura de Fonseca como grande

marco inicial de uma forma de escrita singular que passou a ser configurada na literatura

brasileira contemporânea.

De certa forma, esta configuração passou a ser moldada conforme as necessidades do

contexto social. Desta maneira, o realismo não pode ser entendido como a mera transposição

descritiva de determinadas situações de violência. Ou ainda, como a exploração, no âmbito da

linguagem, de imagens violentas e desconfortantes. A arte, vale salientar, à esta altura, não

servia apenas como um simples instrumento de desconforto. O brutalismo ou realismo, como

se queira chamar, tinha, ao mesmo tempo, uma justificativa e uma função. Assim, este

realismo contemporâneo, que difere do realismo do século XIX, pode ser entendido como

Page 87: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 865

mais engajado e consciente politicamente. É sobre este novo realismo que comenta

Schollhammer:

Diríamos inicialmente, que o novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a

literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa

realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como

transformadora.

Estamos falando de um tipo de realismo que conjuga as ambições de ser

“referencial”, sem necessariamente ser representativo, e ser, simultaneamente,

“engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa político ou

pretender transmitir de forma coercitiva conteúdos ideológicos prévios.

(SCHOLLHAMMER, 2011, p. 54).

Revela-se, então, o realismo, como uma das principais tendências da

contemporaneidade, uma vez que a partir dele percebemos configurações artísticas que

mimetizam a realidade urbana, violenta, de um ponto de vista afastado, como se consciente,

criticamente, de que o todo apresentado enquanto narração se constitui, na verdade, como

uma denúncia. Isto é exatamente o que caracteriza o contemporâneo para Agamben (2009,

p.59): uma relação singular com o seu próprio tempo.

3. Considerações sobre a metaficção

A capacidade da literatura de refletir e chamar a atenção sobre si mesma, para seus

próprios processos linguísticos e de composição, sempre existiu. As narrativas metaficcionais

não constituem um fenômeno novo. Ainda assim, é inegável o fato de que essa forma artística

tem ganhado relevo na pós-modernidade, chegando a ser um dos fenômenos estéticos mais

característicos da arte contemporânea.

Mas o que vem a ser, afinal, a metaficção? Gustavo Bernardo (2010) a define como

“uma ponte interna, e nela se pensa a ficção dentro da ficção” (p.37), e ainda, “a metaficção é

uma ficção que não esconde o que é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato

ficcional, e não um relato da própria verdade.” (p.42) Sendo assim, os chamados textos

metaficcionais, autorreflexivos, anti-ilusionistas ou mesmo, narcisistas, são aqueles que não

buscam camuflar o seus processos de construção, antes, porém, jogam com a linguagem de

modo que demonstram uma autoconsciência textual.

Linda Hutcheon, por sua vez, conceitua a metaficção como:

(...) ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui a si mesma um comentário sobre

sua própria identidade e/ou lingüística. ‘Narcisista’ – o adjetivo qualificativo

escolhido aqui para designar essa autoconsciência textual – não tem sentido

Page 88: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 866

pejorativo, mas principalmente, descritivo e sugestivo, como as leituras alegóricas

do mito de Narciso. (HUTCHEON, 1984, p. 1)1

Assim sendo, a narrativa metaficcional demonstra uma profunda autoconsciência em

relação à produção artística e ao papel desempenhado pelo leitor. De acordo com Patricia

Waugh (1984: pág. 2), “metaficção designa e escrita ficcional que chama a atenção,

autoconcientemente e sistematicamente, para seu status de artefato com o objetivo de propor

questões sobre a relação entre ficção e realidade.” A narrativa metaficcional assume que a

escrita é sempre um discurso sobre a realidade, dessa forma, o ‘real’ do texto nunca deixa de

ser mediado e construído linguisticamente.

4. O hiper-realismo em André Sant’Anna

Desde Aristóteles2 a expressão literária é entendida como mimese, ou seja, uma

representação da realidade. Desta afirmação decorrem alguns implícitos, um deles o de que a

literatura deve representar o mundo visível tal e como o conseguimos apreender. Esta

interpretação parece ser um tanto exagerada, principalmente quando pensamos na literatura

como um meio artístico, portanto livre para ser configurado da forma como o autor preferir.

No entanto, a discussão que podemos levantar neste instante não gira em torno desta questão,

mas de outra tão importante quanto: por que representar a realidade?

Candido, em De Cortiço a Cortiço (1991, p. 111), já levanta um questionamento no

que diz respeito à crítica literária. Ora, entender a literatura unicamente como uma realidade

duplicada é entender que o “trabalho plasmador” é, na verdade, um trabalho sem grandeza, o

que dispensaria completamente o olhar crítico. Assim, “seria melhor a visão que pudesse

rastrear na obra o mundo como material, para surpreender no processo vivo da montagem a

singularidade da fórmula segundo a qual é transformado no mundo novo, que dá a ilusão de

bastar a si mesmo”. Em outros termos, a obra deve ser encarada como um mundo fechado, e

este mundo, longe de ser algo dispensável, tem uma significação.

A que realidades imita André Sant’Anna no conto por hora estudado? Ora, a escrita

parece ser um objeto de experimentação para o mineiro, uma vez que seu conto apresenta

aspectos tão inovadores quanto estranhos, no sentido dos Formalistas Russos. Por exemplo,

1 No texto original: “(...) is fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its

own narrative and/or linguistic identity. ‘Narcisistic’ – the figurative adjective chosen here to designate this

textual self-awareness – is not intended as derogaty but rather as descriptive and suggestive, as the ironic

allegorical readings of the Narcissus myth which follows these introductory remarks should make clear.” 2 Cf.: ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

Page 89: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 867

ao iniciar o conto A Lei com a constatação de que é “burro” porque é da polícia, Sant’Anna

coloca em discussão um preconceito estabelecido socialmente, mas este preconceito não está

disposto de forma simples no texto, antes a partir de uma elaboração artística que torna

estranha a narrativa:

Eu nunca percebi isso, mas eu sou muito burro. Não parece nem que sou eu que

estou pensando isso tudo que eu estou pensando agora. E muito menos que sou eu

que estou pensando nessas palavras que estão saindo no papel. (...) Eu não estou

escrevendo. Eu só estou pensando que eu estou escrevendo. É que eu sou burro.

Sabe por quê? Porque eu sou da polícia. (SANT’ANNA, 2006, p. 39)

O primeiro impacto que o leitor tem é com a referência que se faz ao autor do texto.

Não o próprio Sant’Anna, mas o “eu” que aparece de súbito na primeira frase do texto. Seria

um recurso metaficional ou um exacerbado aspecto de realismo, em que o personagem se

coloca explicitamente como autor do texto? A segunda hipótese nos parece mais plausível na

medida em que o personagem-autor se identifica como policial, “burro” e corrupto. Ora, esta

forma de realismo apresenta um certo grau de criticidade trabalhada artisticamente. Ou seja,

não é apenas uma cópia da realidade, mas uma imitação com uma determinada finalidade.

Esta finalidade, assim como vem sendo com as demais obras da literatura contemporânea, tem

uma preocupação social, muitas vezes configurada ironicamente como uma denúncia. Assim é

que o policial autor do texto denuncia-se, narrando ações violentíssimas e de forma crua,

lembrando o que Bosi caracterizara como brutalismo (SANT’ANNA, 2006, p. 43):

Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher? Eu já, porque eu sou da

polícia. Então, a gente fica horas e mais horas fodendo a puta, batendo na puta,

rindo da cara da puta, enfiando coisas (...). A gente, polícia, é burro, mas tem

muita imaginação. Você já enfiou um livro no cu de alguém?

O realismo se configura, neste caso, também no nível da linguagem. A inserção de

palavrões associados ao ato hediondo praticado pelo policial atribui à narrativa um alto grau

de realidade, grau este que chega a incomodar, de fato, a recepção. Assim, podemos perceber

o realismo neste conto pelo menos de duas formas: do ponto de vista das cenas e também do

da linguagem, parecendo extrapolar a diegese da narrativa. O personagem totalmente

esvaziado, no que diz respeito às ideias e à reflexão, é um retrato, também, do modo como é

visto um determinado grupo social.

Podemos encontrar um aspecto crucial em A Lei: a consciência da escrita. No conto, o

autor do texto se define como um policial corrupto, que apesar de sua confessa falta de

consciência da escrita mostra-se totalmente a par dos instrumentos que compõem a narrativa,

de modo que o leitor passa a ter conhecimento da narrativa completa e, ao apreendê-la, tem

Page 90: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 868

consciência da ironia que é a aparente burrice do policial. No entanto, fica como aspecto

crucial no texto algo que o torna ainda mais realísticos: a visão do texto ainda sendo

construído. Talvez seja este o diferencial entre André Sant’Anna e seus contemporâneos. Ora,

vejamos um trecho de A Lei:

Agora eu sou uma primeira pessoa pós-moderna, que não tem dono, que é

metalinguagem, que é o fascismo metalinguado dessa porra de autor fascista que leu

uma vez o Glauber Rocha dizendo que botava o Antonio das Mortes atirando no

povo (...).

Em A Lei, temos sempre a lembrança de que o que se está lendo é, na verdade, ficção.

Não existe qualquer preocupação por parte de Sant’Anna em convencer o leitor de que o que

ele está lendo é real, talvez garantindo um maior nível de verossimilhança. Pelo contrário:

existe a preocupação de lembrar, instante após instante, que o que se lê ali não é real. Há

também o foco no que Linda Hutcheon (1984) conceitua como mimese do processo. Segundo

essa autora, através da metaficção, a ligação entre vida e arte foi refeita em um outro nível –

no processo do contar a história e no novo papel exercido pelo leitor. Em outras palavras, a

mudança ocasionada pela narrativa metaficcional subdivide o conceito de mimeses. O que

ocorre é uma mudança de foco. Enquanto o romance realista do século XIX concentrava-se na

mimese do produto, na história contada, buscando realizar um espelhamento entre obra e

realidade externa, o texto narcisista evidencia a mimese do processo, ou seja, mais importante

do que a história contada é saber o como essa história é contada. Essa ênfase é dada no conto

A Lei, em que, como indica o trecho transcrito mais acima, o próprio personagem narrador se

reconhece enquanto tal, fazendo assim, uma alusão à figura de um autor por trás do artefato

literário, obrigando também o leitor a relembrar o status ficcional daquilo que se está lendo.

Quando o personagem diz ser “uma primeira pessoa pós-moderna” ele demonstra,

ironicamente, uma autoconsciência de seu papel na diegese.

Outro aspecto relevante no texto é justamente o dos personagens que são construídos,

em sua maioria, vazios de subjetividade. Este aspecto se mostra mais evidente em A Lei, à

medida em que os personagens são descritos extremamente esvaziados de qualquer pretensão

de interioridade, quando nem suas vozes são apresentadas para o leitor. A construção do texto

de Sant’Anna dá-se, desta forma, de maneira irônica, pois o texto se mostra mais real à

medida que lembra a farsa, se assim podemos classificar, que é a literatura, e mais que isso, o

autor faz brotar de personagens vazios pensamentos acerca da subjetividade humana. Afinal,

o que pensa o homem, ou mesmo quem seja o homem, não importa. O que importa é pensar a

Page 91: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 869

condição deste homem na situação posta pelo narrador. Sobre este aspecto contraditório, vale

observar o que afirma Schollhammer (2011, p. 77):

É, paradoxalmente, por meio desse achatamento radical que o super-realismo de

André Sant’Anna consegue criar um jogo de alienação, uma construção artificial que

acaba apontando para algo atrás do signo, algo terrível abaixo do cinismo aparente.

Mais do que uma crítica ideológica da alienação e do estranhamento em potência

afirmativa – no lugar da falta de sujeito, aparece uma subjetividade, e, em vez dos

clichês banalizados e superficiais, sua repetição vigorosa faz emergir a sensação de

uma realidade , traumática talvez, intolerável e dificilmente significável.

É pensando neste paradoxo que não podemos aceitar a literatura – a escrita por André,

em especial – apenas como cópia de uma realidade. À medida que lemos seus contos, fica-nos

mais clara a convicção de que seu autor cria novos mundos, e essa criação, ou recriação, tem a

função de colocar em pauta a realidade na qual vivemos. Embora em A Lei o contexto social

seja aparentemente muito mais enfatizado, temos também outros aspectos relevantes como a

própria criação literária posta a nu. Este realismo de Sant’Anna é construído de forma intensa,

posto que fortemente trabalhado enquanto arte, e não se limita a espelhar realidades, mas

problematizá-las. Pensamos que composto desta forma, o realismo passa para um outro

patamar, este mais elevado, o de hiper-realismo, devido ao grau de dificuldade apresentado

em sua configuração.

Considerações finais

O presente estudo pretendeu esboçar uma análise acerca do hiper-realismo na escrita

do mineiro André Sant’Anna. Para tanto, utilizamo-nos de estudos que versam sobre

determinadas vertentes do realismo, mais especificamente aquele que surgiu, no Brasil, a

partir do brutalismo. Tentamos demonstrar de que forma este brutalismo passou a ser

configurado na literatura brasileira contemporânea. Como aporte teórico, baseamo-nos

principalmente em Schollhammer (2011) e Hutcheon (1984), que respectivamente abordam

questões sobre o hiper-realismo e a metaficção.

A principal contribuição do nosso trabalho foi a conclusão de que o realismo da forma

como é configurado na obra de Sant’Anna não se restringe apenas à mimese do produto, ou

seja, da própria realidade do mundo palpável; pelo contrário, o autor acrescenta a este tipo de

representação a mimese do processo. Melhor dizendo: Sant’Anna utiliza-se de um

instrumento da narrativa, a metaficção – que, em princípio, serve para quebrar a noção de

realidade da diegese do objeto literário –, e inverte sua função, reconfigurando o processo

Page 92: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 870

realista baseado num aspecto cujo fundamento é a própria contestação da realidade interna da

obra.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios . Tradução Vinícius

Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009

BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.

CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. Novos Estudos CEBRAP, Nº 30, julho de 1991, p.

111-129.

HUCTHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metaficcional paradox. 2 ed. New York:

Methuen, 1984.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução J. Blikstein e José Paulo Paes.

São Paulo: Cultrix, 1992.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio

de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SANT’ANNA, André. Contos cruéis. As narrativas mais violentas da literatura brasileira.

Org. Rinaldo de Fernandes. São Paulo: Geração Editorial, 2006.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2011.

WAUGH, Patricia. Metafiction. The theory and practice of self-conscious fiction. London and

New York: Routledge, 1984.

Page 93: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 871

TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA

[Voltar para Sumário]

Felipe Vigneron Azevedo (IFF)

Antes de discorrermos acerca de algumas tendências da literatura brasileira

contemporânea, vale pensar o que significa, em si, o conceito de “contemporâneo”. Para

Beatriz Resende, o critério de contemporaneidade é o tempo presente:

Ao iniciarmos qualquer observação sobre a prosa de ficção brasileira

contemporânea, especialmente a praticada na metade dos anos 1990 até o correr

desta primeira década do século XXI, percebemos, de saída, que precisamos

deslocar a atenção de modelos, conceitos e espaços que nos eram familiares até

pouco tempo atrás. Teremos que deixar jargões tradicionais no trato do literário e,

saudavelmente, conhecer termos que vão da antropologia ao vocabulário do

misterioso universo da informática, tudo isso atravessado pelas necessárias reflexões

políticas, pois vivemos hoje, no Brasil e, de modo geral, em toda a América Latina,

um momento em que o viés político, felizmente, tende a atravessar todas as

atividades, o que é uma consequência positiva da volta à plena democracia

(RESENDE, 2008, p. 15).

Em outra posição, se encontra Nietzsche, um dos filósofos mais importantes da

história ocidental e um dos totens da modernidade. Mencionado por Giorgio Agamben, que

pretende, em seu ensaio “O que é o contemporâneo?”, propor uma definição filosófica,

Nietzsche serve não apenas como plataforma para um salto qualitativo, como também é o fio

condutor dos argumentos que serão desenvolvidos pelo filósofo italiano:

Uma primeira e provisória indicação para orientar a nossa procura por uma resposta

nos vem de Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no Collège de France,

Roland Barthes resume-a deste modo: “o contemporâneo é o intempestivo”. Em

1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que tinha trabalhado até então sobre

textos gregos e, dois anos antes, havia atingido uma inesperada celebridade com O

nascimento da tragédia, publica as Unzeitgemässe Betrachtungen, as

“Considerações intempestivas”, com as quais quer acertar as contas com o seu

tempo, tomar posição em relação ao presente. “Intempestiva esta consideração o é”,

lê-se, no início da segunda “Consideração”, “porque procura compreender como um

mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto

é, a sua cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da

história e deveremos ao menos disso nos dar conta” (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Page 94: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 872

Especificamente sobre literatura, o professor Karl Erik Schøllhammer concorda com

Nietzsche quanto à definição de contemporâneo. A proposta nietzschiana é de uma

contemporaneidade como resistência. Assim, a definição histórica de marcação temporal de

Beatriz Resende pode ser confrontada com a adesão de Karl Erik a uma proposta mais

filosófica:

“O contemporâneo é o intempestivo”, diz Barthes, o que significa que o verdadeiro

contemporâneo não é aquele que se identifica com seu tempo, ou que com ele se

sintoniza plenamente. O contemporâneo é aquele que, graças a uma defasagem ou

anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Por não se identificar, por

sentir-se em desconexão com o presente, cria um ângulo do qual é possível

expressá-lo. Assim, a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que

representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza histórica

que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua

lógica. Ser contemporâneo, segundo esse raciocínio, é ser capaz de se orientar no

escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com o

presente com o qual não é possível coincidir (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 9-10).

A definição de Beatriz Resende é mais ampla e cria uma ilusão de irrestrição: todos os

escritores em atividade nos anos de 1990 e de 2000 são nossos contemporâneos, o que

tornaria impraticável elencá-los, dada a profusão de novos escritores, alguns já estudados e

consagrados, outros tateando um lugar no panteão da literatura brasileira. Um exemplo disso é

o sulista Fabrício Carpinejar – haveria muitos outros, mas, por questão de economia, não são

listados aqui –, que, apesar de ser objeto de estudos acadêmicos e de apresentar uma vasta

produção em prosa, impressa e virtual, desde 1998, não foi contemplado pela referida

pesquisadora. Já a definição de Karl Erik, tomada de empréstimo de Barthes, é mais

delimitada – porém mais controversa, visto que “intempestivo” significa “fora do tempo” –, o

que o faz eleger um “cânone”, ao passo que Beatriz Resende não é afeita a cânones – por mais

que os autores estudados por ela no livro de Contemporâneos (2008) sejam basicamente os

mesmos que figuram no artigo “Possibilidades da nova escrita literária no Brasil”, do livro

homônimo, publicado em 2014, em que aparece também como organizadora.

Surge uma pergunta: o que faz do contemporâneo um contemporâneo, além de sua

intempestividade, em termos de literatura brasileira? Para Beatriz Resende (2008), há três

fatores que definem a literatura brasileira contemporânea: fertilidade, qualidade e

multiplicidade.

A fertilidade é quantitativa: a literatura estaria em alta. O jovem e o consagrado

escritor têm acesso aos mais diversos concursos literários, que oferecem prêmios variados; os

festivais recebem vários espectadores; os projetos de leitura se multiplicam em escolas e em

Page 95: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 873

empresas; editoras e projetos editoriais emergem, além dos blogs, alimentados por milhões de

internautas, que desejam produzir sua literatura sem mediações de um editor, sem atender a

demandas de mercado, ou que ainda não tiveram a oportunidade de uma publicação impressa.

Beatriz ainda cita a inserção de livrarias em espaços de lazer.

Estamos longe de tal otimismo: ainda que haja proliferação de escritores e de editoras,

não há, visto que falamos do tempo presente, lastro para afirmarmos a sustentabilidade de

ambos. A editora Livros do Mal – liderada por Daniel Pellizzari e Daniel Galera –, por

exemplo, malogrou em pouco tempo. Aliás, justamente no ano de abertura da editora, Daniel

Galera lança, através dela, seu primeiro livro, Dentes guardados. Tornar-se editor foi um

caminho para publicar. Em 26 de março de 2007, em depoimento à Folha de S. Paulo,

caderno “Folhateen”, o escritor afirma: “Nossa vontade era ser lido. Não era vontade de

conquistar fama ou de receber convite de uma grande editora.” Desde 2006, Daniel Galera

fazia parte do catálogo da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do país. É

importante citar um comentário de Beatriz Resende a esse respeito:

A verdade é que os jovens escritores não esperam mais a consagração pela

“academia” ou pelo mercado. Publicam como possível, inclusive usando as

oportunidades oferecidas pela internet. E mais, formam listas de discussão,

comentam uns aos outros, encontram diferentes formas de organização, improvisam-

se críticos (RESENDE, 2008, p. 17).

Talvez fosse necessário mencionar que há um desejo de ser lido, de se manifestar, de

se fazer ouvir – uma ânsia, que seja –, característico do escritor brasileiro contemporâneo,

forte a ponto de ele não esperar pelo mercado para publicar: busca os próprios meios,

inclusive chega a financiar suas próprias publicações. Contudo, é leviano afirmar que não haja

tal esperança, dado que mesmo o polêmico Ferréz, que rejeitou sair de sua comunidade em

Capão Redondo para estudar literatura no exterior, com uma bolsa, é vinculado à Editora

Planeta, do grupo Planeta, de origem espanhola, que em 2011 angariou a posição de sexta

maior editora do mundo em faturamento.1

Ainda a respeito da fertilidade: é fato que a FLIP – Festa Literária Internacional de

Paraty – agrega uma multidão. Entretanto, não se pode, levado pela apoteose, afirmar, sem

uma estudo mais sistemático e detalhado, que os festivais literários efetivamente

desempenham o papel de propagadores de literatura; ou que, ao menos, esse é o saldo

primordial desse tipo de evento. Com uma programação bastante heterogênea, incluindo

1 Cf.: <http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/as-54-maiores-editoras-do-mundo-e-as-brasileiras-entre-

elas>. Acesso em: 30 jul. 2013.

Page 96: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 874

músicos, cineastas, escritores e outros diversos famosos, é importante considerar que o

glamour do espetáculo contribuiu bastante para a afluência de público, de modo mais

substancial do que a literatura por si mesma.

Karl Erik faz um contraponto interessante com o pensamento de Beatriz Resende,

seguindo o raciocínio da glamourização e corroborando a tese da insuficiência de elementos

para afirmar a fertilidade. Vejamos:

[A] atenção em torno da pessoa do escritor cresceu, e a figura espetacular do “autor”

tanto quanto o objeto livro ganharam maior espaço na mídia – o que não coincide

com ganho de leitores efetivos; tornou-se chique ser autor, e nada incomum ganhar

espaço na mídia mesmo antes de publicar o primeiro livro (SCHØLLHAMMER,

2009, p. 19).

Quanto à qualidade, segunda característica da literatura brasileira contemporânea para

Beatriz Resende (2008), há controvérsias. Por ser um critério estético, não há objetividade na

afirmação. Isso rendeu um debate entre ela e Alcir Pécora, em 2011. O crítico, em 2010, em

um artigo intitulado “O inconfessável: escrever não é preciso”, posicionou-se ferrenhamente

contra a exaltação da literatura brasileira contemporânea, situando-se em posição antagônica à

de Beatriz, em seu livro Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI,

de 2008. Vejamos ambos os pontos de vista, em ordem cronológica:

A segunda constatação – mesmo sob o risco de representar algum namoro

extemporâneo com o cânone – diz respeito à qualidade dos textos e ao cuidado com

a preparação da obra. Esta poderia ser uma contradição em relação à primeira, mas

não é. Sobrevivendo às facilidades do computador, desprezando a obviedade dos

programas de criação de texto, a prosa que se apresenta vive um momento de

qualidade. Em praticamente todos os autores que estão surgindo revela-se, ao lado

da experimentação inovadora, a escrita cuidadosa, o conhecimento das muitas

possibilidades da nossa sintaxe e uma erudição inesperada, mesmo nos autores

muitos jovens deste início de século (RESENDE, 2008, p. 17).

A seguir, as colocações duras enumeradas por Alcir Pécora, das quais destacamos os

itens 2 e 3 apenas:

2. Antologias de autores promissores ou novos lançamentos de escritores

contemporâneos não cessam de aparecer, por piores que sejam. Alguns são jovens,

outros são célebres, outros são simples amigos do editor: qualquer coisa basta. Por

isso mesmo, nada é suficiente como critério de edição, e o publicado basicamente

ajuda a encobrir a percepção evidente de que não há nada de relevante sendo escrito,

nem mesmo há indícios de que essa relevância possa ser descoberta outra vez no

domínio da literatura.

Page 97: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 875

3. Não parece haver nada relevante sendo escrito, essa é a mais provável razão desse

poço, desse mar de coisa escrita.2

A polêmica ganhou as câmeras da série Desentendimentos¸ com a mediação de Paulo

Roberto Pires, editor da revista Serrote.

Um pouco mais acalorada foi a discussão protagonizada por Felipe Pena e Adriana

Lisboa, quando ele, em outubro de 2008, afirmou que a literatura brasileira contemporânea é

“chata, hermética e besta”. Ambos são escritores contemporâneos, mas defendiam posições

antagônicas. O saldo do debate foi o impasse. Citamos passagem de Adriana Lisboa em

resposta a Felipe Pena:

É difícil não enxergar nas entrelinhas de tais atitudes ressentidas o recado: ninguém

presta além de mim, que afirmo que ninguém presta. Quando concessões são feitas,

elas evocam um patrulhamento ideológico bastante fora de época. Só o autor que

vem da periferia é que presta. Os amigos-de-bar-do-fulano são uns oportunistas e, de

modo geral, não prestam. O autor que passou pela universidade não presta. Os

autores brasileiros atuais só escrevem para os seus pares. Generalizações levianas

que não resistem a uma argumentação mais consistente. E que perigam transformar

o mundo literário numa arena de bate-boca digna não de suplemento literário, mas

de revista de fofoca de novela (com a diferença de que literatura interessa a muito

menos gente do que novela).3

A terceira e última característica, segundo Beatriz Resende, seria a multiplicidade.

Concordamos, entretanto há divergências: “[...] o campo literário brasileiro ainda é

extremamente homogêneo” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 7). Regina Dalcastagnè (2012)

defende que os autores prestigiados são parecidos entre si quanto à cor, à classe social,

eventualmente às profissões, vivem nos mesmos locais e possuem o mesmo sexo. É

importante destacar, antes de retornarmos a Beatriz Resende, que essa situação está em

transformação: grupos anteriormente privados do acesso e do ofício da literatura estão

ascendendo e conquistando gradativamente espaços. Aqueles que passaram centenas de anos

à margem estão vivenciando um processo – e, como em todo processo, o efeito não ocorre

imediatamente – de inclusão com resultados visíveis. Um exemplo do que afirmamos foram

as coletâneas organizadas por Luiz Ruffato, nos anos de 2004 e 2005, em que ele reuniu

textos literários de um total de 55 mulheres, sendo que esse número poderia ser bem maior.

Nas palavras do organizador:

Instado em colocar à prova minhas impressões, organizei o volume 25

mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, lançado em junho de 2004.

2 <http://sibila.com.br/critica/o-inconfessavel-escrever-nao-e-preciso/3977>. Acesso em: 30 jul. 2013. 3 <http://www.marcelomoutinho.com.br/blog/2008/10/a_fogueira_as_vaidades.php>. Acesso em: 09 jan. 2015.

Page 98: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 876

No final do prefácio, após tentar um panorama da história da participação da mulher

na literatura nacional, nomeava outras escritores que, por razões mais diversas, não

puderam ser incluídas naquela antologia, abrindo assim espaço para um possível

segundo volume, que se concretizou e ora é este que apresento. Ao longo das minhas

pesquisas, o número de autoras encontradas foi se multiplicando de tal forma, que

acabei selecionando, para este segundo tomo, não mais 25, mas outras 30 mulheres

(número que poderia ser de 35, 40, 50...) (RUFFATO, 2005, p. 9 - 10).

Retornando à Beatriz Resende, no tópico da multiplicidade: diversos são os temas, as

formas, as abordagens e as ideologias em jogo no cenário dos anos 2000. Essa multiplicidade

se torna possível, dentre outros fatores, pela influência da internet, que proporcionou a muitos

escritores a oportunidade de serem percebidos:

[A] multiplicidade de nossa literatura aparece como fator muito positivo, original,

reativo diante das forças homogeneizadoras da globalização. De algum modo, esse

pluralismo – que se constitui por acúmulo de manifestações diversas e não pela

fragmentação de uma unidade prévia – garantiria várias vozes diferenciadas em vez

de sonoridades em eco ou mero acúmulo reunido sem critério (RESENDE, 2008, p.

20).

A ideia de uma literatura de resistência é produzir diferenças, relativizações; no

entanto, não significa criar algo inteiramente novo, mas, a partir do padrão, criar uma estética

identitária, que faça transparecer a diversidade, a diferença, inclusive parodiando e

desglamourizando o discurso hegemônico.

É nessa obliqüidade de discursos anti-hegemônicos que aparecem recursos que dão

formas múltiplas à criação literária contemporânea: a apropriação irônica,

debochada mesmo, em alguns casos, de ícones de consumo; a irreverência diante do

politicamente correto; a violência explícita despida do charme hollywoodiano; a

dicção bastante pessoalizada, voltada para o cotidiano privado; a memória individual

traumatizada, seja por momentos anteriores da vida nacional, seja pela vida

particular; a arrogância de uma juventude excessiva; a maturidade altamente

intelectualizada; a escrita saída da experiência acadêmica e assim por diante, como

continuaremos vendo (RESENDE, 2008, p. 20).

Beatriz Resende, a partir disso, enumera algumas características dominantes entre os

diversos livros de literatura brasileira contemporânea: violência nas grandes cidades¸

presentificação e retorno ao trágico. Uma das tendências da literatura contemporânea é dar

voz ao excluído, aquele que, graças à força do padrão da mídia, tornou-se invisível e

marginal, inaudível, ou ainda mostrar um universo que estava banido das belas-artes.

Quanto à violência nas grandes cidades, pode-se afirmar que, hoje, a maioria dos

habitantes do Brasil se encontra em áreas urbanas, boa parte em áreas metropolitanas, sendo

oriundos das próprias cidades ou migrantes de cidades menores e de áreas rurais, em busca da

Page 99: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 877

utopia de uma vida melhor. Entretanto a literatura de hoje não deixa espaço para utopias, pois

vivemos tempos, nas palavras de Flávio Carneiro, citando Haroldo de Campos, pós-utópicos.

O choque dessas identidades gera diversos conflitos, étnicos, ideológicos, etc., o que contribui

para a desilusão contemporânea.

Em meados dos anos 80, Haroldo de Campos tentava definir o sentimento geral de

uma época marcada pela descrença no projeto estético e ideológico proposto pelo

modernismo. De acordo com o termo criado por ele, estaríamos vivendo um tempo

pós-utópico (CARNEIRO, 2005, p. 13; grifos do autor).

Em concordância com Flávio Carneiro, segue Karl Erik, apresentando o paradoxo do

contemporâneo:

Ao exigir o presente e lançar mão da “agoridade” do presente estético, Lyotard viu

na arte e na literatura uma potência que, em vez de se abrir como a moderna

promessa de uma utopia radical no horizonte da história, se faz presente no instante

da experiência afetiva como pura possibilidade de mudança na relação entre o

sujeito e sua realidade e, simultaneamente, como uma ameaça de que nada vai

acontecer (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 12).

Ambos – Flávio Carneiro e Karl Erik – concordam num ponto: vivemos o fim das

utopias. A literatura brasileira contemporânea é um recurso para aqueles que buscam mudar o

presente e apresentar o que não é visto. A desilusão com as utopias, já mencionada por

Haroldo de Campos nos anos de 1980, se estende até os dias de hoje na literatura e na

sociedade. O indivíduo já não tem razões para acreditar em um futuro melhor: este só ocorrerá

se houver combate, resistência, e não comodismo ou esperança.

A violência torna-se tema da literatura, conforme já mencionado, mormente a das

grandes cidades, como São Paulo, um lugar sem identidade, coberto por uma atmosfera de

desamparo, onde o trágico – bem lembrado por Beatriz Resende – reside em cada destino.

Luiz Ruffato, em 2001, lança seu consagrado livro Eles eram muitos cavalos, elegendo como

cenário a referida cidade. Na condição de um migrante, em sua vida real, dormindo na

rodoviária de São Paulo por um mês, o autor conhece as agruras do destino, e resolve

enveredar por esse mundo de anônimos – em perspectiva estilística –, tentando captar-lhes

alguma subjetividade, retratando-os sem aprofundamento psicológico. No fragmento 25,

temos a história de uma mulher traída pelo marido, que liga para a amante dele, porém os

recados são dados à secretária eletrônica. Um dos recados:

O que você ganha com isso?, cadela!, o quê? (Pausa) O quê que você ganha com o

sofrimento dos outros, hein? (Pausa) Ver um filho chorando... sem entender... o

Page 100: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 878

pai... noites fora...A filha rebelde... a mãe... (Voz esgarçada) O pai... tem outra...

(Descontrolada) Desgraçada! Desgraçada! O que você ganha com isso? Filha-da-

puta! Filha-da-puta! (RUFFATO, 2010, p. 52; grifos do autor).

Em Ferréz, “Fábrica de fazer vilão”, do livro Ninguém é inocente em São Paulo¸ de

2006, a violência aparece de modo mais cruel, invasivo, e com ares de ódio de classes, um

ódio étnico. Narrado em primeira pessoa, o protagonista é rapper e morador de periferia; está

se preparando para dormir, após criar uma letra de rap, quando tem sua casa invadida e é

obrigado a descer para encarar os policiais, que o ofendem e aos outros, chamando-o de

“preto”, de modo agressivo, chamando-lhe a mãe de “macaca”, até que o capitão apaga a luz e

diz que vai atirar em alguém:

— É o seguinte, seus montes de bosta, vou apagar a luz, e vou atirar em

alguém.

— Mas capitão...

— Cala a boca, caralho, você é da corporação, só obedece.

— Sim, senhor.

— Ou tem algum familiar seu aqui, algum desses pretos?

— Tem não.

— Ah! Mas se eles te pegam na rua, comem sua mulher, roubam seus filhos

sem dó.

— Certo, capitão.

— Então apaga a luz.

O tiro acontece, eu abraço minha mãe, ela é magra como eu, ela treme como

eu.

Todo mundo grita, depois todo mundo fica parado, o ronco da viatura fica

mais distante.

Alguém acende a luz. Filho-da-puta do caralho, atirou no teto, grita alguém

(FERRÉZ, 2006, p. 13-14).

Outro nome da literatura brasileira contemporânea é Clarah Averbuck. Em seu livro

Máquina de Pinball, com um tom autoficcional, escolhe São Paulo como cenário para Camila

– que se deslocara de Porto Alegre –, sua protagonista, uma personagem sem domínio de seu

destino, lasciva, boêmia e tomada por conflitos amorosos. Sua literatura não é exatamente

social, contudo é simbolicamente violenta – contendo não violência urbana, mas subjetiva,

contra o próprio corpo e o espírito –, e existe graças à ambientação em uma grande cidade,

que lhe proporciona viver todas as aventuras e desventuras – principalmente esta última –,

sentir o dissabor da exclusão, do fiasco e de uma cidade violenta. A agressividade que a

protagonista de Clarah vive se deve ao seu desejo de viver libertinamente; trata-se de uma

hostilidade masoquista, com a finalidade de sentir prazer, conquanto o pesar surja

posteriormente. Camila sente o deslocamento na pele, na crise de identidade e, ainda, de

rumos:

Page 101: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 879

Planeta: Terra. Cidade: São Paulo. Como todas as metrópoles, São Paulo encontra-se

hoje em desvantagem na sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição.

Caralho, que cidade suja.

Minha pele está podre. Não tive espinhas nem durante a adolescência, salvo uma ou

outra no período maldito do mês, sempre nas extremidades do rosto. Agora tem três

bem no meio da bochecha. Mas não pense que descobri no espelho, porque aqui

simplesmente não existe luz suficiente para isso. Meu cabelo também está um horror

por causa desta água ridícula. Lembra daquele peixe fluorescente de três olhos de

um episódio dos Simpsons? Pois seria bem mais fluorescente e teria uns cinco ou

seis olhos espalhados pelo corpo se dependesse dessa água idiota. Sim, sou

mulherzinha. Uso maquiagem, salto agulha, piercing no umbigo e esmalte com

glitter. E sou feliz assim. Mulherzinha. Mas com bolas (AVERBUCK, 2002, p. 13).

Uma característica que chama a atenção na nova literatura brasileira é o apego ao

realismo. Ainda que a década de 70 tenha acentuado, com o romance-reportagem e o new

journalism, o gosto pelo real na ficção, e a literatura dos anos 2000 mostre uma ruptura de

fronteiras entre o real e o ficcional, de modo que muitas obras espelham e – por que não? –

recriam o cotidiano com tamanha fidelidade que a trama se assemelha a uma figuração da

realidade, Luís Augusto Fischer vê na prosa literária brasileira uma tradição de realismo,

iniciada no século XIX e com ecos no presente. O crítico declara:

Realismo, esta a questão. Parece que aqui está uma das boas chaves gerais para ler a

literatura brasileira, muito especialmente a narrativa: um gosto acentuado pela

fotografia do real tal como ele se apresenta, uma vontade de contar a história

verdadeira ou, mais ainda, de revelar a verdade que está escondida em alguma parte.

Sérgio Buarque (ele é o pai de Chico Buarque de Holanda, sim) diagnosticou um

jeito de ser dos portugueses e, de quebra, forneceu uma ótima pista para entender a

narrativa entre nós (FISCHER, 2007, p. 15-16).

Karl Erik vai além: analisa os diversos tipos de realismo presentes na prosa literária

brasileira desde o século XIX, passando por Machado de Assis, até chegar ao realismo da

prosa contemporânea, inclusive se valendo de uma consulta ao mercado editorial e à mídia

para compreender o processo.

O que mais interessa à mídia de hoje é a “vida real”. Notícias em tempo real,

reportagens diretas, câmera oculta a serviço do furo jornalístico ou do mero

entretenimento, televisão interativa, reality shows, entrevistas, programas de

auditório e todas as formas imagináveis de situação em que o corpo-presente

funcione como eixo. Na literatura, a situação não é muito diferente nem melhor; o

que mais se vende são biografias e reportagens históricas, confissões, diários, cartas,

relatos de viagem, memórias, revelações de paparazzi, autobiografias e, claro,

autoajuda (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 56).

Beatriz Resende utiliza como chave o conceito de presentificação, que encerra em si

dois outros conceitos antes apresentados: o de pós-utopia, de desilusão ou, ainda, de

Page 102: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 880

resistência à ilusão modernista de um futuro utópico; o de realismo, dado que, se a intenção é

agir diretamente sobre o presente, tal perspectiva é a mais eficaz, contudo se fala de um

presente acidental, como um “encontro falho”, nos dizeres de Karl Erik, disso derivaria –

notemos que vários conceitos convergem no de presentificação – o retorno do trágico e a

tematização da violência na literatura brasileira contemporânea.

A primeira questão dominante que quero apontar é a presentificação, a manifestação

explícita, sob formas diversas de um presente dominante no momento de descrença

nas utopias que remetiam ao futuro, tão ao gosto modernista, e de certo sentido

intangível de distância em relação ao passado (RESENDE, 2008, p. 26-27; grifo da

autora).

Essa desilusão se manifesta na literatura brasileira contemporânea desde a escolha do

tema até a caracterização dos personagens, os quais, além de fadados ao fracasso, ao drama

irredimível, não apresentam a agudeza psicológica dos personagens tipicamente machadianos.

São sujeitos sofridos, acintosamente violentados pelo destino e esquecidos pelo mundo. Luiz

Ruffato, em suas obras Eles eram muitos cavalos e Inferno Provisório, se dedica a fotografar

essas realidades e montar um mosaico irregular – principalmente em Eles eram muitos

cavalos –, em que as histórias, apesar de não se disporem linearmente, criam a lógica interna

do “romance-mosaico”, na definição do próprio autor para a sua forma, fornecendo um

panorama global de São Paulo – local onde as tramas se situam –, que poderia ser, muito bem,

extensível a qualquer outra metrópole.

Em O mundo inimigo, Ruffato retrata o cotidiano de famílias esquecidas, invisíveis, de

Cataguases, Minas Gerais. Em “O barco”, somos apresentados a Zulmira, mulher casada, mãe

e estoica, responsável pelo lar, e que, como de costume nos textos do autor, é mais forte

emocionalmente que o homem. O fragmento que destacamos revela o desequilíbrio e a

infelicidade que a falta de perspectiva gera em Marlindo, marido de Zulmira, na ocasião de

um pedido da filha Hélia, que não podia ser atendido por ele, pois se encontrava em precária

situação financeira:

Um dia, chegou encachaçado em casa. Aniversário da Hélia, a filha. Ela perguntou

pelo presente. Presente? Tem presente nenhum. E foi destampar as panelas para ver

a janta. A menina desatou no bué. Ele, alto, enjerizou. Partiu para cima dela, corrião

na mão. Um bafafá. A Zulmira entreveio, Vai bater na menina não, cachaceiro

senvergonho! O Luzimar, um bostinha assim, também tomou as dores da irmã,

berrando. Percebeu, ali, que alguma coisa estava errada. E era com ele. Subiu o

beco, bufando. Pensou em se jogar debaixo das rodas do cata-níquel. Ou do trem.

Andou, andou, andou (RUFFATO, 2005, p. 44-45).

Page 103: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 881

O invisível ganhou lugar na literatura: o realismo chega aos confins do mundo, invade

os lares marginalizados e põe o foco naqueles que não aparecem na história. É lícito dizer que

os escritores contemporâneos estão reescrevendo a história do ponto de vista do “oprimido”,

como forma de compensação de uma dívida histórica. Escritores como Luiz Ruffato e Ferréz,

oriundos de uma camada social mais baixa – o primeiro viveu uma infância pobre em

Cataguases, como já mencionado, morou na rodoviária de São Paulo por um tempo, e o

segundo faz questão de manter as raízes, continua morando em uma comunidade no Capão

Redondo –, mostram as “veias abertas” da exclusão, o sofrimento e o dia a dia de personagens

que, até pouco tempo, se encontravam engavetados. A literatura brasileira contemporânea,

desse modo, aparentemente se converte em relatos da realidade, em testemunhos do real

empírico e pontual. É necessário um estudo mais extenso do que essas linhas gerais a respeito

das tendências – sobretudo na crítica – da literatura brasileira contemporânea, para se

investigar se a literatura está perdendo sua vocação universalista, na chave de Aristóteles

(2005), e caminhando para o particularismo: “[A] Poesia encerra mais filosofia e elevação do

que a História; aquela anuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares”.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,

2009.

ARISTÓTELES, HORÁCIO E LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2005.

AVERBUCK, Clarah. Máquina de Pinball. São Paulo: Conrad Ed. do Brasil, 2002.

CARNEIRO, Flávio. No país do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado.

Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.

FERRÉZ. Ninguém é inocente em São Paulo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

FISCHER, Luís Augusto. Literatura brasileira: modos de usar. Porto Alegre: L&PM, 2007.

RESENDE, Beatriz. Apontamentos de crítica cultural. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

______. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI. Rio de Janeiro:

Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.

______; Finazzi-Agró, Ettore (Org.). Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio

de Janeiro: Revan, 2014.

Page 104: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 882

RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

______. (org.). Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de

Janeiro: Record, 2005.

______. O mundo inimigo. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2011.

Page 105: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 883

LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS [Voltar para Sumário]

Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)

Vimos na história da literatura que a natureza é um tema muito contemplado tanto por

poetas, bem como por filósofos. Mas como seria a mesma na sua forma una, ou seja, a sua

relação com o homem? E como analisá-la sob vários vieses ao mesmo tempo, quer dizer,

como a natureza serve de mediação entre a literatura e a filosofia?

A filosofia abre a nossa discussão com uma contemplação do homem para com a

natureza, enquanto que a literatura, através da linguagem vem representá-la com todo o seu

cenário, a saber: a fauna, a flora, a água, o campo etc., em um imaginário poético. É no íntimo

do ser, na imaginação poética subjetiva, que se capta o espaço poético, gerando imagens

poéticas, em meio a seus silêncios. E é preciso ler esses espaços poéticos, os silêncios e as

infinitudes do real, semioticamente falando (cf. PIGNATARI, 2004). Transcendendo o real

mediado por imaginação, pelo onírico, podemos afirmar que o homem é a natureza, assim

como a natureza é o homem, um duplo processo.

O filósofo francês Gaston Bachelard, em sua obra A poética do Espaço (2008), a partir

do método fenomenológico, identifica a intimidade do homem com o seu meio, o qual ele

vem chamar de topoanálise. Recorremos ao filósofo francês para destacarmos algumas

nuances da intimidade, para chegar à familiaridade dos espaços íntimos, revisitar os

aposentos, os abrigos, todas as moradas para chegar aos “valores oníricos consoantes”

(BACHELARD, 2008, p. 25)

Na busca de um diálogo entre a literatura e a filosofia acerca da natureza, precisamos

de um espaço de entremeio entre ambas e que só será possível se utilizarmos o pensamento

proposto pelo filósofo francês Maurice Blanchot, para então daí confluir os dois discursos. O

pensamento de Blanchot nos transporta para a “fecundação” do discurso literário no discurso

filosófico, onde é possível, no limiar de encontros, desvelar experiências-limite, “um lugar

mesmo do meio” (BLANCHOT, 2007, p. 26).

Na tentativa de caminharmos no labirinto do interdisciplinar, no espaço de entremeio

de Blanchot, adotamos como método o modelo de diálogo proposto por Benedito Nunes de

Page 106: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 884

“método transacional”, uma transa “sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira,

numa posição de superioridade ou inferioridade do ponto de vista do conhecimento

alcançado” (NUNES, 2010, p. 13). Assim, é nosso interesse ler a natureza na poesia de

Manoel de Barros de forma interdisciplinar e mais: tomar a natureza como mediação entre o

poético, o contemplativo, o filosófico – no que tange ao modus operandi do olhar na tradição

plotiniana. Deste modo, nossa ideia de olhar é puramente fenomenológica. Olhar é ver, mas

também é sentir, experienciar.

O poeta do presente artigo, Manoel de Barros, nasceu em Cuiabá-MT no ano de 1916

e passou a se inserir no campo da literatura brasileira a partir do ano de 1937, na chamada

segunda geração modernista. A poesia manoelina possui como ponto forte uma linguagem

imagética e ao mesmo tempo metalinguística, ou seja, o poeta através do seu olhar subjetivo

origina uma natureza poética colocando a mesma acima do real. O poeta escolhe a natureza

como o lugar em que o poético reside e pode-se dizer também como sendo o lugar em que é

possível a percepção da essência das coisas. Manoel de Barros utiliza os elementos da

natureza como ingrediente, voltando o seu olhar para o ínfimo, quebrando assim com todas as

convenções através de um novo arranjo linguístico. De acordo com Grácia-Rodrigues (2006, p.

70): “Valorizar o que não tem importância, apreciar as coisas no seu primitivismo, ser amante

do meio ambiente e estar em comunhão com os elementos que compõem a natureza, tudo isso

integra o projeto estético de Manoel de Barros”.

Estudar o poeta Manoel de Barros, relacionando ele à natureza e tudo o que faz parte

dela é uma forma subliminar de evitar o seu desgaste, uma vez que a mesma transcende as

nossas perspectivas. Segundo o filósofo Merleau-Ponty em A natureza (2006, p. 193-4) “a

Natureza é sempre nova a cada percepção, mas nunca é sem passado. A Natureza é algo que se

continua, que nunca é apreendida em seu começo, ainda que nos aparecendo sempre nova” . Deste

modo, é nesse horizonte que serão trabalhados poemas de três obras do poeta Manoel de

Barros, são elas: Compêndio para uso dos pássaros (1960), O guardador das águas (1989) e

Tratado geral da grandeza do ínfimo (2001).

1. A natureza Zen entre Plotino e Manoel de Barros

Na Antiguidade Clássica, encontramos o filósofo Plotino, um leitor e comentador de

Platão (por isso ele está inserido em um momento filosófico chamado neoplatonismo). Ele

tinha uma forte ligação com o filosófo grego, ao ponto de querer fundar uma Platonópolis

para se dedicar aos ensinamentos do mesmo. Plotino nasceu no Egito no século III, foi um

Page 107: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 885

grande educador, era muito dedicado ao que fazia e naquela época já se percebia uma grande

magia no seu olhar. A obra de Plotino versa sobre os temas da alma, da natureza e da

metafísica. Um dos grandes temas de Plotino é o Uno. Mas o que seria o Uno? Muitos

entendem o Uno como Deus (criador), mas para Plotino o Uno é um, é o primeiro, é a origem

de todas as coisas, que Plotino chamará de “hipóstases”. O filósofo egípcio escreveu 54

tratados, mas o seu discípulo Porfírio os transformou em uma única obra chamada As

Enéadas, que significa “nove” em grego. Porfírio organizou os tratados em 6 tomos e cada

tomo com 9 tratados, onde vai do mais fácil ao mais difícil.

No presente artigo será utilizada a Eneáda III, a específica obra que Plotino tratará do

tema da natureza e da contemplação. Tratar da contemplação é tratar do olhar. Mas não o

olhar corporal, e sim o olhar com os olhos da alma, ou seja, “contemplar as belezas com um

olhar da alma e, ao vê-las, sentir um prazer, um tremor, uma comoção” (PLOTINO, 1982, p.

282)4. Contemplar é despojar-se de tudo.

Nessa Enéada III, constituída de 9 tratados, só um irá nos interessar, que é o tratado 8

“Sobre a natureza, a contemplação e o Uno”. Este tratado vem conceituar a contemplação e a

forma como a mesma transcorre em todos os níveis do real. No movimento de processão de

Plotino, que sempre é um movimento pra baixo, o Uno, que é o um, é independente. Dele é

gerado o dois, a Díada, o inteligível, que contempla o Uno. Da Díada é gerada a Alma, que

contempla a mesma. Uma parte da Alma irá criar o universo. Neste esquema pode-se perceber

que uma está sempre contemplando a anterior. Logo, o universo é criação da Alma em

contemplação. O que podemos tirar disto? A tese de Plotino é que o universo é fruto de uma

contemplação e ele próprio contemplação, como diz o filósofo no seguinte fragmento do

capítulo 3 do tratado 8: “Ela [a natureza] é o resultado da contemplação que se mantém

contemplação e nada faz além disso, produzindo, contudo, por ser contemplação”5. O que nos

interessa nesse movimento de processão é a modulação do olhar. O nosso crítico literário

Alfredo Bosi, em seu artigo intitulado “Fenomenologia do Olhar”, nos explica a diferença

entre o ver-por-ver e ver-depois-de-olhar, ou seja, uma apenas recebe e a outra capta. Nesse

artigo, Bosi vai fazer um percurso na filosofia platônica para nos ensinar outro tipo de olhar,

que é um olhar para as formas puras em um resgate da alma, passando pelo racionalismo e

pela filosofia contemporânea. A apoteose do texto de Bosi é quando ele fala do olhar na

4 Es preciso estarse contemplando tales bellezas com lo que El alma las mira y que, al verdas, sintamos um

placer, uma sacudida, uma conmoción [...]” Enéada I,6,4 [1]. Tradução literal nossa. Para as citações da Enéada

utilizaremos a referência Tratado-capítulo-numeração original do Tratado em colchetes (não a numeração feita

por Porfírio). Referente à edição do tradutor José Baracat Júnior, incluiremos a página do livro. 5 Enéada III, 8, 3 [30], p. 59.

Page 108: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 886

linguagem e diz que “contemplar é olhar religiosamente” (BOSI, 1988, p. 78, grifo do autor).

O que Bosi está querendo nos deixar é que o olhar está ligado ao sentido, à percepção.

Para Plotino, contemplar quer dizer contemplar em silêncio, na surdina, e essa

contemplação é sem limites: “não tem limites a contemplação nem o objeto de

contemplação”6. Mas ainda cabe a pergunta: o que é a contemplação em Plotino? Para quê ela

vai nos servir? De imediato nós podemos inferir que a essência da contemplação em Plotino

irá unir sujeito e objeto. Ora, se Plotino diz que na natureza tudo é contemplação (silenciosa)

e ela própria está em atividade contemplativa, quer dizer que todas as coisas da natureza são

passíveis de contemplação, logo, temos um sujeito contemplante diante de um objeto. Como

lembra José Baracat (2008, p. 147):

Todas as coisas desejam contemplar, porque esta é a herança genética que lhes

forneceram seus pais, que as produziram através da contemplação. E, quanto mais

intensa e autocentrada for a contemplação dos pais, mais perfeita e poderosa será a

produção dos filhos. Toda a produção é análoga à geração humana.

Esta ideia de contemplação em Plotino servirá de introdução para nossa investigação

na poética manuelina, e não só, mas de um íntimo diálogo. Por introdução nós queremos dizer

que há um solo muito propício na obra de Manoel de Barros para se problematizar o

pensamento Plotiniano, isto que dizer que há nas poesias do poeta pantaneiro uma íntima

relação com a natureza. Uma relação onírica, topofílica segundo Bachelard. Quando as

poesias do Manoel falam da natureza, cantam-na, contemplam-na, desejam-na, elas querem é

justamente entrar em estado meditativo e em silêncio. Quer dizer, quando a poesia contempla

a natureza ela quer unir sujeito e objeto.

Se já em Platão aprendemos a concepção de que a arte é um simulacro de uma cópia

de uma ideia por si pré-existente, já em Plotino, podemos enxergar que a arte não é essa

cópia, pois segundo ele o artista busca em si mesmo o modelo das coisas, e não simplesmente

as copia. Assim, podemos afirmar que Plotino insere o poeta na contemplação da beleza

compreensível. Isto retrata o poeta Manoel de Barros quando o mesmo se despoja de tudo

para contemplar a natureza no seu ínfimo, na sua forma mais simples e pura. Em seus poemas

podemos sentir através de sua linguagem a contemplação da natureza imagética.

Na sua obra Compêndio para uso dos pássaros, fica clara essa confluência entre

sujeito e objeto se tomarmos a seguinte estrofe do poema “Poeminhas pescados numa fala de

João”:

6 Enéada III, 8, 5 [30], p. 63.

Page 109: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 887

Escuto o meu rio:

É uma cobra

De água andando

Por dentro de meu olho.

(BARROS, 2010, p. 96).

Observa-se como, neste fragmento, sujeito e objeto são um só (o sujeito escuta o rio),

o que é impossível para a nossa lógica cartesiana e aristotélica escutar um rio, já que o rio é

para ser visto. Mas e o barulho do rio, não o ouvimos? O sujeito lírico do poema não nos

direciona para o barulho do rio, mas para o ver o rio. E a visão aqui está ligada à percepção.

“O meu rio” é rio do sujeito lírico, e é uma cobra de água que anda no olho. Como pode,

ainda no plano da lógica, um rio (objeto) entrar no olho? Aqui, estamos muito próximo não só

de um surrealismo (fortemente presente na obra de Manoel de Barros), como também de um

pensamento Zen-budista. Por Zen nos entendemos: Ver a árvore, mas também sentir as suas

raízes torna-se árvore. Se isto vai contra a lógica, é porque justamente “o Zen quer ultrapassar

a lógica” (SUZUKI, 1961, p. 39). O que Suzuki está querendo nos dizer é que devemos, de

acordo com o pensamento budista, devemos ultrapassar as barreiras linguísticas daquilo que

estamos habituados, dentro de um certo dualismo, já que para este sujeito e rio nunca podem

ser um só. Ainda de acordo com Suzuki (1976a, p. 21), e talvez esta colocação do mesmo seja

a que melhor ajude a compreender o budismo na poesia manuelina, “o enfoque Zen consiste

em penetrar diretamente no objeto e vê-lo, por assim dizer por dentro”. O que podemos

concluir deste pensamento budista com o poema supracitado? O que o Zen pode contribuir

aqui é ajudar a ver a realidade com outros olhos, é assim que procede o poema de Barros.

Já no poema “O menino e o córrego”, encontramos elementos da natureza:

A água

é madura.

Com penas de garça.

Na areia tem raiz

De peixes e de árvores.

Meu córrego é de sofrer pedras

Mas quem beijar seu corpo

É brisas...

(Op. cit., p. 103).

No poema acima, e na totalidade de sua obra, encontramos aquilo que no campo da

Teoria da literatura já o crítico literário Terry Eagleton (2006, p. 5) falava acerca do

estranhamento, ou seja, um estranhamento que se dá no plano da linguagem, “efeito de

estranhamento ou de desfamiliarização”. É esse o estranhamento (do leitor) ao se deparar com

uma “água madura”. Afinal, se boa parte da crítica de Manoel de Barros fala que sua obra é

metalinguística, só neste fragmento já se percebe isto, pois, para Eagleton é a literatura um

Page 110: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 888

estranhamento. Ainda no plano da teoria da literatura, podemos também lembrar um Antoine

Compagnon, que, em O demônio da teoria, apresenta a íntima relação entre a literatura e o

mundo – como já falava o Antonio Candido, quando o externo está no interno (cf.

CANDIDO, 2006). Ora, esta é a matéria da poesia manuelina, esta íntima confluência entre

interno e externo, ou, como conclui o Benedito Nunes “A natureza, pois, tanto é exterior

como interior” (cf. NUNES, 2007).

Ainda neste poema, percebe-se que o eu lírico está contemplando a água. Na primeira

estrofe este sujeito poético descreve o cenário para na segunda estrofe confluir com o rio

(primeiro verso da segunda estrofe). No entanto, a conjunção adversativa “mas” (segundo

verso do terceto) é quem sugere a contemplação. Uma contemplação plotinianamente

silenciosa, meditativa, longa, onde o tempo está retido, suspenso, como diz Roland Barthes

n’O Neutro (2003).

Já na obra O Guardador de águas, no poema “Retrato quase apagado em que se pode

ver perfeitamente nada”, encontramos este peculiar poema:

Eu sou o medo da lucidez.

Choveu na palavra onde eu estava.

Eu via a natureza como quem a veste.

Eu me fechava com espumas.

(BARROS, 2010, p. 266).

O que é chover na palavra? De acordo com Alan Watts (2011, p. 52) “o Zen é mover-

se com a vida, sem tentar parar ou interromper o seu fluxo”. Quer dizer, o que pode nos

interessar do Watts é que natureza e palavra movam-se em um só movimento, isto é,

linguagem e natureza confluam. Isto precisa se dá nas malhas da linguagem, ou seja, que a

mediação seja a percepção. Ora, isto muito nos aproximará de uma figura que tem grande

presença na obra manuelina: o heterônimo Alberto Caeiro, do poeta português Fernando

Pessoa. Por que Caeiro? Ele é o mais simples dos heterônimos de Pessoa e a matéria com a

qual estamos lidando é com a simplicidade. O Zen é simples (e ensina a simplicidade). A

contemplação plotiniana é simples, no sentido de que sua contemplação silenciosa é de uma

simplicidade quase budista (e por isso em nossa investigação Plotino e Zen estão lado a lado).

A poesia de Caeiro é simples, porque o próprio Caeiro é simples, quer dizer, é um guardador

de rebanhos e de baixa escolaridade (eis a grande genialidade de Fernando Pessoa, seus

heterônimos têm personalidades muito próprias). No fragmento 24 de “O guardador de

rebanhos” (2011, p. 62), encontramos o seguinte:

Page 111: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 889

O essencial é saber ver

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se ver,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa.

Caeiro aqui nos aponta para a fenomenologia do olhar: Saber ver algo mesmo sem

pensar no objeto, mesmo vendo de olhos fechados, sem pensamento: percepção. Afinal,

Caeiro não tem filosofias, tem sentidos: “Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é /

Mas porque a amo” (Idem, p. 43). Essa é a poesia de Caeiro e também a poesia de Manoel de

Barros: “E a minha poesia é natural como o levantar-se do vento”.

A poesia manuelina é sem dúvida “um espaço íntimo de observação reverente e escuta

silenciosa de uma realidade desconhecida, misteriosa e sagrada” (ALMEIDA, 2012, p. 144,

grifo nosso), já que o poeta se integra à natureza de uma forma tão completa que une o sujeito

e o objeto. Segundo Sherry Almeida (Idem, p. 146) “em sua poesia, Manoel de Barros fala, ou

tenta falar na intenção da natureza; ‘com’ ela, pois, e não ‘sobre’ ela”. Pode-se dizer com isto

que a obra de Manoel de Barros fala com a natureza e não somente sobre a mesma. Quer

dizer, quando dizemos que sua poesia é um falar com a natureza, estamos querendo dizer que

a sua poesia fala junto a... E ambos, sujeito lírico e natureza, estão lado a lado, unidos,

entrelaçados, envolvidos, juntos, onde um fecunda no outro. Muito diferente do falar sobre a

natureza, que apontaria para um falar racional e científico sobe o objeto externo. E não é esta

a intenção da poesia manuelina.

2. A poesia do ínfimo

Ao ler a obra de Manoel de Barros percebemos que o mesmo vai até o fundo da

natureza, atrás da sua matéria-prima, para compor os seus poemas. É como se o poeta fosse

até o fundo da natureza e de lá buscasse as palavras, drummondianamente falando. Se há um

certo surrealismo na sua obra, é justamente o desafio à lógica pela via contemplativa que sua

poesia propõe. Logo, a ideia de ínfimo traduz sua poética. No ínfimo, a poesia desexplica –

afinal, parece próprio a todo fazer literário buscar desexplicar, isto se seguirmos a velha lição

da teoria da literatura de que é a própria literatura desvio da norma (cf. EAGLETON, 2006).

Na obra Tratado geral da grandeza do ínfimo (2001), na seção “O livro de Bernardo”,

segunda parte do seu livro de poesias, encontramos 52 fragmentos de poemas, estes que são

numerados na referida seção. Aqui trabalharemos com alguns deles como haikais, deixando

claro, que não podemos chamar os mesmos de haikais pelo fato de serem numerados e de

constituírem um grande poema, mas tentaremos aproximá-los do gênero poético japonês,

Page 112: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 890

procedendo da seguinte maneira: como os fragmentos são de três linhas do ponto vista formal,

analisaremos estes “tercetos” não como um todo, como está no livro, mas isoladamente, por

isso nosso procedimento será de subversão do poema como um todo. Quer dizer, é

fragmentando esse grande poema que faremos ver o haikai. Abaixo, destacamos os seguintes

fragmentos:

2

Não tenho pensa.

Tenho só arvores ventos

passarinhos - issos.

(BARROS, 2010, p. 412).

No fragmento acima percebemos a interação do eu lírico com o meio em que vive. O

mesmo nos aponta que só tem árvores, ventos e passarinhos, ou seja, só natureza. E quando

ele diz “issos” no final, ele demonstra o seu envolvimento com a natureza e nada mais. Que

envolvimento é este se não um envolvimento topofílico. Quando o poema capta todo esse

envolvimento máximo em três versos, ele está justamente atendendo ao princípio do haikai,

que condensar o máximo no mínimo. Neste entendimento, seguimos a Luiza Lobo (1993, p.

45) quando diz que o haikai “é um encontro do ser humano com um sentido sagrado que se

encontra na natureza”. Vale ressaltar que Manoel de Barros, neste poema “O livro de

Bernardo”, não está escrevendo explicitamente haikais, mas no conteúdo nos encontramos por

completo com o haikai, até porque se partimos da definição básica de haikai (o encontro do

sujeito com a natureza), podemos dizer que toda a obra de Manoel de Barros aqui conflui. No

seguinte fragmento veremos como um clássico haikai de Bashô (difusor do haikai)

intertextualiza com o poema:

12

Uma rã me benzeu

Com as mãos

na água.

(Idem, 2010, p. 414)

A rã é a mesma do poema de Bashô, que tomba na água:

O velho tanque

Rã salt’ tomba

Rumor de água.

(BASHÔ, 1997, p. 80).

A rã, símbolo forte na cultura japonesa, mergulha, lança-se, no acaso, no acaso

mallarmaico, entrega-se a um lugar profundo do tanque, tão profundo como a profundeza do

Page 113: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 891

armário descrito por Bachelard. A rã visita esse espaço profundo a partir de um salto-tombo,

um duplo movimento, movimento de êxtase. Rã entre o tanque e a água. Rã que vivifica o

tanque, se presentifica nele, pois não haveria rumor de água sem seu pulo, sem seu salto. Já a

rã do poema de Manoel abraça o sujeito pelo substantivo mãos. A mão é a ponte que liga

sujeito e objeto. Mão Zen.

A relação haikai e Zen budismo não é proposital, uma vez que o Zen é esse encontro

a-lógico entre sujeito e objeto em uma tradição cultural que mais contemplou a sua natureza.

Contemplação silenciosa, como vemos no seguinte fragmento:

15

O silêncio

está úmido

de aves.

(Op. cit., p. 415)

Estamos diante de um silêncio que não faz parte da nossa compreensão de silêncio

como vazio, mas de um silêncio perceptível, que sente, que está úmido. Esse silêncio é

experienciado pelo eu lírico. O que podemos concluir é que a obra poética de Manoel de

Barros aqui analisada não é uma definição ou conceituação de uma oniricidade com a

natureza, muito menos uma definição de contemplação plotiniana ou Zen budista. O que

argumentamos é justamente que antes de definir, os poemas aqui selecionados apontam para o

campo da experienciação, quer dizer, é preciso primeiro sentir, e só então depois poder

definir.

Conclusão

Podemos concluir que a obra manuelina é o lugar propício para um diálogo poético e

filosófico, onde a filosofia plotiniana, bem como certo pensamento bachelardiano se confluem

com a natureza fluida no poema. Um diálogo não só com tais filosofias, mas também com o

pensamento oriental Zen budista. Fruto de todas estas intercessões está um poeta intimamente

ligado com o seu meio e uma poesia que retoma ao ínfimo e ao primitivo das coisas e fazem

delas o seu material poético.

A grande dificuldade de se ler e entender Manoel de Barros é o seu desafio à lógica

aristotélica em que sujeito e objeto não podem estar ligados, em que natureza é algo distante

em que não possa ser contemplada, em que o silêncio é a ausência da voz. E todo desafio a

essa lógica traz sempre um estranhamento. O que queremos é justamente partir deste desafio

Page 114: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 892

para compreender uma poética não apenas desafiadora à lógica, mas uma poética marcada por

experiência, sensações, percepções.

Referência

ALMEIDA, Sherry. Oficina de transfazer natureza: a poesia pantaneira de Manoel de Barros.

Intersemiose. Revista Digital. Jun/Dez 2012. p. 144-158.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes. 2008.

BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Leya. 2010.

BARTHES, Roland. O Neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo. Martins Fontes.

2003.

BASHÔ, Matsuó. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka, Alberto Marsicano. São

Paulo: Iluminuras, 1997.

BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita 2: A Experiência-Limite. São Paulo: Escuta.

2007.

BOSI, Alfredo. A fenomenologia do olhar. In: NOVAES, A. et al (Orgs.). O Olhar. São

Paulo: Companhia das Letras. 1988.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul. 2006.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. Trad. João Azenha Jr. 6. ed. São

Paulo: Martins Fontes. 2006.

GRÁCIA-RODRIGUES, K. De corixos e de veredas: a alegada similitude entre as poéticas de

Manoel de Barros e de Guimarães Rosa. 2006. 318 f. Tese (Doutorado em Estudos

Literários). UNESP. Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara.

LOBO, Luiza. O haikai e a crise da metafísica. Rio de Janeiro: Nunem Ed., 1993.

MERLEAU-PONTY, M. A natureza. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

NUNES, Benedito. Ensaios Filosóficos. Org. Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Martins

Fontes. 2010.

_______________. Bichos, plantas e malucos no sertão rosiano. In: SECCHIN, A. C. et al.

(Orgs.). Veredas no sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7 letras. 2007.

PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

2011.

PIGNATARI, Décio. Semiótica & literatura. São Paulo: Ateliê Editorial. 2004.

PLOTINO. Enéada I-II (tomo I). Trad. Jésus Igal. Madrid: Gredos, 1982.

Page 115: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 893

________. Eneáda III. 8 [30]: sobre a natureza, a contemplação e o Uno. Introdução,

tradução e comentário: José Carlos Baracat Júnior. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

REALE, Giovanni. Plotino e Neoplatonismo. São Paulo: Edições Loyola. 2012.

SUZUKI, D.T. Conferências sobre Zen-Budismo. In: FROMM, E.; SUZUKI, D.T.;

MARTINO, R. Zen-budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1976a, p.9-91.

_______. Introdução ao Zen Budismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

WATTS, Alan. O Espírito do Zen. Trad. Murillo Nunes de Azevedo. Porto Alegre: L&PM.

2011.

Page 116: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 894

“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO [Voltar para Sumário]

Flávio Passos Santana7 (UFS)

1. Introdução

Partindo das particularidades referentes a Sergipe, mais especificamente, tomando

como base a produção de curtas-metragens no Estado e sabendo da importância que este dá às

produções audiovisuais, propomos analisar, neste trabalho8, o curta sergipano Xandrilá, com o

intuito de observar, por meio da Semiótica do Discurso, operando mais diretamente com o

percurso gerativo de sentido, como essa narrativa foi elaborada, criando enfim certos efeitos

de sentido, o que será identificado, no nosso estudo, por meio da análise dos três níveis desse

percurso – o fundamental, o narrativo e o discursivo.

No que se refere ao curta Xandrilá, nosso principal objeto de estudo, trata-se de uma

adaptação cinematográfica do conto homônimo, publicado no ano de 2010, do sergipano Isaac

Dourado. Por conta disso, atentamos para o fato de que o nosso objeto é uma produção

intersemiótica por ser baseado em um conto (texto na modalidade escrita/signos verbais) e

adaptado para as telas do cinema (texto nas modalidades escrita e oral e imagens/signos

verbais e não verbais).

Para tanto, elegemos como arcabouço teórico os estudos da Semiótica greimasiana,

baseando-nos em Algirdas Greimas e Joseph Courtés (2013), Diana Luz Pessoa de Barros

(2012), José Luiz Fiorin (1992) e Jacques Fontanille (2012), os quais serão agregados ao

nosso trabalho como sustentáculo para investigarmos de que forma foram construídos os três

níveis do percurso gerativo de sentido.

Para obtermos os resultados almejados, nossa atenção se voltará para a temática

desenvolvida no curta, que seria o “Estado de Totalidade Existencial”, bem como para os

discursos das personagens Renata e Pepper, observando quais são os valores, as crenças e as

ideologias que daí emergem. Assim, nosso objetivo é utilizar os estudos por nós já citados

7 Mestrando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]. 8 O presente artigo é um recorte do nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Curtindo o curta

sergipano: um olhar semiótico sobre Xandrilá, em que tivemos a orientação da professora Dra. Márcia Mariano.

Page 117: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 895

para lermos semioticamente a sequência narrativa, bem como ler discursivamente as imagens

criadas, no curta, dos sergipanos, ao mesmo tempo em que nossas reflexões partem de dois

vieses principais: de um lado, a importância de os sujeitos refletirem – tanto dentro quanto

fora da academia – acerca da identidade, por tomarem conhecimento da realidade da

sociedade da qual fazem parte e também, por meio da reflexão, tornarem-se cidadãos mais

críticos e questionantes, não se deixando influenciar pelo que é difundido pelos discursos que

circulam no espaço em que vivem; e de outro, há a valorização das produções culturais locais

das pequenas e médias cidades brasileiras, que nem sempre são divulgadas pelas grandes

mídias.

2. “Xandrilá” e a Semiótica Discursiva

Inicialmente, dizemos que a Semiótica não trabalha com a palavra ou a frase apenas,

mas sim com o texto e tomando este como sendo um construtor de sentido. Assim sendo, a

Semiótica tenta observar como esses sentidos foram construídos a partir de mecanismos e

procedimentos utilizados e que são divididos no texto por meio de relações sócio-históricas.

Dir-se-á ainda que esse texto de que falamos pode ser tanto linguístico (oral ou escrito),

visual, olfativo e gestual quanto a união de diferentes expressões denominada de sincretismo,

a exemplo do cinema, dos quadrinhos e das canções.

Podemos dizer então que, em linhas gerais, a Semiótica pretende elucidar os sentidos

do texto. E, para tanto, faz-se necessário, segundo Barros (2012), analisar os seus mecanismos

e procedimentos no plano do conteúdo, visto que este é arquitetado pelo percurso gerativo de

sentido.

Adentrando mais especificamente o percurso gerativo de sentido, por seu turno, nota-

se que ele se desenvolve do nível mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto;

nesse percurso, são determinadas três etapas, as quais podem ser explicadas separadamente,

mesmo o sentido do texto dependendo da relação entre os três níveis.

2.1. Nível Fundamental

De acordo com Fiorin (1992, p. 20), a “semântica e a sintaxe do nível fundamental

representam a instância inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais

abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso”. Ainda nesse nível, o

sentido do texto se dá a partir de uma “oposição semântica”, mediada pela existência de um

Page 118: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 896

elemento básico e comum aos termos contrários entre si, tendo, então, as seguintes

possibilidades: quando há relações sensoriais do sujeito com os conteúdos – os termos

contrários – tidos como atraentes ou eufóricos e repulsivos ou disfóricos; quando eles são

negados ou afirmados por intervenções de uma sintaxe elementar; ou quando são concebidos

e vistos através de um modelo lógico dessas relações alcunhado de quadrado semiótico. Este,

segundo Fontanille (2012, p. 62) “apresenta-se como a reunião dos dois tipos de oposições

binárias em só um sistema que administra, ao mesmo tempo, a presença simultânea de traços

contrários e a presença e a ausência de cada um desses traços”.

Aplicando esses pressupostos ao contexto do curta Xandrilá, pode-se notar que a

categoria semântica fundamental é estabelecida por meio do Estado de Totalidade Interior do

sujeito Renata, por sua vez, representado pelos seguintes elementos opostos: a ausência versus

a plenitude. Sendo assim, uma leitura para esse esquema seria que a ausência para Renata é

tida como disfórica e a plenitude é representada como eufórica, portanto, a ausência é vista

como repulsiva e a plenitude como atraente. Nesse contexto, as intervenções de afirmação

bem como as de negação nos remetem ao trajeto abaixo:

AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO AFIRMAÇÃO

Ausência Não-Ausência Plenitude

Disforia Não Disforia Euforia

Nesse sentido, temos a construção de uma historiazinha euforizante, isto é, ela parte da

disforia à euforia num trajeto em que a personagem termina “bem” até o momento em que nos

é mostrado o final da película. Vale ressaltar que esses termos não passam diretamente de um

para o outro, mas se constituem por meio de intervenções de afirmação e negação. Com

efeito, podemos sintetizar analiticamente o curta Xandrilá, a partir do nível fundamental,

mediante o seguinte quadrado semiótico:

Ausência Plenitude

Não Plenitude Não Ausência

Page 119: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 897

Com base nesse esquema, podemos dizer que o sujeito Renata encontrava-se,

inicialmente (Seta 1), na ausência de um sentido existencial, sempre imaginando o porquê de

seu destino e vivendo a vida sem rumo, sem planos para o futuro e sem se importar com nada;

ao negar essa ausência (Seta 2), a partir do momento em que encontra Osvaldo e começa a

traçar um novo destino para a vida dela, chega à plenitude, com Osvaldo, ou “Pepper” (Seta

3), mas, com o tempo, percebe que não quer viver um relacionamento em que seu parceiro

viva consumindo drogas; logo, nega a plenitude (Seta 4), entrando no mundo da prostituição

em busca de um sentido; e volta para a ausência (Seta 5), para, finalmente, afirmar a plenitude

(Seta 6), tornando-se garota de programa, e se realizar (sexual e financeiramente), acreditando

viver feliz num ambiente em que nunca achou que viveria, já que ela se surpreende, um tempo

antes, ao se deparar com a amiga Camila saindo do carro e “fazendo ponto” na avenida, antes

de ela mesma firmar o contrato com o “sócio”.

Em suma, esse feixe de relações que sintetizam o percurso da protagonista dá conta da

passagem de um estado a outro, quando, com o desenrolar do enredo no tempo e no espaço da

narrativa, a ausência pouco a pouco é substituída pela sensação de plenitude do sujeito

Renata, que passa a se voltar principalmente para o culto da luxúria e do materialismo,

retirando daí a matéria que lhe traz uma aparente realização.

2.2. Nível Narrativo

Seguindo o percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível narrativo. Neste, por seu

turno, dão-se três tipos de ocorrência: o ingresso do sujeito, sendo que, ao invés de

acontecerem operações lógicas fundamentais, ocorrem modificações na historieta exercidas

pelo sujeito; em seguida, as categorias semânticas existentes no nível fundamental passam a

ser valores do sujeito e serão implantadas nos objetos com que o sujeito tem contato; e, por

fim, as decisões tensivo-fóricas do nível anterior transformam-se em modalizações que

mudam as ações e os modos de existir do sujeito e de suas relações com os valores.

No curta em tela, o sujeito Renata atua nessa transformação ao colocar o sujeito

Osvaldo (ou Mr. Pepper) em situação de dominação. Renata, movida pelos desejos e

interesses para sair da Ausência de sentido existencial, quer realizar a transformação que vai

colocá-la em estado de Não Ausência. Com efeito, Plenitude é o valor com que esta

protagonista se relaciona por meio de objetos – principalmente de objetos que estão

relacionados à luxúria e ao materialismo –, sendo essa uma relação almejada por Renata e

Page 120: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 898

modalizada pelo querer. Assim sendo, esse sujeito pretende alcançar a modificação de sua

situação inicial de ausência de sentido existencial, passando, portanto, a um estado de

plenitude com o sentido de sua vida.

Segundo Barros (2012, p. 191), “a narrativa de um texto é a historiazinha de um

sujeito em busca de valores”, sendo assim, para que esse sujeito possa conseguir os valores,

estes são inseridos nos objetos. E estes objetos, por sua vez, quando são carregados de

valores, circulam através dos sujeitos. Destarte, quando um sujeito adquire um objeto de

valor, outro sujeito é privado disso, consequentemente, a narrativa gira em torno de dois

sujeitos em busca dos mesmos valores almejados. Podemos entender esse sistema no curta

sob análise se tomarmos a Plenitude como sendo o objeto de valor tanto para Renata quanto

para Mr. Pepper. Ela, em busca da Plenitude por meio da música, enquanto ele encontra a

Plenitude por meio das drogas, destacando aqui que tanto o objeto música quanto o objeto

drogas representam, na narrativa, objetos necessários para levar à aquisição da Plenitude, a

qual seria a performance que ambos querem realizar.

Toda narrativa de um texto possui uma organização base ainda que nem sempre ela

esteja explícita, e é nela que três caminhos se relacionam por pressuposição: o da manipulação

(um destinador faz um contrato com um destinatário tentando persuadi-lo para que faça o que

ele lhe propõe); o da ação (o destinatário que se submeteu ao contrato tornar-se-á sujeito e

desenvolverá o que foi acordado); e o da sanção (o destinatário vai tentar mostrar para seu

destinador que cumpriu o acordo, no intuito de obter um julgamento positivo, e, por

conseguinte, o destinador vai observar se o contrato foi cumprido conforme combinado e vai

atribuir ao destinatário uma recompensa ou uma punição). Logo, todos estes elementos são

pressupostos pelo seu anterior.

No percurso da manipulação, segundo Barros (2012, p. 197), este percurso pode ser

entendido como uma ou mais transformações de estado, em que o sujeito que opera a

transformação é alcunhado de destinador e o sujeito sobre o qual aquele age, de destinatário.

Assim, o destinador propõe um acordo ao destinatário no intuito de modificar a competência

deste e fazer com que ele se torne sujeito operador da transformação final de estados.

Resumindo, o destinador pretende que o destinatário faça algo, e, para isso, ele precisa

persuadi-lo, levando-o a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer, que são

competências básicas do sujeito.

Com base nisso e observando que Renata (sujeito destinador) propõe um contrato a

Osvaldo (destinatário), contrato este que é de eles formarem uma dupla musical, já que ela

canta e precisa de alguém que toque violão, e ela sabe que Osvaldo é competente para isso.

Page 121: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 899

Para que esse acordo ocorra, é necessária uma relação comunicativa9 entre os atores. Assim,

Renata vai se mostrar como competente e confiável tanto para cumprir o contrato quanto para

mostrar que seus valores são do interesse de Osvaldo ou que devem ser temidos por ele. Dá-se

que, um ano após o firmamento do acordo, Osvaldo começa a quebrar o contrato e entra um

novo destinador na história, o Empresário, que vai propor um acordo com Renata, e esta se

torna destinatário.

A respeito disso, listamos, a seguir, as estratégias de persuasão (as quais podem ser:

intimidação, tentação, sedução e provocação) utilizadas/recebidas por essa personagem em

dois programas narrativos que ocorrem, por um espaço de tempo, concomitantemente na

narrativa: Intimidação – são mostrados valores que o destinatário teme e quer evitar: o

sujeito Renata fala a Osvaldo que ele não pode continuar usando o dinheiro do cachê para

comprar drogas; Tentação – apresentação de valores desejáveis para o destinatário: o sujeito

“Empresário” fala ao sujeito Renata que ela pode se tornar uma garota de programa de

sucesso.

Nesse ínterim, na intimidação, o destinador Renata busca modificar a competência do

destinatário Osvaldo, levando-o a dever fazer (parar de comprar e usar drogas) para que eles

possam investir no futuro do casal e da carreira. Já na tentação, temos um querer fazer, em

que o sujeito Empresário faz uma proposta ao destinatário Renata para que eles possam

ganhar dinheiro “fácil”. Nesse sentido, Renata busca modificar o estado de conjunção de

Osvaldo de dever ou querer parar de comprar drogas para que ele passe então a um estado de

disjunção com esse comportamento autodestrutivo. E o Empresário, aproveitando-se da

possível disjunção de Renata com a música e com Osvaldo, intenta transformar esse estado de

disjunção da protagonista em um querer fazer programas, fazendo com que ela entre em

estado de conjunção com novas competências do sujeito realizado.

Nessa perspectiva, deve ser ressaltado que o destinatário realiza um fazer, que é

entendido como a interpretação da persuasão do outro, e isso ocorre por meio de seu

conhecimento sócio-histórico-ideológico e dos recursos que o destinador utilizou para que

possa julgá-lo ou não como digno de fé10

. No caso de Xandrilá, a manipulação por

intimidação não funciona, e isso pode ter ocorrido por Renata não ter oferecido valores

desejáveis (continuar com a banda e com o relacionamento) para que Osvaldo parasse de usar

drogas. Já na tentação, o destinador Empresário ofereceu valores que, a princípio, não eram

9 Segundo Barros (2012, p. 197), toda comunicação é uma forma de manipulação. 10 Aristóteles, 2011 [384-322 a.C.].

Page 122: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 900

desejáveis para o destinatário Renata, no entanto, ao se deparar com a situação de Osvaldo e

com a tentação de poder ganhar muito dinheiro, ela aceita o acordo com o destinador.

Teoricamente falando, no percurso da ação, ocorrem dois tipos de programas

narrativos, sob a perspectiva do sujeito da ação, a saber: programas de performance e de

competência. O primeiro é entendido como a transformação de um estado de disjunção em

estado de conjunção, por meio de um sujeito transformador e realizado pelo mesmo ator do

sujeito que tem seu estado modificado. Ainda nesse programa, o valor do objeto é um valor

último ao qual aspira o sujeito da narrativa. Por sua vez, o programa de competência também

é conceituado como uma transformação de estado de disjunção para conjunção, sendo que a

diferença, nesse programa, é que o sujeito que pratica a transformação é um ator diferente do

sujeito de estado e, também, o valor do objeto é um valor modal (o querer, o dever, o saber e

o poder fazer), isso quer dizer que é um valor imprescindível para que o sujeito, nesse

programa, consiga realizar a performance principal.

Exemplificando isso no curta, pode-se ver que o sujeito Renata tenta alcançar uma

performance, que é transformar seu estado de disjunção com os objetos-valores música,

namorado, fama (dinheiro), que a levaria para uma realização plena (Plenitude) em estado de

conjunção: ela quer e pode chegar à Plenitude almejada. No programa de competência, de

acordo com o contexto do curta, não sabemos exatamente qual(is) o(s) motivo(s) que

levou(ram) Renata à ausência de sentido existencial, porém, podemos pressupor que, talvez,

as origens dela (problemas com os pais, falta de conselhos, etc.), pressupomos, portanto, que

num programa narrativo anterior à história de Renata contada na película, vários foram os

anti-sujeitos que fizeram com que a protagonista chegasse ao estado em que se encontrava no

início do curta – estado de Ausência –, e esse sujeito foi responsável pela sua transformação

em estado de conjunção com a ausência de sentido existencial.

Após a realização da performance, o sujeito cumpre o acordo que havia feito com o

destinador. Chegamos, então, ao terceiro percurso, o da sanção. Neste, o destinatário irá

receber o reconhecimento ou não pela realização do contrato e, consequentemente, a

recompensa ou a punição. Com base nessa explicação, podemos dizer que, no enunciado em

que Renata foi o destinador e propôs o acordo com Osvaldo, este não cumpriu o contrato

(drogava-se e comprava drogas com o dinheiro do cachê dos shows feitos pela dupla),

recebendo, como recompensa, a punição: ficar sem Renata e desfazer a parceria musical.

Ainda aqui, podemos afirmar que Osvaldo também assumiu um papel de anti-sujeito, daquele

que atrapalha a realização da performance. Já no enunciado em que Renata é o destinatário e o

Empresário é o destinador, ela acaba cumprindo o contrato e recebendo sua recompensa e seu

Page 123: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 901

reconhecimento: dinheiro pelo seu trabalho, tornando-se assim uma garota de programa

famosa e desejada.

Finalmente, percebemos que, em Xandrilá, num primeiro momento, a narrativa

apresenta um sujeito (Renata) em conjunção com valores temíveis (querer não ser) ou que são

indesejáveis e em disjunção com valores tidos como desejáveis (querer ser): Renata se mostra

uma menina que não sabe o verdadeiro significado da vida e faz tudo sem pensar nas

consequências pelo fato de a ausência de sentido existencial permear seus pensamentos. Nesse

caso, a sua situação inicial (ausência de sentido) é um valor indesejável para ela porque é

obrigatório (dever ser) para que possa construir seu caminho até conseguir encontrar um

sentido e se realizar. Além disso, esse sujeito está em disjunção com a Plenitude na medida

em que esse é um valor desejável e, consequentemente, desconhecido (não saber ser), isto é,

ela talvez não saiba como chegar ao estado de Plenitude, pois ainda é uma menina imatura

que não conhece os caminhos e não tem alguém que a guie.

2.3. Nível Discursivo

Após percorrermos os dois níveis do percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível

discursivo. Neste, a disposição narrativa é temporalizada, espacializada e actoralizada. Isso

quer dizer que as ações e os estados narrativos são localizados e programados temporal e

espacialmente, e os actantes narrativos são investidos pela categoria de pessoa. Ademais, os

valores nesse nível são difundidos no discurso, de maneira abstrata, revestidos pelos percursos

temáticos, que, por seu turno, podem ser investidos e concretizados em figuras.

A tematização e a figurativização correspondem, segundo Barros (2012), ao

“enriquecimento” dos sentidos do discurso. Assim sendo, na tematização ocorre a propagação

dos traços que são revestidos de sentidos e que são tomados de forma abstrata. Por sua vez, na

figurativização, esses traços semânticos são revestidos por traços semânticos “sensoriais” (de

cor, forma, cheiro, som, etc.) que são capazes de dar a eles “o efeito de concretização

sensorial”. Além disso, os discursos são qualificados pelas repetições de tipos de traços

semânticos, apresentados como percursos temático, figurativo e isotópico. Este, segundo

Greimas e Courtés é

[...] de caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente, a

iteratividade*, no decorrer de uma cadeia sintagmática*, de classemas* que

garantem ao discurso-enunciado a homogeneidade. Segundo essa acepção, é

evidente que o sintagma* que reúne ao menos duas figuras* sêmicas pode ser

considerado como o contexto* mínimo que permite estabelecer uma isotopia. Assim

Page 124: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 902

acontece com a categoria* sêmica que subsume os dois termos contrários*: levando-

se em consideração os percursos aos quais podem dar origem, os quatro termos do

quadrado* semiótico serão denominados isotópicos (GREIMAS & COURTÉS,

2013, p. 275-276). (Os asteriscos são utilizados no texto original)

Esclarecendo o conceito do último termo destacado por nós, este seria a repetição de

traços semânticos que fazem com que o discurso torne-se semanticamente coerente. De

acordo com os postulados de Fiorin (1992, p. 81-6), “em Análise do Discurso (AD), isotopia é

a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor, a isotopia oferece

um plano de leitura, determina um modo de ler o texto”.

Ainda de acordo com Fiorin (1992), os textos figurativos são capazes de criar um

efeito de realidade, pelo fato de construírem “um simulacro da realidade”, correspondendo,

dessa maneira, ao mundo; por seu turno, os textos temáticos, buscam elucidar a realidade,

“classificam e ordenam a realidade significante”, formando relações e dependências. Desse

modo, para esse estudioso, os discursos figurativos possuem uma função descritiva ou

representativa, ao mesmo tempo em que os temáticos têm uma função predicativa ou

interpretativa.

Assim como o lexema “texto” corresponde à palavra tecido, como diz Fiorin, as

figuras estabelecem relações entre si. E o que vai interessar numa análise textual é esse

encadeamento de figuras, pois ler um texto não é apreender figuras separadas, mas poder

observar as relações existentes entre elas e avaliar a trama que estabelecem. De tal modo, esse

encadeamento de figuras e essa organização de relações denominam-se percurso figurativo.

Por sua vez, uma correlação de temas corresponde ao percurso temático. Vale

salientar que esses percursos só acontecem em textos que sejam temáticos. Desse modo, um

conjunto de lexemas abstratos e em que aparece um tema mais universal compõe um percurso

temático. Assim como os percursos figurativos, os percursos temáticos precisam estabelecer

uma coerência interna. E, quando isso não acontece, o texto se torna incoerente. É claro que

podemos mostrar num texto percursos temáticos antitéticos ou mesmo superpostos para criar

determinados efeitos de sentido. Dessa forma, do mesmo modo que nos textos figurativos, a

quebra de coerência nos textos temáticos pode ser um recurso para transmitir determinados

conteúdos.

Considerando então esses levantamentos e aplicando o que foi falado ao curta

Xandrilá, temos então um percurso temático em que o tema universal é caracterizado

fundamentando-se por meio do nível narrativo, que foi a Totalidade de Sentido Existencial

dos personagens Renata e Pepper, mediada pelos termos contrários Ausência e Plenitude.

Page 125: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 903

Como um percurso temático é um conjunto de lexemas abstratos em que se tem apenas um

único tema principal, desse modo podemos dizer que a sexualidade, o jovem transgressor, o

ilegal (proibido) e o materialismo são temas que revestem o tema universal.

Nesse ínterim, como a figurativização é responsável por recobrir os traços semânticos

da tematização por meio de traços sensoriais criando com isso um efeito de realidade e tendo

a função descritiva ou representativa, traremos na sequência as figuras apresentadas no curta-

metragem em tela, figuras estas que são responsáveis por revestir os temas:

TEMAS FIGURAS

Sexualidade O picolé; as unhas vermelhas de Renata; o sexo

oral na escola; os movimentos obscenos durante

a aula; a forma como Renata aborda Pepper na

praia; a blusa curta que deixa a barriga de

Renata à mostra, na escola.

Jovem transgressor (Rebelde) A maconha (droga); a bebida; os piercings; as

tatuagens; o pó (droga); o Rock (disco e música

da banda Karne Krua; guitarra, pulseira de

couro); o desinteresse pelos estudos.

Ilegal (proibido) A relação sexual na escola; o uso das drogas

(proibido no Brasil); o tráfego em vias proibidas

e em alta velocidade.

Materialismo O carro de Pepper; o dinheiro dos programas; o

champanhe; o vinho; a joia; o carro e a moto de

luxo (dos clientes); o Hotel.

Tabela 1: Relação entre temas e figuras representada com exemplos do curta.

Através desse quadro, podemos observar, por meio das figuras, como se sucederam os

temas e a sua importância para a construção de sentido da narrativa dando-lhe um efeito de

concretização sensorial.

Por meio das figuras dispostas acima, ficam comprovados os argumentos que

utilizamos para confirmar os temas que revestem o tema universal dessa narrativa, fazendo

com que nós, espectadores, consigamos identificar os elementos significativos que foram

utilizados para a construção do efeito de sentido do curta em análise.

A partir da abordagem do conceito de isotopia, esse curta-metragem determina que

leiamos a película como uma história de dois jovens que apresentam o traço /Busca da

Totalidade Existencial/. E, por meio dos traços semânticos que expomos acima, podemos

observar que esses jovens vivem uma vida de aventuras e quebrando os limites da proibição

que a sociedade impõe. Atentamos ainda que essa sociedade reproduzida no filme diz respeito

Page 126: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 904

à sociedade sergipana por conta de seus produtores serem sergipanos e também por sua

gravação ter acontecido na cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe.

Considerando esse espaço em que a narrativa é tratada, podemos inferir, por meio dos

discursos propagados, que essa sociedade pode ser entendida como preconceituosa e

tradicionalista, já que tratou dos problemas trabalhados no curta como uma censura didática.

Ou seja, os personagens e as suas atitudes são mostrados como “errados”, além de que há a

mensagem de que se nós (espectadores) seguirmos esse rumo, teremos uma sanção negativa

em nossa história. Ao mesmo tempo, os oradores provocam essa mesma sociedade, visto que

Renata termina feliz, fazendo programas, ganhando dinheiro, o que provavelmente não vai ser

aceito por aqueles que compartilham dos valores tradicionais. Ou seja, podemos falar que há

uma contradição presente no filme entre valores tradicionais e “transgressores” (não se aceita

as drogas, mas se aceita a prostituição...)

3. Considerações Finais

Com isso, esperamos que, desvendando imagética e verbalmente os discursos do curta

Xandrilá, seu enredo, seus valores, seus sentidos, haja uma abertura para a difusão de novos

estudos acerca desse tipo de produção audiovisual. Nesse contexto, as esferas acadêmica e

escolar, por exemplo, podem ser beneficiadas ou enriquecidas com a nossa pesquisa pelo fato

de os professores que tenham acesso ao nosso trabalho poderem discutir, em sala de aula, com

seus alunos, acerca de temáticas concernentes a problemas sociais e políticos que dizem

respeito ao Estado ou a situações humano-existenciais que sejam representadas nos curtas;

ademais, poder-se-á incentivar e valorizar a produção de curtas-metragens, tanto por parte de

pessoas que já os produzem, bem como de outras que possam despertar o desejo de passar a

produzi-los; e, ainda, se possível, teremos em vista também resgatar aspectos históricos,

sociais e culturais da região ou de figuras que aqui são relevantes, bem como observar os

valores que são difundidos por meio dos discursos veiculados na película cinematográfica em

pauta e refletir sobre eles.

Finalmente, esperamos fazer com que Xandrilá – essa mistura de conto, áudio,

imagem, vídeo, trilha sonora original e um enredo em que dramas pessoais se afloram numa

busca de sentido existencial – seja uma fonte de significações que levem à produção de

conhecimentos que sejam relevantes tanto para a comunidade acadêmica – na medida em que

ela pode passar a valorizar a produção de curtas sergipanos – quanto para o autoconhecimento

Page 127: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 905

do sujeito enquanto ser social, pois, a partir da visualização da história do Outro, é possível

obter algum tipo de aprendizado ou de lição.

4. Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.)

Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5ª ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto,

2012. p. 187-219.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1992.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2012.

GREIMAS, Algirdas. Julius; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. 2ª ed. 2ª

reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.

XANDRILÁ. Direção de fotografia: Arthur Pinto. Produção: André Aragão, Isaac Dourado e

Arthur Pinto. Colorização: André Franco. Efeitos Visuais: Samuel Bla. Engenheiro de Som:

Jefferson Andrade. Roteiro adaptado: Cibele Nogueira e André Aragão. Baseado no conto

homônimo de Isaac Dourado. Trilha sonora: Patrícia Polayne. Som 5.1 Estúdio Três. Gonara

Filmes e SeteNove AudioVisual, 2011.

Page 128: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 906

A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES

DE MATEMÁTICA NO ANTIGO ENEM. [Voltar para Sumário]

Francielle Santos Araújo1(UFS)

Fabíola dos Santos Lima2(UFS)

1. Introdução

Os gêneros textuais têm um papel importante na sociedade e no espaço educacional,

pois têm sido um método ideal para o desenvolvimento da linguagem em relação às práticas

discursivas sociais, culturais e históricas. É também uma forma de levar para sala de aula um

modo diferente de ensinar, promovendo maior interação entre professores e alunos. Conhecê-

los ajuda aos alunos a melhor interpretá-los e consequentemente produzi-los. Esse artigo está

baseado nas teorias de Marchuschi e Bakhtin, bem como nos documentos oficiais sobre o

ENEM. O interesse da pesquisa é analisar e descrever quais gêneros estão presentes nas

questões de matemática do antigo ENEM. Fez-se uma computação dos gêneros que mais

apareceram, e descreveram-se as competências exigidas para a resolução das questões.

2. Considerações teóricas sobre gêneros e o ENEM.

Ler o texto é promover uma interação, uma vez que o texto é uma ação interativa e

interligada, ao mesmo tempo, linguística e socialmente. Nele inclui-se a interferência de um

sujeito, com intenções prévias e empenhos sucessivos, para que se crie e se mantenha o

aspecto funcional da produção linguística. Adotar os gêneros como instrumento para o

trabalho com a linguagem na escola, torna-se importante. Gêneros são os mais diversos tipos

1 Aluna do Curso de Letras Português/UFS bolsista do Grupo de Pesquisa: Gêneros textuais na prova do ENEM:

provas de Ciências da Natureza & Matemática E-mail: [email protected] 2 Aluna do Curso de Letras Português/UFS bolsista do Grupo de Pesquisa: Gêneros textuais na prova do ENEM:

provas de Ciências Humanas & Linguagens, Códigos e suas tecnologias. E-mail: [email protected]

Page 129: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 907

de textos literários ou não, que podemos reconhecer pela sua forma organizada, seu contexto e

as funções a que se destinam. Mas, qual é a funcionalidade dos gêneros textuais?

Para um trabalho com a língua, pautado num gênero textual, os vários autores

argumentam que devem ser considerados três aspectos: os conhecimentos existentes sobre

gêneros textuais, as capacidades observadas dos aprendizes e os objetivos de ensino a que se

pretende atingir.

Os gêneros textuais constituem, portanto, repertórios de uso da linguagem, atualizados

a cada nova enunciação. Essa definição pressupõe a relação dialógica que Bakhtin propõe

para a utilização da língua e aponta para a historicidade dos gêneros, bem como para a

flexibilidade de suas características e fronteiras. Os enunciados constituem um gênero quando

atingem certo grau de estabilidade. O gênero é definido através de três elementos: o conteúdo

temático, o estilo e a estrutura composicional.

Partilhando das ideias de Bakhtin, Marcuschi (2002) considera que a expressão

“gênero textual” é vaga para aludir aos textos que são encontrados no cotidiano. Segundo este

autor:

Os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros

são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos

situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.

(Marcuschi, 2002, p. 22-25).

Esta perspectiva também se encontra em documentos oficias como os Parâmetros

Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), pois esse documento afirma que os

gêneros desenvolvem “no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas

possibilidades de expressão linguística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos

textos representativos de nossa cultura.” (p.52) Esse documento tem o objetivo de discutir

modos de pensar e orientar o trabalho do docente e de ensinar a língua de modo adequado ao

contexto em que se está inserido. São através dessas discussões que analisaremos quais

gêneros estão inseridos nas provas do ENEM, conhecendo as características e a

intencionalidades dos gêneros nas questões. Mas, o que é o ENEM? Quais as suas

características e suas funções?

O ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) teve sua primeira aplicação em 1998,

foi exame realizado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) com a finalidade de

verificar a qualidade da educação no país. Pode fazer o ENEM quem já concluiu ou está

concluindo o ensino médio. A prova do ENEM caracteriza-se por questões contextualizadas e

interdisciplinares, diferencia-se, portanto, de muitas provas de vestibulares, pois os alunos não

Page 130: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 908

precisam apenas saber conceitos, mas têm necessidade de saber aplicá-los. Esse tipo de exame

faz com que o processo de memorização desse lugar a um maior desempenho nas

competências e habilidades dos alunos.

O antigo ENEM corresponde ao período de 1998 a 2008. Nele a prova era composta

por 63 questões de várias áreas de conhecimento, aplicadas em um único caderno juntamente

com a redação. Esse modelo mudou a partir de 2009. No ENEM as questões são estruturadas

a partir de cinco (05) competências e vinte e uma (21) habilidades.

As competências são modalidades que usamos para estabelecer relações entre o que

desejamos conhecer e as práticas utilizadas para o desenvolvimento de respostas. Já as

habilidades são técnicas para realizar determinadas tarefas, para isso é necessário o domínio

de conhecimentos específicos. As cinco competências exigidas pelo ENEM são:

I. Dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática,

artística e científica.

II. Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de

fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das

manifestações artísticas.

III. Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de

diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema.

IV. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis

em situações concretas, para construir argumentação consistente.

V. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de

intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a

diversidade sociocultural.

O antigo ENEM era aplicado em quatro provas de cores diferentes, prova de cor rosa,

azul, amarela e branca. Não existem diferenças entre as provas, as questões do caderno de

provas são iguais, o que existe é a alteração da ordem das questões, para dificultar uma

possível “cola” durante a prova. A partir de 2004, o ENEM passou a utilizar suas provas

como critérios de seleção para o Programa Universidade para todos (ProUni), que concede

bolsas de estudo integrais ou parciais em instituições de Educação Superior particulares.

A concepção do ENEM é a valorização de uma educação com conteúdos

comprometidos com a cognição, desenvolvimento do raciocínio, interdisciplinaridade e a

capacidade dos alunos de aprender, eliminando todo aquele processo de regras. Dessa

maneira, nota-se que o ENEM contempla a ideia de que a memorização não é a finalidade do

Page 131: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 909

Ensino Médio. O ENEM tem como referências as orientações dos PCN (Parâmetros

Curriculares Nacionais), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e das

Diretrizes do Conselho Nacional de Educação. Todos esses documentos mostram que é

possível trabalhar conteúdos de maneira transdisciplinar.

É pela leitura que a sociedade interage com o mundo, sendo, portanto um processo

ativo. As competências que as leituras trazem para o desenvolvimento do indivíduo e para a

sociedade são de fundamental importância. A leitura pode ser caracterizada como um

processo de compreensão de expressões formais e simbólicas que se dá a conhecer através de

várias linguagens (Martins, 2006). Então, a leitura não é apenas decodificação de códigos, vai

além, ler é mais que um processo cognitivo, uma atividade social e cultural que leva à

construção de conhecimentos.

A leitura envolve uma série de passos e permite que o sujeito tenha a compressão

necessária do que leu. De acordo com os PCN:

Um leitor competente é alguém que, por incentivo próprio, é capaz de

selecionar,dentre outros trechos que circulam socialmente, aqueles que podem

atender a uma necessidade sua.Que consegue utilizar estratégias de leitura

adequadas para abordá-las de forma a atender a essa necessidade.

(BRASIL,1998,p.41)

Ler é um processo dinâmico, busca no sujeito não apenas um leitor, mas um sujeito

crítico. A formação desse leitor não depende somente dele, existem outros fatores que ajudam

para isso, a escola, o modo como os professores trabalham essa habilidade, o modo de ensinar

em sala de aula pode ser um fator diferencial. Tendo o professor como mediador entre o aluno

e o texto, o aluno pode criar gosto pela leitura.

Lajolo (1994,p.121) explica que, “um professor precisa gostar de ler, precisa ler

muito, precisa envolver-se com o que lê”. Então, vai ser a partir do professor que o aluno

passa a ter o gosto pela leitura e consegue desenvolver essa competência.

Os PCN ainda postulam que a leitura

[...] é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do

significado do texto, a partir de seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto

[...] não se trata simplesmente de extrair informações da escrita, decodificando letra

por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica,

necessariamente, compreensão. (BRASIL, 1998, p. 41)

Para interpretação e compreensão de textos não se tem uma definição específica, mas

o que se sabe é que são aspectos presentes na interação comunicativa, tanto oral quanto

escrita. Para entender melhor a compreensão é preciso considerar os dois sujeitos o autor e o

Page 132: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 910

leitor. Visando esses dois aspectos, tem-se o resultado final que mostra aquilo que o leitor

conseguiu entender do que o autor quis dizer.

A compreensão não é apenas uma ação cognitiva ou linguística, ela cria e recria

realidades que ainda nem sempre estão presentes no texto, mas que são inferidas pelo leitor.

Para Marcuschi:

“... se compreender não é uma atividade de precisão,isto também não quer dizer que

seja uma atividade imprecisa e de pura adivinhação.Ela é uma atividade de seleção,

reordenação e reconstrução, em quem a margem de criatividade é permitida”

(Marcuschi, 2009,p.256)

O leitor constrói seus sentidos, mas se limita ao significado que o texto traz. O texto é

produzido a partir dos significados do autor, mas é reconstruído pelo mundo do leitor. Dessa

forma, a compreensão de textos é um processo que se sustenta tanto no leitor como na sua

interpretação, sem deixar de levar em consideração aquilo que o autor quis dizer.

3. Descrições, levantamentos e análises.

Após levantamentos observou-se que há um grande número das questões de

Matemática. Não existe um número fixo de questões por disciplinas no ENEM. Por exemplo,

no ano de 1998, houve treze (13) questões de Matemática teve e apenas quatro (04) questões

de Química; já no ano de 2005, Matemática teve dez (10) questões, e Química teve cinco (05).

Essa diferença é comum em todos os anos.

Nas provas analisadas, ou seja, nas provas do antigo ENEM, os gêneros que mais

apareceram foram problemas, gráficos e figuras. Considerou-se gênero problema aquelas

questões em que seus enunciados exigem a utilização de técnicas já vistas, mas é preciso

saber aplicá-las e conhecer seus fenômenos. Já o gênero gráfico foi considerado como uma

ferramenta importante, pois facilita a análise e interpretação de dados ou valores numéricos. O

gráfico é composto por linhas e colunas, separadas por fileiras. O gênero figura utiliza-se

também da linguagem não verbal, mas apresenta ilustrações em que se transmitem

informações para se obter respostas.

O desenvolvimento das competências comunicativas dos alunos - falar, ouvir, ler e

escrever - é umas das grandes preocupações do professor de qualquer disciplina. Embora os

professores das outras disciplinas considerem que essas competências são apenas preocupação

do professor de Língua Portuguesa. Um método que abrange essas competências são os

trabalhos com gêneros textuais em sala de aula. Os gêneros são linguagens em uso,

Page 133: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 911

instrumentos de comunicação indispensáveis a todos os sujeitos. O professor deve usar o texto

como instrumento de trabalho, é por meio deste trabalho que o aluno terá capacidade para

conceituar, questionar, interpretar, analisar e outras habilidades.

Nota-se que a disciplina de Matemática tem como características números, cálculos e

problemas. Mas, para qualquer entendimento ou resolução das questões é essencial que o

aluno seja capaz de interpretar e compreender o que é pedido, para assim chegar à resposta.

Por esse motivo, o professor de Matemática deve instigar em seus alunos a leitura dos

problemas, ensiná-los a interpretar os gêneros utilizados na disciplina, para que

compreendendo o que é pedido, apreenda as técnicas da Matemática. Como já foi dito,

compreender o que é lido não é obrigação apenas do professor de língua portuguesa. A língua

portuguesa é a base, mas cada disciplina tem suas peculiaridades e os professores de qualquer

disciplina têm responsabilidades de desenvolver em seus alunos as condições necessárias para

atingir os objetivos a serem atingidos.

A tabela seguir mostra a quantidade dos gêneros na disciplina Matemática das provas

do Enem dos anos de 1998 a 2008.

Tabela 1: Gêneros presentes nas provas de Matemática.

O gênero problema é considerado como uma questão em que seu enunciado é em

linguagem matemática e pode ter uma solução. Para resolver o problema é necessário

criatividade e utilização de técnicas aprendidas, como fórmulas, regras, equações etc. Nesse

gênero, os alunos necessitam além da competência 1, em que é preciso construir significados

para os devidos número, das habilidades de reconhecimento no contexto e a resolução da

situ

açã

o-

pro

ble

ma. Eis um exemplo:

Exemplo 1

ANO 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 TOTAL

Gêneros

Figura 1 1 1 1 2 1 2 0 1 1 2 13

Gráfico 2 2 0 0 1 3 3 2 0 1 1 15

Problema 4 0 5 2 1 2 3 4 2 1 0 24

Page 134: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 912

Font

e: Exame Nacional do Ensino Médio(1998,p.4)

Para a resolução desse problema é necessário que seja feita a transformação dos

valores que estão em metros para centímetros. A transformação de m(metros) para

cm(centímetros) é feita pela multiplicação por 100. Em seguida, é necessário usar a regra de

três. Regra de três simples é um processo prático para resolver problemas que envolvam

quatro valores dos quais conhecemos três deles e o quarto classificamos como incógnita.

Sabe-se que a sombra da pessoa (que tem 180 cm de altura) mede 60 cm e a sombra do poste

mede 200 cm. Aplica-se a Regra de três simples 180 cm x 200 cm / 60 cm e tem-se a altura do

poste que é de 600 cm. Mais tarde, sabe-se que a sombra do poste (que tem 600 cm de altura)

que media 200cm, passou a medir 150 cm (pois diminuiu 50 cm), e sombra da pessoa (que

tem 180 cm de altura) será, aplicando também a Regra de três, 150 cm x 180 cm / 600 cm =

45 cm. Nessa questão, utilizaram-se os conhecimentos matemáticos de Regra de três e de

transformação de metro em centímetros além da compreensão do enunciado para se chegar à

resposta correta que é o item B, ou seja, 45 cm.

Outro gênero muito utilizado nas questões de Matemática é o gênero gráfico. Esse

gênero tem como objetivo expressar valores ou dados numéricos; seu formato é através de

linhas e colunas, separadas por filetes, mas também existe em formas circulares. Nesse gênero

utiliza-se mais da linguagem não verbal, porque a intenção é expressar valores, facilitando

uma melhor compreensão e permitindo ao leitor uma interpretação rápida e objetiva sobre os

dados apresentados. A competência 6 está presente nesse gênero, em que se deve interpretar

as afirmações obtidas na leitura do gráfico, realizando um significado, dentro, fora e além do

gênero. Já as habilidades utilizadas são expressas no gráfico, ou seja, a resolução da questão a

partir do gráfico e as análises das informações expressas para uma possível explicação. O

aluno com essas habilidades interpreta e analisa as informações aí contidas.

Exemplo 2

Page 135: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 913

Fonte: Exame Nacional do Ensino Médio(1999,p.3)

A resolução dessa questão é simples. É preciso apenas comparar os dois gráficos e

observar que eles têm os mesmos valores. Entretanto é necessário que se observe que as

escalas são diferentes e, portanto, aparentam situações diferentes. Isso demonstra como uma

informação pode ser instrumentalizada. Uma escala é uma linha graduada, dividida em partes

iguais, que indica a relação das dimensões ou distâncias reais. É um instrumento muito usado

em desenho técnico. Assim o aluno que tem conhecimento do que é uma escala e como ela é

constituída chegará à resposta correta dessa questão que é a letra D.

O outro gênero também muito usado nas questões de Matemática é o gênero figura. O

gênero figura é parecido com o gráfico, pois se utiliza também de linguagem não verbal, mas

o aluno necessita dominar tanto a linguagem verbal quanto a não verbal para solucionar

fenômenos abordados para a disciplina. O gênero figura tem a competência 2 como

característica, porque além da realização da leitura o aluno precisa agir sobre ela. Para a

resolução desse gênero, é necessária a habilidade de interpretar a movimentação dos objetos e

identificar a característica da figura, como se vê no exemplo 3.

Exemplo 3

Page 136: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 914

Fonte: Exame Nacional do Ensino Médio (2000, p.5)

Essa resolução é feita a partir dos valores apresentados na figura e no enunciado da

questão. Para se chegar ao resultado é preciso saber a fórmula de progressão aritmética. Sabe-

se que a progressão aritmética é uma sucessão em que a diferença entre dois termos

consecutivos é constante. Pode-se utilizar a seguinte fórmula Sn= x.(a1+a2) / 2, sendo o

primeiro termo a1=30, e o segundo a2=60 que equivalem ao primeiro e ao último degrau e x =

5 que é o número de degraus. Assim S= 5.(30+60)/2 = 225 que representa o comprimento

mínimo da peça linear de madeira. Como se viu algum conhecimento de matemática, como o

conceito de progressão aritmética e a fórmula Sn =x.(a1+a2) / 2 foram necessários para se

chegar à resposta correta que é a letra D.

4. Considerações finais

A partir do levantamento feito nas questões de Matemática nas provas do antigo

ENEM (de 1998 a 2008), notou-se que em todos os anos os gêneros que mais predominaram

foram problema (24), gráfico (15) e figura (13). Verificou-se também que as questões de

Matemática são sempre mais numerosas que as questões de Química ou Física.

É importante ressaltar que as atividades de leitura não se restringem apenas as aulas de

língua portuguesa. Existe um percurso que liga língua portuguesa, como língua materna, às

outras disciplinas.Para resolução das questões com os gêneros- problema, gráfico e figura - é

preciso não só dominar códigos e termos da linguagem matemática assim como compreender

e interpretar problemas, gráficos e figuras. A compreensão do enunciado da questão que

implica interpretação de texto e o conhecimento da disciplina Matemática favorece ao

desenvolvimento das competências e habilidades apresentadas em sua matriz. O professor não

deve ficar preso somente aos conteúdos da disciplina que ensina, nem fazer com que o aluno

memorize listas infinitas de gêneros, mas ele deve trabalhar esses gêneros como se dão na

Page 137: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 915

realidade, em seu suporte específico. A utilização dos gêneros – problema, gráfico e figura -

em sala de aula facilita a compreensão deles na vida diária do aluno e favorece ao seu

crescimento como cidadão. Por isso a importância do conhecimento dos gêneros textuais

independente da disciplina que se ensine.

Referências

BAKHTIN,M. Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes,1992.

BRASIL. Ministério da Educação. Inep. Edital do ENEM 2013.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação fundamental.

Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua

portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998a.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação fundamental.

Parâmetros curriculares ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília:

MEC/SEF, 1998b.

DOLZ,Joaquim. Produção escrita e dificuldades de aprendizagem.Mercado de Letras,2010.

INEP. Disponível em <http://portal.inep.gov.br/web/enem/edicoes-anteriores/provas-e-

gabaritos> Acesso em: 21 deagosto 2014.

LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994.

MARCUSCHI,Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São

Paulo: Parábola, 2009.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.;

MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A.(Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro:

Lucerna, 2002,p. 19-36.

MARTINS, M. H. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2006. 2006.

Page 138: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 916

RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL

DE MAYOMBE [Voltar para Sumário]

Francigelda Ribeiro (UFMG)

Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)

Este texto traz uma análise do romance Mayombe, na qual será explorada a tensão

entre a postura impositiva do colonizador português e a luta do colonizado africano para

manter sua identidade, seu sentimento de pertença. Mayombe foi publicado em 1980, embora

tenha sido escrito entre os anos de 1970 e 1971, por Pepetela, alcunha de Arthur Carlos

Maurício Pestana dos Santos. Tal lacuna temporal se justifica pelo fato de o autor ter

mostrado os originais do referido romance ao poeta e líder marxista do Movimento Popular de

Libertação de Angola (MPLA), Agostinho Neto, futuro primeiro presidente de Angola.

Obviamente, não era de bom tom aos olhos de Agostinho Neto revelar desavenças internas no

movimento, o que macularia a integridade moral e ética do MPLA, diante do colonizador e,

sobretudo, diante dos outros movimentos que também lutavam, cada um com estratégias e

interesses próprios, pela libertação de Angola, quais eram: a Frente Nacional para a

Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola

(UNITA).

O autor centraliza, em Mayombe, o enfrentamento do colonizado pela reconquista do

seu espaço, sem prescindir de trazer à liça as contradições que perpassaram a luta pela

libertação de Angola em diversas dimensões, mas, sobretudo, no que tange às diferenças

étnicas das tribos que a apoiavam, no caso, o MPLA. Ressalta-se aqui que o olhar do autor,

entidade literária, jamais poderia se desvincular da sua identidade política do guerrilheiro que

foi. Pepetela exerceu, dentro do MPLA a função de comandante e, posteriormente, com a

independência e implantação do regime socialista em Angola, em 1975, tomou posse, no

município de Benguela, do cargo de Diretor do Departamento de Orientação Política,

enquanto o partido ainda vivenciava o enfrentamento com a FNLA pelo governo de Angola.

Entre 1976 a 1982, Pepetela deixou as forças armadas e atuou como Vice-ministro de

Educação. Em se considerando suas experiências pessoais, a Floresta Tropical do Mayombe

detém, na sua ficção, uma força simbólica vital, faz-se metáfora, um constructo labiríntico

Page 139: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 917

cujos mistérios não permitem aos guerrilheiros saberem com segurança se de lá sairiam vivos

ou se seriam devorados pelos predadores inimigos. A unidade dos colonizados, tanto nas

páginas da narrativa quanto nos registros históricos, se dá em prol de uma causa maior: a

exploração do colonizador português. No entanto, o autor, à luz da estética, reflete a

multiplicidade de vozes, de culturas, dialetos (ressaltando também a importância da língua

portuguesa como veículo de comunicação acessível a todos), as divergências políticas e falhas

éticas existentes em meio ao combate.

No âmbito deste artigo, serão abordadas, pelo viés de teorias que têm como foco

teórico a memória e a identidade, as fraturas do Movimento figurado no romance. Ademais,

será ressaltado o aspecto de a terra colonizada, como tantas outras, deter, para além de

exotismo, princípios próprios, etnias distintas e ideais particulares e coletivos.

O fato de o romance possuir um narrador em terceira pessoa e diversos narradores-

personagens – tais como, Teoria, Mundo Novo, Muatiânvua, André, Chefe do Depósito,

Lutamos e o Comissário – coaduna com a metáfora central exposta no título, pois o romance

surge como uma floresta composta por uma miríade de árvores, ou seja, há um misto de

narradores distintos, porém com aspectos comuns que concorrem para um todo. Teoria, após

breves palavras do narrador em terceira pessoa, é o primeiro a quem o autor faculta a palavra,

ele se apresenta nos seguintes termos: “Num universo de sim ou de não, branco ou negro, eu

represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem quer

ouvir não” (PEPETELA, 2013, p. 14). É um posicionamento que reflete o tom de ironia,

presente no romance; neste caso, o personagem é exatamente por não ser: é negro sem sê-lo,

lato sensu. A mestiçagem do professor o atingiu em suas relações sociais dentro do

movimento, pois é ele o aliado que lembra o adversário. O autor revela suas rememorações

por meio de um jogo irônico. A ironia aqui está sendo concebida como elemento de ruptura

do universo centrado e elevado das narrativas épicas. Os fatos retomados, desse modo, pelo

narrador personagem Teoria vão outorgando ao romance maior independência, de outro modo

fossem expostos poderiam se fazer objeto da mais pura matéria histórica, conferindo tom

panfletário ao romance.

Tendo como base tais artifícios da criação, Pepetela inseriu sua narrativa no chamado

romance moderno. Modalidade já cultivada por escritores como William Faulkner, Henry

James, Guimarães Rosa, para citar apenas três grandes nomes. Essa técnica possibilita aos

personagens surgirem enquanto consciência central e, alternando o ponto de vista narrativo,

foi rompida com a estrutura tradicional do enredo. A obra passa então a ser plasmada por

meio de uma nova apreensão da realidade e da linguagem. Considerando, assim, alguns

Page 140: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 918

aspectos do romance moderno, é válido retomar o que escreveu sobre Faulkner, Assis Brasil

(1992), ficcionista e crítico literário do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil:

Ao variar, desta maneira, o ponto de vista, Faulkner sacrifica a unidade tradicional

de um desenvolvimento em linha reta da complexa trama, mas, por outro lado,

ganha em unidade dramática dentro de cada uma das histórias individuais dos

distintos narradores (BRASIL, 1992, p.18).

Processo similar ocorre no romance de Pepetela. As memórias de Teoria, por exemplo,

promovem, elas mesmas, seu confronto com as situações que fizeram dele um guerrilheiro,

identidade que se formou por meio de inúmeras renúncias. No entanto, convém ressaltar que a

sua nova identidade não foge às imposições de poder, dadas as relações hierárquicas no

MPLA. Teoria se faz em meio às suas especulações dentro da luta armada. Para ele, a única

maneira de lutar contra o preconceito racial era se opor à exploração portuguesa. Queria

livrar-se da simbologia negativa que acreditava carregar por ser mestiço. Em função do

preconceito racial contra os mestiços na guerrilha, Teoria procura superar-se sempre, como se

pode observar no fragmento:

Um mestiço mostrar o medo? Já viste o que daria? [...] quando os outros estão lá, a

controlar-me, a espiar-me as reações, a ver se dou um passo em falso para então

mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que há em mim predomina e leva-

me (PEPETELA, 2013, p. 43).

Na sua condição fragilizada, Teoria sentiu-se obrigado a mostrar-se mais valente que

os demais, colocando-se à frente de situações perigosas, oferecendo-se para as missões

difíceis, como forma de ser aceito pelo grupo. Dispor-se de tal maneira não era senão uma

estratégia de firmação identitária do personagem. Afinal, torna-se “difícil falar de nossa

identidade sem fazer referências às raízes sociais e relacionais” (MELUCCI, 2004, p. 41), seja

com o passado, com o presente ou com relação às perspectivas de futuro.

Memória e identidade, portanto, não podem ser concebidas como instâncias

indissociáveis. A identidade de Teoria aponta para a urgência em articular o processo de luta

anticolonial, rompendo com as relações desiguais entre colonizador e colonizado. Nesse

sentido, podemos dizer com Jacques Le Goff que a memória não é “somente uma conquista, é

também um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 1994, 476). No caso de Teoria,

suas memórias lhe permitem compreender os complexos e preconceitos que também estão no

âmago do Movimento. À medida que ele reestabeleceu seu passado e se mostrou como

Page 141: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 919

detentor de responsabilidades mais arriscadas, terminou por expor complexos, sentimentos de

inferioridade, temores e privações que não somente o afetavam, mas a toda sociedade

angolana.

Naquele contexto, as memórias representadas por sujeitos particularizados são, por

tal ótica, coletivas e os vínculos estabelecidos entre os guerrilheiros a partir do passado, na

representação de diversos modos de opressão, constituem uma pluralidade de vozes e

identidades que constroem o sentimento de grupo e estabelece a resistência anticolonial na

guerrilha, a despeito das divergências tribalistas. Assim, não se pode deixar de enfrentar aqui

uma questão crucial colocada pelo autor: a construção da identidade do grupo de resistência

que, nas páginas de Mayombe, é edificada a partir da memória coletiva. Embora os narradores

exponham suas identidades particulares e conflitantes, a memória coletiva é o que promove a

identidade de grupo, favorecendo a resistência via luta armada. Afinal, as memórias dos

guerrilheiros, em Mayombe, são frutos de um mesmo contexto histórico mediado pela

violência que os instiga a romper os silêncios, impulsionando a ressignificação da história da

Angola colônia. Pepetela evidencia preconceitos sofridos, perdas que jamais serão esquecidas

por aqueles que foram submetidos à tirania colonial. Contudo, sem ocultar as incoerências

internas de uma história que estava sendo vitalizada por homens lançados às vicissitudes, às

incertezas.

Os personagens tecem reflexões acerca dos entraves do passado suscitadas pelos

dramas existenciais e ideológicos da lógica colonial que sentencia o silêncio, subjugando o

colonizado. Sem Medo, personagem revolucionário que também abandonou seus projetos

particulares para se envolver no MPLA, mostra-se como um sujeito que luta pela unidade

entre os guerrilheiros, esforçando-se para eliminar as diferenças existentes no Movimento e

mobilizar a luta. Sua identidade é, pois, forjada por causas coletivas, busca sempre ofuscar o

peso das perdas pessoais, sobretudo, as consequências que lhe trouxeram a traição de Leli,

mulher a quem amou e a quem abandonou, após sua árdua luta para reconquistá-la.

Paradoxalmente, embora evidenciadas, as questões individuais dos personagens são

eclipsadas pelo desejo de livrarem-se de rótulos genéricos, tais como, escravos africanos, raça

inferior, entre outros. Enquanto Movimento, importava a identidade grupal de guerrilheiros,

queriam alterar as identidades que lhes eram impostas pelo regime colonial. Segundo Joël

Candau (2011), em se considerando o ponto de vista do grupo, a identidade é construída a

partir de acontecimentos; circunstância esta que enfatiza o modo como a memória ressignifica

o passado de um grupo. Dar vazão ao passado estritamente individual incorreria, no caso, na

impossibilidade de refutar a imposição colonial.

Page 142: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 920

O personagem narrador Chefe de Operações, camponês dos Dembos, região

quimbundo e terra do café, foi explorado desde a infância, lutou no Congo em março de 1961.

Estrategista e com tendências tribais, acreditava no apoio das armas contra o exército colonial.

Suas memórias articulam o passado dos colonos em meio à riqueza do café e ressalta as

perdas sofridas pelas invasões, fato que legitima a sua participação na luta armada.

Outro narrador personagem é o combatente Milagre, nascido em Quibaxe, região

quimbundo, com tendência tribal, aprendeu somente as primeiras letras e atribui seus

conhecimentos à revolução. Quando criança fugiu de Angola com a mãe, serviu ainda jovem

ao MPLA a chamado do tio. Suas memórias revelam os acontecimentos de 1961: a morte do

pai, enterrado vivo até o pescoço e outras causas marcaram um passado de dor, perdas e

violência. Observa-se, pelo que nos é dado a conhecer desses personagens, que memórias

coadunantes em muitos aspectos estão na base identitária de homens combatentes. Tornaram-

se guerrilheiros por se recusarem a aceitar as imposições da metrópole. De acordo com

Fanon, “[o] problema da colonização comporta assim não apenas a intersecção de condições

objetivas e históricas, mas também a atitude do homem diante dessas condições” (FANON,

2008, p. 84).

O marinheiro Muatiânvua, personagem narrador nascido em Luanda, centro de

exploração do diamante, é filho de pai bailundo e mãe kimbundo. O pai morreu vítima de

tuberculose, após um ano do seu nascimento, resultado do árduo trabalho nas minas de

diamante. Aderiu à guerra anticolonial e abandonou o mar, durante também os conflitos por

libertação em 1961 e a morte de Patrice Emery Lumumba1. No MPLA, busca mobilizar a

solidariedade entre os combatentes para atenuar os conflitos étnicos. Teoria, conforme já

mencionado, por sua identidade híbrida, no mesmo sentido, articula a conscientização na

guerrilha como professor da Base, politizando os militantes. Ao longo do romance, as

rememorações promovem, de certo modo, a integridade do Movimento.

A despeito de Paul Ricœur (2007) lembrar que uma longa tradição filosófica fez da

memória uma província da imaginação, procedeu ele, na contracorrente dessa tradição que

desvalorizou a memória, a uma dissociação entre memória propriamente dita (voltada para

uma realidade anterior) e imaginação (voltada para o fantástico). Elas teriam como traço

comum a presença do ausente e como traço diferencial, de um lado, a visão do real anterior e,

1Nacionalista revolucionário africano, Patrice Emery Lumumba (1925-1961) foi um mártir da independência do

Congo, assassinado por forças nacionais à serviço de potências estrangeiras, encabeçadas pelo chefe das Forças

Armadas congolesas, Joseph Désiré Mobutu, que seria o chefe de uma ditadura brutal e predadora no Congo

(MALAQUIAS, 2014).

Page 143: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 921

do outro, a visão do irreal. Assim, utilizando-se dos termos gregos mneme e anamnesis para

designar, respectivamente, a lembrança como afecção passiva (phatos) e a lembrança como

objeto de uma busca intencional (recordação), o autor difere a imaginação da rememoração

(daquilo que, de fato, ocorreu). A ameaça entre rememoração e imaginação afeta, segundo

ele, a ambição de fidelidade da memória, no entanto, conforme predicou, nada melhor que a

própria memória para garantir que algo, de fato, aconteceu, antes de se transformar em

lembrança.

A memória, reconheceu Ricœur, poderia se configurar como o equivalente fenomenal

de um acontecimento físico. Um dos pontos que asseguraria tal distinção seria exatamente a

ideia de que a memória pressupõe a existência de algo no passado. Para ele, só há “mimética

verídica ou mentirosa porque há, entre a eikon [imagem-lembrança] e a impressão [registro

dos acontecimentos], uma dialética de acomodação, de harmonização, de ajustamento que

pode ser bem sucedida ou fracassar” (RICŒUR, 2007, p.32, grifo do autor).

Mesmo considerando o risco de fracasso ressaltado por Ricœur, o estudo ora

apresentado só se tornou possível por se considerar, no universo da obra, a ideia de que a

memória pressupõe a existência de algo no passado, nos termos de Ricœur. Desse modo, a

memória é o elemento da trama que fortalece os sujeitos na luta, elemento básico nas ações de

resistência. É ao analisar a identidade de grupo que a memória ganha relevância na análise

aqui empreendida. Assim, a exploração do colonizador realça tal identidade, conforme se

pode perceber no fragmento:

Isso é exploração colonialista. O que trabalha está a arranjar riqueza para o

estrangeiro, que não trabalha. O patrão tem a força do lado dele, tem o exército, a

polícia, a administração. É com essa força que ele vos obriga a trabalhar, para ele

enriquecer (PEPETELA, 2013, p. 35).

Ao tomar consciência de um passado de exploração colonial, ao reconhecer que as

riquezas em Angola são construídas pelo colonizado e usufruídas pelo colonizador,

mobilizam-se os sujeitos no sentido de intervir naquele contexto de exploração, solicitando

uma nova postura diante das imposições coloniais. O trecho supracitado se refere a um grupo

de trabalhadores explorados no interior da floresta na derrubada de árvores para os

colonialistas. Com a chegada dos combatentes e a conversa estabelecida pelo Comissário, eles

não tentaram fugir, pois se sentiram seguros e confiantes em meio ao grupo que tentava

convencê-los do jugo imperialista a que estavam submetidos.

Page 144: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 922

As memórias individuais se coletivizam de modo bem mais complexo que

simplesmente um genérico amor à pátria, porque ancoradas em um passado comum de perdas,

dor, luto, sofrimento, exploração e miséria no contexto colonial em Angola. As mobilizações

efetivadas pela via da memória promovem reflexões, conflitos existenciais e desejo de

eliminar o jugo colonial, elementos que fortalecem a identidade de grupo, favorece a

resistência e projeta os combates a uma nova identidade, visto que se trata de um processo

ininterrupto assim como articula a resistência anticolonial do MPLA.

O presente explicita, pois, novas identidades, aspecto que fica bem evidenciado na

trajetória do Comissário, para dar um exemplo mais explícito. De acordo com o sociólogo

francês Maurice Halbwachs (1990), para que nossa memória se auxilie com as dos outros, não

basta que estas nos tragam seus depoimentos ou apenas revisite o passado, mas é necessário

que as memórias não cessem de concordar umas com as outras “e que haja bastante pontos de

contato [...] para que as lembranças [...] possam ser reconstruídas sobre um fundamento

comum” (HALBWACHS, 1990, p. 34). As representações das memórias e das questões

voltadas para a dominação portuguesa no romance estão alicerçadas na superação da

fragilidade do sujeito colonizado e das diferenças étnicas dos combatentes do grupo.

No processo histórico de colonização figurado no romance, a memória coletiva

fortalece a identidade de grupo na guerrilha, reverberando o testemunho da opressão e a força

que movimenta a busca pela libertação. A memória coletiva possibilita a ressignificação do

passado e das identidades dos sujeitos, reivindicando uma nova ordem social, alicerçando a

necessidade de Angola se constituir como nação livre, a despeito das diferenças étnicas. Desse

modo, pode-se ressaltar que “socialmente o indivíduo não para de enfrentar uma plêiade de

interlocutores eles mesmos dotados de identidades plurais [...] a identidade define-se sempre,

pois, a partir de relações e interações múltiplas” (GRUZINSKI, 2001, p. 53). A narrativa não

condena as identidades construídas socialmente ao longo do período de colonização ao

esquecimento. Ao contrário, coloca em cena as identidades múltiplas e uma plêiade de

narradores com identidades plurais, sempre em construção; contudo, interligadas por um ideal

comum. Esse mobiliário estético revela ambiguidades, os personagens já não surgiam

coerentes em suas ações, isso em virtude da eliminação do narrador onisciente e do

descentramento do ponto de vista da narrativa que, múltiplo – os personagens também

passaram a narrar –, se desloca do enfoque externo para o interno, algo que somente um autor

consciente de que deve agenciar de modo crítico, mas sem prescindir da pesquisa formal pode

empreender; conferindo, para além do caráter documental excelência literária à sua criação.

Page 145: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 923

Referências

BRASIL, Assis. A técnica da ficção moderna. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Paulo:

Contexto, 2011.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:

Cia das Letras: 2001.

HALBWACHS, M. Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. São Paulo:

UNICAMP, 1994.

MALAQUIAS, Sangwangongo. Patrice Lumumba: A ternura do herói de África. Angola:

Cultura - Jornal Angolano de Artes e Letras, 2014. Disponível em:

<http://jornalcultura.sapo.ao/dialogo-intercultural/patrice-lumumba-a-ternura-do-heroi-de-

africa>. Acesso em: 17 abr. 2015

MELUCCI, Alberto. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. Rio Grande do

Sul: Unisinos, 2004.

PEPETELA, Artur Carlos M. P. Mayombe. São Paulo: LeYa, 2013.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alan François et al. Campinas:

Editora da Unicamp, 2007.

Page 146: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 924

ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM

INTERTEXTUAL E MULTIMODAL DO GÊNERO [Voltar para Sumário]

Francilene Leite Cavalcante1 (UNICAP/IFAL)

Roberta Caiado2 (UNICAP)

1. Introdução

No contexto atual, onde a atenção de diversos pesquisadores3 se volta para a análise, o

estudo, a descrição e a explicação dos mais variados gêneros textuais, objetivando possibilitar

meios e maneiras para que haja um ensino de língua preocupado com os gêneros, mediante

seu funcionamento em sociedade, parece pertinente e necessário que se ampliem os estudos

sobre os anúncios publicitários. Afinal, trata-se de um gênero que merece atenção especial por

se fazer presente nas mais diferentes esferas da atividade humana.

Assim, este estudo tem por objetivo analisar, especialmente, os gêneros da esfera

publicitária, dando ênfase às publicidades da Hortifruti por terem se destacado por sua

criatividade e originalidade na divulgação de seus produtos. Propõe-se, portanto, uma leitura

de anúncios publicitários visando demonstrar o critério da intertextualidade e da

multimodalidade, considerando que a produção de sentidos se torna possível não apenas

mediante o conhecimento linguístico dos seus leitores, mas também, na interação com o

conhecimento prévio trazido por eles. A presente análise propõe-se também a refletir de que

forma esses anúncios poderiam ser trabalhados em sala de aula, pela razão de exigirem um

conhecimento prévio por parte do aluno. Desse modo, a exploração do uso de palavras, do

sentido, das imagens, das cores, bem como, a percepção do intertexto podem contribuir para a

formação leitora desse estudante.

Em relação ao conceito de intertextualidade, nos apoiamos nos estudos de Bazerman

(2007) e Koch (2009; 2010). Enquanto para o entendimento da multimodalidade, utilizamos a

1 Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL) – Campus Palmeira dos Índios e Mestranda em Ciências da

Linguagem – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) [email protected]. 2 Orientadora, Professora e Coordenadora da Pós-Graduação – Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

[email protected]. 3 Entre os quais, podemos citar Buzen e Mendonça (2013), Marcuschi (2008), Rojo (2013), Kawoski, Gaydecza

e Brito (2011) numa proposta de interacionismo sociodiscursivo, voltada para o ensino de língua.

Page 147: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 925

teoria da Gramática Visual, a qual tem sido uma referência para analisar gêneros publicitários,

proposta por Kress e Van Leeuwen (1996), os quais defendem que o texto multimodal é o

significado que se realiza por mais de um recurso semiótico, por exemplo, palavras e

imagens; corroborando esta teoria, Dionísio (2011) e Dionísio & Vasconcelos (2013) trazem a

ideia de que todos os gêneros textuais são multimodais.

O presente artigo fundamenta-se, também, na Teoria Cognitiva da Aprendizagem

Multimodal de Mayer (2001, 2009), a qual afirma existir, no ser humano, uma dupla

capacidade de processamento de informação, a verbal e a visual, em situação de

aprendizagem.

Embora já haja trabalhos bastante significativos no campo da intertextualidade

(KOCH & ELIAS, 2009, 2010; MARCUSCHI, 2008; CAIADO e BARROS, 2014), a

multimodalidade é um campo que ainda precisa de mais investigações. Podemos afirmar que

o tema pode não ser tão recente, porém novo é o ângulo observado conforme proposto no

presente trabalho: a intertextualidade, o sentindo e a compreensão, associados ao

processamento cognitivo de aprendizagem multimodal. Desta forma, o trabalho busca trazer

uma contribuição original para o estudo do gênero anúncio publicitário.

2. Concepção de Língua, Texto e Sujeito

Como adentramos num estudo voltado para a linguagem, em uma concepção

sociodiscursiva, faz-se necessário assumirmos o conceito de língua que utilizamos nesta

pesquisa. Levamos em conta seu caráter dialógico, ideológico, social e evolutivo. Nesse

sentido, Bakhtin e Volochinov nos esclarecem que:

[...] a língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma

abstração científica [...] [Ela] não dá conta de maneira adequada da realidade

concreta da língua [que] se constitui num processo de evolução ininterrupto, que se

realiza através da interação verbal social dos seus locutores [onde] suas leis de

evolução linguística [...] não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. [grifos

nossos] (BAKHTIN, 2009[1981] p.131).

Nessa perspectiva, a língua é vista não como um sistema abstrato de formas

linguísticas isoladas, pois é retirado seu caráter ideológico, considerando o signo com valor

imutável e essa abstração não preenche os requisitos necessários para dar conta dos usos reais

dela. Contudo, a língua acontece exatamente através do fenômeno social da interação verbal

que se realiza através da enunciação ou enunciações, tendo em vista que as leis de evolução

linguísticas estão completamente imbricadas às atividades dos falantes.

Page 148: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 926

A definição de língua perdurou muito tempo como um conjunto de regras, exceções,

nomenclaturas e classificações, ou seja, uma prática marcadamente prescritiva, centrada

prioritariamente na identificação e classificação de categorias gramaticais. Por trás dessa

prática, dita tradicional, houve uma concepção formalista de língua que deu origem a esse

conceito estruturalista e metalinguístico.

Percebeu-se dessa forma, que essa concepção formalista não auxiliou muito para a

formação de bons usuários da língua, em suas práticas diversas, visto que, não se fazem usos

reais dela como um processo dialógico que se constitui como um fenômeno vivo, dinâmico e

flexível. Observada por esse ângulo funcionalista, podemos afirmar que seja o mesmo que

compreendê-la de forma dinâmica, contextual, levando em consideração seus usuários, isto é,

dialógica, vai muito mais além de um mero sistema de signos, estático e cristalizado,

impassível de variações ou mudanças.

Nesse sentido, é pertinente ressaltar que uma definição de língua voltada para o

dialogismo requer, necessariamente, levar em conta os textos produzidos na interação, estar

atento não apenas à superfície textual, ao que se vê construído linguisticamente, mas

mobilizar um vasto conjunto de conhecimentos, não apenas linguístico, mas também em seus

aspectos cognitivo e social, tendo em vista trazer um olhar profundo para o não dito, imergir

nos implícitos que ocorrem, (Koch & Elias, 2009), sabendo que a construção do sentido

acontece a partir da interação desses textos com os atores comunicacionais, isto é, com os

sujeitos ideológicos social e historicamente situados, que são participantes ativos no processo

dessa construção comunicativa (Bakhtin, 2011).

A noção de sujeito por nós adotada se vale daquela que parece permear a concepção de

língua considerada por Bakhtin (2009), no que diz respeito ao sujeito participante ativo no

processo de interação verbal.

O posicionamento bakhtiniano se evidencia crítico à ideia de que o sujeito seja

determinado pelo sistema, assujeitado, caracterizado por uma “não consciência”, onde um

discurso estaria sempre predeterminado ao já dito, ocupando ele um posicionamento passivo,

submisso e neutro às outras vozes. A esse respeito:

Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:

porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do

universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa, mas

também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o

seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com

eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um

elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (BAKHTIN,

2011, p. 272)

Page 149: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 927

Nesse sentido, não há ouvinte com compreensão passiva inserido na comunicação

discursiva, todavia, há sim compreensão dialógica ativa responsiva entre falante e ouvinte,

pois baseados nos relevantes conceitos bakhtinianos acerca de sua visão de sujeito, que ocupa

um lugar significantemente ativo e responsivo diante de quaisquer construções discursivas.

A concepção de texto por nós adotada se encontra em Beaugrande (1997, apud

MARCUSCHI, 2008) como sendo “um evento comunicativo em que convergem ações

linguísticas, sociais e cognitivas”, em outras palavras; não se trata de um amontoado de

palavras ou frases soltas, mas um evento interligado a vários elementos, que envolvem tanto

aspectos linguísticos como não linguísticos e aspectos sociais, ativando conhecimentos de

mundo dos interlocutores no processo da interação verbo/social. O que realmente faz um texto

sê-lo é “a discursividade, inteligibilidade e articulação que ele põe em andamento”

(MARCUSCHI, 2008, p.89), pois segundo Beaugrande, “um texto não existe, como texto, a

menos que alguém o processe como tal”. Corroborando desta ideia, Marcuschi afirma:

Primeiro: um texto não é um artefato, um produto, mas é um evento (uma espécie de

acontecimento) e sua existência depende de que alguém o processe em algum

contexto. É um fato discursivo e não um fato do sistema da língua [...]. Segundo: um

texto não se define por propriedades imanentes necessárias e suficientes, mas por

situar-se num contexto sociointerativo e por satisfazer um conjunto de condições que

conduz cognitivamente à produção de sentidos. Terceiro: a sequência de elementos

linguísticos será um texto na medida em que consiga oferecer acesso interpretativo a

um indivíduo que tenha uma experiência sociocomunicativa relevante para a

compreensão. (MARCUSCHI, 2008, p. 89)

Dessa forma, não temos como falar em texto sem mencionar os gêneros textuais, que

são utilizados em diversas práticas sociais, ou seja, são indissociáveis das interações geradas

pelos indivíduos. Cabe a cada um adaptar seu discurso conforme as necessidades e ao meio

em que está inserido, utilizando-se de formas “relativamente estáveis”. O que permite dizer

que “toda manifestação verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero”

(MARCUSCHI, 2008, p.154). Esses gêneros textuais são compreendidos como entidades

sócio comunicativas, padronizadas e recorrentes, contudo, passíveis também de inovação.

Assim, eles devem ser explorados no tocante ao seu funcionamento discursivo, considerando

os sujeitos do discurso, a situacionalidade, a intenção discursiva, os propósitos comunicativos,

o suporte, o domínio discursivo, as tipologias predominantes, visto que são artefatos culturais.

Sendo o texto um acontecimento comunicativo, este deverá seguir segundo Marcuschi

(2008, p. 93) “um conjunto de critérios de textualização”, que para o linguista, constituem-se

não como princípios de boa formação textual e sim como critérios de acesso à produção de

Page 150: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 928

sentido, o que significa que a ausência de um ou mais desses critérios não impede que se

tenha um texto.

Segundo Beaugrande/Dressler (1981, apud MARCUSCHI, 2008) estes critérios são:

coesão e coerência – orientados pelo texto; intencionalidade e aceitabilidade – relacionado ao

caráter psicológico; informatividade – alinhado ao aspecto computacional; situacionalidade e

intertextualidade – norteados pelo caráter sociodiscursivo. Detivemo-nos, apenas, no último

critério – intertextualidade - para fundamentar as análises e reflexões presentes neste trabalho.

3. A Intertextualidade e a Multimodalidade apresentadas como recursos de sentido

3.1 A Intertextualidade

A intertextualidade tem chamado atenção de vários pesquisadores4 que procuram

investigar as relações mantidas entre textos no processo de leitura e produção de sentido.

Existe hoje o consenso de que inexistem textos que não mantenham alguma relação

intertextual.

O termo intertextualidade surgiu de forma elementar, a partir dos estudos literários de

Julia Kristeva, em seu trabalho intitulado: Desejo em linguagem: uma abordagem semiótica

da literatura e da arte5. A intenção da autora foi considerar cada texto constituinte de um

intertexto, numa sucessão de textos já escritos, construindo o conceito de mosaico de citações,

posicionando-se “contra a originalidade radical de qualquer texto” (BAZERMAN, 2007, p.

94). Essa ideia começou a ser incorporada na análise linguística dos textos. Koch (1991, p.

532) traz à lembrança a noção introdutória de intertextualidade quando afirma: “qualquer

texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e transformação de um em outro

texto”. Antes mesmo desse pensamento introdutório da autora em relação à intertextualidade,

Bakhtin (2011[1992]) já analisava e mencionava o fenômeno, mas usando outras

nomenclaturas, como: “multivocalidade, dialogismo e polifonia”. Para ele, tudo isso não

ocorre só no diálogo face a face, mas vai além dele, nas relações humanas. Assim, para a

Linguística Textual, há intertexto na fala, na escrita e até em textos não verbais dentro de uma

interação social. A intertextualidade contribui para a construção dos sentidos do texto, ou seja,

ela ocorre quando um texto está em outro texto que já existe e faz parte da memória coletiva,

4 Dentre os quais, podemos citar Bazerman (2007); Marcuschi (2008); Koch (2009, 2010, 2013); Koch, Bentes e

Cavalcante (2008); Silva, Caiado e Barros (2014); Freitas (2012). 5 Desire in Language: a Semiotic Approach to Literature and Art, publicado na tradução inglesa em 1980.

Page 151: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 929

é parte constitutiva do mesmo. Afinal, nosso discurso é individual, mas não surgiu puramente

de nós, e sim a partir da continuidade de discursos anteriores, como uma enorme cadeia.

A partir de Koch (2010), podemos analisar a intertextualidade dos anúncios

publicitários tanto na ordem explícita quanto na implícita. A primeira ocorre quando a

intertextualidade pode ser percebida e se encontra no próprio texto, na superfície, como:

citações, referências, discursos relatados, entre outros. Para que a segunda ocorra, a ordem

implícita, é preciso ter um conhecimento prévio do que está sendo dito no texto, como

acontece nas alusões, paródias, certos tipos de paráfrases, entre outros.

3.2 A Multimodalidade

O termo multimodalidade está aqui sendo empregado como a combinação de recursos

semióticos no texto, onde os modos, sejam eles de: escrita, imagens, cores, tamanho, ritmos,

efeitos visuais, melodias são realizados num mesmo gênero e percebidos através de mais de

uma modalidade sensorial (visual, auditiva e olfativa), estabelecendo relação entre si, e, como

consequência, estabelecendo a construção do sentido pretendido.

Para Dionísio & Vasconcelos (2013, p 19), vivemos em “um grande ambiente

multimodal, no qual palavras, imagens, sons, cores, músicas, aromas, movimentos variados,

texturas, formas diversas se combinam e estruturam um grande mosaico multissemiótico”. Por

isso, “nossos pensamentos e nossas interações se moldam em gêneros textuais”.

A multimodalidade, que pode estar presente em todos os contextos da vida social,

comporta textos que realizam seus significados através da utilização de mais do que um

código semiótico, segundo Kress e Van Leuween (1996, apud DUARTE, 2010). Esses

autores propuseram a Gramática do Design Visual6, a qual analisa os elementos da linguagem

visual vinculados na semiótica social, que tem por base teórica a multimodalidade. Isso é

ainda mais visível em anúncios publicitários, visto que, além de compreensão, buscam,

também, persuasão.

3.2.1 A Teoria Cognitiva de Aprendizagem Multimodal

6 É imprescindível destacar que os autores, assim como Dionísio (2005), não defendem a prioridade de uma

linguagem sobre a outra, mas há uma relação harmônica entre a semiose verbal e a não verbal, funcionando em

um texto na forma como são combinados.

Page 152: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 930

Para Mayer (2001, 2009), os recursos semióticos ou a multimodalidade são essenciais

no processo ensino-aprendizagem em diversas áreas, a partir de sua Teoria Cognitiva de

Aprendizagem Multimodal (doravante TCAM). Estudantes, por exemplo, terão um maior

êxito no seu desempenho, trabalhando os dois campos, o visual e o verbal: palavras e

imagens, do que apenas um: palavras ou imagens.

Para a efetivação do sentido, o leitor ativa pelo menos dois canais de processamento da

informação: o visual e o auditivo, trata-se da teoria cognitiva de aprendizagem multimodal,

segundo Mayer7:

[...] existe uma dupla capacidade de processamento de informação, a verbal e a

visual, e que o aluno, em uma situação de aprendizagem, poderá ter melhor êxito se

estes dois canais forem utilizados de forma eficaz ou as questões enfatizadas pela

neuropsicologia referentes às funções neuropsicológicas envolvidas em cada

situação de aprendizagem. (MAYER, 2001, 2009, apud DIONÍSIO;

VASCONCELOS, 2013, p. 20)

Para essa teoria, os estudantes aprendem melhor a partir de uma explanação que se

utilize de palavras e imagens do que, propriamente, apenas de palavras e defende que a

utilização somente do modo verbal desconsidera o potencial do sistema humano de

processamento do modo visual. Isso nos leva a crer que o aluno está pronto a estabelecer um

entendimento mais eficaz com o uso de palavras e imagens simultaneamente.

4. Análise de textos publicitários: uma abordagem semiótica e intertextual

Os anúncios publicitários possuem a finalidade de nos convencer quanto a produtos,

serviços e marcas que devemos consumir. Esse efeito persuasivo, característica própria do

gênero, além de orientar nossas escolhas, também modifica comportamentos, modo de viver e

influencia os valores, a cultura, a política, enfim, a sociedade como um todo.

O intensivo apelo visual nesses textos é muito recorrente, as imagens dialogam com a

linguagem verbal, construindo inúmeros efeitos de sentidos com o intuito de fortalecer,

divulgar e vender seus produtos, que podem ser desde objetos consumíveis até a propagação

de uma ideologia. Por isso, é de suma relevância analisar o fenômeno da multimodalidade e

da intertextualidade no gênero anúncio publicitário, tanto em termos da sua natureza

7 É professor de Psicologia da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. Sua pesquisa sobre a Teoria Cognitiva

de Aprendizagem Multimodal apresenta três pressupostos quando se trata em aprender com a multimodalidade:

1. O ser humano possui canais de processamento de informação separados (visual e verbal); 2. A capacidade de

processamento da memória é limitado; 3. A aprendizagem requer um processamento cognitivo essencial em

ambos os canais, isto é, inclui prestar atenção, organizar a nova informação e integrá-la no conhecimento já

existente.

Page 153: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 931

constitutiva, quanto das implicações ideológicas em contextos de uso na aprendizagem,

principalmente, na atividade de leitura/compreensão.

4.1 Análise do corpus

Nosso corpus foi composto de dois anúncios publicitários da Rede Hortifruti, hoje,

considerada uma das maiores redes de hortifrutigranjeiros do país, com vinte e oito lojas

localizadas nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo. Os textos publicitários

das campanhas são veiculados, em material impresso, na Revista O Globo – (encarte do jornal

O Globo), de abrangência nacional, e os produtos anunciados são legumes, verduras e frutas.

É inegável que o produtor desses anúncios utiliza uma linguagem marcadamente

multimodal, ou seja, usa fontes de letras diferenciadas, cores variadas, imagens diversas

associadas a trocadilhos de palavras, valorizando a multiplicidade de recursos, como os

intertextos, as metáforas, os jogos de palavras, as metonímias, as paródias, todos relacionados

às imagens que ilustram o texto que formam esses anúncios, com a finalidade de divulgar seu

produto, fazê-lo conhecido e, como consequência disso, espera-se a aceitação por parte do

consumidor e sua inevitável compra.

4.1.1 As propagandas da Hortifruti: Horta de Elite

Para a análise, selecionamos alguns anúncios publicitários veiculados no site da

empresa Hortifruti, encartes do jornal O Globo e outdoors, através da campanha Hollywood,

que busca se apoiar nos clássicos do cinema nacional e internacional. Passaremos a seguir às

suas apresentações:

Figura 1: Anúncio da Hortifruti8

Figura 2: Filme Tropa de Elite9

8Disponível em: <http://www.alunosonline.com.br/upload/conteudo/images/intertextualidade-com-filme-tropa-

de-elite.jpg>. Acesso em: 02-05-2014.

9Disponível em: <http://marcosself.files.wordpress.com/2010/11/tropadeelite1.jpg>. Acesso em: 02-05-2014.

Page 154: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 932

Observa-se que a figura 1, imagem da campanha, busca a retomada de elementos que

originam sentido quando o leitor traz à memória o texto que deu origem ao presente anúncio,

isso constrói um novo significado. No anúncio, a intertextualidade se faz presente a partir de

recursos semióticos: a imagem de um tomate com uma boina que remete à imagem original

do personagem “Capitão Nascimento”, interpretado pelo ator Wagner Moura, no filme Tropa

de Elite. Percebe-se, também, que as fontes das letras que são utilizadas no anúncio,

assemelham-se às do cartaz do filme; a presença das cores de fundo: preto e marrom, bem

como a linguagem verbal e não verbal que compõem a multimodalidade do texto.

Verifica-se que o produtor se utilizou da vasta possibilidade dos aspectos multimodais

para criar a campanha da Hortifruti, tomando como referência o símbolo de uma caveira que

representa a letra “o” na palavra “TROPA” e o símbolo do BOPE, no cartaz de divulgação do

filme, reconstruído a partir da mesma letra “o” na palavra “HORTA”, que nos remete a ideia

de talheres, dentro de um tipo de legume semelhante ao próprio tomate, criando-se um novo

símbolo. Há, também, a associação e a aproximação fônica entre “tropa” e “horta”.

Além disso, outro aspecto relevante é a frase contida no anúncio: “Se não for

Hortifruti, pede para sair”; trata-se de uma expressão empregada pelo personagem “Capitão

Nascimento” durante o enredo do filme, o qual tem por objetivo pôr à prova a permanência no

treinamento: apenas aqueles homens corajosos, destemidos, desprovidos de covardia ficam no

BOPE. Percebe-se, ainda, que o produtor não escolheu qualquer filme para utilizar como

intertexto em seu anúncio, mas sim um filme de grande repercussão, antes mesmo de seu

lançamento, sendo o primeiro nas bilheterias, isto é, um filme bem-sucedido, que chegou ao

alcance de grande parte dos brasileiros.

4.1.2 As propagandas da Hortifruti: Pepino Maluquinho

Nos dois exemplos abaixo, a linguagem verbal e não verbal remetem a enunciados já

conhecidos pelo leitor. As fontes, as cores, a própria arrumação/organização do título e a

imagem remetem a enunciados já conhecidos. Passemos para mais uma análise:

Page 155: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 933

Figura 3: Anúncio da Hortifruti10 Figura 4: Filme O menino Maluquinho11

Nota-se, nesse exemplo, que na figura 3, a imagem publicitária da Hortifruti retoma

características que fazem o leitor se recordar do texto que se encontra na base da produção do

anúncio da figura 4 – “Menino Maluquinho”, objetivando construir um novo sentido ao que

foi dado anteriormente. Observa-se que o produtor do anúncio se utilizou, mais uma vez, da

associação de imagens e da aproximação fônica do título: “menino” e “pepino”. Outra

característica relevante é o subtítulo contido no anúncio: “O mais levado da Hortifruti” que

não é visualizado no título do cartaz do filme, porém, nos faz refletir acerca do significado

subtendido da palavra “levado” que, no intertexto, significa: arteiro, travesso, e nos leva a

associar a uma das características que o “Menino Maluquinho” possui. O significado dessa

mesma palavra “levado”, na figura 3, é distinta, pois trata-se de uma expressão utilizada com

o sentido de ser esse o mais levado, o mais comprado da Hortifruti, e não por ter

características de traquino.

Analisando o anúncio com sentido reconstruído, fica perceptível que se caracteriza

pela utilização de recursos semióticos, representados pela panela no pepino, semelhante à

utilizada pelo “Menino Maluquinho” na ilustração da capa do filme, tratando-se de um traço

peculiar da personagem. Percebe-se, também, a semelhança das fontes das letras e a

diversidade das cores, inclusive a cor amarela que aparece como pano de fundo nas duas

ilustrações, seguindo a sequência exata do título do filme representando a multimodalidade,

presente nos anúncios e prenunciando a intertextualidade também presente.

Considerações Finais

Esta pesquisa foi motivada pelo interesse em investigar como a intertextualidade e a

multimodalidade auxiliam na produção de sentidos dos anúncios publicitários da Hortifruti,

levando em consideração a seu propósito comunicativo de convencimento do leitor a uma

ação de compra do produto anunciado.

Consideramos que a compreensão de tais anúncios se torna possível mediante, não

apenas o conhecimento linguístico partilhado entre os usuários da língua, pois o gênero

estudado direciona o leitor a ativar outros conhecimentos como o cognitivo, aspectos

10Disponível em: <http://www.hortifruti.com.br/campanhas/hollywood.html>.Acesso em: 02-05-2014.

11Disponível em: <http://admgeral.files.wordpress.com/2013/03/menino-maluquinho-poster01.jpg>. Acesso em:

02-05-2014.

Page 156: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 934

históricos e sociais, que evidenciam o conhecimento prévio trazido por cada pessoa e

contempla as semioses verbal e não verbal do gênero. Dessa forma, torna-se o leitor

participante, de forma ativa, da construção do sentido.

O tratamento didático em atividades de leitura favorece a mobilização de capacidades

leitoras específicas dos alunos para esse gênero. A presente análise também se preocupou em

traçar uma abordagem de como esses anúncios poderiam ser trabalhados em sala de aula, pela

razão de exigirem um conhecimento prévio por parte do aluno, e considerando-se, também, a

teoria da aprendizagem multimodal, explorando os canais de processamento de informação

através do uso de palavras, das imagens, das cores, bem como, a percepção do intertexto, que

podem contribuir para a formação leitora desse estudante.

Assim, acreditamos que nossa pesquisa contribuiu para o estudo de gênero, no que

tange à verificação do sentido a partir da ativação de diversos conhecimentos do leitor,

associando novas informações através dos canais de processamento (visual e verbal),

tornando-se imprescindível a abordagem de que a leitura e a análise desses textos publicitários

auxiliam na formação leitora do indivíduo, deixando este de ser apenas um elemento passivo,

mas tornando-se sujeito ativo no processo da comunicação.

Referências

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 6ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2011 [1992].

______. Marxismo e a filosofia da linguagem. Trad. de M. Lahud e Y. F. Vieira. 13. ed. São

Paulo: Hucitec, 2009 [1981].

BAZERMAN, Charles. Escrita, gênero e interação social. São Paulo: Cortez, 2007.

BUZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (orgs.) Múltiplas linguagens para o ensino médio.

São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

DIONÍSIO, Ângela Paiva; VASCONCELOS, Leila Janot de. Multimodalidade, gênero

textual e leitura. In: BUZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (orgs.) Múltiplas linguagens

para o ensino médio. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

______. Gêneros textuais e multimodalidade. In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B. &

BRITO, K. S. (orgs.) Gêneros textuais: Reflexões e ensino. 4ª ed. São Paulo: Parábola, 2011,

p.137-152.

DUARTE, Luciana Costa Rodrigues de Paula. O gênero anúncio: uma análise multimodal e

semiolinguística da construção argumentativa. Disponível em: <http://www.gelne.org.br/Site/

arquivostrab/780-Multimodalidade.pdf>. Acesso em 04 mai. 2014.

Page 157: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 935

FREITAS, Antonio Carlos Rodrigues de. “A intertextualidade em anúncios publicitários sob

um olhar pedagógico”. Niterói – RJ, 2012. 124 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da

Linguagem) – Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal Fluminense.

KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz & BRITO, Karim Siebeneicher (Orgs.).

Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed., 2ª reimpressão. São

Paulo: Contexto, 2013.

______; ELIAS, Vanda M. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3ª ed. São Paulo:

Contexto, 2010.

______; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo:

Contexto, 2009.

______; BENTES, A.C.; CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: diálogos possíveis. 2. ed.

São Paulo: Cortez, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São

Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MAYER, Richard. Multimedia Learning. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

______. Multimedia Learning. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

ROJO, Roxane. Escola conectada: os multiletramentos e as TIC’s. São Paulo: Parábola,

2013.

SILVA, Gutemberg Lima da; CAIADO, Roberta; BARROS; Isabela do Rêgo. Linguística

textual e nova retórica: a intertextualidade por Koch e Bazerman. In: BARROS, Izabela do

Rêgo... [et al]. 1. ed. Curitiba, PR: CRV, 2014.

Page 158: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 936

O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE:

OS CONFLITOS VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM

MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO DA EAD1

[Voltar para Sumário]

Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)

Introdução

A partir das duas últimas décadas do século passado, a sociedade vem passando por

grandes mudanças nos vários campos que a constituem - político, econômico, social,

científico e tecnológico -, que incidem diretamente nas práticas culturais, nas interações

humanas e, em decorrência, nas educacionais. Tudo isso faz com que a prática docente sofra

modificações, exigindo do professor competências várias para atender às exigências tanto das

políticas públicas educacionais quanto de modernas formas de instrumentalização, como o

uso das novas tecnologias, como de novas maneiras de mobilizar conhecimentos e saberes,

implicando, assim, na apropriação de novas formas do saber-fazer. Além disso, ainda é

exigido do docente competência linguístico-discursivo-textual para promover a interação

através de instrumentos verbais e não verbais além das diversas mídias. Sem contar que toda

a sua ação, além de ser criativa e interessante, deve respeitar prescrições institucionais e do

coletivo de trabalho, por isso passa por ajustamentos os quais implicam em conflitos

constantes (CLOT, 2010), já que o professor precisa atender a três instâncias da atividade, a

saber: o trabalho prescrito, aquele representado pelas injunções do sistema educacional; o

planejado pelo sistema de ensino; e o efetivamente realizado pelas ações específicas do

contexto escolar (MACHADO, 2002; AMIGUES, 2004; BRONCKART, 2006, 2008). Em

vista disso, a prática docente torna-se uma atividade complexa, conflituosa, que mobiliza

entre outras "as dimensões cognitivas, afetivas, didáticas, sociais, históricas, psicológicas,

identitárias" (AMIGUES, 2004, p. 39), implicando na mobilização de saberes vários,

demandando, consequentemente, letramentos a eles correlacionados.

1 Os dados empregados na análise fazem parte do corpus da minha tese em andamento.

Page 159: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 937

Ciente desse cenário e restrigindo-me à educação a distância (EaD), especificamente

ao trabalho do professor-autor, responsável pela produção do material didático impresso

(MDI), proponho, neste artigo, analisar as ações desse profissional, recaindo as minhas

reflexões sobre o trabalho planificado e os conflitos que circunscritos naquelas. Para tanto,

valho das verbalizações sobre a experiência vivida naquele tipo de atividade, de modo que os

resultados possam trazer ponderações sobre os desafios inerentes à atividade autoral e a

necessidade de mais pesquisa científica com foco na EaD a fim de fortalecer essa modalidade

de ensino, que se expande cada vez mais na sociedade tecnológica.

Tive como colaboradora uma professora de Língua Portuguesa de um curso de

Letras, com mais de 20 (vinte) anos no ensino presencial em uma universidade pública de

Campina Grande-PB, e, há 05 (cinco) anos, atua na EaD, como professora e professora-autora

de mais de um MDI.

Os meus dados foram gerados por meio de uma entrevista semiestruturada, pois

acredito, assim como Bulea (2010, p. 38-9), na sua funcionalidade, pois trata de um

"dispositivo técnico" que oportuniza "compreender estratégias de interpretação do agir", por

meio da mobilização de mecanismos textual-discursivos os quais deixam evidenciar

"pensamentos dos atores concernentes a seus comportamentos sociais e de seus estados

mentais" Assim, a verbalização é certamente um caminho para observar conflitos nas

representações que o sujeito faz de si mesmo (a professora-autora) e do objeto em estudo (o

MDI).

Esta investigação, portanto, centrada na docência superior, apresenta breves

considerações sobre o letramento acadêmico e, em seguida, algumas sobre o trabalho docente

à luz do (ISD), conforme Bronckart (1999, 2006, 2008), Machado (2002, 2007) entre outros,

associando ainda as reflexões da Ergonomia (SAUJAT, 2004) e da Clínica de Atividade

(CLOT, 2010) sobre o trabalho enquanto atividade, a fim de verificar os efeitos e os conflitos

vivenciados pela professora-autora nos dados analisados.

1. Letramento acadêmico e a produção do MDI

Street (1984, p.1) designa letramento as "práticas sociais e concepções de leitura e

escrita" assumidas por um indivíduo ou grupo social. O letramento, segundo Barton e

Hamilton (2005), constitui-se de dois fenômenos: as práticas de letramento e os eventos de

letramentos. As primeiras estão correlacionadas às crenças, concepções e valores conferidos à

leitura e à escrita em determinado contexto. São, portanto, práticas culturais discursivas, logo

constituídas de poder ideológico, voltadas para a orientação e para a produção e interpretação

Page 160: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 938

de textos nas suas esferas sociais2, haja vista refletirem as relações estabelecidas, normas e

poder de ação junto aos participantes da situação interativa. Já os segundos, os eventos de

letramento, são referentes a situações em que o texto escrito é o elemento essencial da

interação e produção de sentidos.

Sobre as práticas de letramento no contexto acadêmico, Street (2010, p. 5), defende

que essas mantêm relação direta com questões de "construção de sentidos, identidade, poder e

autoridade, e coloca em primeiro plano a natureza institucional do que “conta” como

conhecimento em qualquer contexto acadêmico específico". Tais questões são cruciais para o

professor saber lidar com novos eventos de letramento, que requeiram, além do domínio da

escrita e de práticas acadêmicas e de saberes didático-teórico-metodológicos, novas práticas

que exigem novas formas de saber e de fazer, como é o caso da produção de material didático

escrito realizada por um professor da EaD.

Este docente depara-se com atividades não só de ensino, que, por ser uma

modalidade a distância por si só já exige novas práticas, como também as tradicionais de

pesquisa, vivenciadas no ensino presencial, tais como relatórios, artigos, resenhas etc,

somando-se ainda a de elaboração do MDI - um misto de aula interativa e de livro didático.

Tal atividade exige do professor aptidões para a apropriação e transformação dos

conhecimentos tanto teórico-didático-metodológicos quanto simbólicos, o que requer daquele

tomada de atitudes e comportamentos próprios da profissão para reconfigurar sua prática e

demonstrar autonomia sobre ela.

Sobre o MDI, Aretio (2011\2001) observa que deve constar de algumas

características fundamentais: i) Apresentação clara dos objetivos que se pretende com o

material em questão; ii) Linguagem clara, de preferência coloquial; Redação simples,

objetiva, direta, com moderada densidade de informação; iii) Sugestões explícitas para o

estudante, no sentido de ajudá-lo no percurso da leitura, chamando-lhe a atenção para

particularidades ou ideias consideradas relevantes para seu estudo; e iv) Convite permanente

para o diálogo, troca de opiniões, perguntas.

Tais características deixam salientar a preocupação de Aretio com o emprego da

linguagem, para a elaboração do MDI, principalmente por se tratar da modalidade escrita, que

requer um conjunto de capacidades linguístico-discursivas próprias dos tipos de discursos,

segundo a perspectiva bronckartiana3: do mundo do NARRAR – a narração e o relato

interativo, e o do mundo do EXPOR - o teórico e o discurso interativo - que podem ser

2 Tomo aqui esfera social conforme concepção bakhtiniana 3 Sobre os tipos de discursos, conferir Bronckart (1999).

Page 161: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 939

conjuntos ou disjuntos, implicados ou autônomos, em relação à ação da linguagem; e as

unidades linguísticas empregadas para servir de interface entre o mundo da pessoa

(representações individuais) e os mundos sociais (representações coletivas) (BRONCKART,

1999/2003). Ou seja, a linguagem empregada no MDI se constitui do discurso misto

interativo teórico, aproximando-se, assim, do tipo de discurso característico da exposição

oral do ensino presencial.

Vale ressaltar, no entanto, que nem sempre isso é fácil, dado a prática da exposição

didática, por meio de texto escrito para o ensino superior ser relativamente nova enquanto

atividade responsável do professor universitário. Isso quer dizer que, mesmo ele tendo

registro de autoria em trabalhos acadêmico-científicos, não há garantia do êxito em sua

performance em didatizar conteúdos e retextualizar situações de ensino, ainda que lance mão

de instrumentos materiais e simbólicos para facilitar a compreensão e que domine o saber

científico e didático, porque os implícitos ou os silenciamentos próprios do discurso podem

ser um fator de embaraço para a interação. Tal situação ganha amplitude com a incerteza do

auditório social, graças à grande diversidade dos alunos EaD.

Não se deve esquecer ainda que todo trabalho com a linguagem é eminentemente

político e ideológico, então o MDI ultrapassa a concepção de instrumento de mero suporte

para o conteúdo programático, tornando-se um campo de tensões, que serve para debates,

argumentações entre as representações sócio-político-econômico-culturais entre os

interlocutores que o utilizam. Enfim, o MDI é mais uma das atividades do trabalho docente

da EaD e, como tal, passa pelos critérios prescritivos e de reconfigurações de acordo com as

aquisições de letramento do professor-autor, processo esse que provoca conflitos, angústias e

inquietações.

2. O MDI: as reconfigurações e os conflitos docentes

Para falar das reconfigurações e os conflitos provenientes destas no processo de

produção do MDI, parto das considerações do ISD sobre o conceito de trabalho docente como

uma atividade "governada por motivações, finalidades, regras e\ou normas de ordem coletiva

e social" (BRONCKART, 2006, p. 211) e que, por isso mesmo, tem implicações nos

comportamentos efetivos dos indivíduos, limitando-os, por um lado, em sua liberdade de

fazer, devido a concepções, valores, enfim suas histórias de vida, mas, por outro, também

representa um fator de desenvolvimento humano (BRONCKART, 2006, 2008).

Page 162: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 940

Já a Ergonomia e a Clínica de Atividade evidenciam com mais precisão a sutileza do

trabalho educacional, como afirma Bronckart (2006, p. 208): a primeira "mostra o conjunto

das diferenças existentes entre o trabalho prescrito -representado pelas normas e regras,

textos, programas e procedimentos que regulam as ações- e o trabalho real (realizado) - ações

efetivamente realizadas -, enfatizando, sobretudo, o desconhecimento generalizado das

características do trabalho real "e, a segunda, através de métodos de análise de trabalho pelo

próprio sujeito observado, possibilita emergirem os "diferentes estilos adotados pelos

trabalhadores para realizar uma mesma tarefa, as astúcias ou os atalhos que inventam, apesar

das prescrições, os recursos cognitivos que mobilizam, as dimensões afetivas, relacionais e

identitárias de seu trabalho etc". Isso quer dizer que tanto a Ergonomia da Atividade como a

Clínica da Atividade consideram o trabalho realizado e todas as implicações que estão a ele

ligadas: sucessos, fracassos, adaptações etc., o que Clot&Faïta (2000) denominam de trabalho

real - diferentemente da concepção de trabalho realizado, é aquele cuja atividade não se

restringe ao que é observável, envolvendo também o não realizável, devido aos mais diversos

impedimentos, correspondendo, assim,ao real da atividade: "aquilo que não se fez, que não se

pôde fazer, que se tentou fazer sem conseguir, que se teria querido ou podido fazer, que se

pensou ou que se sonhou poder fazer, o que se fez para não fazer aquilo que seria preciso

fazer ou o que foi feito sem o querer" (CLOT, 2007, p. 16).

O trabalho, portanto, é influenciado pelas emoções e afetos do sujeito, fato esse que

concorre para (re)adaptações constantes influenciadas pelas condições subjetivas e objetivas,

referentes ao espaço/meio e aos artefatos/instrumentos empregados, implicando em um

redimensionamento do fazer agentivo sócio-historicamente situado, sem perder de vista o

prescrito. É esse olhar sobre a subjetividade que torna o trabalho uma atividade diferente de

outras, por ser uma atividade triplamente dirigida: pelo e para o sujeito, para o objeto e para

os outros, "mobilizando o gênero de atividades adequado à situação. No entanto, é necessário

vê-la como um todo singular em que cada um dos elementos tem sempre os dois outros como

pressupostos" (CLOT, 2007, p.102).

A concepção de gênero de atividade tem sua base na noção bakhtiniana de gênero

do discurso: “formas relativamente estáveis de enunciados”, que sofrem as interferências

sociais e subjetivas e, por isso, passa por permanente modificação. O gênero de atividade

profissional exerce a função social de mediar o indivíduo no contexto de trabalho e as suas

instâncias organizadoras e prescritivas. Nas palavras de Clot&Faïta (2000, p. 11), é “de algum

modo, a parte subentendida da atividade daquilo que os trabalhadores de um determinado

meio conhecem e veem, esperam e reconhecem, apreciam e temem”. O gênero de atividade

Page 163: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 941

profissional seria, então, a própria história da atividade partilhada por um grupo de

trabalhadores, constituída por regras, modos de dizer, modos de fazer, anseios e perspectivas.

Embora guiada por um conjunto de normas, é sempre passível de intervenções particulares,

nas quais as ações imputadas pelo trabalhador mantêm uma relação dialógica com os pré-

construtos coletivos: ora mobilizando-os ora reconfigurando-os e até redefinindo-os, o que

determinaria a subjetividade ou estilo do saber-fazer.

Enfim, corroborando Clot (2007), ao falar do aspecto da subjetividade como um

espaço escondido da atividade que remete à consciência do saber-fazer, logo responsável pela

definição estilística do trabalhador, compreendo que esse processo de estilização é

acompanhado de conflitos, impedimentos, angústias, satisfações e insatisfações sobre o

trabalho realizado, pois o trabalhador sabe que aspectos importantes são avaliados, tais quais:

o cognitivo, porque é avaliado o conhecimento para poder saber-fazer diferente e coerente

com o já estabilizado; o psicológico, porque todo fazer é constituído de conflitos entre o

estabilizado e as especificidades subjetivas, demandando, assim, tomada de decisão; e o

social, porque explicita capacidade criativa e baliza a qualidade do trabalho (CLOT, 2007).

São conflitos desse porte que analiso a seguir, embora saliento que a separação analítica é

puramente metodológica já que eles são naturalmente imbricados.

3. Alguns conflitos representados na voz da professora-autora

Para analisar os conflitos emergidos das verbalizações que serviram de dados para

esta pesquisa, parto do conceito do termo agir, sob o ponto de vista teórico-metodológico do

ISD, que distingue o agir geral do agir de linguagem, embora exista uma relação indissociável

entre eles, o segundo vai além do observável, favorecendo interpretações do primeiro. Vale

salientar que todo actante do agir é dotado de recursos, fruto das apropriações dos pré-

construídos, dos mundos formais e das capacidades de agir (Bronckart, 2006, 2008), sendo

denominado de ator, quando lhe são conferidas capacidades, motivações e intenções, logo

passível de interpretações e avaliações por meio de aspectos linguísticos do texto. Sendo

assim, concebo à professora colaboradora desta pesquisa a função de atora.

Para análise, separei apenas quatro fragmentos da entrevista, mas que permitiram

observar alguns conflitos de ordem cognitiva, psicológica e social da professora ao refletir

sobre o trabalho realizado, ou seja, sobre a produção do MDI.

Representações de conflitos cognitivos

Page 164: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 942

Várias partes da entrevista deixam transparecer a angústia da professora por ser

desafiada para uma atividade muito nova, para a qual ela não estava preparada, representando

um tipo de conflito, o cognitivo, quase sempre vivenciado por profissionais inexperientes ou

quando assumem uma função diferente da antes exercida, o que se depreende dos fragmentos

abaixo:

P: é, e como você chegou, a essa modalidade do Ensino a Distância?

C1: eu fui convidada por uma amiga, a produzir um livro, eu nem sa:bia/, eu sabia o

que era Educação a Distância, óbvio,ma eu na sabia,COmo, como isso acontecia,

como era, aí ela me chamou pra produzir um livro, e em seguida, pra ministrar a

disciplina do livro que eu produzi.

O trecho revela que a professora desconhecia até mesmo o procedimento de ensinar

por meio da EaD, quando ela eleva a voz para pronunciar o "COmo" deixa escapar o ápice do

seu conflito. De que maneira ensinar se nem sabia do que se tratava, "como isso acontecia" e

ainda mais ser convidada para produzir um livro e depois ministrar a disciplina desse próprio

livro? O temor aí deve ser por não ter nenhuma memória dos pré-construídos da EaD nesta

fase atual, com uso das tecnologias e, principalmente, por se tratar de um curso superior.

Sendo ela professora do curso de Letras presencial e consciente dos desafios desse trabalho,

imagina como seria trabalhar à distância e escrever um livro didatizando todo conteúdo

disciplinar. Normal os sentimentos de angústia, medo, incertezas de se envolver numa

atividade que, embora conflitante, é convidativa.

Num outro trecho, a colaboradora deixa transparecer a preocupação com a

planificação do trabalho, com o atendimento ao trabalho prescritivo:

P: humrum, e como é que foi essa preparação, pra você atuar,enQUANto professora

autora?

C1: bom, primeiro, eu/ a gente teve uma reunião, eu recebi a ementa (pega o livro e

começa a folheá-lo), e: a partir dessa ementa eu fiz o seguinte, eu vinculei conteúdo

à ementa, eu fiquei pensando “o que é que eu vou FAzer, como é que eu vou,

preparar aula pra um aluno que eu não sei quem é, eu não tenho a mínima ideia de

como seja/ de como é esse aluno, que/que perfil ele tem, então eu pensei o seguinte,

essa ementa, eu acho que esses alunos ((fecha o livro)), em reuniões anteriores eu

soube que ele vieram da Pla/Plataforma Freire, não fizeram vestibular: ((abre o livro

novamente)), entraram direto na universidade, e que as dificuldades eram muitas,

inclusive na hora até de preencher a fichinha... de matrícula, então eu fiquei

pensando, eu vou tomar como referência meus alunos do presencial, os feras que

também chegam com muita dificuldade na/na universidade,((folheando o livro))

Duas interpretações podem inferidas desse excerto. A primeira voltada para o

atendimento ao trabalho prescrito, tanto é que o único documento institucional apresentado

Page 165: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 943

em reunião foi a ementa, a professora apegou-se a esse instrumento para definir a dimensão

do saber a ser ensinado, isto é, a seleção do conteúdo, representado pelo enunciado "vinculei o

conteúdo à ementa". Mas isso não seria suficiente para a dimensão praxiológica, o como

fazer, a inquietação em como construir modelos didáticos para EaD, em como realizar a

transposição didática para um MDI era bastante evidente na passagem "o que é que eu vou

FAzer, como é que eu vou preparar aula". A segunda situação é relativa ao desconhecimento

dos mecanismos de interação, aspecto determinante do MDI para promover a interlocução

com o aluno a distância, um estranho, como se compreende do enunciado "um aluno que eu

não sei quem é, eu não tenho a mínima ideia de como seja/ de como é esse aluno, que/que

perfil ele tem".

Esses fragmentos textuais deixam escapar a inexperiência da professora com a EaD, o

que ela pensa e sente, inclusive sua concepção e crenças sobre essa modalidade de ensino, o

que se pode depreender de "eu soube que ele vieram da Pla/Plataforma Freire, não fizeram

vestibular: ((abre o livro novamente)), entraram direto na universidade, e que as dificuldades

eram muitas, inclusive na hora até de preencher a fichinha... de matrícula". A concepção,

portanto, é de que o público da EaD é composto por alunos com pouco letramento formal, já

que não passaram por um processo de seleção para adentrarem na academia, enfim, alunos

sem nível intelectual mínimo para atender às prerrogativas daquele ambiente cultural. Isso

pode ser entendido pelas formas verbais "inclusive" e "até"que denominam alto grau de

argumentatividade, além do diminutivo "fichinha", que pode indicar a pouca preparação desse

aluno até mesmo numa ação que exige pouca intelectualidade como o fato de "preencher a

fichinha... de matrícula".

Enfim, conflitos cognitivos fazem parte da atividade docente, inquietações como essas

põem em relevo a necessidade da professora em querer desenvolver um trabalho responsável,

consoante com as prescrições, com os seus afins do coletivo de trabalho, sem perder a sua

subjetividade, aspectos esses que apenas o conhecimento do conteúdo temático não garante o

saber-fazer na EaD.

Representações de conflitos psicológicos

Esse segundo tipo de conflito, o psicológico, representa um jogo entre os pré-

construídos e as possíveis reconfigurações a serem realizadas, o que demanda tomada de

decisão de modo a demarcar a subjetividade no trabalho, alinhada à coerência com o já

estabilizado, processo em que angústias são manifestadas, como no excerto seguinte.

Page 166: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 944

P: humrum, e como é que foi essa preparação, pra você atuar,enQUANto professora

autora?

(...) e aí: eu peguei a ementa e fui tentan:do, produzir esse material, na verdade eu

só pensava nos alunos feras, por:que são aqueles que chegam com dificuldades, eu

não pensei neles, no/no aluno EAD não,quando eu comecei a atuar foi que eu fui

percebendo as dificuldades dele e algumas lacunas que ficaram no livro, eu fui

preenchendo, no Ambiente Virtual ((sempre que se refere ao livro, olha para ele e

folhea-o))

Os conflitos cognitivos, provenientes da falta de conhecimento específico da EaD,

implicaram em conflitos psicológicos, o que pode demonstra o segmento "eu peguei a ementa

e fui tentan:do, produzir esse material". Até mesmo a forma verbal "tentan:do" permite

acentuar o sentimento de dúvida da professora, a insegurança frente ao trabalho realizado,

como se não atendesse aos propósitos da EaD. Esse fato pode ser confirmado ao admitir

falhas ou ausências de determinadas ações no MDI produzido, tanto é que admite que

"algumas lacunas que ficaram no livro, eu fui preenchendo, no Ambiente Virtual". Tais

manifestações discursivas são resultados da ausência da utilização de um referencial próprio

da EaD, de modo que a professora ativa a memória do coletivo de trabalho do ensino

presencial como parâmetro para o seu agir na EaD, o que é depreendido do segmento

"pensava nos alunos feras,por:que são aqueles que chegam com dificuldades, eu não pensei

neles, no/no aluno EAD". Nessa correlação, passava a fazer as suas flexibilizações no próprio

Ambiente Virtual, como se faz na sala de aula presencial, revitalizando as suas ações docentes

com a sua memória pessoal, representada pela sua história sócio-profissional, seus valores,

suas intenções etc. VAle salientar que junção dessas duas memórias é carregada de conflitos,

exigindo posicionamento e escolhas, ao mesmo tempo que confere liberdade para adaptações

e flexibilizações no agir, determinando, assim, a subjetividade no fazer, demarcando, pois, o

estilo profissional.

Representações de conflitos sociais

Dos conflitos cognitivos e psicológicos decorrem os sociais, haja vista as inquietações

deste último ser de ordem avaliativa e de aceitação do trabalho realizado, tanto pelo coletivo

de trabalho quanto pelo corpo discente, o que pode ser detectado no fragmento abaixo.

P: certo, e:: sobre a tua preparação teórico-metodológica pra atuar enquanto

docen::te e principalmente enquanto professora autora?

C1: (...) E tem uma amiga minha, que já há muito tempo ela,ela tem essa

experiência com Educação a Distância, e eu pedi pra ela, pra gente se reunir, umas

Page 167: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 945

três ou quatro vezes, pra ela me dar algumas dicas, mas com três reuniões eu fui até

a casa dela, ela explicou direitinho ((mexe no livro)), abriu o Ambiente, pra eu ver,

acho que era da Federal, da Universidade Federal, abriu o ambiente, mostrou como

era, ai eu parti pra minha produção e parti pra minhas aulas, aí já num, já os

problemas foram minimiZANdo, e eu fui, errava,acerta:va, errava, então nessa

tentativa de erros e de acertos, eu fui chegando,eu acho que hoje eu não tenho mais

nenhum dificuldade, em relação ao Ambiente e à produção de material.

As preocupações com a avaliação externa levou a professora a procurar caminhos para a

realização de um trabalho responsável e que pudesse ser aceito não só pelo público alvo, mas

também pelos seus afins profissionais. Na falta de uma orientação institucional, ela recorreu à

orientação de uma pessoa mais experiente, marcando encontros fora do ambiente de trabalho

para se apropriar do conhecimento e de estratégias, o que se vê em "(...) E tem uma amiga

minha, que já há muito tempo ela,ela tem essa experiência com Educação a Distância, e eu

pedi pra ela, pra gente se reunir, umas três ou quatro vezes, pra ela me dar algumas dicas".

Esse trecho demonstra o receio de uma avaliação negativa do seu trabalho, tanto é que se

reunião mais de uma vez, evidenciando não só vontade de aprender, mas um querer agir

conscientemente, sem se importar com a refacção no decorrer do processo de produção do

MDI e de execução das aulas, como se vê em "eu parti pra minha produção e parti pra

minhas aulas, aí já num, já os problemas foram minimiZANdo". Embora tivesse a clareza de

estar superando as suas deficiências com o saber-fazer na EaD, a angústia de ver o seu

trabalho balizado pela instituição contribuiu para uma autoavaliação severa, como explicita

em "eu fui, errava, acerta:va, errava, então nessa tentativa de erros e de acertos, eu fui

chegando". Enfim, a sua ansiedade era de um saber-poder-fazer com autonomia, para ela

mesma se convencer da sua capacidade para trabalhar na EaD, o que se compreende do

segmento "eu acho que hoje eu não tenho mais nenhum dificuldade, em relação ao Ambiente

e à produção de material".

Enfim, sabendo que as reconfigurações do seu trabalho são constantemente avaliadas,

a professora revela uma preocupação com a imagem profissional, por isso as suas

verbalizações são constituídas de conflitos, os quais demonstram conscientização do que é, do

que faz e do que é capaz de fazer para tornar o seu agir coerente com o métier da EaD. No

entanto, esses conflitos poderiam ser minimizados se houvesse uma preparação institucional

para o fazer autoral do MDI, levando esse profissional a conhecer o modus operandi da EaD e

os saberes e conhecimentos necessários para atuar não só como professor, mas como

professor-autor.

Page 168: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 946

Considerações Finais

Esta pesquisa, embora tenha apresentado uma análise simplificada do trabalho

docente, revelou o caráter conflitante do agir do professor da EaD, proveniente da pouco

conhecimento teórico-metodológico dessa modalidade de ensino. Vale salientar, porém, que a

pesquisa contribui para perceber duas nuances do agir docente. O primeiro se refere ao

letramento acadêmico voltado para EaD, demonstrando que é preciso se investir em

conhecimento teórico-didático-metodológico para os profissionais desse modelo de ensino,

visto as práticas de letramento provenientes do ensino presencial superior serem insuficientes

para o evento de escrever didaticamente para a EaD. O segundo alude à questão do trabalho

como instrumento para o desenvolvimento humano, pois, apesar dos conflitos, da falta de

orientação institucional, a dimensão subjetiva do agir docente revelou capacidade para gerir a

produção de conhecimento, mesmo que para isso tenha se valido das experiências

particulares, transformando a atividade de produção do MDI num processo de tentativas e

erros/acertos, o que demandou revisões constantes no Ambiente Virtual.

Referências

ARETIO, L. La educación a distancia: de la teoría a la práctica. Barcelona - Espanha:

Editorial Ariel, 2011[2001].

BARTON, D.e HAMILTON, M. M. Literacy, reification and the dynamics of social

interaction. In: David Barton and Karin Tusting (eds.) Beyond communities of practice:

language, power and social context. Cambridge University Press, 2005.

BRONCKART,Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um

interacionismosócio-discursivo. São Paulo: Educ, [1999] 2003.

_______. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Anna Rachel e

MATÊNCIO, Maria de Loudes Meireles. (Orgs.).Campinas, SP: Mercado de letras, 2006.

(Série Ideias sobre Linguagem).

_______. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores.

Trad. Anna R. Machado e Mª de Lourdes Matêncio. Campinas, SP: Mercado de letras, 2008.

(Coleção Ideias sobre Linguagem).

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2.ed., Petrópolis, RJ:

Vozes, 2007.

_______. Trabalho e poder de agir. Trad.Gilherme João de Freitas Teixeira e Marlene

Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

Page 169: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 947

CLOT, Y. & FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes.

Travailler, 2000, p. 4, 7-42.

STREET, B.V. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press,

1984.

_______. Dimensões “escondidas” na escrita de artigos acadêmicos. Perspectiva,

Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 541-567, 2010.

Page 170: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 948

RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO

PARA A PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA [Voltar para Sumário]

Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)

Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)

1 Introdução

As práticas pedagógicas que envolvem situações de produção textual no contexto

escolar têm sido questionadas e amplamente discutidas por diversos estudiosos da linguagem,

que veem nessas situações de aprendizado os vazios de um ensino descontextualizado, que

ignora a realização da língua e o seu domínio como resultado de práticas sociais resultantes de

situações de interação, nas diversas esferas da atividade humana.

Diante dessa realidade, sabedores do papel da escola enquanto agência

institucionalizada de letramento, o evento “Roda de conversa” justifica-se pela necessidade de

criar situações de ensino em que os alunos vivenciem atividades de escrita significativas que

possam diminuir a distância entre os usos da escrita dentro e fora dos espaços escolares,

encorajando os alunos da EJA a interagirem e empregarem estratégias durante o processo de

produção, conscientes das finalidades que envolvem essa atividade de linguagem.

Como aportes teóricos para este artigo, recorreu-se aos pressupostos da abordagem

interacionista sociodiscursiva de BRONCKART (2012), aos estudos do letramento contidos

em HAMILTON (2000, MORTATTI (2004), KLEIMAN (2007), ROJO (2012;2013),

OLIVEIRA e KLEIMAN (2008), SOUZA, CORTI e MENDONÇA (2012), OLIVEIRA,

ALVES e SILVA (2008) e SOARES (2009).

Os estudos do texto fundamentaram-se em ANTUNES (2009), DOLZ e

SCHNEUWLY (2004), MARCUSCHI (2008) KOCH (2003), e nos suportes que versam

sobre a prática de refacção textual discutidos por PASSARELLI (2004), e RUIZ (2009),

recorrendo-se também aos documentos oficiais que evidenciam a importância da interação e

da cooperação nas situações de sala de aula, entre eles os PCN (1998), apoiando-se ainda na

Page 171: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 949

discussão acerca do uso de rodas de conversa para construção de aprendizagens significativas,

contida em WARSCHAUER (1993).

O artigo se organiza a partir de uma breve discussão sobre o letramento e as práticas

que orientam a atividade escritora na escola, dos processos que devem envolver as produções

textuais, enfatizando a importância do encorajamento para práticas de produção processual do

texto escrito; segue apresentando uma experiência de produção textual colaborativa com

alunos da EJA e traz, por fim, algumas reflexões sobre o ensino da língua materna com esse

público, orientado por práticas de letramento.

2 O letramento escolar e a ressignificação das práticas de ensino da escrita

Conforme Bronckart (2012), o ensino das categorias e estruturas da língua têm tido

primazia sobre procedimentos metodológicos que assegurem a compreensão e processo de

produção dos textos orais ou escritos, deixando de levar em conta que as realizações da

linguagem sempre se darão por meio da elaboração do texto. Essa concepção faz com que o

ensino da língua aconteça desvinculado dos propósitos comunicativos dos falantes que já a

conhecem e a utilizam para suas práticas sociais.

Desse modo, as realizações da linguagem propostas no âmbito da escola, além de não

darem conta de ressignificar a escrita e ampliar a compreensão sobre a extensão dos usos da

língua como um objeto social, utilizável de forma intensiva nos contextos extraescolares,

frustram os alunos frente ao fenômeno da apresentação de uma língua estranha e à

impossibilidade de estabelecer um diálogo com os saberes que sistematizam suas ocorrências.

O ensino da língua materna com enfoque, sobretudo na metalinguagem provoca ainda

à aceitabilidade de que aquela língua é para os sábios, os cultos, os que já nascem “bons”; de

que aprender é quase um dom e, portanto para poucos, para os que podem e não para os que

queiram se aventurar em aprender esse “novo falar”, fazendo com que fiquem

“desacreditados de sua própria competência linguística” (PASSARELLI, 2004, p. 16)

Falta assim, a visão de um sujeito sócio histórico e cultural, cujas realizações da

linguagem são resultado dos processos interativos que imprimem significação aos registros

orais ou escritos, que age intencional e conscientemente a partir de um discurso que se amplia

e se refaz nessas constantes interações sociais. Nessa situação, além dos alunos, ficam

igualmente desacreditados a escola, quanto ao projeto de uma educação emancipatória, e os

professores, quanto à competência em convencer os aprendizes quanto à utilidade da língua e

a ampliarem os usos nas diversas situações sociocomunicativas.

Page 172: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 950

Nesse contexto, os estudos do letramento centram suas discussões nas práticas que

envolvem os usos da língua, evidenciando as exigências frente à sociedade grafocêntrica e às

demandas advindas do cotidiano, que requerem do sujeito o contínuo envolvimento com as

práticas sociais da escrita, de forma competente e atuante quanto às escolhas para realizá-la.

Isso porque o “letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas

funções e seus usos” e, por isso, “assume importância central na vida das pessoas e em suas

relações com os outros e com o mundo em que vivem” (MORTATTI, 2004, P. 109).

Letramento, conforme afirma Kleiman (2012, p. 11) “ é um conjunto de práticas

sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as

formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e

de poder”. O letramento escolar é apenas uma, entre tantas outras formas de letramento que se

presentificam no nosso dia a dia. Nesse sentido, é preciso compreender que as “práticas de

letramento [...] são determinadas pelas condições efetivas de uso da escrita, pelos seus

objetivos, e mudam à medida que essas condições também mudam” (KLEIMAN, 2012, p.

19).

De acordo com Geraldi (2011), uma vez que a educação é um problema social e não

pedagógico - como compreende a escola que equivocadamente se propõe a ensinar a partir de

modelos uniformes, num processo de exclusão formalizada - a escola tem como desafio

possibilitar experiências de linguagem, de modo que os sujeitos desenvolvam suas

competências sociocomunicativas, compreendendo a função da língua enquanto objeto social.

Para tanto, torna-se necessário ações didático-metodológicas pautadas nos princípios

de um modelo ideológico de letramento1, em que o “ensino da escrita e de tecnologias das

sociedades letradas, como uma das formas de se potencializar o cidadão para lidar com as

estruturas de poder na sociedade” estejam incorporados aos fazeres do cotidiano escolar

(KLEIMAN,2006, p. 8). Requer, portanto, a adoção de práticas a partir das quais “aprender a

ler e escrever” seja uma oportunidade de “dizer a palavra: um comportamento humano que

envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sentido verdadeiro é o direito de expressar-se

e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar” (FREIRE, 2006, p. 59).

1Street(2012) fez a distinção entre o modelo autônomo, em que se evidencia os aspectos técnicos do letramento

dissociados do contexto social, do modelo ideológico de letramento em que as práticas de linguagem são

percebidas como estando indissociavelmente ligadas a estruturas de cultura e poder na sociedade em que está

inserida, cujas realizações de linguagem se constituem a partir das interações estabelecidas entre os sujeitos

constituindo-se, portanto, numa prática linguística crítica ou ideológica.

Page 173: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 951

O empoderamento através da palavra, defendido por Freire, é amplamente defendido

nos estudos do letramento, sobretudo nos espaços que, a priori, foram criados para fomentar

experiências com a palavra, ampliando e consolidando saberes, entre eles a escola.

3 Escrita processual: o texto do aluno como unidade significativa de ensino

Os caminhos para repensar o ensino da escrita, lembra Passarelli (2004), não se

limitam necessariamente à eliminação dos modelos de produção aplicados. Estes passam,

sobretudo, pela adoção dos novos paradigmas para o ensino das competências linguísticas que

permitam a ação criativa do sujeito, dando sentido aos usos imediatos e significativos da

língua, seja em sua manifestação oral ou escrita, ou seja, “um ensino de línguas que, em

última instância, esteja preocupado com a formação integral do cidadão, tem como eixo essa

língua em uso, orientada para a interação interpessoal” (ANTUNES, 2009, p.35)

A assertiva de Antunes evidencia o perfil de uma escola comprometida com a

formação cidadã do aprendente, em que o texto “é construção e interpretação de um dizer e de

um fazer” [tendo em vista que] “é o texto vivo, que circula, que passa de um interlocutor para

outro, que tem finalidades, que não acontece apenas para servir de treino” (ANTUNES, 2009,

p. 39).

Com essa perspectiva, a escrita processual é apresentada por Passarelli como um

conjunto de ações que possibilita planejar práticas de ensino que tratam o texto enquanto

conteúdo de ensino aprendizagem, capaz de materializar fazeres necessários à prática efetiva

de uso da língua e mobilizar a atenção dos alunos, apresentando “o texto sob o ponto de vista

do processo de produção” (PASSARELLI, 2004, p. 59). A partir dessa visão, são propostas

quatro etapas para direcionar o ensino da escrita enquanto processo: planejamento, tradução

de ideias em palavras, revisão e editoração, todos devidamente monitorados durante suas

realizações.

O planejamento diz respeito à etapa em que são pensados e selecionados todos os

elementos necessários para a produção de dados e geração das ideias que constituirão o texto,

em que “a seleção das informações requer que se colete o material, os fatos, as ideias e as

observações com os quais o texto será elaborado” (PASSARELLI, 2004, p. 89). Nesse

momento, a partir das escolhas de fontes, seleção e exclusão de materiais, busca de fontes e

registros, vai se delineando o tema a ser abordado.

Após a seleção das ideias passa-se para organização dos materiais obtidos de modo a

analisar e categorizar os tópicos em um plano textual. A preocupação centra-se na produção

da versão inicial do texto, registrando por escrito todas as ideias, organizando-as em

Page 174: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 952

parágrafos e interligando esses parágrafos de modo a manter a unidade do texto. É a fase de

tradução das ideias em palavras, a segunda etapa da escrita processual.

Em seguida, o escritor deverá se debruçar sobre a etapa de revisão que requer o

retorno ao material produzido e o olhar atento para o exame da versão provisória do texto.

Nesse sentido, o escritor assume o papel de leitor e revisor da própria produção para que

possa avaliar a “adequação ao que a língua escrita convenciona, exatidão quanto ao

significado, e, tendo em pauta o leitor, acessibilidade e aceitabilidade” (PASSARELLI, 2009,

p. 64).

Realizadas as releituras para todas as intervenções necessárias, o texto produzido está

apto a passar pela etapa de editoração, momento em que será compartilhado com outros

públicos, extrapolando os espaços da sala de aula, o que requer do escritor a certeza da

adequação da produção para essa situação de circulação e socialização das ideias impressas.

A clareza do objetivo desse produto final fará com que os alunos compreendam a

necessidade de vivenciar todas as etapas do processo de escrita, se esforçando para atingir os

objetivos propostos. Caberá, portanto, ao professor assumir “os pressupostos da avaliação

formativa para ajudar o aluno a descobrir os processos que permitirão seu progresso em

termos de aprendizagem” (PASSARELLI, 2009, p. 99).

Para atingir esse fim, Ruiz indica como possibilidade de correção o tipo textual-

interativa, a partir do qual se constrói um diálogo em torno do texto,

quando o professor toma como objeto de discurso não mais apenas o dizer do aluno,

mas também o dizer desse aluno, ou a atitude comportamental desse aluno refletida

pelo seu dizer, a propósito da correção do professor ou, ainda a própria tarefa

interventiva que ele mesmo, professor, está realizando no momento. (Ruiz, 2001,p.

93)

O processo de correção requer, portanto do professor um papel cooperador, cuja

preocupação não se limita à superfície do texto, mas a indicar por escrito no próprio texto dos

alunos caminhos possíveis para as intervenções necessárias.

A abordagem da perspectiva processual para consolidação da competência escritora do

aluno também é alvo das discussões de Soares (2009) que descreve a abordagem processual

como um conjunto de ações que envolvem estágios. Para fins didáticos, esses estágios são

constituídos por três momentos: pré-escrita, escrita e revisão ou pós-escrita.

O primeiro, estágio da pré-escrita, se caracteriza pelo uso de atividades que motivem e

estimulem os alunos no surgimento das primeiras ideias, ajudando-o “a descobrir formas de

abordar a tarefa, a coletar as informações e a gerar ideias” (SOARES, 2009, p. 23), lançando-

Page 175: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 953

se de atividades individuais ou coletivas como as sessões de tempestade de palavras. Essa é a

parte do planejamento, em que o autor deve ter em mente uma série de fatores como o leitor

para quem será endereçado e qual o contexto de circulação seu texto, para que assim possa

organizar suas ideias de modo atender um propósito comunicativo previamente definido e

conhecido por quem escreve.

Cumprida a primeira etapa, o sujeito entra no segundo estágio, o da escrita, que é

considerada cumprida quando as ideias geradas foram devidamente organizadas e o texto

encontra-se apto a passar pela fase da reavaliação: trata-se da primeira versão do texto.

Na terceira etapa, revisão ou pós-escrita, compreende o estágio em que o autor estará

preocupado em promover melhorias que atendam a seu objetivo inicial. Não é o momento,

portanto, do professor pensar em atribuir uma nota ao texto, tendo em vista que, a partir de

momentos de compartilhamento do texto com o público leitor inicial, alunos e professor, o

escritor fará uma leitura com olhar avaliativo, de modo a intervir no próprio texto,

reelaborando-o e fazendo os ajustes necessários.

Nessa perspectiva de trabalho com a produção textual, invocando os pressupostos de

O’brien, a autora adverte que

Devemos ter consciência de que não há uma entidade chamada de “pedagogia de

processo” e que esta é mais bem definida, não como uma teoria completa ou uma

abordagem pedagógica, mas como um conjunto de práticas pedagógicas que podem

ser adaptadas para qualquer forma de instrução com dois componentes essenciais: a

consciência (como se escreve) e a intervenção (o feedback durante o processo), que

não deve ser confundida com correção de erros. (SOARES, 2009, p.25)

Para fazer as intervenções necessárias no texto através das atividades de reescrita e

recorrência aos feedbacks, a realização da escrita processual requer a compreensão do tipo de

feedback que o professor deverá fornecer ao aluno e do consequente papel do ato de dar e

receber feedback. Torna-se necessário um processo de escrita dinâmico em todas as etapas de

realização, que leve em conta as intenções comunicativas inerentes.

Por isso,

O trabalho pedagógico deve privilegiar a construção conjunta do conhecimento

sobre o discurso escrito, por meio da participação ativa dos alunos, tanto como

autores quanto como leitores, analisando textos autênticos e lendo os seus textos

criticamente, buscando adequá-los às expectativas do seu público-alvo e ao seu

propósito comunicativo. (SOARES, 2009, p.44)

O professor deixa então de ter sua ação limitada ao papel de revisor e passa a ter

participações mais significativas que orientem as vivências dos alunos, de modo que essas

experiências corroborem para a formação de leitores e escritores proficientes. De acordo com

Page 176: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 954

Trible (apud Soares, 2009) são quatro, os papéis a serem desempenhados pelos professores:

leitor, assistente, avaliador e examinador.

Dentro desses papéis estabelecidos, é possível comentar os textos dos alunos, dando

indicadores em relação ao gosto pelo texto e ao conteúdo ali expresso (papel de leitor); atuar

com o escritor, orientando as possíveis transformações requeridas pelo texto (papel de

assistente); tecer comentários sobre o desempenho do escrevente (papel de avaliador), de

modo que fiquem claros “os aspectos da escrita que foram bem desenvolvidos e os que

precisam melhorar” (SOARES, 2009, p. 54).

A apresentação para o aluno das habilidades de escrita que foram percebidas nos

textos escritos de modo claro, objetivo e preciso, a partir de uma avaliação formal, fazendo a

averiguação da produção textual, constitui o quarto papel que deve ser exercido pelo professor

para constatação do feedback requerido em cada fase de trabalho com o texto.

4 Roda de conversa: caminho para a escrita colaborativa

Antes de descrever a proposta de trabalho, tomando como referencial os novos

paradigmas para desenvolver a competência escritora do aluno, tornar-se necessário

contextualizar, ainda que de forma breve, a experiência com a atividade cooperativa realizada

com alunos do ensino fundamental, segmento da educação de jovens e adultos.

A experiência apresentada constitui-se em um recorte de proposta de ensino para o

ensino do gênero crônica, fundamentada nas proposições de Schneuwly e Dolz (2013) que

defendem a aplicação de sequência didática para que os alunos tomem conhecimento dos

inúmeros gêneros e, sobretudo, desenvolvam habilidades que lhes permitam adequar seus

usos a cada situação comunicativa.

A proposição da sequência didática para o ensino de gêneros na escola “ se articula por

meio de uma estratégia, válida tanto para a produção oral quanto para a escrita” em que, “as

sequências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma

prática de linguagem e os instrumentos que facilitarão essa apropriação. (SCHNEUWLY E

DOLZ, 2013, p.43)

O evento de Letramento “roda de conversa” é, portanto, um recorte de sequência

didática aplicada ao ensino do gênero crônica. No primeiro momento, procedeu-se com a

elaboração de um ofício convidando um jornalista que escrevia crônicas para uma revista

local para participar de uma roda de conversa com os alunos, de modo a compartilhar as

Page 177: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 955

experiências vivenciadas e gerar possíveis reflexões para o próprio exercício escritor do

aluno.

Após a aceitação do convite, prosseguimos com o planejamento e organização do

evento “roda de conversa”, elaborando questionamentos, discutindo os aspectos formais e

informais como a recepção do convidado. De acordo com a Proposta curricular para a

educação de jovens e adultos (2002) o uso efetivo da palavra em situações de participação

social possibilita desenvolver as capacidades construtiva e transformadora dos alunos, a partir

do exercício do diálogo.

Apesar dos alunos não terem estabelecido nenhum contato pessoal com o jornalista, a

atividade se constituiu em momentos prazerosos de descontração e interação desde a

recepção, quando um dos alunos fez as saudações iniciais com a leitura de uma crônica do

convidado. A satisfação dos alunos era perceptível em cada indagação, respostas prontamente

fornecidas e intervenções realizadas, se estendendo para além do horário previsto. No

término, todos foram presenteados com uma edição atualizada da revista e com uma sessão de

autógrafos.

A roda de conversa reservaria uma última surpresa, um inesperado desafio para a

turma: produzir uma crônica coletiva para ser publicada em uma das edições seguintes da

revista de circulação regional. Visualizava-se a oportunidade do exercício da autoria, em que

partiriam para o exercício da produção coletiva e circulação da produção textual da turma

para além dos muros da escola.

Desafio aceito, o encontro pós-evento fora marcado inicialmente pela euforia do

encontro com o escritor, em que todos compartilhavam suas impressões. É certo que ainda

havia a resistência diante da tarefa de produzir textos e, em meio aos depoimentos, um dos

alunos, mesmo admitindo ter gostado da experiência, afirmou: “não é pra mim, esse negócio

de escrever crônica”. Após a socialização dessas impressões, realizou-se a primeira reunião

para discutir a crônica que iriam produzir.

Entre os aspectos evidenciados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais que garantem

uma aprendizagem significativa, a autonomia, interação e cooperação são citados como

capacidades comuns a serem desenvolvidas no contexto escolar, como resultado de uma

prática educativa eficaz, em que

o desenvolvimento da autonomia como princípio educativo considera a atuação do

aluno, valoriza suas experiências prévias, buscando essencialmente a passagem

progressiva de situações em que o é dirigido por outras pessoas, a situações dirigidas

pelo próprio alunos. (PCN, 1998, p.89)

Page 178: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 956

No roteiro estabelecido para o ensino de produção textual, Passarelli (2009) nomeia

esse momento vivenciado pela turma como sendo o do planejamento, em que serão definidos

os rumos iniciais para a atividade escritora. Apesar de se constatar que os alunos utilizam com

pouca frequência o planejamento ou até não se dão conta de sua importância, na produção

coletiva é praticamente impossível ignorar essa etapa, tendo em vista a necessidade de

estabelecer um diálogo em torno do que se pretende produzir como resultado de resoluções

consensuais.

Sabemos que o êxito de um projeto de natureza coletiva é resultado de um processo de

interação e cooperação estabelecidas entre as partes envolvidas, a partir dos propósitos

definidos pelo grupo. Para isso,

são fundamentais as situações em que se possa aprender a dialogar, a ouvir o outro e

ajuda-lo, a pedir ajuda, aproveitar críticas, explicar um ponto de vista, coordenar

ações para obter sucesso em uma tarefa conjunta etc.[...] Assim, a organização de

atividades que favoreçam a fala e a escrita como meios de reorganização e

reconstrução das experiências compartilhadas pelos alunos ocupam papel de

destaque no trabalho em sala de aula. (PCN, 1998, p.90)

Preocupados em definir os rumos do texto que produziriam, os alunos optaram por

reunir fragmentos de suas próprias histórias focalizando, sobretudo, as situações que os

obrigaram a se afastar da escola, tendo em vista que o grupo se constituía por sujeitos que

tentavam retomar suas atividades como estudantes. Com esse objetivo, a princípio,

escolheram uma aluna para exercer o papel de escriba tomando nota de seus depoimentos.

As decisões tomadas e os registros iniciais foram compartilhados na aula seguinte,

acrescentando depoimentos dos que estiveram ausentes na reunião anterior. Em seguida,

nomearam outro aluno para dividir a tarefa de escriba, iniciando-se o processo de construção

da crônica. A princípio, estabeleceu-se uma discussão em torno dos prováveis recortes que

precisavam ser feitos para o texto não ficasse tão extenso, afinal de contas, tinham apenas

uma página da revista disponível para publicação.

Para isso, à medida que o texto ia sendo redigido, se realizava a leitura dos

depoimentos, para possíveis ajustes. Era um momento desafiador em que as ideias

começavam a ser transformar em texto. White e Arndt afirmam que “o que faz a escrita ser

desafiadora é que os escritores, por si sós, têm de estabelecer os problemas certos para serem

resolvidos” (apud SOARES, 2009, p. 33).

Essa leitura revelou experiências de vida das mais diversas: traumáticas, de decepção,

de perdas e algumas engraçadas como a de uma aluna que disse deixar de estudar porque

gostava muito de namorar. Entre choros e risos, aquela turma, empenhada em reescrever a

Page 179: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 957

muitas mãos a própria história, não parecia a mesma de outras situações diante da tarefa de

escrever, exercida com grande desânimo.

Nesse clima, os ajustes foram sendo feitos e, a partir das intervenções do grupo, a

crônica foi parcialmente elaborada. Na aula seguinte, num processo de elaboração e

reelaboração da escrita, o texto foi finalizado pela turma. Como se tratava de uma produção

para ser publicada em revista de circulação regional, em virtude ainda de estarmos encerrando

o ano letivo, a revisão final foi feita pelo professor

Passarelli (2012, p. 99) lembra que “sendo o próprio autor responsável pela revisão

observa-se que, quanto maior for o intervalo de tempo transcorrido entre a composição e a

revisão, mais produtiva ela será”. Diante das circunstâncias expostas, não pudemos contar

com o fator tempo para a revisão final, embora durante toda a produção coletiva estivesse

sendo feitas revisões constantes dentro da perspectiva do processo de revisão em que

o aluno-escritor passa a ser leitor de si mesmo, para manter a unidade de seu texto,

isto é, para não perder de vista o sentido global, enfim para burilar seu texto.[...] Ao

debruçar-se sobre a primeira versão de seu trabalho, lê e relê, ajusta daqui e dali,

alterando sucessiva e recorrentemente sua figura: de leitor para escritor e vice-versa.

(PASSARELLI, 2012, p.99)

. No entanto, a versão revisada foi apresentada aos alunos, de modo a serem feitos os

ajustes finais, contando com as intervenções resultantes daa participação efetiva da turma.

.

5 Considerações finais

A necessidade de transformar as práticas de escrita nas aulas de português requer que

as situações de aprendizagem se tornem dinâmicas e situadas, de modo a levar o aluno a atuar

como escritor e leitor dos próprios textos, cujas preocupações vão além de preencher espaços

vazios de uma folha, mantendo uma constante postura de reflexão mediada pela ação

interventiva do professor.

Diante dos novos paradigmas de ensino, tornar-se proficiente no uso da língua não é

uma tarefa fácil para os alunos que escrevem textos apenas como uma atividade para fins

avaliativos e não costumam refletir sobre a função social da escrita. Essa tarefa se torna mais

difícil quando se trata de jovens e adultos que estiveram longos períodos afastados da escola e

retornaram às salas de aula com a ideia de que são incapazes de escrever porque não dominam

regras gramaticais e ortográficas.

Page 180: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 958

Dessa maneira, os alunos não acreditam que conseguem realizar tarefas desafiadoras,

porque foram ensinados a conceber a escrita apenas como um produto. Diante disso,

demonstram muito desânimo e resistência para produzir textos e desinteresse em revisar suas

produções, pois atribuem ao ensino da Língua Portuguesa uma função puramente

metalinguística

No processo de escrita coletiva, percebeu-se que essa insegurança foi minimizada,

tendo em vista sentirem-se mais motivados a interagir com seus pares, a partir da proposta de

produção textual. Percebeu-se ainda que a possibilidade de compartilhar experiências e

conhecimentos tirou o foco e a preocupação extrema com o produto final. A necessidade de

ler, reler e intervir nos textos produzidos fez com que os alunos começassem a perceber a

importância das etapas de planejamento, escrita, revisão e editoração como partes

indispensáveis para a produção de um texto.

O fato de saber que a produção alcançaria outros públicos, e, consequentemente teria

outros leitores, a partir da publicação do texto final em uma revista de circulação regional foi

outro elemento motivador, fazendo com que a função social da escrita se tornasse mais

perceptível pela turma. O resultado dessa proposta tornou-se evidente nas práticas posteriores

de produção textual, em que demonstraram menos resistência em colocar no papel suas ideias.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: uma outra escola possível. São Paulo: Parábola

Editorial, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular

para a educação de jovens e adultos : segundo segmento do ensino fundamental: 5a a 8a série

: introdução / Secretaria de Educação Fundamental, 2002. 256 p.: il. : v. 2.

DOLZ, J. e SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita... In:

Gêneros Orais e escritos na escola. Campinas(SP): Mercado de Letras; 2004.

OSAKABE, Haquira. Ensino de gramática e ensino de literatura. In: O texto na sala de aula.

GERALDI, João Wanderley (org); ALMEIDA, Milton José de. et all. 5. ed. São Paulo: Ática,

2011.

PASSARELLI, Lílian. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico.4. ed. São Paulo: Cortez,

2004.

___________.CINTRA, Anna Maria Marques. A pesquisa e o ensino em língua portuguesa

sob diferentes olhares. São Paulo: Blucher, 2012.

Page 181: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 959

KOCH, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed. 2ª reimp. São Paulo:

Contexto, 2013.

MARCUSCHI, Luiz Antônio, 1946. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.

São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

RUIZ, Eliana Maria S. Donaio. Como se corrige redação na escola. Campinas, SP: Mercado

das Letras, 2001.

SOARES, Doris de Almeida. Produção e revisão textual: um guia para professores de

português e de línguas estrangeiras. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

WARSCHAUER, Cecília. A roda e o registro: uma parceria entre professor, alunos e

conhecimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

Page 182: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 960

O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE

RETEXTUALIZAÇÃO DA FALA PARA A ESCRITA [Voltar para Sumário]

Francisca Fabiana da Silva (UFRN)

1 Introdução

Muitas são as problemáticas que envolvem diretamente o ensino da língua materna,

nas escolas brasileiras, nos dias atuais. Entre os diversos problemas e questões cruciais,

seguramente a mais preocupante está relacionada à aprendizagem da leitura e da escrita,

decorrentes em grande parte, da falta de investimentos na escola pública, bem como, na

formação dos professores, que possibilite uma boa compreensão dos estudos linguísticos, e na

sua valorização profissional.

No cenário atual, a linguagem oral e escrita constitui condição primordial para a

concretização de diversas interações sociais, como o acesso a conhecimentos e informações

que permitem a inserção do cidadão nos vários domínios que favorecem o exercício da

cidadania.

Considerando a necessidade urgente de se trabalhar a aquisição dessas duas

habilidades, em todos os níveis de ensino; este trabalho busca refletir sobre as relações

estabelecidas entre oralidade e escrita, em atividades de retextualização da fala para a escrita,

realizadas com o gênero entrevista, em que textos orais são transformados em textos escritos.

Nesse contexto, discutiremos conceitos relevantes para uma boa compreensão da

relação entre fala e escrita, vistas como duas modalidades da língua, que embora tenha suas

especificidades de organização, não constituem dois sistemas linguísticos diferentes, mas

práticas sociais de uma mesma língua usadas pelos falantes, para responder as suas reais

necessidades de comunicação, nos diversos contextos situacionais. Tal afirmação é enfatizada

por Marcuschi (2004, p. 37) “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum

tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois polos

opostos”.

Para tanto, tomamos como pressupostos teóricos, os estudos de MARCUSCHI (2010),

FÁVERO, ANDRADE E AQUINO (1999) que defendem o tratamento da oralidade como

Page 183: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 961

objeto de ensino, e os autores SCHNEUWLY E DOLZ (2004) que propõe procedimentos

didáticos e metodológicos para um trabalho com os gêneros orais e escritos.

Com base nos estudos realizados acerca da temática em discussão, propomos uma

sequência didática para um trabalho com o gênero oral entrevista, por constitui-se dentro das

relações entre fala e escrita, no intuito de contribuir com o aprimoramento de habilidades

textuais e na valorização da modalidade oral da língua na sala de aula. Assim, a proposta

terá como ponto de partida para produção escrita, o texto falado, por meio de entrevistas orais

que servirão para coletar informações sobre o tema proposto. Entendemos que o resgate de

informações de textos orais para elaboração de textos escritos, contribui para um novo olhar

para a língua oral e sua relação com a escrita. Ambas as modalidades são essenciais para que

o aluno desenvolva competências comunicativas, para assim, atuar adequadamente nos

diversos espaços sociais. Entretanto, verificamos que o ensino da oralidade ainda não é uma

prática efetiva nas salas de aula. Há pouca clareza por parte dos professores de como

relacionar esses saberes no seu cotidiano escolar.

Desse modo, a relevância deste estudo pode ser estabelecida no sentido de que a

oralidade se coloca como eixo imprescindível de ensino. Assim sendo, ações que visam

analisar as relações entre a oralidade e escrita, na perspectiva de desfazer equívocos

socialmente estabelecidos, que apresentam essas modalidades em posições dicotômicas,

contribui com reflexões que podem subsidiar mudanças na prática pedagógica dos professores

de língua materna, e constitui um instrumento para orientar futuras escolhas didático–

pedagógicas, bem como, a produção de materiais educativos comprometidos com o espaço da

oralidade na sala de aula, conforme advogam alguns autores cujas preocupações se voltam

para esta questão.

2 Atividades de retextualização da fala para a escrita

Uma das reflexões bastante pertinentes nos estudos atuais sobre o ensino da língua que

tem ocupado um espaço cada vez mais consensual nas discussões entre educadores, não

apenas envolvidos com o ensino da linguagem, mas das diversas áreas do conhecimento está

ligada a necessidade de se abordar a oralidade em sala de aula, tanto em seus aspectos

constitutivos, quanto como objeto de ensino e aprendizagem de língua materna, em todos os

níveis de educação.

Dessa forma, não podemos discutir atividades de retextualização em textos orais para

escritos, sem refletirmos sobre a língua falada e sua relação com a escrita, bem como, as

Page 184: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 962

formas específicas de organização dessas duas modalidades. Essas reflexões decorrem do

reconhecimento da oralidade como uma das modalidades de uso da língua, que embora menos

prestigiada na sociedade, aparece na vida das pessoas como uma atividade muito mais

frequente que a escrita, ocorrendo em diversas esferas sociais, como uma habilidade

primordial para inserção do individuo na sociedade.

Para Marcuschi,

Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas

não suficiente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma

dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas

permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais,

variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. (MARCUSCHI, 2010, p.

17).

Nesse sentido, compreendemos que, ao lado da escrita, além de possibilidades de uso

como formas multimodais, as práticas orais são fundamentais para a construção da cidadania.

Tal fato é patente, na medida em que a participação, por meio da fala, é frequentemente

utilizada para expressar ideias e defender pontos de vistas em diversos domínios,

possibilitando que importantes decisões políticas, sociais e econômicas, que dizem respeito ao

bem comum, sejam tomadas a partir da participação social dos cidadãos por meio da defesa

de argumentos mediados pela fala. Assim, o desenvolvimento de habilidades orais contribui

efetivamente para que indivíduos atuem como protagonistas e sujeitos de sua história, na

medida em que utiliza a fala como instrumento para defender e garantir seus direitos, praticar

o controle social, exercendo assim, sua cidadania plena.

Embora tenhamos avançado nas pesquisas acerca da oralidade, este conhecimento

produzido pelos estudiosos ainda não se efetivou na prática pedagógica da maioria dos nossos

professores. (MARCUSCHI, 2010). Não há um trabalho organizado com a língua falada no

espaço escolar, onde a oralidade de fato se constitua um objeto de ensino.

Aprofunda-se nestas questões pode contribuir para a superação de inúmeros equívocos

construídos em torno da língua falada, vista ao longo do tempo, numa posição de

inferioridade frente à escrita; caracterizada como o espaço da desorganização e da

informalidade. No entanto, “a língua falada não possui uma gramática própria, suas regras de

efetivação é que são distintas em relação á escrita”. (FÁVERO, ANDRADE E AQUINO,

2012, p.73).

A falta de entendimento desses aspectos favoreceu para que durante muito tempo, a

língua falada fosse vista numa visão dicotômica, oposta à escrita. Para melhor caracterizar

Page 185: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 963

essa perspectiva das dicotomias, que dividem a língua falada e a língua escrita, em dois blocos

distintos, Marcuschi (2010, p. 27) propôs o seguinte quadro, denominado de dicotomias

estritas:

Fala versus Escrita

Contextualizada Descontextualizada

Dependente Autônoma

Implícita Explicita

Redundante Condensada

Não planejada Planejada

Imprecisa Precisa

Não normatizada Normatizada

Fragmentada Completa

Esta visão das relações entre as duas modalidades da língua está intimamente ligada à

concepção tradicional de ensino da língua, centrado no ensino das regras e nomenclaturas da

gramática, sem que fosse estabelecida uma relação entre oralidade e escrita como

modalidades da língua que se completam e exercem papeis distintos na prática social. Para

Fávero, Andrade e Aquino (2012, p. 73) “ambas apresentam distinções porque diferem nos

seus modos de aquisição; nas suas condições de produção, transmissão e recepção; nos meios

através dos quais os elementos de estrutura são organizados”.

Em contraposição a essa concepção habitual de ensino, com a supremacia da escrita

sobre a fala, e um ensino da língua portuguesa que prioriza o trabalho com a escrita,

Marcuschi (2010, p. 9) defende que “falar e escrever bem não é ser capaz de adequar-se às

regras da língua, mas usar adequadamente a língua para produzir um efeito de sentido

pretendido numa dada situação”. Ou seja, são as situações comunicativas que definem os usos

mais adequados para o contexto em que o falante está inserido e não as regras gramaticais,

cabendo ao falante dominar os usos da língua falada e escrita e utilizar esses saberes

adequando a sua prática social. (MARCUSCHI, 2010)

No estabelecimento das relações entre fala e escrita, no que diz respeito aos processos

de condições de produção de cada texto, Fávero, Andrade e Aquino (2012, p. 78) instituem o

seguinte paralelo neste quadro comparativo:

Fala Escrita

-Interação face a face;

- Interação á distância (espaço – temporal)

Page 186: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 964

-Planejamento simultâneo ou quase simultâneo à

execução;

- Planejamento anterior á produção

- Criação coletiva: administrada passo a passo - Criação individual

-Impossibilidade de apagamento

- Possibilidade de revisão

- Sem condições de consulta a outros textos

- Livre consulta

- A reformulação pode ser promovida tanto pelo

falante como pelo interlocutor

- A reformulação é promovida apenas pelo escritor

- Acesso imediato à reação do ouvinte;

- Sem a possibilidade de acesso imediato

- O falante pode processar o texto, redirecionando – o

a partir das reações do interlocutor

- O escritor pode processar o texto a partir das

possíveis reações do leitor

- O texto mostra todo o seu processo e criação - O texto tende a esconder o seu processo de criação,

mostrando apenas o resultado

Observamos que as características citadas pelos autores elucidam as especificidades da

modalidade oral e escrita, quanto à forma de produção e de organização dos textos. Esses

conhecimentos são fundamentais para uma compreensão adequada das relações entre fala e

escrita e dos processos de transformação do texto oral em escrito. Esse procedimento de

passagem da fala para a escrita é definido por Marcuschi como atividades de retextualização.

O autor diz que,

Atividades de retextualização são rotinas usuais altamente automatizadas, mas não

mecânicas, que se apresentam como ações aparentemente não problemáticas, já que

lidamos com elas o tempo todo nas sucessivas reformulações dos mesmos textos

numa intricada variação de registros, gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos.

Toda vez que repetimos ou relatamos o que alguém disse, até mesmo quando

produzimos as supostas citações, ipsis verbis, estamos transformando, reformulando,

recriando e modificando uma fala em outra. (MARCUSCHI, 2010, p.48).

Dessa forma, é habitual fazermos atividades de retextualização no cotidiano para

darmos conta das necessidades da prática social: quando assistimos a um programa e

anotamos informações que nos parecem úteis, quando discutimos propostas para serem

elaboradas em forma de documentos escritos, de carta de reivindicação, de reclamação, entre

outros, estamos transformando textos orais em escritos. Esses são alguns poucos exemplos do

quanto é presente no nosso dia a dia as atividades de retextualização e o quanto com

frequência partimos de oral para concretizarmos a produção escrita que desejamos.

. Para o autor,

Em hipótese alguma se trata de propor a passagem de um texto supostamente

“descontrolado e caótico” (texto falado) para outro “controlado e bem – informado”

(texto escrito). Fique claro, desde já, que o texto oral está em ordem na sua

formulação e no geral não apresenta problemas para compreensão. Sua passagem

para a escrita vai receber interferências mais ou menos acentuadas a depender do

que se tem em vista, mas não por ser a fala insuficiente organizada. Portanto, a

Page 187: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 965

passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a

passagem de uma ordem para outra ordem. (MARCUSCHI, 2010, p.47).

Sobre as possibilidades de retextualização na passagem da fala para a escrita

Marcuschi (2010, p. 48) apresenta o seguinte quadro:

Quadro 1. Possibilidade de retextualização

1. Fala Escrita (entrevista oral entrevista impressa)

2. Fala Fala (conferência tradução simultânea)

3. Escrita Fala (texto escrito exposição oral)

4. Escrita Escrita (texto escrito resumo escrito)

Como podemos observar, muitas interações se concretizam na relação entre as

duas modalidades, dentro do continuum fala e escrita. Assim, para a produção de

determinados gêneros, seja oral ou escrito, muitas vezes há a necessidade do uso de outra

modalidade que exerce um papel fundamental na construção comunicativa.

Para o autor, a retextualização tal como definida em seu livro da fala para a escrita,

não é um processo mecânico, já que a passagem da fala para a escrita não se dá

naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que

envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e

evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da relação

oralidade-escrita. (MARCUSCHI, 2010, p. 46)

O autor apresenta um modelo de operações envolvidas com nove procedimentos de

como realizar o processo de retextualização para se trabalhar no ensino e na pesquisa. Sobre

isso, alerta que não se trata de uma receita pronta para ser aplicada, que dá conta de todos os

fenômenos, mas um esquema especifico que orienta o trabalho e que pode ser acrescido de

outras informações.

4 Proposta de sequência didática para o gênero oral entrevista

De acordo com Schneuwly e Dolz (2004) o ensino da escrita e da fala podem se

distinguir em pelo menos três maneiras comuns de se abordar: o fato de ser colocado como

central o problema do gênero, como objeto e as relações complexas que o ligam ás práticas de

referência.

Page 188: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 966

Para um trabalho de produção textual que se realiza a partir da relação da fala e escrita,

na perspectiva de retextualização discutida no trabalho, escolhemos o gênero oral entrevista,

por ser um dos gêneros de domínio público que favorece o aprofundamento de ambas as

modalidades, oral e escrita.

De acordo com os objetivos e o contexto situacional, as entrevistas podem assumir

diferentes formatos. Os tipos mais comuns são as entrevistas jornalísticas, cientificas, a

entrevista de emprego, a entrevista médica.

Por apresentar diferentes formas nas práticas sociais e atividades de linguagem, e tendo

em vista, os objetivos pretendidos, optamos pela entrevista jornalística, pois avaliamos que o

trabalho com este gênero favorece os resultados que almejamos. A entrevista jornalística é

considerada como “um gênero de longa tradição, que diz respeito a um encontro entre

jornalista ou uma pessoa que tem interesse particular num dado domínio.” (SCHNEUWLY E

DOLZ 2004, p.73).

As autoras Leal e Gois ressaltam que “outro aspecto que merece atenção na abordagem

da entrevista é um possível trabalho de retextualização da oralidade para a escrita”. (LEAL E

GÓIS, 2012, p.102). Esse será um dos aspectos que privilegiamos na produção proposta.

Nessa perspectiva, a sequência didática que apresentamos tem como objetivo principal

investigar a realidade social do bairro onde residem os alunos, no que diz respeito aos

serviços básicos de saúde oferecidos aos moradores, por meio das políticas públicas de saúde

presentes na comunidade.

Os objetivos específicos envolvidos no projeto são:

Promover o domínio do gênero entrevista na modalidade oral e escrita, bem como, suas

características e funções;

Refletir sobre as relações estabelecidas entre oralidade e escrita;

Apropriar-se de conhecimentos relacionados aos processos de retextualização da fala para a

escrita;

Produzir entrevistas orais e retextualizá-las para a escrita.

O trabalho pode ser realizado em turmas de nível fundamental e médio, com duração

de três semanas. Para realização das entrevistas os alunos precisarão de aparelhos de

gravação. O trabalho consiste na realização de entrevistas orais com alguns profissionais de

referência da área temática e representantes de moradores, para subsidiar a construção de um

texto escrito com informações obtidas nas entrevistas sobre a realidade da saúde do bairro e

Page 189: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 967

posteriormente poderá planejar a divulgação e publicação das informações mais relevantes

para a comunidade escolar em geral.

Para elaboração da proposta didática tomamos como base os procedimentos de

elaboração de sequências didáticas para o ensino de gêneros orais e escritos, proposta por

Schneuwly e Dolz (2004). Segundo os autores sequência didática é “um conjunto de

atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral

ou escrito”. (SCHNEUWLY E DOLZ, 2004, p. 82).

Ilustramos o modelo proposto pelos autores da estrutura base de uma sequência

didática representada neste esquema:

Com base neste modelo proposto por Schneuwly e Dolz (2004, p.83), elaboramos a

seguinte sequência didática para um trabalho de produção escrita com o gênero entrevista.

Na apresentação da situação inicial será exposta de maneira detalhada para os alunos

a proposta de realização de um projeto coletivo, com todas as informações necessárias para

que os alunos conheçam o projeto e compreendam suas finalidades. Nesse momento

deverão ser definidas repostas para as seguintes questões:

Qual o tema da produção?

Qual o gênero a ser realizado?

Quais os objetivos?

Quais os destinatários?

Que forma assumirá a produção?

Quem participará da produção?

Quais as etapas da produção?

Na primeira produção será proposto aos alunos a realização de uma entrevista oral

com um colega de sala para saber o que ele acha sobre a vida dos moradores no bairro que

eles vivem. Os alunos serão estimulados a responder algumas questões entregues pelo

professor. As respostas serão anotadas pelo aluno que estiver fazendo o papel de

entrevistador. Após o momento das entrevistas, os alunos entrevistados organizarão as

ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Apresentação da situação

PRODUÇÃO INICIAL

Módulo

1 Módulo

2

Módulo n PRODUÇÃO

FINAL

Page 190: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 968

respostas e apresentarão seus textos para a turma, enquanto o professor observa como os

alunos realizaram a atividade proposta, conduzindo e orientando cada momento.

As principais dificuldades detectadas durante a primeira produção irão determinar o

trabalho do professor nos passos seguintes. No primeiro módulo será discutido ás questões

relacionadas à oralidade, ás relações entre fala e escrita, as características, a forma de

organização e a produção do texto falado e escrito.

No segundo módulo os alunos serão convidados a assistir entrevistas orais em

programas de rádio e/ou TV selecionada pelo professor com objetivo de fazê-los observar os

aspectos trabalhados no primeiro módulo, além de explorar as características do gênero

entrevista e analisar os papéis dos principais envolvidos na realização desse gênero: o

entrevistador e entrevistado.

Nos módulos seguintes, tendo em vista o objetivo proposto de conhecer como

funciona o serviço de saúde do bairro dos alunos será feito um levantamento dos possíveis

entrevistados (agente comunitário de saúde do bairro, equipe PSF da unidade básica de saúde,

representante de associação de moradores, etc.), bem como a elaboração das questões

pertinentes as finalidades da entrevista. Nesse momento definem-se as equipes responsáveis

por cada entrevista e os papéis: quem ficará responsável pela gravação, agendamento com

profissionais, dias das entrevistas, fazer as perguntas e transcrever as respostas.

Após a realização das entrevistas conforme planejamento realizado junto com o

professor será o momento de avaliar as entrevistas, as dificuldades sentidas e a participação

dos entrevistados durante a realização do trabalho, esse trabalho inicia com a escuta das

gravações feitas. Neste momento os alunos poderão trazer informações presentes na entrevista

que não são possíveis de perceber por meio da escuta como: expressão corporal,

características pessoais dos entrevistados, local da entrevista etc. Concluída a parte de escuta

das entrevistas o professor junto com os alunos seleciona as falas mais significativas no que

diz respeito ao tema e objetivos estabelecidos para fazer a transcrição.

Nos módulos posteriores os alunos serão orientados com relação à realização das

transcrições das entrevistas. Nesse momento o professor reforça conhecimentos sobre os

aspectos da fala e da escrita e esclarece sobre o trabalho de transcrição a ser realizado.

Por fim, temos a produção final, os alunos irão selecionar as informações mais

interessantes das transcrições feitas com os entrevistados para a produção de um texto escrito

sobre o serviço de saúde do seu bairro. O texto será elaborado de forma coletiva por cada

grupo que foi composto para a realização das entrevistas e das transcrições.

Page 191: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 969

As produções serão corrigidas pelo professor considerando a perspectiva da correção

textual – interativa definida como a “forma alternativa encontrada pelo professor para dar

conta de apontar, classificar ou até mesmo resolver aqueles problemas da redação do aluno

que, por alguma razão, ele percebe que não basta via corpo, margem ou símbolo”. (RUIZ,

2001, p. 68). Os textos serão devolvidos para que os alunos façam o trabalho de reescrita

textual.

Passado pela etapa de planejamento, escrita e revisão textual, o professor pode

planejar junto com os alunos a apresentação das informações produzidas para a escola e

comunidade escolar, por meio de exposições e eventos realizados pela escola, bem como,

divulgar nos meios de comunicação local, como forma de tornar público as informações

coletadas sobre o funcionamento dos serviços de saúde do bairro, seus problemas e, assim,

chamar atenção de todos para a necessidade da participação da comunidade na reivindicação

de melhores condições de serviços de saúde para a população.

5 Considerações finais

Neste trabalho objetivamos refletir sobre a produção oral e escrita dos alunos, com

base na perspectiva da relação fala e escrita, em atividades de retextualização. Sabemos que

embora tenhamos avançado nos estudos linguísticos, e a língua falada tenha conquistado

espaço de objeto de ensino referendado pelos documentos oficiais, ainda há muitos equívocos

com relação à modalidade oral da língua, e muitas são as dificuldades que permeiam a prática

dos professores ao lidar com o ensino dos gêneros orais e suas relações com a escrita.

Como forma de contribuir com essa discussão que não se realiza apenas no plano da

teoria, mas buscando transpor os conhecimentos analisados para prática, elaboramos como

sugestão de ensino, uma proposta de produção de texto, que envolve processos de

retextualização da fala para a escrita com o gênero entrevista.

A intenção da proposta atende dois relevantes objetivos: levar os alunos a dominar o

gênero entrevista, compreendendo suas características e finalidades e colocar os alunos em

contato com a sua realidade social de forma investigava. Dessa forma, permite - se que os

estudantes conheçam as problemáticas de saúde do seu bairro, e assim, atuem como sujeitos

que a partir dessa experiência promovida pela escola, podem despertar para participação mais

ativamente das decisões politicas que dizem respeito às ações públicas da comunidade onde

vivem e que é de interesse de todos os moradores; agindo assim, como cidadãos plenos dos

seus direitos e deveres.

Page 192: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 970

Nesse sentido, acreditamos que a sequência didática proposta contribui para que o

professor na sua prática pedagógica possa integrar os conhecimentos referentes às

modalidades oral e escrita da língua a prática social dos alunos, na medida em que se

possibilita que o gênero entrevista seja trabalhado em situação real de uso, com finalidades

que dizem respeito à realidade social dos alunos.

Referências:

ÁVILA, Ewerton; NASCIMENTO, Gláucia; GÓIS Siane. Esclarecendo o trabalho com a

oralidade: uma proposta didática. In: LEAL, Telma Ferraz; GOIS, Siane (org.). A oralidade

na escola: a investigação do trabalho docente como foco na reflexão. Belo Horizonte:

Autêntica, 2012.

CASTILHO A. T. A língua falada no ensino de português. 8º ed. São Paulo: Contexto, 2014.

CAVALCANTE. M.C.B; MELO,C.T.V. (0rg.). Gêneros orais na escola. In: SANTOS, C.F;

MENDONÇA, M.; CAVALCANTE. M.C.B. Diversidade textual: os gêneros na sala de aula.

Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

FÁVERO, L.L; ANDRADE, M.L.C.V. O; AQUINO, Z.G.O. Oralidade e escrita: perspectiva

para o ensino da língua materna. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2012.

MARCUSCHI, L.A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6º ed. São Paulo.

Cortez. 2005.

PASSARELI, Ghiuro, Lílian. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico. 4º ed. São Paulo.

Cortez. 2004.

RUIZ, Eliana Maria Severino Donaio. Como se corrige redação na escola. Campinas, SP:

Mercado de Letras, 2001.

SOARES. Produção e revisão textual: um guia para professores de português e de línguas

estrangeiras. Vozes. 2009.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas:

Mercado das Letras, 2004.

Page 193: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 971

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS

REFLEXÕES [Voltar para Sumário]

Francisco Canindé de Assunção (SABERES)

Introdução

Não se pode compreender satisfatoriamente o processo de letramento e

alfabetização se não entendermos o que é educação, visto que todos os seres participam

de um processo educativo contínuo, sejam animais racionais ou irracionais. Sendo

assim, todos nós – seres humanos – vivenciamos experiências de aprendizagem nos

diversos setores da sociedade: em casa, na rua, na igreja e na escola e, com essas

experiências, aprendemos e ensinamos através da interação com as pessoas que

convivem conosco. Logo, a educação faz parte do convívio humano, e acontece mesmo

onde não há escolas, pois como afirma Brandão (2007, p. 13): por toda parte pode haver

“redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde não

foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado”.

A partir dessa concepção percebe-se que é dentro desse contexto educativo onde

acontecem a alfabetização e letramento. Segundo Ribeiro (2003) esses conceitos são

frequentemente confundidos ou sobrepostos, daí a importância de saber distingui-los e,

ao mesmo tempo, aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo

da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade

do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só

o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no

quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele.

O termo analfabetismo é bastante conhecido no Brasil para designar a pessoa

que não sabe ler ou escrever. De acordo com Soares (2009, p. 20) “o analfabeto é aquele

que não pode exercer em toda a sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a

Page 194: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 972

sociedade marginaliza, é aquele que não tem acesso aos bens culturais de sociedades

letradas”.

Este trabalho procura apresentar algumas reflexões de diferentes estudiosos que

nos levam a compreender que alfabetização e letramento são práticas distintas, porém,

indissociáveis, interdependentes e simultâneas e que a falta de compreensão desses

termos gera grande confusão em seu uso teórico e prático, trazendo sérios prejuízos ao

processo educativo.

Educação

Para se entender o que é educação é necessário compreender como se dá esse

processo que está presente em todas as sociedades, desde as mais remotas até as mais

modernas. As diferentes formas como os saberes são transmitidos às gerações futuras,

desde o homem pré-histórico até hoje, nos oferecem uma visão de como ocorre esse

processo educativo. Brandão (2007, p. 9) afirma que “não há uma forma única nem um

único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem

seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é

o seu único praticante”. Essa fala mostra que o processo educativo se dá de formas

diversas, nos mais distintos lugares e é praticado por quaisquer pessoas. A ideia de que

o surgimento da educação está associado à necessidade de ensinar e aprender,

independente do local, pessoas, etc., também era defendida por Freire (1979, p. 46) ao

declarar que “A educação tem caráter permanente. Não há seres educados e não

educados. Estamos todos nos educando. Existem graus de educação, mas estes não são

absolutos”.

Há diferentes concepções de educação, e neste momento é pertinente mencionar

a educação formal, uma vez que o objeto desta pesquisa (alfabetização e letramento)

está diretamente relacionado a essa esfera. Nesse sentido

A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e

controle da aventura de ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em

que a educação se sujeita à pedagogia (a teoria da educação), cria situações

próprias para o seu exercício, produz os seus métodos, estabelece suas regras

e tempos, e constitui executores especializados. É quando aparecem a escola,

o aluno e o professor. (BRANDÃO, 2007, p. 26).

Page 195: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 973

A falta de discernimento entre as concepções de alfabetização e letramento tem

gerado um grande problema que acaba refletindo na qualidade da educação brasileira,

uma vez que não são observadas as especificidades de cada processo, prejudicando

assim, o desenvolvimento cognitivo dos educandos.

Alfabetização

De acordo com Soares (2009), o termo Alfabetização, etimologicamente, refere-

se à aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar a ler e a escrever. Assim, a especificidade da

Alfabetização é a aquisição do código alfabético e ortográfico, através do

desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita.

O processo de descoberta do código escrito pela criança passa pelas

significações que os diversos tipos de discursos têm para ela, ampliando seu campo de

leitura através da alfabetização. Antigamente, acreditava-se que a criança era iniciada

no mundo da leitura somente ao ser alfabetizada, pensamento este ultrapassado pela

concepção de letramento, que leva em conta toda a experiência que a criança tem com

leitura, antes mesmo de ser capaz de ler os signos escritos. Atualmente, não se considera

mais como alfabetizado o indivíduo que apenas consegue ler e escrever seu nome, mas

aquele que sabe escrever um bilhete simples. Essa concepção defende que

Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e

das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da

tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita.

Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-

se Letramento que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou

escrever para atingir diferentes objetivos. (RIBEIRO, 2003, p. 91)

Através dos tempos houve um grande desenvolvimento no campo da

alfabetização, surgiram conceitos, teorias, metodologias etc. Mas, mesmo diante dessa

evolução, o Brasil e outros países não desenvolvidos, ainda enfrentam um grave

problema: a qualidade da educação básica, especialmente, a dos anos iniciais do ensino

fundamental, o que se comprova com os índices de fracasso, reprovação e evasão

escolar, que sempre existiram nessas sociedades.

Pode-se dizer que uma das causas dessa problemática é a perda da especificidade

da alfabetização, devido à falta de compreensão de novas perspectivas teóricas e suas

Page 196: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 974

metodologias, que foram surgindo em oposição ao tradicional, e a grande abrangência

que se tem dado ao termo alfabetização.

[...] no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito

de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta

na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois

processos, com prevalência do conceito de letramento, [...] o que tem

conduzido a um certo apagamento da alfabetização que, talvez com algum

exagero, denomino desinvenção da alfabetização [...]. (SOARES, 2009, p. 8)

Para que o processo de alfabetização seja significativo não se deve desprezar

determinada prática por estar centrada em diferentes concepções (tradicional,

construtivista, etc.), mas observar e avaliar que contribuições ela pode trazer para

auxiliar os estudantes nesse processo complexo.

Para Mortatti (2000) a alfabetização considerada como o ensino das habilidades

de “codificação” e “decodificação” foi transposta para a sala de aula, no final do século

XIX, mediante a criação de diferentes métodos de alfabetização – métodos sintéticos

(silábicos ou fônicos) x métodos analíticos (global) – que padronizaram a aprendizagem

da leitura e da escrita. As cartilhas relacionadas a esses métodos passaram a ser

amplamente utilizadas como livro didático para o ensino nessa área. No contexto

brasileiro constata-se a mesma sucessão de oposições.

Logo, a definição de alfabetização, conforme o exposto, está mais relacionada à

apropriação do alfabeto, da ortografia, ou seja, o domínio do sistema de representações

entre fonemas e letras em determinada língua.

Letramento

A expressão letramento é de uso recente no campo da educação brasileira. De

acordo com Soares (2009, p. 33), esse termo parece ter sido usado pela primeira vez no

país no ano de 1986 por Mary Kato, no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva

psicolinguística”.

Ferreiro (2003, p. 30) diz que ao se dar preferência à expressão letramento, o

termo alfabetização virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar

em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um

retrocesso. “Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se

Page 197: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 975

passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha

consciência fonológica”, diz a autora.

O letramento resulta, pois, da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever, onde

a pessoa letrada é capaz de usar essas habilidades em diferentes práticas sociais. Essa

prática não se limita apenas ao domínio da leitura e escrita (decodificação e

codificação), mas o saber utilizá-los nas mais diferentes situações que vivenciamos na

sociedade.

Marcuschi (2007, p. 15) é enfático ao afirmar que “não se pode confundir as

diversas manifestações sociais do letramento com a escrita como tal, pois esta não

passaria de uma das formas de letramento”. Segundo ele é pertinente a expressão os

letramentos, no plural, de modo a demarcar a existência de diferentes práticas de

letramentos e níveis variados de letramentos: “deve-se ter imenso cuidado diante da

tendência à escolarização do letramento, que sofre de um mal crônico ao supor que só

existe um letramento. O autor acrescenta que o letramento não é o equivalente à

aquisição da escrita. Existem “letramentos sociais” que surgem e se desenvolvem à

margem da escola, não precisando por isso serem depreciados”. (2007, p. 15)

O letramento também é compreendido por Kleiman (2008, p. 18) como um

fenômeno mais amplo e que ultrapassa os domínios da escola. Segundo ela, “[...]

podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a

escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para

objetivos específicos”. O conceito da autora enfatiza os aspectos social e utilitário do

letramento.

Tfouni (2010) relaciona, assim, letramento com o desenvolvimento das

sociedades. Nesse sentido, a autora explica que, em termos sociais mais amplos, o

letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, da

diversificação dos meios de produção e da complexidade crescente da agricultura. Ao

mesmo tempo, dentro de uma visão dialética, pode-se dizer que esse processo constitui-

se uma causa das transformações históricas profundas, como o aparecimento da

máquina a vapor, da imprensa, do telescópio, e da sociedade industrial como um todo,

conforme descreve Soares (2009, p.11).

Entretanto, o que lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a

percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão sendo, de certa

Page 198: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 976

forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece estar

conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo

autônomo, independente do letramento e anterior a ele.

Assim, letramento decorre das práticas sociais que leituras e escritas exigem nos

diferentes contextos que envolvem a compreensão e expressão lógica e verbal. É a

função social da escrita. Enquanto que a alfabetização se refere ao desenvolvimento de

habilidades da leitura e escrita.

Analfabetismo

É importante observar que Ferreiro (2002, p. 16) não nega a preocupação com o

letramento, mas sim, aponta para a necessidade dos países pobres se preocuparem,

prioritariamente, com o analfabetismo.

Os países pobres não superaram o analfabetismo, os ricos descobriram o

iletrismo. [...] Iletrismo é o novo nome dado a uma realidade muito simples:

a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura,

nem o gosto de ler, muito menos o prazer da leitura. Ou seja, há países que

têm analfabetos (porque não asseguram um mínimo de escolaridade básica

a todos seus habitantes) e países que têm iletrados (porque, apesar de terem

assegurado esse mínimo de escolaridade básica, não produziram leitores em

sentido pleno).

A palavra analfabetismo apresenta o prefixo de negação a(n), o que nos leva a

deduzir que a palavra mais adequada para indicar o oposto a essa situação seria

alfabetismo. O termo alfabetismo foi utilizado na literatura especializada, como se

observa neste trecho, escrito em 1995, do livro “Alfabetização e Letramento” onde

Soares (2011, p. 29) esclarece:

O surgimento do termo literacy (cujo significado é o mesmo de alfabetismo),

nessa época, representou, certamente, uma mudança histórica nas práticas

sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita exigiram uma

nova palavra para designá-las. Ou seja: uma nova realidade social trouxe a

necessidade de uma nova palavra.

Porém essa palavra não se estabilizou na literatura da área e foi, gradativamente,

sendo substituída pelo termo letramento. No entanto, o seu oposto, analfabetismo, é

largamente utilizado e compreendido facilmente, como explica Soares (2011, p. 19)

É significativo refletir sobre o fato de não ser de uso corrente a palavra

alfabetismo, "estado ou qualidade de alfabetizado”, enquanto seu contrário,

Page 199: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 977

analfabetismo, "estado ou condição de analfabeto", é termo familiar e de

universal compreensão. O que surpreende é que o substantivo que nega –

analfabetismo se forma como prefixo grego a(n) – que denota negação – seja

de uso corrente na língua, enquanto o substantivo que afirma – alfabetismo –

não seja usado.

Como se percebe, a autora questiona a não utilização do termo alfabetismo –

oposto de analfabetismo, para expressar a condição de uma pessoa alfabetizada. No

entanto, vale lembrar que o emprego desse termo ou do seu substituto – letramento –

deve estar interligado ao processo e alfabetização para poder dar significado a essa

procedimento de aquisição e uso adequado dos mecanismos de leitura e compreensão

dos diferentes textos que circulam na sociedade.

Integração entre alfabetização e letramento

Os processos de alfabetização e letramento não podem ser desenvolvidos de

forma independente, pelo contrário, a introdução da criança no mundo da leitura e

escrita deve acontecer de forma integrada. Embora cada um desses eixos tenha sua

especificidade, tais atividades devem se desenvolver articuladamente. Desenvolver o

letramento sem a alfabetização ou vice-versa, leva a criança a ter uma visão distorcida

do mundo da escrita.

Na metodologia freireana de se alfabetizar, é possível compreender a

importância da indissociabilidade e simultaneidade desses dois processos. Em seu

método de alfabetização, ele propõe que se parta daquilo que é concreto e real para o

sujeito, tornando a aprendizagem significativa, mas utilizando também os mecanismos

de alfabetização. Freire (1996) destaca que o sujeito quanto mais amplia sua visão de

mundo, mais se liberta da opressão, ou seja, o sujeito letrado que já possui seus

conhecimentos prévios, com um determinado ponto de vista, quando alfabetizado, pode

modificar seus pensamentos, ampliando-os de forma que passa a refletir criticamente

sobre a prática social. Freire acreditava ser fundamental que as pessoas compreendam o

seu lugar no mundo e sua função social nele.

Sendo assim, o letramento vai além do ler e escrever, ele tem sua função social,

enquanto a alfabetização encarrega-se em preparar o indivíduo para a leitura e um

desenvolvimento maior do letramento do sujeito. Nessa perspectiva alfabetização e

Page 200: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 978

letramento se completam e enriquecem o desenvolvimento do aluno. Já dizia Paulo

Freire (2001) que aprender a ler e a escrever é aprender a ler o mundo, compreender o

seu contexto numa relação dinâmica vinculando linguagem e realidade e ser

alfabetizado é tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como meio de tomar

consciência da realidade e de transformá-la.

Alfabetizar letrando é uma prática necessária nos dias atuais, para que se possa

atingir a tão almejada educação de qualidade, e produzir um ensino significativo, em

que os educandos não sejam apenas seres passivos que recebem conhecimentos prontos,

mas que possam ser pessoas atuantes, dotadas de censo crítico e, portanto, capacitadas

para exercerem sua cidadania na sociedade em que vivem.

Considerações finais

Embora a educação brasileira esteja enfrentando um momento difícil, onde se

percebe a falta de qualidade da alfabetização, é necessário e urgente o planejamento de

novas práticas que contemplem essa clientela que está sofrendo diretamente as

consequências de uma alfabetização ineficaz: os alunos. Os professores alfabetizadores

precisam estar habilitados, serem competentes, criativos e cientes de sua

responsabilidade de formação dos sujeitos como intelectuais e cidadãos comprometidos

com a transformação social.

Também e imprescindível que sejam fortalecidas as discussões sobre o tema

alfabetização e letramento nos cursos de formação de docentes, nas reuniões

pedagógicas, formação continuada, a fim de que se busquem soluções para problemas

específicos da alfabetização e letramento, de forma a proporcionar uma educação de

qualidade para as crianças que estão ingressando na escola. É importante ressaltar a

ideia de Mortatti (2004, p. 107) quando afirma que “[...] somente o fato de ser

alfabetizada, não garante que a pessoa seja letrada”.

Com base nas reflexões dos estudiosos citados neste artigo pode-se dizer que

alfabetização e letramento são dois processos distintos que devem acontecer de forma

integrada, considerando a alfabetização como um processo individual de aquisição da

leitura e escrita e o letramento como um processo mais amplo, relacionado aos usos da

Page 201: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 979

leitura e da escrita por um indivíduo ou um grupo de indivíduos em suas práticas

cotidianas nas diferentes esferas sociais.

Para Soares (2000, p. 42) "alfabetizar letrando significa orientar a criança para

que aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de

escrita".

Diante do exposto acredita-se também que é possível mudar o atual quadro da

educação brasileira, atingir a qualidade de ensino nas classes de alfabetização, com

práticas educacionais inovadoras, que proporcionem simultaneamente o

desenvolvimento da alfabetização e do letramento dos educandos, a fim de que possam

ser sujeitos atuantes na sociedade e exercerem mais a sua cidadania.

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 49 ed. São Paulo: Brasiliense,

Coleção Primeiros Passos, 2007.

FERREIRO, Emília. Passado e presente dos verbos ler e escrever. São Paulo: Cortez,

2002.

______. “Alfabetização e cultura escrita”, Entrevista concedida à Denise Pellegrini

In Nova Escola – A revista do Professor. São Paulo, abril, maio/2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

______. A importância do ato de ler. 41 ed. São Paulo: Cortez, 2001.

KLEIMAN, Angela B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a

prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 7

ed. São Paulo: Cortez. 2007.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo: 1876-

1994). São Paulo: Ed. UNESP; CONPED, 2000.

______. Educação e Letramento. São Paulo: UNESP, 2004.

RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.

Page 202: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 980

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 3 ed. Belo Horizonte:

Autêntica, 2009.

______. Letrar é mais que alfabetizar. Jornal do Brasil: São Paulo, 2000.

______. Alfabetização e letramento. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2011.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2010.

Page 203: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 981

DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA

INTERNET [Voltar para Sumário]

Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)

As noções de gênero textual, bem como a de tipologia que lhe é correlata, vêm

sendo amplamente debatidas dede a década de 60, quando surgiu a linguística textual, a

análise conversacional e a análise do discurso. Os gêneros textuais passam a ser

observados como práticas sócio-históricas que contribuem na organização e

estabilização das atividades comunicativas cotidianas, por serem entidades sócio-

discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.

Eles surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se

desenvolvem e caracterizam-se bem mais pelas suas funções comunicativas, cognitivas

e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas estruturais. Faz-se necessária

então uma reflexão do gênero, por percebemos uma mudança, ainda que sutil, na forma

de circulação dos cordéis – eles vêm sendo comercializados e divulgados nos meios

digitais, por exemplo, e consumidos por um público novo: de internautas. Ainda

pretendemos apontar o cordel também como uma fonte de informação se assemelhando

ao gênero jornalístico mais precisamente com o tipo de notícia.

Bolter (1991) observa que a introdução da escrita conduziu a uma cultura letrada

nos ambientes em que a escrita floresceu. Na contemporaneidade, percebemos existir

semelhanças na introdução da escrita eletrônica nos campos culturais tradicionais,

inserindo o sujeito no que pode ser denominado cultura eletrônica. Esse impacto na

cultura letrada e nos consumidores de informação que esta nova modalidade produz

pode ser visto cotidianamente, basta observar o volume de expressões começadas por

“e-” como observa Crystal (2001, p.21), sendo eleita a expressão do ano em 1998.

A feira livre, os centros de cultura nordestina, casas de artesanato e outros

estabelecimentos urbanos populares do Nordeste, ou representantes de sua cultura,

foram por décadas os locais de venda e consumo da literatura de cordel. Com o advento

Page 204: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 982

das novas mídias de comunicação, entre elas a internet, novas estratégias de divulgação

também foram adotadas por quem produz tal literatura. A prática de utilizar o meio

virtual como veículo de divulgação das suas produções por parte dos cordelistas pode

ser percebida na internet ao se digitar a palavra “cordel” no buscador Google e se obter

aproximadamente 10.100.000 de resultados relacionados ao assunto. Esses resultados

abrangem toda e qualquer menção à palavra, contudo podemos observar um grande

número de páginas pessoais de cordelistas (blogs), sites dedicados à poesia popular,

trabalhos publicados acerca do assunto etc.

A relação do cordelista com sua arte e seu público se adapta à realidade, quando

existe um considerável número de blogs, comunidades, sites, nos quais o internauta

pode opinar, discutir as produções, dar e escolher motes para a poesia. Nesta última

opção poderíamos citar o site www.cordelonline.com.br, no qual o internauta participa

ativamente desde o processo de produção escolhendo ou votando no mote, até as

discussões acerca do produto acabado, o cordel.

As múltiplas vozes contidas no processo de produção neste novo processo

convergem para o conceito bakhtiniano de polifonia, no qual autor e leitor se fundem

harmoniosamente numa entidade hipertextual, evidenciando múltiplas vozes sociais que

se entrelaçam. (BAKHTIN, 2000)

A necessidade de acompanhar as evoluções das mídias ou novas tecnologias recria

gêneros artísticos, os adapta a uma nova realidade, transmuta sua natureza em novos

aspectos a serem analisados.

Na América Latina, como aponta Canclini (1998), a cultura popular como forma

de sobrevivência sempre buscou uma forma de se legitimar, por ser vista como uma

cultura da margem. Este processo de legitimidade, que em certos momentos pode se

confundir com o de popularização tem usado no seu percurso todos os mecanismos

midiáticos para a manutenção da sua sobrevivência. Vislumbrar o cordel no meio digital

é, antes de tudo, uma forma de manter esse gênero artístico vivo, latente como

representante da cultura de um povo. Não podemos prever a extinção dos folhetos

convencionais, bem como o fim das bibliotecas físicas ou sua não utilização. Outrossim,

o cordel virtual não põe em “xeque” a natureza, tampouco a legitimidade da prática da

tradição do folhetim. O hipertexto obtido por essas novas práticas – através da mistura

de vozes autor/leitor, e sua interação no meio digital – revitaliza a arte do cordel, e o

Page 205: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 983

coloca em um universo global, possibilitando o acesso que era limitado com os antigos

meios de consumo.

A análise dos processos comunicacionais das classes socialmente desfavorecidas

é algo relativamente ainda novo no nosso país, teve início em meados da década de

1960, quando pela primeira vez se denominou esse tipo de processo como

Folkcomunicação – estudos dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e

de idéias.

Da mesma maneira que na maioria das sociedades modernas existem classes

sociais diferentes, a maneira como a informação chega até elas também se diferencia.

As classes sociais dominantes têm à sua disposição um aparato bastante desenvolvido.

TV-a-cabo, assinaturas de revistas, jornais e periódicos, acesso à internet, livros, redes

sociais em aparelhos móveis de comunicação etc. Todo esse aparato permite que as

informações adquiridas possam ser confrontadas a outras fontes, sejam abordadas por

um número maior de críticos da mídia, ou seja, o senso crítico pode ser trabalhado de

maneira a se ter uma seleção e uma análise plurais acerca das informações obtidas. Em

contrapartida, as camadas menos favorecidas dessa sociedade não tem o mesmo acesso

a toda essa gama de recursos. Contudo, esse público consegue, de maneira eficaz,

elaborar recursos que os permitem expressar suas idéias, sentimentos, modos de agir,

ideologias etc. Assim a produção da notícia, e a forma como ela é abordada, não é

exclusivamente das classes dominantes, as classes subalternas também constroem seus

meios de divulgação, inclusive meios de divulgação impressos, aqui nos referindo ao

cordel. Não temos a intenção de defender este ou aquele meio de produção midiática,

seja ele elitista, popular ou subalterno, uma vez que as notícias veiculadas pela classe

dominante não necessariamente tratam exclusivamente de sua condição. Da mesma

forma, não seria coerente dar credibilidade às notícias veiculadas por meios midiáticos

populares apenas por serem produzidas pelo povo.

O cordel pode ser interpretado dentro dos processos descritos acima como um

veículo de duas faces; poético-artístico e jornalístico – dentro da esfera temática (ASSIS

NETO, 2011) proposta neste trabalho. O cordel-notícia, como o denominamos, seria

uma espécie de jornal popular. Utilizamos o termo cordel-notícia por percebermos

nestes folhetos a recontextualização de fatos narrados nas mídias convencionais. Esta

categoria de cordel se apropria de fatos noticiados em meios midiáticos convencionais

Page 206: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 984

como: jornais impressos, rádio e televisão e os recontextualizam de forma crítica e

particular. Rezende (2005) aponta que o cordel contemporâneo cumpre um papel

engajado no que se refere às questões sócio-políticas atuais, isto ocorre de duas

maneiras: o comentário de fatos ocorridos no Brasil e no mundo, ou a narrativa acerca

de problemas contemporâneos, acrescentando-lhe juízo de valor – esses, em muitos

momentos, são estetizados numa linguagem jocosa, preconceituosa, principalmente

quando a “notícia” aborda questões de gênero.

A prática da recontextualização promovida pelos cordelistas de materiais

simbólicos veiculado nas grandes mídias está de acordo com a observação e Thompson

(1998) acerca da recepção de produtos da mídia como uma atividade situada e criativa.

Situada, porque mesmo com a globalização dos produtos midiáticos, a abordagem dada

à noticia no cordel é localizada, ela sempre está inserida em contextos específicos no

tempo e no espaço. Criativa porque os autores trabalham o material midiático dos quais

se apropriam utilizando-os de acordo com seus propósitos, ou seja, são figuras

participativas e não simples espectadores da notícia. Thompson (1998) ainda aponta que

as mensagens podem ser retransmitidas para outro contexto de recepção, e

transformadas, sobretudo, por um processo de repetição, reinterpretação, comentário,

riso e crítica. A relação do cordel com a mídia não se limita apenas aos cordéis-online,

basta lembrar que cordéis relacionados com a morte do presidente Getúlio Vargas, em

1954, venderam em 24 horas aproximadamente 70 mil exemplares, tiragem bastante

elevada para uma obra até nos dias atuais. Quando utilizamos a nomenclatura cordel-

notícia, nos referimos aqueles que são construídos nessa perspectiva, encontrados na

internet, não estamos tentando criar um gênero novo, mas sim tentando classificar um

tipo de produção distinta dentro das esferas temáticas do cordel, a partir do suporte em

que o leitor o tem como objeto de estudo, da temática elaborada nos moldes clássicos ou

básicos da notícia.

O corpus de análise escolhido para este momento foi recolhido online, posto que

na rede, mas não só nela, observamos a velocidade e o imediatismo como características

da novidade da notícia. Dentre o grande número de autores, Henrique César Pinheiro

nos chamou atenção por recontextualizar acontecimentos sociais relacionado às

questões de gênero – eminentemente polêmicas – o seu trabalho abrange desde medidas

implementadas na saúde pública até transgressões sexuais. Os títulos escolhidos foram:

Page 207: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 985

Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização (2011), Governo compra lubrificante

para homossexuais (2011).

O fenômeno cordel-notícia

O autor dos cordéis selecionados não só se apropria de acontecimentos sociais

imprimindo-lhes outra contextualização, mas também agrega à sua obra

posicionamentos críticos a respeito do tema tratado, assim o diferenciando da posição

do jornalista habitual. Acerca desta posição jornalística Charaudeau (2009, p. 157)

aponta:

“A posição do jornalista é a de testemunha, o que aumenta sua

responsabilidade em relatar fielmente o acontecimento e, ao mesmo tempo, o

compromete ao poder prescindir da visada de captação.”

O cordel enquanto artefato literário possibilita percorrer caminhos de análises,

talvez insondáveis, por meio de outras fontes documentais. Percorremos um destes

caminhos comparando o modo como o cordelista enuncia sua obra ao modo como ao

assunto verídico aparece no meio midiático jornalístico oficial. Vejamos a notícia

publicada no dia 27/07/2004:

TJ-GO determina regras para orgias

BRASILIA. A sentença é insólita e inédita. O Tribunal de Justiça de Goiás

decidiu que o homem que, por vontade própria, participar de uma sessão de

sexo grupal e, em decorrência disso, for alvo de sexo passivo, não pode

declarar-se vítima de crime de atentado violento ao pudor. O acórdão do TJ

de Goiás, publicado no dia 6, é um puxão de orelhas no autor da ação que

reclamava da conduta de um amigo.

Luziano Costa da Silva acusou o amigo José Roberto de Oliveira de ter

praticado contra ele “ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Silva

alegou que, como estava bêbado, não pôde se defender. Por meio do

Ministério Público, recorreu à justiça. Mas o tribunal concluiu que não há

crime, já que a suposta vítima teria concordado em fazer sexo grupal.

O acórdão dos desembargadores é categórico: “A prática de sexo grupal é ato

que agride a moral e os bons costumes minimamente civilizados. Se o

indivíduo, de forma voluntária e espontânea, participa de orgia promovida

por amigos seus, não pode ao final do contubérnio dizer-se vítima de

atentado violento ao pudor. Quem procura satisfazer a volúpia sua ou de

outrem, aderindo ao desregramento de um bacanal, submete-se

conscientemente a desempenhar o papel de sujeito ativo e passivo, tal é a

inexistência de moralidade e recto neste tipo de confraternização”.

Page 208: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 986

Para o Tribunal de Justiça do estado, quem participa de sexo grupal já pode

imaginar o que está por vir e não tem o direito de se indignar depois. “(...)

não pode dizer-se vítima de atentado violento ao pudor aquele que ao final da

orgia viu-se alvo passivo de ato sexual”, concluíram os desembargadores.

Para o magistrado, todos do grupo estavam de acordo com a prática, que

definiu como desavergonhada. “A literatura profana que trata do assunto dá

destaque especial ao despudor e desavergonhamento, porque durante a orgia

consentida e protagonizada não se faz distinção de sexo, podendo cada

participe ser sujeito ativo ou passivo durante o desempenho sexual entre

parceiros e parceiras. Tudo de forma consentida e efusivamente festejada”,

esclareceu o relator” (Em:<HTTP://www.rrauri.com/index.php?act=...f=12&t

=8264&hl= > Acesso em 10, out. de 2010)

A notícia acima forneceu o mote para a recontextualização da realidade do fato por

Pinheiro no cordel intitulado Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização

(PINHEIRO, 2010). A forma enunciativa com a qual o autor introduz o assunto a ser

tratado no seu cordel se assemelha à forma utilizada pelo texto jornalístico, situando o

assunto e resumindo-o:

Um sujeito em Goiás

Foi pra sexo grupal

Pensando só em meter vara

Mas lá também levou pau

E depois de ser comido

Apelou para o tribunal

(...)

Como foi contra vontade

“Reparação já” Pedia .[...]

(...)

O Juiz assim não entendeu

Disse que quem vai para orgia

Pra fazer sexo grupal

Não tem qualquer regalia [...]

(...)

Mas pior é que isso

Entulha o judiciário.

E o sujeito comido

Quis se tornar milionário

Mas vai ficar conhecido

Como veado e otário. (PINHEIRO, 2010)

São reconhecíveis as semelhanças entre a matéria publicada e a obra de Pinheiro,

vez que a primeira funcionou como mote da segunda. Podemos perceber como o

Page 209: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 987

cordelista, assim como o repórter, introduz o assunto situando o fato a ser narrado,

indicando quem participa e qual o desfecho de suas ações. Entretanto, a liberdade da

qual goza o poeta é revelada na última estrofe de sua obra quando imprime seu ponto de

vista acerca da “desventura” do proponente da ação. Utilizando os vocábulos veado e

otário, por exemplo, ele atesta que todo aquele que mantém práticas eróticas paralelas à

heteronormatividade, e isto vêm a público, pode ser rebaixado, marginalizado.

Necessariamente, isto não implica que seja um apoiador desta postura, todavia, escreve

para um público que pode corroborar desse ponto de vista, ou provocar discussão junto

aqueles que divergem disto. Seja de um modo ou de outro, as discussões (favoráveis ou

não) promove a obra do poeta, o faz conhecido.

Uma relação semelhante de contextualização da notícia ocorre com a obra:

Governo compra lubrificante pra homossexuais. O autor neste cordel se utiliza de uma

medida do Ministério da saúde para construir a recontextualização crítica acerca do

tema. A notícia intitulada: Governo distribuirá 15 milhões de saches de gel lubrificante

em 2009 foi publicada no site da revista Época no ano de 2009.

“Governo distribuirá 15 milhões de saches de gel lubrificante em 2009”

O Ministério da Saúde gastou R$ 1,1 milhão no final do ano passado com a

compra de 15 milhões de saches de gel lubrificante que devem ser

distribuídos durante o ano de 2009. O produto é indicado para o uso em

relações anais de grupos mais expostos ao contágio do HIV: travestis,

homossexuais e profissionais do sexo.

O gel torna o uso do preservativo mais seguro nas relações sexuais de maior

atrito e maior risco de infecção, tais como são as relações anais. Nesses

casos, o produto diminui as chances de a camisinha se romper, oferecendo

assim proteção para os parceiros.

A primeira compra de sachês de gel foi feita em 2001, quando foram

adquiridas 200 mil unidades. Segundo o Programa Nacional de DST, esse

número vem aumentando, principalmente, pela ampliação do público que o

recebe. Antes o insumo se destinava a travestis e outros homens que fazem

sexo com homens. Hoje, mulheres no climatério e as pacientes de AIDS em

terapia anti-retroviral – por terem menos lubrificação vaginal – também se

beneficiam do produto.

Já foram adquiridos até o momento 21,2 milhões de sachês de gel lubrificante

– de 2001 a 2008. Desse total, a última compra foi de 15 milhões de unidades

(os produtos ainda serão distribuídos sob demanda, de acordo com a

necessidade de cada estado). O custo aproximado de cada unidade é de R$

0,21 (esse valor de acordo com cada licitação).” (Em

HTTP://revistaepocacasp.globo.com/Revista/época/SP/0..EmI25899-

15571,00-

GOVERNO+DISTRIBUIDORA+MILHOES+DE+SACHES+DE+GEL+LU

BRIFICANTE+EM.html> Acesso: 10 de outubro de 2010)

Page 210: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 988

A linguagem utilizada na notícia é própria do jornalismo, imparcial, objetiva e

direta, posicionando o fato narrado no contexto de espaço e tempo: O Ministério da

Saúde gastou R$ 1,1 milhão no final do ano passado com a compra de 15 milhões de

saches de gel lubrificante que devem ser distribuídos durante o ano de 2009. A

contextualização que o cordelista faz acerca do fato noticiado, de fato, não possui a

mesma parcialidade velada que o texto jornalístico carrega. Nela o autor já expõe seu

ponto de vista crítico, parcialidade explicita, sobre o tema abordado.

“Brasil resolveu comprar

Muito gel lubrificante,

Vai gastar muito dinheiro

Com quem for dar o bufante [...]

(...)

Ministério da saúde

Vai fazer licitação

Pra comprar lubrificante

Pra fazer “ensebação”

Do pau que for entrar

No cu de qualquer cristão

(...)

Não importa se o sujeito

Use o rabo por profissão

Mas quem pagará a conta

Será qualquer cidadão

Assim como fizeram

Com o tal de mensalão”

(PINHEIRO, Henrique César. Governo compra lubrificante para

homossexuais. Em: HTTP;//WWW.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php

cod =11086&cat=Cordel. Acesso: 10/03/2010)

Nas estrofes acima, o autor faz um pequeno introdução ao mote de sua poesia,

contextualizando-a como no texto jornalístico: Brasil resolveu comprar/Muito gel

lubrificante/Vai gastar muito dinheiro/...Ministério vai fazer licitação. A palavra

“Brasil” funciona como sinônimo para governo, não só dando uma idéia de local do

acontecimento, mas a coloca sob a ótica de instituição, posteriormente o cordelista

torna-se mais objetivo, mencionando o autor da medida Ministério da Saúde. A

expressão muito dinheiro também funciona com um instrumento de contextualização da

medida, posto que ela se refere à quantia de 1,1 milhões gasto pelo Ministério da Saúde,

Page 211: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 989

mencionada no texto jornalístico. Contudo, percebemos uma diferença básica entre o

enunciado da notícia e o que foi enunciado nas estrofes: estas estão carregadas de

indicadores que aludem à posição do autor diante do tema, ao utilizar expressões como:

quem for dar o bufante/ Pra fazer ensebação/ Use o rabo por profissão.

Marcas de sua posição acerca do tema ficam evidenciadas nestas expressões, uma

vez que, por serem consideradas palavrões, tendem a manter uma relação pejorativa

como o sujeito, parte dele, ou prática a que se refere. Bufante, segundo Mário Souto

Maior no seu Dicionário do palavão e termos afins classifica o termo como: Ânus

(Nordeste, Centro-Oeste, Goiás) (p.45), logo, a prática de Dar o Bufante é uma outra

expressão linguística, de teor semântico mais pejorativo porque agride diretamente o

sujeito envolvido nessa prática, para significar o ato de fazer sexo anal, com a qual a

sociedade mantém uma relação ainda preconceituosa. “Fazer ensebação” significa o ato

de lubrificar os órgãos genitais para a prática sexual, afim de não causar danos aos

praticantes e reduzir o risco de contágio por DST’s/AIDS. “Usar o rabo por profissão”

pode significar a prática da prostituição tanto feminina quanto masculina. O escárnio

produzido por essas expressões provocam riso, uma vez que um dos efeitos do palavrão

também é o riso. Contudo, também demonstra o juízo de valor que o autor imprime nos

seus versos. Este juízo de valor é o que difere sua obra do texto jornalístico. No entanto,

este recurso é válido e não o faz avesso totalmente à notícia primeira, uma vez que já

observamos em Thompson (1998) que nos processos de recriação e retransmissão de

informações dois dos aspectos citados são os de riso e crítica.

Como vimos, o processo de produção do cordel que se apropria da notícia é

dotado de outros dois fatores, um de reconstrução da notícia, outro de desconstrução.

Sobre isso Charaudeau aponta:

“... o discurso relatado se constrói ao término de uma dupla operação de

reconstrução/desconstrução. De reconstrução, porque se trata de tomar um

dito para reintegrá-lo a um novo ato de enunciação, passando esse dito a

depender do locutor-relator. Assim, o discurso relatado opera uma

transformação enunciativa do já dito e, ao mesmo tempo, aponta para uma

apropriação ou rejeição deste último pelo locutor-relator. De desconstrução

porque o discurso relatado mostra que se trata realmente de um dito tirado de

um outro ato de enunciação, distinguindo o dito relatado do dito de origem e

operando uma reificação desde o último, que serve para provar a

autenticidade do discurso do relator”.(CHARAUDEAU, 2009. p.163)

Page 212: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 990

Desta forma, o texto criado pelo cordelista não é uma cópia fiel do produto

midiático do qual ele se apropria. Com efeito, é outra obra, constituindo um ato de

enunciação diferente, norteado por outro enunciador. Ela desconstrói algumas imagens

contidas nos textos de origem inserindo novas imagens e informações, transformando o

enunciado. Contudo, o texto reconstruído estabelece uma relação semântica com seu

texto de origem. Nos casos apresentados, mesmo com a modificação das estratégias

enunciativas, aspectos da notícia nas obras de cordel foram preservado, no que diz

respeito à estrutura e ao conteúdo da notícia. As informações contidas nos textos

jornalísticos, através de uma reformulação, foram, de certa forma, preservadas em sua

ausência, mesmo o autor imprimindo seu ponto de vista crítico acerca do assunto.

Com as mudanças aceleradas nos meios midiáticos e o surgimento de novos

meios, é uma questão de “sobrevivência” a adaptação dos gêneros já existentes a esta

nova forma de exploração midiática. É na internet que o cordelista encontra a nova

geração de seu público e também no meio digital nasce uma nova geração de

cordelistas, que encontra nesse espaço um local de divulgação de um dos gêneros mais

antigos da literatura popular. Esta observação pode ser percebida nas palavras de

Thompson:

“Num mundo permeado pelos meios de comunicação, tradições se tornam

mais e mais dependentes de formas simbólicas mediadas, elas foram

desalojadas de lugares particulares e implementadas na vida social de novas

maneiras”. (THOMPSON, 1998, p.178)

Podemos perceber o “desenraizamento” e a nova “ancoragem” das tradições que

eles as modificam, descaracterizando sua essência, tornando-as inautênticas, nem as

condenam ao esquecimento ou extinção. Contudo, não nos enganamos imaginando que

uma nova “moda” surgiria entre as novas gerações, fazendo-os entrar na rede à procura

de folhetos de cordéis nem interessados em produzir cordéis online. Concordamos que

ao se alocar o cordel na rede o acesso à leitura seria rápido e imediato, mas hoje, a

procura ainda é feita por um público específico, um público interessado nas belas artes

ou nas belas letras, por conseguinte esse tipo de literatura é costumeiramente veiculado

em sites que se dedicam à arte literária e/ou representantes da cultura nordestina.

Assim, uma das possíveis estratégias utilizadas pelos autores seria a construção de

narrativas, como já foi visto, reestruturando e recontextualizando acontecimentos

Page 213: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 991

sociais de forma crítica, muitas vezes irônica e jocosa, a fim de alcançar visibilidade

também em meios ainda não específicos da literatura de cordel como a internet. Aliado

a esses recursos está o comentário (crítica) do autor sobre o mote extraído da notícia.

Por meio do comentário o autor difere sua obra como uma simples narrativa em verso

de um fato ocorrido na sociedade. Neste momento nos deteremos à análise dos

comentários ou críticas feitas a respeito dos acontecimentos noticiados que funcionaram

de mote para sua produção.

Os comentários põem o leitor em questão: exige o raciocínio intelectual por

parte do leitor, um posicionamento contra ou a favor, e desta atividade não há ninguém

no fim que saia incólume (o comentário é histérico), assim aponta Charaudeau (2009).

Entendemos, então, que o cordelista utilizam termos que são familiares às

pessoas quem se dirige sua obra a fim de atingirem o maior número de leitores, eruditos

ou não. Os gêneros textuais são sensíveis à mudanças nas práticas sociais de que são

oriundos. Segundo Bakhtin (2000 [1979] p.285), “de uma forma imediata e ágil,

refletem a menor mudança na vida social”. A vida social é construída sobre uma rede de

práticas sociais. Deste modo, as transformações sofridas pelo gênero cordel refletem

transformações na articulação dessa rede de práticas sociais. Procuramos com este

trabalho, perceber o cordel como uma das engrenagens entre literatura popular e as

mídias “modernas”, bem como refletir os folhetos de maneira a não “cristalizá-lo” no

tempo e espaço, como faz a maioria dos manuais de literatura e crítica literária, tendo-o

como um gênero que segue os rumos da evolução dos meios midiáticos e dos produtos

culturais gerados pela globalização.

Referências

BAKHTIN. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BOLTER, J. D. The computer as a new writing space. In: Vitanza, Victor J.

CyberReader. Arlington: Longman, 1999.

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da modernidade.

Tradução de Ana Cristina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1998.

CHARAUDEAU, P. Discursos das Mídias. Tradução de Ângela S. M. Corrêa. São

Paulo: Contexto, 2009.

Page 214: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 992

CRYSTAL, D. Language and the internet. Cambridge: Cambridge University Press,

2001.

PINHEIRO, Henrique César. Em bacanal, sujeito é comido e pede indenização. Em:

<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=11247&cat=Cordel>. Acesso:

10 de março de 2010.

PINHEIRO, Henrique César. Governo compra gel lubrificante para homossexuais. Em:

<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=11086&cat=Cordel> . Acesso:

10 de março de 2010.

RESENDE, V. M. Literatura de cordel no contexto do novo capitalismo: o discurso

sobre a infância nas ruas. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Rio de

Janeiro: Graal, 2005.

THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 1998.

Page 215: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 993

AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR [Voltar para Sumário]

Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)

A epígrafe do conto “A casa de vidro”, de Ivan Angelo, é representativa de um

dos aspectos centrais que caracterizam a narrativa. Este pequeno excerto relata castigos

públicos cuja severidade teria funcionado como “remédio” para “quaisquer revoltas” no

Brasil colonial. Assim, açoites sob o pelourinho, enforcamentos e esquartejamentos em

praça pública eram realizados para proporcionar “terror e exemplo” naquela população.

Neste sentido, o caráter arcaico destas práticas punitivas é ressaltado não somente pelo

breve inventário delas, mas, principalmente, pela ortografia antiga evidenciada naquele

texto.

Ao relacionarmos este fragmento com o conjunto da trama, perguntamos qual

seria o sentido de sua presença, a possível funcionalidade ou simbologia dele naquele

contexto narrativo. Afinal, em um primeiro momento, o relato de modalidades arcaicas

de punição pareceria despropositado, considerando-se uma ordem totalitária

materializada pelos mais avançados conhecimentos científicos. As diversas atrocidades

ocorridas no século XX demonstraram, portanto, que a barbárie é produzida pela própria

civilização. Em outras palavras, o mais arcaico se realiza ou materializa no mais

moderno.

Esta tese é defendida por Adorno e Horkheimer (1985) na obra Dialética do

Esclarecimento. Para eles, o esclarecimento (Aufklärung) não cumpriu sua promessa de

promover a emancipação dos sujeitos na modernidade. Deste modo, a potencialização

da racionalidade ao longo da história ocidental está relacionada à construção dos

campos de concentração na Alemanha nazista. Segundo aqueles pensadores, o triunfo

da racionalidade sobre os primitivos instintos humanos encontra sua prototípica

representação ocidental na figura de Ulisses, herói grego da Odisseia, de Homero.

Com base neste modelo, estes autores refletem acerca do processo que

proporciona a mitificação da razão no final do século XVIII (“o Século das Luzes”).

Page 216: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 994

Assim, para Adorno e Horkheimer (1985), o próprio mito antigo já é esclarecimento,

representando alguma forma de entendimento de determinada coletividade sobre a

realidade. Por outro lado, como destaca Gagnebin (2006), a história da ascensão da

racionalidade se funda em “uma gênese violenta e violentadora”, pois necessita

recalcar instintos originários, encantos e feitiços primitivos.

Logo, este percurso histórico não se constitui apenas no “devir progressivo e

luminoso” pretendido pelo Iluminismo. Ao contrário, a tendência à autodestruição ou

regressão constitui a ratio desde sua origem. Desta forma, o “irracionalismo” do

antissemitismo e fascismo decorre dos próprios fundamentos da razão dominante. Em

outras palavras, segundo os dois filósofos alemães, o esclarecimento termina

revertendo à mitologia.

Na Alemanha nazista, o funcionamento dos campos de concentração engendrou

as mortes de prisioneiros de forma seriada, em escala industrial, no país onde nasceu o

filósofo que discutiu o conceito de esclarecimento. Tais circunstâncias sem precedentes

constituem o fundamento histórico para Adorno e Horkheimer (1985) desenvolverem

suas reflexões. Por sua vez, os meios de produção que permitiram a operação destes

complexos da morte foram reproduzidos e mesmo potencializados desde sua

desativação. Diante destes acontecimentos, a tese de Kant (1985) relativa ao

esclarecimento como a maioridade da razão se revelou severamente comprometida.

Neste sentido, “A Casa de Vidro” representa a potencialização dos meios de

produção que possibilitaram a existência dos campos de concentração nazistas.

Publicado em 1979, este conto de Ivan Angelo figura entre as narrativas mais

importantes produzidas no período pós-1964, ano em que um golpe de Estado instituiu

uma ditadura civil-militar no Brasil por 21 anos. Assim, esta narrativa pode ser

entendida como a representação distópica de um futuro indeterminado, mas

aparentemente muito próximo, da sociedade brasileira. A inspiração mais imediata para

esta distopia seria o autoritarismo político então vigente no país.

Após a apresentação da epígrafe, o texto literário é iniciado com uma sumária

afirmação sobre a realização de protestos e sua proibição. Para eliminar o ódio nascido

destas proibições, uma Casa de Vidro é construída no lugar da central de polícia de

alguma grande cidade. Como se pode perceber, esta nova edificação torna-se o destino

Page 217: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 995

de todos aqueles considerados “perigosos” ou “inadequados” pelo respectivo regime

político.

A abertura desta narrativa indica, portanto, o processo de destruição completa da

alteridade ocorrido neste contexto social. Desde então, a instauração do terror é

sistematicamente aprofundada ao longo da trama. A propósito, o aprofundamento deste

estado de exceção decorre da progressiva e aparentemente completa transparência

evidenciada pela Casa de Vidro (posteriormente reproduzida nas edificações similares

construídas em outros Estados brasileiros). Nestas instalações, as rotinas dos presos e de

seus familiares, bem como as realizações dos depoimentos, são expostas, supostamente,

sem qualquer tipo de encobrimento.

A problematização à suposta transparência completa da Casa de Vidro se inicia

no terceiro parágrafo do conto. Neste momento, os dois tipos de vidro utilizados em

diferentes fases de seu funcionamento são comparados. Assim, o tipo mais moderno é

tão avançado que sua transparência não permite sequer ser percebida. Entretanto, esta

lâmina, mesmo invisível, segrega e obstaculiza, embora também mostre.

Deste modo, uma complexa dinâmica de exposição e ocultação constitui aquela

instituição prisional. Consequentemente, as motivações relacionadas à construção dela

jamais são reveladas para a população. Por outro lado, o que acontece com os presos

antes de eles prestarem depoimento permanece oculto ao público. Além disto, os

acontecimentos expostos publicamente não permitem troca audível entre o exterior e o

interior do cárcere de vidro.

A construção da Casa de Vidro é coordenada pelo Arquiteto, o primeiro

representante do governo totalitário a aparecer na trama. Neste contexto, o

desenvolvimento das obras transcorre gradualmente, a ponto de elas serem

interrompidas durante um mês. Esta gradação tem como finalidade despertar a

curiosidade e perplexidade da população diante daquele acontecimento inusitado. No

conto, tais reações iniciais aparecem em breves comentários entre parêntesis de

populares anônimos, entremeando o curso da narrativa por instantes.

O início desta construção desperta, paralelamente, outra reação entre as pessoas:

o medo. Tal efeito está indicado no modo disfarçado como os transeuntes olham para

ela ao passarem. Já os funcionários da então central de polícia se mostram constrangidos

diante da progressiva exposição do interior dela. Para evitar serem observados

Page 218: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 996

externamente, eles procuram trabalhar onde ainda a alvenaria permanece. Assim, o

temor daqueles e o constrangimento destes demonstram que o poder simplesmente

instaura a Casa de Vidro sem qualquer aviso, explicação ou consulta prévia à sociedade.

Esta gradação na implantação da Casa de Vidro resulta, portanto, de uma

racionalidade institucionalizada. Tal institucionalização é evidenciada pela sigla PGP

(Programa Gradual de Pacificação), título do projeto coordenado pelo Experimentador,

o mentor científico e articulador da implantação daquela instituição penal. Outra

evidência do caráter racional desta práxis institucional está na forma como ele busca

persuadir os superiores de suas ideias.

Neste sentido, recorre a diversos materiais para demonstrar seus argumentos

com precisão (relatórios, dados, fotos, fitas e filmes). Para este fim, as gravações em

áudio de conversas entre populares são o material mais utilizado. Estes registros

atendem a uma dupla finalidade: exercer o controle estatal até mesmo sobre a

privacidade dos civis; evidenciar a eficácia daquele complexo prisional em instaurar e

aprofundar o terror naquela sociedade.

A propósito, a nomeação do projeto do Experimentador nos parece inspirada em

um momento político da ditadura militar brasileira. No governo do general Ernesto

Geisel (1974-1979), o então Presidente da República prometeu promover uma abertura

“lenta, gradual e segura” rumo à democracia. Publicado no último ano deste mandato,

“A Casa de Vidro” seria uma alegoria irônica e cética acerca deste processo de

distensão política. Por outro lado, este conto pode ser entendido também como uma

advertência, com vistas a se procurar evitar a materialização desta distopia além da

narrativa.

Em “A Casa de Vidro”, o poder é representado sob a forma totalitária. Assim, o

Experimentador quem o exerce de modo centralizado, embora, formalmente, ele pareça

estar subordinado aos Chefes. Neste contexto, eles não comentam ou contestam nenhum

dos argumentos apresentados pelo aparente subordinado. Logo, esta representação

poderia ser caracterizada como um totalitarismo sui generis. Ao contrário do nazismo e

do fascismo, por exemplo, não encontramos aqui um líder (Führer ou Duce) que seja

publicamente conhecido no exercício desta centralidade totalizante.

Os regimes totalitários, todavia, também se destacam pelo caráter impessoal de

seu funcionamento. Em “A Casa de Vidro”, este aspecto é representado sob duas

Page 219: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 997

dimensões. No primeiro deles, a ausência de qualquer traço de particularidade ou

singularidade caracteriza quem exerce o poder estatal. Deste modo, seus mandatários

são nomeados pelos termos relativos aos cargos públicos exercidos (Arquiteto, Chefes,

Experimentador). Esta circunstância indica que o aparato totalitário funciona

autonomamente, dispensando qualquer característica intuitu personae para a realização

de tal fim1.

No caso da sociedade civil, mesmo os insurgentes não possuem sequer uma

nomeação que lhes possa conferir alguma distinção frente à massa anônima e

subjugada. Esta impossibilidade de diferenciação decorre do progressivo aniquilamento

completo da alteridade anunciado desde o início da trama. Neste sentido, as eventuais

tentativas de insurreição são anuladas seja pela implacável resistência material dos

vidros, seja pelo terror perpetrado nas dependências da Casa de Vidro ou por sua

enigmática existência.

Assim, esta representação de uma sociedade totalitária parece demandar alguma

atualização das teses de Schwarz (1992). Ao analisar obras de Machado de Assis, este

crítico literário afirma que a elite brasileira apresenta uma dupla conduta: na vida

pública, ela se dispõe a defender um discurso liberal e progressista, como tentativa de

convencimento acerca de sua suposta ‘casca civilizada’; já no âmbito privado, este

estrato social é sustentado por meio de relações sociais arcaicas e autoritárias, baseadas

na escravidão, na monocultura, no latifúndio. De todo modo, aquelas tentativas de

aparentar adesão a concepções modernas são cínicas, representativas de uma típica

desfaçatez de classe. Consequentemente, elas não conseguem convencer sequer como

aparência.

Para Pasta Jr. (2010), no Brasil, ao contrário dos países centrais europeus, a

escravidão não constitui uma metáfora, uma relação “senhor e escravo” hegeliana.

Neste país, os escravos desembarcavam, a céu aberto, acorrentados, arrebentados física

e psicologicamente, no cais do Valongo. Além disto, esta prática social podia ser

constatada por meio de certas situações ostensivas do cotidiano. O conto “Pai contra

mãe”, de Machado de Assis, é bastante ilustrativo em relação a isto. Seus cinco

1 Para um maior detalhamento sobre as raízes históricas, características e conceitos relativos ao

totalitarismo, recomendamos a leitura das seguintes obras: Origens do totalitarismo e Eichmann em

Jerusalém, ambas da filósofa alemã Hannah Arendt. As respectivas referências completas podem ser

encontradas ao final do trabalho.

Page 220: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 998

primeiros parágrafos são dedicados ao inventário dos “ofícios e aparelhos” utilizados

contra os negros. Desta forma, o ferro ao pescoço, aos pés, a máscara de folha-de-

flandres e as ofertas de recompensa pelos escravos fugidos podiam ser testemunhadas

sem qualquer dificuldade.

Em “Pai contra mãe”, o narrador evidencia uma postura complacente e cínica ao

comentar sobre as práticas escravagistas promovidas contra os negros no Brasil. Neste

caso, ele não demonstra preocupação alguma em se portar como suposto ‘humanista’ ou

crítico de tais perversidades. Ao contrário, chega mesmo a legitimar estas situações,

alegando que a ordem social precisaria recorrer ao grotesco, e algumas vezes ao cruel,

para ser alcançada.

Com esta característica, este conto representaria uma exceção diante de outras

narrativas machadianas analisadas por Schwarz (1992). Deste modo, a voz narrativa

reverbera um discurso típico de uma elite escravocrata, a qual já surge desnudada em

seu conservadorismo e autoritarismo.

Em narrativas brasileiras pós-1964, mesmo a tentativa da elite brasileira de

aparentar, pateticamente, uma máscara progressista desaparece. Nestes textos literários,

as práticas autoritárias e repressoras são representadas em proporções cada vez mais

brutais. Tais representações, por sua vez, estão relacionadas ao processo de

modernização conservadora instaurado após o golpe civil-militar no Brasil. Um dos

exemplos literários mais ilustrativos neste sentido é o romance Quarup, de Antonio

Callado, publicado em 1967.

Neste romance, encontramos uma cena na qual o protagonista Nando é

interrogado pelo Coronel Ibiratinga. Aqui, o oficial do Exército brasileiro defende a tese

de que faltaria “uma cinza de virtude em nossos campos”. Assim, os militares que então

estavam no poder não deveriam promover torturas às escondidas, constrangidos, mas

sim em praça pública, de modo exemplar para a população.

Deste modo, o respectivo militar pode ser entendido como um predecessor do

Experimentador de “A Casa de Vidro”, o qual, finalmente, materializa a aspiração

daquele personagem. Esta correlação entre os dois personagens fica evidenciada nesta

passagem do conto:

(...) Senhores Chefes: se precisássemos de uma oposição que nos legitimasse,

teríamos nós mesmos de escrever um editorial como esse, às escondidas! Diz

Page 221: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 999

ele: “agressão à sociedade”. Mas é uma agressão. É um ponto básico do

projeto que essa agressão seja clara, nada dos antigos porões, aquilo sim, um

barbarismo. Depois ele fala do “terror do Estado”. Mas é isso mesmo. As

velhas palavras, as velhas idéias liberais – não serão os valores desse

liberalismo corrompido que irão orientar a sua destruição [do Programa

Gradual de Pacificação], certo? (...) (ANGELO, 2002, p. 170, grifos do

autor).

A alegação do Coronel Ibiratinga de que, no Brasil, nunca teria havido suplícios

em praça pública é equivocada (para não dizer cínica): a própria epígrafe de “A Casa de

Vidro” contraria a tese do militar, pois açoites ao pé do Pelourinho, enforcamentos e

esquartejamentos em praça pública eram comuns durante o período colonial brasileiro.

Todas estas práticas, por sua vez, já tinham como finalidade promover “terror e

exemplo” para a população.

Logo, a ditadura civil-militar brasileira desenvolveu as práticas mais arcaicas por

meio das tecnologias modernas mais avançadas. Em “A Casa de Vidro”, esta

combinação entre arcaico e moderno é potencializada no contexto da narrativa. Uma

evidência desta questão pode ser observada no diálogo entre dois populares. Neste

momento, eles percebem determinada ressonância do Brasil Colônia na exposição de

um preso sob custódia daquela instituição penal:

“Qual é essa de deixar um preso assim, sem explicar nada, hem? Parece coisa

da colônia, pelourinho.”

“Vai ver a idéia é essa mesmo, pelourinho. Aí tem sentido.”

“Cuidado. O pessoal daqui diz que eles estão escutando as conversas.”

“Papo furado. Isso é coisa de cinema. Não temos tecnologia para isso não.”

“Vai nessa.”

“E se escutar o que é que tem? Não devo nada.”

“Até provar, já se fodeu.”

“A gente é que tem de provar?”

(...)

(ANGELO, 2002, p. 166)

Em certo momento do conto, o Experimentador discute o perigo que os artistas

representariam para aquele projeto totalitário. Nesta cena, percebemos uma

reelaboração de determinada discussão encontrada na República, de Platão. Para este

filósofo grego, ao não representarem a realidade como ela é, os poetas constituem um

perigo para a pólis idealizada nesta obra. Consequentemente, eles deveriam ser expulsos

da respectiva cidade.

Page 222: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1000

Por outro lado, não observamos nenhuma perseguição aos artistas ao longo do

conto. Ao contrário, quatro diferentes poemas críticos a Casa de Vidro despontam

subitamente na trama em diferentes momentos. A propósito, os jogos de palavras

herméticos configurados neles nos parecem indicar, pelo menos, duas interpretações

possíveis: uma problematização à ordem totalitária representada por aquela instituição

penal; uma crítica ao esteticismo despolitizado promovido pela poesia concreta no

Brasil2.

De forma semelhante aos demais protestos, não sabemos quem são os autores

destas produções artísticas. Embora demonstrem tal caráter crítico, estas obras poéticas

não constituem uma ameaça àquele estado de coisas. Assim, aquela preocupação do

Experimentador termina sem razão de ser diante do aprofundamento daquela realidade

totalitária ao final do conto.

Neste sentido, tais poemas não são capazes de transformar as pessoas em

“bombas de inquietação, soltas por aí”. Ocorre justamente o oposto: ao final da trama,

dois populares reconhecem que a Casa de Vidro se tornou algo banal, costumeiro no

cotidiano daquelas pessoas (a ponto de os jornais quase não mais abordarem esta

questão).

Mesmo tendo havido uma ditadura civil-militar no Brasil, este país não

vivenciou propriamente uma forma totalitária de poder. Naquele período, eleições para

vereadores, deputados, senadores, prefeitos e mesmo governadores chegaram a

acontecer, ainda que questionáveis em sua legitimidade.

Sob este aspecto, a projeção daquela realidade distópica do conto pode não ter se

materializado desde sua publicação. Contudo, os fantasmas totalitários não deixam de

existir apesar do contexto mais democrático em que vivemos. Pelo contrário, eles

voltam a assombrar com alguma frequência, sendo necessário nos manter alertas diante

deles.

Referências

ADORNO, Theodor W. ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad.

Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

2 Para aprofundamento desta discussão, recomendamos o ensaio “Esteticismo e Participação”: as

vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969), de Simon (1990). A referência completa pode ser

encontrada ao final de nosso trabalho.

Page 223: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1001

ANGELO, Ivan. A casa de vidro: cinco histórias do Brasil. 3. ed. São Paulo: Geração

Editorial, 2002.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

______. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

das Letras, 1999.

ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 2 v.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Homero e Dialética do Esclarecimento. In: GAGNEBIN,

Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 29-37.

______. Após Auschwitz. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer.

São Paulo: Editora 34, 2006. p. 59-81.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento? In: KANT,

Immanuel. Textos seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.

PASTA JR., José Antonio. Uma conversa com José Antonio Pasta. Revista Sinal de

Menos, ano 2, nº 4, 2010, p. 05-12.

PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In:______. Ao vencedor as batatas. 3. ed.

São Paulo: Duas Cidades, 1992, p. 13-28.

SIMON, Iumna Maria. Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto

brasileiro (1954-1969). Novos Estudos CEBRAP, nº 26, março de 1990, p. 120-140.

Page 224: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1002

A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS

PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM

SALA DE AULA [Voltar para Sumário]

Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)

Introdução

Este trabalho propõe uma discussão acerca, da relevância e contribuições dos

gêneros textuais, mas especificamente o gênero conto no processo de escrita e reescrita

de textos, dando ênfase ao papel exercido pelo professor durante este processo, como

agente transmissor e mediador de conhecimentos. No desenvolver desta pesquisa

percebe-se a necessidade de se estabelecer mais projetos de leitura que envolvam de

maneira direta os discentes, pois é o que falta para que haja uma melhora em suas

habilidades linguísticas nas modalidades oral e escrita. Porém para que tais mudanças

ocorram no desenvolvimento do aluno é necessário que haja incentivo de todas as partes

envolvidas neste processo de aquisição de conhecimentos por parte do aluno.

Faz-se mister destacar aqui a relevância exercida pelos gêneros textuais neste processo

de escrita e reescrita,Azeredo (2005, p.40), “Gêneros textuais são portanto as formas

relativamente estáveis pelas quais a comunicação verbal se materializa nas diferentes

práticas sociais.” Estes estão presentes em muitos lugares de formas diferenciadas e que

chamam a atenção do discente na hora da leitura o que consequentemente irá influenciar

na sua produção escrita. Vale ressaltar mais ainda as contribuições do gênero conto, que

por possuir características como: Ser uma narrativa linear e curta, tanto em extensão

quanto no tempo no qual se passa, possuir linguagem simples e direta, e não se utilizar

de muitas figuras de linguagem ou de expressões com pluralidade de sentidos, dentre

outras. Tende a prender e chamar a atenção do alunoe por vezes ser selecionado como

opção de leitura, contribuindo de forma significativa, para o aprendizado dos discentes

no que tange à produção textual. Percebe-se através das atribuições acima citadas que

Page 225: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1003

esta narrativa pode ser utilizada como suporte e auxilio para os discentes produzirem e

criarem seus textos acerca do que foi visto através dos estudos com gêneros textuais.

Considerações sobre a formação do professor

Atualmente, a sociedade exige que a educação esteja comprometida com as

transformações e evoluções sociais as quais somos expostos ao longo do nosso

desenvolvimento escolar. Entende-se que é de extrema relevância irmos em busca de

uma educação construída pelo homem em seu caráter histórico e social.

A formação apresenta-se nos como um fenômeno complexo e diverso sobre o

qual existem apenas escassas conceptualizações e ainda menos acordo em

relação às dimensões e teorias mais relevantes para a sua análise. [...] Em

primeiro lugar a formação como realidade conceptual, não se identifica nem

se dilui dentro de outros conceitos que também se usam, tais como educação,

ensino treino, etc. Em segundo lugar, o conceito formação inclui uma

dimensão pessoal de desenvolvimento humano global que é preciso ter em

conta face a outras concepções eminentemente técnicas. Em terceiro lugar, o

conceito formação tem a ver com a capacidade de formação, assim como com

a vontade de formação (GARCIA, 1999, p. 21-22)

Quando se pensa em educação automaticamente nos vem em mente o docente e

sua formação prática pedagógica que deve se dá de maneira adequada. O professor

necessita de uma formação qualificada que o prepare para atuar com coerência em sala

de aula como formador de cidadãos críticos e pensantes com opinião própria e

transformadora, porém infelizmente na maioria das vezes o docente não possui suporte

para atuar com tal eficiência em sala de aula.

O trabalho docente é atividade que dá unidade ao binômio ensino-

aprendizagem, pelo processo de transmissão-assimilação ativa de

conhecimentos, realizando a tarefa de mediação na relação cognitiva entre o

aluno e as matérias de estudo.(LIBÂNEO, 1994, p.88)

Em muitos casos sua formação é apontada como a principal responsável pelos

problemas encontrados na educação. O maior desafio a ser enfrentado pelos docentes, é

a precariedade e falta de estrutura das instituições, e a falta de interesse dos discentes

que é algo constante no ensino básico, é por estes e por muitos outros fatores que o

docente tem de estar preparado para enfrentar os desafios da profissão. É imprescindível

que o professor possua além do domínio dos conteúdos que serão transmitidos aos

Page 226: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1004

alunos, seja um profissional preparado para se adaptar as diversas situações as quais

será exposto em sala de aula e na sociedade ao longo de sua carreira, e que esteja pronto

para tornar-se além de professor um mediador entre o saber o ensinar e o aluno.

Cabe ao docente despertar nos alunos o interesse pela educação, criando

propostas as quais favoreçam ao discente em seu desenvolvimento é necessário que o

docente enxergue além da realidade que lhe é proposta.

Cada um de nós é um ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou

encarar esta constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa

reconhecer nos outros – não importa se alfabetizandosou participantes de

cursos universitários; se aluno de escolas do primeiro grau ou se membros de

uma assembleia popular – o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de

falar a que corresponde o nosso dever de escutá-los. De escutá-los

corretamente, com a convicção de quem cumpre um dever e não com a

malícia de quem faz um favor para receber muito mais em troca.(FREIRE,

1982, p.30)

Ser professor resume-se em uma troca de conhecimentos, pois o docente ensina

aprendendo e aprende ensinado, e está presente no dia de seus discentes preparando-os

para a vida, utilizando-se de práticas diferenciadas e libertadores que estejam dentro da

realidade dos discentes. Para tanto faz-se necessário que haja compreensão e respeito

entre ambas as partes e por cada indivíduo que esteja disposto a aprender, que seja dado

a estes o direito a palavra e a um espaço no qual ele se identifique em sala de aula.

Considerações acerca da escrita

A respeito da escrita pode-se dizer que esta é uma produção de ordem social. A

escrita possui como objetivo direto a leitura independente de tempo e espaço, esta

estende nossos conhecimentos à respeito de nós mesmos e do mundo no qual estamos

inseridos. “Depois de escrito, o texto tem uma existência independente do autor entre a

produção do texto escrito e a sua leitura, pode passar muito tempo.” (KOCH, 2009,

p.32).

Atualmente vivemos sociedade onde grande parte dos indivíduos é letrada,

portanto a função da escola neste contexto é mostrar para o discente o mundo das

produções escritas, para que estes tornarem-se mesmo que de forma lenta em um

indivíduo capacitado para se utilizar desta. A produção escrita exige muita dedicação, a

Page 227: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1005

mesma é considerada uma tarefa árdua, pois alguns discentes apresentam muitas

dificuldades nesta, pelo fato de que para realizar uma produção adequada, necessita-se

fazer uso de um número maior de palavras com exatidão e assim consequentemente

partir de um ponto mais elevado que aquele o qual o discente está habituado. Por este

motivo faz-se necessário que o docente o auxilie nesse processo de aquisição de

conhecimento acerca da produção escrita.

Ao iniciar seu primeiro contato com a produção escrita, as crianças tendem a

acreditar que um texto baseia-se em uma transcrição, ou seja, para elas o texto se

constrói a partir da transferência do seus dados de fala para a escrita. Para converter esta

situação as escolas juntamente com os docentes precisam complementar as atividades

desenvolvidas com os discentes com ações relevantes que influenciem estes a operar em

níveis mais elevados e assim consequentemente levar os discentes para conviver e

conhecer outras variedades da língua e mostrar-lhes que além daquela modalidade a

qual ele faz uso em sua região à outros tipos variados da língua é importante que o

docente observe as limitações de seu aluno, pois, estes quesitos são essenciais para

determinar as necessidades do mesmo em seu desenvolvimento nas produções textuais.

Só assim com a colaboração e orientação do docente o aluno entenderá que quanto

maior for seu contato com as demais formas da língua maior será a sua compreensão e

percepção sobre o texto e suas deferentes visões e formações.

Faz-se mister que o discente compreenda que ao produzir o seu texto, este será

lido por outras pessoas por este motivo é relevante que o mesmo faça uso em suas

produções de uma linguagem clara, e que se expresse de maneira sucinta levantado

questões que despertem o interesse de seus interlocutores. Neste processo a presença do

professor é indispensável pois o mesmo terá um papel crucial onde será interlocutor,

orientador e mediador de seus alunos analisando e orientando-os nesse processo tendo

em vista que este irá indicar ao aluno o caminho para uma produção escrita completa

onde haja compreensão em ambas as partes tanto do autor, quanto do interlocutor.

Considerações sobre gêneros textuais

Gêneros textuais são estruturas que constituem o texto, sejam eles orais ou

escritos. Estes são facilmente reconhecidos por manterem-se, sempre parecidos, com

suas características comuns procuram sempre alcançar intenções comunicativas

Page 228: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1006

congêneres e sempre surgem em situações peculiares no dia a dia. Podemos dizer que os

gêneros textuais tratam das diversas formas da língua existentes na sociedade a qual

estamos inseridos, sejam eles orais ou escritos, formais ou informais será quase

inevitável o seu uso em nossas conversas e produções textuais. Cada gênero possui um

estilo peculiar o que os diferencia dos demais.

Os gênero textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que

apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por

composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente

realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.

Em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações

comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo em

princípio listagens abertas. (MARCUSCHI, 2008, p.155)

É grande o número de gêneros textuais existentes em nosso convívio social,

temos vários exemplos como a carta, romance, bilhete, horóscopo, receita culinária,

bula de remédio, resenha, resumos, textos da internet, poemas entre outros que podem

ser divididos entre primários e secundários, orais e escritos. Sendo os gêneros primários

o diálogo do dia a dia, e o secundário são: romances, dramas, pesquisas cientificas de

toda espécie, e os grandes gêneros publicitários, os gêneros primários são denominados

simples, já os secundários são complexos segundo Bakhtin(2011) existe uma diferença

entre estes dois gêneros.

A diferença entre os gêneros primário e secundário (ideológicos) é

extremamente grande e essencial, e é por isso, mesmo que a natureza do

enunciado deve ser descoberta e definida por meio da análise de ambas as

modalidades; apenas sob essa condição a definição pode vir a ser adequada a

natureza complexa e profunda do enunciado( e abranger as suas facetas mais

importantes); a orientação unilateral centrada nos gêneros primários redunda

fatalmente na vulgarização de todo o problema( o Behaviorismo linguístico é

o grau extremo de tal vulgarização). (BAKHTIN, 2011, p.264)

É evidente que entre estes dois gêneros à muitas divergências, mas estas são de

extrema relevância na hora de compreender cada um deles, é notório também que o

autor faz uma crítica a respeito da vulgarização no processo de aprendizagem do aluno,

em questionamento ao behaviorismo onde acredita-se que o indivíduo só aprende se

estimulado a tal atividade, porém o que de fato é verídico é que toda criança já nasce

provida do dispositivo da aquisição de conhecimentos, ou seja desde cedo já possui

capacidade de aprender e também transmitir conhecimentos diversos.

Page 229: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1007

No que tange ao estudo e reconhecimento dos tipos de gêneros faz-se necessário

que o leitor saiba distinguir o que é gênero textual, em suas modalidades: gênero

literário e tipo textual. Cada uma dessas classificações é referente aos textos, porém é

preciso ter atenção, cada uma possui um significado totalmente diferente da outra:

Gênero Literário – nestes são abordados apenas os textos literários, diferente do gênero

textual, que abrange todo tipo de texto. O gênero literário é classificado de acordo com

a sua forma, podendo ser da encaixa-se em gêneros líricos, dramático, épico, narrativo

dentre outros.

Tipo textual – este é a forma como o texto se apresenta, podendo ser classificado bem

como: narrativo, argumentativo, dissertativo, descritivo, informativo ou injuntivo. Cada

uma dessas classificações pode varia de acordo como o texto se apresenta e com a

finalidade para o qual foi produzido.

Os gêneros textuais existem em grande quantidade, sendo aparados essenciais

para nossa comunicação seja ela na modalidade escrita ou oral, nos auxiliando de

manheira significante cada um com seu próprio estilo que se adequa e adapta-se ao tipo

de leitor e ambiente ao qual encontra-se.

Gênero textual, mais especificamente, o gênero conto

O gênero textual conto é uma narrativa, que em sua grande maioria é ficcional

onde o que prevalece são as narrativas. Sendo este uma sequência de fatos e

acontecimentos, que envolve um número limitado de personagens.

“Um conto é uma narrativa curta. Não faz rodeios: vai direto ao assunto. No

conto tudo importa: cada palavra é uma pista. Em uma descrição,

informações valiosas; cada adjetivo é insubstituível; cada vírgula, cada ponto,

cada espaço – tudo está cheio de significado. [...]. (FIORUSSI, 2003. p.103)

O gênero conto possui uma riqueza de detalhes e uma imensa variedade, de

aspectos que fazem com que este acabe tornando-se uma das principais opções de

leitura, para os discentes de modo que cada aspecto existente eleve a curiosidade destes.

Possuindo como finalidade relatar fatos reais ou fictícios imaginários de forma que a

criatividade predomine com uma riqueza de detalhes que fazem toda a diferença para

seus leitores, visando assim transmitir lições de vida e de valores, de um jeito criativo e

Page 230: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1008

realista que prende a atenção dos leitores. Existem outros tipos de gêneros que possuem

características semelhantes ao gênero conto, como a notícia e a crônica.

Possuindo como característica principal a imparcialidade a notícia tem por

finalidade fazer prevalecer a veracidade dos fatos abordados. Já a crônica possui

características semelhantes ao conto como a riqueza de detalhes, mas suas intenções a

diferem do conto. Embora ambos possuam o mesmo objetivo de entreter e ensinar algo

ao leitor.

Dentre os tipos de contos temos os que são estórias que não pode ser confundida

com a história, pois a história refere-se a narrativas onde os fatos apresentados possuem

comprovações cientificas, documentadas ou até convencionadas. Já a estória é a

expressão escrita de contos populares e tradicionais, normalmente possui aspectos

mirabolantes. Uma estória pode ser uma lenda, conto, fábula, novela, história em

quadrinhos dentre outros. (BATTELLA, 2006)[...] “cada conto traz um compromisso

selado com sua origem: “a da estória e com o modo de se contar a estória.” Os contos

são divididos entre populares e literários. Os populares são basicamente relatos

geralmente narrados pelo povo, por meio da oralidade estes são também conhecidos

como contos folclóricos ou causos. Os contos literários são ficcionais e já possuem uma

forma própria para organização e formatação, contendo autorias definidas.

Considerações Finais

No transcorrer desta pesquisa evidenciou-se a importância de se utilizar dos

gêneros textuais, mais especificamente o conto em sala de aula para despertar no aluno

o interesse pela leitura e assim consequentemente melhorar suas práticas de escrita

através das práticas de produção desenvolvidas a partir dos estudos feitos com os gênero

textual conto, pois este por sua praticidade e pouca extensão possui aspectos os quais

contribuem, de forma significativa, para o aprendizado dos discentes no que tange à

produção textual como sabemos há um grande número de gêneros textuais a nossa volta

eles fazem parte do nosso cotidiano do nosso convívio social e por isso são

reconhecidos com mais facilidade pelos alunos. A inserção do gênero textual conto nas

aulas como ferramenta facilitadora para a pratica da escrita e reescrita faz com que as

aulas tornem-se mais dinâmicas por causa da versatilidade que o envolve, pois este pode

Page 231: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1009

de diversas maneiras ser absorvido pelos discentes através de atividades de leitura e

produção de textos.

Vale salientar aqui a importância do papel do docente e a sua formação no

processo de aquisição de conhecimentos por parte do discente, sabemos que a formação

do docente é repleta de inadequações no decorrer do processo, percebe-se que não á o

reconhecimento nem o investimento necessário nesse processo já que o docente possui

um papel fundamental no processo de formação de cidadãos que sejam críticos,

pensantes, formadores de opinião e capazes de saber se posicionar em qualquer

situação a qual sejam expostos.

Faz-se necessário para que haja melhoria no desenvolvimento das práticas de

escrita por parte dos discentes, a criação de projetos educacionais que propiciem melhor

aproveitamento do ambiente escolar por parte dos discentes, os incentivando e os

incluindo de maneira direta e significativa em sua produção e execução. Trazendo e

enfatizando a leitura em sala de aula e despertar no aluno o interesse por esta que é a

principal fonte de conhecimento e melhoria do discente não só em sala de aula nas

práticas de produções textuais, mas no decorrer de sua vida em sociedade como cidadão

crítico e formador de opiniões.

Referências

AZEREDO, José Carlos de. A quem cabe ensinar a leitura e a escrita?In:

PAULIUKONIS, Sigrid (Orgs). Da língua ao discurso: Reflexões para o ensino. Rio de

Janeiro: Editora Lucerna, 2005.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich.Estética da criação verbal: Prefácio à edição

francesa tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra 6. ed. São

Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2011.

BRITTO, L.P.L. Em terra de surdos-mudos: um estudo sobre as condições de produção

de textos escolares. In: GERALDI, J.W. (org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,

1997.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 17. ed.

São Paulo: Cortez,1987.

FIORUSSI, André. In: Antônio de Alcântara Machado et alii. De conto em conto. São

Paulo; Ática, 2003.

Page 232: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1010

GARCIA, C. M. A formação de professores:novas perspectivas baseadas na

investigação sobre o pensamento do professor. In NÓVOA, António (Org.). Os

professores e sua formação. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1997. p. 51-76.

GOTLIB, Nádia Batella, 1946- teoria do conto/ Nádia BattellaGotlib.-11.ed. São Paulo:

Ática, 2006.

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.

São Paulo: Parábola, 2008.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender:os sentidos do

texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2009

Page 233: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1011

A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

DE MARCELINO FREIRE [Voltar para Sumário]

Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)1

Introdução

A narrativa de Marcelino Freire é “ritmada e urgente”. Quase sempre soa como

um grito de desespero. O seu estilo inquieto tem como mola propulsora a violência

cotidiana dos oprimidos seja essa física, psicológica ou moral. Os personagens são

sujeitos que fazem parte de uma minoria política: pobres, negros, prostitutas, fora-da-

lei, analfabetos, desempregados, homossexuais, “trombadinhas”, donas de casa, etc.

“Escrevo porque escuto – um olhar para o humano, para o outro. Escrevo sobre

violência, personagens desajustados, desvalidos, sofridos”, afirma o escritor (apud

Santos, 2010). Marcelino diz, ainda, que escreve para se vingar: “para me vingar de um

amor que foi embora, para me vingar de uma paixão que não deu certo, para me vingar

de um governo que não caminha, não vai bem. Eu escrevo para me vingar das injustiças

sociais, das coisas que me afetam2”.

Autor de cinco livros de contos e um romance- Angu de Sangue (2000),

BaléRalé (2003), Contos Negreiros (2005), Amar é crime (2010), Rasif, mar que

arrebenta (2004) e Nossos ossos (2013), respectivamente- a grande influência de

Marcelino, mais que os grandes escritores, foi a sua mãe, com as críticas referentes à

situação que vivia com seus nove filhos, em Sertânia, interior de Pernambuco. Sendo a

família grande e pobre, a mãe teve que emigrar para o Recife, onde provavelmente os

filhos teriam a oportunidade de estudar e consequentemente melhorar de vida. Foi dessa

1 Mestranda em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de

Pernambuco (PPGL-UFPE). 2 Em entrevista concedida a Hélio Filho. Disponível em: http://blog.atelie.com.br/2012/11/o-poeta-vingador/#.VU-

eW-PIXKE

Page 234: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1012

vivência, então, que Marcelino encontrou o caminho da sua escrita, compactuando com

a fala de sua mãe: “a fala da minha mãe, a ladainha dela, as dores dela contaminaram,

impregnaram a minha escrita. Uma escrita teatral, tragicômica, etc. Carreguei os gritos

dela no ouvido. E ainda carrego. Durma e se acorde com um barulho desses”3, afirma o

autor.

É importante ressaltar que Marcelino Freire, por sua origem, tem uma ligação

muito forte com a tradição oral pernambucana. Em suas narrativas, a musicalidade e a

oralidade presentes lembram as cirandas, os improvisos, a literatura de cordel, a

embolada, a ladainha, típicos da cultura sertaneja. É tamanha a influência que, no lugar

de contos, Marcelino chama de cantos as narrativas que constituem a obra Contos

Negreiros (2005), porque, segundo ele, são perfeitos para serem lidos em voz alta4. O

escritor trabalha muito com a memória musical, de ouvido: “tenho a coisa da oralidade

sertaneja, dessas ladainhas, queixas nordestinas. O que faço acaba sendo música, um

canto, um maracatu qualquer5”. Ainda nesse sentido, o autor reforça que o conto nasce

sempre de um som:

Eu não tenho muita história para contar imediata, de cara. Tenho sempre uma

frase ou alguma coisa que vai me remeter a um som. Acabo sendo guiado por

esse ouvido que o nordestino tem. A gente está muito próximo de uma

ladainha. O nordestino é de falar muito, reclamar, se queixar. Isso de alguma

coisa ficou na minha memória e meus textos acabam sendo muito orais,

monólogos prontos6.

Já os contos de BaléRalé (2003), o autor chama de 18 improvisos, por serem

contos muito curtos e em Rasif- mar que arrebenta (2004), encontramos “cirandas,

cirandinhas”, pois os contos parecem com cantos e são marcados pela musicalidade.

Os textos de Marcelino Freire também apresentam muita dramaticidade. Talvez

isso se deva a forte relação que ele tem com o teatro. Quem já viu ou assistiu a algum

vídeo do escritor lendo seus textos, ao fazer a leitura silenciosa, normalmente, é

impulsionado a buscar um ritmo e a entonação exata das palavras, imagina uma

performance. Isso também ocorre porque a presença da oralidade e da performance

ressoam na escrita do contista. Talvez como uma consequência por ter começado como

escritor de dramas, atentando sempre para a pontuação e construindo estratégias que

3 Entrevista concedida a Thiago Corrêa. Disponível no site: http://www.vacatussa.com/entrevista-marcelino-freire/ 4 Essa obra inclusive virou audiolivro, cujas leituras são acompanhadas do instrumento de percussão. 5 Entrevista concedida a Daniela Birman. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/danielabirman1.html 6 Entrevista concedida a Daniela Birman. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/danielabirman1.html

Page 235: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1013

insinuem a presença de gestos, entonação, etc. Marcelino quis muito ser ator e fez um

curso para tal por 10 anos, dos 9 aos 19 anos, em Recife. Desistiu quando descobriu que

tinha pudor, já que se algum diretor pedisse para ficar sem roupa em público, não teria

coragem. A partir dessa convivência, Marcelino diz que quando escreve tira a sua roupa

e a roupa dos outros: “toda vez que eu escrevo algo, penso em um ator, uma atriz.

Enceno as cenas que crio7”

No decorrer desse trabalho buscarei discutir o conceito de performance,

sobretudo na visão de Zumthor ( 1993; 1997; 2014), e de que forma ela ressoa na

narrativa escrita de Marcelino Freire bem como se configura na leitura em voz alta do

autor. Para tanto, inicialmente esboçarei um breve histórico da performance, que se

inicia no período do Trovadorismo e permanece em recitais modernos.

1. Do Trovadorismo à performance moderna

Comecemos pelo conceito de performance. A performance implica a presença e

a conduta de um leitor real, e o intérprete, por sua vez, transmite sua mensagem com a

voz e corpo; é, pois, um acontecimento oral e gestual. Para Zumhtor (1997, p.33), “a

performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente,

aqui e agora, transmitida e percebida”. Ou seja, locutor, destinatário e circunstâncias se

encontram concretamente confrontados. Ainda segundo Zumthor (1993, p.222): “é o

todo da performance que constitui o lócus emocional em que o texto vocalizado se torna

arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva”.

A performance é diferente da leitura porque alguma coisa dela transborda:

“elementos marginais, que se relacionam à linguagem e raramente codificados (o gesto,

a entonação), ou situacionais, que se referem à enunciação (tempo, lugar, cenário)”

(ZUMTHOR, 2014, p.73). Destarte, a performance recusa-se a funcionar como signo e

exige interpretação. É nesse sentido que Zumthor (2014) sugere a distinção entre obra e

texto. O texto seria a sequencia de enunciados e a obra “tudo o que é poeticamente

comunicado”.

É no nível da obra que se manifesta o sentido global, abrangendo, com o do

texto, múltiplos elementos significantes, auditivos, visuais, táteis,

7 Entrevista concedida a Cândido: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=360

Page 236: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1014

sistematizados ou não no contexto cultural; o que eu denominaria o barulho

de fundo existencial (as conotações, condicionadas pelas circunstâncias e o

estado do corpo e o estado do corpo receptor, do texto e dos elementos não

textuais). (ZUMTHOR, 2014, p. 74)

A performance, ou interpretação em público com o suporte da voz e do corpo,

tem sua origem em tempos remotos. No período do Trovadorismo (século XII- XV),

durante a apresentação poética, não havia uma separação entre o corpo e o intelecto. A

poesia precisava do corpo para se concretizar, “não havia outra maneira de ter contato

com a poesia a não ser através do corpo de outra pessoa, primeiro apenas em festivais

cortesãos e depois em eventos e lugares públicos das vilas” (ROSÁRIO, 2007, p.21).

Nesse período, a “’composição poética’ significa constituir um texto (como texto) e

realizar o texto com a voz, na verdade com todo o corpo” (GLUSBERG, 2005, p. 41

apud TELLES, 2007, p.10). A partir do século XV, com o desenvolvimento da

tipografia e da imprensa, no lugar da oralidade e da interação pessoal foi surgindo a

individualidade e privacidade, características que marcam a sociedade moderna. A

leitura silenciosa e solitária foi ocupando, portanto, o lugar dos palcos e as formas de

receber a obra, consequentemente, tornaram-se outras.

No século XX, a história da performance, contudo, ganha um novo episódio. O

futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo, vanguardas europeias, utilizaram a performance

“como um meio de provocação e desafio, na sua ruidosa batalha para romper com a arte

tradicional e impor novas formas de arte” (ROSÁRIO, 2007, p.12). Geralmente, as

performances surgiam de exercícios de improvisação. Mas havia, simultaneamente, a

adoção de técnicas do teatro, da dança, da fotografia, da música e do cinema. Os artistas

denunciavam a estagnação e o isolamento da arte. Sendo assim, buscavam o

envolvimento do público na atividade artística. Um movimento semelhante a esse

aconteceu na Semana de Arte Moderna , no ano de 1922, no Brasil quando os artistas

recorriam ao corpo e à voz para veicular o poema e suas ideias.

Dessa forma, as vanguardas europeias supracitadas recolocaram o corpo como

suporte da transmissão da poesia. Liderado por Fillipo Tommaso Marinette, que

publicou o Manifesto Futurista em 1909, o futurismo lutava contra a forma tradicional

de se fazer arte (GOLDBERG, 2006, p.46).

A performance era o meio mais seguro de desconcertar um público

acomodado. Dava a seus praticantes a liberdade de ser, ao mesmo tempo,

Page 237: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1015

“criadores” no desenvolvimento de uma nova forma de artista teatral, e

“objetos de arte”, porque não faziam nenhuma separação entre sua arte como

poetas, como pintores ou como performers. Manifestos subseqüentes

deixaram essas intenções muito claras: instruíam os pintores a “ir para as

ruas, incitar a violência a partir dos teatros e introduzir o pugilato na batalha

artística”. E, fiéis ao ritual, foi exatamente o que fizeram. A reação das

platéias não foi menos anárquica – arremesso de batatas, laranjas e qualquer

outra coisa que o público exaltado conseguisse encontrar nos mercados mais

próximos.

Os futuristas tinham como objetivo também inovar técnica de declamação.

Diferente da “declamação antiga, estática, pacifista e nostálgica” (GOLDBERG, 2006,

p.8), o declamador futurista “deveria declamar tanto com suas pernas quanto com seus

braços. As mãos do declamador deveriam, além disso, brandir diferentes instrumentos

ruidosos” (idem, ibidem,p.8).

Segundo Rosário (2007), nos últimos trinta anos houve um avivamento da

apresentação- a performance- como meio de expressão poética. Paul Zumthor

elucidando seu interesse pelo estudo da voz nas manifestações artísticas

contemporâneas, afirma: “faço alusão a uma espécie de ressurgência das energias vocais

da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das

sociedades ocidentais pelo curso hegemônico da escrita (ZUMTHOR, 2014, p.40)”. O

Slam Poetry, eventos de declamações poéticas nos Estados Unidos, surgido na década

de 80, e os recitais alternativos no Brasil, bem como as baladas literárias revalorizam a

transmissão oral das obras literárias tal como acontecia no Trovadorismo.

No Brasil, na década de 70, com as restrições do governo militar e a consequente

censura, poesias consideradas “subversivas” precisavam se virar fora do mercado

editorial. Dessa forma, surgiram formas que derivariam diretamente nos recitais

alternativos urbanos na década de 80 e cujo desenvolvimento fez aparecer a poesia

performática contemporânea. Na década de 80, então, nas principais capitais brasileiras,

acontece um “boom” de recitais (ROSÁRIO, 2007).

Em Recife, o Movimento dos Escritores Independentes (MEI) se reunia em

bares da Rua Sete de Setembro para apresentar seus poemas na rua. Como já

foi visto, a cultura de recitais é antiga no Estado, o que faz nova a situação é

o reposicionamento que insere o contexto e o conteúdo da poesia marginal

acima exposta nas apresentações públicas – até então apenas comuns de duas

formas: na leitura de poemas em circuitos intelectuais (na Livraria Livro

Sete, por exemplo), onde o livro é nitidamente o centro ainda, e não o corpo;

e nas formas populares do repente, da embolada e da poesia sertaneja

(geralmente apresentadas na rua e em festivais), derivadas de formas da

culturas orais pré-modernas (ROSÁRIO, 2007, p. 45)

Page 238: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1016

Os recitais urbanos continuam a se proliferarem e são marcados cada vez mais

pela performance dos escritores como Miró, Ronaldo Correia de Brito, Cida Pedrosa,

Ferrez, dentre outros. Marcelino Freire, o escritor aqui em debate, é curador de alguns

eventos e projetos nessa perspectiva. O seu projeto “AuTORES EM CENA”, por

exemplo, tem como propósito transformar escritores em atores. Dessa forma, em vez de

leituras se realizam apresentações teatrais e com toda uma estrutura cênica: diretores,

sonoplastas, iluminação, músicos e fotógrafos. Escritores como Lourenço Mutarelli,

Ferréz, João Silvérios Trevisan, Cínthia Moscovich, Micheliny Verunschk, dentre

outros, foram desafiados a interpretar o próprio texto e ver a reação da plateia8.

Marcelino também criou o projeto QueBras com o objetivo de percorrer quinze

capitais brasileiras, distante dos grandes centros, a fim de descobrir qual o espaço

literário que vem se formando nesse contexto, quem são os autores e agitadores

artísticas de cada região. Nas cidades visitadas, Marcelino desenvolve uma oficina

literária para conhecer os poetas, prosadores, cronistas e romancistas locais e ao fim

desta também realiza saraus e recitais, onde os artistas realizam suas performances.

Falar de Marcelino também é associá-lo ao grande evento que acontece desde

2006 em São Paulo, a balada literária, cujo objetivo é fazer a “literatura sair das

estantes, ir para as ruas, para os cafés, na companhia do leitor”. A balada conta com a

presença de grandes escritores e têm em sua programação saraus, recitais,

representações teatrais. Partindo desses pressupostos, notamos não só que Marcelino faz

performance como também fomenta a realização dessa pelos artistas contemporâneos.

2. A performance nas narrativas de Marcelino Freire

Ao ler Marcelino Freire “sentimos que uma voz vibra originariamente em sua

escritura e que ela exige ser pronunciada” (1997, p.40). Marcelino converte a violência

da realidade na organização interna do discurso, a partir de “um canto catártico, cuspido

e inquieto” (LIMA, 2008, p.163), no qual conseguimos sentir “cada palavra como um

tiro ou uma facada. Cada palavra e seu significado sangrento9”, utilizando as palavras

8 É possível assistir a todos esses vídeos em um canal do youtube intitulado “AuTORES EM CENA”. 9 Ariano Suassuna, em “História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão ao Sol da Onça Caetana”. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1977, p. 80.

Page 239: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1017

de Ariano Suassuna. Isto permite dizer que até mesmo na leitura solitária e puramente

individual há um grau performático, embora mais fraco, próximo do zero.

As marcas da performance aparecem na escrita literária do autor. O texto de

Marcelino Freire apresenta o mesmo caráter duplo dos textos medievais, é “oral ao

mesmo tempo que escrito” (ZUMTHOR, 1993, p.207). A oralidade é uma característica

marcante da produção literária do autor e se apresenta de duas formas: na reprodução

“fiel” da fala de seus personagens10

, sem impor a língua que seria gramaticalmente

correta, e no que diz respeito à transmissão de seus textos, lendo-os em voz alta com a

presença de um público. Para saber se seu texto está finalizado, Marcelino o lê em voz

alta, o que corrobora com o pensamento de Barthes (1996, p.40): “um texto só é escrito

na medida em que é lido, e uma leitura sensível pode transformá-lo em um texto de

escritura”. Em “O prazer do texto”, Barthes defende que para uma estética do prazer

textual é necessário a leitura em voz alta:

a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética, seu objetivo não é a

clareza das mensagens, o teatro das emoções, o que ela procura (numa

perspectiva da fruição) são os incidentes puncionais, a linguagem atapetada

de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a patina das

consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne

articulação do corpo, da língua, não do sentido, da linguagem (BARTHES,

1996, p. 86).

Percebe-se, com a leitura das narrativas freireanas, que uma “energia transborda

do texto”, utilizando as palavras de Zumthor (2014). O autor trabalha as palavras de

forma a fazer do texto “uma epifania de voz viva, apesar dele e em aparente contradição

com seu status de escritura” (ZUMTHOR, 1993, p.210). Nesse sentido, afirmo que a

performance ressoa na letra.

As energias que transbordam desse texto operam segundo vários eixos

(ZUMTHOR, 1993). Partindo desse pressuposto, a marca da voz na produção escrita de

Marcelino Freire, aparece pela justaposição de elementos que não se subordinam;

afirmações breves, entrecruzadas por exclamações, expressões imperativas, séries

cumulativas descontínuas, predomínio das formas nominais sobre as verbais, um

vocabulário restrito e condensado, provocando inclusive um obscurecimento de sentido

e uma vulgaridade de tom que dá a impressão de conversa ou confissão. Essas

10 Nesse sentido, é preferível usar o termo vocalidade à oralidade, como sugere Zumthor (1993), pois aquele

considera a historicidade de uma dada voz, seu uso por um determinado grupo.

Page 240: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1018

características são o que define o primeiro eixo descrito por Zumthor (1993),

relacionado às qualidades sintáticas e lexicais. Em toda a narrativa de Marcelino é

possível encontrar essas características. No conto “Vaniclélia”, do livro Contos

Negreiros (2005), a título de ilustração desse eixo, numa espécie de desabafo a

protagonista argumenta porque prefere a antiga vida de prostituição à vida de casada:

Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O gringo

era covarde, levava para ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de

bosta arrependida. De coisa criada. Qual é a minha esperança com esse

marido barrigudo, eu grávida? Que leite ele vai construir? [...] Agora que

valor me dá esse belzebu? Quanto vale ele ai na praça? Pergunta, pergunta. A

vida dele é me chamar de piranha e vagabunda. E tirar sangue de mim. Cadê

meus dentes? Nem vê que eu tô esperando uma criança. Agora, disso

ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim (FREIRE, 2012, p.41).

É possível observar, portanto, as afirmações breves (“Casar tinha futuro”), as

expressões imperativas (“pergunta, pergunta”), a vulgaridade de tom (“vida de bosta

arrependida”; “ a vida dele é me chamar de piranha e vagabunda”).

O segundo eixo que mostra os índices de oralidade no texto está relacionado

com a sintaxe e a retórica. Diz respeito “ao uso dos tempos verbais e aos jogos de

mascaramento ou de perspectiva que ele permite” (ZUMTHOR, 1993, p.208). No

contos do escritor pernambucano, a recorrência do verbo no presente (temos sempre a

impressão de que alguém está gritando no momento em que se está lendo) assegura “a

permanência de uma palavra-testemunha” e a permanência da “instância da enunciação,

a presença carnal e a continuidade da voz” (idem, ibidem). Esse eixo também se

caracteriza pelo uso de interrogações, exclamações, travessões e apóstrofe, o que, na

situação performática indicam a entonação, os gestos, a mímica. É o que podemos

observar no conto “Nação Zumbi”, em que chama a atenção a quantidade de

interrogações que compõe o texto. Indignado, por ser impedido de vender o seu próprio

rim para não morrer de fome, o protagonista faz várias indagações:

Por que vocês não se preocupam com os meninos aí, soltos na rua? Tanta

criança morta e inteirinha, desperdiçada em tudo que é esquina. Tanta córnea

e tanta espinha. Por que é que não se aproveita nada no Brasil, ora bosta?

Viu? Aqui se mata mais que na Etiópia, à mingua. Meu rim ia salvar uma

vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez mil, e agora? (FREIRE,

2012, p.55).

Page 241: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1019

Uma característica marcante da narrativa freireana, e que podemos observar

nesse trecho, é o chamamento por um receptor não identificado, o que nos leva a pensar

que é o próprio leitor, convocado a uma atitude ética diante do desabafo ou confissão do

personagem.

A estética das narrativas freireanas são pensadas tendo em vista a performance

poética, isto é, a interpretação em público. Já na escrita o autor também determina o

ritmo, a pulsação e a dramaticidade para interpretação do texto:

eu escrevo mesmo em voz alta, gosto de falar, de “rezar” os meus textos.

Esse romance mesmo, Só o pó, eu não me canso de reler, de interpretá-lo pela

casa, como se eu estivesse “cantando” o texto. A prosa só me convence

quando passa por esse teste sonoro. Todo mundo que escreve deveria

fazer isto: ouvir, em bome alto som, o que está colocando no papel. Isso

determina ritmo, pulsação, dramaticidade do texto. Eu escrevo de ouvido...

Eu escrevo com o corpo inteiro. Nunca conto uma história, eu “componho”

uma história, entende? [Grifo meu]11

3. A performance de Marcelino Freire: voz, gesto, indumentária, local e

ocasião.

Marcelino Freire recria o universo de diferentes personas encontradas à margem

da sociedade e isso, por si só, já é bastante performático. A construção das vozes dos

sujeitos interfere na performance, seja com relação ao sotaque, às gírias, o ritmo ou os

trejeitos.

Para interpretar suas narrativas, o corpo de Marcelino, diante de uma

conferência, palestra, apresentação, exige soluções estéticas, que mesclam a utilização

da voz, do gesto e da música, o que amplifica a mensagem escrita. Com relação à

performance do autor, recentemente foi publicado pelo PublishNews12

um vídeo

intitulado “Marcelino Freire lê com emoção até bula de remédio”. O escritor costuma

ler seus contos em voz alta, incluindo gestos e, algumas vezes, ritmos musicais, que são

geralmente atrelados aos negros e pobres: o banto, o samba, o rap, o funk.

No espetáculo “Cantos negreiros”, que já tem mais de cinco anos, Marcelino

mistura músicas do repertório de Fabiana Cozza (cantora de samba) com trechos de seus

livros e histórias curtas sobre personagens negros e marginalizados inspirados em Lima

11 Entrevista concedida a Márcio Renato dos Santos. Disponível em

http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=360

12 Disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=NqT4D0-5sWM

Page 242: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1020

Barreto, Cruz e Souza e Jorge de Lima. É um espetáculo politizado cujo “repertório”

denunciam o preconceito racial. “A palavra e o canto se misturam, um dando ritmo ao

outro”, explica Fabiana13

. Marcelino quase sempre usa a música de fundo, o que dá um

suporte rítmico e harmônico.

Contos Negreiros (2005) também virou um audiolivro. A gravação foi feita

pelo próprio autor, Fabiana Cozza (que faz a abertura e fechamento do livro) e tem,

ainda, a participação especial de Douglas Alonso, percussionista.

Como se sabe, a voz é o elemento mais importante da performance. A variação

dessa voz se dá por meio da entonação. A depender do conteúdo da narrativa, a leitura

de Marcelino pode ser mais lírica, desesperada, vingativa, debochada, erótica ou

melancólica. O conteúdo também dita o ritmo. Os contos “Socorrinho”, do livro Angu

de Sangue (2005); “Jéssica” e “Papai do céu” de BaléRalé (2004), que narram

estupros, não têm nenhuma pontuação, porque pretende ser dito de uma só vez,

encenando uma falta de ar, o que reforça o desespero da vítima.

Os protagonistas freireanos questionam bastante, o que é uma forma de manter

contato com o leitor14

. A entonação da pergunta, na performance do escritor, chama a

atenção do público, promovendo uma interação ainda maior. Como a maioria de suas

perguntas é acompanhada de indignação, a expressão facial e corporal ajuda a ampliar a

mensagem que se é pretendida. Nesse caso, há o que Zumthor denomina de

“performance completa”, pois há uma “visão global de situação de enunciação”, a

presença corporal do ouvinte e do intérprete é plena, “o que se opõe de maneira mais

forte, irredutível, à leitura de tipo solitário e silencioso” (ZUMTHOR, 2014, p.68).

No conto “Trabalhadores do Brasil”, cujo enredo versa sobre o trabalho escravo

no Brasil, por exemplo, no momento em que a pergunta “tá me ouvindo bem?” é feita,

Marcelino a faz devagar, quase soletrando, e dar uma pausa, demorando o seu olhar na

plateia, como se estivesse esperando uma resposta ou para ter a certeza da apreensão da

mensagem pelo público.

Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambongo bungo na lama e

isso parece que dá grana porque o povo se junto e aplaude Sambongo na

merda pulando de cima da ponte tá me ouvindo bem? Hein seu branco

safado? Ninguém aqui é escravo de ninguém. [Grifo meu] (FREIRE, 2012, p.

20)

13 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/noticias/?p=1842 14 Inclusive através de expressões como: hein? Ham?

Page 243: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1021

Outra observação interessante na performance desse conto é no trecho que diz:

“Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal de

trânsito” (FREIRE, 2012, p.19). Marcelino quando ler esse trecho repete umas três

vezes a palavra “transe”, alongando os fonemas, mexendo alvoroçadamente as mãos,

como para simular mesmo um estado de alucinação, e dizendo “transe” na terceira vez

finge perder o equilíbrio corporal, como se estivesse caindo para trás15

. O equilíbrio é

retomado por um estalar de dedos, semelhante a como faz o psicanalista para despertar

o paciente daquele estado. Sendo assim, percebemos que “o gesto é a extensão orgânica

do discurso poético performático, funcionando como um amplificador dos significados

que a voz emite” (ROSÁRIO, 2007, p.87).

No conto “Da paz”, que versa sobre uma mulher que perdeu o filho

violentamente, mas se recusa a ir à caminha da paz por achá-la “falsa”, “pálida”,

“branca”, o autor consegue com a voz e os gestos representar o estado de nervos, o

desespero em que se encontra a mulher. Marcelino interpretando esse conto junta as

sobrancelhas e fica com o olhar perdido no vazio, pensativo. Além disso, faz cara de

reprovação, raiva, desespero, indagação. O escritor também apresenta alguns tremores,

típico de alguém que está muito nervoso. Oscilando entre os tons altos e baixos. Alto ao

repetir, por exemplo, as frases “Eu não vou!”, “A paz precisa de sangue”, baixo quando

é revelado o porquê da revolta da mãe que não queria caminhar em prol da paz. Para

representar esse momento Marcelino traz uma melancolia e muita tristeza, percebido

tanto na entonação quanto na expressão facial de dor:

Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do

menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha

ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado da polícia. Toda vez que vejo

a foto do Joaquim dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um

cisco no peito. Sem fim. Uma dor. Dor. Dor. Dor. Dor. (FREIRE, 2008, p.27)

Logo no início do texto para dar ênfase ao que a mulher pensa da paz: “A paz é

uma desgraça. Uma desgraça” (idem, ibidem, p.25), quando está fazendo a performance,

Marcelino separa as sílabas, dando prolongamento a cada uma delas: “des-gra-ça”. O

15 É possível ver essa performance nos seguintes links: http://www.youtube.com/watch?v=TgC91Qbw46Y;

http://www.youtube.com/watch?v=Tes1GKmA0_k

Page 244: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1022

mesmo acontece em “A paz está proibida. Proibida.”(idem, ibidem, p.26), em que o

autor diz lentamente “ pro-i-bi-da”.

Já na frase “A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança” (idem, ibidem,

p.27), para ampliar essa mensagem, Marcelino cruza os braços e sua expressão é a de

uma criança fazendo birra.

Durantes suas performances, Marcelino mexe muito os baços e as mãos, seja

para apontar algo, como sugere algumas expressões “lá, ali, aqui”, para expulsar “xô”,

ou simular objetos, tal como aparece no conto “Da paz”. No trecho “Eu que não vou

atirar uma lágrima” (FREIRE, 2008, p. 25), o autor posiciona as duas mãos de forma

que lembra alguém usando uma arma. Já em “A paz fica bonita na televisão (idem,

ibidem, p. 27)”, o autor desenha com os dedos uma televisão no ar.

No que diz respeito à indumentária, Marcelino costuma usar roupas do seu

cotidiano mesmo e não figurinos. Já com relação ao local e a ocasião, o autor

geralmente faz suas performances em recitais, saraus, baladas literárias, cafés, livrarias,

como vimos anteriormente.

Considerações finais

Marcelino atinge uma unidade entre a voz, o corpo e o sentimento dos contos

nas suas performances, o que amplifica a mensagem que segue impressa. A

performance é importante porque “percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua

estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos

(ZUMTHOR, 1993, p. 222)”. Diante da oralidade poética, da performance, ao invés de

uma voz que fala, temos uma expressão corporal e então a “leitura torna-se escuta,

apreensão cega dessa transfiguração, enquanto se forma o prazer, sem igual” (idem,

ibidem, p. 87). É na performance que a função fática da linguagem realiza plenamente o

seu jogo: “jogo de aproximação, de abordagem e de apelo, ‘de provocação do Outro’, de

pedido” (idem, ibidem, p.87). No caso das narrativas freireanas, a performance ajuda a

ampliar o nosso olhar sobre a realidade dos que vivem à margem da sociedade.

REFERÊNCIAS

Page 245: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1023

BARTHES, Roland . O prazer do texto. 4 ed. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo:

Perspectiva, 1996.

FERRAZ, Flávia Heloísa Unbehaum. Marginalidade, violência e testemunho nos

contos de Marcelino Freire. 2009. 44f. Monografia.Universidade Estadual de Londrina,

Londrina.

FREIRE, Marcelino. Angu de Sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

_____.BaléRalé. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

_____.Contos Negreiros. São Paulo: Record, 2012.

_____. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.

GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

LIMA, Francesco Jordani Rodrigues de. Cantos e cantares em Contos negreiros, de

Marcelino Freire. VIA ATLÂNTICA Nº 12 DEZ/2007. Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/viewFile/50089/54208.Acesso em Janeiro

de 2015

ROSÁRIO, André Telles do. Corpoeticidade: Poeta Miró e sua literatura performática.

Dissertação de Mestrado. Recife: O Autor, 2007.

SANTOS, Elizangela Maria Dos. Do leito à margem, do aristo ao arisco: a verve do

narrador-marginal em Marcelino Freire – um estudo da obra Contos negreiros em

áudio livro. São Cristovão: Eduepb, 2011. 1-15 p. Disponível em: <http://pos-

graduacao.ascom.uepb.edu.br/ppgli/?wpfb_dl=205>. Acesso em: 20 Abril. 2015.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das

Letras, 1993.

____. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

_____. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

Page 246: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1024

ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS

LITERÁRIOS DAS AUTORAS CONTEMPORÂNEAS

BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA

MEDEIROS

[Voltar para Sumário]

Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD- Ribeirão Preto/SP)

1 INTRODUÇÃO

Existem, na Literatura Universal, várias formas de abordar a questão do

cotidiano feminino. Mas, o que dizer sobre a produção literária de duas escritoras

contemporâneas brasileiras, uma paulista, Ivana Arruda Leite e outra gaúcha, Martha

Medeiros?

No blog da própria autora Ivana de Arruda Leite “Doidivanas”, consta um

fragmento extraído do jornal “Correio Braziliense”:

Ivana Arruda Leite não cabe no escaninho redutor da ‘literatura feminina’.

As narrativas, embora quase sempre protagonizadas por mulheres, recusam

o registro delicado e sentimental, nada têm da névoa cor-de-rosa que paira

sobre a chamada “chick lit”. Os livros trazem uma figura feminina

emancipada, livre, dona de si. Sexo frágil, sim, mas que não foge à luta.

(DOIDIVANA, 2014)

Os textos de Ivana são sempre irônicos e debochados com personagens

femininas que no dizer do jornal Folha de São Paulo “exorciza seus homens cachorros”.

Martha Medeiros, conhecida por escrever crônicas diversas para o jornal “Zero

Hora”, tem uma grande aceitação do público brasileiro, pois seus livros apresentam

grande número de vendas no cenário nacional, além de também apresentar em sua

linguagem, um tom realístico e debochado sobre o comportamento das mulheres e o

paradoxo de ser “mulher”.

Page 247: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1025

Neste sentido, destaque-se, que em ambas as autoras, há a presença, em seus

textos literários, de uma linguagem coloquial e urbana para retratar a mulher imersa em

um mundo chamado de contemporâneo, em que ela mesma já e contemporânea em si.

As narrações, descrições e argumentações giram em torno de emoções e racionalidades

femininas contemplando os comportamentos e as atitudes de uma mulher típica do meio

urbano.

Para se analisar a configuração imagética do cotidiano da mulher nos textos das

autoras supracitadas, buscou-se a teoria do Ethos defendida pelo analista de discurso

Dominique Mainguenau. A problemática deste estudo foi: como se configura o Ethos do

cotidiano feminino no texto literário destas duas autoras?

O objetivo central foi identificar as corporeidades imagéticas e discursivas

presentes nos textos literários de Ivana Arruda Leite e Martha Medeiros. E os objetivos

específicos foram analisar os textos de autoria feminina no Brasil; discutir aspectos da

literatura contemporânea das autoras supracitadas e construir, a partir das análises, o

Ethos do cotidiano feminino das escritoras nos textos selecionados.

A metodologia utilizada foi bibliográfica, documental e descritiva, de caráter

qualitativo, pois se escolheu apenas um livro de cada autora: “Alameda Santos”, de

Ivana de Arruda Leite e “Trem-Bala”, de Martha Medeiros. O primeiro, por se tratar de

uma coletânea de gravações fictícias de uma personagem falando em primeira pessoa

sobre os anos de 1987 a 1991, e, o segundo, por se tratar de uma coletânea de crônicas

que relatam sobre a mulher em vários contextos.

2 CONCEITUANDO A PALAVRA ETHOS

A palavra grega ethos nasceu na retórica de Aristóteles com um duplo sentido:

por um lado, designando as virtudes morais que garantiam credibilidade ao orador, tais

quais a prudência, a virtude e a benevolência. Por outro, comportando uma dimensão

social, na medida em que o orador convencia as pessoas ao se exprimir de modo

apropriado a seu caráter e a seu tipo social. Nos dois casos, tratava-se da imagem de si

que o orador produzia em seu discurso, e não de sua pessoa real.

Com o advento da Análise do Discurso, alguns estudiosos começaram a se

interessar pela linguagem de uma maneira particular, trazendo o estudo do ethos para o

texto escrito, pois, antes, o ethos era apenas observado na retórica de textos orais.

Page 248: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1026

Enquanto o ethos, na retórica, era apenas observado na oratória dos falantes, na

Análise do Discurso, o ethos passa a ser analisado também em textos escritos. Assim,

como o “tom”, marcadamente presente na fala são também identificados em textos

escritos graças aos estudos desenvolvidos por Maingueneau (2001).

Para este autor, o ethos se traduz no “tom” e se apoia em uma dupla figura do

enunciador como aquele que apresenta caráter e corporalidade próprios, uma vez que o

texto escrito passa a ser analisado como gênero de discurso, isto é, como “‘dispositivos

de comunicação que só aparecem quando certas condições sócio-históricas estão

presentes” (MAINGUENEAU, 2001, p.61).

Nesse contexto, o Ethos é válido para qualquer discurso, pois remete à imagem

de um enunciador que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade

compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado como se fosse um

“fiador” do discurso. É por meio do próprio enunciado do fiador que este deve legitimar

sua maneira de dizer. O reconhecimento dessa função do ethos permite que nos

afastemos de uma concepção do discurso segundo a qual os ‘contextos’ dos enunciados

seriam independentes da cena da enunciação que os sustenta.

Como no discurso escrito não existe oralidade, é possível identificar o seu Ethos

analisando a integração do corpo e da voz ao discurso escrito. No discurso escrito há

uma imposição de um ‘tom’ de seus autores que define a entonação que acompanha

seus lugares de enunciação.

Este estudo considera a escrita feminina como elemento fundamental para se

analisar o ethos, pois vem demonstrar uma “causa” em prol de que se realizem cada vez

mais análises envolvendo a autoria feminina, as questões apontadas na literatura

produzida pelas mulheres já que há muito tempo tal produção foi silenciada e

considerada “menor” por abordar questões intimistas das próprias mulheres e de menor

importância para homens já consagrados pela literatura universal. Silva (2010) afirma

em seus estudos que a produção literária escrita por mulheres relata um universo da

esfera privada do lar ou do corpo e a linguagem desse universo, a oralidade, os

monólogos, os diálogos corriqueiros relatam vivamente percepções advindas do

universo feminino.

Page 249: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1027

3 ANÁLISE DO CORPUS DE ESTUDO “ALAMEDA SANTOS” DE IVANA DE

ARRUDA LEITE

O primeiro corpus foi o livro “Alameda Santos”, da escritora Ivana Arruda

Leite. Como bem situa Mazzoni (1998, p.06):

[...] Existe sim, uma necessidade de utilizar instrumentos provenientes dos

estudos e das teorias feministas para trabalhar com um texto literário de

autoria feminina, uma vez que é uma teoria engendrada nas relações de

gênero que busca analisar a situação da mulher na sociedade dentro dessas

produções. [...] essa outra “forma” de representar o mundo, o olhar feminino,

merece um estudo diferenciado na atualidade por significar a condição de

vida da mulher, que, também, é diferenciada.

Nos trechos das nove gravações de “Alameda Santos” apresenta-se justamente

neste panorama de uma linguagem própria da mulher emancipada, solitária e em busca

do amor, uma personagem narradora que relata minuciosamente em forma de monólogo

nas fitas gravadas, suas experiências de vida.

Percebe-se, também, que a solidão é onipresente em todas as gravações, pois a

personagem narradora fecha-se em seu quarto para falar sozinha em frente ao seu

gravador e exprime sua angústia, tormento, dependência afetiva pelo outro de maneira

única ,ou seja, dramaticamente feminina.

Magalhães (apud SILVA 2010, p. 39) define escrita feminina como “a produção

literária que se centra em temáticas específicas do universo das mulheres e que foram

negadas a elas tempos atrás”.

Percebe-se na personagem narradora do livro, um relato dos aspectos íntimos

sobre sua própria vida, suas relações amorosas complicadas, complexas, da mesma

forma que ela mesma também é um ser humano imerso numa psique complexa e que

tudo isto desemboca na solidão, colocando-a numa condição de ser e estar solitária,

mesmo sendo uma mulher emancipada, inteligente, sensata, entre outros adjetivos.

Esta condição de solidão da personagem narradora de “Alameda Santos” revela

uma dependência do outro a fim de que não esteja imersa na solidão, “tudo vale, menos

a solidão” (grifo nosso).

Em “Alameda Santos” a protagonista é uma personagem narradora, típica

mulher paulistana, moderna e cheia de loucas aventuras para contar, pois enfrenta, ao

mesmo tempo, uma solidão terrível por não encontrar verdadeiramente o seu “príncipe

Page 250: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1028

encantado”. Ela resolve gravar nove fitas de forma trágico-cômica expondo momentos

de tristeza e solidão, sempre tendo como companhias, o vinho, a cerveja, a vodca, os

cachorros e a própria “solidão” em seu quarto onde grava suas desgraças em tom

dramático, irônico, trágico e, cômico.

Na fita número um, a personagem inicia seu texto desejando uma “boa noite” a

todos os “presentes”, que os mesmos se divirtam e que não fiquem em paz nunca mais,

pois suas histórias são realmente muito loucas. Ela se queixa de como é ruim amar uma

pessoa e depois não ser amada ou valorizada, além disso, sugere dar fim à própria vida,

mas infelizmente nunca encontra o objeto que possa dar um ponto final em sua vida. A

ideia de suicídio está em várias passagens do romance.

Desta forma, a personagem narradora discorre inicialmente sua paixão por

Eduardo, colega de trabalho que se relaciona casualmente com ela, mas não quer nada

sério.

Tudo o que eu mais queria era esquecer esse cara que não me merece, que só me humilha, ofende e

maltrata. Mas quem disse que eu consigo? Ele tá acabando com a minha vida, com a minha pouca

vontade de viver (LEITE, 2001, p. 14).

Percebe-se que a personagem narradora desabafa dizendo que sua sina é se

apaixonar por caras que não a querem. Como ela mesma relata: “Vou inventando que o

meu príncipe encantado é o Eduardo, o Charles, o Miro, o Pedro, o Guto, o Tony, o Zé

das Couves” (LEITE, 2010, p.14). E até comenta sobre a possibilidade de gostar de

mulheres, presente no seguinte fragmento:

o que tem de mulher linda que é sapato, você não imagina. Atrizes, modelos,

cantoras. Aquelas supergatas que fazem os homens babarem nas revistas

masculinas estão todas lá, fazendo sabonetinho com a namorada. Um dia eu

gostaria de trepar com uma mulher. Deve ser legal. Eu bem que tento

paquerar com elas mas ninguém me leva a sério” (LEITE, 2010, p. 43).

A personagem dedica a fita número um a um alguém imaginário, que ela chama

de “meu amor que vai chegar um dia, tenho certeza” (LEITE, 2010,p.14). Trata-se de

uma busca constante, incessante, desesperada pela companhia desejada, pelo homem ou

amor desejado, contudo, ela conclui ceticamente que: “pra quem tá se afogando,

qualquer aceno é aceno, qualquer tábua é a de salvação. Infelizmente, as tábuas onde eu

me agarro são podres e mal aguentam a si próprias. Imagina uma mulher que pesa duas

toneladas nas costas de um homem” (LEITE, 2010, p. 14).

Page 251: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1029

O desabafo retrata a figura de uma mulher contemporânea, imersa em uma

solidão que não acaba, pois a mesma não encontra o homem que diga “era você mesmo

que eu queria. Era você que eu tava esperando” (IBDEM, p.14). Toda a desilusão de

não conseguir encontrar o tão sonhado amor torna-se desejo de morrer, mas que

ironicamente “toda vez que eu penso em me matar esbarro na mesma questão: eu não

tenho revólver” (LEITE, 2010, p.32).

O suicídio é recorrente, mas o fato em si não acontece pela ausência do revólver ou falta

de coragem. Na fita número dois em diante, a personagem relata as experiências de

1985 e reafirma sua solidão falando sozinha ao gravador e, mesmo assim,

paradoxalmente, se sente feliz e que não vale a pena “pirar”, mesmo que o ano de 1985

tenha sido completamente vazio de paixões. A narradora faz uma autoanálise sobre essa

angústia de todo ano querer morrer e também comenta que tudo isso é resultado também

da “sociedade de consumo, passa pelo capitalismo selvagem, pelo desencantamento do

mundo, pela Rede Globo e desemboca em mim” (LEITE, 2010, p. 38). Em várias

passagens de outras fitas, a personagem narradora também discorre sobre a situação

político, social e econômica em que o Brasil se encontrava nos anos de 1985 a 1992.

Observa-se que se trata de uma mulher lúcida que realiza uma autocrítica interna e

externa da sua solidão ocasionadas pela ausência de amor próprio. Ela mesma afirma

que “a angústia é um mal social que acomete a todos nós na pós-modernidade (LEITE,

2010, p. 38). Os comentários sobre o social surgem a partir das análises em que seu

país, o Brasil se encontrava, com as Diretas Já, a Morte de Tancredo Neves, o novo

presidente do Brasil, José Sarney, o prefeito de São Paulo ser Jânio Quadros, o Brasil ter

escolhido nas primeiras eleições com voto livre, o senador Fernando Collor de Melo

para presidente da república, e, depois, as decepções sobre as denúncias de corrupção, o

impeachment de Collor, tudo isso, ano após ano, é contextualizado em suas gravações

ao lado de suas experiências amorosas e familiares.

É interessante observar: ao mesmo tempo em que a personagem relata que sua

vida estava muito louca, paradoxalmente, no outro dia ela já consegue dar a volta por

cima, tal característica é de uma mulher pós-moderna, fluida e dinâmica.

É na fita número três que a narradora relata mais profundamente sobre sua

relação com Charles. Homem casado com Tereza, que consegue “dividir” o mesmo

Page 252: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1030

homem com a narradora e o Mauro, mas sempre numa relação de muito ciúme e

mentiras.

Charles é o amigo, amante, companheiro de farras e grande “amor” da narradora,

mas um homem efêmero, que vive pelo momento “embora seja eterno enquanto dure”.

Mesmo assim, a narradora tem com Charles o mais duradouro dos casos, pois os dois se

divertem a cada encontro que se prolonga em outros encontros, sempre regados a muito

vinho, muito amor nos bares, nos apartamentos, nas chácaras por onde se encontram.

São muitos acontecimentos narrados entre Charles e a narradora, contudo, a

mesma sempre se decepciona com o caráter descompromissado e preguiçoso de

Charles. Na fita número seis, a narrador reserva um pouco da sua fala para relatar sobre

sua família, isto é, seus pais. Em alguns momentos da narrativa ela conta que precisou

mudar-se para a casa dos pais pois tinha perdido o emprego da Caixa. Daí, ela diz

perder um pouco da sua privacidade e diz que seu quarto é sua última chance de

encontrar-se a si mesma:

De vez quando eu tenho minhas depressões, acordo chorando sem coragem

de levantar da cama. Mas não tem nada a ver com eles (pais) [...] quando eu

canso da barulheira, vou pro meu quarto e fico lá lendo um livro ou vendo

televisão. Eles respeitam minha privacidade e me deixam em paz. Nunca

gostei de confusões familiares (LEITE, 2010, p. 99).

Em outro momento desta fita, destaca-se o amor pelos cachorros, a relação da

narradora com os animais de estimação da casa dos pais. “Não tem coisa melhor do que

amar um cachorro e ser amada por ele. É o único amor incondicional que existe neste

mundo. O que sempre quis ter e não consegui” (LEITE, 2010, p. 102). É quando no sítio

onde foi morar com os pais que descobre este amor pelos cachorros Barão e Princesa,

realmente muito presentes na vida dela. “Eles agora moram comigo” (LEITE, 2010,

p.112). Na fita número oito, a narradora faz uma autoanálise ao fato de nunca ter dado

certo com seu ex-marido, o Pedro, pai da Gabi. Pedro era um ótimo marido, os dois

eram católicos praticantes e levavam uma vida tranquila, até que a personagem diz ter

se cansado da monotonia da vida de casados. Eles se separam. Posteriormente, conta-se

que o Pedro contrai a doença Aids e o mesmo morre. Na sequência, a espiritualidade da

narradora também é abordada, pois a mesma já tinha participado ativamente da

carismática, de esoterismo, mas ao final de tudo preferia “rezar sozinha”, pois ninguém

do catolicismo a aceitaria do jeito louca de ser.

Page 253: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1031

Por mais que eu gostasse daquela espiritualidade, não tinha como

compartilhar minha vida com aquelas pessoas. Eles jamais me aceitariam

como eu era e eu não tava disposta a abrir mão disso por nada do mundo.

Abandonei o grupo e vim pra casa rezar sozinha. Essa história de confundir

religião com babaquice não tá com nada (LEITE, 2010, p. 140).

Neste contexto solitário, a narradora mostra a importância também de um

psicanalista na vida dela a fim de se entender melhor: comecei a análise dia 25 de março

e nunca mais parei. Duas vezes por semana, religiosamente, eu deito minha cabecinha

naquele divã abençoado e deixo o Camilo fazer o que quiser comigo. O cara tá me

pondo em pé de novo graças a ele, eu saí da pasmaceira que tava vivendo e tô voltando

à vida (LEITE, 2010, p.140).

A angústia da personagem em busca de paz, de companhia, de

autoconhecimento, espiritualidade, amor, tranquilidade profissional, independência não

cessam. A ausência de tudo isso no outro traduz-se na palavra solidão. Ela tem a

amizade de Charles nas farras, nas loucuras de amor, mas não encontra nele

responsabilidade e seriedade para viver um relacionamento sério com o mesmo.

Na fita número nove, a última do romance, retrata-se a última grande decepção

da personagem, saber que Charles, seu amante, ao ir à Europa conhece um rapaz pelo

qual se apaixonou e voltou ao Brasil dizendo que tinha encontrado a sua felicidade ao

lado de um moço chamado Juca.

Depois de um mês e pouco, uma noite toca o telefone de novo: ‘oi cheguei, tô

na Boca da Noite. Vem pra cá’. Eu me vesti e fui. Dessa vez sem tanta pressa. Quando

cheguei, ele contava as novidades da viagem pra uma mesa cheia de gente e todos

morriam de rir das trapalhadas que ele fez no Velho Mundo. Sentei ali perto e fiquei

ouvindo. Ao lado dele tinha um rapaz bonitão a quem ele se dirigia especialmente. Deve

ser o novo namorado, pensei. O Mauro tinha morrido há menos de um ano de Aids. Daí

a pouco ele me chamou pra mesa dele e fez questão de me apresentar: ‘Esse é o Juca,

um amigo meu’. Eu tomei dois chopps e fui pra casa ver televisão que eu ganhava mais

(LEITE, 2010, p. 155).

Aquele homem a quem ela tanto amava (Charles) e fizera tudo por ele durante os

momentos de amizade, farras, diversões, a trocara definitivamente por um rapaz. A dor

da solidão retorna e desfecha o livro com o desfecho de toda a cena:

Page 254: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1032

Aquele homem a quem ela tanto amava (Charles) e fizera tudo por ele durante os

momentos de amizade, farras, diversões, a trocara definitivamente por um rapaz. A dor

da solidão retorna e desfecha o livro com o desfecho de toda a cena:

São 2 da manhã. Eu tô falando desde a meia noite sem parar. Meu copo tá

todo ensebado. Acho que bati as cinzas do cigarro nele sem parar. [...] O pior

é que Camilo tá de férias e amanhã eu não vou ter com quem falar. Se ao

menos a empregada tivesse acordada, eu conversaria com ela (LEITE, 2010,

p.157).

A solidão é sempre amenizada pelos cachorros Barão e Princesa, seus únicos e

incondicionais amores. A narradora afirma:

Não sei o que seria da minha vida sem esses cachorros. Isso sim é amor de

verdade. Esses dois nunca me decepcionam. Eles não dizem que vão ligar e

não ligam, que vão vir aqui e não vêm, que me amam e trepam com outra na

primeira esquina. Eles são capazes de matar se alguém me fizer mal (LEITE,

2010, p. 157)

É com este teor de nostalgia, decepção e ceticidade que a personagem narradora

mostra como encara a vida, os acontecimentos e experiências, desejos, inquietações.

“Alameda Santos” retrata de forma “crua e nua” o pensamento de uma mulher

solitária paulistana que recorre a todas as alternativas possíveis e impossíveis para

alcançar o amor, a paixão, a liberdade de ir e vir, mesmo que para isso ela tenha que

passar por tantas decepções.

Como afirma Silva (2010, p. 201), “[...] a obra de Ivana Arruda Leite é rica,

aborda com maturidade a violação de códigos sociais, associada à manutenção de

estruturas arcaicas, à medida que problematiza o assunto na representação literária”.

Percebe-se que a solidão é construída paulatinamente em cada fita gravada pela

personagem através das narrações decepcionadas da personagem relatando as

experiências amorosas, familiares e profissionais sempre queixando-se de que não

deram certo. A narradora demonstra uma dependência afetiva do outro e como não

encontra o que busca neste outro, a solidão é única companheira. sociais.

A construção da solidão nas narrações deste livro acontece a cada desilusão

amorosa da personagem. Ela não conseguiu encontrar o afeto desejado nos ex-

namorados, no ex-marido nem no ex-amante, pois os mesmos apresentavam aspectos

que não a tornavam feliz em sua plenitude. Como a própria narradora desfecha a sua

nona gravação:

Page 255: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1033

Não sei o que seria da minha vida sem esses cachorros. Isto sim é amor de

verdade. Esses dois nunca me decepcionam. Eles não dizem que vão ligar e

não ligam, que vão vir aqui e não vêm, que me amam e trepam com outra na

primeira esquina [...] O Charles foi passar o natal em Ubatuba com o Juca e

me disse que me ligava quando voltasse pra gente passar o réveillon juntos

[...] Um dia ele vai sentir saudade do meu amor. Um dia eu vou esquecer dele

mas ele nunca vai se esquecer de mim. Pelo resto da vida ele vai lembrar do

tempo que foi amado por uma mulher que era capaz de matar e morrer por

ele. E vai sentir muita falta desse amor, tenho certeza. Vou desligar. Tchau.

(LEITE, 2009, 158).

A decepção por não ser vista como aquela que se doou ao máximo pelo outro em

busca do amor é traduzida pela tristeza e solidão, pois a narradora coloca que os

cachorros são sua única companhia, demonstrando, desta forma, que o peso da solidão

recai sobre a personagem. Destaca-se, neste sentido, a condição feminina de um Ethos

solitário da personagem, que ora também utiliza uma linguagem irônica, sarcástica, ora,

uma linguagem sentimental para representar sua condição solitária e dependente do

‘amor’.

4 ANÁLISE DO CORPUS “TREM-BALA”, DE MARTHA MEDEIROS

Tomou-se como segundo corpus, a coletânea de crônicas da autora Martha

Medeiros “Trem-Bala”. As crônicas foram também publicadas nos jornais O Globo e

Zero Hora. Ao todo, o livro é composto de 112 (cento e doze) páginas, só que destas

112 (cento e doze), extraíram-se 20 (vinte) crônicas em que relatavam especificamente

opiniões sobre a figura feminina nos dias atuais. Dentro destas 20 (vinte) crônicas,

foram selecionadas três crônicas como forma de ilustrar analiticamente a linguagem

utilizada para abordar sobre a mulher contemporânea na visão de Martha Medeiros.

Ao todo, foram 03 (três) crônicas analisadas da coletânea de 112 (cento e doze)

crônicas “Trem-Bala”, escrita por Martha Medeiros: “As boazinhas que me perdoem”;

“O que quer uma mulher” e “Mulher de um homem só”.

A crônica “As boazinhas que me perdoem”, destaca-se pela linguagem autêntica,

direta e clara da autora. Não é por acaso que é a primeira do livro: “Trem-Bala”. A

autora inicia seu texto com duas problemáticas a serem argumentadas detalhadamente.

Uma sobre qual o elogio que toda mulher adora receber e, outra, sobre o que faz uma

mulher detestar escutar.

Page 256: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1034

Em um único parágrafo, Martha Medeiros utiliza a linguagem coloquial

personificando-se no discurso da mulher contemporânea como aquela que gosta de ser

elogiada em todos os sentidos, desde os físicos ou morais, o que não se tolera é escutar

o adjetivo diminutivo “boazinha” originado de outros adjetivos diminutivos como

“queridinha, pequenininha, educadinha, ceguinha”.

Se a mulher dos séculos passados “engolia tudo”, “fingia” e “vivia rodeada de

panelinhas e nenezinhos”, a mulher contemporânea que Martha Medeiros aborda é uma

outra completamente diferente e alheia a tais adjetivos. A autora associa o vocábulo

“boazinha” a “coitadinha”, “comportadinha”, sempre “disponível, serena, previsível,

nunca foi vista negando um favor”. Trata-se de um ethos irônico quanto a este

comportamento “diminutivo”, ao qual a mulher se amparou durante muito tempo.

Para a autora, a mulher de hoje é uma mulher de atitudes velozes, que odeia ser

chamada de “boazinha”. A mulher atual é uma mulher “bacana, complicada,

batalhadora, persistente, ciumenta, apressada”. Trata-se de um ethos veloz, eficiente,

contemporâneo.

A própria autora, em sua crônica, insere-se no discurso, utilizando a 1ª

(primeira) pessoa do plural (nós) e afirma: “é isso que somos hoje. Merecemos adjetivos

velozes, produtivos, enigmáticos. As “inhas” não moram mais aqui. Foram para o

espaço, sozinhas” (MEDEIROS, 2012, p. 12).

Neste sentido, percebe-se que o olhar da autora sobre o feminino no contexto do

contemporâneo, é de que a mulher é um ser imperfeito e complicado e, por outro lado,

batalhador e persistente.

Na crônica “O que quer uma mulher”, Martha Medeiros discute o paradoxo do

pensamento feminino. Ao mesmo tempo em que a mulher contemporânea é este ser

veloz, “até as mais modernas e cosmopolitas têm o sonho secreto de encontrar um

príncipe encantado”.

Em outras palavras, argumenta-se que toda mulher deseja ser “resgatada da torre

do castelo [...] ouvir eu te amo só no ultimo capítulo”. E nesta busca na qual a autora

discute, nem sempre o homem consegue corresponder à expectativa de uma mulher,

pois “nenhuma mulher se sente amada o suficiente”.

Page 257: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1035

Com esta última oração, a autora desfecha sua crônica demonstrando o caráter

completo da mulher contemporânea, imerso em uma encruzilhada: de um lado, é uma

mulher veloz, de outro, uma mulher que busca o amor a todo custo.

Na última crônica analisada, “Mulher de um homem só”, Martha Medeiros

deflagra ainda mais o paradoxo que permeia o ser feminino: ao mesmo tempo em que a

mulher deseja ser raptada pelo amor, ela não gosta da monotonia, do mesmo, ela quer

ter uma vida agitada. Ela quer liberdade.

A mulher de um homem só casou virgem com um escritor que detesta

badalação. A última festa em que ele compareceu foi a do seu próprio

casamento, a contragosto [...] A mulher do homem só, então passou a ter

agenda cheia: o professor de computação, o gerente do banco, o dono do

posto de gasolina. Vivia para cima e para baixo com seus novos amigos:

cinema, shopping [...] Não corria o risco de encontrar o marido em nenhum

desses lugares. Começou a usar decotes, maquiagem e ria alto. Nunca se

sentira tão feliz (MEDEIROS, 2012, p. 28).

Na leitura de apenas três crônicas, observa-se que a abordagem sobre a mulher

contemporânea na visão de Martha Medeiros é de uma mulher que se apresenta em um

ethos corajoso, ativo, que está sempre buscando a felicidade e a liberdade, mas também

quer ser amada por um “príncipe encantando”.

5 CONSIDERAÇÕES

Ao longo da leitura de “Alameda Santos”, de Ivana Arruda Leite, fica evidente

que a solidão é a grande característica da mulher emancipada, aquela que tenta de todas

as vias ser feliz, encontrar o amor desejado, tentar equilibrar família, religião, amor,

amigos e trabalho.

Trata-se de uma mulher que cumpre seus deveres e reivindica seus direitos de

cidadã. Uma mulher transgressora que repudia qualquer tipo de discriminação ou

preconceito e tenta desconstruir modelos socioculturais de falso moralismo

condenatório do corpo feminino.

No dizer de Silva (2010, p. 16) “a natureza intrínseca do Feminino dita a

essencialidade do ser e do sentir como mulher, muitas vezes contrariando a ordem

sociocultural estabelecida pelo homem porque esse sentir percorre as profundezas do

corpo e da mente”.

Page 258: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1036

A dependência afetiva e o não preenchimento desta sensação deixam a

personagem narradora mergulhada em seus próprios pensamentos ao lado apenas de

seus animais de estimação. Isto mostra a condição solitária de uma mulher emancipada

em plena contemporaneidade onde a mulher tem toda a liberdade de ser o que quiser

fazer, o que lhe convém, mas que ainda enfrenta esta grande batalha, vencer a solidão e

encontrar seu verdadeiro afeto, ou, amor.

Trata-se de ethos contemporâneo em sua essência do feminino, no livro de Ivana

Arruda Leite, pois a mulher já ocupa sua independência financeira, mas ainda, não

consegue se “livrar” da dependência psicológica do “amor”. Em Martha Medeiros,

percebe-se este ethos de dependência na terceira crônica, quando ela afirma que a

mulher mesmo batalhadora, persistente, ainda sonha em ser raptada pelo “príncipe

encantado”.

O Ethos das crônicas de Martha Medeiros se caracteriza por traduzir um olhar

realista acerca da figura feminina na contemporaneidade. Defende-se a construção de

uma mulher determinada, que sabe o que quer que luta por seus ideais profissionais e

amorosos, sem deixar de ser autêntica. Apesar de todas as dificuldades pelas quais a

mulher dos dias atuais passa, seja passando por problemas interiores ou não, a mulher

atual é aquela que está sempre a procura da felicidade.

6 REFERÊNCIAS

DOIDIVANA. Blog de Ivana Arruda Leite. Disponível em:

https://doidivana.wordpress.com/. Acesso em: 15 abr. 2015.

LEITE, Ivana Arruda. Alameda Santos. São Paulo:Iluminuras, 2009.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez,

2001.

MAZZONI, Vanilda Salignac. A escrita feminina: em busca de uma teoria. In: Revista

Ramal de Ideias. N.1, 1998. Disponível em:

http://repositorios.ufac.br/index.php/ramal/article/viewArticle/12, acesso em 07 de jan.

2010.

MEDEIROS, Martha. Trem-bala. Porto Alegre: L& PM, 2012.

SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Mulheres representadas na literatura feminina:

vozes de permanência e poética da agressão. Campina Grande: EDUEPB, 2010.

Page 259: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1037

VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE

TRATAMENTO EM CARTAS DO SERIDÓ E

CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO [Voltar para Sumário]

Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)

Introdução

A multiplicidade de formas atinge a língua portuguesa no que tange à codificação

linguística dos pronomes pessoais usados pelo seridoense, precisamente o

TU/VOCÊ/SENHOR (doravante, TVS) escritos em cartas pessoais da cidade de Caicó-

RN, nos anos de 1980, 1981 e 1982. Acredita-se que o caráter diversificador dos itens

da língua surge com a finalidade de atender às necessidades de comunicação dos

falantes porque a língua – qualquer uma – é dinâmica, não para, evolui, passa por

mudanças sofrendo (ou não) variações.

Busca-se, assim, neste artigo mapear a frequência do uso das formas em

competição Senhor, Você e Tu em amostras de cartas do Seridó, precisamente, escritas

em Caicó nos anos de 1980, 81 e 82, retiradas do Corpus do LABEL – Laboratório de

Linguagens do CERES, Campus de Caicó; observar se existe outro pronome capaz de

competir com os mesmos, neste caso o “a gente” – muito comum na fala local; observar

se os missivistas tenderiam a usar, indistintamente, o pronome de tratamento para

segunda e/ou terceira pessoa; refletir sobre o grau de intimidade, baseando-se no

conteúdo das cartas, precisamente, a relação de poder estabelecida entre os escribas.

É possível afirmar que há uma crescente utilização do você em substituição ao tu

como uma opção de tratamento e um declínio com relação ao Senhor. Tal escolha vem

alterando também a concordância e, de certa forma, provocando mudanças na maneira

de se expressar. Essa mudança já é notada a partir dos meados do século XIX.

A variação observada entre as formas pronominais do tu, você e senhor no

português brasileiro é uma questão já evidente. De forma tímida, no fim do século XIX,

Page 260: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1038

percebe-se a coexistência do tu e do você em referência a um mesmo interlocutor

(BARCIA, 2004). Fenômeno também investigado por Duarte (1993) que, observando

amostras de peças teatrais do Rio de Janeiro, produzidas nos séculos XIX e XX, verifica

que o emprego de você supera o uso de tu. No entanto, Paredes e Silva (2000), afirma

que o tu regressou ao dialeto carioca, sem a flexão da forma verbal adequada de

segunda pessoa.

O interesse pela questão do tuteamento, do voceamento e do senhoramento tem

suscitado diversos estudos acerca dos fatores linguísticos que teriam provocado o

processo de mudança, por exemplo, de Vossa Mercê > você. Já se percebe que o você se

encontra integrado ao sistema de pronomes pessoais, às vezes, substituindo o tu ou

convivendo ao lado deste, se é que o verbo traga a marcação de segunda pessoa como

prescreve a gramática da norma. É notório também que o senhor, pronome de

tratamento por natureza, vem se distanciando de sua empregabilidade e ganhando outra

dimensão. Às vezes se flagra concorrendo com o tu e o você em contextos nada formais.

Sob o aparato da Sociolinguística Quantitativa ou Variação e Mudança

(WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968), observam-se muitas pesquisas no Brasil

que esclarecem, através de seus resultados, a temática ligada à mudança dos pronomes

de tratamento em estudo.

Dessa forma, tem-se como força propulsora investigativa nesta pesquisa

reflexões sobre o percurso da mudança ocorrida com o TVS na cidade formadora da

amostra. Pensa-se em uma investigação que possa evidenciar, identificar, documentar e

caracterizar uma (das várias) variantes linguística do Seridó, dando oportunidades para

se comparar com outros estudos do mesmo naipe do cenário linguístico nacional.

O suporte teórico se fixa prioritariamente na Sociolinguística variacionista

(WEINREICH, LABOV, HERZOG, 1968), que preza um estudo de variação e mudança

em uma determinada comunidade, baseando-se em dados reais de fala. Tal teoria julga

que toda língua pode sofrer variação de forma sistemática. Nada impede que se peça

ajuda à Linguística cognitivista, ainda, durante a investigação, para buscar, junto com o

arcabouço teórico variacionista a comprovação, ou até, quem sabe, refutar a tese de

competição dos pronomes de tratamento na Região do Seridó.

Para esta pesquisa, delimita-se um corpus composto por uma amostra de apenas

21 cartas escritas nos anos de 1980, 1981 e 1982 (sendo sete de cada ano) e dispostas no

Page 261: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1039

antigo LABEL – Laboratório de Linguagens do CERES – Centro de Ensino Superior do

Seridó, Campus de Caicó. Salienta-se que o todo o banco de dados se encontra com o

pesquisador.

O trabalho se estrutura em uma introdução, referencial teórico, resultados,

contribuições para o ensino, considerações finais e referências.

Referencial teórico: A teoria da variação

O que se tem de mais relevante na Teoria da Variação e da Mudança Linguística

foi estabelecido no trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (2006) publicado em 1968.

Tal trabalho rompeu com a ideia estabelecida pela corrente de estudos linguísticos que

prezava pela identidade entre estrutura e homogeneidade. Para substituir essa visão foi

proposto um estudo, baseando na heterogeneidade ordenada da língua, o que os autores

ditam como “a possibilidade de descrever a diferenciação ordenada dentro da língua”.

Labovianamente falando:

A existência de variação e de estruturas heterogêneas nas comunidades de

fala investigadas está certamente bem fundamentadas nos fatos. É a

existência de qualquer outro tipo de comunidade de fala que deve ser posta

em dúvida (LABOV, 2008, p. 238)

A variação é inerente à língua. É o que, segundo Labov (2008, p.313), traduz

duas ou mais formas distintas de dizer a mesma coisa. Tal fenômeno é chamado de

variante. Dessa forma, cada variável pode representar uma forma abstrata que se

materializa nas suas formas variantes. Na pesquisa em tela, a variável linguística se

configura na segunda pessoa do singular e nas forma variantes tu, você, senhor. Atenta-

se para a possibilidade de haver, em alguns casos, contextualmente, falando, variantes

sendo utilizadas de forma categórica, invariável, aí cabe os estudos da variação

descreverem como uma determinada variável linguística se configura.

O objetivo maior dos estudos variacionistas é a língua cotidiana, que para Labov

(2008, p.244) chama-se vernáculo, “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao

monitoramento da fala”. Vê-se, então, que o estudo da língua nesta teoria, acontece no

contexto social.

Outra temática valorizada na Teoria da Variação é o da mudança linguística.

Não se pode entender o desenvolvimento da mudança em uma comunidade sem levar

Page 262: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1040

em consideração a vida social dos usuários da língua, pois pressões sociais exercem

pressão sobre a mesma. O que se observa é que não só os fatores internos devem ser

analisados para se compreender os padrões das manifestações das línguas, mas também

os externos.

Veja-se o que afirmam Weinreich et al (2006, p. 126):

Fatores linguísticos e sociais estão intimamente inter-relacionados no

desenvolvimento da mudança lingüística. Explicações confinados a um outro

aspecto, não importa quão bem construídas, falharão em explicar o rico

volume de regularidade que pode ser observado nos estudos empíricos do

comportamento linguístico.

Assim, grosso modo, o ato de estudar um fenômeno da língua deve considerar

tanto os aspectos da estrutura (fatores internos) quanto os sociais (fatores externos).

Sobre o exposto Guy (2007, p.19) afirma:

Um dos atrativos – e um dos desafios – da pesquisa dialetal é a de ter a visão

de Jano sobre os problemas da linguagem humana, simultaneamente olhando,

de um lado, para a organização das formas linguísticas, e, de outro, para a sua

significância social.

Entende-se, assim, que a análise das formas variantes de uma variável linguística

pode revelar comportamentos que são explicados pela ação de fatores linguísticos e

sociais; que a variação não é aleatória, mas estruturada e que pode ser explicada; e ainda

que uma análise das formas tratadas de segunda pessoa, como é esta, acontece em

interação, não podendo deixar de ser auxiliada pelas ciências da cognição.

À medida em que se propõe analisar a variação, e possível mudança, do TVS na

fala do seridoense, procura-se identificar também os fatores linguísticos e sociais

condicionantes desta variação. Desse modo, os pressupostos teórico-metodológicos da

sociolinguística variacionista de Labov se mostram essenciais e eficazes.

Esclarece-se que comunidade linguística é vista como um grupo de pessoas que

comungam de normas e atitudes com respeito à linguagem, mas não como um grupo de

pessoas que falam do mesmo modo (LABOV, 1972/1991/2011). Embora compartilhem

de uma variedade de língua e sua fala demonstre os recursos linguísticos disponíveis em

sua volta, elas podem apresentar grande diversidade entre si, quando se considera sua

performance objetiva.

Page 263: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1041

As variantes linguísticas são definidas como alternativas de dizer a mesma

coisa, num mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade. Dessa forma, elas têm,

portanto, igual valor de referência, mas às vezes podem diferir quanto ao seu valor

social (LABOV, 1972/1991).

O uso do você em detrimento do tu e do senhor na fala do seridoense, mais

precisamente em cartas pessoais de Caicó, pode ser considerado um caso de variação já

que, na perspectiva Laboviana, esta variação é sistemática, não-aleatória, na medida em

que é condicionada tanto por fatores internos ao sistema linguístico, como fatores

externos, de natureza social.

Os resultados...

Expõem-se aqui os resultados quantitativos das formas pronominais de

tratamento levantadas no corpus desta investigação com relação à frequência de uso,

seguido de análises qualitativas.

Quadro1: Frequência de uso das tvs

Formas utilizadas

tu você(s) senhor outros

2(1%) /172(100%) 158(93%) /172(100%) 12(6%) / 172(100%) 0 (0%)

Fonte: elaboração própria

A visível predominância do você sobre tu já era de certa forma esperado tendo

em vista que o Seridó experimenta, assim como todas as regiões e sub-regiões do país as

pressões advindas da dinamicidade da língua. O que é de fato importante apontar é a

predominância quantitativa do tratamento senhor sobre o tu, mesmo em cartas pessoais,

apesar dos dados significantemente escassos.

Veja-se no exemplo da carta (1):

A, meu abraço

A finalidade desta linha é para dartes ás minhas notícias que estamos todos com saúde

graças a Deus, ás mesmo desejo que vá ti encontra com os seus. Camp: recebir o dois mil Cr$

que o senhor mim enviou muito obrigado Deus lhe der muita saúde e o mente os seus dias de

registência... ( Carta 1)

O tratamento senhor é utilizado formalmente (pelo menos é o que preconiza a

gramática tradicional). Assim, cartas pessoais pela sua natureza menos formal não

Page 264: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1042

deveria aparecer com certa evidência competindo com o tu. Talvez a escolha fora

condicionada pela dimensão de poder.

Segundo Brown & Gilmar (1960), quando uma pessoa interage com outra, está

exercendo uma sobre a outra, níveis de poder, o que pode acarretar uma assimetria no

tratamento. Dessa forma, o tipo de correspondência, assim como a relação emissor –

destinatário poderá influenciar na escolha de uma ou de outra forma de tratamento.

Uma pessoa pode exercer o poder sobre a outra na medida em que é capaz de

reger o comportamento da mesma, quer seja pela força física, quer seja pela situação

econômica, posição familiar, etc. Tal relação não se configura como recíproca uma vez

que pode variar de acordo com a área de atuação. O poder, ainda, pode estar relacionado

a outros fatores como diferença de idade, profissão, etc. Características às quais, por

vezes recorrentes, se atribuem ao valor social, dependendo, claro, de cada comunidade

linguística.

O uso do senhor que aparece nas amostras usadas como corpus deste trabalho

parece estar ligado à posição familiar. Entretanto, observando o fragmento abaixo,

observa-se outro entendimento:

Atente-se para a carta (2):

Caicó, 17 07-82

L Saudações.

Ao fazer desta fico gozando saúde juntamente com minha filha...(...)Olhe L

quero ti dizer que entre nós não existe mais nada tudo acabou certo? Foi você que quis

assim, não foi...Olhe não adianta o senhor fica mim telefonando nem mim escreva carta

dizendo que mim ama, que esta arrependido do que fez certo? Que eu não vou aceita ta.

Eu nunca vou esquecer o que o senhor fez comigo, o senhor mim maltratava, sabia que

eu amava o senhor e fez isso comigo. Coisa de menino mesmo...(...)

As cartas pessoais são remetidas para um destinatário individualizado e próximo.

Nelas poderão aparecer assuntos de natureza diária como saúde, tomadas de

empréstimos, conselhos, agradecimentos, relacionamento amoroso ou odioso, etc. No

fragmento acima, por exemplo, percebemos ironia no senhor utilizado. Tal suposição é

confirmada com a expressão “coisa de menino mesmo”.

Apesar de existir em uso outro competidor para as formas em estudo, por

exemplo, a gente, não foi encontrado nenhum dado que confirmasse tal uso.

Procurou-se condensar os dados na tabela abaixo. Nela observa-se o

mapeamento geral. O você aparece absoluto em quase todos os contextos das cartas,

Page 265: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1043

quer visível, sob forma de pronome, quer invisível, através das disposições

combinatórias verbais que resulta no sujeito oculto você.

Quadro do Mapeamento dos usos de Tu, Você e Senhor

Natureza da carta Sexo – emissor Sexo - receptor Relação de poder Pronome

01 Amizade F – chefe F - empregada superioridade Você

02 Amizade F – chefe F - empregada superioridade Você

03 Familiar F – Mãe M – filho superioridade Você

04 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você

05 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você

06 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você

07 Familiar F – mãe F – filha Igualdade Você

08 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Tu

09 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Você

10 Familiar F – irmã F – irmã Igualdade Você

11 Familiar M – sobrinho F – tia Igualdade Você

12 Familiar F – irmã M – irmão superioridade Você

13 Familiar M – sobrinho F – tia Igualdade Você

14 Amizade F – amiga F – amiga Igualdade Tu

15 Familiar F – irmã F – irmã superioridade Você

16 Familiar F – irmã F – irmã Igualdade Você

17 Familiar M – filho M – pai inferioridade Senhor

18 Amizade F – amiga F – amigo inferioridade Senhor

19 Amizade F – irmã F – irmã Igualdade Você

20 Amizade F – irmã F – irmã Igualdade Você

21 Amizade F – mulher M – homem superioridade Senhor

Fonte: elaboração própria

Contribuições para o ensino

Diante de uma realidade em que o aluno se depara com fenômenos em variação,

como o uso do TU, VOCÊ e SENHOR, é relevante que a escola se sinta preparada para

não reproduzir a discriminação linguística. (BRASIL, 2001). É papel do professor

favorecer o processo de reflexão da língua para que o aluno perceba que o processo

linguístico é interativo e dinâmico.

Page 266: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1044

Como dizem os PCNs (BRASIL, 2001, p. 82) “ é enorme a gama de variação e,

em função dos usos e das mesclas constantes, não é tarefa simples dizer qual é a forma

padrão (efetivamente, os padrões também são variados e dependem das situações de

uso”)

Pensando assim, as formas TVS devem ser tratadas em nível de igualdade, sem

espaços para preconceitos. Mesmo sabendo que existem diferenças em relação ao uso

dessas formas, gerado pelas avaliações subjetivas advindas do convívio cultural, todas

devem ser tratadas como legítimas. Veja o que diz os PCNs (BRASIL, 2001, p. 82):

É importante que o aluno, ao aprender novas formas linguísticas,

particularmente a escrita e o padrão de oralidade mais formal orientado pela

tradição gramatical, entenda que todas as variedades linguísticas são

legítimas e próprias da história e da cultura humana.

Inspirando-se ainda nos PCNs (2001, p.82-83), algumas atividades são salutares

para se trabalhar com a variação linguística, as quais passa-se a se transcrever com

adaptações:

Transcrição de textos orais, gravados em vídeo ou cassete, para

permitir identificação dos recursos linguísticos próprios da fala;

edição de textos orais para apresentação, em gênero da modalidade

escrita, para permitir que o aluno possa perceber algumas das diferenças entre

a fala e a escrita;

análise da força expressiva da linguagem popular na comunicação

cotidiana, na mídia e nas artes, analisando depoimentos, filmes, peças de

teatro, novelas televisivas, música popular, romances e poemas;

levantamento das marcas de variação linguística ligadas a gênero,

gerações, grupos profissionais, classe social e área de conhecimento, por

meio da comparação de textos que tratem de um mesmo assunto para

públicos com características diferentes: (...)

análise de fatos de variação presentes nos textos dos alunos;

análise e discussão de textos de publicidade ou de imprensa que

veiculem qualquer tipo de preconceito linguístico;

análise comparativa entre registro da fala ou de escrita e os preceitos

normativos estabelecidos pela gramática tradicional.

Sendo assim, o professor deve promover reflexões e análises de textos de

gêneros diversos, nas modalidades de fala e de escrita, nos níveis formal e informal,

abrindo espaços para variações da língua vernácula, estilos, regiões e condições sociais

também diversas. Desse modo, possibilita-se ao aluno momentos de reflexão e a

abertura para o contato com a diversidade e o respeito às diferenças, assim como, o

favorecimento do desenvolvimento da competência comunicativa do mesmo.

Page 267: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1045

Considerações finais

A análise realizada fornece algumas evidências acerca do uso das formas TVS

na cidade de Caicó, Seridó potiguar. De modo geral, pode-se dizer que a forma você é a

mais recorrente entre os informantes dispostos em cartas pessoais, usadas como

amostras.

Os resultados emergidos corroboram algumas hipóteses que nortearam este

estudo. Pelos dados, ousa-se dizer que os missivistas utilizam-se, indistintamente, o

TVS sem se preocupar com a concordância com a pessoa do discurso.

Não foram identificadas outras formas que pudessem competir com o TVS.

Nesse caso, esperava-se que o a gente, muito comum em falas coloquiais, aparecesse

nas análises.

Com relação ao grau de intimidade, o teor das cartas apontou para uma forma

igualitária no tratamento (13(62%)/21(100%)), no entanto, aparecem tratamentos

denotando superioridade (06(29%)/21(100%)) e inferioridade (02(9%)/21(100%)).

Relativamente às implicações para o ensino, o estudo das formas em variação,

como é caso das TVS, merece ser visto a partir do texto, promovendo-se situações de

gêneros e formalidades diversas para que o aluno entre em contato com uma diversidade

maior de situações linguísticas, sem margens para se desenvolver o preconceito.

É válido ressaltar que esta pesquisa está em andamento, daí a limitação dos

dados, sendo interessante, para o futuro, fazer um estudo mais pormenorizado sobre a

temática incluindo mais dados quantificadores, envolvendo não só a cidade de Caicó,

mas também, as demais cidades que compõem o Seridó.

Referências

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais- Língua Portuguesa- 5ª a 8ª séries.

Brasília: MEC/SEF, 2001.

CAMPOS, L. S e SILVA, A.C G.V. As Funções da linguagem nos chats: o internetês

numa abordagem funcionalista. Fólio Revista de Letras – v. 2, nº 1, p. 163 -182, jan.-

jun. Vitória da Conquista, 2010.

Page 268: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1046

CASTILHO, A.T. de. Para um programa de pesquisas sobre a história social do

português de São Paulo. In: MATTOS E SILVA, R.V. (org). Para a História do

Português Brasileiro: vol.III: Primeiros Estudos. Tomo II. São Paulo. Humanitas/

FAPESP, p.337-369. (2001a)

______. Proposta Funcionalista de Mudança Linguística. Os processos de lexicalização,

semanticização, discursivização, e gramaticalização na constituição das línguas. In:

LOBO, T.; RIBEIRO, I.; CARNEIRO, Z.; ALMEIDA. N. (org) Para a História do

Português Brasileiro. Vol VI: Novos dados, novas análises. Salvador. EDU/UFBA.

(2001b)

DIAS, E.P. O Uso do tu no português brasiliense falado. Dissertação de Mestrado em

Linguística. Brasília, UnB, 2007.

FAUCONNIER, G. Mappings in trought and language. Cambridge, Cambridge

University Press. (1997)

FAUCONNIER, G; SWEETSER. E. Cognitive Links and Domains: Basic Aspects of

Mental Space Theory. In: FAUCONNIER, G; SWEETSER. E. (Eds). Spaces, words

and Grammar. Chicago and London: The University Chicago Press, (1996)

FIGUEIREDO, L.A. Tu e você no português afro-brasileiro. Comunicação ao VI

seminário de Pesquisa e Pós Graduação da UFBA. Salvador, 2005.

FREITAG, R.M.K; FONSECA E SILVA, M. Uma análise sociolinguística da língua

utilizada na internet: implicações para o ensino de língua portuguesa. Revista

Intercâmbio, vol XV. São Paulo: LAEL/PUC-SP, 2006

GARDNER, H. A Nova Ciência da Mente: uma história da Revolução Cocnitiva. São

Paulo, Edusp, trad. De Maria Cláudia M. Caon.1995.

GUY, G.R; ZILLES, A. Sociolinguística quantitativa- instrumento de análise. São

Paulo: Parábola, 2007.

______. Introdução à análise quantitativa da variação lingüística. In Guy, G. e ZIlles, A.

Sociolinguística quantitativa – instrumental de análise. São Paulo. Parábola, 2007.

LABOV, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia. University of Pennsylvania, Press

11º Ed. 1972/1991.

______. Principles of linguistic change: External factors. Cambridge/Philadelphia.

Blackwell Publichers, Vol. 2, 2001.

_____. The case of the missing cúpula: the interpretation of zeroes in African American

English. In: GLETIMAN, L.R.: LIBERMAN. M. (Eds). An invitation to cognitive

Science. Vol 1:Language. Cambridge. Massachusetts: London. England. The Mit Press,

1995.

Page 269: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1047

______, W. Padrão Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008. (tradução de Marcos

Bagno,Maria Marta Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso)

LANGACKER, R.W. Foundation of Cognitive Grammar. Vol 1. Teorical

Prerequisites. Stanford, California, Stanford University Press, 1987

LOREGIAN-PENKAL, L. (RE)análise da referência de segunda pessoa na fala da

região sul. Tese de Doutorado em Letras/lingüística. Curitiba, UFPR, 2004

LUCCA, N.N.G. A variação tu/você na fala brasiliense. Dissertação de Mestrado em

Linguística. Brasília, UnB, 2005.

MARTINET, A. A lingüística sincrônica: estudos e pesquisas. Trad. De Lilian Arantes.

Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1974.

MENON, O.P.da S. Pronome de segunda pessoa no sul do Brasil:tu/você/senhor em

Vinhas da Ira. Letras de Hoje, Porto Alegre, V.35, n 1, 2000.

PAREDES SILVA, V. L. Cartas cariocas: a variação do sujeito na escrita informal.

Tese de Doutorado em Linguística. Rio de Janeiro: UFRJ. Faculdade de Letras, 1988.

______. O retorno do pronome tu à fala carioca. In RONCARATI, Cláudia;

ABRAÇADO, Jussara. Português brasileiro: contato linguístico, heterogeneidade

histórica, Rio de Janeiro; FAPERJ, 7letras, 2003.

RAMOS, M.P.B. Formas de tratamento no falar de Florianópolis. Dissertação de

Mestrado em Linguística. Florianóplolis, UFSC, 1989.

TALMY, L. Toward a Cognitive semantics. Vol 1. Concept structuring systems.

Cambridge.Massachusetts/london. England.The Mit Press. 2003a.

______. Toward a Cognitive semantics. Vol 2. Concept structuring systems.

Cambridge.Massachusetts/london. England.The Mit Press. 2003b.

TAVARES, M. A. Sociofuncionalismo: um duplo olhar sobre a variação e mudança

lingüística. Interdisciplinar. Edição especial Abralin/SE, Itabaiana/SE. Ano VIII, v.17,

jan/jun. 2013.

SOARES, I.C.R. & LEAL M.da G.F. Do senhor ao tu: uma conjugação em mudança.

Moara. Revista do Curso de Mestrado. UFPA, Belém, nº 1, mar/set 1993.

SOARES, M.E. As formas de tratamento nas interações comunicativas: uma pesquisa

sobre o português falado em Fortaleza. Dissertação de Mestrado em Letras, Rio de

Janeiro, PUC, 1980.

WEINREICH, U.; LABOV, W,; HERZOG, M. I. Empirical Foundations for theory of

language chage. In: LEHMANN, W.P.; MALKIEL, Y. (Eds) Direction for historical

linguistic. Austin & London University of Texas Press.1968

Page 270: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1048

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA

DO DISCURSO À LEITURA DE POEMAS LÍRICOS [Voltar para Sumário]

Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)

Introdução

O processo de escolarização do texto literário tem sofrido críticas as mais

diversas. Na década de 1970, por exemplo, Osman Lins (1977) fez uma crítica severa à

seleção de textos literários presentes em livros didáticos, que ele julgou desprovida de

um critério estético, o que, na época, deixou de fora autores como José Lins Rêgo e

Graciliano Ramos. Outro aspecto também criticado pelo autor é o fato de o livro

didático subestimar a competência leitora do aluno, apresentando uma série de

quadrinhos para explicar fenômenos linguísticos que poderiam ser explicados apenas

verbalmente. Segundo ele, essa “Disneylândia pedagógica” poderia fazer com que o

aluno, hiper-exposto à leitura de quadrinhos, não se tornasse leitor do texto literário.

Uma terceira crítica, sobre a qual iremos nos deter, diz respeito a questões

teórico-metodológicas na Educação Básica. Várias pesquisas, entre elas, as de Aguiar e

Bordini (1993), Cosson (2006), Cosson e Paulino (2009) e Lajolo (2010) apresentam a

necessidade de um ensino que enfoque a leitura efetiva do texto literário, sem desprezar

o estudo acerca do fenômeno literário. De um modo geral, o que esses pesquisadores

defendem é que a escola não tem privilegiado a experiência com a leitura de textos

literários concretos, mas um estudo de elementos periféricos ligados à produção das

obras literárias. Ou seja, nela, tradicionalmente, tem-se discutido o contexto histórico

em que uma obra foi publicada, apresentado algumas características estilístico-

estruturais de determinada estética literária e uma lista de autores representantes dessa

estética, e, por fim, identificado no texto literário algumas dessas características (nos

raros casos em que o texto está na sala de aula). Ao assumir essa postura, a escola

Page 271: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1049

brasileira não oportuniza uma leitura do texto literário como um evento discursivo, isto

é, como uma unidade de comunicação artística na qual o autor estabelece um diálogo

com o público leitor de sua época e com o público de outros contextos sócio-históricos.

Essa crítica de ordem teórico-metodológica não se limita à configuração das

aulas, mas se estende à abordagem da Literatura em livros didáticos. Pinheiro (2007;

2009), ao analisar essa abordagem, endossa a crítica de outros pesquisadores no que se

refere ao enfoque dado à identificação de elementos estilístico-estruturais de uma

estética literária na análise de um texto. Além disso, chama a atenção para outros

aspectos negativos, como o a omissão de referências bibliográficas importantes para a

abordagem dos textos e o caráter reduzido e fragmentário da antologia de textos

literários, sobretudo daqueles do gênero poema lírico.

Considerando que, atualmente, as coleções didáticas do Ensino Fundamental e

Médio têm sido avaliadas por universidades públicas através do Programa Nacional do

Livro Didático (PNLD), levantamos a hipótese inicial de que tal abordagem não

estivesse mais presente no trabalho com os textos literários de um modo geral e com os

poemas líricos em particular. Desse modo, escolhemos o terceiro volume da coleção

Português: linguagens, de Cereja e Magalhães, obra avaliada pelo PNLD e que adota a

Análise Dialógica do Discurso, entre outros pressupostos teóricos. Diante da

impossibilidade de fazer análise de um grande volume de dados num artigo científico,

selecionamos uma atividade representativa da abordagem de poemas líricos: um

exercício de compreensão leitora proposto para o poema Psicologia de um vencido, de

Augusto dos Anjos. Julgamos que a escolha dessa obra poderia nos fazer perceber: a)

em que medida se dava a articulação entre os diferentes aspectos que constituem a

compreensão leitora de um poema lírico num livro didático (LD) que adota uma noção

discursiva dos gêneros literários e b) observar a coerência entre a discussão teórica

presente no manual do professor e a proposta metodológica subjacente aos exercícios.

Os resultados apontaram que, apesar de se basear nos pressupostos da Análise

Dialógica do Discurso, o LD analisado ainda apresenta uma tradição de ensino que

busca inscrever os poemas em estilos de época. Contudo, também é possível perceber

um esforço para avaliar se o aluno possui algumas habilidades, tais como a identificação

da temática global do poema e do posicionamento discursivo do poeta, sem ensinar,

porém, como criar estratégias para o desenvolvimento de tais habilidades.

Page 272: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1050

Nosso trabalho divide-se em três momentos. Primeiramente, refletimos sobre

algumas ideias presentes na Análise Dialógica do Discurso que nos ajudaram a construir

um “olhar” para o gênero poema lírico e para o ensino da compreensão leitora desse

gênero. Em seguida, apresentamos uma análise para um exercício de compreensão

proposto para o poema de Augusto dos Anjos. Por fim, apresentamos algumas

considerações finais.

Pressupostos teóricos

De início, é preciso esclarecer que a Análise Dialógica do Discurso não se trata

de uma teoria na acepção tradicional do termo, com categorias pré-estabelecidas para

análise de dados, mas é antes uma proposta de trabalho cujas categorias são construídas

na e pela pesquisa. Poderíamos dizer que sua constituição como campo do saber resulta

da busca de alguns pesquisadores para encontrar uma unidade nos estudos

empreendidos pelos integrantes do que se convencionou chamar de Círculo de Bakhtin,

cujos representantes de maior repercussão na academia, até o momento, são Bakhtin,

Volochínov e Medviédev1.

Nossa escolha pela Análise Dialógica do Discurso se deve ao fato de que as

reflexões sobre língua(gem) do Círculo de Bakhtin tem sua gênese nos estudos

literários. Não se trata de uma reflexão a priori sobre língua(gem) que será depois

aplicada ao texto literário, mas de uma concepção de língua(gem) que nasce da própria

análise de obras literárias. Assim sendo, deparamo-nos com reflexões que podem

oferecer uma maior organicidade às relações entre língua(gem) e literatura. Dada a

extensão de nosso trabalho, iremos fazer um recorte de algumas ideias norteadores

presentes nos estudos do Círculo, a saber: a noção de discurso, gênero discursivo e

dialogismo, uma caracterização do gênero poema lírico e um conceito de compreensão

leitora.

Nos estudos de Bakhtin ([1934-1935] 2002), Bakhtin/Volochínov ([1926] s.d.;

[1929] 2009) e Medviédev ([1928] 2012), percebemos que é comum o interesse em

promover uma reflexão sobre língua(gem) cujo enfoque recaia em seu uso concreto, e

não em estruturas linguísticas abstratas. Interessa ao Círculo o estudo do discurso, que

1 Embora saibamos que exista outro modo de grafar os nomes de Volochínov e Medviédev, mantivemos a

grafia das obras que consultamos para a pesquisa.

Page 273: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1051

compreende uma dialética constitutiva entre o material verbal e a situação comunicativa

que o produziu. De acordo com Bakhtin,

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da

linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso

sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro,

não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-

se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos

pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana (BAKHTIN,

[1952-1953] 2011, p. 261).

Dada a multiplicidade dos campos da atividade humana, teríamos muita

dificuldade para produzir e compreender discursos literários ou não literários de outrem,

caso não houvesse uma relativa estabilidade na organização desses discursos. Nesse

ponto, destaca-se o conceito de gêneros discursivos. Para Bakhtin, é possível fazer uma

classificação dos discursos que produzimos e compreendemos de outrem levando em

consideração que, além de pertencer a um ramo da atividade humana, os discursos

possuem uma temática, uma composição e um estilo, que estão articulados na produção

de sentido, de modo que podemos classificá-los em gêneros discursivos. Nesse ponto

caberia perguntar o que constitui o gênero discursivo poema lírico? Contudo, para

responder a essa questão, faz-se necessário refletir sobre o conceito de diálogo.

Para o Círculo, o diálogo face a face é apenas uma forma prototípica de um

fenômeno mais amplo, o dialogismo. Todo discurso representa, antes de tudo, uma

réplica a um discurso anterior e, ao ser produzido, fica sujeito a receber também uma

réplica, de modo que se insere numa cadeia discursiva. Assim, todo discurso estabelece

um “diálogo” como um discurso que o antecedeu e fica sujeito a dialogar com novos

discursos que o sucederão. Nem sempre esse “diálogo” é intencional, porém sempre

ocorre, pois, conforme Bakhtin/Volochínov afirmam,

não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou

mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou

desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de

um sentido ideológico ou vivencial ([1929] 2009, p. 98-99, grifo dos autores).

Ou seja, nunca estabelecemos uma relação de neutralidade com as palavras,

porque elas nos chegam atravessadas por um sentido “ideológico ou vivencial”. Assim,

ao produzirmos nossos discursos, sempre estabelecemos uma relação de adesão parcial

Page 274: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1052

ou integral com outros discursos, de contrariedade também de forma parcial ou não, de

inter-iluminação, entre outras, embora alguns estudiosos da literatura preceituem que as

palavras, ao ingressarem na atividade estética, adquiram neutralidade.

Apresentado o conceito do dialogismo, cabe-nos retomar a questão levantada

anteriormente, “o que constitui o gênero discursivo poema lírico?”. Pelo menos dois

fatores concorrem para essa resposta: primeiro, um fator de ordem histórica, e segundo,

um fator de ordem teórica. No tocante ao fator histórico, podemos observar que a

concepção de poema lírico não permaneceu a mesma ao longo da história, pois ela

dialogou com a produção poética e a crítica literária presentes nas diferentes épocas

correspondentes às estéticas literárias (CARA, 1989). No que se refere ao fator teórico,

a concepção do que é um poema lírico pode se restringir a aspectos estilístico-

estruturais, caso se adote uma perspectiva de base estruturalista, ou perceber esses

aspectos como parte de um todo maior, se adotarmos uma perspectiva discursiva.

Como adotamos uma perspectiva discursiva, interessa-nos perceber do ponto de

vista da construção do discurso o que torna um poema lírico diferente de outros gêneros

discursivos literários, como o romance, por exemplo. Consciente de que essa

caracterização do poema lírico só é possível através de um recorte da complexidade do

fenômeno, iremos discutir o que parece ser relativamente estável no gênero ao longo da

história.

Cremos que adotar uma perspectiva dialógica para a análise de discursos implica

em perceber que os discursos não são estanques, mas estabelecem uma interação

dinâmica, logo do mesmo modo que apresentam diferenças apresentam igualmente

semelhanças. Portanto, longe de apenas apontar diferenças entre o discurso de um poeta

e o de um escritor de ficção, interessa-nos perceber em que ponto eles também são

semelhantes.

A nosso ver, o primeiro ponto de semelhança entre a produção de um poeta e de

um escritor diz respeito a sua natureza estética. Em ambos os casos, existe um processo

de interação entre autor, referente da obra e leitor que determinam a escolha do tema, da

composição e do estilo de uma obra. De acordo com BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, “Pela

mediação da forma artística, o criador assume uma posição ativa com respeito ao

conteúdo ([1926] s.d., p. 10, destaque dos autores)”, mas essa posição ativa não deve ser

Page 275: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1053

confundida com uma máxima ou proposição moral, política (ou de qualquer outra

espécie), trazida para o interior do conteúdo.

Poderíamos dizer que se trata de uma reflexão sobre a condição humana que

adquiriu um caráter simbólico através da forma estética, isto é o referente da obra

(algum aspecto da condição humana) não é meramente “julgado” como bom ou ruim,

mas problematizado e essa problematização encontra-se na composição e no estilo da

obra. Assim, por exemplo, quando um personagem é elevado à determinada posição, é

diminuído ou permanece no mesmo lugar, isso constitui um aspecto composicional que

implica numa avaliação do referente da obra. Em contrapartida, o leitor assume também

um caráter ativo nesse processo, o tempo todo ele é um elemento constitutivo desse

processo de hierarquização do personagem, pois o autor sempre leva em conta sua

capacidade de julgar que a “adequabilidade estilística tem em vista a adequabilidade

hierárquico-avaliativa da forma e do conteúdo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1926]

s.d., p. 11).

Um aspecto crucial para a distinção entre a produção de um poeta e de um

escritor é o modo como cada um articula diferentes centros de valor em seu discurso.

Esses centros de valor dizem respeito aos vários discursos que circulam na sociedade e

que são inseridos na prosa de ficção e no poema lírico a partir de “vozes”, isto é, os

discursos que constituem o discurso do autor explicitamente ou em latência.

O que distingue em essência um escritor de um poeta é modo como cada um

articula essas diferentes vozes em seu discurso. É comum na história do romance que o

escritor crie um narrador e personagens, que representam diferentes vozes sociais em

interação na narrativa. Cada uma dessas vozes tem autonomia em relação ao escritor,

pois os “centros de valor” que representam vão se desvelando para o leitor à medida que

se dá sua interação ao longo da narrativa. O poeta, por seu turno, tradicionalmente tem

construído um ethos de que seu discurso é composto apenas por sua voz, faz parte dessa

atividade colocar-se como uma voz que representa uma espécie de sabedoria ancestral.

Todavia, ao longo da história do poema lírico alguns poetas romperam com esse status,

trazendo para o seu discurso outras vozes de forma explícita, o que o aproxima de um

escritor de ficção. Essa postura de ruptura de alguns poetas gera um processo de

hibridização dos gêneros, de modo que, para caracterizarmos um poema como lírico,

precisamos adotar uma postura não estanque. Da gênese do poema lírico até as

Page 276: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1054

produções contemporâneas, é preciso traçar um continuum no qual encontraríamos

numa extremidade o poema lírico stricto sensu e o poema lírico “prosificado”. Portanto,

precisaríamos distribuir um poema de forma escalar nesse continuum, pois, a depender

do modo como o poeta articula as vozes em seu discurso, ele está mais próximo de um

poeta tradicional ou de um escritor.

Realizada essa discussão, resta-nos perguntar o que se entende por compreensão

leitora na Análise Dialógica do Discurso. Em consonância com as ideias do Círculo,

poderíamos dizer que o leitor

ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa

simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou

discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para

usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o

processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a

partir da primeira palavra do falante. (...) toda compreensão é prenhe de

resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se

torna falante (BAKHTIN, [1952-1953] 2011, p. 271).

Desse modo, todo leitor precisa cumprir um papel ativo diante do poema lírico

que está lendo, fazendo questionamentos semelhantes aos seguintes: a) este poema

dialoga com que discursos literários e não literários e de que forma esses discursos

representam vozes implícitas ou explícitas na superfície textual?; b) qual aspecto da

condição humana foi trabalhado pelo poeta e que posicionamento ele assumiu diante

dessa temática?; c) como o poema foi organizado (seleção do título, metáforas, ritmo,

etc) para dar conta desse posicionamento?; d) qual a contribuição dos aspectos

linguísticos na construção da composição do poema?

Análise de exercício de compreensão leitora proposto pelo LD Português:

linguagens

O exercício seguinte foi encontrado no capítulo 1, O Pré-Modernismo, no qual é

apresentado para o leitor um apanhado crítico sobre essa “escola literária” e sobre os

autores julgados mais representativos. Esse capítulo apresenta uma apreciação crítica da

obra dos autores intercalada por exercícios de compreensão leitora de discursos que

possam exemplificar aspectos pontuados nessa apreciação crítica, organização que está

Page 277: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1055

presente em 10 dos 13 capítulos dedicados à Literatura. O exercício de compreensão do

poema Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos, encontra-se na seção “leitura”.

Leitura

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênesis da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há-de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

(Augusto dos Anjos. Eu e outros poemas, cit., p.60)

epigênesis: teoria da formação dos seres por gerações graduais.

frialdade: frieza.

hipocondríaco: aquele se preocupa excessivamente com a própria saúde, aquele que se sente

deprimido ou com tristeza profunda.

rutilância: brilho intenso.

1. A linguagem do poema surpreende e modifica uma tradição poética brasileira, em grande parte

construída com base em sentimentalismo, delicadezas, sonhos e fantasias.

a) Destaque do texto vocábulos empregados poeticamente por Augusto dos Anjos e

tradicionalmente considerados antipoéticos. [Carbono, amoníaco, epigênesis, hipocondríaco,

verme, etc.]2

b) De que área do conhecimento humano provêm esses vocábulos? [Provêm da ciência,

particularmente da Química.]

2 O destaque em negrito corresponde à sugestão de resposta que os autores propõem para as questões.

Page 278: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1056

2. O poema pode ser dividido em duas partes: a primeira trata do próprio eu lírico; a segunda, da

morte.

a) Como o eu lírico encara a vida e a si mesmo nas duas primeiras estrofes? [Vê a vida e a si

mesmo de forma pessimista, pois entende que o homem é matéria, química, e considera

que tudo caminha para a destruição.]

b) Que enfoque é dado à morte nas duas últimas estrofes? [A morte é considerada o destino final

e fatal de toda forma de vida. Cabe ressaltar também a crueza do tratamento dado à

morte, representada pela imagem do verme a comer “sangue podre”.]

3. O título é uma espécie de síntese das ideias do poema. Justifique-o. [Embora o título contenha

a palavra psicologia, o poema detém-se a tratar da matéria das substâncias químicas que

formam o eu, evitando maior introspecção. Apesar disso, é possível constatar o

negativismo interior do eu lírico, que se considera “vencido” em virtude da fragilidade

física do ser humano e da força implacável da morte.]

4. O poema é centrado no eu. Apesar disso, pode-se dizer que suas ideias são universalizantes?

Justifique. [Sim, porque a condição humana retratada pelo poema (constituição e

fragilidade física do ser humano, fatalidade da morte) não é exclusiva do eu lírico, mas

universal.]

5. Identifique no texto ao menos uma característica naturalista e outra simbolista. [A

característica naturalista do poema está no cientificismo; a característica simbolista

encontra-se na visão decadentista do eu lírico sobre a vida.]

(CEREJA; MAGALHÃES, 2008a, p. 26)

Na primeira questão, é possível perceber que os autores pretendem estabelecer

um contraste entre a poética de Augusto dos Anjos e a poética romântica, solicitando

para isso que os alunos observem o vocabulário empregado pelo poeta e identifiquem a

área do conhecimento humano do qual esse vocabulário provém. Julgamos que seria

necessário para tal que o aluno tivesse acesso durante essa atividade a um poema da

tradição romântica que abordasse a mesma temática, a fim de que a seleção vocabular

Page 279: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1057

pudesse ser percebida por meio do contraste entre os poemas, e não somente através do

poema de Augusto dos Anjos e do conhecimento de mundo/enciclopédico do aluno.

Na segunda questão, são abordados aspectos temáticos e composicionais

(organização) do poema, porém eles não são explorados de forma que o aluno possa

construir os sentidos na interação com o texto. Pois, de um lado, o enunciado inicial já

antecipa a temática global do poema – a morte – e, por outro, as sub-questões a) e b)

não fornecem orientações para que o aluno analise o texto, apenas avaliam se ele

consegue analisá-lo.

Como solução de abordagem, poderíamos articular essa questão com a primeira,

transformando-as numa única questão, da seguinte maneira: a partir da proposição de

uma tabela comparativa entre o modo como a voz lírica desse poema e o verme foram

caracterizados. Nessa tabela, seriam listadas as palavras e expressões que são usadas

para descrever essas duas instâncias no poema. Partindo dessa descrição, poderíamos

levantar um questionamento a partir do título: “A palavra “vencido” no título caracteriza

a voz lírica ou o verme? Explique sua escolha.” Com isso, articularíamos também a

terceira questão, como uma estratégia de leitura, para que o aluno pudesse interpretar

que a voz lírica se sente impotente diante da morte. A depender do grupo-classe com

que se trabalhe será importante, inclusive, levantar conhecimentos da Biologia, a fim de

que o aluno tenha condições de perceber que o verme é uma metáfora da morte, porque

os vermes se alimentam da matéria orgânica de corpos em decomposição. A estratégia

de construção de uma tabela também poderia ser adotada para análise do modo como a

voz lírica se caracteriza no poema romântico, para, em seguida, propor o confronto entre

as duas visões de mundo diante da mesma questão humana. Assim, ficaria mais

palpável para o aluno perceber a inovação estética de Augusto dos Anjos. Além disso, o

confronto entre os dois poemas não poderia deixar de contemplar as questões culturais

que os constituem.

A quinta questão é bem representativa do formato de abordagem criticado pela

academia, isto é, a mera identificação de características estilísticas. Não estamos com

isso desprezando a importância de tal identificação, porém cremos que seria necessário

perceber de que forma o poema de Augusto dos Anjos como um todo dialoga com as

estéticas naturalista e simbolista, desde a visão de mundo, passando por questões

Page 280: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1058

estilísticas, até questões de ordem cultural, a exemplo do trabalho de confronto com o

poema romântico.

Por fim, a quarta questão funda-se num aspecto importante do trabalho com o

texto literário, que é estabelecer relações entre o poema e a vida do aluno, uma vez que

o aluno precisa perceber que sua condição é tão frágil quanto a condição da voz lírica.

Contudo, cremos que ela poderia ser proposta como um momento de pós-leitura no

qual, por exemplo, se problematizasse a questão da fragilidade do indivíduo diante da

morte ou mesma da existência.

Considerações finais

Tomando como base alguns pressupostos da Análise Dialógica do Discurso,

poderíamos afirmar que um trabalho de compreensão leitora de poemas líricos tem que

considerar, antes de tudo, o papel ativo do aluno. Colocá-lo na posição de “analista” do

poema lírico, o que implica dar enfoque a um ensino indutivo ao invés de dedutivo. Para

tanto, precisam ser desenvolvidas atividades que proporcionem ao aluno a possibilidade

de confrontar poemas de uma mesma estética literária ou entre estéticas distintas, de

modo a promover um diálogo que considere, entre tantos aspectos: a) de que forma o

poeta se posicionou diante da temática do poema, isto é, como foi avaliada determinada

questão humana; b) o modo como a composição do poema assegura esse

posicionamento do poeta (Como são caracterizadas as vozes presentes no poema? Que

figuras de linguagem são usadas e de que forma estão relacionadas com essas vozes? De

que forma os recursos sonoros se relacionam com a temática ou contribuem para a

criação de alguma imagem?); c) que recursos linguísticos são usados na composição

(elementos fonético-fonológicos, seleção lexical, construção sintática, etc); d) por fim,

como todos os aspectos anteriores estão relacionados com questões culturais (memória e

imaginário, acontecimentos históricos, fundamentos e princípios filosóficos,

sociológicos e antropológicos, entre outras) relacionadas à obra do poeta estudado.

É preciso salientar que nossa contribuição enfocou uma das etapas do processo

de leitura, a etapa de análise efetiva do texto, embora não desconheçamos que se fazem

necessárias também uma etapa inicial (pré-leitura), na qual há um processo de

mobilização para a leitura, e uma etapa final (pós-leitura), na qual são realizados novos

Page 281: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1059

percursos interpretativos, como, por exemplo, a relação entre o discurso presente no

poema e sua relação com os discursos que circulam na contemporaneidade, sejam

literários ou não. Além disso, poder-se-ia (eu diria que “tem-se que”) também refletir

com o aluno qual a importância da síntese desses discursos para a sua existência.

Finalmente, faz também necessário esclarecer que o nível de análise e os

conhecimentos que iremos realizar através da leitura de poemas líricos irá depender da

formação do grupo-classe com o qual estamos trabalhando, de modo que alguns alunos

já irão dispor do conhecimento enciclopédico suficiente para a mobilização do trabalho

hermenêutico de determinadas metáforas (como a do verme no poema de Augusto dos

Anjos) e outros não, cabendo ao professor avaliar o fenômeno e propor ou atividades

que apenas ativem esse conhecimento enciclopédico ou que gerem a oportunidade de

construí-lo.

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de.; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do

leitor. Alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. O discurso no romance. In: ______. Questões de

Literatura e Estética: a teoria do romance. Tradução direta do russo de Aurora Fornoni

Bernadirni, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário e

Homero Freitas de Andrade. 5. ed. São Paulo: Annablume: Hucitec, [1934-1935] 2002.

p. 71-210.

______. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução

direta do russo de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, [1952-1953] 2011.

p. 261-306.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch; VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. Discurso

na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Tradução de Carlos Alberto

Faraco e Cristovão Tezza para uso didático com base na edição inglesa, de I. R. Titunik,

Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics, publicada em

VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaevich. Freudism. New York: Academic Press, [1926]

1976. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/96529004/M-Bakhtin-Discurso-Na-

Vida-Discurso-Na-Arte>. Acesso em: 26 out. 2012.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara

Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, [1929] 2009.

CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1989.

Page 282: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1060

CEREJA, Roberto William; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 6.

ed. São Paulo: Atual, 2008a.

______. Manual do professor. In: ______. Português: linguagens. 6. ed. São Paulo:

Atual, 2008b. p. 3-32.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

______.; PAULINO, Graça. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da

escola. In: RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker; ZILBERMAN, Regina. Escola e

leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. cap. 3, p. 61-79.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo:

Ática, 2010.

LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. 3. ed. São Paulo:

Summus, 1977.

MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução

crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, [1928] 2012.

PINHEIRO, Hélder. Poesia na sala de aula. 3. ed. Campina Grande: Bagagem, 2007.

_____. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In: BUNZEN, Clecio;

MENDONÇA, Márcia. (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor.

São Paulo: Parábola, 2009. Cap. 6, p. 103-116.

Page 283: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1061

INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS

PUBLICITÁRIAS EM OUT-DOORS NAS CIDADES DE

OLINDA E RECIFE [Voltar para Sumário]

Heloisa Pedrosa de Araújo1

1 INTRODUÇÃO

O Trabalho visa esclarecer a impresso da linguagem utilizada, na forma da

escrita, que se apresenta em algumas campanhas publicitárias, nos suportes out-doors,

que revela a intencionalidade pretendida da comunicação, para atingir um público

específico, na apresentação de um produto ou serviço.

Nesses Gêneros textuais, especificamente nas mensagens de Instituições de

Ensino, dentre de outros artigos, apresentam direcionamentos da linguagem, e outros

argumentos utilizados, na construção do enunciado, como forma sugestiva aos leitores

consumidores dos produtos ou serviços, ao convencimento de qualidade, e

fortalecimento de escolha do mesmo, diante os concorrentes, expostas nos textos em

outdoor, na perspectiva da concepção sócio-interacionista de língua direcionada a um

grupo social específico.

Com o interesse em examinar a linguagem utilizada nos escritos dos meios de

divulgação, fundamentamos nossa investigação ao conhecimento em Marcuschi, com o

estudo dos gêneros textuais; em Koch, com a construção dos sentidos do texto;

Beaugrande e Dressler, com os fatores da textualidade, e a ênfase na intencionalidade;

entre outros que se fizeram necessários para esclarecimentos e compreensão das

possíveis variações em redações publicitárias. Para continuar o desenvolvimento do

1 Araújo, Heloísa Pedrosa de. Doutoranda em Linguística-UFPE/2014; Mestra em Ciências da

Linguagem-UNICAP/2012; Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa-

UFPE/2007;Graduada em Letras-FUNESO/2005; Lecionou na UFE/2008; Lecionou na FALUB/2010;

Lecionou na Especialização FUNESO/2014; Leciona na Rede Estadual de Pernambuco – 2008/2015,

atual.

Page 284: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1062

trabalho, buscamos respaldo em outros autores sobre a pesquisa qualitativa, como

explica Novena (2008) que:

[...] a formulação e delimitação do problema (desenvolvem-se) a partir

da “percepção subjetiva do pesquisador em relação ao contexto e a

constituição de um referencial teórico” sobre o que se deseja pesquisar. Esses

processos, num movimento espiralar de fora para dentro, permitem o

encerramento dessa etapa com a explicação de uma pergunta que se deseja

responder. (p.173)

1.1 Estudo do Texto

Para o estudo do texto. Devemos de início avaliar a forma de escrita, e dos

propósitos da composição textual. De acordo com Antunes (2012, p.37), “O texto é um

traçado que envolve material linguístico, faculdades e operações cognitivas, além de

diferentes fatores de ordem pragmática ou contextual”.

Então, palavras soltas e sem sentido não podem constituir um texto. Antunes

(2010, p.33), citando Beaugrande e Dressler (1981), afirma que “...para ser um texto

precisa ter propriedades ou critérios da textualidade como: a intencionalidade, a

aceitabilidade, a informatividade, a intertextualidade, e a situacionalidade”.

Com esse pensamento acima, podemos fazer um comentário sobre fala e escrita,

de que são elementos de construção do discurso, ora seja expressão verbal, ora seja um

texto escrito. Como explica Koch (2012, p. 14),

Fala e escrita são, portanto, duas modalidades da língua. Assim, embora se

utilizem do mesmo sistema linguístico, cada uma delas possui

características próprias. Ou seja, a escrita não constitui mera transcrição da

fala, como muitas vezes se pensa. Cabe levar em conta, porém, que na

situação face a face também podem ocorrer textos nos quais as interações

apresentam um grau de coprodução bem menor.

Então, não teria sentido para algumas pessoas, o que poderia ser esclarecedor

para outras. Nesse pensamento, podemos relacionar ao que se refere ao conhecimento

de mundo do leitor, ou seja, ao que gera de informação lógica, ou de entendimento

positivo, as palavras utilizadas, nesse texto, e sua estrutura de construção, no sentido de

coesão e coerência. Para vender um curso, sua apresentação faz correlações com a vida,

Page 285: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1063

ou das necessidades vitais do indivíduo, num contexto. Segundo Marcuschi, (2009,

p.27):

...a estrutura de um texto corresponderia à estrutura do mundo, devendo

obedecer a uma semântica contextual (intencional e extencionalmente visto)

da dimensão de mundo e a uma gramática especial não linearmente fixada,

mas de características gerativo-transformacionais.

1.2 Conteúdos de Gêneros

Os Gêneros textuais envolvem os tipos textuais, e apresentam características

sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo,

composição estrutural do texto, e seus objetivos de escritas, com seus significados

inseridos em cada texto. Daí, podemos fazer referências ao que se explana em Bakhtin

(1992, apud Koch, 2012, p.55), quando fala que,

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão

relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e

os modos dessa utilização sejam tão variadas como as próprias esferas das

atividades humanas[...] O enunciado reflete as condições específicas e as

finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e

por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua –

recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também, e sobretudo, por

sua construção composicional.

Dessa forma, queremos mostrar que tanto a leitura, como a escrita constituem-se

de eixos, como observação de extrema importância, e estão dentro das práticas sociais

cotidianas e principalmente mais formais, dentro de uma sociedade.

2 OBJETIVOS

2.1 Objetivos Gerais

A presente pesquisa procura revelar que, na composição de textos, em

divulgação publicitária, ocorre o uso da Língua informal, com aspectos diferenciados,

de conteúdo porposital, da intencionalidade, tão bem postulada pelos autores

Beaugrande e Dressler (1981), que não deixam de mostrar a importância dos outros

Page 286: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1064

fatores textuais, como: situacionalidade, informatividade, aceitabilidade, e

intertextualidade.

2.2 Objetivos Específicos

• Ressaltar que diante do levantamento bibliográfico, com respaldo de

conhecimento de autores, do assunto em tela, e trazer informações para uma discussão;

• Fazer observações dos conteúdos apresentados em outdoors, sobre o tema

investigado, como revisão de redações dos anúncios de produtos e serviços;

• Procurar dessa forma a dialogicidade que existe entre a escrita, do anúncio

publicitário e a relação entre seu público leitor direcionado.

3 METODOLOGIA

Foi selecionado alguns outdoors, das cidades de Recife e Olinda, pela proximidade

de localização, e distanciamento na construção de escritos na exposição de mensagens

em outdoors.

Então, com o corpus selecionado, na região metropolitana do Recife, foram

avaliados itens na estrutura escrita, de alguns out-doors que expressam aspectos e

expressões diferenciadas nos escritos, com a intencionalidade direcionada aos objetivos

pretendidos, de alcance ao público consumidor.

Assim, vimos como distinção entre produtos, ou como confirmação de

qualidade. Juntamente com a visão da presença dos “princípios da construção dos

sentidos do texto”, abordado pelos autores Marcuschi e Koch(2002).

Começamos em dizer que fizemos uma pesquisa teórica, por procurar

referências de informações, na literatura nacional e internacional, à procura de registros

precisos. Como dizemos que, foi também uma pesquisa empírica, porque fomos aos

locais de exposição dos outdoors, registramos em foto alguns deles, e efetivamos

entrevistas em Empresas de Divulgação e Publicidade nas Cidades de Recife e Olinda.

Portanto, o trabalho é caracterizado em pesquisas bibliográficas e de campo.

Com o interesse em examinar a linguagem utilizada nos escritos dos meios de

divulgação, fundamentamos nossa investigação ao conhecimento em Marcuschi, com o

Page 287: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1065

estudo dos gêneros textuais; em Koch, com a construção dos sentidos do texto;

Beaugrande e Dressler, com os fatores da textualidade, e a ênfase na intencionalidade;

entre outros que se fizeram necessários para esclarecimentos e compreensão das

possíveis variações em redações publicitárias. Para continuar o desenvolvimento do

trabalho, buscamos respaldo em outros autores sobre a pesquisa qualitativa, como

explica Novena (2008) que:

[...] a formulação e delimitação do problema (desenvolvem-se) a partir da

“percepção subjetiva do pesquisador em relação ao contexto e a constituição

de um referencial teórico” sobre o que se deseja pesquisar. Esses processos,

num movimento espiralar de fora para dentro, permitem o encerramento

dessa etapa com a explicação de uma pergunta que se deseja responder.

(p.173)

Assim, apresentamos como objetivo da investigação: qual a intencionalidade da

linguagem utilizada, com características de linguagem oral, nos escritos de mensagens

publicitárias, de Instituições de Ensino, expostas em outdoors e como se apresentam os

aspectos linguísticos na construção desses enunciados.

Com o interesse em desenvolver um perfil linguístico das mensagens em

outdoors, e da intenção dos produtores de anúncios de propaganda, na formação

escolar, cursos técnicos, graduações e pós-graduações, cursos de Línguas estrangeiras,

como também, analisar o propósito dessas composições. E ainda, com a finalidade de

investigar quanto à preocupação do uso da norma culta, da Língua Portuguesa, em

direcionar aos leitores, às possíveis interpretações, conforme interesses do alunado, em

relação aos diversos cursos oferecidos em geral.

Diante do conhecimento adquirido com as atividades das pesquisas, podemos

referenciar, segundo Silva(2010, p.75): “as ações desenvolvidas durante a investigação,

objetivaram tão somente o entendimento desse objeto, através da observação

participante”.

Nesse sentido, vemos que é de vital importância, que mostremos as fotos, do

registro de alguns outdoors, e entrevistas com profissionais da área de publicidade, que

correspondem a participação ativa nas etapas de construção do conhecimento adquirido,

com as pesquisas de campo realizadas para esse fim.

Assim, a participação do pesquisador no desenvolvimento da aprendizagem é

definida em Minayo (2009, p.70) como: “um processo pelo qual um pesquisador se

Page 288: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1066

coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma

investigação científica”.

3.1 O Corpus: visualizamos nos escritos das mensagens de outdoors, o interesse

no estudo da linguagem que encontramos exposta na mídia publicitária, em vários locais

dos bairros das cidades de Recife e Olinda, nos quais observamos algumas divergências

da composição do enunciado em relação ao uso da língua oficial. Assim, foram

escolhidos alguns outdoors, que deixam essas marcas de oralidade, mais evidente, e

selecionamos em número de 15 (quinze) deles, para serem observados e analisados em

sua linguagem.

3.2 O Material: utilizamos material fotográfico, que fossem registrados alguns

dos outdoors, que pudessem ser visível às alterações de sentido, e as múltiplas

condições de interpretações efetivadas pelos leitores, com detalhes de significações na

escrita e na imagem de sua composição.

3.3 Os Procedimentos: começamos em observar o corpus anteriormente

selecionado, a estrutura de composição linguística, das palavras utilizadas nos anúncios,

como verificamos a tendência de se agruparem em três tipos básicos: primeiro, as

mensagem apenas com escrita do enunciado, de forma expositiva e com indagação; em

segundo, reconhecemos que algumas apresentam seriedade, na escrita de forma

convidativa; e a terceira forma de construção da mensagem, quando vimos imagem

exagerada visual, e escrita com variação nas expressões utilizadas.

No entanto, entrevistamos, recortamos dados, analisamos conteúdo teórico,

fizemos levantamento de expressões mais atrativas quanto a atenção do público leitor, e

a que se destina a variação de expressões da linguagem falada, utilizada na composição

de mensagens expostas em outdoors, e investigamos qual sua intencionalidade junto às

Instituições de Ensino, em relação aos cursos que oferecem. E examinamos a coerência

de escrita, e seus objetivos pretendidos junto aos seus públicos direcionados.

Então, fazer um parâmetro com o pensamento de coerência de Xavier (2001,

p.42), como explica que a Coerência:

É a possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto. Ou seja, é a compatibilidade entre idéias e

conceitos que permite ao leitor acompanhar a continuidade de um raciocínio em desenvolvimento.

4 ANALISE DOS RESULTADOS

Page 289: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1067

Independente do estilo da formação da mensagem do texto, sempre existirá um

sentido, ou uma intenção de comunicação pelo autor, direcionado a um público alvo.

Para o leitor, no que se é transmitido na mensagem, em qualquer um dos diversos tipos

e suporte do gênero publicitário, os textos obedecem a um pensamento com coerência,

para quem redige e deve fornecer elos de ligação no conteúdo expresso para facilitar a

sua interpretação.

Como explica Xavier, (2001) que: “Há um conjunto de fatores que colaboram

para dar uma certa lógica ao desenvolvimento do raciocínio do autor”. Esses fatores

podem ser considerados, como fatores decisivos para uma perfeita interpretação do

enunciado. São eles: Elementos linguísticos; Conhecimento de mundo; Conhecimento

partilhado; e Inferências; que os leitores precisarão efetivar para conceber o sentido que

o texto se propõe, e conforme Xavier (2001), depende da observação de:

A. Elementos lingüísticos: as palavras usadas no texto, além de acionar

conhecimentos arquivados na memória do leitor, funcionam como pistas da

língua que ajudam ao leitor a pescar o sentido pretendido pelo autor; B.

Conhecimento de mundo: todas as experiências vividas são guardadas na

nossa memória, de maneira que, quando lemos um texto só conseguimos

entendê-lo inteiramente, se reconhecemos as informações ali acionadas e

relacionarmos ao que já sabemos sobre o tema; C. Conhecimento

partilhado: cada indivíduo constrói sua própria enciclopédia de

conhecimentos, mais ou menos igual à aqueles que vivem num mesmo

ambiente social, político, econômico e cultural. E para que haja compreensão

entre dois interlocutores, por meio de um texto, é necessário que ambos

partilhem de alguns desses conhecimentos; e D. Inferências: é o um processo

de raciocínio através do qual se estabelece uma relação não explícita entre

dois enunciados e deles se chega a uma conclusão. É um dos tipos de

raciocínio mais utilizados no processo de interpretação, já que o texto, por ser

um mecanismo de economia linguística, não pode e nem deve dizer

tudo.(p.42)

Assim, consideramos ser relevante a aboragem de que todo texto depende do seu

público leitor, e envolve dessa maneira, seu escrito em sua composição gramatical, na

estrutura linguística adequada a leitor direcionado.

4.1. OUTDOORS DE ESCOLAS: (Local: Av Agamenon Magalhães, Derby)

Page 290: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1068

(Local: Av Agamenon Magalhães, Derby - Recife)

(Local: Av Agamenon Magalhães, Paissandú – Recife)

(Local: Av. Av Agamenon Magalhães, Espinheiro – Recife)

Page 291: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1069

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, apresentamos o corpus selecionado para avaliar a presença de expressões

com marcas de oralidade, como marcadores discursivos, que são características da

língua falada, presente em conteúdos de textos escritos na divulgação de serviços de

ensino. Como também, analisar na estrutura linguística, a intencionalidade direcionada a

propósitos semânticos em duplicidade de interpretações.

Marcuschi (2002, apud Koch, 2012, p.56) afirma “que é impossível pensar em

comunicação a não ser por meio de gêneros textuais (quer orais, quer escritos),

entendidos como práticas socialmente constituídas com propósito comunicacional,

configuradas concretamente em textos”.

Para isso, adotamos a noção de Bakhtin(1992) gênero do discurso, de modo que se

possa abordá-lo enquanto uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de

enunciados, codificada sócio-historicamente por uma determinada cultura.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas – São Paulo: Parábola

Editorial, 2010. (Estratégias de ensino;21)

KOCH, I. V.; ELIAS, M.V. Ler e escrever: estratégias de produção textual - 2.ed., 1ª

reimpressão – São Paulo: Contexto, 2012.

_______. Ler e compreender: os sentidos do texto - 3. ed., 7ª reimpressão. – São Paulo:

Contexto, 2012.

MARCUSCHI, Luis Antonio. Linguística de Texto: o que é e como se faz? Recife:

Editora UFPE, 2002.

Page 292: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1070

RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO

DO DISCURSO TEÓRICO À LUZ DO ISD [Voltar para Sumário]

Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)

1 Introdução

O resumo afigura-se como o gênero textual mais solicitado no ensino superior,

uma vez que, constantemente, alunos são submetidos a produzi-lo para as mais

diferentes disciplinas, bem como para os mais diversos contextos de escrita, tais como

para registro de leitura, para compor textos mais densos (artigo, dissertações, teses),

para a publicação separadamente ao texto original ou até mesmo para a submissão em

eventos acadêmicos. Esse gênero é visto como um dos mais importantes na atividade

acadêmica a julgar pela sua função, nesse caso, reconstruir o que já foi dito por meio da

utilização, reconhecimento e desenvolvimento de estratégias de aprendizagem

adquiridas em função dos objetivos estipulados.

Nas últimas décadas, diversas são as pesquisas que elegem o resumo como

objeto de investigação. Em uma perspectiva sociorretórica (SWALES, 1990 apud

MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010), esse gênero textual é estudado a partir da

identificação de movimentos retóricos que de modo particular abrigam passos básicos a

serem opcionais e/ou obrigatórios para a sua composição (BIASI-RODRIGUES, 1998;

MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010). Em uma outra perspectiva, o interacionismo

sociodiscursivo (SCHNEUWLY; DOLZ, 2010; BRONCKART, 2012), a produção do

resumo é realizada a partir da construção de modelos didáticos com características

definidas pelo contexto de produção. O modelo de produção para o resumo se baseia no

uso de macrorregras (apagamento, generalização e substituição) (GUIMARÃES

SILVA; DA MATA, 2002; MATÊNCIO, 2003; ASSIS; DA MATA; PERINI-

SANTOS; 2003; MACHADO, 2010). Esse gênero textual também tem recebido atenção

Page 293: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1071

na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e em materiais didáticos

representativos da área (MARCONI; LAKATOS, 1992; SEVERINO, 2007) que

orientam como ensinar e aprender conceitual e estruturalmente a redação e apresentação

de resumo.

Diante dessa constatação, não é sem razão que o resumo seja objeto de pesquisa

tão recorrente há alguns anos, o que induz a pensar que já não há mais o que se

investigar. Apesar desse gênero se apresentar constantemente como objeto de análise,

no qual se privilegiam mais os seus aspectos composicionais, sociais e discursivos,

pouco se têm enfatizado os aspectos da língua, nesse caso, os mecanismos linguísticos e

textuais utilizados para a sua produção.

Sendo assim, este trabalho se justifica pelo interesse em conhecer, em textos de

resumo, o domínio do discurso teórico postulado pelos fundamentos teóricos de

Bronckart (2012). Para isso, o presente estudo divide-se em cinco tópicos. No primeiro,

referente a esta introdução, situamos o amplo trabalho realizado com o gênero resumo

no universo acadêmico. No segundo, brevemente, detalhamos o tipo e a natureza do

estudo, bem como caracterizamos o domínio teórico como categoria de análise. No

terceiro, dedicamos à fundamentação teórica, a qual damos vez aos pressupostos

subjacentes ao estudo. No quarto tópico, dedicamos à análise do corpus. E, por fim, o

quinto tópico, explicitamos nossos apontamentos finais.

2 Metodologia

O estudo realizado é de natureza qualitativa. É qualitativa porque, de acordo com

Bortoni-Ricardo (2008), não busca relações entre fenômenos nem cria leis universais,

mas sim procura entender, bem como interpretar fenômenos e processos socialmente

situados em um dado contexto. Inserida na pesquisa qualitativa encontra-se a pesquisa

documental a qual tem por fonte documentos, escritos ou não, podendo ser realizadas

em qualquer local que sirva de fonte de informações para o levantamento de

documentos (MOREIRA; CALEFFE, 2008).

Page 294: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1072

O corpus analisado é constituído por um conjunto de trinta exemplares de

resumo de leitura1 coletados durante o trabalho de investigação monográfica

(OLIVEIRA, 2013), dos quais são apresentados, nesse estudo, dois exemplares

representativos como um todo e, consequentemente, das exposições que fizemos. Por

sua vez, a categoria de análise compreende a caracterização do discurso teórico, o que

inclui: i) frases não declarativas; ii) uso do mesmo conjunto verbal (tempo); iii)

ausência de nomes próprios e pronomes adjetivo ou verbos em 1ª pessoa do

singular/plural; vi) uso de procedimentos de referência e encadeamento textual (coesão

verbal e nominal); v) uso de frases passivas, anáforas nominais ou de procedimentos de

referenciação dêitica (BRONCKART, 2012).

3 Resumo: um termo comum que abriga modalidades textuais e finalidades de

escrita particulares à dinâmica acadêmica

A NBR (Norma Brasileira) 6028 de versão 20032, da Associação Brasileira de

Normas Técnicas (ABNT), cuja função é orientar a produção e a apresentação de

resumo, o define “como uma apresentação concisa dos pontos relevantes de um

documento” (p. 1). Dessa maneira, a partir do que é estabelecido por essa norma, o

resumo é entendido como uma produção textual que se caracteriza pela precisão das

informações principais que estão presentes em um dado conteúdo, podendo ser

representado, na academia, por textos mais extensos, como artigos científicos, capítulos

de livros ou livros na íntegra, monografias, dissertações e teses.

Além dessa definição, a presente norma classifica o resumo, a partir da condição

de produção, em três tipos, a saber: crítico (também chamado de resenha), indicativo e

informativo. O resumo crítico é aquele elaborado por um escritor especialista que

apresenta conhecimento significativo de um documento a fim de que possa realizar uma

análise crítica. De acordo com essa norma, esse tipo de resumo também poderia ser

chamado de resenha3; ou ainda, de recensão, quando é elaborado com o propósito de

analisar apenas uma determinada edição dentre várias.

1 Chamamos aqui de resumo de leitura o definido pela NBR 6028 da ABNT (2003) de indicativo; ou de

escolar, por Machado et al. (2004), na coleção Resumo. 2 Esta versão vem substituir a NBR 6028 de 1990. 3 Neste caso, o documento parametrizador embora não se detenha a diferenciar o gênero resumo de

resenha, estudos recentes já vêm dedicando-se a isto, a exemplo de Machado (2010). A autora sustenta

Page 295: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1073

O resumo indicativo – tipo a qual utilizemos para análise – é aquele texto que

apresenta a descrição das partes mais relevantes encontradas em um dado documento e,

por esse motivo, não dispensa, de modo geral, a consulta ao texto original. Além disso,

neste tipo de resumo não há presentes julgamentos avaliativos, diferentemente do

crítico, bem como dados que expressam ou determinam aspectos quantitativos.

O resumo informativo é aquele que apresenta as informações mais relevantes de

um documento, como os objetivos, os aspectos metodológicos, os resultados e as

conclusões. Sendo assim, por apresentar todas as informações presentes em um texto,

permite dispensar a leitura do texto original, diferentemente do resumo indicativo.

Logo, podemos afirmar que este é mais amplo que o resumo indicativo.

Assim como a mencionada norma, há manuais didáticos elaborados para orientar

a produção e apresentação de resumos, como os manuais de metodologia do trabalho

científico mais representativos da área, a exemplo o Metodologia do trabalho científico,

de Lakatos; Marconi (1992). Neste manual, o resumo é entendido como “a apresentação

concisa e frequentemente seletiva do texto, destacando-se os elementos de maior

interesse e importância, isto é, as principais ideias do autor da obra.” (p. 72). Dessa

forma, o resumo, nesta obra, é visto como um texto síntese de um outro texto, em que

apresenta na sua estrutura os elementos centrais e, por esse motivo, seletivos das ideias

essenciais do autor de um documento.

Além dessa definição, há uma classificação de resumo em três tipos: indicativo

ou descritivo, informativo ou analítico e crítico. Sobre o indicativo ou descritivo, no

manual dessas autoras, é aquele texto em que apresenta, na sua composição, a indicação

ou descrição das partes mais relevantes presentes em um documento. E não dispensa a

leitura do texto original por conter, exclusivamente, a descrição da natureza, da forma e

do propósito do texto.

O resumo informativo ou analítico contém as informações mais importantes

presentes em um texto e, por isso dispensa a leitura do texto original. Tem por efeito

informar os objetivos, os métodos e as técnicas, os resultados e as conclusões de um

dado conteúdo, bem como as ideias centrais do autor. Esse manual destaca que no

resumo não é permitido o uso de comentários avaliativos. Por sua vez, o resumo crítico

que o resumo “crítico” ao aparecer no gênero resenha, não pode ser entendido como tal, e sim, como parte

constitutiva da resenha. Entretanto, essa problemática não faz parte da nossa discussão, uma vez que

propomos dar conta do conceito apresentado por esta norma.

Page 296: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1074

é um texto que apresenta o julgamento de valor sobre dado documento. Nesse caso, a

crítica é feita do aspecto formal, isto é, voltada para os procedimentos metodológicos;

para as informações presentes; e para a técnica de apresentação das ideias centrais.

Diante da apresentação do que é indicado no supramencionado manual sobre a

redação do resumo, destacamos que a definição posta na NBR 6028/2003, bem como a

sua classificação acerca do resumo de texto, certamente influencia a produção desses

manuais, isso porque, ao que foi percebido, há mais proximidade do que distanciamento

entre as definições e classificações postas. Isto é, o resumo, em ambos os casos, refere-

se à síntese de um documento, no qual estão contidas as informações consideradas

relevantes.

Além desses manuais de redação científica, encontramos reflexos de o que está

posto na NBR 6028/2003 no trabalho de pesquisadores situados na Linguística

Aplicada, particularmente, os que têm investigado o conceito de resumo e o ensino da

sua produção (BIASI-RODRIGUES, 1998; CRISTOVÃO, 2001; GUIMARÃES

SILVA; DA MATA, 2002; MATÊNCIO, 2002; MACHADO; LOUSADA; ABREU-

TARDELLI, 2005; MACHADO, 2010; MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010).

Destacamos, em especial, o trabalho de Machado (2010) para fundamentar a nossa

discussão.

Para Machado (op. cit), o resumo é um texto em que contém a apresentação

concisa dos conteúdos de outro texto; uma organização global que reproduz a do texto

original, com o objetivo de informar o leitor sobre esses conteúdos, cujo enunciador é

outro que não o autor do texto original.

Diante dessa definição, julgamos correspondência entre o que é investigado pela

pesquisadora com o que é posto na NBR 6028/2003. Entretanto, a pesquisadora

aprofunda a reflexão que gira em torno do conceito de resumo à medida que

inferencialmente se utiliza do gerenciamento de vozes, isto é, explicita que o que é dito

em um texto resumido não o é feito pelo próprio autor do texto original. Isso, caso esteja

referindo-se ao resumo indicativo, posto pela NBR/6028 ou didático, nos manuais de

redação; o qual é solicitado, normalmente, por um professor em contexto escolar e não

escolar com o intuito de desenvolver no produtor, neste caso, no aluno, a compreensão

de leitura e registro linguístico para tal compreensão (GUIMARÃES SILVA; DA

MATA, 2002).

Page 297: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1075

Nesse sentido, o resumo indicativo é visto como aquele tipo de resumo para fins

de instrumento de avaliação e/ou ensino por parte do professor de determinada

disciplina, ou de leitura e estratégia de estudo, por parte de ambos, professor e aluno.

Em outras palavras, esse resumo, o qual preferencialmente chamamos de resumo de

leitura, opera como uma atividade de avaliação de leitura através da qual, o aluno se

comprometerá a apresentar as ideias mais relevantes de um texto original, ajustados aos

objetivos de leitura traçados pelo professor (SILVA, 2012).

Em se tratando do resumo indicativo, a NBR 6028/2003 estabelece que para a

sua redação não se devem apresentar dados qualitativos e quantitativos, o que, a nosso

ver, está em consonância com o que Machado (2010) esclarece a respeito do discurso

teórico empregado em um resumo, isto é, relacionado ao distanciamento do objeto, a

não implicação do produtor ao que é apresentando, a impessoalização do texto, uma vez

que, ainda segundo a pesquisadora, ao texto resumido, não se permite acrescentar

nenhuma informação, além daquela do texto original, bem como nenhuma avaliação

explícita.

Ainda sobre o discurso teórico, para a produção do gênero resumo, bem como de

outros gêneros textuais da esfera acadêmica (resenha e artigo científico), a estratégia

mobilizada pelos produtores se caracteriza, principalmente, pela sua manipulação. Para

o Interacionismo Sociodiscursivo (doravante, ISD), esse tipo de discurso é, em

princípio, monologado e escrito, e esse caráter se expressa essencialmente por meio da

ausência de frases não declarativas; da exploração de um mesmo conjunto de tempos

verbais; da ausência de unidades que remetam diretamente aos interactantes, ou ao

espaço-tempo da produção; da ausência de nomes próprios e de pronomes e adjetivos de

primeira e de segunda pessoa do singular com valor claramente exofórico, ou ainda de

verbos na primeira pessoa do singular.

Logo, para essa teoria, de acordo com o gênero textual, os produtores têm a

disposição no intertexto as escolhas linguísticas que configuram o tipo de discurso a ser

utilizado, tais como: discurso interativo e relato interativo, discurso teórico e narração.

Para Bronckart (2012),

os tipos de discurso, como formas linguísticas que são identificáveis nos

textos e que traduzem a criação de mundos discursivos específicos, sendo

esses tipos articulados entre si por mecanismos de textualização e por

Page 298: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1076

mecanismos enunciativos que conferem ao todo textual sua coerência

sequencial e configuracional (p. 149).

Além dessas, ainda são comuns, a presença de múltiplos organizadores com

valor lógico-argumentativos, modalizações lógicas, assim como a onipresença do

auxiliar de modo “poder”; a exploração de procedimentos de focalização de certos

segmentos de texto, bem como procedimentos de referência a outras partes do texto, ou

ao intertexto científico (procedimentos metatextuais, procedimentos de referência

intratextual, procedimentos de referência intertextual); a presença de numerosas frases

passivas, a maioria do tipo “passiva truncada” (BRONCKART, 2012, p. 171-173).

Desse modo, entendemos que a utilização do termo resumo abriga modalidades

textuais e finalidades de escrita que se particularizam na dinâmica acadêmica, os quais

são determinados pela modalidade textual e finalidades de escrita a que se destinam.

Além disso, Lopes-Rossi (2002) destaca as condições de produção e de circulação do

gênero na nossa sociedade como indispensáveis para a produção textual. A NBR

6028/2003, certamente já considerava essas características para a redação de textos

acadêmicos, ao se beneficiar da classificação do resumo em crítico, indicativo e

informativo como apresentado nesta seção.

4 Resumo de leitura: análise do domínio do discurso teórico

Os resumos analisados foram referentes ao artigo de opinião intitulado “Em

busca da cidadania”, de autoria de Luis Felipe Rubinato. Optamos por transcrever os

textos na íntegra e enumerá-los para facilitar a compreensão da análise. Vejamos os

resumos. Como procedimento didático, chamamos R 01 e R 02, de resumo 1 e resumo

2, respectivamente.

Page 299: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1077

A manipulação do discurso teórico que está relacionado a qualquer tentativa de

eliminar quaisquer tipos de marcas que permitam um vínculo pessoal e valorativo ao

resumo produzido, e para que isso aconteça, observamos que tanto na redação do R – 01

quanto da redação do R – 02 se utilizam da ausência de frases não declarativas para se

afastarem do texto base. Assim, observamos como na redação do R – 01 está

mobilizado este recurso:

Para o autor, em regimes autoritários não existe o exercício de cidadania

ativa. (linhas 6-7)

Rubinato cita a dificuldade na implementação da conduta cidadã em

nossa sociedade. (linhas 10-11)

Ele também exibe alguns dos grandes problemas encontrados na

sociedade brasileira. (linhas 12-14)

O advogado finaliza seu artigo, indicando que é providencial a luta da

sociedade brasileira. (linhas 18-19)

R – 02

1RUBINATO, Luiz Felipe. Em busca da

cidadania,

www.uol.com.br/embuscadacidadania, acesso:

30/04/2013.

2 O autor Luiz Felipe Rubinato inicia seu

artigo estabelecendo uma relação entre a

cidadania e a democracia, visto que a primeira é

um fator indispensável para que a segunda possa

ser exercida, além de deixar claro que a

cidadania precisa estar inserida em nossa

cultura.

6 Ele utiliza como exemplo a

Constituição de 88, a qual tem uma estrutura de

poder tradicional com participação popular de

maneira direta, para reforçar a ideia de que seria

impossível a cidadania ser exercida dentro de

um regime autoritário. Além disso, Rubinato

explica que a prática da cidadania, com uma

postura de defesa e cumprimento de direitos e

deveres, substitui as manifestações e revoltas

que ocorrem em regimes opressivos.

12 Embora ele reconheça que a cidadania

tem sido exercida em nosso país, destaca três

fatores que tem deixado a desejar no que diz

respeito a esta. A dificuldade de se implantar

uma constituição democrática após o fim

recente do regime militar, uma população sem

consciência política, capaz de trocar seu voto

por futilidade, e o descaso do próprio povo

diante das mazelas que assolam a sociedade,

como a violência e o desemprego, são alguns

dos inúmeros motivos que tem mostrado uma

cidadania deficiente em nosso país.

21 O autor conclui seu pensamento com a

ideia de que caberá à classe privilegiada lutar

para que futuramente possa ser reconhecido um

Estado democrático em nossa sociedade para

que, finalmente, venhamos ser vistos como

verdadeiros cidadãos.

R – 01

1RUBINATO, Luis Felipe. Em busca da

cidadania. Disponível em:

<www.uol.com.br/embuscadacidadania>.

Acesso em: 30 de abril de 2013

2 No artigo de opinião “Em busca da

cidadania”, de Luiz Felipe Rubinato é

apresentado o conceito de cidadania. Mostrando

que esta concepção há pouco foi implementada

em nossa sociedade e que tem uma estreita

relação com a concepção de democracia.

6 Para o autor, em regimes autoritários

não existe o exercício de cidadania ativa, pois

em países que exercem essa política regada a

manifestações agressivas e revoltas, não há

relação de parceria entre o poder de Estado e a

participação popular para reger a sociedade.

10 Rubinato cita a dificuldade na

implementação da conduta cidadã em nossa

sociedade, visto que recentemente o país

enfrentou o fim do regime militar e adquiriu

uma nova Constituição, em 1988. Ele também

exibe alguns dos grandes problemas

encontrados na sociedade brasileira, que ferem

o ideal de democracia, como a ausência de

consciência política, desinteresse e a falha na

conduta dos cidadãos quanto os vastos graus de

desemprego, violência, miséria e falta de

perspectiva. 18 O advogado finaliza seu artigo,

indicando que é providencial a luta da

sociedade brasileira, para que desta forma o

país se torne um real Estado democrático.

Page 300: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1078

Assim, quando se nota no texto “Para o autor não existe...”, “Rubinato cita...”,

“Ele exibe...”, “O advogado finaliza...”, isto é, usa da figura do autor do texto base para

declarar aquilo que não foi feito pelo produtor, está se distanciando do objeto e

demonstrando, assim, a manipulação do discurso teórico. Esse mesmo uso é percebido

na redação do R – 02, como podemos notar em:

O autor Luiz Felipe Rubinato inicia seu artigo estabelecendo uma relação

entre a cidadania e a democracia (linhas 2-3)

Ele utiliza como exemplo a Constituição de 88 (linha 6)

Rubinato explica que a prática da cidadania (linhas 9-10)

Embora ele reconheça que a cidadania tem sido exercida em nosso país

(linhas 12-13)

O autor conclui seu pensamento com a ideia de que caberá à classe

privilegiada lutar para que futuramente possa ser reconhecido um

Estado democrático em nossa sociedade para que (linhas 21-23)

Dessa maneira, quando na redação do R – 02 há declarações a partir da figura do

autor do documento, em “Luiz Felipe Rubinato inicia...”, “Ele (o autor) utiliza...”,

“Rubinato explica...”, ou em “O autor conclui...” está eliminando qualquer marca que

permita um vínculo pessoal com o texto produzido, isto é, por meio da ausência de

frases não declarativas há um distanciamento do objeto trabalhado.

Além dessa estratégia, o discurso teórico é traduzido pela exploração do mesmo

conjunto de tempos verbais e, neste sentido, podemos notar a mesma apresentação e uso

tanto na redação do R – 01 quanto na redação do R – 02. Dito isto, reconhecemos que

em ambos os resumos ocorre o emprego do presente do indicativo. Esse uso caracteriza

sequências expositivas em um texto, típicas desse gênero textual, nas quais há

envolvimento de um possível produtor ao texto produzido, como podemos observar na

produção do R – 01:

Para o autor (...) não existe (linha 6)

Rubinato cita (linha 10)

Ele (...) exibe (linha 12)

O advogado finaliza (linha 18)

Como visto o emprego de um mesmo conjunto verbal possibilita na redação um

distanciamento do objeto, como também não permite nenhuma interação, realizando

assim a exposição de uma informação. Na redação do R – 02 não há diferente, como

podemos observar:

Page 301: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1079

O autor inicia (...) (linha 2)

Ele utiliza (...) (linha 6)

Rubinato explica (...) (linha 9)

O autor conclui (linha 22)

Como podemos notar, por meio de um conjunto de verbos conjugados no

presente do indicativo “inicia”, “utiliza”, “explica” e “conclui” permite distanciar, como

ocorre na redação do R – 01, do objeto, e assim caracteriza sequências expositivas. A

essas características do domínio do discurso teórico ainda se acrescenta a ausência de

pronomes adjetivos e/ou de verbos em primeira pessoa do singular/plural que implicam

o não envolvimento do produtor com o texto produzido, o distanciamento do objeto, ou

mais especificamente, a impessoalização do texto. Isto é, esse recurso prima pelo

afastamento do produtor em relação ao conteúdo exposto, tendo em vista que se trata de

uma reprodução dita por outro. Entretanto, notamos que há presente o uso desses

pronomes e/ou de verbos que marcam o posicionamento de um produtor diante do

objeto. Como podemos observar nos trechos abaixo, tanto na redação do R – 01 quanto

na redação do R – 02 há utilização do pronome adjetivo de primeira pessoa do plural

(nossa), o que lhes permitem um vínculo valorativo ao texto produzido:

R – 01

(...) esta concepção há pouco tempo foi implementada em nossa sociedade

(linhas 3-4)

(...) cita a dificuldade na implementação da conduta cidadã em nossa

sociedade (linhas 10-11)

R - 02

(...) são alguns dos inúmeros motivos que tem mostrado uma cidadania

deficiente em nosso país (linhas 17-19)

(...) um Estado democrático em nossa sociedade para que, finalmente,

venhamos ser vistos (linhas 21-23)

Na redação do R – 02 além de se utilizar de pronomes adjetivos, emprega um

verbo em primeira pessoa do plural (venhamos, linha 22), o que demonstra um

posicionamento em relação ao conteúdo do texto produzido. Entretanto, destacamos

que, embora o discurso teórico (ISD) e a ABNT não prevejam essa ocorrência, o uso da

primeira pessoa do plural tem se tornado frequente na produção de gêneros acadêmicos.

Ainda são comuns, em relação ao discurso teórico, o uso de procedimentos de

referência e encadeamento textual (coesão verbal e nominal), que permite evitar a

repetição de nomes e contribui para ativar a substituição deles, assim estabelece a

progressão textual. Sobre esse uso, nas redações há utilização da substituição do nome

Page 302: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1080

do autor por referentes que indique conformidade, como podemos observar no trecho

extraído da produção do R – 01:

No artigo de opinião “Em busca da cidadania”, de Luiz Felipe Rubinato

(linhas 2-3) > O advogado finaliza seu artigo (linha 18)

Na arquitetura do texto, na redação do R – 01 inicia com a identificação do

material produzido, neste caso, um “artigo de opinião” e no último parágrafo, para

retomar essa informação, substitui pelo termo “artigo”, o que permite a progressão sem

“violação” na escrita. Além disso, notamos na mesma redação a substituição em outro

momento, para retomar o autor do texto base, nesse caso “Luiz Felipe Rubinato”, o

emprego do termo “advogado”, o que permite a progressão textual.

Na redação do R – 02 também há a utilização de procedimentos de referência e

encadeamento textual (coesão verbal e nominal), assim para referenciar o autor do texto

base, no resumo há a substituição por termos tais como “Ele”, “Rubinato” “o autor”.

Dessa forma, reforçamos o quanto o tratamento linguístico, aqui visto pela utilização de

procedimentos de referência e pelo encadeamento textual, marcado pela coesão

nominal, incide na organização do texto produzido.

Ainda marca o discurso teórico o uso de frases passivas que permitem na

redação o não comprometimento diante do que é exposto. Dito de outra forma, o

emprego desses tipos de frases não implica o produtor do texto sob o documento

produzido, como podemos comparar no trecho retirado da redação do R – 01:

No artigo de opinião (...) é apresentado o conceito de cidadania. (linhas 2-3)

Como visto, esse produtor, ao se utilizar do verbo “apresentar” na voz passiva,

marca neutralidade ao texto, e assim afastamento acerca da leitura efetuada sobre o

texto submetido ao resumo. Não identificamos essa recorrência na redação do R – 02.

5 Conclusão

Através da análise realizada, podemos concluir que não houve efetivamente

domínio discurso teórico. Afirmamos isso, tendo em vista a constatação de que em parte

das produções analisadas, identificamos marcas de posicionamento, o que parece ser

Page 303: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1081

contraditório, uma vez que, em um resumo dever-se-ia evitar a apresentação de dados

quantitativos e/ou avaliativos, e para isso se utilizariam de uma linguagem característica

do gênero, tipicamente impessoal e objetiva, com verbos na terceira pessoa do singular.

Essas seriam estratégias que primariam pelo emprego do discurso teórico, visto como o

modo em que o produtor marca o distanciamento do objeto, a não implicação sobre o

que é apresentado, a impessoalização do texto, enfim.

Por esse motivo, acreditamos ser necessário maior investimento em discussões e

análises sobre a organização linguística e textual do resumo e isso requer do professor o

uso de procedimentos que favoreçam a percepção da administração do funcionamento

linguístico e textual da escrita desse texto, assim como requer, do aluno, maior empenho

com o que produz.

Referências Bibliográficas

ASSIS, Juliana Alves; DA MATA, Maria Aparecida; PERINI-SANTOS, Pedro.

Ensino/aprendizagem de resumos acadêmicos em sala de aula: negociação de

representações. Anais do II Encontro Internacional Linguagem, Cultura e Cognição:

Reflexões para o Ensino. Campinas/São Paulo, Graf. FE/ALB. 2003.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR 6028:

informação e documentação: Resumo: Apresentação. Rio de Janeiro, 2003. p. 1-2.

BIASI-RODRIGUES, Bernardete. Estratégias de condução de informações em resumos

de dissertações. Tese (Doutorado em Linguística) – UFSC, Florianópolis, 1998.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução à pesquisa

qualitativa. São Paulo: Parábola. 2008.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de Linguagem, Textos e Discursos: Por um

Interacionismo Sociodiscursivo. Tradução: Anna Rachel Machado, Péricles Cunha.

2.ed., 2.reimpr. São Paulo: EDUC, 2012. p. 137-173.

CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes. Gêneros e ensino de leitura em LE: os modelos

didáticos de gênero na construção e avaliação de material didático. 2001. Tese

(Doutorado em Linguística Aplicada) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

2001.

GUIMARÃES SILVA, Jane Quintiliano; DA MATA, Maria Aparecida. Proposta

tipológica de resumos: um estudo exploratório das práticas de ensino da leitura e da

produção de textos acadêmicos. SCRIPTA, Belo Horizonte. v. 6. n. 11. p. 123-133. 2º

sem. 2002.

Page 304: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1082

HERIVELTON, Moreira; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para

professor pesquisador. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Resumos. In. Metodologia do

trabalho científico. São Paulo: Atlas,1992. p. 72-77.

LOPES ROSSI. Maria Aparecida Garcia. A produção de texto escrito com base em

gêneros discursivos. In: SILVA, Elisabeth Ramos (Org.) Texto&Ensino. Taubaté:

Cabral Editora Universitária, 2002.

MACHADO, Anna Rachel. Revisitando o Conceito de Resumo. In. DIONISIO, Angela

Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros

Textuais e Ensino. São Paulo: Parábola. p. 149-162, 2010.

______. LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lília Santos. O resumo escolar:

uma proposta de ensino do gênero. SIGNIUM: Estud. Ling., Londrina. n. 8/1, p. 89-101,

jun. 2005.

______. LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lília Santos. Resumo. São Paulo:

Parábola, 2004.

MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Atividades de (Re)textualização em práticas

acadêmicas: um estudo do resumo. SCRIPTA. Belo Horizonte. v. 6. n. 11. p. 109-122. 2º

sem. 2002. p. 109-122.

______. Referenciação e retextualização de textos acadêmicos: um estudo do resumo e

da resenha. In: Anais do III Congresso Internacional da ABRALIN. Rio de Janeiro:

ABRALIN, 2003.

MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela Rabuske. Produção textual na

universidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Pesquisa interpretativista em Linguística Aplicada: a

linguagem como condição e solução. Revista Delta, v. 1, n. 2, 1994.

OLIVEIRA, Hermano Aroldo Gois. Estratégias Linguístico-Textuais para a Produção

de Resumo. (Monografia). Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande

(UFCG), 2013.

SILVA, Elizabeth Maria da (Org.). Professora, como é que se faz? Campina Grande:

Bagagem, 2012.

Page 305: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1083

A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO

PODER IDEOLÓGICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE

ATORES SOCIAIS [Voltar para Sumário]

Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)

Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)

Introdução

Este trabalho foi elaborado e apresentado ao Programa de Mestrado

Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias – MIELT/UEG, na disciplina

Análise do Discurso. Traz uma análise dos discursos alocados em uma notícia da

Revista VEJA – Abril Online. O objetivo é identificar na estrutura da narrativa, as

manifestações do “poder como hegemonia e ideologia”, quando do uso da linguagem

como instrumento de manipulação e apoderamento (RAMALHO; RESENDE, 2011,

p.11).

Segundo Caldeira (2011), a Análise de Discurso Crítica - ADC é “uma proposta

teórico-metodológica” caracterizada pela interdisciplinaridade e heterogeneidade.

Contempla reflexões a cerca da relação entre linguagem e sociedade e analisa problemas

sociais, discursivamente (WODAK, 2003 apud RAMALHO, 2009).

Para a construção da análise, o trabalho fundamentou-se nos pressupostos de

Fairclough (2000, 2003, 2010), Magalhães (2005), Ramalho e Resende (2006, 2011), os

quais serão utilizados para embasar a análise crítica. Quanto às concepções de

linguagem, o texto se estrutura em Bakhtin (2010) e em Fairclough (2001), na pretensão

de demonstrar a linguagem dentro da rede discursiva.

Conceitos e contextualização – o papel da ADC

Entender o papel da ADC dentro dos discursos constitui-se uma árdua tarefa. Ou

Page 306: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1084

pelo menos assim o era antes da elaboração métodos criados por Fairclough, os quais

dessem suporte para uma análise mais consistente. Foi a partir da década de setenta, que

se desenvolveu uma forma de análise do discurso e do texto que identificava o papel da

linguagem na estruturação das relações de poder na sociedade (FAIRCLOUGH, 2001).

Evidente que não se pode deixar de registrar a contribuição de vários outros

autores, anteriores a Fairclough, os quais consolidaram em seus estudos, a importância

das mudanças sociais como perspectiva de análise.

Ramalho e Resende (2011, p. 12), afirmam que “a Análise de Discurso Crítica,

em um sentido amplo, refere-se a um conjunto de abordagens científicas

interdisciplinares para estudos críticos da linguagem como prática social”. Nesse

sentido, Fairclough (1999 apud Ramalho; Resende, 2011, p. 12) afirma que a ADC é

“comprometida em oferecer suporte científico para questionamentos de problemas

sociais relacionados a poder e justiça”.

Para Wodak (2003) é possível definir a ADC como uma disciplina que se ocupa,

fundamentalmente, de análises que dão conta das relações de dominação, discriminação,

poder e controle, na forma como elas se manifestam por meio da linguagem. Tem

características particulares que visam refletir a linguagem em suas manifestações

práticas dentro da sociedade. Não apenas uma análise superficial encomendada, mas

algo que contextualize os sujeitos, as causas explícitas e implícitas, situando os

problemas sociais com o poder, a ideologia e a linguagem.

A linguagem como prática social

Dessa forma, Bakhtin (2010, p.261) afirma que “todos os diversos campos da

atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, sendo o caráter e as formas desse

uso tão multiformes quanto os diversos campos da atividade humana”. Isso nos leva a

entender a linguagem como forma de expressão das diversas atividades humanas e que

proporciona a “multiformidade” capaz de integrar vários outros sentidos e imbricações.

Em relação à perspectiva sociodiscursiva da ADC, Ramalho e Resende (2011,

p.13) afirmam que a “linguagem é parte irredutível da vida social”. Isso pressupõe haver

uma “relação interna e dialética” entre a linguagem e a sociedade, em que, tanto as

questões sociais são em parte “questões de discurso” ou vice-versa. Na concepção da

Page 307: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1085

ADC, a linguagem como prática social é ligada a “uma entidade intermediária" e está

situada “entre as estruturas sociais mais fixas e as ações individuais mais flexíveis”. Por

essa razão, a ADC não pesquisa a linguagem como um “sistema semiótico”, nem como

textos isolados, mas sim, analisa o discurso, como um momento de toda prática social

(RAMALHO; RESENDE, 2011, p.14).

Ainda, segundo Ramalho e Resende (2011, p.15), a linguagem se manifesta

como discurso, uma parte irredutível da forma como se interage, representa e identifica-

se a si e aos outro por meio da linguagem. Isso justifica a necessidade de estudos que

relacionem dialeticamente a linguagem à sociedade e suas práticas. É nesse sentido que

o presente trabalho se constrói, trazendo a linguagem como uma forma articulada da

expressão humana, utilizada na estrutura dos discursos para naturalizar situações

adversas ao contexto social.

Objeto da análise – a notícia

O objeto de análise será a notícia veiculada no dia vinte e nove de maio, de

dois mil e quatro, pela Revista VEJA – Abril- Online, que apresenta em sua temática,

uma forma de protesto indígena realizado em Brasília, por ocasião da Copa do Mundo.

29 de maio de 2014 – veja.abril.com.br/tag/índios (data e origem do notícia)

Copa do Mundo (chapéu da notícia)

Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas (título)

Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação de uma emenda à

Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de

terras protegidas (subtítulo)

Mariana Zylberkan (jornalista- nome preservado)

Índios acorrentados durante protesto em frente ao Ministério da Justiça, em Brasília (Lunae

Parracho/Reuters) (fotógrafos – nomes preservados)

Page 308: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1086

1º - A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando flechas contra

policiais a cavalo no Distrito Federal, na última terça-feira, faz parte de uma recente rotina de

protestos conduzidos por um grupo heterogêneo de etnias que integram a Articulação dos Povos

Indígenas do Brasil (Apib). Nesta quinta-feira, o movimento voltou a causar confusão com

índios se acorrentando em postes diante do prédio do Ministério da Justiça. A principal bandeira

é a luta contra da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere ao Congresso

Nacional a atribuição de deliberar sobre demarcações de terras indígenas no país – hoje a cargo

da União.

2º -Nesta semana, 600 índios estão reunidos na capital federal na chamada "mobilização

nacional indígena", organizada anualmente. Na última terça, entretanto, parte desse grupo

resolveu se juntar a manifestantes que marchavam contra a realização da Copa do Mundo no

Brasil e entraram em confronto com a polícia – um policial foi ferido a flechada.

3º - As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos – alguns de calça jeans

e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. Mas o histórico de confusão é conhecido em

Brasília. Em outubro do ano passado, o mesmo movimento tentou invadir o prédio da Câmara

dos Deputados durante manifestação contra a aprovação da PEC 215. Houve empurra-empurra e

uma vidraça foi quebrada. Índios também furaram os pneus do carro do deputado Cândido

Vaccarezza (PT-SP) e obrigaram o parlamentar a descer do veículo. No mesmo dia, o

movimento promoveu um "tiro ao alvo" com arcos e flechas em um painel montado no gramado

da Esplanada. Os alvos, no caso, eram deputados da chamada bancada ruralista, favoráveis à

aprovação da PEC. Um cartaz atacava a senadora Katia Abreu (PMDB-TO), uma das

lideranças dos ruralistas no Congresso: "Katia Abreu, se agrotóxico não faz mal, então bebe".

4º - Integrante do comitê de imprensa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Renato

Santana afirma que a Copa do Mundo joga luz nas contradições do governo federal para lidar

com as questões sociais do país. Por isso, argumenta, os índios se juntaram aos manifestantes na

terça-feira. “Além disso, o cultivo de grãos, principalmente de soja, foi afetado pela construção

do estádio em Brasília”, diz. Santana nega que as flechadas foram um ataque à polícia: “Eles

estavam fazendo um ritual com cantos e dança para protestar quando os policiais jogaram os

cavalos e, para se proteger, fizeram isso”.

Para desvelar representações excludentes de atores sociais em determinados

contextos, Fairclough (2003) propõe “um diálogo com a teoria de representação dos

atores sociais de Theo van Leeuwen (1997; 2008)”, o qual considera que, na medida em

que tais representações ajudam a sustentar relações de dominação dentro de uma

determinada prática, estas se tornam ideológicas.

Assim, o percurso metodológico foi construído com finalidade da compreensão

da realidade social construída. A análise foi realizada com o método de pesquisa

qualitativa, de acordo Bauer e Gaskell (2008) sendo a mais apropriada para interpretar

realidades sociais. A pesquisa qualitativa não se preocupa em representar de forma

numérica a temática analisada, mas com o aprofundamento da compreensão de um

grupo social, de uma organização, entre outros. Para Denzin & Lincoln, (2006, p. 17

Page 309: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1087

apud Ramalho; Rezende, 2011, p.15), a pesquisa qualitativa consiste no “um conjunto

de práticas materiais e interpretativas que dão visibilidade ao mundo”.

A análise será assim constituída: da narrativização - em que, segundo os

pressupostos de Fairclough (2001, p.226), o discurso é concebido de três modos nas

práticas sociais:

No primeiro, como parte da atividade social dentro de uma prática[...]

segundo, o discurso figura nas representações. Atores sociais inscritos em

qualquer prática produzem representações acerca das demais, bem como

representações (“reflexivas”) da sua própria, no exercício das atividades que

a constituem [...] terceiro, o discurso integra os modos de ser, a constituição

das identidades (Grifo nosso).

Assim, a manchete noticiada pela Revista VEJA – Abril Online, consta do

seguinte título: “Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até

flechadas”; e subtítulo: “Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação

de uma emenda à Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir

sobre demarcação de terras protegidas”. Preservam-se neste trabalho os nomes da

jornalista, bem como dos fotógrafos.

A análise – categorias utilizadas

Para a análise textual, utilizaremos as seguintes categorias analíticas: a

narrativização, a ironia, a intertextualidade, a identificação relacional, a metáfora,

avaliação e a representação de atores sociais. O cerne da notícia seria descrever o

protesto indígena que luta contra a aprovação de uma emenda à Constituição, a qual

transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de terras protegidas.

Porém, a partir do título, percebe-se que a intencionalidade da jornalista ao escolher a

forma sequencial da narrativa, vai sendo traçada no sentido de “desfocar” a luta e a

causa do protesto indígena, o qual coincidentemente ocorre no momento de

manifestações de “outros brasileiros”, que marchavam contra a realização da Copa do

Mundo no Brasil.

Percebe-se que a jornalista, ao intitular a notícia, opta por descrever uma

reação realizada pelos índios manifestantes, como se forma uma ação originária. Isso,

Page 310: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1088

ao longo da narrativa, não se confirma, pois, quando o leitor segue em uma leitura mais

profunda nos parágrafos 3º e 4º, fica clara a intencionalidade da notícia.

Nesse sentido, entendemos que a jornalista, ao elaborar o texto, escolher o

título e subtítulo, assim como a forma de narrativa, faz uma inversão dos fatos e deixa

transparecer sua posição a favor de quem está no poder. Vejamos os trechos 1º e 2º:

No título e subtítulo, sequencialmente:

(1) Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas.

(2) Movimento que reúne diversas etnias luta contra a aprovação de uma emenda

à Constituição que transfere ao Congresso a atribuição de decidir sobre demarcação de

terras protegidas.

´ No primeiro momento da leitura, a começar pelo título, a impressão que se

instala é que todo o texto vai desenvolver-se sobra a “violência indígena” exercida no

momento do protesto. Mas, qual protesto? Se a resposta fosse emitida somente pelo

título, ficaria claro que a vítima do protesto não eram os índios, e, sim, o governo

instalado em Brasília. No entanto, ao se proceder a leitura nos demais parágrafos,

percebe-se que o título “não condiz” com o cerne do acontecimento. Nos trechos 3º, 4º e

5º, apontaremos outro aspecto que julgamos relevante na análise. A ironia, que está

implicitamente no texto, através do uso de vocábulos intencionais:

No título da notícia:

(3) Protestos de índios viram rotina em Brasília – e agora têm até flechadas.

Parágrafo 2º, 2ª linha:

(4) [...] 600 índios estão reunidos na capital federal na chamada "mobilização

nacional indígena", organizada anualmente [...]

Parágrafo 3º, 7ª linha:

(5) No mesmo dia, o movimento promoveu um "tiro ao alvo" com arcos e flechas

em um painel montado no gramado da Esplanada. Os alvos, no caso, eram

deputados da chamada bancada ruralista, favoráveis à aprovação da PEC [...]

Constata-se aqui que, ao organizar a narrativa, há uma afirmação implícita sobre

a pessoa do indígena, o diferente. Demonstrar que, já não bastasse os protestos, agora

têm até flechadas. No entanto, em nenhum momento da narrativa é dito que os policiais

lançaram bombas de efeito moral contra “os manifestantes”, como consta em outras

fotos tiradas do protesto, anexadas ao final da notícia. A narrativa ainda coloca uma

dúvida irônica para o leitor quando se refere à “mobilização nacional indígena”,

colocado propositalmente, entre aspas. Isso faz com que, sejam gerados preconceitos e

opiniões de aversão ao manifesto indígena pelos leitores, naturalizando e reforçando a

Page 311: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1089

diferença social entre o índio e o não índio. Outro fato que nos chama a atenção é que

em nenhum momento, a jornalista, refere-se à urgência de tratar a questão indígena, o

motivo do protesto que se arrasta desde o ano de 2013, como diz o 6º trecho:

Parágrafo 3º, 3ª linha:

(6) Em outubro do ano passado, o mesmo movimento tentou invadir o prédio

da Câmara dos Deputados durante manifestação contra a aprovação da PEC 215.

A narrativa elaborada expõe e reforça a situação dos “escolhidos” como

protagonistas do protesto, nesse caso, os indígenas. Ou seja, a identificação relacional,

em que, segundo Ramalho e Resende (2011, p.131) diz respeito à identificação dos

atores sociais, como podemos ver nos trechos 7º, 8º, 9º e 10º:

Parágrafo 1º, 1ª linha:

(7) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando

flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal [...]

Parágrafo 3º, 1ª linha:

(8) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –

alguns de calça jeans e tênis de marca [...]

Parágrafo 1º, 5ª linha:

(9) [...] o movimento voltou a causar confusão com índios se acorrentando em

postes diante do prédio do Ministério da Justiça [...]

Parágrafo 3º, 2ª linha:

(10) Mas o histórico de confusão é conhecido em Brasília [...]

(11) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –

alguns de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo [...]

É perceptível que na sutileza do uso da linguagem utilizada na construção da

narrativa, os “indígenas” tornem-se os vilões, os baderneiros, os causadores de

confusão e o governo, a vítima. Vítima daqueles que ao longo da história do Brasil são

roubados e aniquilados pelo poder. São vítima daqueles que estão lutando para terem

seus “direitos” assegurados. Vítima, dos causadores de confusão que

constitucionalmente têm os mesmos direitos que o não índio, sendo estes também

brasileiros. Ao longo da narrativa, em nenhum momento a jornalista atribui a cidadania

de brasileiros aos indígenas. Percebe-se a determinação de “naturalizar o indígena”

como “alguém fora do contexto do país”. Ao indígena é atribuída a condição de

“causador de confusão”, que é reforçada no10º trecho.

Essa construção de identificação se propaga ao longo da narrativa, reforçada

pelo contexto social em que está inserido. Nesse sentido, percebe-se que a representação

dos atores sociais e a identificação estão em uma continuidade dentro do texto. E, ao

Page 312: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1090

observamos o 11º trecho, veremos que novamente se coloca em cheque a identidade do

indígena, não como alguém que pode “usar”, “vestir” ou “calçar” uma roupa, um tênis

ou sapato de marca ou não. Por quê? Porque no entendimento de muitos brasileiros,

reforçado pela ideologia dominante, o índio tem que andar nu; descalço; pintado; com

adereços de plumagens. Outro questionamento que poderia ser feito é: De que forma a

jornalista chegou à conclusão que o tênis era de marca? Qual era a marca?. Tal fato

remete a outro elemento social que se julga importante citar. No Brasil, existe a entrada

de mercadorias importadas de inúmeros países; materiais fruto da pirataria e outros

originais que são vendidos a um preço acessível no mercado. Assim, como formar uma

opinião de que sendo índio, ele não possa obter um aparato como um “tênis de marca”.

Podemos perceber, que o juízo de valor feito por meio da vestimenta e do calçado

indígena foi determinante para que a jornalista fizesse suas conclusões. A questão é:

Quem ou o quê determina “quem pode usar ou não algo de marca?”. Outro fator

relevante é: as imagens “provam” tal afirmação? Deixo as conclusões destes

questionamentos com cada leitor. Seguidamente apresentamos outra categoria de

análise; a intertextualidade. Para exemplificá-la seguem trechos 12 e, 13:

Parágrafo 4º, 6ª linha:

(12) Renato Santana nega que as flechadas foram um ataque à polícia: “Eles

estavam fazendo um ritual com cantos e dança para protestar quando os policiais

jogaram os cavalos e, para se proteger, fizeram isso”.

Parágrafo 3º, 11ª linha:

(13) Um cartaz atacava a senadora Katia Abreu (PMDB-TO), uma das lideranças

dos ruralistas no Congresso: "Katia Abreu, se agrotóxico não faz mal, então bebe".

Segundo Fairclough (2001, p.114 apud Ramalho; Resende, 2011, p. 133), o

conceito de intertextualidade na concepção de Bakhtin (1997) diz respeito a propriedade

que têm os textos de ter outros fragmentos de textos. No trecho citado acima, podemos

ver a presença de vozes específicas que atravessam a narração, dando voz à quem está

no contexto da luta hegemônica. É o caso do representante indígena, Integrante do

comitê de imprensa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Renato Santana que,

ao ser “ouvido” e citado no “último parágrafo” da notícia, deixa claro que a motivação

para o enfrentamento indígena surge de uma ação da polícia montada.

Outro exemplo é a pressuposição de voz dos manifestantes, que aparece no texto

como ouvida ou entrevistada, mas supõe-se que esteja descrita no cartaz que é

direcionado a uma senadora, como citado no trecho (11), pessoa de representação do

Page 313: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1091

poder governamental. Sobre tal pressuposição de vozes, Fairclough vai dizer que esta

não “é explicitamente atribuída a vozes ou textos específicos”, ele define as

pressuposições como “preposições tomadas pelo produtor do texto como já

estabelecidas ou dadas” e que podem ser engatilhadas por diversos recursos linguísticos

(RAMALHO; RESENDE, 2011, p. 1340).

Existe, ainda, a voz da jornalista que transcorre todo o texto, fazendo uso de

opiniões, ideias e escolhas próprias para formalizar uma interpretação que julga correta.

Percebe-se certa defesa em relação às reprimendas ao indígena pelo poder representado

pelos policiais.

Outra categoria a ser analisada é a Metáfora, que segundo Ramalho e Resende

(2011), “é, em princípio, um traço identificacional de textos, moldado por estilos

particulares”. Para Lakoff & Johnson (2002, apud Ramalho; Resende, 2011, p.146) a

essência da metáfora é “compreender uma coisa em termos de outra”. Para os autores

as metáforas podem ser conceituais, orientacionais e ontológicas. Para o exemplo que

vamos citar utilizaremos a metáfora conceitual, pela qual se compreende aspectos de

um conceito em termos de outro. Eis os trechos 14 e 15 que nos servirão de exemplo:

Parágrafo 1º, 1ª linha:

(14) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando

flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal, na última terça-feira, faz parte de

uma recente rotina de protestos conduzidos por um grupo heterogêneo de etnias que

integram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Parágrafo 3º, 1ª linha:

(15) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos –

alguns de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. (grifo nosso)

Fairclough (2001) afirma que “todos os tipos de metáforas necessariamente

realçam ou encobrem certos aspectos do que se representa”. Assim, podemos perceber

que, ao utilizar as metáforas, a jornalista remete o leitor a um determinado tempo

histórico passado, enfatizado principalmente, no vocábulo “faroeste” citado no trecho

(13), que, ao se fazer o link, o leitor é remetido para outra notícia de mesmo teor,

porém, com a seguinte ênfase ao termo faroeste: Bonanza foi uma série de faroeste de

sucesso nos 1960 e 1970, protagonizada pelo patriarca Ben Cartwright (Lorne

Greene), que ao lado dos três filhos – Adam, Little Joe e Hoss – lutava para manter os

inimigos longe de seu rancho durante a guerra civil americana. O seriado teve vida

Page 314: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1092

longa, ficou mais de dez anos no ar nos Estados Unidos e teve duas indicações ao

Globo de Ouro.

Dessa maneira, ao enfatizar este termo metafórico em sua narrativa, a

jornalista reforça ainda mais a naturalização dos indígenas, não como brasileiros, mas

como “índios”, e “baderneiros”. Nesse sentido, a ideia de que, como em uma luta de

faroeste, os polícias lutaram para defender “seu rancho”, dos indígenas, os quais

assumiam o papel de “inimigos”. Para retratarmos algumas afirmações e juízos de valor

emitidos no texto, faremos uso de outra categoria de análise, a avaliação. Segundo

Faiclough (2003ª, p. 172, apud Ramalho; Resende, 2011, p. 119), a “avaliação é em

princípio, uma categoria identificacional, moldada por estilos”, tal qual a metáfora

inicialmente, porém, com característica de “apreciações e perspectivas do locutor, mais

ou menos explícitas, sobre aspectos do mundo, sobre o que considera bom ou ruim, ou o

que deseja ou não” e assim sucessivamente.

Nesse sentido, na leitura dos trechos (16), (17), (18) e (19), percebemos que o

protesto dos índios, não se constituía da luta “contra a Copa do Mundo”, mas sim,

“contra” a aprovação da Emenda Constitucional 215. No entanto, a estrutura da

narrativa faz com que fique perceptível, ainda que “implicitamente”, a posição da

narrativa ao retratar os fatos; a intencionalidade. Observe:

Parágrafo 1º, 6ª linha:

(16) A principal bandeira é a luta contra da Proposta de Emenda

Constitucional (PEC) 215, que transfere ao Congresso Nacional a atribuição de

deliberar sobre demarcações de terras indígenas no país – hoje a cargo da União.

Parágrafo 2º, 3ª linha:

(17) Na última terça, entretanto, parte desse grupo resolveu se juntar a

manifestantes que marchavam contra a realização da Copa do Mundo no Brasil e

entraram em confronto com a polícia [...]

Parágrafo 1º, 1ª linha:

(18) A cena de faroeste no país da Copa do Mundo, com índios disparando

flechas contra policiais a cavalo no Distrito Federal, [...]

Parágrafo 3º, 1ª linha:

(19) As imagens da batalha campal entre índios das mais variadas tribos – alguns

de calça jeans e tênis de marca – e policiais rodaram o mundo. Mas o histórico de

confusão é conhecido em Brasília.

Os trechos acima chamam a atenção ao demonstrarem que o “país da Copa do

Mundo”, “o Distrito Federal”, “a cidade de Brasília”, onde se centraliza o poder estatal,

torna-se o palco para as manifestações sociais. Tais trechos demonstram que, sendo

Page 315: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1093

Brasília, a Capital do País, local em que são articuladas as decisões, os projetos de leis,

agora passa a ser um palco de “luta”, um “faroeste”, uma “guerra campal”.

Dessa forma, o fato implícito deixa-se interpretar pela seguinte posição: a sede

do Governo, não deveria ser o alvo para tais manifestações; e ainda, em plena “Copa do

Mundo”. Acentua-se nesse aspecto, por as imagens das manifestações que rodaram o

mundo inteiro, seguida da conjunção adversativa “mas” - que diz respeito à oposição ou

contraste revela que “isso já é conhecido” pelo governo, e que não é uma novidade.

Esse traço reforça a ideia de que o governo “já sabe há muito tempo”, sobre as

reivindicações que norteavam os protestos, mas que, até agora, não propôs uma solução

e não deixa indícios que o fará.

Para finalizar esta análise, embora ainda tenhamos elementos que poderiam ser

analisados, faremos apenas uma análise breve na imagem posta na notícia, a qual leva o

leitor a fazer outras leituras. Sendo: a) depara-se com uma pessoa sendo acorrentada em

um poste por outras ao seu redor. Percebe-se que este gesto é utilizado para chamar a

atenção para as reivindicações do movimento. Reforça a ideia de flagelo, de vítima da

violência que a sociedade vivencia; b) observa-se que na imagem, não é possível

evidenciar em nenhum ângulo, a marca do tênis usado pelo índio, o que nos leva a

refletir sobre as razões que levaram tal fato a ser mencionado no texto; c) percebe-se

também que as fotos anexadas ao final da notícia, demostram as atitudes dos

manifestantes e do combate que se seguiu entre a polícia e os indígenas, e, no entanto,

ficaram em segundo plano, impedindo o leitor de tirar suas próprias conclusões sobre o

assunto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse sentido, considera-se que a ADC e suas categorias de análise possibilitam

o entendimento da forma com que a linguagem pode ser, e é utilizada para dar maior

apoderamento à sociedade dominante. A notícia em toda sua narrativa se constitui uma

clara demonstração de como os atores sociais são envolvidos e levados a uma

passividade e naturalização dos fatos que ocorrem na sociedade.

Em relação às categorias de análise escolhidas para fundamentar este trabalho,

percebeu-se que estas deram ao escopo do trabalho maiores possibilidades de

Page 316: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1094

entendimento e interpretação. Não a interpretação de julgamento, mas de apreciação

daquilo que não foi escrito, mas que está implícito. E ainda, por meio da análise

percebemos dois tipos de atores sociais. Os que representam a ideologia dominante: a

jornalista, os policiais e a representatividade do governo e um grupo minoritário, os

indígenas. Estes atores revelaram em grande parte, a construção de uma identidade

legitimadora que ofusca, nega e apagam as diferenças sociais, naturalizando a opressão

a que são submetidos os grupos minoritários no Brasil. Ora por meio do processo de

marcação da diversidade, ou ainda, pela assimilação e aculturação social dos índios.

Outra fato que foi possível observar refere-se à construção de uma identidade de

resistência exercida pelos índios. Percebemos que apesar da não aceitação do não índio

na sociedade dominante, existe um movimento discursivo que se forma e luta pelo

reconhecimento e pertencimento dos indígenas; os próprios índios. Nesse sentido, a

afirmativa de Candau (2006) é propicia, pois, aceitar a diferença é reconhecer que

existem indivíduos e grupos com diversidades entre si, mas que possuem direitos

correlatos e que a convivência em uma sociedade democrática depende da aceitação de

que compormos uma totalidade social heterogênea, na qual não se pode excluir nenhum

elemento e que os conflitos e de valores devem ser negociados pacificamente.

REFERÊNCIAS

BAUER, Martim W.; GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e

som – um manual prático. Editora Vozes: São Paulo, 7ª edição, 2008

CALDEIRA, Elaine. Representação dos atores sociais: discurso de reforço e

enfraquecimento na constituição discursiva de identidades étnicas. Revista Prolíngua –

ISSN 1983-9979. Volume 6 - Número 2 - jan/jun de 2011.

CANDAU, V. M. (org) Educação Intercultural e Cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7º

ed. Letras, 2006.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Trad. I. Magalhães. Brasília:

editora Universidade de Brasília, 2001.

GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa em

Ciências Sociais. 8.ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2004.

MAGALHÃES, Izabel. Introdução: a Análise de Discurso Crítica. D.E.L.T.A. 21

(especial): 1-10, 2005.

Page 317: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1095

RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica. São

Paulo: Campinas, Pontes Editores, 2011

Site Disponível em: veja.abril.com.br/tag/índios – Acesso em: 01/07/2014.

Page 318: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1096

GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA

CONSTRUÇÃO FAMILIAR AFRICANA EM O ALEGRE

CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE [Voltar para Sumário]

Ilka Souza dos Santos (UPE)1.

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)2.

1. Introdução

Ao conhecer um pouco da literatura produzida na África, notamos que entre as

temáticas recorrentes estão os mitos, as crenças, a cultura popular, a emigração, o que

nos faz conhecer um pouco da realidade de diferentes locais deste continente. Na

literatura africana produzida por mulheres, destaca-se também a luta pelo espaço do

gênero feminino. A tradição oral se sobressai à escrita, fato que é possível compreender

através de indicadores sociais que destacam a pouca escolarização da população. A

produção da literatura em espaço africano caracteriza em si a presença do contato com o

mundo ocidental, o elemento híbrido; e a participação feminina neste processo

acrescenta o sentimento de reafirmação, de contestação, da busca de um lugar e de uma

voz que possa ser ouvida.

Em O alegre canto da perdiz (2008), Chiziane traz o eixo central da história

direcionado às mulheres, tendo a Zambézia como espaço principal – considerando a

criação do mundo advinda do ventre de uma mulher –, e o período colonial e pós-

colonial como tempo histórico, mostrando o impacto deste período na construção

familiar e identitária deste povo.

O artigo encontra-se dividido em dois tópicos, um sobre os conceitos que

definem os aspectos que norteiam o trabalho (gênero e relações interétnicas); outro que

possibilita compreender a aplicação destes conceitos no decorrer da narrativa do

1 Graduanda do curso de Licenciatura em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE); bolsista de

iniciação científica PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected] 2 Professora Doutora adjunta do curso de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE). E-mail:

[email protected]

Page 319: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1097

romance. Dentre os autores referidos neste trabalho, temos Johnson (1997); Noa (2006);

Duarte (2011); Poutgnat; Streiff-Fenart (2011); Butler (2010); Louro (2010); Hall

(2011); Albernaz; Longhi (2009); entre outros que também trazem contribuições

importantes à abordagem das temáticas em questão.

2. Conceituando etnicidade e gênero

Considerados conceitos amplos e heterogêneos, etnicidade e gênero apresentam

alguns aspectos em comum, como a importância da identidade em sua construção.

Podemos partir, neste caso, de alguns pressupostos teóricos para compreender essas

noções. Na questão da etnicidade, por exemplo, Johnson (1997) diz que trata-se de

[...] um conceito que se refere a cultura e estilo de vida comuns,

especialmente da forma refletida na linguagem, maneiras de agir, formas

institucionais religiosas e de outros tipos, na cultura material, como roupas e

alimento, e produtos culturais como música, literatura e arte (JOHNSON,

1997, p. 100).

Para Weber os grupos étnicos

[...] alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada

nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou os dois, ou nas

lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se

importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma

comunidade de sangue exista ou não objetivamente (WEBER, [1921] 1971,

p. 416 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 37).

Logo, Barth considera que

as distinções de categorias étnicas não dependem de uma ausência de

mobilidade, contato e informação. Mas acarretam processos sociais de

exclusão e de incorporação pelos quais categorias discretas são mantidas,

apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de

histórias de vidas individuais. [...] Em segundo lugar, [...] as distinções

étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas

são, muito ao contrário, frequentemente as próprias fundações sobre as quais

são levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em um sistema

social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação;

as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da

interdependência dos grupos (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p.

188).

Na questão de gênero, Louro (2011) interpretando Stuart Hall, afirma que

[...] gênero constitui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, a

nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que

Page 320: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1098

transcende o mero desempenho de papéis, a ideia é perceber gênero fazendo

parte do sujeito, constituindo-o (LOURO, 2011, p. 29).

Este “desempenho de papéis” refere-se àqueles definidos socialmente pelas

diferenças sexuais, as quais englobam “papel de homem e papel de mulher” como algo

intrínseco ao sexo, mas que, como a própria Louro (2011) continua a discorrer, trata-se

de uma lógica hierarquizada e paradoxal, a qual consiste na relação de dominação do

marido sobre a esposa, mas que a mulher tem o papel de exercer dominação sobre o

filho, mesmo sendo ele do sexo masculino.

Albernaz e Longhi (2009), levando em consideração aspectos culturais, afirmam

que:

Gênero é uma operação de classificação cultural. Por meio da cultura usamos

o gênero para ordenar nosso pensamento para pensar o que é ser homem e o

que é ser mulher, mas não apenas isso. Por meio do gênero classificamos

muitas dimensões da vida em sociedade e da natureza. [...] Nesse sentido,

gênero conforma nossa subjetividade (ALBERNAZ; LONGHI, 2009, p. 83-

84).

“O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de

significado num sexo previamente dado [...] tem de designar também o aparato mesmo

de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. (BUTLER, 2003, p.

25). Judith Butler acredita na importância dessa descontrução e que é indispensável não

confundir gênero com sexualidade, além de combater a binariedade homem-mulher e de

considerar a importância do desejo para a construção do conceito.

3. Compreendendo o gênero e as relações interétnicas como influenciadores da

família no contexto ficcional do romance

O romance traz em seu enredo um contexto social resultante do processo de

colonização sofrido pelo território africano, a autora faz um retrato daquela sociedade

através da caracterização de quatro personagens: Maria das Dores, que é a protagonista;

Delfina, a deuteragonista; e as demais, Serafina e Jacinta, personagens secundárias. Esta

é, inclusive, a ordem de aparecimento delas na narrativa; porém, se fôssemos organizá-

las de acordo com sua cronologia na família e “importância” social, poderíamos ordenar

da mais velha para a mais nova: Serafina, Delfina, Maria das Dores e Jacinta. O

narrador é observador de onisciência neutra, que por vezes penetra nos pensamentos da

Page 321: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1099

personagem, lendo-lhe os pensamentos, ou monólogos interiores. Cada uma apresenta

traços específicos de uma realidade marcada por opressão, dor, processos de

assimilação, prostituição, busca de identidade e relações de poder. Serafina, que é a

mãe de Delfina e representante da primeira geração da família, educa a filha de uma

forma que reflete os conflitos de quem presenciou e sofreu impactos graves gerados

pela colonização; Delfina, por sua vez, tenta executar aquilo o que a mãe a ensinou,

revolta-se com sua condição de negra não assimilada e prostituta, transfere, então, tais

sentimentos de forma latente à criação de seus filhos, segregando-os pela cor; Maria das

Dores e Jacinta são exemplos das ações de Delfina, sendo, respectivamente, uma negra

e outra mulata – que carrega consigo todas as esperanças de ascensão social da mãe, é

reflexo de uma nova raça, híbrida, que está a se formar.

Podemos reconhecer, a partir daí, a tendência da mulher africana de transmitir os

valores culturais que fazem parte do seu meio aos seus descendentes, sejam estes:

valores tradicionais ou transformados de alguma forma por processos históricos que

provoquem mudanças significativas no modo de vida em sociedade. Daí Duarte afirmar

ser a: [...] “situação da mulher africana historicamente ligada à transmissão de valores

culturais como hospitalidade, respeito aos mais velhos rituais, usos e costumes”

(DUARTE, 2011, p. 79).

Além disso, Chiziane busca mesclar capítulos de sua narrativa com relatos

tradicionais africanos que contêm traços de oralidade e descrevem a criação do mundo

pelo continente africano e considerando-o originado pelo ventre de uma mulher. Essas

passagens espelham o intuito de colocar a mulher numa posição de importância, muitas

vezes ignorada no desenvolvimento de diversas sociedades, contestando o gênero

feminino, assim como também ressaltam a questão mitológica presente no imaginário

africano.

A história se repete. As lendas antigas se reproduzem e se materializam.

Lendas dos tempos em que Deus era uma mulher e governava o mundo. Era

uma vez... Há muito, muito tempo, a deusa governava o mundo. De tão bela que era, os

homens da terra inteira suspiravam por ela. Todos sonhavam em fazer-lhe um

filho. [...] Chamou os homens um a um e agraciou-os com a divina dança. Engravidou

de apenas um, [...] Todos ficaram a saber que a deusa era uma mulher banal e

o divino residia no seu manto de diamantes. [...] Roubaram-lhe o manto e

derrubaram-na. Tomaram o seu lugar no comando do mundo, condenando

todas as mulheres à miséria e à servidão (CHIZIANE, 2008, p. 220).

Page 322: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1100

O processo de colonização acarretou um impacto muito forte no modo de vida e

em tradições étnicas africanas, trazendo paradoxos na questão da identidade, afinal,

havia uma cultura considerada “superior” sendo imposta a outra que comportava

séculos de tradição. O crítico cultural Kobena Mercer, diz que “a identidade somente se

torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente

e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER,1990, p. 43

apud HALL, 2011).

Com a chegada dos europeus, a escravidão imposta por eles também adentrou

violentamente o cerne social africano. Jovens negros e fortes tinham preferência, pois

serviam para trabalhos pesados. Famílias foram dissipadas. As mulheres passaram a

querer, por consequência, gerar proles do sexo feminino, assim, evitariam passar pelo

sofrimento de perder um filho. Muitos maridos se foram como escravos ou morreram

em batalhas, o que fez com que o colonizador adentrasse o seio familiar nativo,

fecundando mulheres, gerando filhos que não eram pretos ou brancos, e sim híbridos.

Branquear a raça passou a ser um ato de sobrevivência, de ascendência social e, apesar

de todos os impactos, esta ação passou a afigurar-se como uma “contribuição” da

mulher no processo de colonização, utilizando seu ventre na criação de uma nova etnia.

A assimilação tornou-se uma das poucas alternativas viáveis de afirmação naquele

contexto, já que proporcionava um pouco mais de qualidade de vida aos que aceitavam

submeter-se ao processo, no entanto, ela vinha acompanhada de um preço alto: a cultura

nativa deveria ser renunciada.

Tendo em vista a abordagem de fatos historicamente reais, deve-se levar em

consideração a relevância do relato como sendo uma obra de ficção composta por seres

fictícios, por esta razão, limitada aos horizontes criados pelo narrador,

[...] A personagem é um ser fictício [...] Podemos dizer, portanto, que o

romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser

vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a

concretização deste (CANDIDO, 2006, p. 52).

Três invariáveis, no contexto da ficção moçambicana, são consideradas por Noa

(2006), as linguagens, os espaços e os seres; dentro das linguagens estão: “a linguagem

do corpo quase sempre carregada de sensualidade e de erotismo”; “a linguagem da

imaginação, rememorativa e congeminativa, projectando, quase sempre, imagens de

Page 323: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1101

inação e de inadaptação”; “a linguagem da oralidade” que envolve dramas e situações

do cotidiano, sobretudo no meio urbano e suburbano; e “a linguagem da tradição

ritualizada, quer pelas canções populares quer pela voz implacável dos mais velhos”.

Na representação dos espaços, os três que são mais englobantes são: a cidade, o

subúrbio e o campo. E sobre a representação dos seres podemos compreender que “[...]

quase todas elas [as representações das personagens] oscilam entre a individualização e

a socialização, facto que pode ser observado nas atitudes, nas acções que executam, nos

dramas que protagonizam, nas falas que realizam e nos nomes que ostentam” (NOA,

2006, p. 273).

A personagem Serafina, representante da primeira geração da família ficcional,

presenciou os fatos históricos mencionados. Ela perdeu três filhos homens para a

escravidão, carregava em si o estigma da raça, o qual passou às gerações seguintes de

sua família. Teve Delfina como filha, iniciou-a nas artes da prostituição, sua iniciação

sexual foi concebida por um homem branco em troca de uma taça de vinho para a mãe.

Delfina foi criada para seduzir, já trazia consigo uma beleza natural que lhe rendia

muita atenção, em sua descrição pode-se observar a linguagem do corpo:

[...] Porque é negra e é bela. Donzela. Lampariga, de acordo com os

linguarejos malandros dos homens, porque a rapariga brilha como uma

lamparina.[...] Porque era recheada, bonita e atrapalhava a concentração dos

rapazes. Na igreja ficava no banco de trás. A freira expulsou-a de novo

(CHIZIANE, 2008, p. 78).

Sua mãe ensinou-lhe a usar o corpo como arma de sobrevivência e ascensão

social, deveria seduzir os colonizadores no cais, ter filhos mulatos, assim, poderia

desfrutar das benfeitorias que julgava merecer. Delfina, contrariando a vontade da mãe,

casou-se com um negro, o José dos Montes, com quem teve Maria das Dores e Zezinho.

Alegava que queria destruir o amor que sentia por ele, e a melhor alternativa para atingir

este objetivo era o casamento, ou seja, ela acreditava que o amor não sobreviveria ao

matrimônio. O narrador aproveita a menção do casamento e faz uma crítica ferrenha à

posição inferiorizada que é destinada à mulher em sua vida conjugal:

Para o homem, a lua-de-mel é a tomada de posse de um corpo já conhecido

como legítimo proprietário. [...] Para as mulheres é a inauguração do estatuto

de serva. Agora traz-me o café, agora a sopa, agora engoma a minha roupa. E

ela sobe, amorosamente, ao seu trono de servidão, rainha de espinhos. Lua-

de-mel é balada de doces poemas, em que cada um tece uma canção secreta.

Page 324: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1102

Meu amor! Eu também te amo. Mas se me desobedeces eu esmurro-te

(CHIZIANE, 2008, p. 111).

Então, usou de sua influência e do amor cego que José demonstrava sentir por

ela para fazer com que ele se tornasse um assimilado, ele o fez. A assimilação prova-se

como um dos mais terríveis desafios éticos e étnicos na vida de José, tornar-se sipaio

significou não só deixar para trás todos os seus costumes, mas ajudar a apagá-los da

história. Ele matou seus irmãos de raça, abandonou seus deuses, e percebeu que o deus

dos brancos não dialogava da mesma forma com ele. É importante observar também,

que o José dos Montes era um condenado, foi tirado de sua mãe ainda criança para

trabalhar, então sua personalidade demonstra a necessidade de uma figura feminina que

remeta à materna, numa busca evidente de cuidado e atenção; sua condição estava

diretamente relacionada à de Serafina, que perdeu seus filhos homens de forma

semelhante à que ele foi tirado de sua mãe, “O José acaba de nascer do ventre de uma

esposa. Uma esposa bela, única” (CHIZIANE, 2008, p. 111). Eles passaram a conviver

“dignamente” em sociedade, apesar disso Delfina queria sempre mais, sempre estando

insatisfeita, o trocou, portanto, por um branco, o Soares, com quem teve Jacinta e

Luisinho, seus filhos mulatos. A mãe segregava os filhos dentro de casa, os mais

clarinhos tinham o direito de se alimentar bem, vestir-se bem, além de estudar e brincar,

enquanto os negros detinham para si as obrigações domésticas, como papel de servos

mesmo, principalmente Maria das Dores, que carregava em si o gênero feminino e a

pele negra. O estigma da raça novamente era refletido no dia a dia da família, o curioso

da situação é o fato de a própria Delfina agir dessa forma, enquanto o Soares, que era

europeu, branco, tratava todos os filhos com igualdade, até os que não eram dele,

admirava a esposa, inclusive, por suas características físicas e questionava sua tentativa

constante de querer parecer branca e discriminar as proles. As atitudes da mulher

acabaram por dissipar o encanto que ela detinha sobre ele.

Após o “pai branco” de seus filhos tê-la abandonado, Delfina ofereceu a

virgindade de sua filha negra, Maria das Dores, ao feiticeiro Simba, para que ele

trouxesse Soares de volta. O momento em que ela leva Maria ao encontro dele é

descrito de uma forma simbólica de separação do ser híbrido do puro, respectivamente

Jacinta e Maria das Dores:

Page 325: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1103

Era um quadro bonito de ver. Duas irmãs sentadas na varanda entrançando os

cabelos uma da outra ao entardecer. Uma preta e outra mulata. Falando de

coisas do princípio do mundo, no desabrochar das vidas. [...] Maria das Dores

vai caprichando no penteado, colocando missangas coloridas em cada trança.

Em cada missanga um sonho. Delfina estremece, porque entardece. Daqui a

pouco anoitece (CHIZIANE, 2008, p. 254).

Iniciou-se a percepção da existência das diferenças motivadas pela raça por parte

de Jacinta. Neste momento, Delfina deixa implícitos os ensinamentos que lhe foram

passados em seu contexto social por intermédio de sua mãe, o qual estabelece um

estereótipo inferiorizado para a mulher negra, “O mundo dos brancos tem outros

códigos, não precisam desta viagem. Para eles é mais importante a escola dos livros que

a escola da vida” (CHIZIANE, 2008, p. 255), é o que a faz convencer-se do porquê de

usar a filha negra e não a mulata para arcar com suas dívidas. Mas Jacinta, a filha

silenciosa, passou a questionar sobre o paradeiro da irmã.

Delfina faz uso do corpo da filha como arma de sobrevivência, o que causaria,

diante do pensamento ocidental, uma dúvida acerca do amor que ela deveria sentir por

Maria das Dores; Campos (2008), em sua pesquisa sobre o amor materno, afirma que

Ao amor se seguem comportamentos esperados, atitudes, disposições e ações.

E a cada sociedade e/ou a cada cultura correspondem estruturas de relações e

práticas sociais específicas, em meio e por meio das quais as emoções são

expressas, controladas, normatizadas (CAMPOS, 2008, p. 135).

O contexto em que se encontram aparentemente contribuiu para atitudes

extremas como esta, assim como também, é claro, a ambição sem limites de Delfina, o

que a faz se arrepender duramente tempos depois. Simba passa a manter Maria das

Dores num regime de poligamia forçado, ela tem filhos com ele, mas vive novamente

em um contexto de submissão, neste caso, relacionado à questão de gênero, pois ela

desempenha a função de esposa que apenas procria e serve ao marido sexualmente, sem

direito à contestação.

Maria das Dores traz em si uma representação concreta do contexto da mulher

negra,

Maria das Dores é o seu nome. Deve ser o nome de uma santa ou uma branca

porque as pretas gostam de nomes simples. Joana. Lucrécia. Carlota. Maria

das Dores é um nome belíssimo, mas triste. Reflecte o quotidiano das

mulheres e dos negros (CHIZIANE, 2008, p. 16).

Page 326: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1104

Seu nome tem características da representação dos seres teorizada por Noa

(2006), que é espelhada também através das ações que as personagens praticam e nos

nomes que ostentam, além de seus conflitos e sentimentos de mundo. Outros traços

étnicos que ela possui são refletidos nas tatuagens que carrega no corpo, que, segundo o

narrador, referem-se ao povo lómwè, oriundos das montanhas:

As tatuagens remontam ao tempo do esclavagismo, a velha sabe. Os povos

africanos tiveram de carimbar os corpos com marcas de identidade. Cada

tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo, desenhando-se o mapa da

terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada traço uma mensagem. Árvore

genealógica. A tatuagem ajudou à reunificação dos membros da família, em

São Tomé. Na América. Nas Caraíbas. Nas ilhas Comores, em Madagáscar,

nas Maurícias e em outros lugares do mundo. Mudaram-se os tempos, os

africanos não precisam mais de tatuagens, terminou o tempo da escravatura

(CHIZIANE, 2008, p. 31).

As tatuagens reescrevem a história africana, marcam o corpo da mulher com sua

participação social, elas fundem mulher e espaço. Provam sua atuação no contexto

colonial, elas são um grito silenciado de vida.

Quando Maria das Dores, enfim, consegue libertar-se, vai à região dos Montes

Namuli, que representa o campo, a região das montanhas, e é coberta pelo misticismo

popular. Os Montes Namuli simbolizam a resolução de todos os problemas, o local onde

todos se encontram e confraternizam e faz parte, junto à Zambézia, da representação do

espaço. Chiziane não escolheu este espaço geográfico por acaso,

[...] divide o país em duas polaridades distintas: o sul patriarcal e o norte

matriarcal. Chiziane, ao eleger a Zambézia como metonímia da África [...]

apresenta-nos uma ideia de nação baseada em critérios de gênero. A

Zambézia como o umbigo do mundo, o grande útero que gerou a humanidade

(GONÇALVES; LA GUARDIA, 2010).

Ao chegar aos Montes Namuli, Maria perde os seus filhos, adentra um estado de

transe que faz com que passem a chamá-la de a louca do rio, pois aparece nas águas nua

e evidenciando as marcas tatuadas de seu corpo. Sua nudez causa espanto às outras

mulheres, demonstrando como a exposição do corpo feminino, inclusive no mundo

ocidental, é tratada como tabu. A loucura de Maria das Dores é a forma que a

personagem encontrou para resistir a todas as perdas e situações de subserviência e falta

de controle sobre seu corpo; Maria escondeu-se dentro de si, o único lugar em que não

poderia ser julgada ou explorada.

Page 327: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1105

A personagem Jacinta, como mulata, representa a mistura de raças. Sua

participação na narrativa ganha mais relevância quando ela se percebe híbrida, quando

reflete sobre as diferenças de sua criação e de seus irmãos negros. Quando percebe que

quando estava com as crianças negras da vizinhança, era ignorada, pois tinha a pele

clara, e quando estava no meio dos brancos era considerada escura demais. O narrador

diz que ela chegou a desejar que existisse uma nova raça, onde houvesse pessoas iguais

a ela. Jacinta admirava sua irmã Maria das Dores, queria ter o cabelo como o dela,

orgulhava-se de sua força naquele meio de submissão familiar ao qual tão injustamente

era submetida. Ela começou a ter uma visão amalgamada de mundo:

Era estranho viver numa casa de todas as raças. Fazia-lhe confusão absorver

o comportamento de pretos e brancos em simultâneo. Era mais complicado

ainda estar numa refeição dividida. O pior de tudo era não haver ninguém

para responder aos seus dilemas. O discurso da mãe ela conhecia. Se o pai

estivesse perto, também não responderia (CHIZIANE, 2008, p. 248).

Quando Maria sai de casa e Delfina entrega-se ao álcool, culpada pelo

desaparecimento da filha, Jacinta demonstra ter uma força e uma autonomia que até

então desconhecia. Ela deixa de lado os conflitos de cor, que em sua mente não se

justificavam. No entanto, o momento do seu casamento, mesmo não sendo sua intenção,

representa o triunfo da vida de sua mãe.

[...] Delfina estava ali para mendigar o perdão de uma filha, dialogar com o

passado e selar a reconciliação. Não recebeu convite para aquela boda, mas

foi. Estava decidida a ficar até ao fim, nem que caíssem sobre ela todas as

pedras do mundo. Enquanto Jacinta subia ao altar, Delfina chorava. Aquele

momento era o coroar de todos os sacrifícios. Vê no rosto dela todas as

marcas da família. Os olhos do pai, o Soares. A boca da avó, a Serafina. E

revê a sua Maria das Dores. São muito parecidas uma com a outra. Uma preta

e uma mulata. Todas filhas dela (CHIZIANE, 2008, p. 282).

Jacinta casa-se com um homem branco, Delfina enfim conseguira, por meio da

filha, apagar o negro de sua descendência. Apesar de a cria ter renunciado à mãe, este

foi o instante em que, de certa forma, “os fins justificaram os meios”. Os laços

familiares nunca seriam apagados. Cada uma delas carregava história e árvore

genealógica no sangue que corria em suas veias, nas características étnicas evidentes em

seus corpos, na visão que tinham de mundo.

Page 328: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1106

4. Considerações finais

Sob um arcabouço literário muito rico, Paulina Chiziane trouxe em O alegre

canto da perdiz (2008) várias questões pertinentes à sociedade colonial africana, e que

deixaram reflexos que permanecem presentes até hoje na identidade e cultura do povo

local. O próprio processo de construção do romance e suas características evidenciam os

dois temas propostos por este estudo, afinal, o texto foi escrito por uma mulher negra,

ou seja, gênero e etnia. O fato de ser considerada a primeira moçambicana a lançar um

romance agrega em si o poder de contestação do discurso feminino em uma sociedade

que não costuma dar voz às mulheres, tanto culturalmente como intelectualmente, além

disso, configura-se como uma oportunidade de conhecer, através de um olhar empírico e

esteticamente crítico, traços sociais recorrentes àquele povo, e tradicionais, mantidos

através de rituais, ditados populares, crendices, ações. Vale salientar também que, pelo

fato de haver uma maior divulgação da obra literária moçambicana, e africana em geral,

em território ocidental (ainda que precise tomar proporções maiores), o estilo de escrita

passa a ser influenciado em alguns aspectos, tornando-se muitas vezes híbrido.

Diante de uma abordagem de gênero e relações interétnicas e seus impactos na

construção familiar africana, são perceptíveis uma série de artifícios estéticos utilizados

pela autora, que possibilitaram trazer à tona diversas temáticas. Por exemplo, a escolha

do espaço geográfico da Zambézia, com um viés metonímico da África e do gênero

feminino; as características das personagens principais, que trazem significados

agregados às condições sociais vividas por elas; a linguagem poética, que conseguiu

mesclar relatos pesados a uma leveza capaz de despertar percepções no leitor que vão

além do que é dito abertamente, mas que instigam a reflexão e a investigação; a

abordagem dos fatos narrados misturados a mitos que descrevem o surgimento do

mundo sob o comando feminino.

Chiziane trabalha também o psicológico de suas personagens, a forma como

elas se adaptam a situações extremas, além de como suas atitudes refletem em suas

realidades sociais. Corpo, loucura, matrimônio, sexo, tradição, a obra abrange a todos

esses assuntos, dentre outros pontos que, só com uma experiência de leitura contínua,

pouco a pouco se revelam ao leitor, possibilitando, sem dúvidas, uma vivência

enriquecedora e única.

Page 329: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1107

Em suma, o romance representa a oportunidade de divulgação de uma cultura

que é tão antiga quanto pouco conhecida por muitos ocidentais, é uma chance de

enfatizar a importância da preservação do antigo para a construção do novo, além de, é

claro, trazer à tona a grandiosidade da escrita feminina em um contexto

predominantemente masculino, como o que há muito tempo compõe a produção literária

moçambicana. Conhecer, preservar e divulgar faz-se muito necessário ao combate

contra a submissão feminina, étnica e cultural nos mais diversos âmbitos sociais.

5. Referências

ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira; LONGHI, Márcia. Para compreender gênero:

Uma ponte para relações igualitárias entre homens e mulheres. In SCOTT, Parry;

LEWIS, Liana; QUADROS, Marion Teodósio de. Gênero, Diversidade e

Desigualdades na Educação: Interpretações e Reflexões para Formação Docente.

Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade.

Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5

ed. Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.

__________A Personagem de Ficção. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006, 5ª edição.

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.

COSTA, Pollyana dos Santos Silva. Assimilação, identidade e memória na obra O

alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane. Dissertação de mestrado. Universidade

de Brasília, 2013.

GONÇALVES, Anamélia Fernandes; LA GUARDIA, Adelaide. Corpos

transfigurados: Uma análise do corpo Mestiço em O alegre canto da perdiz, de

Paulina Chiziane. IPOTESI, Juiz de Fora, v.14, n. 2, p. 215-226, 2010.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu

da Silva, Guacira Lopes Louro - 11 ed., 1 reimp. - Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Ltda, 1997.

Page 330: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1108

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-

estruturalista. 13 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

NOA, Francisco. Modos de fazer mundos na actual ficção moçambicana in

CHAVES, Rita; MACÊDO, Tania. (orgs.) Marcas da diferença: as literaturas

africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São

Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1997.

Page 331: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1109

A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA

ENSINO DE ANÁLISE DO TEXTO LITERÁRIO [Voltar para Sumário]

Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)

Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)

Introdução

A Semiótica nos fornece meios para repensar a linguagem de forma geral e

como cada linguagem é capaz de influenciar outra, reconhecendo que todo tipo de

signo, linguagem e acontecimento cultural é capaz de comunicar, de produzir

significado. Nesse processo, a linguagem visual, por exemplo, não é subjulgada à

linguagem oral e esta, por sua vez, não é subjulgada à linguagem escrita. Assim, a teoria

desenvolvida por Charles Sanders Peirce, segue essa mesma linha científica e afirma

que toda e qualquer linguagem desenvolve-se sempre em uma relação triádica: signo –

objeto – interpretante.

Eu estava ali deitado

eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim, fustigadas pelo

vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo

ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas

irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com

a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas

juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de

preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada

ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer

mesmo almoçar? eu falei que não não quer comer nada? eu falei que não nem uma

Page 332: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1110

carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um

limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu

também sorri mas falei que não não estava com a menor fome nem uma coisinha meu

filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu

do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos

engraxados bonitos brilhantes ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e

mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles

estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos

garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu

quarto.

- você precisa compreender isso, Carlos

- não posso, Miriam

- não daria certo

- não daria certo?

- nossos temperamentos não combinam

- não é verdade

- assim será melhor para nós dois

não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não

pode! ó meu Deus não pode

Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que

vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e

assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado

no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no

Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar

uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e

então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele

queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter

dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era

diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava

atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as

Page 333: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1111

mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei

como é é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então

ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu

sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou

pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas

você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou

o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e

eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos

dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava

deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de

você você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma

coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer

nada bem vai? não não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu

morreria eu gosto demais de você demais demais

fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do

Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e

deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra

vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e

apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela

doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao

corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as

roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de

meu quarto

Page 334: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1112

O conto é escrito, majoritariamente, com letras minúsculas e sem pontuação.

Esse recurso utilizado pelo autor, denominado de fluxo de consciência, ratifica a

sensação de pequenez, finitude e confusão que o garoto estava sentindo em seu

relacionamento com as pessoas e com o mundo. Vilela, possuindo formação em

Filosofia, tem um jeito bastante peculiar de trabalhar questões do íntimo do ser humano

– mesmo que este ser seja um adolescente. Este possui, por motivos biológicos, a

transformação do corpo, ocasionada pela ebulição dos hormônios, fazendo com que a

mente seja transformada concomitantemente e isso reflete diretamente, por exemplo, na

discrepância de humor característica dessa fase da vida. REESCREVER

No segundo parágrafo, por exemplo, temos uma presença marcante de

diminutivos proferidos ao menino por sua mãe. Isso nos leva a questionar se os

diminutivos são porque a mãe percebeu o estado de espírito do filho, se a sensação de

pequenez que o menino sentia dizia respeito apenas ao que acontecera com ele ou se

essa sensação era motivada por seus familiares há tempos. Além disso, o tempo

climático contribui para a representação da tristeza do menino: é noite, está escuro, frio

e barulhento; chove lá fora, mas também chove dentro do menino, ou seja, a escolha do

temporal para construção da espacialização do conto não é meramente arbitrária. Além

disso, percebemos a alternância entre ruído e silêncio, o que nos remete,

consequentemente, aos pensamentos confusos do garoto – “e agora eles estavam

comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a

casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.”

Referências

VILELA, Luiz. No bar. Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Bloch, 1968. 2. ed., São Paulo:

Ática, 1984.

Page 335: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1113

O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM

GÊNERO INSERIDO NO CONTÊINER DAS PRÁTICAS

DISCURSIVAS [Voltar para Sumário]

Isabela Bastos de Carvalho (IFF / CEFET-RJ)

O contêiner1

Antes de iniciar as discussões propostas, é interessante explicitar a ideia de

contêiner que aqui está sendo utilizada. O objeto mencionado é grande, retangular,

vedado, restrito, e é utilizado para transportar outros objetos menores, limitados ao

espaço disponibilizado. De acordo com o dicionário on-line Priberam2, contêiner é um

“recipiente, tara ou invólucro, geralmente padronizado, destinado ao acondicionamento

ou transporte de mercadorias ou materiais”. Pensando nas práticas de sala de aula,

sustentadas pelo currículo vigente, esse perfil de objeto nos provoca uma associação

metafórica imediata. Assim como o contêiner, o currículo dominante, que tem vigorado

nas escolas brasileiras, apresenta características associativas semelhantes: é grande,

porque valoriza o saber enciclopédico e universal; é retangular, pois apresenta uma

forma rígida quanto à defesa dos conteúdos; é, por isso, vedado, pois não aceita as

trocas impostas pela mobilidade social; é restrito, porque acredita em um valor de

verdade único; é limitado, pois não flexibiliza a negociação do saber. Além disso, o

contêiner é mero objeto de transporte, redundantemente falando, fechado.

Para permitir o aprofundamento das discussões, é importante trazer aqui o

conceito primeiro da palavra currículo, cujo significado tem uma relação conceitual

estreita com o objeto que se quer denominar. De origem latina, curriculum é um

1 Imaginar línguas impermeáveis é impossível. Termos estrangeiros entram na língua por processos

culturais diversos, que não julgamos pertinente aqui discutir. Se já existe a forma aportuguesada

(contêiner), não vemos a necessidade de utilizar sua correspondente em inglês (container), mais usual. 2 Disponível em <http://www.priberam.pt/dlpo/cont%C3%AAiner>, consultado em 04-01-2015.

Page 336: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1114

substantivo derivado do verbo currere (correr), o que acena para a ideia de mobilidade,

compreensão inicial, relacionada ao termo em questão, apagada ao longo de muitos

séculos. O currículo, então, engessado, passa à condição de contêiner. Deixa de correr

livremente por espaços sociais abertos, para ser meio de transporte de um saber, não por

acaso identificado como “matéria”.

Nesse sentido, chamamos atenção para o seguinte paralelismo: os materiais estão

para o contêiner (instrumento de transporte) assim como o currículo “conteinerizado”

está para a matéria3, administrada de modo disciplinar. Vejamos que a palavra

disciplinar também não surge aleatoriamente. Todas essas palavras traduzem uma

compreensão assujeitada que se tem do conhecimento, em que a produção histórica da

seleção curricular está apagada. Referimo-nos ao conhecimento (matéria) tomado como

verdadeiro, em que não vem à tona quem produz, para quem produz, o que produz, o

que se quer quando produz. Ainda em outras palavras, apagam-se as relações de poder

que estabelecem os conteúdos tomados como válidos, e que deverão, pelo caminho da

disciplina (no sentido ambivalente), ser firmemente defendidos, (ad)ministrados. Vale

lembrar que o gestor desse conhecimento, menos docente que deveria, é o ministro.

Historicamente falando, o currículo “conteinerizado” vem priorizando formar

identidades sociais que atendam aos interesses do mercado, e não trabalhadores/

cidadãos questionadores, capazes de interferir na sociedade em que vivem. De acordo

com Silva (2006), o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de

transmissão de conteúdos, ou, segundo incontáveis versões do mesmo argumento,

saberes necessários ao mundo do trabalho. Esta concepção se sustenta na não

mobilidade dos conhecimentos e, porque validados por sua perenidade, traduzem uma

concepção que gera um sentido de verdade objetiva. Silva (2006) contesta essa visão e

afirma que “o currículo é seleção”, feita em virtude de um determinado projeto político,

de uma cidadania desejada.

O currículo visto como produto acabado, concluído, não pode deixar de

revelar as marcas das relações sociais de sua produção. Desde sua gênese

como macrotexto de política curricular até sua transformação em microtexto

de sala de aula, passando por seus diversos avatares intermediários (guias,

diretrizes, livros didáticos), vão ficando registrados no currículo os traços da

disputa por predomínio cultural, das negociações em torno das representações

3 A palavra matéria está sendo empregada como sinônimo de conteúdo de um componente curricular

(disciplina).

Page 337: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1115

dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das lutas entre, de

um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados,

relegados, desprezados. (SILVA, 2006, p. 22)

E se o currículo se faz a partir das relações sociais – desiguais –, envolverá

relações de poder. Vale indagar, por conseguinte, àqueles que defendem um currículo

de conteúdos sacralizados: como toda relação de poder, o indivíduo que defende esse

currículo tem claro, para si próprio, que o que permeia esse currículo é sempre uma

ideologia, representante de interesses restritos? É importante registrar que em qualquer

concepção de currículo, haverá, sempre, uma ideologia atravessando o objeto. A

questão é estar ciente dos fundamentos ideológicos da organização curricular e que

opção de currículo se tem ao escolher determinado currículo. Não existe, na escolha de

qualquer conteúdo, portanto, a neutralidade. É interessante ressaltar, ainda, que o

currículo é elaborado por seres humanos. De acordo com Bakhtin (1997ª), “No

acontecimento singular e único da existência, é impossível ser neutro” (p.143).

Quando ressaltamos a importância que se tem de conhecer o objeto com que

lidamos, a fim de saber que ele é produto de uma criação, produzido em um tempo

específico, para atender a interesses daquele momento, estamos afinados com Foucault.

Segundo ele, é necessário problematizar a realidade, pois em nenhum segmento há uma

verdade absoluta e incontestável. As verdades são discursivamente construídas, assim

como a própria história, e estão intimamente relacionadas ao poder (Portocarrero, 1994).

Acreditamos que assim deva ser visto o currículo, como um texto, que, como tal,

sustenta um discurso, pois o currículo é um gênero do discurso. Conforme afirma

Bakhtin (1997ª),

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão

sempre relacionadas com a utilização da língua. [...] efetua-se em forma de

enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes

duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições

específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu

conteúdo (temático) e por seu estilo verbal [...]. Qualquer enunciado

considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização

da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso

que denominamos gêneros do discurso. (p. 279)

Olhando o currículo na perspectiva bakhtiniana, podemos concluir que o

currículo tende ao discurso estável, já que está subjugado a forças decorrentes do poder.

Nas relações assimétricas, mantém-se aquele que mais poder tem para se impor. A

Page 338: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1116

consciência desse processo é essencial para que se possa voltar à ideia original da

mobilidade, do currere. É importante registrar que a estabilidade não é exclusiva do

currículo clássico – aquele a que chamamos engessado –, mas das lutas que envolvem

as relações de poder. A estabilidade é, portanto, uma consequência. Corre esse mesmo

perigo, caso não estejamos sensíveis ao jogo do poder, qualquer outro currículo que

venha substituir o clássico. O currículo como discurso é prática, é negociação, é

atualização.

Pelo que até aqui discorremos, podemos afirmar, com segurança, que o currículo

deve ser sempre repensado. Perceber sua mobilidade permite ao educador instaurar, na

sua prática, fundamentos que esvaziem argumentações validadoras de um currículo

desatualizado, centradas em conteúdos obsoletos, conservadores, excludentes, para dar

lugar a uma prática em direção aos conteúdos que atendam aos interesses sociais

plurais. Retomando Silva (2006), “o currículo está centralmente envolvido naquilo que

somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o

currículo nos produz” (p.27).

O que se vê, na maioria das instituições de ensino brasileiras, são currículos

estagnados, produtores de cidadãos estagnados, que não contribuem para as

transformações sociais que se fazem necessárias. É interessante pensar o currículo, por

que não, como um fetiche, como propõe Silva (2006). Na realidade, esse autor afirma

que o currículo já é um fetiche, pois é uma coisa inerte a que se atribui poderes.

Pretende-se, no entanto, encarar o currículo como outro tipo de fetiche, que significaria

“reconhecer as características comuns de todas as nossas formas de conhecimento”

(p.103). Um novo currículo, fetichizado, contribuiria, por causa da curiosidade que os

fetiches despertam e da ausência que sinalizam, para um novo modelo de educação, em

que há total ligação entre as coisas e o homem, que faz as coisas.

Ver o currículo como fetiche significa questionar a hipótese da autonomia do

sujeito pedagógico. Significa supor uma relação muito mais complicada não

apenas entre o sujeito e as coisas, mas, sobretudo, entre o sujeito e as coisas

que ele cria – entre o sujeito e seus fetiches. (SILVA, 2006, p.107)

O currículo, então, pode ser entendido como um discurso que foi socialmente

construído, com fins políticos e ideológicos, mas que pode ser desconstruído,

reconstruído, fetichizado. Vale lembrar, ainda, que o currículo envolve o não-dito. À

medida que se escolhem determinados conteúdos para serem ensinados, outros são

Page 339: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1117

silenciados. Para Orlandi (1997), “a política do silêncio se define pelo fato de que ao

dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em

uma situação discursiva dada.” (p.75) Por meio do currículo se mantêm ou se

transformam identidades. O currículo pode ser grade, prisão, contêiner, mas pode ser

liberdade. É preciso, então, escolher que currículo seguir, ou que currículo construir, e,

mais importante, como construir. O silêncio? A negociação?

O contêiner da Língua Portuguesa no Brasil: currículo e ensino

No Brasil, o currículo – não só de Língua Portuguesa, mas das disciplinas em

geral – é contêiner para os saberes. Desde que os jesuítas foram expulsos da colônia

portuguesa, hoje Brasil, o ensino de Língua Portuguesa tornou-se obrigatório. O que se

priorizava era o estudo da gramática, da boa gramática presente nos textos literários de

Portugal. Essa ideia foi se fortalecendo no imaginário coletivo, transformando-se em

uma verdade que se perpetua ainda nos dias de hoje.

O que se vê, no ensino de Língua Portuguesa dos cursos de Licenciatura em

Letras e da Educação Básica, é, ainda, a prioridade pelo ensino do código linguístico,

fechado em si mesmo, “conteinerizado”, distante dos falantes, distante até, muitas

vezes, da literatura contemporânea. Esse tipo de ensino tem ênfase no estudo da frase,

apesar de se reconhecer que o conhecimento linguístico envolve, pelo menos, níveis de

saber textual e discursivo. Não fosse essa uma questão bastante relevante que tem sido

praticamente desconsiderada, a língua prescrita pelas gramáticas continua sendo

entendida como superior, a melhor possibilidade para a eficácia da comunicação,

independentemente do contexto. Para Leite (2011),

Na medida em que a escola concebe o ensino da língua como simples sistema

de normas, conjunto de regras gramaticais, visando à produção correta do

enunciado comunicativo culto, lança mão de uma concepção de linguagem

como máscara do pensamento que é preciso moldar, domar para, policiando-

a, dominá-la, fugindo ao risco permanente de subversão criativa, ao risco do

predicar como ato de invenção e liberdade (p.24)

Os estudos variacionistas até mostram que há outras possibilidades linguístico-

sociais. Apesar de os livros didáticos acenarem para a perspectiva dos usos da

linguagem, em muitos deles ainda se encontra o discurso da norma culta como a ideal,

sem muitos aprofundamentos sobre expressividade e adequação ao contexto.

Page 340: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1118

Se nos ativermos ao livro didático, podemos perceber, também nele, a metáfora

do contêiner. Expliquemo-nos: dividido em capítulos, esse material apresenta, em um

compartimento, o tópico sobre usos da linguagem, com textos para introduzir e ilustrar a

temática, além de exercícios para fixação. Daí por diante, todos os tópicos são tomados

sob a perspectiva da norma padrão, sem fazer relação com a característica variacionista

da língua. Em nenhum momento se relaciona o que se aprendeu ao que se está

aprendendo como um processo de saber que precisa estabelecer relações. Nada é

retomado como rede de relação de saber, e os capítulos são organizados em conteúdos

restritos e limitados ao espaço vedado, independentes uns dos outros, apesar de estarem

dispostos no contêiner, aqui, entendido como o livro. É a perspectiva da

matéria/material que tem lugar no livro do currículo fechado – o contêiner. Se

continuarmos associando o currículo, enquanto elemento do processo educativo, ao

contêiner, poderemos dizer que os seus avatares4 também apresentam as mesmas

características de objeto fechado.

Silva (2010), refletindo sobre o modo como a escola vem trabalhando os

saberes, estabelece distinção entre dois tipos de atitude que podem organizá-los: a

molecular e a molar. A primeira delas, a molecular, caracteriza-se por apresentar os

conteúdos em forma de sequência, em que os elementos internos se superpõem, não

apresentando, de forma explícita, nenhuma ligação. A segunda, a molar, é caracterizada

como uma atitude mais flexível, elástica, uma vez que possui a propriedade de agrupar

em categorias aquilo que, a princípio, parece não ter relação entre si. O critério desse

agrupamento se dá pela observação de semelhanças e diferenças. Além do objetivo de

sistematizar para reter, essa atitude promove, em quem assim age, um processo

significativo de associação, o que permite sair da instância pura da memorização

(passível de ser esquecido por não fazer sentido) para a ressignificação, devido à

constante relação entre as partes do saber.

A atitude molar é resultado de uma percepção mais madura quanto ao fato de

reconhecermos aquilo que somos: “seres em falta” (Silva, 2010). O conhecimento não é

verdade absoluta, intocável; ele faz e se refaz. Ao adotar uma atitude desse tipo em sala

de aula, se não valesse pelos conteúdos que o aluno aprende, valeria por um

aprendizado mais ético-filosófico: a dessacralização do saber. Não sabemos tudo e

4 Conceito de Silva (2006) já mencionado em uma citação deste trabalho.

Page 341: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1119

podemos esquecer o pouco que aprendemos. O conhecimento, além do mais, precisa ser

lacunar para que o processo de saber possa continuar.

Apesar da discussão a respeito dos saberes, é fácil verificar que os conteúdos

ainda são organizados, no currículo “conteinerizado”, de forma predominantemente

molecular, o que, para Silva (2010) leva à falsa ilusão de completude. Não há,

geralmente, na escola, uma ligação dos conteúdos com a vida. Como Silva (2010),

concordamos que é necessária uma atitude molar:

A atitude molar é mais holística e categorial, isto é, preocupa-se com o

conhecimento do todo e tenta agrupar o aparentemente estanque e separado

em classes através de suas características comuns. [...] Está mais ligado ao

estabelecimento de relações (p.2)

A escola, molecular como tem sido, assume um papel autoritário e não

democratiza o saber. Reforça, pois, o currículo “conteinerizado”. Os docentes, por sua

vez, inseridos em uma Formação Discursiva5 cujo discurso vigente é o acima

apresentado, reproduzem-no em suas práticas, e o resultado disso é a formação discente

tecnicista. Os alunos saem da escola sabendo, quando muito, sujeito e predicado, mas

sem a competência de investigar as ideologias que perpassam o texto e a não

neutralidade das palavras. Saem sem saber fazer leituras críticas. Saem despreparados

para agir na sociedade. Saem com uma visão de mundo limitada. Saem acreditando que

a escola é realmente detentora dos saberes essenciais. Saem acreditando que estão

prontos para os desafios do mercado de trabalho e da vida. Saem sem saber que o saber

é muito mais complexo. O docente, sem ter consciência de seu poder, contribui para

manter a escola como um contêiner, um espaço fechado para transformações. E usa o

texto como pretexto para ensinar gramática. Não que o ensino da gramática deva ser

eliminado, mas novas perspectivas para o ensino de Língua Portuguesa podem ser

propostas.

Em relação ao ensino superior, os cursos de Licenciatura em Letras, geralmente,

também enfatizam o ensino da norma padrão da língua e da literatura canônica,

formando professores limitados, valorizadores da cultura hegemônica. Nos cursos de

5 Conceito baseado nas ideias de Foucault, nas quais a Formação Discursiva é o resultado de “discursos

reais, que foram efetivamente pronunciados e que se apresentam com uma materialidade” (Portocarrero,

1994). No próximo tópico, aprofundaremos esse conceito.

Page 342: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1120

dupla habilitação (Português / Língua estrangeira), a situação ainda é mais grave. Na

maioria das vezes, os alunos só têm contato com a variedade linguística de prestígio da

língua estrangeira (por exemplo, quase não se estuda a língua e a literatura da Colômbia,

mas da Espanha). Como foi dito anteriormente, e vale reforçar, o currículo deve, então,

ser repensado, para uma nova formação docente, e, consequentemente, discente.

De acordo com Tinoco (2013), é necessário ressignificar o ensino de Língua

Portuguesa, percebendo a leitura e a escrita como práticas sociais, pois, desta forma, a

escola pode formar cidadãos preparados para agir no mundo. Leite (2011) afirma que

[...] é o conceito de trabalho (não alienado) que supera a concepção

tradicional de literatura, de língua e de saber. Se conseguimos que ele esteja

no centro de nossas preocupações pedagógicas, entendido como prática de

um sujeito agindo sobre o mundo para transformá-lo e, para, através da sua

ação, afirmar a sua liberdade e fugir à alienação, estaremos talvez

conseguindo formar uma capacidade linguística plural nos nossos alunos,

pela qual poderão, inclusive, de quebra, dominar qualquer regra gramatical,

qualquer rótulo fornecido pela retórica ou pela história literária. (p.25)

Se é necessário ressignificar o ensino de Língua Portuguesa, é preciso, então,

perceber que a prática docente e o currículo dessa disciplina são como são porque foram

discursivamente construídos enquanto práticas sociais.

O ensino e o currículo como práticas discursivas – entendendo o contêiner

Se o currículo e o ensino são práticas discursivas, a colocação feita no último

parágrafo do tópico anterior carece de mais algumas reflexões. Para tal fim, é necessário

definir o que entendemos por discurso.

Podemos começar dizendo que não existe transmissão de ideias fora do corpo da

linguagem. Também podemos afirmar que tudo que expressamos traduz um ponto de

vista, o que nos leva a compreender que, no exercício da linguagem, está afastada a

ideia de neutralidade, e, por isso, o discurso é sempre ideológico. Fiorin (1998), em

conformidade com o que preconiza Foucault, para discutir a constituição de formação

discursiva, parte da noção de formação ideológica, definindo-a:

Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma

determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias

que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo. Como [...]

Page 343: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1121

essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem [...], a cada

formação ideológica corresponde uma formação discursiva. (p.32)

As práticas docentes, incluindo o currículo, estão necessariamente inseridas em

uma formação ideológica/ discursiva. Isto porque implica defesa de um ponto de vista

em detrimento de outras disputas na “arena dos conflitos” (Fiorin,1998). Nesse ponto,

cabe indagar a formação discursiva a que estão filiadas as instituições de ensino. Se

entendemos que a escola é uma instituição do Estado, entendemos também que é uma

instituição inserida em relações de poder, necessariamente assimétricas. Assim, o

discurso que vigora na escola é o discurso do poder dominante, que é o da classe

dominante. A manutenção dos valores de verdade dessa classe não é pacífica: ela se dá,

entre outros, pela imposição dos aparelhos ideológicos (Althusser, 1974).

As estratégias de naturalização de valores da classe dominante determinam as

práticas sociais que irão ser recorrentes. Elas serão um sustentáculo e um alicerce das

práticas discursivas em termos das verdades (?) do currículo, do conhecimento, do

ensino e das relações interpessoais. É nesse sentido que Spink (2010) entende “práticas

discursivas – as maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem, produzem

sentidos e posicionam-se em relações sociais cotidianas” (p.27). Em outras palavras,

mesmo as relações cotidianas mais triviais envolvem relações de poder.

Na escola, portanto, como instituição organizada, essas relações são muito mais

estruturadas e aparecem sob formas fixas de enunciados para resguardar os interesses do

contêiner: “Literatura africana não cabe em nossa grade”, “História da África foge ao

tempo disponibilizado para ministrar os conteúdos curriculares”, “Questões de gênero

dizem respeito à educação familiar”. Esses e outros discursos mantém o contêiner

lacrado. O grande desafio é a negociação das práticas discursivas que permitam a

fragilização das estruturas desse contêiner. No que tange ao ensino de línguas, o texto é

o limite, melhor dizendo, não há limite, e a transversalidade de temas nos favorece.

A formação humana integral e novas perspectivas para o ensino de Língua

Portuguesa

A formação docente e discente, no Brasil, segue uma perspectiva ainda muito

conteudista, cujo saber enciclopédico é supervalorizado. As instituições de ensino se

propõem a formar pessoas preparadas para o mercado de trabalho e para concursos, e

Page 344: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1122

pouco se preocupam com a formação de cidadãos pró-ativos. A reflexão é pouquíssimo

estimulada, e os saberes apresentados, numerosos, parecem prontos e acabados. Os

conteúdos apreendidos são muitos, mas desconectados entre si e desconectados do

contexto sócio-histórico. Tal desconexão interfere no aprendizado e traz uma sensação

de frustração aos estudantes, que quase nunca conseguem deter totalmente o que é

apresentado como sendo de suma importância para sua formação e para sua vida.

Esses estudantes são clivados de sua autoestima e de sua autoconfiança. É um

dado da prática discursiva que atinge um aspecto psicológico necessário ao

investimento da aprendizagem. Assujeitados à estrutura filosófica escolar, à estrutura

curricular, a determinadas metodologias, a determinados processos avaliativos, não

percebem que estão presos à armadilha da ideologia dominante, que é suporte para

validar o sucesso ou o insucesso dos estudantes e os discursos que o legitimam

(Possenti, 2004).

Essa realidade, que se pode chamar, também, de prática discursiva, tem-se

transformado muito pouco ao longo dos anos. A educação brasileira, consequentemente,

vem apresentando resultados muito negativos, até mesmo nos exames para os quais a

escola diz se propor a formar.

Além disso, a escola, como um aparelho ideológico, teria que contribuir de

forma relevante para a formação cidadã, mas pouco se vê o exercício da cidadania nas

cidades do Brasil. De modo geral, há pessoas que jogam lixo no chão, não respeitam o

próximo, abandonam crianças e animais, não entendem a importância de recorrer à

justiça, mesmo quando em situações em que são vítimas... Seria possível enumerar

muitas outras ações que podem exemplificar o não exercício da cidadania. E pessoas

com essas atitudes, muitas vezes, passaram mais de dez anos na escola.

Aqui ficam alguns outros questionamentos, que entendemos ser problemas de

responsabilidade que poderiam ter sido problematizados na escola: que atenção é dada

àquele papel amassado que passa despercebido no canto da sala de aula? Que atenção é

dada à ação do estudante que distraidamente rabisca a carteira escolar no decurso da

aula? A discussão que se poderia travar com o aluno, entre outras, poria em relevância a

noção de público X privado, chamando a atenção para o fato de o público ainda nos

pertencer. Nossas indagações nos permitem concluir que se faz necessário refletir qual

tem sido o papel da escola no cenário atual.

Page 345: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1123

Mais do que oferecer um diploma ou preparar para concursos ou para uma vaga

no mercado de trabalho, é preciso que o currículo seja repensado para proporcionar uma

formação humana integral. Esse tipo de formação prioriza a ética e a cidadania. Para pô-

la em prática, o saber deve ser percebido como algo complexo, e complexo, de acordo

com Morin (2000), é, também, o pensamento unificador e capaz de religar os saberes.

Não há como se propor uma formação humana integral sem propor a

transversalidade de temas nas aulas, para ser possível que a cultura científica esteja em

diálogo com a cultura humanística. Assim, o currículo e os saberes escolares estariam

articulados aos conteúdos da vida. Essa religação proporcionaria a formação de sujeitos

pró-ativos, preparados para enfrentar os desafios de seu tempo com ética e solidariedade

que os temas requisitam.

Considerações finais – fragilizando as estruturas do contêiner

Nessas últimas considerações, fazemos uma declaração na qual acreditamos

plenamente: o currículo vigente não dá conta das demandas sociais. Essa percepção

tende a nos deixar perplexos, pois a sua negação, ou subtração, pode nos colocar no

vazio não só pedagógico, mas também político.

Essa lacuna só pode ser resolvida se olharmos para um outro currículo.

Percebemos, pois, a necessidade de estudar o que se vem produzindo nos estudos sobre

currículo. Esses estudos nos fornecem uma concepção de currículo como práticas

discursivas que envolvem relações de poder, relações essas comprometidas com

formações discursivas. Tais práticas, dialógicas, defendem interesses em confronto. Só

com o confronto, o professor poderá decidir a qual formação discursiva se filiará para

não estar assujeitado a um currículo que trabalha, inclusive, contra os interesses de

classe a qual ele próprio pode pertencer. Afinal, conhecemos as condições sociais nas

quais a maioria dos docentes está inserida.

Entender currículo como prática discursiva, que se insere em formações

discursivas, é fundamental para que não sejamos falados por interesses que não nos

interessam. Currículo é seleção, é tomada de posição. O argumento do conteúdo para

deixarmos de fazer determinadas aventuras cidadãs deixa de valer. Em outras palavras –

Page 346: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1124

as últimas – as mudanças do currículo só ocorrerão a partir do entendimento de suas

engrenagens de produção e de poder. Currículo não pode ser contêiner.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença,

1974.

BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. In Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1997.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1998.

HALLEWELL, L. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 1985.

LEITE, L. C. de M. Gramática e literatura: desencontros e esperanças. In: Geraldi, J.W.

(org.), O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2011.

MORIN, E. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

ORLANDI E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª ed. Campinas:

Editora da UNICAMP, 1997.

PORTOCARRERO, V., Foucault: a história dos saberes e das práticas. In Portocarrero,

V. (org.), Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens contemporâneas.

Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994.

POSSENTI, S. Análise do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In Mussalim, F. e

Bentes, A. C. (Org.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. São

Paulo: Editora Cortez, 2004.

SPINK, M. J. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro

Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

SILVA, M. da. Atitude MOLAR X Atitude MOLECULAR: duas formas de organizar

conteúdos em geral. Disponível em <http://www.profmauriciodasilva.pro.br

/pdf/MOLAR_MOLECULAR_COMPLETO.pdf>, acesso em 04/01/2015.

SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.

Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

Page 347: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1125

SILVA, T. T. da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular.

Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

TINOCO, G. A. Usos sociais da escrita + Projetos de letramento = Ressignificação do

ensino de Língua Portuguesa. In: Gonçalves, A. V. e Bazarim, M. Interação, Gêneros e

Letramento: a (re)escrita em foco. Campinas: Pontes Editores, 2013.

Page 348: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1126

PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO

SISTEMA PRISIONAL NO ESTADO DE SERGIPE:

APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL

DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE

TURMAS [Voltar para Sumário]

Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)

O Plano Plurianual de Alfabetização (PPALFA) do Sistema Prisional do estado

de Sergipe é o documento síntese da proposta político-pedagógica do Programa Sergipe

Alfabetizado. O mesmo compreende que a alfabetização não se reduz a um processo de

aquisição das habilidades de leitura/escrita e cálculo matemático. Entende-se que resulta

da interação do indivíduo num contexto cultural, das abordagens técnico-metodológicas

da ação alfabetizadora. Nesse sentido, o Programa por meio da formação inicil dos

Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas, norteam suas ações para a exploração de

referências sobre a realidade local e/ou regional. Além disso, considera-se também o

aprendizado da fala, do ler e do escrever, da construção numérica, do domínio das

operações fundamentais presentes no ensino matemático, além da ampliação do código

linguístico, que se estabelece na vivência diária e nas relações sociais.

Segundo Paulo Freire (1990), a alfabetização é capaz de contribuir para que o

homem se descubra no lugar que efetivamente ocupa, constituindo-se, assim, em meio

de autoconhecimento e do grupo a que pertence. É um processo que não pode ser

reduzido a decifrar códigos, por ensejar a emancipação, a conscientização e a

participação crítica e criativa dos sujeitos na sociedade, que, por sua dinâmica

econômica e política, divide as pessoas segundo a propriedade dos meios de produção,

exclui grupos, como as turmas do sistema prisional. A língua escrita, não poderia deixar

de ser, a expressão dessa mesma situação. Portanto, a necessária transformação social

virá através desse processo de conscientização cultural e política, ou seja, da

emancipação.

Page 349: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1127

Nesse sentido, o Plano Plurianual de Alfabetização – PPALFA do Sistema

Prisional do estado de Sergipe está fundamentada em uma visão crítica da sociedade e

dos homens que a compõem, buscando caracterizar-se pela perspectiva da educação

problematizadora, o que significa dizer que o processo ensino-aprendizagem não está

alicerçado somente nos conhecimentos trazidos pelo custodiado, mas também nas

situações de vida dos mesmos.

O pressuposto do programa é que o conhecimento, historicamente acumulado

pela humanidade, é sempre produzido nas relações entre as classes sociais, por isso o

seu acesso é um direito de todos. Bem salientado na VI CONFITEA - Conferência

Internacional sobre Educação de Adultos, conhecida como Marco de Ação de Belém

(Brasil) em 2010, quando foi afirmada que “a alfabetização é um instrumento essencial

de construção de capacidades nas pessoas para que possam enfrentar os desafios e as

complexidades da vida, da cultura, da economia e da sociedade.” (CONFITEA, 2010; p.

08). Ou seja, aprendizagem de jovens e adultos de qualidade e no fortalecimento do

direito à educação ao longo da vida para todos. Alguns elementos são pertinentes para

contribuirem na estruturação de uma prática pedagógica para atuação junto aos

custodiados, sendo assim organizados:

1. Qualquer processo pedagógico para fazer o custodiado avançar, deve partir

do que esse mesmo sabe e não do que ele não sabe;

2. O sujeito aprende na interação com o meio, com o objeto e com o outro

sujeito;

3. O indivíduo adquire autonomia, caso ele seja um construtor do seu processo

de aprendizado e participe na busca de seu conhecimento;

4. O custodiado deve se expressar a partir de suas próprias hipóteses;

5. Cada sujeito possui um ritmo próprio de aprendizagem que deve ser

respeitado;

6. A educação só se estabelece num ambiente de diálogo.

Tais pressupostos que consideramos em nossa prática pedagógica, só serão

levados em conta por meio de uma dialética capaz de ajuda-lo a pensar, uma prática que

transforme a sala de aula em um autêntico ambiente de autonomia, onde o Alfabetizador

e custodiado são parceiros em busca do conhecimento.

Page 350: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1128

Vygotsky, apud Rego, 2002 também contribui para o embasamento desta

proposta de trabalho, considerando que o homem recebe suas primeiras influências no

meio local, ponto de partida para a ampliação de sua compreensão “entre si e o mundo

que o cerca”, através da capacidade de fazer relação entre o local e o universal. Nessa

dialética do saber e o não saber, o “ainda não sei” emerge como categoria, que abre

espaço para que o processo de aprendizagem possa acontecer resguardado a autoestima

do custodiado.

A Formação Inicial de Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas do Programa

Sergipe Alfabetizado concebida no PPALFA tem por objetivo: capacitar oa agentes para

trabalhar nas turmas de alfabetização de jovens e adultos junto ao sistema prisional do

estado de Sergipe, cadastrados no Sistema Brasil Alfabetizado - SBA, na perspectiva

dialética. A descrita formação possui a duração de 06 (seis) dias consecutivos, com 08

(oito) horas/diárias. No total de 48 horas de efetivo trabalho pedagógico.

Durante o curso, os Alfabetizadores e Coordenadores de Turmas devem adquirir,

nas atividades pedagógicas e culturais, o aporte teórico e metodológico necessários ao

desempenho do processo de alfabetização que serão desenvolvidos junto às classes de

alfabetização no sistema prisional. A metodologia adotada fundamenta-se na relação

dialógico-dialética, numa concepção de educação problematizadora, oportunizando a

vivência dos pressupostos básicos, a saber: partir da realidade do custodiado, troca de

experiências, orientação para a construção coletiva do conhecimento, além do trabalho

com a oralidade e o senso crítico, estimulando o resgate da cidadania.

O PPALFA - Exercício 2012/2013 do Programa Sergipe Alfabetizado está

em conformidade com os princípios e diretrizes da Formação Inicial e Continuada

estabelecido pelo MEC/SECADI, a saber:

Compreensão do PBA como parte da política de EJA na perspectiva da

continuidade.

Discussão do Plano de Formação entre a instituição formadora e o Ente

Executor, e desta forma contemplar: as especificidades de cada localidade e a

diversidade dos sujeitos envolvidos.

Realização da seleção de formadores tendo por base critérios técnico-

pedagógicos e compromisso social.

Utilização de perspectiva emancipadora dos sujeitos.

Page 351: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1129

Integração entre Formação Inicial e Continuada, preferencialmente, que a

entidade responsável pela formação inicial também seja responsável pela

formação continuada.

Conciliação dos aspectos teóricos e práticos, para que a partir da reflexão sobre a

prática se realize melhoria no processo e nas próximas práticas a serem

desenvolvidas.

Apresentação de estratégias para potencializar o uso do resultado do teste

cognitivo de entrada para planejar e encaminhar o trabalho de alfabetização em

sala de aula.

Apresentação de estratégias de utilização das competências indicadas na Matriz

de Referência do teste cognitivo como elemento para a definição das ações

pedagógicas a serem desempenhadas.

Utilização de perspectiva de intersetorialidade, tratando de ações relacionadas ao

pacto firmado entre governadores e o presidente da república.

Os conteúdos a serem trabalhados visam ao desenvolvimento de atividades

teóricas e práticas com o objetivo das turmas aprimorarem os conhecimentos voltados

para o processo de alfabetização, letramento, educação matemática, além de um

conjunto de ações pedagógicas voltadas para a conquista da cidadania. Nesse sentido, o

Curso de Formação Inicial é fomentado em dois momentos: no primeiro as classes serão

compostas apenas por Alfabetizadores; no segundo, classes compostas de

Coordenadores. Os conteúdos serão específicos a serem ministrados para cada grupo de

acordo com os quadros e ementas abaixo.

QUADRO N º 01: Disciplinas para Formação Inicial

Disciplinas

Alfabetizador

Coordenador

de Turmas

Princípios, fundamentos e ações no processo de

alfabetização.

10h 08h

Concepção e metodologia de leitura/escrita no

processo de alfabetização de jovens, adultos e

idosos.

]

12h

16h

Alfabetização Matemática. 10h Práticas para o ensino das Ciências Sociais e

Naturais no processo de alfabetização de jovens,

idosos e adultos.

04h

-

Planejamento Pedagógico com abordagem ao

material didático do PBA.

08h 12h

Avaliação da Aprendizagem (Matriz de

Referência - Teste cognitivo).

04h 04h

Page 352: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1130

Gestão local do PBA. - 08h

TOTAL 48h 48h

Fonte: PPALFA, 2012.

Disciplinas para Formação Inicial de Alfabetizadores

1. Princípios, Fundamentos e ações no processo de Alfabetização.

Histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Estudo do (s) conceito (s) de

analfabetismo no Brasil, refletindo sobre causas/consequências desse fenômeno.

Concepções de aquisição do conhecimento (consciência fonológica X método

fônico X método global) e os desafios dos processos pedagógicos adotados na

alfabetização em língua materna (fonético, fônico, global de silabação e "método

de Paulo Freire").

Pressupostos epistemológicos da Psicogênese da língua escrita de Ana Teberosky

e Emilia Ferreiro: possibilidades e propostas de intervenção a partir dos níveis,

envolvendo o jovem/adulto/idoso.

2. Concepção e metodologia de Leitura/Escrita no processo de Alfabetização de Jovens,

Adultos e Idosos.

Conceitualização e exploração das múltiplas linguagens na alfabetização e

letramento (a linguagem oral como meio de comunicação de ideias/pensamentos e

os modos de falar dos sujeitos poucos e não escolarizados).

Métodos (analítico, sintético e analítico-sintético) e metodologias a partir dessas

visões (abordagens interacionista, construtivista e sócio construtivista).

Leitura como processo cognitivo, ação de ler e suas implicações em pertinência

aos diferentes discursos com os diferentes sujeitos do texto lido - introduzindo o

alfabeto, partindo de experiências significativas (diferentes tipos de letras;

identificação de letras, sílabas, palavras e segmentação das palavras, sentido e

posição; momento da escrita na página).

Material de leitura – textos e portadores de texto existentes em diferentes espaços

sociais e implicações metodológicas do ensino da leitura e da escrita.

Contribuições da (s) linguística (s) no processo de aprendizagem da leitura/escrita

(utilização de textos orais produzidos pelos alfabetizandos; identificação e

Page 353: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1131

utilização da narração/descrição; leitura em alta voz; instrução, perguntas e

respostas, argumentação e debate; como avaliar a linguagem oral).

Técnicas de leitura (utilidade da leitura e da escrita; finalidade da leitura e da

escrita; cuidados e sugestões no incentivo da leitura; trabalhando a leitura e a

escrita partindo do texto, como avaliar a leitura/escrita, utilização da cópia e do

ditado com significado).

Diversidade textual - identificação e produção de textos: listas; receitas,

instruções; formulários/questionários; anúncios, folhetos, cartazes; versos,

poemas, letras de músicas; bilhetes, cartas; jornais; contos, fábulas e anedotas;

relatos, biografias; textos de informação científica, com estruturação do trabalho

com a leitura e escrita partindo do universo vocabular do alfabetizando.

3. Alfabetização Matemática

Alfabetização Matemática e os processos de numeralização (diferentes

concepções entre ensino de matemática e educação matemática).

Matemática e alfabetização (compreender seus códigos e regras - ler, escrever

números naturais, ordenando-os na forma decimal, pela interpretação do valor

posicional de cada uma das ordens).

Teoria da Aprendizagem Significativa (representação de conceitos matemáticos e

suas implicações na aprendizagem: demonstração, o cálculo e o algoritmo -

métodos de ensino/aprendizagem).

Linguagem matemática: leitura, interpretação, escrita e autoria (representações

matemáticas: representações sociais e representações semióticas na interpretação

da matemática).

Estudo da etnomatemática voltada para o processo de alfabetização.

Relações entre aspectos subjetivos e objetivos da aprendizagem da Matemática.

Estruturalismo e construtivismo na aprendizagem da Matemática.

A questão do erro da aprendizagem da Matemática.

Resolução de situações-problemas que envolvem contagem, medidas, os

significados das operações, utilizando estratégias pessoais de resolução e

selecionando procedimentos de cálculo.

Page 354: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1132

Construção e interpretação de representações espaciais simples (mapas,

itinerários, maquetes) utilizando-se de elementos de referências e estabelecendo

relações entre eles.

4. Práticas para o ensino das Ciências Sociais e Naturais no processo de alfabetização de

jovens. adultos e idosos.

As ciências sociais e naturais com foco na alfabetização: concepção,

problematização, exploração dos fatos da vida e desmistificação dos fatos na

construção de um caminho investigador dos fenômenos sociais e naturais.

A alfabetização científica e estudo do senso comum a respeito da vida dos seres

vivos e as produções humanas (a relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade).

Possibilidades de informação e reflexão no campo da História:

a) Por que estudar História e o como fazê-lo.

b) História Local como fonte de compreensão.

c) Fazer História enquanto apropriar-se do que já se é: um sujeito histórico.

Estudo a respeito da participação e cidadania dos indivíduos nas suas

comunidades (processo histórico de ocupação do território brasileiro; formação do

povo brasileiro; as relações de produção e trabalho no processo histórico

brasileiro; as manifestações culturais; organização e participação na sociedade;

história da localidade; patrimônio cultural; fundamentos da cidadania e da

democracia aos valores na vida cotidiana).

Orientação e localização geográfica (formas de representação do espaço

geográfico).

Estudo das relações do homem com o meio em que vive com foco: objeto de

estudo da Geografia; noções de lugar e localização; bairro, município e estado,

caracterização geográfica; o homem e as transformações das paisagens naturais;

região e micro região.

Aspectos históricos e normativos da educação ambiental no mundo e no Brasil.

O mundo do trabalho e suas relações sociais.

Epistemologia ambiental (ambiente crise ambiental e o movimento ambientalista).

Dimensão educativa dos estudos ambientais:

Nosso meio ambiente.

Page 355: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1133

A problemática do lixo - consequências.

A reciclagem - uma alternativa ao desperdício e uma fonte de renda.

Receitas alternativas – melhor utilização dos alimentos.

A água/energia – utilidades e cuidados.

A questão do aquecimento global.

Estudo sobre saúde e higiene – foco nas principais doenças do século (estudo e

prevenção): A dengue - A teníase - A ascaridíase - A amebíase – Esquistossomose

– Sexualidade e Hipertensão/colesterol/diabete/hepatite entre outros.

5. Planejamento Pedagógico do material didático do Programa Brasil Alfabetizado -

PBA

Tipos de planejamento educacional.

Principais elementos constitutivos de um planejamento.

Os projetos de trabalho como uma proposta integradora de alfabetização.

A construção do conhecimento em rede – Planejamento mensal.

Elaboração do Planejamento mensal do PBA/Sergipe.

Instrumentos de avaliação do Programa.

6. Avaliação da aprendizagem (Matriz de Referência - Teste Cognitivo)

Orientações para aplicabilidade e correção dos Testes cognitivos de entrada e

saída (Leitura/Escrita e Matemática).

Estudo da matriz de referências dos testes cognitivos

A avaliação como instrumento de diagnóstico e reflexão permanente do processo

educativo dos alfabetizandos.

Disciplinas para Formação Inicial de Coordenadores de Turmas

1. Princípios, Fundamentos e ações no processo de alfabetização.

Histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil.

Estudo do(s) conceito(s) de analfabetismo no Brasil, analisando e refletindo

sobre as causas e consequências desse fenômeno na sociedade brasileira.

Análise das concepções de aquisição do conhecimento (consciência fonológica

X método fônico X método global).

Page 356: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1134

Conhecer os problemas, dificuldades e desafios dos métodos e processos

pedagógicos adotados na alfabetização em língua materna (fonético, fônico,

global de silabação e "método de Paulo Freire") e as possíveis conexões com a

Educação Popular.

Pressupostos epistemológicos do desenvolvimento da escrita a partir da

Psicogênese da língua escrita de Ana Teberosky e Emília Ferreiro:

possibilidades e propostas de intervenção a partir dos níveis, envolvendo o

jovem/adulto/idoso.

Concepções sobre ensino e aprendizagem (abordagem tradicional,

comportamentalista, humanista, cognitivista e sociocultural).

Estudo sobre a Teoria Comunicativa de Habermas.

Estudo sobre a Teoria de inteligências múltiplas de Howard Gardner (linguística,

lógico-matemática, interpessoal, intrapessoal, musical, cinéstico-corporal, de

espaço, naturalista) com foco para as aprendizagens para elaboração dos projetos

de trabalho.

2. Concepção e metodologia de leitura/escrita no processo de alfabetização/letramento,

alfabetização matemática aplicadas no processo de alfabeização de jovens, adultos e

idosos.

Métodos (analítico, sintético e analítico-sintético) e metodologias a partir dessas

visões (abordagens interacionista, construtivista, socio-construtivista ao

sociointeracionismo).

Análise dos pressupostos teóricos de Piaget, Emília Ferreiro, Vygotsky, Bakhtin

com foco nas teorias de categorização e conceptualização na construção do

conhecimento e na hipótese sócio cognitiva da linguagem.

Estudo da leitura como processo cognitivo ação de ler e suas implicações em

pertinência aos diferentes discursos lidos do leitor com os diferentes sujeitos do

texto lido - introduzindo o alfabeto, partindo de experiências significativas

(diferentes tipos de letras; identificação de letras, sílabas, palavras e segmentação

das palavras, sentido e posição; momento da escrita na página).

Foco no material de leitura – textos e portadores de texto existentes em diferentes

espaços sociais e implicações metodológicas do ensino da leitura e da escrita.

Page 357: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1135

Contribuições da (s) linguística (s) no processo de aprendizagem da leitura/escrita

(utilização de textos orais produzidos pelos alfabetizandos; identificação e

utilização da narração/descrição; leitura em alta voz; instrução, perguntas e

respostas, argumentação e debate; como avaliar a linguagem oral).

Trabalho com técnicas de leitura (utilidade da leitura e da escrita; finalidade da

leitura e da escrita; cuidados e sugestões no incentivo da leitura; trabalhando a

leitura e a escrita partindo do texto, como avaliar a leitura/escrita).

Trabalho com índice de oralidade (o dizer e escutar, desempenho da voz e a

leitura): postura frente àquilo que conta, discurso identitário, ou seja, autoridade

(relação frente ao público) e autoria (atualização do texto que ouviu), ritmo,

envolvimento dos ouvintes pelo lido e/ou enunciado, entre outros aspectos.

Estudo da teoria de gêneros (narrativo, argumentativo-dissertativo, expositivo-

explicativo, descritivo, dialogal-conversacional e injuntivo-instrucional) sob a

orientação bakhtiniana, e suas propostas de aplicação fundamentada em torno da

explicitação de conceitos chave como: progressão, transposição e sequência

didática.

Concepções sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática: concepções

explicitadas em termos abstratos e não referidas a situações concretas de ensino-

aprendizagem — concepções manifestadas — e as concepções que se reportam

às suas práticas, aquelas que estão contextualizadas num dado momento e num

dado local — concepções ativas.

Alfabetização Matemática e as práticas de ensino, relativamente aos seguintes

aspectos: (1) objetivos do ensino da Matemática; (2) visão da aprendizagem; (3)

situações de ensino/aprendizagem; (3) tarefas/atividades e meios; (4) papel do

professor; (5) papel do alfabetizando frente a resolução de situações problemas.

Abordagens de aprendizagem matemática: (i) aprendizagem por rotina e

memorização, com a intenção de reproduzir conhecimento e procedimentos; (ii)

aprendizagem através da resolução de muitos exemplos com a intenção de obter

um entendimento relacional da teoria e dos conceitos; (iii) aprendizagem através

da resolução de problemas difíceis, com a intenção de estabelecer um

entendimento relacional de toda a teoria e interligado com conhecimentos

Page 358: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1136

anteriores; (iv) aprendizagem com a intenção de obter um entendimento relacional

da teoria e buscando situações onde ela possa ser aplicada.

Matemática e alfabetização (compreender seus códigos e regras para poder

comunicar as idéias advindas dessa compreensão - ler, escrever números naturais,

ordenando-os na forma decimal, pela interpretação do valor posicional de cada

uma das ordens).

Teoria da Aprendizagem Significativa (representação de conceitos matemáticos e

suas implicações na aprendizagem: demonstração, o cálculo e o algoritmo -

métodos de ensino/aprendizagem).

Linguagem matemática: leitura, interpretação, escrita e autoria (representações

matemáticas: representações sociais e representações semióticas na interpretação

da matemática).

Resolução situações-problemas que envolvem contagem, medidas, os significados

das operações, utilizando estratégias pessoais de resolução e selecionando

procedimentos de cálculo.

Construção e interpretar representações espaciais simples (mapas, itinerários,

maquetes) utilizando-se de elementos de referências e estabelecendo relações entre

eles.

Estudo da etnomatemática voltada para o processo de alfabetização.

Estudo com modelagem na perspectiva de Burak a partir das etapas: 1) escolha do

tema; 2) pesquisa exploratória; 3) levantamento dos problemas; 4) resolução dos

problemas e o desenvolvimento do conteúdo matemático no contexto do tema; 5)

análise crítica das soluções.

Estruturalismo e construtivismo na aprendizagem da Matemática.

3. Gestão Local do PBA

Histórico do Programa Brasil Alfabetizado – PBA.

A intersetorialidade na Educação de Jovens e Adultos.

Noções de informática. Acesso e operacionalização do Sistema Brasil

Alfabetizado e do Sistema de Gerenciamento de Bolsas.

Estudo dos instrumentais do PBA/Sergipe (preenchimento e arquivamento) dos

documentos: Relatório mensal do Coordenador de Turmas (pedagógico e

Page 359: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1137

administrativo), freqüência dos alfabetizandos, Relatório mensal dos

Alfabetizadores, Caderno de Vivências Pedagógicas.

Orientações administrativas e didáticas para elaboração das pautas de reuniões de

formação continuada, seguindo o planejamento temático do PBA/Sergipe.

Aplicação e estudo a partir das redações mensais dos alfabetizandos levando em

conta a psicogênese da leitura/escrita nas mesmas e seu arquivamento.

Estratégia de mobilização e encaminhamento dos egressos do PBA nas redes

municipal e estadual de educação.

4. Elaboração de projetos e planejamento didático-pedagógicos

Principais elementos constitutivos de projeto de trabalho vinculado ao

PBA/Sergipe interligado com o planejamento mensal.

Elaboração do Planejamento mensal do PBA/Sergipe.

Os projetos de trabalho como uma proposta integradora de alfabetização.

A construção do conhecimento em rede – Planejamento geral do PBA/Sergipe.

Instrumentos de avaliação do Programa.

5. Avaliação da aprendizagem (Matriz de Referência - Teste Cognitivo)

Orientações para aplicabilidade, correção dos gabaritos e arquivamento dos Testes

Cognitivos de entrada e saída (Leitura/Escrita e Matemática).

Estudo da matriz de referências dos testes cognitivos e sua avaliação como

instrumento de diagnóstico visando à melhoria da prática (significados dos

termos: medir e avaliar enquanto processo de reflexão permanente da

aprendizagem dos custodiados).

Resultados e avaliação

Após a sua elaboração o PPALFA é enviado ao MEC/SECADI para análise e

aprovação. O PPALFA do Programa Sergipe Alfabetizado já realizou a citada

tramitação e obteve a sua aprovação pelo MEC/SECADI. A próxima ação é a formação

inicial de alfabetizadores e coordenadores de turmas. No decorrer da mesma

Page 360: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1138

aplicaremos questionários para avaliarmos o desempenho do curso e o processo de

aprendizagem dos envolvidos.

Outros resultados esperados da aplicabilidade do PPALFA por meio da

formação inicial dos alfabetizadores e coordenadores de turmas são; a) a compreensão

por parte dos cursistas das concepções de alfabetização de pessoas jovens, adultos e

idosos, bem como o entendimento que o processo de educação de pessoas jovens

adultas e idosas ocorrerem ao longo da vida; b) o aporte metodológico para o

desenvolvimento das aulas de alfabetização; c) instrumentalização dos coordenadores

de turmas para que os mesmos possam desempenhar as suas funções mediante aos

princípios e diretrizes do PPALFA referente ao exercício 2012/2013.

Referências Bibliográficas

AÇÃO EDUCATIVA. Indicadores da qualidade na educação. Unicef, OPNUD, Inep-

MEC (Coordenadores).São Paulo, 2004.

ARROYO, Miguel G. Direito do trabalhador à educação. In: GOMES, C.M. et al.

Trabalho e conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. 3ª ed. São Paulo: Cortez,

1995.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que o método Paulo Freire? São Paulo: Editora

Brasiliense, 1981.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96. In: Diário Oficial da

República Federativa do Brasil, n. 248, de 23 de dez. de 1996.

BOGO, Orlando. (PUC-PR) In SILVA, Lenaldo. Curso de Língua Portuguesa: Leitura e

Produção de Texto. – Arcaju, SE: Faculdade Atlântico, 2007.

CADERNOS DE ATENÇÃO BÁSICA PROGRAMA SAÚDE da FAMÍLIA. Ministério

da Saúde. Caderno 2: Brasília, 2000.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL – 1988. Brasília:

Ministério da Educação, 1989.

DELORS, Jacques (org.). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO.

São Paulo: UNESCO/MEC, 1996.

Page 361: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1139

FERREIRO, Emília. Com todas as Letras. São Paulo: Editora Cortez, 1993.

_______. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artmed Editora, 1999.

FNDE/Ministério da Educação/ Conselho Deliberativo. Resolução/CD/FNDE n.º 23,08

junho de 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.

_______. Alfabetização – Leitura da Palavra e Leitura do Mundo. Rio de Janeiro:

Editora Paz e Terra, 1990.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, v. II. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

OLIVEIRA, João Batista Araújo e. Avaliação em Alfabetização. V. 13, N. 47, Jul-Set

2005.

OLIVEIRA Inês Barbosa & PAIVA, Jane (Orgs.). Rio de Janeiro DP&A, 2004.

Educação de Jovens e Adultos.

REGO, T. C. 2002. Vygotsky: uma perspectiva Histórico-Cultural da Educação. Rio de

Janeiro, Vozes, 2002.

SOARES, Magda B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,

2003.

UNESCO. Marco de Ação de Belém. Conferência Internacional de Educação de Adultos.

Hamburgo (Brasil), 2002.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo

Demográfico. Rio de Janeiro, 1991/2000.

MAZEU, Francisco José Carvalho; DEMARCO, Diogo Joel e KALLIL. Economia

Solidária e Trabalho: cadernos do professor (Coordenação do Projeto). São Paulo:

Unitrabalho - Fundação Iteruniversitária e Estudos e Pesquisas sobre o trabalho; Brasília,

DF: Ministério da Educação. SECADI - Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade, 2007. (Coleção Cadernos de EJA: Emprego e Trabalho,

Mulher e Trabalho).

Revista Exame, edição 734 de 21 de abril de 2001, pág. 18. - São Paulo: Editora Abril,

2001.

Page 362: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1140

A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA

POÉTICA CONTEMPORÂNEA DE HILDA HILST [Voltar para Sumário]

Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)

Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)

A grande realidade

Desde os antigos egípcios politeístas, o homem sempre manteve um intenso

respeito em relação à morte, sendo ela, por vezes, considerada não o fim da própria

vida, mas apenas uma passagem para outra etapa. Morte, óbito ou falecimento são

termos que podem referir-se tanto ao término da vida de um organismo como ao estado

desse organismo após o advento do fenômeno.

A morte é o acontecimento natural que mais se tem discutido pela humanidade,

gerando opiniões diversas. Existem numerosos estudos e visões sobre ela, abordando

vários aspectos e situações, tais como a consequência social e psicológica, as visões

religiosa, intelectual, filosófica e artística, sendo caracterizada sempre com misticismo,

magia, mistério, segredo, tabu, aversão e sobriedade.

A contemplação do fenômeno da finitude de um ser humano tornou-se também

uma motivação importante para o desenvolvimento de sistemas de crenças e religiões

organizadas. As alegorias são inúmeras e muito comuns ao referir-se ao fato da morte,

como a foice, a cor negra, a caveira, o túnel com luminosidade ao fundo, por exemplo.

Para muitos, crenças e informações sobre a morte tornaram-se uma consolação em

relação à morte de um ente querido ou à prospecção da nossa própria morte. Por outro

lado, o medo do insólito e do incognoscível ou de outras consequências negativas pode

tornar a morte algo mais temido. Entretanto não para a poesia.

Page 363: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1141

A poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira Hilda Hilst (1930-2004),

revelou em seus escritos uma visão extremamente peculiar sobre a morte,

especificamente em uma obra publicada em 1980 e intitulada Da Morte. Odes Mínimas.

No conjunto de poemas citado, a poeta se entrega ao desafiante constructo de

uma interlocução com a Morte, mas não a morte como alegoria filosófica, porém uma

entidade a ser enfrentada cara a cara como a grande realidade multifacetada que

permanece, por isso mesmo, tão enigmática para os homens de hoje como era na origem

dos tempos:

Ferrugem esboçada

Perfil sem dracma

Crista pontuda

No timbre liso

Um oco insuspeitado

Na planície

Um cisco, um nada

À tona das águas

Brevíssima contração:

Te reconheço, amada.

(HILST, 2003, p. 34)

Nessa aproximação (que conduz a um processo de renomeação do fenômeno)

não há, aparentemente, nenhum horror na morte que já não a tenha tornado uma

companhia íntima da própria vida. Essa tendência que a instância autoral mostra

assumir em trabalhar o reconhecimento da entidade a partir de inúmeras figurações

colhidas no mundo da experiência viva (“ferrugem”, “perfil”, “crista”, “timbre”, “oco”,

“planície”, “cisco”, “águas”) compõe o vocabulário do campo semântico escolhido pela

poeta para eleger a morte como mero acontecimento imbricado na efemeridade

(“Brevíssima contração”) de uma existência ordinária.

Ao propormos investigar um tema inerente ao ser humano, bem como a todos os

organismos vivos, por intermédio da realização artística, de maneira consciente e com

criticidade científica, nos imbuímos da responsabilidade, para com nós mesmos, de

refletirmos sobre a existência, uma vez que, ao tratarmos do fenômeno da morte, somos

compelidos a nos posicionarmos perante a vida: “Não é possível analisar o sentido da

Page 364: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1142

vida sem se deparar com o problema do sentido da morte e vice-versa. Ambas as

análises conduzem ao mesmo resultado” (MARANHÃO, 2008, p. 63).

Ao sabermos que há algo de imanente à vida e à permanência quando se trata da

morte, nos tornamos capazes de relativizar o que se considera absoluto, por intermédio

do pensamento e das opiniões, como também modularmos nosso comportamento diante

daquilo que elegemos como prioridades e valores, naquilo que ambos têm de mais geral

e de mais particular.

Segundo atesta o historiador francês Philippe Ariès (2003), o estudo do

fenômeno da morte e a observação da variação da consciência que temos de nós

mesmos e do outro, assim como de nossas atitudes durante o percurso de uma

existência, justificam-se pelo fato de buscarmos imprimir sentido à grande “destinação

individual ou [...] destino coletivo” (p. 19).

Sobrevida lúcida

Ao tratarmos da temática da morte alinhavada pela linguagem poética, devemos

ter como escopo a certeza de que se fala e pensa-se a morte de maneira reconfigurada

em relação à vida, em relação à brevidade da vida e em relação à visão que

conservamos acerca do que podemos e precisamos realizar neste curto espaço de tempo

que nos foi dado para tal.

De difícil investigação, a morte sobrevive aos nossos pensamentos e divagações,

tornando-se a certeza inelutável de um destino para o qual são conduzidos todos os seres

vivos, homens, animais e vegetais. A vantagem virtual de que nós, humanos, dispomos

em relação a outras espécies é a consciência que temos dela.

Aos poetas, de certo modo licencioso, foi e continua sendo concedida a

faculdade de perceber e aceitar a presença universal da aniquilação da vida, no entanto

unida à própria vida, pois que essa certeza de finitude está no decurso das obras

naturais, na observação do cotidiano fugidio e voraz, em todos os tempos e lugares,

gerando turbulências ou aquiescências, como tão objetivamente nos faz perceber a

poética de Hilda Hilst:

Te sei. Em vida

Provei teu gosto.

Page 365: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1143

Perdas, partidas

Memória, pó

Com a boca viva provei

Teu gosto, teu sumo grosso.

Em vida, morte, te sei.

(HILST, 2003, p. 57)

Essa visão lúcida da falsa perda da vitalidade em face da presença da morte

proposta pela poeta brasileira desloca nosso olhar para uma realidade ao mesmo tempo

benquista e até sensualizada pela dicção orgânica a que se entrega a linguagem poética

utilizada pela autora (“gosto”, “boca”, “sumo”).

Em Hilda, não mais existem assomos de pavor ou indiferença, contrariando a

ideia de que hoje em dia a morte foi relegada ao esquecimento. A familiaridade de

antes, resquício de nossa mentalidade medieva, diluiu-se na sombra distante projetada

pela figura da morte já distanciada de nós, devido ao fato de vivermos em um ritmo

alucinado que não nos permite pararmos para repensar a finitude como algo próximo.

Na poética da contemporaneidade, o gosto agridoce da morte é arroubo de

sensação, é uma quebra do paradigma que a coloca como amedrontadora, conforme

salienta Ariès:

A antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e

próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se

acentuadamente à nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não

mais ousarmos dizer seu nome. (ARIÈS, 2003, p. 36)

O aspecto maléfico de clímax de um processo/percurso que a imagem da morte

encerra em seu bojo é percebido e mesmo antecipado por pequenos insights no

cotidiano, perpassando, a todo instante, nossa consciência ao longo de nossas vidas.

Esses pequenos e suaves desconfortos nos dão uma clara segurança diante da

fugacidade e aniquilamento da nossa existência, sem que, devido a isso, haja qualquer

pretexto para o desespero.

O efeito provocado pela análise cuidadosa e cotidiana do prenúncio da morte e o

seu subsequente desmascaramento à luz do dia ultrapassa qualquer possibilidade de

histeria ou sofreguidão, gerando apenas uma reação de assombro que se instala de

maneira sutil no contato especular entre o ser poeta e a iminência da finitude. Ao

olharem-se, a morte e a poeta descobrem-se refletidas em seus silêncios de observação

Page 366: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1144

mútua, estejam ou não adornadas pela beleza de uma flor ou pela crueza de se sentir

ainda vivente:

Durante o dia constrói

Seus muros de girassóis.

(Sei que pretende disfarce

E fantasia.)

Durante a noite,

Fria de águas

Molhada de rosas negras

Me espia.

Que queres, morte,

Vestida de flor e fonte?

- Olhar a vida.

(HILST, 2003, p. 54)

Ao buscarmos uma síntese da vida no próprio ato de viver intensamente aquilo

que se analisa, tornamo-nos dignos da luta, essa “brincadeira” cotidiana e desenfreada

pela busca, captura e aprisionamento do que se entende por perpetuidade. Dessa forma,

surgem as diversas manifestações de recusa de nossa destruição, mimetizadas sempre

pelo anseio de eternidade fortemente apoiado na crença de uma possível condição de

imortalidade, mesmo não sabendo ao certo de que maneira poderemos nos tornar

imorredouros.

Denegar a morte

Em uma obra seminal para se compreender a “paranoia moderna” da não

aceitação da morte, o antropologista estadunidense Ernest Becker (1924-1974) discute

em A Negação da Morte (1974) o valor do indivíduo diante do fato da morte,

acreditando que o caráter de cada um é formado, essencialmente, em torno do processo

de negar a sua própria mortalidade.

Essa negação, na visão de Becker (2007), é necessária para que o ser humano

possa agir no mundo, defendendo-o contra o desespero que pode gerar a insanidade,

face à condição de criatura entristecida pela ideia de mortalidade. Infunde-se nesse

ponto o grande mal: a impossibilidade de realização do genuíno autoconhecimento,

como consequência da necessidade dessa negação.

O pensamento de Becker se alinha ao do filósofo alemão Arthur Schopenhauer

(1788-1860), ao acreditarem ambos que a dinâmica do mal é intrínseca à morte, uma

Page 367: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1145

vez que ao abandonar essa armadura posta pelo caráter, o homem recorre a uma

abertura que permite a entrada do mais “puro terror”.

De acordo com Schopenhauer (2001), há na morte uma experiência de natureza

filosófica intimamente ligada à imanência, sendo isso o que outorga o medo e a recusa

de uma dura condição imutável de nulidade em nossa contemporaneidade:

Se o que faz a morte nos parecer tão assustadora fosse a ideia do não-ser,

então deveríamos experimentar o mesmo temor diante do tempo em que

ainda não éramos. Pois é incontestável que o não-ser do depois da morte não

pode ser diferente daquele anterior ao nascimento; ele não merece, portanto,

ser mais lamentado. Toda uma infinidade de tempo fluiu quando ainda não

éramos, mas isso não nos aflige de modo algum. Mas, ao contrário, o fato de

que após o intermédio momentâneo de uma existência efêmera uma segunda

infinidade de tempo deva se seguir, na qual não seremos mais, para nós

parece uma dura e até mesmo intolerável condição. (SCHOPENHAUER,

2001, p. 27)

Na poética cônscia de Hilda Hilst, a morte em sua atraente fantasia é também,

paradoxalmente, por vezes protelada como se fosse um intenso malefício, uma erva

daninha ao íntimo da vida, ao florescer e amadurecer: um obstáculo ao total

desenvolvimento do ser.

Para representar essa incongruência, a autora se utiliza de brilhos e fulgores

diurnos, em contraponto ao percurso inevitável traçado pela morte em sua trajetória

infalível. Intensificando sua recusa e repúdio àquilo que se torna insidioso, a poeta livra-

se do mal refugiando seus sentidos nos “sons da vida”, clamores advindos de inúmeros

lugares que a circundam e de seres que habitam “sob o sol”:

No meio-dia te penso.

Íntima te pretendo.

Incendiada de mim

Contigo morrendo

Te sei lustro marfim e sopro.

E te aspiro, te cubro de sussurros

Me colo extensa sobre tua cabeça

Morte, te tomo.

E num segundo

Ouvindo novamente os sons da vida

Nomes, latidos, passos

Morte, te esqueço.

E intensa me retomo sob o sol.

(HILST, 2003, p. 52)

Page 368: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1146

As opiniões dessa voz poética mudam segundo o tempo e o lugar, mas a voz da

natureza permanece igual, sempre e em toda parte; é por essa razão que deve ser ouvida

antes de tudo. Dentro da linguagem da natureza, morte significa aniquilação. Então aqui

ela parece pronunciar claramente que a morte é um grande mal.

Que a morte é uma coisa séria, já se deixa concluir pelo fato de a vida, como

todos nós sabemos, não ser uma brincadeira. Sem dúvida, nada temos de mais digno a

receber do que ambas. E a isso a autora se submete, aquiescendo e deixando-se inebriar

por ambas, vida e morte, em um processo poético cáustico de busca, perquirição, quase

exaltação e repúdio, formatado pela configuração de suas (mínimas) odes.

O oco irremediável

Ao tratar da temática da morte em seus poemas, associada ao formato poético da

ode, Hilda Hilst exercita-se no gênero de maneira não ortodoxa, não se limitando ao que

classicamente reconhecemos constar como temáticas exploradas nesse gênero, seja nos

seus primeiros formatos, quando os temas giravam em torno dos prazeres da mesa e do

amor ou nos momentos históricos seguintes, quando incorporaram, com uma dicção

épica, os feitos memoráveis dos membros de raças heroicas.

A ode, na poética hilstiana, adquire o valor de uma breve e íntima exaltação, um

instante fugaz de louvação peculiar, aproximando-se da feição dada ao gênero pelo

poeta latino Horácio (século I a. C.), quando este a tornou “objeto não de recitação mas

de leitura individual”, instilando-lhe “assuntos pessoais, biográficos ou intimistas”

(MOISÉS, 2003, p. 266).

Nesse sentido, é lícito ao nosso estudo afirmar que Hilst transgride e reinventa a

configuração estrutural bem como a função que se espera de um tipo poético com

características muito próprias denominado de “ode”, reconhecendo e legitimando o fato

de que na contemporaneidade os seus limites, por assim dizer, flutuam e vagam em

direção aos impulsos do próprio sujeito criador do texto:

Nos dias que correm, não sendo possível o poema épico dentro dos modelos

tradicionais, e não podendo recusar-se a oferecer um testemunho pessoal

numa época de extremado individualismo, os poetas atiram-se à ode, visto

proporcionar-lhes o meio de fundir num corpo só uma visão épica da

existência e os impulsos profundos da individualidade. (MOISÉS, 2003, p.

269)

Page 369: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1147

Ao largo dessa metamorfose histórica de natureza temático-estrutural, a ode

praticada por Hilst em seu conjunto de poemas dedicados à morte mantem seu caráter

grave, solene, nobre, sendo esse o reflexo e a representação de uma entrega lírica

intensa. Observemos o poema final do conjunto:

Lego-te os dentes.

Em ouro, esmalte e marfim.

Entre sarrafos e palha

O baço dos meus ossos.

Procura na tua balança

Minha couraça. Meu bandolim.

Escrita e torso.

Pesa-me a mim. Minhas funduras.

E o gume do meu desgosto.

Procura, na minha hora,

Entre sarrafos e palha

O que restou de mim

À tua procura.

(HILST, 2003, p. 68)

No poema acima, a autora refaz seu percurso e retorna à posição inicial de

sujeito intrincado “entre sarrafos e palhas”, elementos utilizados por transnominação

para deflagar a busca infinda pelo fenômeno indiscernível que se pereniza nas suas

“funduras”, quando se completa a aventura de viver e a voz da poeta se extingue,

restando apenas dedicar-se a inventariar o que conseguiu reunir de relevante, em meio

ao silêncio oco das perguntas sem respostas e em meio às sobras do que foi, um dia, seu

arsenal de busca pela compreensão do incongnoscível.

Referências

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio

de Janeiro: Ediouro, 2003.

BECKER, Ernest. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

BOSI, Alfredo (org.). Leitura de Poesia. São Paulo: Editora Ática, 2007.

Page 370: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1148

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Hilda Hilst. número 8, outubro de

1999. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 1999.

HILST, Hilda. Da Morte. Odes Mínimas. São Paulo: Globo, 2003.

MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é Morte. São Paulo: Brasiliense, 2008.

MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: poesia. São Paulo: Cultrix, 2003.

SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte/Metafísica do Amor/Do Sofrimento do Mundo.

São Paulo: Martin Claret, 2001.

Page 371: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1149

REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA

POLÍTICA: NOS, OS DO MAKULUSU, DE JOSE

LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN

POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA [Voltar para Sumário]

Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)

Embora o campo dos estudos literários das produções africanas tenha se

desenvolvido muito no país nos últimos anos, e com diversos resultados excelentes, são

ainda escassos (também internacionalmente) os estudos que comparem romances

africanos escritos em língua portuguesa e língua francesa. O presente trabalho pretende

contribuir para paliar essa rigidez, contribuindo para um aprofundamento diferenciado

do fato literário em contextos africanos vizinhos, como é o caso de Angola e da

República do Congo.

Tendo em vista que o trabalho científico ao inserir-se em um campo de estudos

deve, necessariamente, dialogar com ele e buscar oferecer contribuições e, ao mesmo

tempo, considerando este espaço, que interessa explorar e ampliar, buscou-se, ao eleger

como corpus uma obra literária produzida em língua francesa para comparação com a já

expressiva produção intelectual brasileira acerca de Angola, contribuir para o

crescimento e diversificação de uma área de estudos em franco crescimento no Brasil.

O estudo de diferentes formas como a militância política1 pode ser representada

na literatura é o objeto principal deste estudo, tendo como recorte a análise deste objeto

em duas obras literárias produzidas em contextos históricos próximos, porém muito

diferentes: Nós, os do Makulusu, romance do escritor angolano José Luandino Vieira,

escrito no campo de concentração do Tarrafal em 1967 e Un fusil dans la main, un

poème dans la poche, do congolês (de Brazzaville) Emmanuel Dongala, escrito em

1973. O tema das possíveis representações da militância política em textos literários

1 Entenda-se, neste caso militância política anticolonial, dado o recorte estabelecido.

Page 372: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1150

africanos já foi abordado anteriormente, devido à sua presença muitas vezes incisiva nos

textos literários, pela qual não é possível passar indiferente. A escolha do corpus para

análise, no entanto, foi norteada pela busca por agregar algo novo ao eleger um autor

congolês pouco lido no Brasil para comparação com o já consagrado Luandino Vieira e,

ainda, ao escolher um olhar para compará-los que, embora parta de um ponto em

comum, busque nas diferenças seu maior enriquecimento.

Os dois livros parecem ter partido de uma busca por deseroicizar a militância

anticolonial, não para questionar a importância da luta ou o mérito daqueles que

aderiram radicalmente a esta empreitada, mas, pelo contrário, para complexificar a

representação deste processo e, assim, citando Candido (2006), humanizá-lo em sentido

profundo.

A escolha dos autores é por representar as personagens em situações tensas e

profundamente humanas – de medo, indecisão, fragilidade; com falhas e desvios – em

vez de afastá-las, ao aproximá-las de um ideal ético infalível, pouco verossímil e

dificilmente alcançado mesmo pelos seres humanos de caráter mais firme e maior boa

vontade. No entanto, ainda que mostrando as falhas e mesmo os deméritos das

personagens, os autores não diminuem a força e o mérito da empreitada anticolonial,

mas, pelo contrário, tornam esta História, que, de alguma maneira, reescrevem através

da Literatura, ainda mais pungente. A força da representação parece residir nesta

escolha, que também é uma escolha estética – a escolha pela complexidade.

Esta escolha pela complexidade demanda das obras escolhas representativas que

resultam, de modo diverso, em situações narrativas diante das quais é praticamente

impossível permanecer impassível. Como exemplo, vale mencionar o fato de que, ainda

que trilhando caminhos estéticos diferentes, as duas obras acabam colocando o leitor

diante de situações-limite, em que as personagens são conduzidas, pela força das

circunstâncias, a lutarem contra e matarem seus iguais. Este é um dos elementos de

complexidade que impedem que se faça uma leitura maniqueísta das situações

apresentadas e parece merecedor de um aprofundado tratamento comparatista.

Em Nós, os do Makulusu há quatro personagens principais que cresceram juntas

no musseque: Mais-Velho, Maninho, Paizinho e Kibiaka. Companheiros de brincadeiras

na infância, tensões sociais os levam a escolher caminhos diversos: Maninho, branco

nascido na metrópole (assim como seu irmão Mais-Velho) vai lutar no exército colonial

Page 373: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1151

português, acreditando que “só há uma maneira de a acabar, esta guerra que não queres

e eu não quero: é fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”

(VIEIRA, 2004, p. 26). Paizinho, meio-irmão mulato dos dois, participa de ações

clandestinas e é preso pela PIDE. Kibiaka, colega negro morador do Bairro Operário,

entra para a guerrilha, partindo para o mato. Mais-Velho, narrador onisciente,

testemunha e protagonista da narrativa, é aquele que segue do início ao fim do romance

imerso em dúvidas; o “escrupuloso” que não teve coragem suficiente para tomar uma

decisão radical como as de seus companheiros de infância:

Então para quê estudos, papéis, para quê reuniões e esse teu medo chapado

que tens nos olhos e nessa cara bonita que eu gosto, porque o Paizinho não

vem, não chega e todo o teu corpo treme e são só panfletos? Entrar numa

mata, Mais-Velho, isso não fazes. Sei que tens medo, mas que tens mais

dignidade que medo e que vencerias o medo e iria (...). Não, Mais-Velho, não

é medo – eu sei, é mais pior. Podes vencer o medo mas nunca a falta de

certeza, és assim: matemático e objectivo. E não tens a certeza de te

aceitarem, Mais-Velho, nem ta podem dar porque também não a têm. Só indo

fazendo-lhe a terão. E só se tem enquanto se constrói. Construída, ela vira

dúvida outra vez. E então só tem um caminho...(...) Espalha os teus panfletos,

que eu vou matar negros, Mais-Velho! E sei que eles te dirão o mesmo:

‘espalha os teus panfletos, vou matar nos brancos’. (VIEIRA, 2004, p. 23-

26).

As personagens, companheiras de infância, são colocadas em uma situação

diante da qual não há neutralidade possível. Deflagrada a guerra, não há mais

possibilidade de conciliação e cada um precisa escolher seu lado. A conjuntura que, por

fim, obriga os companheiros de infância a se enfrentarem na guerra impede que o leitor

faça uma leitura irrefletida, impelindo-no a pensar na complexidade da situação colonial

que, como fato social total, abarca tudo e todos, em todas as instâncias, de modo

inevitavelmente violento.

Em Dongala, o contexto é bem diferente, embora não menos tenso. Já na

primeira página do romance, temos diante de nós Mayéla dia Mayéla, o seu

protagonista, prestes a ser executado.

Enquanto no começo da narrativa seu percurso na luta contra os brancos parece

exemplar, ao longo de seu desenvolvimento somos colocados diante de todas as

fragilidades, incertezas e vaidades de Mayéla. Ele sobrevive à luta armada e à tortura,

percorre milhares de quilômetros dentro do continente africano, em vários países; chega

mesmo a ser presidente do governo revolucionário da “República Popular e

Page 374: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1152

Democrática de Anzika”, país fictício onde o autor situa a pátria de origem do

protagonista. A narrativa evoca figuras históricas exemplares na luta contra a

colonização: Patrice Lumumba, Frantz Fanon, Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral,

Nelson Mandela, entre outras. A discussão política aparece muitas vezes em primeiro

plano, de forma didática, aproximando muito ficção e realidade no que diz respeito às

ideologias que circulavam pelo continente no período.

A personagem, no entanto, quando chega ao poder, não consegue conduzir o

país de acordo com as ideologias que defende ao longo da narrativa. Durante seu

governo, a economia entra em colapso, ocorrem prisões arbitrárias e, até mesmo, tortura

dentro das prisões. Os conflitos étnicos internos se acirram, a mídia, controlada por ele,

distorce informações e a população começa a se revoltar, manifestando-se contra seu

governo, inclusive por meio de um atentado contra sua vida. Mouyabi, opositor de

Mayéla, reúne um grupo de partidários e consegue dar um golpe militar que coloca

outro “governo revolucionário” no poder – cuja diferença ideológica do partido que já

se encontrava no poder, ironicamente, é imperceptível. Mayéla é preso pelos golpistas e

condenado à execução pública. A cena final do romance, em que ele corre em direção a

uma colina, para não se “deixar arrastar para a morte como um carneiro” (DONGALA,

1974, p. 213), é acompanhada pela mesma multidão que outrora o colocou no poder

uivando e lhe apontando o dedo, enquanto ele é atingido, pelas costas, pelas balas que

finalmente o derrubam no chão.

Nota-se assim que, os dois romances, embora com contextos bastante diversos,

mostram situações análogas no que diz respeito à luta armada entre iguais, no caso,

conterrâneos sendo levados por duas situações muito distintas a se matarem entre si;

seja pela posição tomada em relação à luta colonial, seja pela posição, após a

independência, tomada diante do processo espinhoso de construção de uma nação.

Aproximar os dois textos, parece, assim, permitir analisar não só a diversidade

de representações possíveis da militância política, como, também, compreender como o

contexto de produção interfere na organização formal dos textos. Há muitas diferenças

interessantes, que vão desde a língua adotada para a escrita até a organização formal,

vereda em que os autores trilham rumos estéticos diversos. Parece produtivo aproximá-

las pelas diferenças porque tal aproximação pode revelar de modo exemplar como o

processo social está intrincado, dialeticamente, na produção da escrita, uma vez que as

Page 375: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1153

duas obras, cada uma à sua maneira, entrelaçam intensamente à tessitura formal do texto

as condições e contradições a que estão sujeitas.

Sabendo que não é possível ignorar as condicionantes históricas, ainda que

devam sempre ser tratadas com o cuidado de buscar compreender toda a sua

complexidade (evitando cair em simplificações deterministas), parece profícuo também

um estudo sobre os autores que os considere “produtores” (BENJAMIN, 1994, p. 120-

136), no sentido em que define Walter Benjamin. Ao trazer para a análise um ser social

que carrega consigo todo um repertório coletivo a ser mobilizado no momento da

escrita, Benjamin ecoa Marx e Engels em A Ideologia Alemã, obra em que aparece a

modelar definição de que não é a consciência dos homens que determina sua existência,

mas, ao contrário, é sua vida, seu ser social imerso em um contexto, que determina sua

consciência. É esta consciência, construída historicamente, que os autores terão como

matéria-prima para a construção de suas obras:

As linguagens e as técnicas que um escritor tem à mão já estão saturadas de

certos modos ideológicos de percepção, certas maneiras codificadas de

interpretar a realidade; e o grau em que ele pode modificar ou recriar essas

linguagens não depende apenas do seu gênio pessoal. Depende da

‘ideologia’, em um determinado momento histórico, ser tal que essas

linguagens devam e possam ser alteradas. (EAGLETON, 2011, p. 54).

Apontamentos metodológicos

Segundo Benjamin Abdala, que defende sempre uma postura política diante do

objeto de estudo literário, o estudo comparativo parece tanto mais interessante quanto

mais se afaste do olhar hegemônico para se aproximar daquilo a que ele chama “uma

literatura comparada descolonizada” (ABDALA, 2007, p. 14), pautada por “articulações

de solidariedade entre atores de um campo intelectual supranacional” (ABDALA, 2007,

p. 15). A este tipo de olhar comparativo interessa criar condições para perspectivas

descentradas, “tendo em vista reverter a assimetria da vetorização dos fluxos”

(ABDALA, 2007, p. 17) – que, em geral, tende a considerar os países outrora

colonizados sempre como “devedores” quando comparados aos países cuja produção

literária é dominante.

Considerando que o método escolhido para tratar a realidade carrega sempre um

olhar partidário, de acordo com aquilo para que escolhemos olhar (e como escolhemos

Page 376: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1154

olhar), a escolha metodológica pelo “comparatismo comunitário”, ao aliar o aparato

teórico materialista histórico e eleger como corpus dois textos africanos, carrega

intrinsecamente uma posição política contra a dominação cultural e ideológica a que os

povos africanos foram submetidos durante tanto tempo.

A escolha pelo aparato teórico materialista histórico, neste contexto, vem

reforçar a posição tomada. Pretende-se mobilizar os elementos fundamentais desta já

consolidada teoria crítica para uma leitura da situação literária e social dos contextos

africanos estudados, unindo suas ferramentas interpretativas ao estudo das

especificidades dos contextos africanos.

Para embasar esta reflexão, é necessário aprofundar os estudos também no

campo da História. Neste caso, além dos estudos de contextualização da situação

histórica africana, foi estabelecido como recorte, para um enfoque mais detalhado, o

contexto das disputas políticas no continente africano dos anos de 1960 a 1975, tendo

em vista que 1960 é o ano em que o Congo-Brazzaville negocia sua independência

oficial; 1961 é o ano em que se acirram as tensões e começa de fato a luta armada em

Angola; 1967 é o ano em que Luandino Vieira escreve Nós, os do Makulusu; 1973 é o

ano em que Emmanuel Dongala publica Un fusil dans la main, un poème dans la poche,

com grande e rápida repercussão (inclusive internacional) e, finalmente, 1975 é o ano

em que Angola é declarado oficialmente um país independente.

Formado um repertório crítico, ao qual se juntará naturalmente referências aos

estudos já realizados sobre ambos os autores, o processo de análise comparativa da

construção da representação da militância nas obras em questão buscará compreender

todo o processo social do qual os textos fazem parte, atentando para o fato de que,

compreender uma questão literária,

Significa, antes de tudo, compreender as relações complexas e indiretas entre

essas obras e os mundos ideológicos que elas habitam – relações que surgem

não apenas em ‘temas’ e ‘questões’, mas no estilo, no ritmo, na imagem,

qualidade e (...) forma. (EAGLETON, 2011, p. 20).

Apontamentos finais: caminhos

Page 377: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1155

A principal pergunta que norteia este trabalho poderia ser resumida da seguinte

maneira: enfocar dois textos formalmente muito distintos a partir de um mesmo ponto

de vista pode ajudar a revelar como se dá a determinação social2 da escrita?

Utilizando, mais uma vez, Antonio Candido, quando afirma, sobre o fator social

da escrita, que “não se trata de afirmar ou negar uma dimensão evidente do fato

literário; e sim, de averiguar, do ângulo específico da crítica, se ela é decisiva ou apenas

aproveitável para entender as obras particulares” (CANDIDO, 2006, p.21), chega-se à

principal hipótese que norteia a pesquisa até o presente momento: nos dois textos

escolhidos para o estudo comparativo, o fator social parece ser, mais que aproveitável,

decisivo para compreender integralmente as obras.

A partir dos desdobramentos decorrentes desta hipótese, busca-se compreender

quais os fatores que atuam na organização interna do texto, de modo a constituir uma

estrutura peculiar, investigando qual a função que o fator social e histórico (externo)

exerce na economia interna da obra, já que o maior interesse da crítica parece ser

quando é possível compreender “a integridade da obra (...) fundindo texto e contexto

numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, p.12.).

Referências

ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Literatura, história e política: literaturas de língua

portuguesa no século XX. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.

ANYINEFA, Koffi. Litterature et politique en Afrique noire: socialisme et dictature

comme thèmes du roman congolais d’expression française. Bayreuth, Germany: African

Studies Series, Eckhard Bréitinger, Bayreuth University, 1990.

_______. "Bonjour et adieu à la Négritude?: Senghor, Dadié, Dongala et l'Amérique:

Littérature et résistance". Présence francophone, n. 50, p. 89-111, 1997.

AUERBACH, Erich. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental.

São Paulo: Perspectiva, 2002.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

2 Vale ressaltar que, quando se utiliza este termo, nunca é de modo direto, determinado e biunívoco.

Page 378: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1156

BÉNOT, Yves. “A descolonização da África Francesa (1943-1962)”. In: FERRO, Marc

(Org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

BESTMANN, Martin T. "Le roman africain comme expression d’une prise de

conscience critique et révolutionnaire". Peuples noirs, peuples africains (edições

disponíveis em: http://mongobeti.arts.uwa.edu.au/, consultado em 07/2014)

_______ . "Structure narrative et aventure révolutionnaire dans Un fusil dans la main,

un poème dans la poche". Peuples noirs, peuples africains (edições disponíveis em:

http://mongobeti.arts.uwa.edu.au/, consultado em 07/2014)

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro

sobre azul, 2011.

_______ . Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

_______ . Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.

CARVALHAL, Tânia; COUTINHO, Eduardo (orgs.). Literatura comparada: textos

fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

CHAVES, Rita. A formação do romance angolano: entre intenções e gestos. São Paulo:

Universidade de São Paulo, Coleção Via Atlântica, v. 1, 1999.

CHAVES, Rita; CABAÇO, José Luís. “Frantz Fanon: colonialismo, violência e

identidade cultural”. In ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Margens da cultura:

mestiçagens, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.

DONGALA, Emmanuel Boundzéki et SAMBA, Casimir. “Congo: retour d’URSS”.

Peuples noirs, peuples africains (edições disponíveis em:

http://mongobeti.arts.uwa.edu.au/, consultado em 07/2014)

_______ ."Littérature et société: Ce que je crois". Peuples noirs, peuples africains

(edições disponíveis em: http://mongobeti.arts.uwa.edu.au/, consultado em 07/2014)

EAGLETON, Terry. A ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

_______ .A idéia de cultura. Unesp, 2005.

_______ . Marxismo e Crítica Literária. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Lisboa: edições 70, 1979.

FANON, Frantz. Pour la révolution africaine: écrits politiques. Paris: Collection

[Re]découverte, documents et témoignages, Éditions La Découverte, 2001.

_______ . Os condenados da terra. Juiz de Fora: Edições UFJF, 2005.

_______ .Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

Page 379: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1157

HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1878-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

_______ . A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

_______ . A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2006.

_______ . A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras,

1995.

JAMESON, Fredric. O inconsciente político. A narrativa como ato socialmente

simbólico. São Paulo: Ática, 1992.

_______ .. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Editora

Hucitec, 1985.

LABAN, Michel. Angola - Encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro

António de Almeida, 1991.

LABAN, Michel; VIEIRA, José Luandino. Luandino: José Luandino Vieira e a sua

obra (estudos, testemunhos, entrevistas). Edições 70, 1980.

LUKÁCS, György. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.

_______ .História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

_______ .Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilização (volumes I e II). Salvador:

EDUFBA, 2003.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial, 2004.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura (Textos escolhidos). São

Paulo: Expressão Popular, 2010.

_______ .A ideologia alemã. Boitempo Editorial, 2007.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador.

Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

_______ .Retrato do descolonizado árabe-muçulmano e de alguns outros. Tradução de

Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

MOURALIS, Bernard. As contraliteraturas. Coimbra: Almedina, 1982.

MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. A sociedade angolana através da

literatura. São Paulo: Editora Ática, 1978.

Page 380: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1158

SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). Malhas que os impérios tecem. Textos anti-

coloniais/Contextos pós-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2010.

SARTRE, Jean-Paul. Colonialismo e neocolonialismo (Situações V). Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1968.

_______ ."Orphée noir". Situations III, Paris: Gallimard, 2003.

SCHWARZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

_______ .Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora 34, 2000.

_______ .Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

TROTSKI, Leon. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

UNESCO. História Geral da África. (todos os volumes da coleção disponíveis em:

http://portal.mec.gov.br/?option=com_content&view=article&id=16146, consultado em

07/2014).

VISENTINI, Paulo Fagundes. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e

Etiópia. Coleção Revoluções do Século XX. São Paulo: Unesp, 2012.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

Page 381: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1159

OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O

PAPEL DO PROFESSOR [Voltar para Sumário]

Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)

1.Introdução

O termo “mundo do circo” bem se aplica a essa atividade artística, no circo

temos a representação de diversos povos, falares, práticas sociais, visões muito

peculiares do mundo, delimitados por uma cerca e ampliados por diversos povos de

culturas bastante diferenciadas, aos quais os circenses têm acesso. Mesmo sem

especificar os diversos grupos que coabitam sob a lona, é urgente uma mudança

daqueles, os quais devem acolher o aluno circense na escola, primordialmente o

professor, que não consegue atender às diversidades, aos múltiplos letramentos, muito

menos perceber a enorme contribuição que cada aluno pode dar para o conhecimento

dos diversos grupos que interagem no espaço escolar.

O circense em seu cotidiano vivencia práticas sociais que extrapolam as

vivenciadas por alunos de uma cidade, mesmo que esta seja de grande porte. O simples

ato de ir às compras exige desse nômade atenção ao itinerário, ao estacionamento de

veículos, à disposição das lojas e mercadorias, a serviços oferecidos no ambiente

escolhido, à variação linguística, à forma de atendimento aos clientes, ao custo de vida

e, consequentemente, às melhores ofertas, bem como à procedência e a qualidade dos

produtos, entre outras informações que a escrita pode auxiliar numa melhor escolha.

Para que o espetáculo se realize também existem as demandas de leitura e

escrita tais como: licenças expedidas por órgãos públicos e particulares quanto ao local,

segurança, energia, água, propaganda, ingressos, contabilidade de produtos oferecidos

no intervalo do espetáculo, texto da apresentação do espetáculo, roteiro da programação

diária, entre outras. O circense também pesquisa, faz leituras diversas e escreve por

Page 382: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1160

prazer seja em cadernos ou blocos, seja na internet. Enfim, em todos os momentos e

circunstâncias, o circense faz leituras e interpretações, noutros realiza práticas de

escrita, e nessas interações assume uma atitude responsiva frente às demandas com as

quais se depara.

Frente ao exposto, o presente trabalho objetiva abordar a atuação do professor do

sistema regular de ensino público em relação à inserção do aluno circense nesse sistema,

bem como de que maneira esse docente contempla as práticas de letramento do

mencionado discente.

Nessa perspectiva, o referido trabalho segue os moldes da pesquisa qualitativa

na medida em que descreve a realidade investigada, a atuação de seus integrantes e o

que eles têm a dizer acerca do que realizam no tocante ao letramento escolar. Para tanto,

adotamos como instrumentos de geração de dados, entrevistas, observação do processo

ensino aprendizagem, com foco no trabalho do professor quanto ao procedimento frente

aos letramentos apresentados pelo aluno circense nas atividades do cotidiano escolar.

Teoricamente, baseamo-nos nos postulados apresentados pelos Estudos de

letramento, especificamente no que diz respeito à inserção efetiva do aluno circense no

universo escolar.

2. Aspectos metodológicos da pesquisa

A pesquisa qualitativa é a que melhor retrata a relação entre aluno circense-

professor-letramento; para mostrar como se dá esse processo escolhemos a entrevista.

Para Günther (2003) essa análise dos dados levantados é confiável, pois estudar o

fenômeno na contextualidade natural deixa o pesquisador diante de variáveis

importantes tais como comportamentos e estados subjetivos, os quais levam o

pesquisador a ter uma visão mais humana.

BOGDAN e BIKLEN (1996) endossam esse pensamento de os investigadores

qualitativos compreenderem melhor as ações no ambiente habitual de ocorrência, por

perceber o significado do local no contexto da história das instituições.

As entrevistas foram feitas com circenses que estão estudando, estudaram e/ou

acompanham seus parentes na vida escolar. Os questionamentos abertos deram à

pesquisa o tom de conversa. Nesse sentido, os circenses ficaram à vontade para

Page 383: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1161

discorrer sobre o ensino aprendizagem e as interações com as pessoas da praça (cidade).

A faixa etária dos entrevistados varia dos 16 aos 40 anos. A investigação perpassa

camadas sociais variadas, como também etnias distintas com seus níveis de letramento

também diversos. A pesquisa foi feita, durante dois meses do ano de 2014, e se tornou

eficiente ao investigarmos, também, a ótica do professor, que recebe o aluno circense.

Na interação do circense com o mundo exterior, toda atitude responsiva dos

cidadãos sedentários deve ser considerada, não como fator de inclusão/exclusão, mas

como aspectos positivos/negativos para o letramento do circense. Por isso, ao

intermediar saberes todas as atitudes dos envolvidos no processo ensinoaprendizagem

são levadas em consideração.

3. No circo e no sistema regular de ensino

Ao analisar relatos de circenses podemos perceber entraves no processo ensino

aprendizagem, porque a referida legislação não evidencia aspectos singulares em

relação às práticas inclusivas que a escola deve exercer a fim contribuir para o

desenvolvimento do aluno no período em que se encontra matriculado na escola. Assim

sendo, não se observa maiores esclarecimentos em termos da proposição de atividades e

da sistemática de avaliação a ser seguida pela escola frente aos referidos alunos.

Essa ausência de parâmetros norteadores no âmbito da legislação leva a escola e,

por consequência, o professor a não ter orientações para trabalhar com essas

especificidades, o que acarreta equívocos no tratamento dado a esse aluno que tem

muito a contribuir para a ampliação de conhecimentos, práticas culturais e vivências

humanas dos demais sujeitos envolvidos no processo educacional.

A série de lacunas existentes na legislação não muda a condição de ouvinte e/ou

invisível assumida pelo aluno circense, haja vista que, muitas vezes, a inserção desse

aluno na instituição de ensino, apesar de parecer relevante, estimuladora e cativante,

causa estranhamento e desacomodação tanto para a escola, como para o professor e suas

práticas, inclusive para os demais alunos por implicar em mudanças no processo de

ensino.

Page 384: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1162

A partir desse contexto é que começo a discorrer como o professor encaminha

suas práticas para atender a esse aluno e, consequentemente, aos seus letramentos num

sistema de ensino que pratica a homogeneização da aprendizagem.

4. O circo, os letramentos múltiplos e as práticas escolares

Os estudos de letramento como práticas sociais concebem as pessoas e os grupos

sociais como heterogêneos. Assim sendo, as múltiplas atividades desenvolvidas entre as

pessoas acontecem de modos muito variados. Essa heterogeneidade não encontra espaço

no sistema tradicional da escola em que o professor, falante privilegiado, figura de

relevância no contexto escolar, ministra aulas de acordo com um currículo padrão para

todas as turmas em que há, inclusive, alunos circenses, dentre outros grupos sociais.

Outra questão importante diz respeito ao letramento escolar; se por um lado a

escola funciona como ferramenta para a inserção social, no caso do mercado de

trabalho, ou em relação aos conhecimentos valorizados legal e culturalmente, por outro

ela tem deixado de ampliar e democratizar as práticas e eventos de letramentos

escolarizados. (ROJO, 2009)

A escola, segundo Kleiman (2007), deve constituir agência de letramento por

excelência de nossa sociedade, assumindo os múltiplos letramentos da vida social, como

objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os níveis. Ao observar o ambiente

escolar e como se dá a interação entre professor e aluno percebemos a dissonância entre

o fazer pedagógico e a necessidade de interação do indivíduo no meio social; a partir

dessa observação compreendemos o dizer de KLEIMAN (2006, p.4)

Um agente social é um mobilizador, dos sistemas de conhecimentos

pertinentes, dos recursos, das capacidades dos membros da comunidade: no

caso da escola, seria um promotor das capacidades e recursos de seus alunos

se suas redes comunicativas para que participem das práticas sociais de

letramento, as práticas de uso de escrita situadas, das diversas instituições.

Em virtude de seu nomadismo, o aluno circense, segundo Silva (1996), é dotado

de muitas vivências face às particularidades e necessidades de sua vida. Além disso, são

portadores de saberes e práticas que os balizam, que os definem como grupo, com uma

historicidade singular. Os circenses, em sua essência, não pertencem a uma determinada

religião, etnia ou classe social. Os determinantes de seu processo de adequação no circo

Page 385: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1163

traduzem uma postura flexível em processos concomitantes de construções de saberes

oriundos de diversos grupos, mesmo porque os circenses são oriundos de diversas

origens.

Seguindo essa orientação o aluno circense não é um organismo estranho, mas

um indivíduo com seus letramentos e práticas sociais específicas. Face a essa realidade,

Kleiman (2007) preconiza que:

Professor que adotar as práticas sociais como princípio organizador do ensino

enfrentará a complexa tarefa de determinar quais são essas práticas

significativas para cada indivíduo que traz consigo características próprias no

que concerne à bagagem cultural, e diferentes modos e níveis de participação,

pertencentes ou não a uma sociedade tecnologizada e letrada. (KLEIMAN,

2007, p. 6)

Essa perspectiva é compatível com o letramento ideológico proposto por

STREET (1984, p.7) que concebe as práticas de letramento como indissociável às

estruturas culturais e de poder da sociedade, reconhecendo a variedade de práticas

culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos.

Em relação às práticas sociais do aluno circense, elas se distinguem daquelas do

aluno regular, por diversas razões, entre elas estão o desenvolvimento linguístico-

discursivo do circense, que perpassa experiências constantes de variação lingüística; a

diversidade do uso de gêneros textuais, seja pela variedade dos diferentes espaços

geográficos em que circulam, seja pelos níveis de complexidade; a proximidade com

diversos modos de significar os textos em cada região ou país por onde passam e

finalmente pelos enunciados implícitos no seu discurso, os quais mostram uma força

identitária do circense para com o mundo exterior e sua fragilidade para o mundo do

circo nas relações de poder.

Tratando do ensinar, Paulo Freire (1996) nos leva ao conceito dessa prática

docente, da radicalidade metafísica, de seres históricos e inacabados envoltos no

processo de conhecer, ensinar; um ensinar que se dilui no aprender por se refazer

constantemente. E, nesse ensinar-aprender, temos a possibilidade de participar de uma

experiência total, diretiva, política, ideológica, estética e ética, na qual a boniteza, a

decência e a seriedade se acham de mãos dadas.

É também, na hora da avaliação que o circense e seus saberes são ignorados,

nenhum segmento da escola procura se inteirar sobre o conhecimento desse aluno,

Page 386: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1164

inúmeras vezes ele estuda os mesmos conteúdos nas diversas cidades por onde passa, e

faz avaliações dirigidas especificamente aos alunos da cidade, pois são raras às vezes

em que o aluno circense é ouvido em suas necessidades, o que contradiz os vários

conceitos de letramento.

5. Vozes e reflexões

A pesquisa sobre os letramentos do circense e o papel do professor como um

agente de letramentos ampara-se em entrevistas orais concedidas por circenses do Circo

do Fuxiquinho, companhia de circo originada na cidade de Mossoró, no estado do Rio

Grande do Norte, empreendimento da família Campelo. As entrevistas focam na relação

aluno-contexto social-leitura e escrita; escola-professor-aluno, e visam à compreensão

da complexidade do letramento do circense e sua implicação no ambiente escolar.

Das várias perguntas formuladas, algumas se referem aos materiais escritos os quais o

circense faz uso, a forma como o professor se conduz na interação com o circense e

como é feita a avaliação desse aluno.

A dinâmica da vida do circense diferencia-os dos demais grupos sociais, porque

são pessoas de origens diversas, suas vivências se dão num espaço fechado e, ao mesmo

tempo, se interligam com grupos sociais muito diversos e em tempo muito variável. Em

algumas cidades (praças), as apresentações se estendem por alguns meses (grandes

centros urbanos), noutros reduzem-se a poucos dias (cidades de pequeno e médio porte).

Dada à diversidade dessa dinâmica, a interação entre circenses e pessoas da praça, seja

na escola ou em outras esferas, pode gerar encantamento, amizades, mas também,

desconfortos e, até mesmo, discriminação. A esse respeito, podemos mencionar o dizer

de C1, ao afirmar que “[...] Já aconteceu da gente ter que falar na lei que obriga a

escola a receber o aluno do circo pra diretora matricular o menino [...]”.

Ou C3 quando diz: [...] O povo se surpreendia nas cidades:_ Rolinha num sei quê, você

sabe escrever? _ É lógico que eu sei! Eu estudo[...]

A despeito de nomadismo e da mobilidade que envolve sua trajetória escolar, os

circenses reconhecem, tanto a relevância do letramento propiciado pela escola, quanto o

letramento vernacular. Assim sendo, C1 diz que:

Page 387: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1165

[...] Os estudos ajudam muito, mas a comunicação visual e oral e todos os

outros como leitura de revistas e jornais, TV, cinema e outros tipos de

comunicação são fundamental e no meu trailer temos todos os tipos de

leitura [...].

Nesse dizer, podemos perceber que os circenses valorizam os conhecimentos

escolares, mas também ressaltam a importância de se vivenciar outras práticas de leitura

e de escrita que ultrapassam o domínio da instituição escolar. Como exemplos disso,

temos os depoimentos de C2 e C3, o primeiro no sétimo ano e o último que já concluiu

o Ensino Médio:

[...] Sempre leio alguma coisa, sabe [...]nem que entra na internet, como

todo mundo entra hoje, eu sempre leio as coisas, eu tenho uma bíblia, a

bíblia das princesinhas, eu tava lendo aí eu viajei, aí eu parei mais de ler,

mas aí eu posso voltar [...]também vou olhando os álbuns aí vou escrevendo

as coisas[...]sempre quando eu viajo, sempre quando eu vejo gibi eu peço

pro meu pai comprar [...] eu gosto da Mônica[...] (C2)

[...] De revista eu nunca gostei de ler, não, livro eu li poucos, só quando a

professora mandava mesmo, sou preguiçoso pra ler [...] pra não dizer que

não tenho livro, tenho quatro ou cinco livros do Evangelho, eu tenho, eu

ganho de presente... eu vou e leio. Só escrevo na internet, eu não curso uma

faculdade, mas, pior que eu estudo, eu estudo do meu jeito, quando eu pego o

notebook, eu pego e começo a pesquisar as coisas, História do Brasil,

história internacional, história de um país, eu boto[...] eu não leio livro, mas

eu leio outras coisa normal, aí eu boto no canal da sky que é falando das

história, história disso, história daquilo, é o history [...].(C3)

Essa realidade propicia ao circense o contato com os mais diversos materiais

escritos, como os mais variados propósitos, seja para se conduzir, se entreter, suprir as

necessidades cotidianas, trabalhar, enfim para conviver em sociedade.

Podemos perceber essa realidade através dos fragmentos das entrevistas

concedidas por C1 e C2:

[...] Meus pais escrevem as cidades por onde passamos, as que foram

melhores, as que foram piores [...] anotam as coisas que vende [...] Meu pai,

minha irmã, também, fazem a programação [...].(C1)

[...] Em toda cidade precisamos do alvará de funcionamento, a licença dos

bombeiro, tá tudo legalizado, tudo direito. A companhia de luz e de água tem

que ter a autorização [...] aí eles vêm ligar[...](C1)

[...] Eu e minha filha participamos de programas de televisão, a gente

também se apresenta em escolas, clubes [..]Aqui, eu, meu pai, e mais outros

fazem a propaganda do circo. As crianças são muito espertas, com a história

e a cultura desenvolvem uma facilidade de se acostumar e se comunicar com

todos [...](C1)

Page 388: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1166

O circense ver a escrita como instrumento de inclusão social, como percebemos

nas vozes de C2 e C4:

[...] Se um dia não tiver mais o circo eu posso ter outra profissão [...] C2

[...] Eu tô sem estudar agora, mas eu vou voltar, porque eu sei que vou me

comunicar melhor com as outras pessoas [...] C4

O sistema de ensino não concede ao educador a formação continuada necessária.

Sem acesso a essa formação e desmotivado, o professor não atua como um agente de

letramento perante o circense, visto que não procura tomar conhecimento sobre o

letramento escolar, bem como do letramento vernacular desse aluno. Dessa forma, deixa

de promover, de modo satisfatório, o contato desses alunos com os mais diversos textos

advindos das inúmeras situações do cotidiano.

Essa realidade pode ser observada nas vozes dos C1 e C2:

[...] A maior dificuldade é o tempo de permanência dos professores com as

crianças circenses [...] (C1)

[...] Essa é uma das maiores dificuldades, porque tem cidade, pronto , que tá

fazendo prova, só que, por exemplo[...] eu tô aqui, aí aqui tá terminando o

segundo bimestre, aí na outra cidade já tá fazendo uma coisa muito mais

adiantada do terceiro aí essa é uma das maiores dificuldades [...]

A esse respeito é importante ressaltar o que dizem Xavier e Santos (2009) acerca

da situação do circense na escola. Segundo esses autores, o aluno não tem a devida

atenção nem por parte do sistema educacional nem por parte do professor que, por

vezes, relega esse aluno à condição de ouvinte, sob a justificativa de que o circense, face

o curto espaço tempo de permanência na escola, não aprenderá os conteúdos, tampouco

contribuirá para o desenvolvimento geral da turma em que se insere interinamente.

Essa mesma prática homogeneizadora e excludente se repete no tocante ao

processo avaliativo dos alunos. Acerca disso, podemos mencionar a voz de C2 sobre o

processo de aquisição da escrita, da colega circense, que tem 10 anos e está no quinto

ano: [...] assim, ela ainda tá aprendendo a ler [...] mais ou menos [...] com nove anos

ela já sabia muita coisa assim [...].

Conforme observamos, todas as dificuldades enfrentadas pelos alunos no tocante

ao letramento escolar são compartilhadas pelos que constituem a esfera familiar do

Page 389: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1167

circense. Assim sendo, são esses membros que buscam alternativas para atenuar tais

dificuldades e, consequentemente, melhorar o rendimento desse aluno frente às

demandas apresentadas pela escola. Prova disso, é o dizer de C1, ao declarar: [...] Ajudo

a elas (filhas) a pesquisar na internet o assunto que tem passado, a mãe também ajuda,

aí elas veem em livros, e o que eu sei assim, eu também ajudo [...].

A partir dessa realidade percebemos que, diferente do aluno sedentário que

muitas vezes associa a permanência no ambiente escolar à inserção no mercado de

trabalho, o circense tem motivações relativas à sua eficiência em sobreviver numa

sociedade grafocêntrica. Logo, é necessário que os profissionais do sistema educacional

tenham uma atitude respeitosa a começar pela coordenação pedagógica no acolhimento

ao aluno, na análise de conteúdos trazidos da cidade anterior pelo aluno circense, como

também no apoio nas tarefas de casa. Em sala de aula o professor que procurar interagir

com o circense e valorizar sua cultura também estará contribuindo para um melhor

aproveitamento do letramento desse aluno.

6. Considerações finais

Os estudos de letramento têm nos possibilitado enxergar as particularidades que

envolvem os usos da leitura e da escrita, não especificamente nas esferas institucionais,

mas em todos os demais segmentos que compreendem as atividades humanas.

Nesta investigação, em particular, centramos foco no letramento desenvolvido

na instituição escolar e no ambiente circense, envolvendo o trabalho circense, o lazer, o

cotidiano, e mais precisamente em salas de aula em que se observa a presença de alunos

pertencentes ao mundo circense envoltos por suas especificidades, expectativas e

necessidades, no intuito de compreender como eles são conduzidos em seu processo

ensino aprendizagem.

É possível concluir, a partir dessa pesquisa, que a escola da rede pública de

ensino, em sua maioria, não tem atendido às necessidades do aluno circense quanto à

valorização de suas práticas de letramento, como também não tem dado importância ao

seu conhecimento de mundo e seus aspectos socioculturais.

Page 390: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1168

A nosso ver, parece faltar humanização nas práticas em que os indivíduos

necessitam interagir com o outro; nas relações pessoais, intelectuais, religiosas,

educacionais, entre outras. As relações estão sendo regidas pelo egocentrismo e pelo

capital. Os profissionais não usam nem a razão para nortear suas ações. A cada lapso, a

cada falta de desvelo no trato com o próximo, perdemos a chance de ter um mundo

melhor. É natural e louvável que o educador exija do Estado melhores condições de

trabalho, bons salários e uma formação continuada adequada, porém qualquer professor,

ou profissional da educação, deve pautar-se no sentimento que permeia a relação

educador-aluno: o respeito.

A escola deve comunicar à comunidade escolar, principalmente nas séries em

que há vários professores, sobre a presença do aluno circense. A situação requer um

olhar mais acurado para a visão de mundo desses nômades. Nesse sentido, os agentes

de letramentos, no caso os professores das diversas áreas do conhecimento, podem

suscitar discussões nas quais as vivências dos circenses, possam agregar sentido ou

funcionalidade aos enunciados dos conteúdos estudados.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo:Parábola

Editorial, 2003.

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto

Editora, 1994.

BRASIL (1978), Lei 6.533, de 24 de maio de 1978. Disponível

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/QUADRO/1960-1980.htm> Acesso em:

03 de mar. 2012

GUNTHER , Hunter. Brasília, DF. Seminário em Psicologia: Metodologia Qualitativa,

2003. Disponível em:<http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722006000200010>Acesso

em: 28 de mar. 2012

KLEIMAN, Angela. Projeto Temático Letramento do Professor. UNICAMP, 2007

Disponível em <http://www.letramento.iel.unicamp.br>. Acesso em: 02 de mar. 2012.

________Letramento e suas Implicações para o Ensino de Língua Materna. Signo.

Santa Cruz do Sul, v. 32 n 53, p. 1-25, dez, 2007. Disponível em:

<online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view>. Acesso em 02 de mar. 2012

Page 391: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1169

________Processos identitários na formação profissional. O professor como agente de

letramento. In: CORRÊA, M. L. G.; BOCH, F. (Org.). Ensino de língua: representação

e letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo. Parábola

Editorial, 2009.

SILVA, Erminia. O circo: sua arte e seus saberes. 1996. Disponível em:

http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000102707.

STREET, B. V. Literacy in thery and Practice. New York: Cambridge University

Press,1984.

XAVIER, Gláucia do Carmo & SANTOS, Anderson Avelino de Oliveira. Exclusão

Escolar e a Criança de Circo. Revista Eletrônica de Educação, v. 3, n. 2, nov. 2009.

Artigos. ISSN 1982-7199. Programa de Pós–Graduação em Educação. Disponível em

<http://www.reveduc.ufscar.br> Acesso em: 02 de mar. 2012

Page 392: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1170

O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA

MORTE E VIDA SEVERINA [Voltar para Sumário]

Janicreis Gomes de Souza (UFPB)

Expedito Ferraz Júnior (UFPB)

A Semiótica, Ciência Geral dos Signos, que estuda os fenômenos culturais a

partir da sistematização sígnica destes, existe, na prática, desde a Idade Média, quando o

referido nome se aplicava a uma disciplina médica. Porém, em inglês, a expressão

Semiótica foi usada pela primeira vez em 1670, por Henry Stubbes, para indicar o ramo

da ciência médica que estudava a interpretação de sinais. Mas foi o norte-americano

Charles Sanders Peirce (1839-1914) quem iniciou os estudos da Semiótica nos EUA

com o objetivo de investigar os fenômenos produtores de significação e de sentido,

ocasião em que recebeu a denominação de Ciência Geral dos Signos. Na Europa, a

ciência que se dedicava ao estudo dos signos recebia o nome de Semiologia. Porém,

apesar de possuírem um objeto comum, Semiótica e Semiologia se distinguem em se

tratando de enfoque e metodologia.

Diferentemente da Semiologia, cujas bases teóricas provêm da Linguística, a

Semiótica parte de um modelo próprio, no qual as categorias se aplicam a todas as

linguagens possíveis, incluindo as artes visuais, a música, a fotografia, a literatura, o

cinema, o vestuário, os gestos, a religião, o teatro, a ciência, entre outras.

Para fins de estudos, a Semiótica se subdivide em três vertentes distintas:

greimasiana, também denominada de semiótica francesa, fundamentada no pensamento

do francês Algirdas Julien Greimas; russa, embasada nos estudos de teóricos como

Mikhail Bakhtin e Yuri Lotman, também denominada de semiótica da cultura e; por

fim, a americana, ou semiótica peirciana, cujo nome recebido se deve à raiz teórica que

a alicerça: Para fins de estudos, a Semiótica se subdivide em três vertentes distintas:

greimasiana, também denominada de semiótica francesa.

Page 393: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1171

O presente trabalho apresenta a análise de alguns aspectos da Semiótica Peirciana

aplicada à Literatura, usando para tal fim o estudo de um fragmento do poema Morte e

Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto: O retirante tem medo de se extraviar

porque seu guia, o Rio Capibaribe, cortou com o verão.

A teoria da semiótica peirciana se pauta no princípio de que tudo que cerca o

homem é interpretado por ele sob três categorias, denominas por Peirce de categorias

universais da percepção: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. A primeira delas é

a consciência imediata do intérprete sobre tudo que está presente. É nesse estágio que

acontece a qualificação do signo em relação a ele próprio (quali-signo), e em relação ao

objeto que representa (ícone). De acordo com o pensamento peirciano, o ícone se

subdivide em três categorias: imagético, diagramático e metafórico; e se caracteriza pela

representação através da reprodução de qualidades do objeto representado. A segunda

categoria é a significação atribuída ao signo, a relação estabelecida em ele mesmo (sin-

signo), e entre o objeto representado (índice). O índice se caracteriza pela representação

através de indícios da existência do objeto representado. Por fim, a Terceiridade, que é a

representação do signo em si mesmo (legi-signo) e em relação ao objeto representado

(símbolo). As representações simbólicas acontecem por meio de regras (individuais ou

coletivas) pré-estabelecidas. Por essa razão, faz-se necessário que o intérprete conheça

essas regras para atribuir significado ao objeto representado; é a representação e

interpretação do mundo por meio da chamada inteligência em signos.

Para que melhor compreendamos as categorias acima mencionadas, vejamos:

uma escultura que representa uma mulher, por exemplo, carrega consigo todas as

características da imagem feminina; essa representação acontece por meio da

reprodução das qualidades do objeto representado. Portanto, trata-se de uma

representação icônica. Um exemplo de índice são as pegadas dos dinossauros, existentes

no Sertão da Paraíba; essas pegadas são indícios que apontam a presença dos referidos

animais naquele local. Alguns signos convencionais, como palavras, frases, livros são

exemplos de símbolos; isso porque estabelecem, por meio de uma regra convencional

preestabelecida socialmente, a relação entre signo e objeto representado. Peirce enfatiza

a importância da experiência colateral do intérprete na produção de semiose1

1 Termo introduzido por Charles Sanders Peirce para designar o processo de significação, a produção de

significados.

Page 394: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1172

Ainda segundo o pensamento peirciano (2010), o signo é composto por três

partes essenciais: representâmen, objeto e interpretante, sendo esta última o resultado

que lhe é atribuído por parte do intérprete “o signo não pode exprimir, ele pode apenas

indicar, deixando ao intérprete a tarefa de descobri-lo por experiência colateral” (Peirce,

2010, p. 168). Com base nessas informações, compreendemos que atribuição de

significados acontece de acordo com o contexto sociocultural no qual esse intérprete

está inserido, ou seja, que a produção de significados e determinada pela cultura.

Peirce argumenta que a cognição nunca se origina em si mesma, mas em outra.

Em síntese, a percepção do sujeito em relação ao mundo que o cerca não acontece de

dentro para fora, mas de fora para dentro de sua consciência. Isso significa que não é

esse sujeito quem determina os fatos e fenômenos que estão ao seu redor, pois esses já

existem previamente, a ele cabe a tarefa de atribuir-lhes os devidos significados.

No livro O método anticartesiano de C. S. Peirce (2004), Lúcia Santaella faz

um estudo detalhado sobre o pensamento de Peirce a respeito dos signos e das

categorias fenomenológicas universais, denominadas por ele de primeiridade,

secundidade e terceiridade. Segundo Santaella, essa são constituídas por três

elementos essenciais: qualidade, relação e representação.

Após conceber suas categorias universais, Peirce enveredou no campo da

“metodologia filosófica, colocando a hegemônica herança cartesiana sob interrogação.”

(Santaella, 2004, p. 31), lançando-se contrário ao conceito de intuição de René

Descartes. O cartesianismo defendia a ideia de que toda a construção do conhecimento,

pelo homem, resultava da intuição.

Ainda de acordo com o que nos revela Santaella, em conformidade com o

pensamento peirciano, a interpretação desses signos depende exclusivamente do

processo inferencial ocorrido na por parte do indivíduo, o qual acontece por meio da

cognição. A autora acrescenta que para atribuir significado(s) a um signo o intérprete

sempre cria outro signo. É a chamada semiose ilimitada. A autora afirma ainda que o

mundo é todo constituído por signos; que o próprio homem é um signo. Portanto, ele em

si está incluído no processo inferencial cognitivo de interpretação e atribuição de

significados.

De acordo com Expedito Ferraz Junior, no livro intitulado Semiótica Aplicada à

linguagem literária (2012), as representações sígnicas podem formar a construção de

Page 395: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1173

ícones metafóricos. Isso acontece em “uma situação de linguagem em que dois signos

que, a princípio, teriam objetos distintos podem equiparar-se semioticamente” (Ferraz

Júnior, 2012, p. 71). O artigo intitulado A Leitura do Texto Literário: uma abordagem

Semiótica (2012), do mesmo autor, apresenta um estudo relacionado às categorias

icônicas, incluindo o ícone metafórico. De acordo com o referido texto ( p. 77):

O signo icônico metafórico, como definido por Peirce, pode ser entendido

como uma representação de um paralelismo (ou seja, de uma equivalência

semiótica) que induz ao reconhecimento de uma qualidade comum entre dois

signos — qualidade que permitiria a ambos representar um mesmo objeto.

Diferentemente das imagens, cujas relações signo-objeto devem produzir

interpretações inequívocas, as metáforas implicam uma necessária

ambivalência representativa.

Ainda de acordo com o texto de Expedito, o ícone metafórico está muito além

dos “limites código linguístico” (Feraz Júnior, 2012, P.71). Isso significa que a

linguagem verbal é apenas uma das diversas facetas que envolvem a metáfora, uma vez

que esta ultima está presente em tudo que envolve o homem, o intérprete dos signos.

Segundo ele, é nas imagens que se concentram muitos dos processos semióticos que

resultam na construção da metáfora.

Winfriend Nöth, No livro Panorama da Semiótica – de Platão a Peirce (2003)

explica detalhadamente cada uma das três categorias universais, mencionadas

anteriormente no texto de Santaella, bem como, o funcionamento da tricotomia do signo

peirciano. O autor aborda em seu livro a teoria de Peirce sobre o processo de

interpretação dos signos e produção de semiose. Segundo Nöth, não é o signo o

responsável pela produção de significados, e sim o intérprete, que o realiza através de

um processo cognitivo que permite a este último fazer inferências relacionadas ao signo,

propiciando-lhe as condições necessárias para interpretá-lo.

Existe ainda outro trabalho de Expedito Ferraz Júnior, publicado em 2011 no

site: http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es. O artigo é intitulado O conceito peirceano

de metáfora e suas interpretações: limites do verbocentrismo, e aborda exclusivamente

as representações de natureza icônica metafórica. De acordo com o texto, a tríade

icônica se subdivide em três hipoícones, denominados de imagem, diagrama e

metáfora. Segundo o autor, o conceito peirciano de metáfora transcende a ideia

aristotélica de que esta se limita ao domínio da linguagem verbal, embora esta última

Page 396: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1174

seja de suma importância no processo das equiparações paralelas que constituem a

metáfora.

Analisamos o fragmento do poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida

Severina, buscando compreender como a teoria da percepção peirciana se faz presente

no texto, enfocando a construção do ícone metafórico a partir da perspectiva do

intérprete. Concentraremos nosso estudo nas relações de sentido estabelecidas entre os

signos que representam mais de um objeto e suas possíveis nuances representativas, ou

seja, analisamos como acontecem as relações paralelas que possibilitam a construção do

ícone metafórico, tomando como princípio a linha de raciocínio peirciano que afirma “o

signo não pode exprimir, ele pode apenas indicar, deixando ao intérprete a tarefa de

descobri-lo por experiência colateral” (Peirce, 2010, p. 168).

Análise:

O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o Rio Capibaribe, cortou com o

verão

Considerando o intérprete como principal responsável pela construção de significados,

podemos dizer que um signo linguístico pode carregar em sua essência diversas

possibilidades de interpretação, que podem assumir a forma de outro signo linguístico

ou de um signo não-verbal. Assim sendo, a representação simbólica (determinado por

regra de convenção) pode se transformar, através de um processo cognitivo

desenvolvido por parte do intérprete, em representação icônica (determinada por

semelhança), e dentro dessa iconicidade ocorrer a representação da metáfora, uma

subcategoria do ícone.

Para compreendermos melhor o processo cognitivo capaz de metamorfosear o

signo verbal (simbólico) em signo não-verbal (icônico) e transformar os dois modos de

representação em metáfora, analisamos o fragmento abaixo:

- Antes de sair de casa

aprendi a ladainha

das vilas que vou passar

na minha longa descida.

Sei que há muitas vilas grandes,

cidades que elas são ditas;

Sei que há simples arruados,

sei que há vilas pequeninas,

Page 397: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1175

todas formando um rosário,

cujas contas fossem vilas,

todas formando um rosário

de que a estrada fosse a linha.

Devo seguir tal rosário

até o mar onde termina,

saltando de conta em conta,

passando de vila em vila.

(Melo Neto, 2007, p. 97-98)

http://contracenario.wordpr

ess.com/2013/09/04/morte-e-vida-severina-na-final-do-japan-prize/

Acima, temos duas maneiras distintas de representação do ícone metafórico: a

primeira acontece através dos versos escritos, ou seja, da representação por meio dos

signos verbais, a qual se materializa por meio da impertinência entre signo

representativo e objeto(s) representado(s). Isso significa que, simbolicamente, ou seja,

por regra de convenção, não há como povoados, vilas e/ou cidades formarem um

rosário. Cabe ao intérprete a tarefa de analisar as características (físicas e/ou funcionais)

desse objeto e emparelhá-las semioticamente a outros objetos, que possuam em comum

com o primeiro pelo menos uma características.

Já na figura, temos uma representação metafórica por meio da imagem. Trata-se

de uma ilustração do mesmo conteúdo expresso pelos versos escritos, ou signos

linguísticos, analisados anteriormente. Observamos que, da mesma forma que a

primeira, esta última requer do intérprete todo um alicerce colateral para fazer sentido;

é ele quem deve processar cognitivamente, embasado em seu conhecimento sígnico

prévio, as informações contidas na imagem e construir seus próprios significados sobre

Page 398: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1176

o que está visualizando, até chegar à conclusão sobre o objeto que está sendo

representado.

Observamos que, na imagem, o personagem tem nas mãos um objeto cuja aparência se

assemelha a um rosário. Para chegarmos a essa conclusão, realizamos uma reflexão

sobre o objeto rosário e suas diversas possibilidades de interpretação. Inicialmente, na

condição de intérpretes, consideramos a função desse objeto no contexto religioso do

catolicismo. Trata-se de um objeto cujas contas são utilizadas como uma espécie de

ábaco, para contar e classificar as orações que são rezadas para cumprimento do ritual

do terço. Observando a imagem analisada, percebemos que metade dos elementos que

constituem o rosário é formada por contas e a outra metade por representações de casas.

Esse conjunto de casas representa cada povoado, vila, cidade por onde Severino

(personagem do poema) deve passar até seu destino final, a cidade do Recife.

Ainda considerado as crenças católicas, o rosário representa a submissão do fiel

a uma penitência, cujo término representa remissão dos pecados, a libertação do mal.

Nos versos escritos, Severino afirma que deve “seguir tal rosário até o mar onde

termina”. A metáfora se constitui quando o personagem coloca sua viagem na mesma

condição do rosário. Ou seja, se a penitência acaba ao término das contas deste último, o

sofrimento do personagem também cessaria com a chegada ao Litoral.

Para associamos as qualidades comuns entre os objetos representados por

rosário e o Rio Capibaribe, tomamos como ponto de partida a visão de mundo do

personagem: no sentido convencional, sabe-se que o primeiro objeto é utilizado como

guia para conduzir o fiel católico que reza terço, no sentido de não permitir que este se

perca na quantidade de orações declamadas. Conhecedor dessa informação, o

personagem se refere ao Capibaribe, atribuindo-lhe a mesma função do rosário. Essa

comparação gera cognitivamente no intérprete a imagem do primeiro objeto e suas

características comuns em relação ao segundo.

Considerando o contexto semântico da viagem, sabe-se que o objeto rosário não

se aplicaria a ele, a princípio. Cabe ao intérprete abstrair as características comuns entre

os dois rio e rosário, e as transformar em uma única qualidade, a de guia; ou seja, do

mesmo modo que o rosário conduz o fiel, o Rio conduz Severino até Litoral de

Pernambuco. A partir do instante em que rio e rosário se fundem em um único signo

graças à junção por parte do intérprete da qualidade comum entre eles, deixam de ser

Page 399: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1177

comparados, isto é, deixam a condição de dois signos distintos com objetos também

distintos e se tornam signos equivalentes para um mesmo objeto (os dois representam

um guia). Essa fusão culmina no surgimento de um único signo, denominado de

metáfora.

O gráfico abaixo, contido no artigo intitulado O conceito peirciano de metáfora

e suas interpretações: limites do verbocentrismo (Ferraz Jr., 2011, p. 73) ilustra o

processo das representações paralelas que resultam na junção qualitativa que dá origem

à metáfora. Vejamos: inicialmente temos dois signos (S1 e S2) e dois objetos (O1 e O2),

um signo para representar cada objeto; em seguida, observamos que esses objetos

possuem alguma qualidade (uma ou mais) em comum; essa qualidade, mesmo não

sendo evidente, é parte dos conceitos (I1 e I2) que formamos anteriormente sobre esses

objetos. O fato de os dois objetos possuírem essa qualidade comum possibilita-lhes as

condições necessárias para que qualquer um dos dois signos possa representá-los,

resultando na construção da metáfora. Portanto, o signo icônico metafórico é o resultado

da qualidade comum existente entre dois objetos distintos.

http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/eSSe72/2011esse72_eferrazjr.pdf

Com base nas teorias estudadas e na análise do fragmento do poema Morte e

Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, observamos que o texto evidenciado neste

trabalho apresenta diversos signos que podem ser reconhecidos como ícones

Page 400: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1178

metafóricos. Isso acontece graças às qualidades comuns existentes entre dois ou mais

dos objetos representados por estes signos, o que possibilita ao intérprete relacioná-las

paralelamente e concluir que um signo pode estar representando mais de um objeto,

assim como dois ou mais signos podem representar um único objeto.

Constatamos ainda que as convenções simbólicas adquiridas pelos falantes da

Língua Portuguesa Brasileira, assim como a experiência colateral acumulada pelos

intérpretes hipotéticos, leitores virtuais de Morte e Vida Severina, propiciam-lhes as

condições necessárias para estabelecerem as relações de paralelismo entre as qualidades

comuns dos objetos representados e suas relações com os signos que os representam.

Referências

PEIRCE, Charles Sandrs. Semiótica; [trad. José Teixeira Coelho Netto]. 4 ed. São

Paulo: Perspectiva, 2010. (Estudos; 46 / dirigida por J. Guinsburg).

_______. Semiótica e Filosofia (trad. e org. de Octanny Silveira da Mora Leonidas

Hegenberg). São Paulo: Cultrix, editora da Universidade de São Paulo: 1975.

SANTAELLA, Lúcia; Nöth, Winfriend. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 4 ed. São

Paulo: Iluminiras, 2005.

________. A Teoria Geral dos Signos. São Paulo. Cengage Learning, 2000.

________. O que é Semiótica. São Paulo: Ática, 1983.

________. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004

________. A Assinatura das Coisas. Peirce e a Literatura. Rio de janeiro: Imago, 1992.

________. Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonoro, visual, verbal; aplicações na

hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 2001.

________. O Método Anticartesiano de C. S. Peirce. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.

NÖTH, Winfriend. Panorama da Semiótica: de Platão a Pierce. 3 ed. São Paulo:

Annablume, 2003.

SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfriend. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 2 ed.

São Paulo: Iluminuras, 1999.

FERRAZ JÚNIOR, Expedito. Semiótica Aplicada à Linguagem Literária. – João

Pessoa: Editora da UFPB, 2012.

Page 401: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1179

_______. A Leitura do texto literário: Uma Abordagem Semiótica. In: Signo. Santa

Cruz do Sul, v. 37 n. 62, p. 65-81. Jan – jun., 2012.

_______. O conceito peirceano de metáfora e suas interpretações: limites do

verbocentrismo. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em:

http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es. Editores Responsáveis: Francisco E. S. Merçon

e Mariana Luz P. de Barros. Volume 7, Número 2, São Paulo, novembro de 2011, p.

70–78. Acesso em 07/03/2015.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina; e Outros poemas. Rio de

Janeiro: Objetiva, 2007.

Mini Larousse dicionário da língua portuguesa / coordenação DIEGO RODRIGO e

FERNANDO NUNO. 2. Ed. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.

Page 402: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1180

A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O

DISCURSO PEDAGÓGICO DO PROFESSOR: UMA AULA

MAGNA DE ARIANO SUASSUNA [Voltar para Sumário]

Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)

1 Considerações iniciais

No que se refere ao ensino de língua portuguesa em se tratando das questões de

linguagem é imprescindível que a discursividade linguageira se sobressaia sobre o

ensino das formas linguísticas. Dessa forma interligada à concepção de linguagem, a

prática do professor de língua portuguesa deve ser baseada natríade discursiva da teoria

dialógica: o diálogo, a interação e a enunciação, ambos assim contribuindo para a

construção de sentidos.

Ao adotar a visão da linguagem como lugar de interação, a teoria dialógica da

linguagem representada pelos ideais teóricos de Bakhtin e o círculo nos leva a refletir

que a sala de aula é por excelência um lugar privilegiado de interação social e de

construção de conhecimento. Um fator recorrente e importante como motivação para os

estudos sobre linguagem/ensino é que no âmago desses estudos não é enfatizado a

atenção ao discurso pedagógico do professor e este muitas vezes não tem conhecimento

de tal noção como sendo um mecanismo constitutivo de sua prática para construção de

novos sentidos, aprendizagens e conhecimentos.

O ponto de partida para a constituição do processo interativo do ensino que

compete para instituir estratégias discursivas está no discurso pedagógico.

Considerando-se o caráter dialógico, dialético e ideológico da linguagem é possível

questionar os aspectos didáticos do professor, evidenciando os movimentos

constitutivos da relação sujeito/linguagem que produzem, a partir de tais compreensões,

as múltiplas aprendizagens.

Page 403: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1181

Compreendemos o discurso pedagógico como sendo plural, e não restrito apenas

ao contexto escolar, sob a noção de que se deve ter na linguagem, como discorrem

Bakhtin/ Volochínov (1981), o fruto das relações do eu com o outro e, portanto, o outro

exercendo papel fundamental nesse processo.

Entendemos a discursividade como característica essencial para compreensão da

concepção de linguagem proposta por Bakhtin e o Círculo, trazemos como

procedimento metodológico o estudo da pesquisa bibliográfica da teoria de alguns

autores que consideramos relevantes em abordar os conceitos e concepções tratados ao

longo deste trabalho. São eles: Bakhtin (1979), Bakhtin/Volochínov (1981), Sobral

(2009), Fiorin( 2006) entre outros, bem como o autor-chave do nosso corpusde estudo,

Suassuna (2007).

Ainda que não perceba, o professor norteia sua prática em sala de aula, mediante

o uso de uma concepção de linguagem que pode valorizar as questões discursivas

envolvendo leitura, escrita e oralidade quanto às questões puramente linguísticas. Assim

torna-se exequível um processo de ensino e aprendizagem que compreenda a

possibilidade da relação sujeito/sujeitos, em que esses possam interagir proporcionando

novos espaços de significações.

2 Reflexões teóricas

A linguagem assume sua essencialidade no contexto educacional,

proporcionando aos sujeitos historicamente construídos, professor/aluno, habilidades e

competências que resultam na ação de atribuir significados às discussões, práticas e

formações no ambiente, por excelência interativo, que é a sala de aula. Desse modo, a

aprendizagem é tida como a internalização das interações realizadas no plano social,

sendo as interações compreendidas em seus discursos peculiares e contraditórios.

Como bem se observa, a marca de um processo de interação entre sujeitos é a

determinação do diálogo, dado que a palavra comporta duas faces, ou seja, parte de

alguém e procede, destina-se a outro alguém. Ao considerar que as condições de

enunciação arquitetam e concebem o sentido do enunciado, entende-se que este sentido

distribui-se em vozes que povoam o tecido da linguagem.

Page 404: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1182

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das

formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-

se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas

como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda

comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,

1981 p.123)

Como resultante da relação com o outro a linguagem se constitui como produto

social. Sobre a definição do diálogo é preciso compreender que definir linguagem como

interação requer necessariamente a observação de que a verdadeira substância da língua

não reside num sistema único e objetivo nem é recuperada pelo individualismo,

fundamenta-se a enunciação como “o produto da interação de dois indivíduos

socialmente organizados” BAKHTIN/VOLOCHÍNOV (1981 p.112), é um fenômeno

social, portanto fora do contexto sócio-ideológico ela não existe.

O princípio dialógico é eleito por Bakhtin como sendo seu objeto de estudo.

Ainda segundo Bakhtin (1963) a vida é dialógica por natureza, viver significa participar

de um diálogo. Tal princípio é característica imprescindível da linguagem permitindo-

nos observar esta, como lugar de retomada do sujeito histórico, social e discursivo; e

entendendo-a como lugar de interação. Trazendo junto a essa temática a noção do

enunciado, e compreendendo-o como sendo produzido de alguém para alguém, resume-

se que o discurso não é apontado como fala ímpar, singular e individual, mas pautado

nas relações dialógicas que são compostas por vozes que perpassam as enunciações.

Assim como descrição maior do conceito de dialogismo apreende-se a reflexão de que:

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto

dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites).

Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos

passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por

todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de

desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo. (BAKHTIN, 2003, p.410)

Adotando esta visão de que o diálogo é inconcluso, infinito e infindável em que

os sentidos não se delimitam e nem acabam, denota-se a ele as características de

pluralidade, multiplicidade, e recriação de sentidos. Alguns estudos em torno da obra de

Bakhtin, arespeito do dialogismo, escolhem por dividi-lo sob duas formas: a primeiro

embasado na fundamentação da linguagem que é a interação, adotando o diálogo entre

interlocutores e o segundo fundamentado na noção de vozes constituintes do discurso,

ou seja, que baseia-se na polifonia determinada das relações entre discursos.

Page 405: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1183

Entendemos que o discurso pedagógico está articulado junto à escola, e que

todas as vozes dos que compõem a escola devem ser ouvidas. Cabe ao professor o papel

de fundamental importância: propiciar a interação na sala de aula, com resgates e

diálogos entre os sujeitos historicamente sociais.

O termo discurso carrega consigo pluralidade, o que o faz ocupar lugares e

posições nos estudos científicos, literários e linguísticos. Seus sentidos são produzidos,

significados, contextualizados consoante a provocação do enunciador. Bakhtin (2003)

concebe o discurso como um fato concreto, muito complexo e multifacetado,

notabilizado pela interação entre o eu e o outro, uma vez que linguagem e sujeito, em

um processo de análise, são inseparáveis.

Dessa forma é que o discurso sempre é levado dialogicamente ao discurso do

outro. Contudo, consideramos o discurso como sendo resultante das relações sociais,

linguísticas, ideológicos e culturais definido na interação, construído por vozes e pela

incompletude, e sua face interpretativa varia de acordo com as posições dos sujeitos

sociais que interpelam esses discursos. O discurso pedagógico, segundo Freitas e

Sampaio (2013) é aquele que se usa para provocar os processos de ensino e

aprendizagem. Vemos que neste discurso o tema da educação é abrangente e suscita

diversas reflexões sobre conceitos e práticas.

Sendo o discurso pedagógico não restrito apenas a disciplinas e a escola, não se

pode declarar que este é um retrato da realidade sem antes considerar a pluralidade que

lhe deveria ser atribuído. Assim, situamos o discurso pedagógico como um instrumento

que suscita sentidos quando propomos relações entre ideologias e práticas em sala de

aula. Antecedendo o estudo do gênero, entender a linguagem como esfera maior no

movimento de análise e reflexão é essencial.

Antecedendo o estudo do gênero, o entendimento da linguagem como esfera

maior no movimento de análise e reflexão é essencial, posteriormente, denotar

importância a contextualização do discurso pedagógico vem como fator determinante

para a compreensão do que se constituíra como nosso corpus base de pesquisa, a Aula

Magna (2007) de Ariano Suassuna.

3 Contextualização e proposta de análise

Page 406: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1184

Grande ícone da cultura e literatura brasileira nordestina, dramaturgo, poeta e

romancista, Ariano Suassuna

Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João

Pessoa (PB), em 16 de junho de 1927 e faleceu em 23 de julho de 2014 aos

oitenta e sete anos, filho de Cássia Villar e João Suassuna. A partir de 1942

passou a viver no Recife, onde terminou, em 1945, os estudos secundários no

Ginásio Pernambucano e no Colégio Osvaldo Cruz. No ano seguinte iniciou a

Faculdade de Direito, onde conheceu Hermilo Borba Filho. E, junto com ele,

fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Era o sexto ocupante da

Cadeira nº 32 da Academia Brasileira de Letras. Eleito em 3 de agosto de

1989, na sucessão de Genolino Amado e recebido em 9 de agosto de 1990

pelo Acadêmico Marcos Vinicios Vilaça.( Academia Brasileira de Letras)

O grande Ariano Suassuna sempre concebeu um ideal de luta e reflexões sobre a

educação brasileira e sobre a cultura popular, que é nosso patrimônio imaterial.

Dramaturgo de várias criações trazia em seu universo uma representação do Movimento

Armorial1 que exaltava a união da erudição através da cultura popular nordestina com

aluta pela valorização da identidade cultural nordestina.

Sob a influência da cultura oral, elemento constante na maioria de suas obras,

Ariano Suassuna, sempre se expressou através de suas aulas-espetáculos, colocando-se

como professor, escritor, artista, dramaturgo, teatrólogo e romancista.

Em suas várias Aulas Magnas, Ariano Suassuna deleitou-se em memórias e

habilidades em diferentes vertentes da arte, seja na escrita refletindo a oralidade, seja no

teatro respaldando críticas e sentidos.

Abordando minimamente alguns conceitos bakhtinianos, construímos nossa

proposta de análise relacionando o estudo de uma conferência que se encerra sob o

gênero discursivo conferência, a Aula Magna (2007), juntamente com a valorização do

discurso pedagógico do professor, aqui representado pelas ideias e proposições de

Ariano Suassuna que proferiu tal conferência.

Os conceitos desenvolvidos anteriormente embasam análises e observações

sobre os discursos realizados em forma de textos, e sabendo-se que a compreensão é

uma forma de diálogo assim como afirmam Bakhtin/ Volochínov (1981), observamos

1O Movimento Armorial, fundado em 18 de outubro de 1970 se alinha com os demais movimentos

artísticos brasileiros pela busca de uma arte erudita que plasme a nossa identidade cultural.Fonte:

http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/24/sertao-fantasioso-e-colorido-foi-maior-

contribuicao-de-suassuna-as-letras.htm Acesso em 24/07/2014

Page 407: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1185

que interligado ao entendimento dos modos sociais de fazer está o aprendizado dos

modos sociais do dizer,assim realizados em gêneros discursivos.

No movimento de análise, sob a contextualização do discurso pedagógico, a

constituição do fazer pedagógico dialógico a partir da Aula Magna de Ariano Suassuna

se dá pelas formas em posições que este autor assume ao proferir sua conferência. O

professor deve eleger o caráter da discursividade como elemento chave para

estruturação de suas aulas, deve entender a educação sob o caráter discursivo que vai

além dos horizontes dados pelas teorias e como tal, deve saber articular, assim como

Ariano Suassuna em sua conferência, saberes e relações sociais. Não deve eleger

categorias mecânicas para entender os textos. Deve, contudo, conceber formas de

propagar o aspecto dialógico da linguagem. Ele precisa considerar asformas de visão

sobre o mundo, trazerconsigoo diálogo e a interação,validando e valorando seu discurso

pedagógico.

Sob a contextualização do gênero conferência, refletimos inicialmente os ideiais

de Bakhtin (2010) em Para uma filosofia do ato responsável. Ele constrói a noção de

arquitetônica como norte para as análises de objetos verbo-visuais. Sobre essa noção

compreende-se que uma sequência de análise deve identificar objetos e sentidos

constitutivos.

Relacionando estrutura e conteúdo, entendemos que os gêneros discursivos

significam e se constroem em sentidos quando o leitor entende o contexto de produção

de determinado gênero. Para a orientação de análises teórico-metodológicas, à luz da

teoria bakhtiniana, recortamos aspectos gerais para análise de enunciados e criamos uma

espécie de esquema analítico para os gêneros discursivos em geral:

Page 408: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1186

Fonte e organização: Janielly Santos (02/07/2014)

Sobre o aspecto da caracterização, remetemo-nos a teoria do gênero proposta por

Bakhtin, através de três pontos caracterizadores do gênero: a estrutura composicional, o

conteúdo temático e o estilo. Sobre a contextualização reportamo-nos a situar o gênero

estudado conforme a esfera discursiva (elemento situacional maior), o discurso

específico em que o gênero está situado, (pedagógico, religioso, político, etc.) e a

determinação do gênero discursivo a ser analisado. A respeito do propósito enunciativo

sugerem-se as análises de elementos construtores do sentido do gênero, através da

observação das situações de interação, da localização do horizonte enunciativo e

explicitação de alguns elementos linguísticos e semânticos que colaboram para

construção dos enunciados. Por último, propomos a análise das relações enunciativas,

tal processo demarca e caracteriza a abordagem dialógica do gênero através

movimentos dialógicos presentes no gênero estudado.

Para iniciar o movimento de análise da conferência Aula Magna (2007) neste

artigo, é preciso ressaltar que traremos aqui apenas um recorte, isso porque tais análises

corroboraram em longas reflexões e delimitações a respeito da estrutura e constituição

de um gênero discursivo

Trazemos a caracterização como primeiro elemento analítico. A estrutura

composicional que é demarcada por: abertura, exposição temática e encerramento no

próprio texto. O conteúdo temático que o autor sempre traz em suas obras e em suas

aulas-espetáculo é reflexivo e comumente refere-se à cultura nordestina brasileira

revelada em sua arte e artistas. O estilo consagrado como sendo motivador é o traço

Page 409: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1187

diferencial de Ariano Suassuna com relação a outros autores que discorrem sobre a

identidade cultural e a formação brasileira através da literatura. Os elementos

linguísticos selecionados pelo autor permitem-nos a observar a linguagem de um “Dom-

Quixote contemporâneo”, que utiliza sua língua para defender, criticar, enfrentar

dilemas e expor suas opiniões.

Sobre a contextualização da análise, delimitada na esfera Acadêmica, a

conferência foi realizada em um auditório na UFPB em comemoração a inauguração do

Fórum Acadêmico desta mesma instituição em 1992. Sob o gênero discursivo

conferência, observa-se que a estrutura deste gênero, se adéqua de acordo com o seu

desenvolvimento às estruturas previamente planejadas ou de caráter livre, conforme o

conferencista, em outras palavras, a estrutura existe como norte para realização de uma

conferência, o que não significa que esta, não possa seguir outra forma de organização.

A aula selecionada situa-se no discurso acadêmico, tem características pedagógico-

educacionais que contribuem direta ou indiretamente com o processo de ensino e

aprendizagem de determinado tema.

A Aula Magna em questão, por ser uma das primeiras conferências realizadas

por Ariano Suassuna, traz à superfície diferentes materialidades linguísticas, históricas e

ideológicas no que respeita à temática universal adotada pelo autor em toda a sua

bagagem de produção artístico-literária: a exaltação do Nordeste elevando elementos

culturais considerados eruditos frente à cultura nacional elitista.

Na análise o denominado propósito enunciativo, que expõe no primeiro

momento uma análise das situações sociais e das esferas de interação, destaca na Aula

Magna as situações sociais, os tipos de interação que acontecem no decorrer do texto, os

horizontes enunciativos e as materialidades linguísticas que constituem o estilo

empregado pelo autor. Dessa forma categoricamente vemos que em geral o propósito

enunciativo do autor é falar sobre o “problema da cultura brasileira” Suassuna (2007, p.

21).

Os valores exaltados no discurso de Ariano Suassuna remontam uma sociedade

de cultura, que reage ao material e valorizam a história. Esse autor traz realidades

imagéticas dos espaços que levam o seu auditório e seu leitor a refletirem a respeito da

valorização e sobreposição de um olhar diferenciado sobre a criação popular.

Page 410: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1188

As materialidades linguístico semânticas da aula em estudo são determinadas a

partir da observação daquilo que é recorrente no gênero discursivo, na linguagem do

autor, como sendo mais estável e visível estruturalmente no movimento de análise.

Reportando-se a outros discursos (orais e imagéticos), o autor nos leva a refletir a

respeito da orientação dialógica do discurso refletida na noção de um interdiscurso.

Finalizando, conforme o esquema desenvolvido, denominamos o movimento de

análise de relações enunciativas. Os enunciados do autor são essencialmente dialógicos

em que a situação social de interação e a compreensão por parte dos interlocutores

definem o sentido do discurso.

Considerações Finais

Para que o processo de ensino aprendizagem de Língua Portuguesa se concretize

é necessário que ambos os sujeitos envolvidos neste processo assumam posições

ideológicas e de responsividade na construção do conhecimento. O ensino e

aprendizagem de Língua Portuguesa embasados na interação implicam primeiramente,

no ato de entender a língua situando o seu uso concreto nas interações, resultando em

enunciados que se adéquam a diversos contextos sociais através das enunciações. A

saber, que outra forma de uso é entender a língua sob suas características estruturais.

O que se observa em sala de aula é o papel marcado do aluno e do professor e o

diálogo em igualdade não acontece entre o professor e o aluno, em que o segundo

aprende se puder, esquecendo que a sala de aula é um contexto social propício para as

trocas entre sujeitos (eu/tu). Assim, o entendimento da concepção dialógica da

linguagem relacionando diálogo e interação entre os sujeitos escolares é o próprio

princípio constitutivo do social e da vida.

A prática do professor de Língua Portuguesa deve ser ressiginificada,

possibilitando responsividade aos alunos/sujeitos. Entendendo a linguagem como

mecanismo fundamentador de sua prática o professor deve modificar o processo de

ensino e aprendizagem da língua para que este proporcione a interação dialógica como

elemento infinito de possibilidades revelando novas formas de significar a Língua

Portuguesa.

Page 411: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1189

A Aula Magna de Ariano Suassuna (2007) serviu como pontapé para o

entendimento de que o professor mantém uma relação de interação com a palavra, não

se apropria nem a torna individual, nem a entrega totalmente ao seu falante. Ariano

suscita, para o professor de Língua Portuguesa, a noção de que se deve repensar o

ensino de língua a partir de uma visão que considere a linguagem e suas diferentes

possibilidades de uso, em outros contextos, gêneros e em outras línguas, sendo este

ensino bastante claro a respeito dos objetos de comunicação discursiva, escolhas

linguísticase dos processos de produções de gêneros.

Referências

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Rio de Janeiro. Disponível em:

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13527&sid=305

Acesso: 20/07/2014.

BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V. N. (1981) Marxismo e Filosofia da

Linguagem:Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 2.

Ed. São Paulo: Hucitec, 1981

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2003.

________. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores,

2010.

FREITAS. L, C.A; SAMPAIO. M.L.P.Discurso pedagógico: tecendo interação e

conhecimentos.UERN.1-11. Disponível em:

http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Lingua

_Portuguesa/artigo/Artigo_luzinete.pdfAcesso em: 15/07/2014

Page 412: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1190

PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO

DA ESCRITA NUMA PERSPECTIVA PROCESSUAL 1

[Voltar para Sumário]

Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)

Introdução

Há tempos que o ensino da Língua Portuguesa como língua materna vem sendo

foco de estudos e discussões, principalmente quando se almeja alcançar objetivos

constitutivos da educação do país: “Toda educação comprometida com o exercício da

cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência

discursiva” (BRASIL, 2001, p. 23).

Portanto, ao lecionar aulas de Português o objetivo de ensino e as práticas

pedagógicas desenvolvidas são inevitavelmente postos em discussão, principalmente,

por se observar que muitos dos alunos chegam à etapa final de sua formação básica e

não se tem consolidada a sua competência comunicativa, ou seja, demonstram domínio

precário quanto ao ato de ler, compreender e produzir textos.

Inserido numa sociedade extremamente competitiva e tecnológica, o indivíduo

dispõe da língua(gem) como importante ferramenta para ser ouvido, agir e interagir

nesse meio. Portanto, saber produzir e compreender bons textos não se configura apenas

numa necessidade de formação acadêmica do indivíduo, mas sim, de um importante

componente de condição de inserção social e, consequentemente, de cidadania, como

afirma Soares (2013):

[...] Em síntese: não há, em sociedades grafocêntricas, possibilidade de

cidadania sem o amplo acesso de todos à leitura e à escrita, quer em seu papel

funcional ─ como instrumentos imprescindíveis à vida social, política e

profissional ─ quer em seu uso cultural ─ como forma de prazer e de lazer.

[...] Justifica-se, assim, a afirmação de que a alfabetização é um instrumento

1 As reflexões aqui apresentadas integram a pesquisa “Projetos de letramento: implicações para o

aprimoramento da competência comunicativa do aluno (9º ano / ensino fundamental)” cuja geração de

dados ocorreu no período de abril a dezembro de 2014.

Page 413: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1191

na luta pela conquista da cidadania, e é fator imprescindível, filiando-se ao

exercício da cidadania (SOARES, 2013, p. 58-59).

Sendo assim, o ensino da Língua Materna (LM) deve propiciar ao sujeito

atividades significativas que, de fato, possam desenvolver as competências e habilidades

necessárias do indivíduo para o uso efetivo e satisfatório da língua frente às suas

necessidades em diferentes contextos de comunicação.

Para Travaglia (2001) o ensino da língua materna justifica-se pelo

desenvolvimento da competência comunicativa dos usuários da língua e que esta

competência, por sua vez, envolve duas outras: a gramatical e a textual2. Ambas,

extremamente necessárias ao desenvolvimento comunicativo do indivíduo.

Nessa perspectiva, compete à escola e aos professores – não apenas os de Língua

Portuguesa (LP) − buscar meios, estratégias e, principalmente, aportes teóricos que

sustentem e orientem a prática pedagógica, a fim de se atingir metas relevantes no

contexto educacional, dentre elas, auxiliar os alunos nessa dificuldade de produção e

compreensão de bons textos.

Portanto, frente a essa discussão, o presente estudo se propôs a investigar o

desenvolvimento da prática processual da escrita em sala de aula a fim de analisar

algumas de suas implicações na competência comunicativa dos alunos.

2 Abordagem teórica-metodológica

Em termos metodológicos, esta é uma investigação qualitativa, uma vez que sua

produção se deu pela inserção do pesquisador no ambiente de pesquisa, com dados

coletados através de produção de textos, de fotos e gravação de vídeo [chamadas].

Quanto a essa abordagem de pesquisa, Moreira; Calleffe (2006) diz que a investigação

explora verbalmente as características dos indivíduos e cenários, cujos dados são

coletados através de observações, descrições e gravações e não podem ser descritos

numericamente.

Contudo, a primeira ação realizada foi a leitura bibliográfica dos fundamentos

teóricos quanto à escrita processual e colaborativa e os estudos de Letramento, com

2 A gramatical ou linguística refere-se à capacidade de gerar sequências linguísticas gramaticais. Já a

textual configura-se na capacidade do indivíduo de produzir e compreender textos nas mais diversas

situações de comunicação.

Page 414: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1192

ênfase nas práticas pedagógicas no ensino da Língua Portuguesa. Em seguida, após as

discussões e trabalho desenvolvido com o tema corrupção, aplicou-se a atividade de

produção do gênero chamada, destacando sua funcionalidade e relevância social.

Por fim, efetivou-se a análise dos dados, tomando-se por base o seguinte

referencial teórico OLIVEIRA, TINOCO, SANTOS (2011), no qual explicita objetivos

claros quanto à escrita nos âmbitos de um Projeto de Letramento; PAZ (2010) à luz de

Hayes e Flower (1980;1986); PASSARELLI (2004) com as etapas que compõem o

processo de construção da escrita e o feedback colaborativo proposto por SOARES

(2009) entre aluno e professor e entre aluno e aluno. Além disso, traz como teórico

central na discussão de gêneros BAKHTIN ([1992] 2011).

Dessa forma, buscou-se construir um corpus para análise com o objetivo de

descrever as etapas da produção textual, levando em consideração a formulação

sequencial do texto, a participação dos envolvidos e a contribuição desta prática na

construção da competência comunicativa dos alunos participantes desta pesquisa. Além

de propiciar aos estudantes a oportunidade de melhoria na escrita e uma aprendizagem

mais significativa e reflexiva quanto ao uso da Língua Portuguesa3.

O grupo de colaboradores envolvidos nesta pesquisa trata-se de uma turma de 9º

ano, de uma escola da rede pública estadual, situada no município de Currais Novos /

RN, composta por 28 alunos, na faixa etária de 13 a 15 anos.

Quanto ao campo de pesquisa, esta ação não ocorreu apenas no contexto de sala

de aula, os alunos efetivaram atividades em outras esferas sociais e vivenciaram

diferentes contextos de interação comunicativa, evidenciando práticas de letramento

significativas a sua formação comunicativa.

3 Os estudos de letramento e o ensino dos gêneros na escola

Ao enfatizar que o ensino da Língua Portuguesa (LP) deva ser mais significativo

está se fazendo jus ao contexto social contemporâneo em que se vive, pois a sociedade

encontra-se cada vez mais grafocêntrica e tecnológica e dificilmente encontrar-se-á um

espaço em que a linguagem, seja ela verbal ou não verbal, bem como as próprias mídias,

3 Esse momento constitui-se, também, em uma excelente oportunidade de se enfatizar além da função

social da escrita, o ensino sistematizado da oralidade, uma vez que todos iriam participar da gravação dos

textos em uma rede de TV a cabo local.

Page 415: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1193

não estejam presentes. Portanto, não é mais eficaz estudar a língua e os seus aspectos

formais sem qualquer contextualização, ou o texto dissociado de sua função.

Sendo assim, para que o ensino “acompanhe” esta realidade e não fique

desprovido de significado é necessário destacar o aspecto social da escrita, priorizando

o letramento do indivíduo4.

Contudo, coube a escola o espaço designado e mais apropriado para que o

indivíduo possa vivenciar diferentes práticas de linguagens, uma vez que essa tem como

objeto de ensino os gêneros discursivos, como afirma Lorenzi; Pádua (2012):

O conceito de letramento abre o horizonte para compreender os contextos

sociais e sua relação com as práticas escolares, possibilitando investigar a

relação entre práticas não escolares e o aprendizado da leitura/escrita. Se este

é um fenômeno social, devemos trazer para o espaço escolar os usos sociais

da escrita e considerar que a vivência e a participação em atos de letramento

podem alterar as condições de alfabetização (LORENZI; PÁDUA, 2012, p.

36).

No entanto, há um desdobramento no ensino dos gêneros nas escolas, ou seja, os

gêneros passam a ser não apenas instrumento de comunicação, mas também objeto de

ensino e aprendizagem. Em outras palavras, ocorre a didatização no ensino dos gêneros

quase que esvaziando sua principal função que é a mais autêntica da língua ─ a

interação entre os falantes, como ressalta Schneuwly; Dolz ([1997]1999):

[...] há um desdobramento que se opera, em que o gênero não é mais

instrumento de comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto

de ensino/aprendizagem (SCHNEUWLY; DOLZ, [1997]1999, p. 7).

No desdobramento mencionado, é produzida uma inversão em que a

comunicação desaparece quase totalmente em prol da objetivação e o

gênero torna-se uma pura forma linguística cujo objetivo é seu

domínio (SCHNEUWLY; DOLZ, [1997]1999, p. 8).

Nota-se, portanto, que essa prática escolar não contempla totalmente as

especificidades do texto e nem satisfatoriamente a significação do ensino da LP. O

propósito real e a funcionalidade do texto se escoam seja devido à simulação de uso que

ocorre no contexto escolar, ou a demasiada valorização que é dada apenas aos seus

aspectos composicionais.

4 Nesse sentido, evidencia-se o tão importante que são os estudos de Letramentos na formação e na

prática docente.

Page 416: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1194

Segundo Oliveira; Tinoco; Santos (2011) em um Projeto de Letramento a

aprendizagem é situada, ou seja, “ocorre numa atividade, na qual contexto e cultura são

específicos, realizando-se na interação, num processo de coparticipação” (OLIVEIRA;

TINOCO; SANTOS, 2011, p. 50). Portanto, nesse contexto de ensino e aprendizagem,

não deve haver simulação de interação comunicativa na construção do gênero. Os

alunos escrevem não para serem apenas avaliados, eles escrevem para um destinatário

real e com propósitos específicos, pois escrevem sob a perspectiva do uso social da

escrita. Quanto à explicação sobre esse tipo de projeto, Kleiman (2001) em discussão

sobre o ensino da escrita e consequentemente de texto, define Projeto de Letramento

como:

[...] uma prática social em que a escrita é utilizada para atingir algum outro

fim, que vai além da mera aprendizagem da escrita (a aprendizagem dos

aspectos formais apenas), transformando objetivos circulares como “escrever

para aprender a escrever” e “ler para aprender a ler” em ler e escrever para

compreender e aprender aquilo que for relevante para o desenvolvimento e

realização do projeto (KLEIMAN, 2001, p. 238).

Cumpre ressaltar que, nos Projetos de Letramento, o estudo de um determinado

gênero emerge de uma necessidade do desenvolvimento das atividades do projeto e dos

participantes-agentes dele, ou seja, os gêneros estudados não são preestabelecidos e

escolhidos pelo professor, eles surgem à medida que as atividades são desenvolvidas e

sob a sugestão de todos os participantes5.

4 A prática da escrita processual

Indiscutivelmente, escrever não é tarefa simples, requer do escritor/produtor

esforço e competência textual, no entanto, a ideia de que a escrita seja um dom de

poucos, já foi destituída há algum tempo e enfatizar a produção de texto como um ato

processual é, no momento, a metodologia mais apropriada para o desenvolvimento da

competência textual dos educandos.

Alguns estudiosos da língua se dedicaram ao processo de investigação da prática

escrita do indivíduo, dentre eles, pode-se citar, Edwards e Malloy (1992), Calkins

5 O que justifica o estudo desse gênero foi o convite feito pela repórter ao visitar e exibir aos

telespectadores da emissora local outra atividade deste mesmo projeto.

Page 417: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1195

(1989), Serafini (1991) e Hayes e Flower (1980), todos especialistas e defensores da

prática da escrita como um processo.

Segundo Paz (2010) o modelo mais tradicional é aquele apresentado por Hayes e

Flower (1980), construído “por análise de protocolos verbais de sujeitos com

proficiência na escrita” (PAZ 2010, p. 151). Segundo a autora, a proposta contempla

como etapas no processo de construção de um texto: o planejamento, a tradução e a

revisão, o que seria posteriormente, em 1986, retomado pelos autores e, a partir de

então, considerariam como fases e componentes básicos do processo de construção da

escrita o planejamento, a geração de frases e a revisão. Etapas essas permeadas por

outro elemento, chamado de monitor. Ele é quem controla o fluxo da produção e

reescrita do texto.

Vale ressaltar que essas etapas são flexíveis, ocorrem de maneira não linear e

cada etapa pode interromper no processo de produção da escrita, uma vez que o escritor

pode fazer diversas alterações, caso julgue necessário para a construção de um bom

texto, constituindo, assim, em um processo interativo.

Semelhante a essa abordagem, Passarelli (2004), partindo de alguns estudos

sobre a escrita processual, inclusive os estudos de Hayes e Flower (1980), também tece

reflexões acerca da escrita processual, mas observando a prática de ensino e

aprendizagem no contexto escolar. Dessa forma, propõe um roteiro de ensino acerca da

produção textual constituído em quatro etapas: planejamento, tradução das ideias,

revisão e editoração.

A primeira, que corresponde à fase de planejamento, seja ele escrito ou mental,

o autor busca as informações, as organizam e traceja algumas linhas, mesmo de cunho

provisório. No entanto, segundo a autora, essa fase é pouco utilizada pelos estudantes,

pois, o mais comum nas aulas de produção textual é iniciarem a redação logo que

recebem o tema, ou esperam alguma inspiração vinda não se sabe de onde. Planejar o

que vai escrever pode parecer para alguns, perca de tempo, mas Passarelli (2004)

enfatiza justamente o contrário:

Planejar, todavia, é justamente o contrário, pois fornece meios de economizar

e distribuir o tempo disponível, diz Serafini (1991:3). No caso da escola, esse

aspecto é de absoluta pertinência, já que distribuir o tempo é fundamental

para se escrever dentro do prazo de que se dispõe. (PASSARELLI, 2004, p.

90).

Page 418: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1196

Portanto, fazer planos sobre o que se propõe a escrever não é uma fase da escrita

bem explorada no contexto de sala de aula. Precisa-se mostrar aos estudantes a

importância dessa etapa na construção do texto e, por conseguinte, no desenvolvimento

de sua competência comunicativa.

A segunda etapa configura-se no “momento em que se começa a escrever o

primeiro esboço, o trabalho está apenas no início” (PASSARELLI, 2004, p. 92). Neste

momento, as ideias organizadas na etapa anterior se convergem na escrita, o texto é

provisório e sofrerá futuras modificações pela etapa seguinte: a revisão.

Na revisão, o propósito é averiguar se as ideias foram expressas de maneira

clara, coesa e organizadas. Segundo a autora, esta etapa, apesar de suma importância, é

pouco praticada na escola, os alunos não a apreciam, ocorre pouca leitura nos rascunhos

dos textos, faz-se poucas correções e o texto final pouco se difere dos rascunhos. Isso

quando há a preocupação de se rascunhar.

Na última etapa do roteiro proposto por Passarelli (2004) refere-se à editoração,

na qual requer alguns cuidados do escrito haja vista o caráter público, mesmo que

relativo, que o texto adquire. Para a autora, nessa etapa ocorre outra revisão e propõe

como estratégia um intervalo entre essas etapas ─ revisão e editoração ─ para que o

produtor possa ser mais crítico ao reler o que escreveu.

Na escola, Passarelli (2004) sugere que o professor possibilite a socialização

desse produto final com outros leitores, para que esta etapa não se resuma apenas na

tarefa de passar a limpo e atribuir nota. Além disso, enfatiza a importância de se

apresentar o objetivo da tarefa aos alunos, para que possa conscientizá-los quanto à

prática da escrita e, por conseguinte, desenvolver o ponto de vista crítico do alunado.

Ao final do roteiro, a autora discorre também acerca de um componente presente em

todas as etapas: o guardião do texto. Quanto a isso, a autora propõe:

[...] a primeira observação a ser feita aos estudantes recairia em mostrar-lhes

que uma espécie de noção intuitiva perpassa todo o processo de escritura.

Como se fosse um elemento de “vigilância” que opera durante todo o

processamento do texto, trata-se de um componente que está em constante

estado de alerta, dando um acompanhamento permanente de controle para

verificar todos os aspectos e ângulos do que está sendo produzido, ou seja, se

as condições da produção estão sendo satisfatórias. Esse componente serve

para orientar o produtor-escritor, para a manutenção de metas daquilo que ele

propôs a escrever (PASSARELLI, 2004, p. 100).

Page 419: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1197

Nessa perspectiva, o aluno deve estar bem informado quanto às características de

cada etapa, que as angústias e anseios que ocorrem durante o processo lhes são inerentes

e que tais dificuldades são comuns a todos que se dispõem a executar a tarefa de

escrever. Isso ajuda a conscientizá-los de que escrever não depende de um dom

sobrenatural pertencente a alguns, mas depende da disposição que se dá ao processo.

Vale ressaltar que, todos os autores que se dedicam a estudar o processo da

construção da escrita enfatizam bastante a questão da motivação de escrever. É “a partir

da motivação, espontânea ou imposta, para criar um texto, o escritor inicia seu percurso

da produção textual formando uma representação mental do(s) aspecto(s) dos

fatos/realidade a que quer se referir” (MEURER, 1997, p. 19 apud PAZ, 2010, p. 154).

5 A construção e análise dos dados

A produção do gênero chamada neste estudo, não foi imposta pela professora,

nem muito menos sugerida por um livro didático. Ela surgiu do desenvolvimento de

atividades realizadas decorrentes de um Projeto de Letramento na referida sala de aula6.

Segundo o verbete do dicionário, chamada configura-se “[...] 6. Jorn. Texto

curto, publicado na primeira página, que resume as informações publicadas em outra

página do jornal. [...] 8. Pop. Censura, advertência, pito” (RIOS, 2001, p. 149). Em

miúdos, são textos curtos, em que se objetiva uma mensagem de conscientização aos

telespectadores. Logo, a tarefa dos alunos seria de produzir esses textos em sala de aula

e depois retornarem para gravarem na emissora local.

Movidos pela possibilidade de poder participar de uma emissora a cabo do

município e pela experiência de vivenciar uma atividade diferente das que normalmente

são realizadas em sala de aula os alunos iniciaram a produção dos textos através do

planejamento.

Primeiramente, de maneira colaborativa, foi feito um esboço de como iniciar o

texto, criando-se algumas linhas iniciais, frases incompletas, que seriam posteriormente

preenchidas pelas ideias e aprendizagem de cada um:

6 Anteriormente a essa produção, outras atividades foram precedentes e decisivas. Uma palestra realizada

na escola suscitou aos colaboradores um convite para assistirem ao filme de curta metragem na sede do

Ministério da Justiça da cidade e, em seguida, gravarem chamadas na emissora local.

Page 420: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1198

Figura 2: brainstorming Ocorreu, portanto, o brainstorming que segundo Soares (2009) corresponde a:

[...] (tempestade mental): atividade em que o sujeito verbaliza, oralmente ou

por escrito, todas as ideias que lhe vêm à mente sobre determinado estímulo,

que pode ser algum tópico, elemento visual, som ou palavra, por um período

de geralmente curto. Esta técnica visa ativar o conhecimento de mundo que o

sujeito tem e prepará-lo para uma atividade pedagógica onde este

conhecimento será utilizado (SOARES, 2009, p. 24).

Os pensamentos gerados pela turma foram organizados em forma de um

esquema, um roteiro de ideias, na qual auxiliaria a todos em suas produções. Em

seguida, os alunos tracejaram algumas linhas na tentativa de formular o texto, como

mostra a imagem abaixo:

Figura 3: Primeiras ideias Nesse momento, o aluno foi “encorajado a escrever de forma despreocupada

sobre um assunto do qual ele tenha o que dizer, cuidando apenas de deixar as ideias

fluírem naturalmente” (SOARES, 2009, p. 30). A preocupação maior era com a

informação e o telespectador e não apenas com as questões formais da língua e nem

com a nota que o professor atribuiria as suas produções7. Em seguida, após as primeiras

ideias surgidas e postas no papel, ocorreu o desenvolvimento do que se havia escrito, ou

seja, a reescrita e o aperfeiçoamento na expressão do texto:

7 Este estudo traz como exemplo a análise da construção de apenas uma das três chamadas produzidas

pelos participantes, no entanto, vale ressaltar que todos os textos foram construídos do mesmo modo e, no

momento da gravação, desmembrou-se em cinco chamadas.

Page 421: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1199

Figura 4: Desenvolvimento das ideias Na figura 3 observa-se não apenas o desenvolvimento das ideias, mas também as

revisões e correções constantes no texto, como postula Paz (2010):

Embora a sequência natural do modelo apresentado por Hayes e Flower

(1980, 1986) englobe vários componentes como planejamento, geração de

frases e avaliação, a ordem em que eles se efetivam é bastante flexível, visto

que tanto a fase de geração quanto a de revisão podem interromper o curso do

processo da escrita, caso o escritor identifique impropriedades e decida

efetuar alterações no texto (PAZ, 2010, p. 152).

Analisando a imagem seguinte, observa-se que o aluno organizou as

informações que julgou mais relevantes e as transformaram em um único texto:

Figura 5: Um único texto Com outra lida e revisão juntamente com a professora e os colegas de classe

chegou-se ao texto satisfatório:

Figura 6: Texto satisfatório Essas imagens mostram a preocupação constante em melhorar o texto, dando

relevância aos aspectos do contexto, tais como: o que dizer, a quem, como, a função do

gênero discursivo, dentre outros. Além disso, percebe-se sua produção processual, na

Page 422: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1200

qual o feedback8 colaborativo entre os alunos e o professor foi fundamental, para se

chegar ao produto final desejado. “As atividades de revisão e pós-escrita, incluem um

período de leitura e avaliação do que se escreveu, e o recebimento do feedback, do

professor e dos colegas, sobre o conteúdo do texto para que o autor possa melhorá-lo”

(SOARES, 2009, p. 24).

6 Considerações finais

Trabalhar com a escrita de forma processual e colaborativa, enfatizando suas

etapas de construção, oferece ao aluno a oportunidade de pensar sobre sua própria

escrita, observar criticamente suas produções, compartilhar dúvidas e capacidades, além

de possibilitar ao estudante um crescimento individual e coletivo, aguçando assim a sua

criticidade.

Além disso, proporciona o estudo dos aspectos gramaticais da língua de maneira

significativa e contextualiza, pois o aluno ao analisar seus próprios desvios apreende a

funcionalidade daquele termo, ao mesmo tempo em que desenvolve sua competência

escritora. Isso se reflete não apenas no campo sintático do texto, mas nos aspectos

semânticos, lexicais, morfológicos, na sua funcionalidade, dentre outros.

Outro aspecto relevante refere-se à responsabilidade do aluno com a

aprendizagem da escrita, pois nessa prática ele se ver também responsável pelo que

produz; ele ler e reler quantas vezes achar necessário se sentindo capaz de realizar tais

mudanças.

Por fim, este estudo proporcionou uma significativa reflexão em torno do uso da

Língua Portuguesa, tanto na oralidade, quanto na escrita, bem como na função social do

gênero discursivo, acarretando em mudanças relevantes na competência textual do

aluno, bem como na prática do professor e atingindo senão o propósito do ensino da

língua materna, mas chegando bem próximo dele.

Em síntese, o ensino da escrita na perspectiva processual e colaborativa exige

tanto do aluno como do professor. É necessário entender que a produção textual envolve

etapas e que refletir sobre sua própria escrita é, no momento, a metodologia mais viável

para o desenvolvimento da competência comunicativa dos educandos. 8 É bom ressaltar que, o termo feedback simboliza a intervenção que se faz nas ideias do texto durante o

processo e não deve ser confundido com correção de erros.

Page 423: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1201

Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. 6ª ed. São Paulo: WMF

Martins Fontes, [1992] 2011.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto

ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental.

Brasília: MEC/SEF, 2001.

KLEIMAN. Ângela. O processo de aculturação pela escrita: ensino da forma ou

aprendizagem da função? In: KLEIMAN, Ângela. SIGNORINI, Inês. [et. al.]. O ensino

e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. 2. ed. rev. Porto Alegre:

Artmed, 2001.

LORENZI, Gislaine Cristina Correr; PÁDUA, Tainá-Rekã Wanderley de. Blog nos ano

iniciais do fundamental I: a reconstrução de sentido de um clássico infantil. In: ROJO,

Roxane; MOURA, Eduardo. (Orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola

Editorial, 2012.

NASCIMENTO-E-SILVA, Daniel. Manual de redação para trabalhos acadêmicos:

position paper, ensaios teóricos, artigos científicos e questões discursivas. São Paulo:

Atlas, 2012.

OLIVEIRA, M. S.; TINOCO, G. A.; SANTOS, I. B. A. Projetos de letramento e

formação de professores de língua materna. 1. ed. Natal: EDUFRN, 2011.

PASSARELLI, Lílian Ghiuro. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico. 4.ed. São

Paulo: Cortez, 2004.

PAZ, Ana Maria de Oliveira. A escrita processual na prática dos registros de ordens e

ocorrências na enfermagem hospitalar. In: SANTOS, Derival dos; GALVÃO, Marise

Adriana Mamede; DIAS, Valdenides Cabral de Araújo. (Orgs.). In: Dizeres díspares:

ensaios de literatura e linguística. João Pessoa: Ideia, 2010.

RIOS, Demerval Ribeiro. Dicionário global da língua portuguesa: ilustrado. São Paulo:

DCL, 2001.

SCHNEUWLY, Bernard. DOLZ, Joaquim. Os gêneros escolares: das práticas de

linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação. Nº11. 1999.

Disponível em:

<http://anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE11/RBDE11_03_BERNARD_E_JOAQUIM.p

df.> Acesso em: 28/12/2014.

SOARES, Doris de Almeida. Produção e revisão textual: um guia para professores de

português e de línguas estrangeiras. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

Page 424: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1202

SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. 6ed. São Paulo: Contexto, 2013.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Objetivos do ensino de língua materna. In: Gramática e

interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 7. ed. São Paulo:

Cortez, 2001.

Page 425: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1203

O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O

DESVELAMENTO NOS POEMAS DE BANDEIRA DE

TEMÁTICA ONÍRICA [Voltar para Sumário]

Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)

Quarenta anos lá vão. De teu moreno

Encanto hoje que resta? O eco pequeno,

Pequeno de teu sonho – um sonho branco!

(Manuel Bandeira)

Com o Surrealismo, movimento de vanguarda do século XX, a atividade onírica

deixou de se restringir, apenas, às elaborações noturnas individuais, para se tornar uma

fonte de pesquisa estética para os artistas. Conscientemente, os surrealistas “inspiraram-

se” na hegemonia da atividade do inconsciente sobre a do consciente na produção dos

sonhos, para adentrar e explorar regiões obscuras da existência humana, como a do

desejo, a da transgressão moral, a da fantasia, entre outras. Por essa razão, André

Breton, nascido em 1896 e morto em 1966 e um dos mentores dessa estética, – em seu

Manifesto surrealista (1985 [1924]) – reconheceu índices de antecipação da atitude

surrealista na relação de Sade com o sadismo; na de Poe com a aventura; na de

Baudelaire com a moral; na de Rimbaud com a vida prática e alhures. Tal constatação

levou Breton a firmar que o pensamento tende a se manifestar em sua plenitude, quando

se processa livre da tirania da razão e dos limites impostos por regras de natureza

estética ou moral (1985 [1924]).

No Brasil, as descobertas da estética surrealista, por sua vez, debitária da

Psicanálise de Freud, parece ter encontrado eco na produção poética do escritor

pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968). No entanto, o que a fatura da produção

poética desse autor comprova é que ele se apropriou de uma maneira muito peculiar das

sugestões do Surrealismo. Comprometido, simultaneamente com a subjetividade, com a

técnica poética e com a comunicação artística, Bandeira viu-se na tarefa de transmutar

os domínios inapreensíveis do mundo íntimo, tão caros ao Surrealismo, num corpo

Page 426: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1204

formal comunicável a outrem, isto é, em poema. Foi, portanto, no interior do organismo

verbal do poema, que Bandeira, sob a “máscara” de uma entidade de papel (o eu-lírico),

empreendeu sutis descobertas sobre a constituição do sentido existencial.

Para empreender essas descobertas, Manuel Bandeira elegeu o sonho (domínio

do inconsciente) como região a ser explorada. Na realidade, ele promoveu a temática

onírica à condição de motivo poético, isto é, a uma “situação [poética] significativa”

(KAISER, 1985, p.59) e digna de ser visitada e revisitada. Entretanto, ele não

desenvolveu essa temática, recorrendo ao mero confessionalismo, mas, pelo contrário,

instaurou – no interior do discurso poético – a imagem de um eu-lírico que mobiliza

seus antigos afetos e luta para ressignificá-los.

Nesse sentido, tal expediente poético da economia dos afetos humanos face aos

conteúdos oníricos aparece na poesia de Manuel, em 1919, com o poema Sonho de uma

terça-feira gorda, do livro Carnaval, editado pelo próprio autor. Vejamos a sua

transcrição:

Sonho de uma terça-feira gorda

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram nossas

[máscaras.

Íamos, por entre a turba, com solenidade,

Bem conscientes do nosso ar lúgubre

Tão contrastado pelo sentimento de felicidade

Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo

Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma espada de fogo...

Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas!

E a impressão em meu sonho era que se estávamos

Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,

- Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso!

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável

Burburinhava. Entre clangores de fanfarra

Passavam préstitos apoteóticos.

Eram alegorias ingênuas ao gosto popular, em cores cruas.

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,

De peitos enormes – Vênus para caixeiros.

Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,

Acotovelava-se com algazarra,

Aclamava-as com alarido

E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,

O ar lúgubre, negros, negros...

Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!

Nem a alegria estava ali, fora de nós.

Page 427: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1205

A alegria estava em nós.

Era dentro de nós que estava a alegria,

- A profunda, a silenciosa alegria...

(BANDEIRA, 1993 [1919], p. 99)

Já pela enunciação do poema, constatamos que o eu-lírico orienta o seu discurso

para o passado. Percebe-se que ele, em estado de vigília, rememora “impressões” de um

sonho sonhado, pretendendo dar-lhe sentido. Em outros termos, evoca reminiscências

de um sonho, por sua vez, imprecisas, para interpretá-las à luz da consciência. Assim, o

poema de Bandeira não toma o sonho apenas como vestígio de um desejo latente, como

preconizava Freud, mas o transforma também em “aurora do sentido” (RICOEUR,

1977, p. 405), isto é, em produção de um novo sentido para a consciência.

Então, Bandeira, ao unir arte e sonho, em seu poema, promove uma dialética

entre o vetor regressivo da produção do sentido humano (hegemônica no sonho) e o

vetor prospectivo – desvelador – (hegemônico na arte), para nos oferecer uma imagem

plena do sentido existencial. Conforme elucida Ricoeur:

Existe, com efeito, um só sonho que não tenha também uma função

exploradora, que não esboce ‘profeticamente’ um caminho de saída para

nossos conflitos? E vice-versa: existe um só grande símbolo, criado pela arte

e pela literatura, que não mergulhe e não volte a mergulhar no arcaísmo dos

conflitos e dos dramas, individuais ou coletivos, da infância? (RICOEUR

apud REALE & ANTISERI, 2006. p. 273-274).

Nesse sentido, se, por um lado, o poema Sonho de uma terça-feira gorda, de

Bandeira, pode ser lido como uma expressão melancólica do eu-lírico face ao tempo que

já passou; por outro, também pode ser recepcionado como a ampliação da consciência

do eu-lírico, já que ele pôde nomear e caracterizar a experiência da “alegria” depois do

trabalho consciente da escrita. E com ela preencher de significados mais precisos e

novos uma falta inominável e descaracterizada. Essa dupla orientação de sentido do

poema situa-o na problemática da existência, já que o existir se funda no desejo e no

esforço por existir. Como ressalta, pois, Ricoeur, “A existência [...] é desejo e esforço.

Chamamo-la de esforço para ressaltar sua energia positiva e seu dinamismo; chamamo-

la de desejo para designar sua carência e sua indigência: Eros é filho de Póros e de

Pênia” (RICOEUR, 1978, p. 22).

Page 428: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1206

No entanto, não se deve, por isso, concluir que o eu-lírico do poema Sonho de

uma terça-feira gorda tenha alcançado um estágio de plena consciência, porque se sabe

que, através das reflexões de Ricoeur, a consciência é uma tarefa em constante processo.

Para se perceber, no poema, a falibilidade da consciência do eu-lírico, basta

abandonarmos a perspectiva do eu-lírico e adotarmos a do leitor, ou seja, um ponto de

vista que vê mais que o próprio eu-lírico. Lançando mão dessa visada, constata-se que

o poema – mimetizando a astúcia do sonho – opera majoritariamente por ocultamentos

(latência) do que por desvelamentos. Nesse sentido, a presença da cor preta no poema

parece camuflar o sentido de perda vivenciado pelo eu-lírico. Isto é, a camuflagem de

um luto ainda não elaborado. Do ponto de vista simbólico, sabe-se que

o preto é a cor do luto; não como o branco, mas de uma maneira mais

opressiva. O luto branco tem alguma coisa de messiânica. Indica uma

ausência destinada a ser preenchida, uma falta provisória. [...] O luto preto,

por sua vez, é, poder-se-ia dizer, o luto sem esperança (CHEVALLIER;

CHEERBRANT, 1990, p. 740-741).

Diante disso, pode-se inferir que, para além do esforço do eu-lírico de

conscientizar-se de seus afetos, há, na linguagem do sonho por ele poetizado uma “sigla

estenográfica [taquigráfica]” (RICOEUR, 1973, p. 402), que parece codificar um

terrível sentimento de falta. Mensagem essa que parece escapar ao eu-lírico, mas

disponível à decifração do leitor.

A temática do sonho volta a aparecer na poética de Bandeira, no poema Tema e

variações, do livro Opus 10, editado pela editora Hipocampo, em 1952. Leiamo-lo

Temas e variações

Sonhei ter sonhado

Que havia sonhado.

Em sonho lembrei-me

De um sonho passado:

O de ter sonhado

Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado...

Ter sonhado o quê?

Que havia sonhado

Estar com você.

Estar? Ter estado,

Que é tempo passado.

Page 429: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1207

Um sonho presente

Um dia sonhei.

Chorei de repente,

Pois vi, despertado,

Que tinha sonhado.

(BANDEIRA, 1993 [1952], p. 214-215)

Nesse poema, o eu-lírico encontra-se numa dupla dimensão temporal e afetiva,

na primeira delas ele está – em sonho – relembrando outro sonho prenhe de significados

afetivos; noutra, está, em estado de vigília, decepcionado com a irrealidade da produção

onírica. Diante de tal sobreposição de estados afetivos, põe-se em relevo o papel que a

atividade racional desempenha na economia do sentido no poema Tema e variações.

Primeiro, urge elucidar – tomando por base a sugestão do título do poema – que

Manuel parece retomar um tema já visitado por sua poética: o sonho. Além disso, o

título do poema, juntamente com o confronto entre os versos “Que havia ter sonhado/

estar com você”, de Temas e variações, e o início do primeiro verso de Sonho de terça-

feira gorda – “Eu estava contigo” – indicam a natureza intertextual do poema de 1952.

Fenômeno esse que, segundo Julia Kristeva, se estabelece quando

O significado poético remete a outros significados discursivos, de modo a

serem legíveis no enunciado poético vários outros discursos. Cria-se, assim,

em torno do significado poético, um espaço textual múltiplo, cujos elementos

são suscetíveis de aplicação no texto poético concreto. (KRISTEVA, 2005

[1969], p.185)

Desse modo, como o poema Sonho de terça-feira gorda serviu de base

intertextual para Tema e variações, percebe-se logo que o eu-lírico recupera as

reminiscências do conteúdo onírico do primeiro para ser trabalhado no segundo.

Diferentemente do poema incluído em Carnaval, que mimetizou os ardis simbólicos da

atividade onírica, o poema de Opus 10 ocupa-se, num primeiro momento, da

metalinguagem da experiência onírica do eu-lírico; num segundo, na expressão direta e

lúcida da falta de um ser querido que se “petrificou” num passado e que parecia

presente na duração do sonho.

Mas, dessa vez, o eu-lírico assume as lágrimas diante dos leitores, como se

rasgasse o véu fabuloso do sonho e interrompesse a magia do transe poético. Depois do

intervalo de 33 anos existente entre os dois poemas, em Temas e variações, a porção

Pênia do homem, com as suas lacunas afetivas, parece vencer a sua contradipartida, a

Page 430: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1208

poção Póros, plena de riqueza de sentidos prospectivos. Em suma, os afetos arcaicos

esmaecem a força do verbo e a “clarividência” da razão.

No livro Estrela da tarde, publicado em parte, em 1960, pela editora Dinamene,

Salvador, e, em 1963, completo, pela José Olympio, encontra-se o poema Sonho

Branco, cuja temática remete novamente à experiência onírica do eu-lírico bandeiriano.

Vejamos a transcrição dele:

Sonho branco

Não pairas mais aqui. Sei que distante

Estás de mim, no grêmio de Maria

Desfrutando a inefável alegria

Da alta contemplação edificante.

Mas foi aqui que ao sol do eterno dia

Tua alma, entre assustada e confiante,

Viu descender à paz purificante

Teu corpo, ainda cansado da agonia.

Senti-te as asas de anjo em mesto arranco

Voejar aqui, retidas pelo aceno

Do irmão, saudoso de teu riso franco.

Quarenta anos lá vão. De teu moreno

Encanto hoje que resta? O eco pequeno,

Pequeno de teu sonho – um sonho branco!

(BANDEIRA, 1993 [1960/1963], p. 204)

Em Sonho branco, Bandeira volta a conjugar reminiscência do passado, ausência

de um ser querido e o trabalho do sonho. Nele, perbece-se claramente um trabalho

sublimatório realizado pelo eu-lírico, já que ele assimila a ausência do ser querido

espiritualizando-o. Conforme Paul Ricoeur, em Da interpretação – ensaio sobre Freud,

“é com desejos impedidos, desviados, convertidos que nutrimos nossos símbolos menos

carnais” (RICOEUR, 1977, p. 401). Nesse sentido, o eu-lírico elabora o seu luto,

transferindo o sentimento de falta para o culto contemplativo de um ser ausente

investido de significado sagrado. Com efeito, a falta afetiva é ressignificada, em Sonho

branco, pela saída do sagrado. Isso significa dizer que o eu-lírico busca preencher de

sentido sagrado o vão afetivo, pois como lembra Mircea Eliade: “o sagrado está

saturado de ser” (ELIADE, 2011 [1957], p.18).

Page 431: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1209

Diferentemente do poema Sonho de terça-feira gorda, cujo investimento

simbólico privilegiou a cor preta, remetendo à noção de luto, o poema Sonho branco,

haja vista o título, imantou-se da simbólica da cor branca. De acordo com o Dicionário

de símbolos, de Jean Chevalier & Alain Gheerbrant (1990, p.141), “o branco – candidus

– é a cor do candidato, i.e., daquele que vai mudar de condição (os candidatos às

funções públicas vestiam-se de branco).” Ao relacionar essa informação à sintaxe

semântica do poema de Bandeira, percebe-se uma dupla mudança de condição, a do eu-

lírico, que parece sair da condição de enlutado, – através do trabalho proporcionado pela

sublimação – e a do ser querido (objeto de investimento do eu-lírico), que transcende a

condição humana para pertencer ao panteão dos seres sagrados. Desse modo, o branco,

no poema de Bandeira, ganha uma conotação positiva e iniciática, pois nele “o branco,

cor iniciadora, passa a ser, em sua acepção diurna, a cor da revelação, da graça, da

transfiguração que deslumbra e desperta o entendimento...” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1990, p.144).

Consequentemente, a questão da carência afetiva simbolizada na atividade

onírica não se caracteriza, em Soneto branco, pelo embate travado entre a consciência e

o inconsciente, tal como se viu em Soneto de uma Terça-feira gorda, nem pela

hegemonia da porção Pênia do homem na economia dos afetos, conforme vimos em

Temas e variações, mas por uma saída (clareira) conquistada pelo eu-lírico: a não

repetição dos afetos dolorosos de um passado. Nesse sentido, o eu-lírico bandeiriano

parece construir sua história e escapar das rédeas do destino existencial, pois, como nos

lembra Paul Ricoeur,

a consciência é história e o inconsciente, destino. Destino-retaguarda da

infância, – destino retaguarda das simbólicas já presentes e reiteradas, destino

da repetição dos mesmos temas em espirais diferentes da espiral. No entanto,

o homem é responsável por sair de sua infância, por quebrar a repetição, por

constituir uma história polarizada por figuras-vanguardas, por uma

escatologia. O inconsciente é origem, gênese; a consciência é o fim dos

tempos, apocalipse (RICOEUR, 1978 [1969], p. 102).

Assim, percebe-se – nesse último texto – que o eu-lírico transforma seus afetos

arcaicos – que, em geral, tendem a nos paralisar – num sentido mais rico para suportar a

sua lacuna fundante. Em outros termos, o eu-lírico, ao invés de investir energia na

nadificação de um corpo sepultado, devolveu a ele outro significado, o de ser sagrado.

Page 432: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1210

Bandeira, ao concretizar – em seus poemas – o embate do homem dividido entre

a sua consciência e inconsciência, oferta-nos uma imagem plena do sentido existencial

do homem, que se caracteriza por lacunas e poder de superação. Para tanto,

contextualiza esse embate numa região que é, ao mesmo tempo, oráculo do passado e do

futuro: o sonho, a fim de consagrar o humano em nós.

Referências

ANTISERI, Dario; GIOVANNI, Reale. História da filosofia: de Nietzsche à escola de

Frankfurt. São Paulo: Paulus. vol.6, 2006.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro,

1990.

ELIADE, Mircea. O sagrado e profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins

Fontes, 2011.

KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Arménio

Amado, 1985.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de

Janeiro: Imago, 1978.

_____. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:

apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Rio de Janeiro: Vozes,

1985.

Page 433: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1211

COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O

ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE1

[Voltar para Sumário]

Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)

Anderson de Souza Frasão (UFS)

Em Moçambique, a relação entre os valores tradicionais e as diretrizes sociais

ocidentalizadas tem sido conflituosa e responsável por um hibridismo cultural complexo

que permite vislumbrar os processos de modificação e adaptação das tradições locais.

No palco da colonização, impasses e enfrentamentos resultaram numa série de

convulsões socioculturais que acabam por redimensionar as configurações das culturas

nacionais.

Entre tradições e contradições, marcas representantes dos confrontos entre dois

universos culturais distintos, as relações sociais foram se estabelecendo, não raro, no

plano do conflito. Esse lugar das diferenças, que demarca a fragilidade do processo de

construção das identidades, conduz a produção literária da escritora moçambicana

Paulina Chiziane, que desde a sua primeira publicação, Balada de amor ao vento

(1990), tem refletido sobre questões caras à História da África, dentre elas a análise de

espaços sociais, econômicos, culturais e políticos, todas elas trançadas pelo jogo de

gênero, o que faz da sua composição muito mais complexa e polêmica, pois, num

espaço narratológico predominantemente masculino, como é o africano, soma-se a

questão da autoria feminina a construção de personagens-sujeito de seu próprio

discurso, portadoras de dizibilidades que demarcam um lugar de enunciação altamente

crítico e reflexivo da realidade de seu país.

Mergulhar na “história oficial” a fim reinterpretá-la a partir da ótica dos

periféricos parece ser uma das múltiplas leituras que o romance O Alegre canto da

perdiz, de Paulina Chiziane, autoriza, através de construção de personagens que

1 Este trabalho é um breve recorte de uma pesquisa ainda em andamento, que uma leitura atenta poderá

facilmente atestar.

Page 434: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1212

metaforizam períodos históricos de Moçambique e que subvertem os sentidos

processados pelo colonialismo para questionar e refletir a condição da mulher

moçambicana na história, tendo em vista as suas relações com o poder político e as

tradições ancestrais, os colonizados e os colonizadores.

No quadro em que se desenha as personagens, interessa-nos, neste trabalho, as

femininas Serafina, Delfina e Maria das Dores, que são situadas em tempos e espaços

que se cruzam: o pré-colonial, o colonial e o pós-colonial/Gurué e Zambézia.

Serafina é a representação da geração que sofreu transformações em

consequência de eventos históricos como a escravização e a colonização. É arquétipo

dos negro-africanos que tentaram resistir às agruras do sistema colonial, indo contra a

corrente até não poder resistir – parafraseando a canção Roda viva, de Chico Buarque –,

pois mesmo que não tenham aceitado a assimilação, perceberam que o caminho se

tornaria mais “fácil” se não fossem de contra aos desejos do colonizador, submetendo-

se ao que Frantz Fanon (s/d) chama de “complexo de inferioridade”. Note-se o que diz

Serafina a sua filha:

– Vida de negra é servir, minha Delfina. Nos campos de arroz. Nas

sementeiras e na colheita de algodão, para ganhar um quilo de açúcar por mês

ou uma barra de sabão que não cabe na palma da mão. Uma negra é força

para servir em todos os sentidos. Foi uma grande sorte teres nascido bela,

senão estarias a penar sob o sol abrasador, onde sanguessugas invisíveis

provocam doenças e mortes nos pântanos. Tens sorte, tu serves na cama, tens

mais rendimento. Por que deitas fora a tua sorte? (CHIZIANE, 2008, s/p).

O ser colonizado, vítima de violências física e epistêmica, introjeta os hábitos e

os costumes dos brancos como sendo positivos em relação aos seus. Nos diz Frantz

Fanon que o colonizado “quer ser branco” (FANON, s/d, p. 38) porque se identificar e

se afirmar perante ele parece o único caminho que conduz a libertação das agruras

provindas do colonialismo.

A voz narrativa se refere ao genocídio cultural provocado pelo colonialismo

quando diz que “colonizar é mesmo isto: desviar o curso do rio, matar de sede os peixes

[...], fechar as portas e deixar apenas uma” (CHIZIANE, 2008, s/p).

Serafina carrega a dor de ter seus filhos escravizados e deportados, com exceção

de Delfina, e vê na miscigenação das raças uma oportunidade para sair da miséria. Por

Page 435: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1213

tal razão se coloca contra o casamento de sua filha sua filha com o preto José dos

Montes.

Na tessitura narrativa, Serafina é inserida num espaço que possibilita a

visualização do entre-lugar, o espaço fronteiriço da recusa e da aceitação. Ela é uma das

personagens mais complexas deste romance por ser portadora de um leque de sentidos

que são orientados pela “oscilação de sensações e as contradições da cena social, tanto

por ser mulher, como por ser negra” (MEDEIROS & SECCO, 2014, p. 24).

Delfina, por sua vez, é mulher de muitos homens. Busca a assimilação para

alterar a condição de “condenados da terra” (FANON, 2005), introjetando os valores do

colonizador por meio do ideal do branqueamento, como nas reflexões efetuadas pela

voz narrativa e pela própria personagem:

Minha preta, negrinha. Uma expressão ofensiva, humilhante, redutora.

Porque já tinha ultrapassado as fronteiras de uma negra. Ela já tinha um

homem branco e filhos mulatos. Ela já falava bom português e tinha a pele

clareada pelos cremes e cabeleira postiça. Sou preta sim, só na pele. Já sou

mais do que uma preta, casei com branco! (CHIZIANE, 2008, s/p, grifos

nossos).

Antes vestindo a indumentária de mulher excluída e oprimida, condições que

acompanham as mulheres por diversas gerações e culturas, ela consegue burlar tanto os

preceitos tradicionais, como os da modernidade ocidental, sendo expressão, diversas

vezes, de hibridismo cultural:

Tomei todas as poções mágicas contra a pobreza e afastei todas as rugas do

meu corpo. Bailei nua nas noites de lua e hipnotizei os homens da terra

inteira, cumprindo o meu supremo castigo. (CHIZIANE, 2008, s/p)

Delfina representa um imaginário sociocultural feito de interrupções que rejeita

os antigos usos e costumes tradicionais por serem estes, na sua concepção, arcaicos, mas

acaba recorrendo a eles em momentos cruciais. A complexidade com que esta

personagem é construída evidencia uma relação de enfrentamento e de conflitualidade

que se aproxima da experiência do povo moçambicano.

Maria Paula Meneses, ao discutir os processos identitários em Moçambique, fala

que a descolonização “exige as análises das lutas, compromissos, promessas e o

repensar dos conceitos fundamentais que ligavam espaços e tempos” (2012, p. 319). É

Page 436: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1214

considerado, pois, o retorno ao passado para entender o funcionamento do colonialismo

e, por conseguinte, refletir o presente, até porque há uma “disputa permanente sobre as

representações e políticas nas ex-colônias [...], num complexo jogo de espelhos onde o

desdobrar dos sentidos do império é urgente” (idem).

Evidentemente, há o entrechoque dos traços tradicionais e modernos,

tensionados a partir do contato entre os povos que os trilham em meio às diversas

representações culturais. Assim, Delfina sugere a articulação entre a tradição e a

modernidade, haja vista as transformações no território moçambicano intrínsecas aos

eventos históricos, para refletir as continuidades e rupturas.

A narrativa conduz a crítica ao colonialismo e satiriza o pós-colonialismo a

partir da presença de outra mulher, que se apresenta nua no rio Licungo. Maria das

Dores, filha de Delfina se apresenta na narrativa como ferramenta de questionamentos

aos “hábitos da terra”, da mesma forma em que provoca o grito coletivo das mulheres e

a “desordem da moral pública”:

- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha? Não

tem pena de nossas crianças que vão cegar com a tua nudez? Não tens medo

dos homens? Não sabes que te podem usar e abusar? Oh, mulher, veste lá a

tua roupa que a tua nudez mata e cega! (CHIZIANE, 2008, s/p)

Este grito traz consigo a simbologia de “vozes” de mulheres numa zona

construída em torno da participação do colonizador.

Mas a mulher permanece incólume, pois “está demasiado cansada para

responder. Demasiado surda para ouvir.” (CHIZIANE, 2008, s/p). As outras, assustadas

e escandalizadas, como se tivessem visto o papão, dirigem-se à casa do régulo, a fim de

desvendar os segredos daquela estranha visita. Na ausência deste, encontram em sua

esposa compreensão e acalanto.

Referências indiretas às vivências reais de hábitos e crenças tradicionais

parecem, com frequência, refletir contextos intencionais. Percebe-se, por exemplo, a

alusão ao papão, animal imaginário que ocupa lugar relevante nos contos indígenas.

Esses, geralmente narrados em volta das fogueiras pelos mais velhos, são dotados de

alto valor pedagógico. A partir disso, nota-se o tratamento de temas estrategicamente

utilizados para recuperar a mundividência autóctone e as simbologias ligadas a ela, mas

sem deixar de captar as diversas influências, sobretudo as da modernidade. Veja-se:

Page 437: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1215

A mulher do régulo reconhece rapidamente as razões da zanga colectiva e

responde com um arco-íris. Histórias de vida soltam-se dos arquivos da

memória como files de computador. Cada um tem o seu percurso, cada um

tem a sua história. A presença dessa alma penada tinha uma razão óbvia. O

mundo está às avessas, devasso. A humanidade é expulsa a uma velocidade

assustadora, e as pessoas se tornavam selvagens, canibais. (CHIZIANE,

2008, s/p, grifos nossos).

É através dessa adoção intencional, dotada de intenção moralizante e didática,

características da oratura que, segundo Ana Mafalda Leite

Chiziane reinveste na sua prática narrativa a intencionalidade da prática as

narração oral de contos e fábulas, formadores de valores éticos e

comportamentais, dramatizando com esse aparato narrativo relatos

vivenciais” (2012, p. 201).

E isso fica bem claro quando a mulher do régulo profere alguns relatos, sinalizando para

uma tomada de consciência das mudanças que estão a acorrer, pois, segundo ela,

"Aquela louca simboliza o mundo novo da guerra, das doenças, da exclusão social, ao

qual todos encontram sujeitos." (CHIZIANE, 2008, s/p).

A história dessa personagem, que enlouquece após ter perdido a posso de seus

filhos, é portadora de um amálgama de tantas outras nas quais imperam dor e

sofrimento envoltos em relações sociais bastante complexas. Histórias que permitem

vislumbrar o trânsito de valores coletivos para valores individuais, principalmente se os

compararmos àqueles das sociedades tradicionais, o que nos fará perceber uma

acentuada alteração, haja vista que um dos principais aspectos que os caracterizam é a

preservação.

Fruto do casamento de Delfina e José dos Montes, Maria das Dores foge das

duras condições que lhes são impostas. Quando em Gurué recua no tempo para narrar

momentos difíceis de sua vida, dá conta da relação de sua mãe com dois homens, um

negro e um branco, da utilização que aquela fazia dos poderes mágicos para conquistar

seus objetivos e, também, de quando ela a vendeu ao amante feiticeiro. Rememorar tais

momentos lhe causam dores imensuráveis que conduzem a uma possessão. Mas ao

vencer as barreiras do tempo e presentificar o passado, permite que ela encontre seus

filhos, que lhes foram roubados quando ela fugiu do feiticeiro.

Por um lado, das Dores preenche e reconstrói as lacunas e, nesse movimento,

expõe a alienação, o deslocamento e o exilamento dos moçambicanos dentro do próprio

Page 438: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1216

território. Por outro, ela se desfaz dessa identificação identitária para se formular com

outras, o que alude, mais uma vez, ao hibridismo cultural. É nesse momento que se

instala a reflexão da nação moçambicana pós-independência.

Este romance insere a ironia por meio da inserção da “voz” da mulher

moçambicana, pois, ao mesmo tempo em que crítica o colonialismo, aponta as relações

que muitos moçambicanos tiveram no sistema colonial. Reconhecendo esse caminho, o

enredo é construído pelo olhar duplo, isto é, de dentro e de fora: a análise do colonizado

a partir da sua própria perspectiva aponta como foi a sua participação e a do colonizador

nos eventos da História. Eis um trecho:

— Veja só a ironia desta vida, José. É a língua antes rejeitada que se busca e

se acarinha. Nós os assimilados remetemos o povo ao sofrimento.

Facilitámos a opressão, o exílio, a deportação. O povo lutou, resistiu e a terra

é livre. Quando tudo estava pronto assaltámos de novo o comando. São os

nossos filhos, nós, os assimilados, que lideram a vida com o saber e a

língua dos marinheiros. (CHIZIANE, 2008, s/p, grifos nossos).

Para tanto, os grifos remetem ao título do romance: O alegre canto da perdiz. O

canto é o de Delfina que desejou a assimilação e, para a mudança do estatuto, trilhou

passos de recusa à tradição, assim como de aceitação, pois teve Jacinta (filha mulata)

com Soares e Maria das Dores (filha negra) com José dos Montes, além dos demais

filhos.

Aqui, a crítica ao pós-colonial é mediada por compreender a ausência da

descolonização e a continuidade das prerrogativas coloniais. Moçambique é plural,

mestiça, mas segue os meandros da condição neocolonial, pois, pensando a

escravização, a colonização, a independência, a guerra civil, o privilégio permanece nas

mãos de uma minoria, a elite moçambicana, a classe assimilada que continua aos

moldes coloniais, principalmente quando propuseram a ruptura com a tradição, quando,

na verdade, ainda é muito forte em Moçambique, na África como um todo.

Através dO alegre canto da perdiz, vê-se a representação dos efeitos da

colonização no território moçambicano numa leitura crítica do colonialismo e ironia ao

pós-colonialismo. Com vistas nas personagens, parte-se da análise das estratégias de

dominação e do jogo da manipulação psicossocial do colonizado, averiguando a

condição da mulher moçambicana no cruzamento dos tempos colonial e pós-colonial.

Page 439: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1217

Conduz, também, ao passado e ao presente, tempos que confluem, para pensar as

epistemologias do lugar.

Entre a crítica e a ironia, a narrativa, por meio dos encaixes narrativos – das

histórias das personagens –, sugere um “futuro”: articulação das diferenças para pensar

a igualdade. E no espaço de negociação das identidades, haja vista o enlace final da obra

(reconhecimento e reconciliação dos laços afetivos), que se vislumbra a equidade dentro

da Moçambique plural e diversa, possível através da aceitação do hibridismo cultural,

do multiculturalismo.

REFERÊNCIAS

CABAÇO José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo:

Editora UNESP, 2009.

CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Portugal: Caminho, 2008. E-book.

ISBN: 9789722121873.

FANON, F. Os condenados da terra. Trad. Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães.

Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

_______. Pele Negra, Máscaras Brancas. Porto: Orgal/Paisagem, s/d.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas.

Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

MACÊDO, Tânia.; MAQUÊA, Vera. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas –

Moçambique. 2ª ed. São Paulo: Arte & Ciência, 2011.

MENESES, Maria Paula. Nação e narrativas pós-coloniais: interrogações em torno dos

processos indentitários em Moçambique. In: LEITE et. al. Nação e narrativa pós-

colonial: Angola e Moçambique. Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 311-322.

QUIJANO, Aquino. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,

Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula [orgs.]. Espitemologias do Sul – São

Paulo: Cortez, 2010, p. 84-132.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a

uma ecologia de saberes. In: In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria

Paula [orgs.]. Espitemologias do Sul – São Paulo: Cortez, 2010, p. 31-83.

Page 440: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1218

REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO

ROMANCE DE MILTON HATOUM [Voltar para Sumário]

Joanna da Silva (UFAM)

Introdução

Muito bem aceitas pelo público, as obras de Milton Hatoum, num total de quatro

romances, um livro de contos e um de crônicas, consagram-no como um dos autores

brasileiros contemporâneos mais traduzidos e premiados no momento. Suas narrativas

geralmente focalizam uma época específica, a década de 1950 a 1960, e têm como

cenário a região amazônica – sobretudo a cidade de Manaus.

Além de suscitar temas diversos como memória, cultura, identidade,

regionalismo e drama familiar, sua obra desperta a atenção para a construção e a

representação de suas personagens femininas, uma vez que o texto hatouniano é

povoado por mulheres de origens diversas (libanesas, amazonenses, indígenas) que,

juntas, dividem o mesmo espaço e protagonizam distintos papéis, nos quais definem e

seguem regras e costumes relativos à época e ao meio social em que estão inseridas.

A diversidade cultural presente nas personagens hatounianas corrobora, de

maneira significativa, com a questão sociocultural e relacional da mulher imigrante e da

mulher nativa no espaço amazônico. Essa diferença cultural motiva conflitos diversos,

abrindo, assim, a possibilidade de visualizar, através das personagens femininas, as

relações de gênero interseccionadas com os conceitos de classe e etnia que caracterizam

a atuação do poder na configuração identitária dessas mulheres.

A partir deste pressuposto, este trabalho tem como objetivo principal analisar,

sob o enfoque das relações de gênero, como se dá a construção e representação da

mulher amazônica nos quatro romances de Milton Hatoum, a saber: “Relato de um certo

Oriente” (1989), “Dois irmãos” (2000), “Cinzas do Norte” (2005) e “Órfãos do

Eldorado” (2008). Vale ressaltar que isso implica uma análise da construção e

Page 441: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1219

representação da mulher não como categoria homogênea, mas multifacetada, que nos

permite verificar de que forma as questões relacionadas à etnia e à classe social se

entrecruzam com as relações de gênero no romance hatouniano, produzindo a diferença

que se pode perceber na representação dessas mulheres personagens.

Questões metodológicas: gênero, classe e etnia.

Os estudos de gênero, advindos dos desdobramentos da crítica feminista a partir

da segunda metade da década de 1970, constituem uma abordagem de extrema

relevância para o entendimento das hierarquias e relações de poder travadas no âmbito

da cultura. O conceito de gênero surge como tentativa de se superarem os problemas

relacionados à utilização de algumas noções centrais nos estudos sobre mulheres, tais

como o patriarcado. Nesse sentido, a categoria gênero foi responsável por atualizar e

ampliar as discussões em torno do tema da desigualdade e da opressão, incluindo os

estudos acerca das mulheres negras, dos gays e lésbicas, também sobre masculinidade e

mulheres do terceiro mundo.

Sendo uma categoria de análise útil, o termo “gênero”, para Joan Scott (1990),

passou e ser utilizado em contraposição a uma visão demasiado estreita sobre as

mulheres, ao “introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise”

(SCOTT, 1990, p. 5). Para Scott, o gênero, enquanto categoria relacional de análise,

mantém uma estreita relação com outras categorias, como classe e etnia. Estas, por sua

vez, encontram-se sempre ligadas a questões socioculturais.

Essa ideia é também corroborada por Audre Lorde (1994), ao afirmar que, nas

relações de poder entre os sexos ou entre as próprias mulheres, é definido um padrão de

feminilidade e valor geralmente associado à mulher branca das classes abastadas,

enquanto as mulheres que diferem em termos de cor ou raça são colocadas à margem.

A observação das representações de gênero na literatura, bem como em outras

produções culturais, permite identificar imaginários e atitudes legitimadas referentes ao

lugar ocupado pela mulher ou a ela designado, sobretudo em um país de tradição

patriarcal como o Brasil. Stuart Hall (2000), destaca que isso ocorre porque as

produções culturais, enquanto práticas sociais, constituem um campo de luta pela

construção de significados, de forma que é na esfera cultural que se produzem,

Page 442: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1220

reproduzem, legitimam ou contestam noções de masculinidade e feminilidade

ideologicamente marcadas.

Para analisarmos a problemática levantada acerca da representação da mulher

amazônica e das relações de gênero que se fazem presentes no romance de Milton

Hatoum, a presente análise será organizada em duas partes: na primeira, intitulada

“Cunhantãs resignadas: subalternidades femininas”, focamos as empregadas domésticas

presentes nos quatro romances. Já na segunda parte, intitulada “Do mistério à perdição:

mulheres amantes”, analisamos as personagens amantes do “herói”.

Cunhantãs resignadas: subalternidades femininas

A relação entre gênero e classe - acrescida da noção de etnia - é fortemente

evidenciada na condição subalterna que caracteriza as empregadas domésticas presentes

no romance de Milton Hatoum: Anastácia Socorro (RO, 1989), Domingas (DI, 2000),

Naiá (CN, 2005) e Florita (OE, 2008). Descendentes da etnia indígena, elas

personificam, no romance hatouniano, a figura da mulher submissa e servil. São

mulheres humildes e desprovidas de recursos próprios, cuja condição étnica atua como

marca da sua alteridade e fator de discriminação a permear o convívio com o Outro.

A própria condição étnica dessas mulheres, em princípio, já pode ser vista como

marca da alteridade e fator de discriminação, revelando a ausência de uma generosidade

que se revele ou se esconda no trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Elas

compartilham das mesmas condições subumanas antes relegadas ao negro nas regiões

servidas pela escravidão africana no Brasil, durante o período colonial. Em se tratando

da Amazônia, essa marginalidade é relegada ao descendente indígena, que se transforma

em mão de obra doméstica, um produto pouco valorizado pelo capitalismo, porém

imprescindível a seu funcionamento.

Gayatri Spivak, no ensaio “Can the subaltern speak?” (1988), chama a atenção

para a falta de autoridade que caracteriza o indivíduo subalterno em sua própria

representação, principalmente em se tratando de mulheres oprimidas. No caso das

empregadas domésticas analisadas, o deslocamento de seu habitat natural, ou seja, a

transposição para um ambiente de certa forma hostil à sua cultura, também acarretará

Page 443: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1221

um segundo deslocamento, representado pela transposição social de valores, que

constituirá com maior intensidade o seu silenciamento.

No romance “Relato de um certo Oriente” tal condição é denunciada por

intermédio do olhar crítico do personagem Dorner, o fotógrafo alemão. Homem

estrangeiro e culto, Dorner vem para o Amazonas com o propósito de pesquisar a

cultura local e o comportamento dos índios e caboclos em convívio com os brancos.

As observações críticas de Dorner acerca dos privilégios provenientes da posse

de riquezas se comprovam através do regime de escravidão ao qual as subalternas locais

eram submetidas, fazendo-se revelar a lógica de um Brasil onde “reina uma forma

estranha de escravidão - A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração

ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas” (RO, 2002, p. 88).

Essa prática também é reconhecida por Hakim no espaço familiar ao constatar o

tratamento discriminatório dispensado às empregadas domésticas e a falta de

remuneração pelo trabalho que desempenhavam: “[...] devo dizer que as lavadeiras e

empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro

aqui no norte” (RO, 2002, p. 83). As palavras de Hakim reforçam a ideia de

subordinação em que os empregados da casa viviam, uma vez que Anastácia Socorro

vivencia a chamada “integração ilusória” de que fala Dorner, pois, apesar de adotada,

ela jamais chega a ser integrada como membro da família. Habitava um quartinho nos

fundos do quintal e, como os demais serviçais, também era discriminada e maltratada.

Em raros momentos de pausa no labor diário, patroa e empregada sentavam-se

para costurar ou bordar, de modo que se estabelecia entre ambas um instante de

cordialidade. Nessas ocasiões, Emilie contava as proezas dos homens de sua terra natal,

um mundo distante e desconhecido da empregada. Anastácia, por sua vez, ao apoderar-

se da fala expõe lembranças que povoavam seu passado de igualmente expatriada,

distante de seu povo. Através da fala ela busca atenuar a fronteira dos papéis sociais que

ambas representam, assim como desconstrói a ideia de que a diferença se converte

sempre em submissão.

Sob esse prisma, a “resignação” de Anastácia pode ser vista também como

estratégia de sobrevivência. Ela não entra em conflito com a patroa, mas também não se

deixa anular por completo e, nos momentos propícios, sabe como agir para se fazer

ouvir em sua alteridade. Segundo Lorde (1994), este reconhecimento da posição e

Page 444: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1222

diferença social dá continuidade a uma forma de relacionamento humano caracterizada

pela relação dominante/dominado. Nela, o oprimido é levado a reconhecer a sua

inferioridade/diferença em relação ao “Senhor” (patrão), submetendo-se à

subalternidade como estratégia para sua própria sobrevivência.

A condição servil de Anastácia é, contudo, um elemento que ilustra a

supremacia da mulher branca de classe superior e revela o quanto esta, quando em

situação de poder em relação a outra, compactua com o regime opressor ao exercer o

poder sobre a empregada, contribuindo, portanto, para a perpetuação das estruturas

hierárquicas de opressão social.

O mesmo regime escravocrata e injusto destinado ao subalterno, denunciado por

Dorner, também se repete nas outras três obras. Assim como Anastácia Socorro,

Domingas, Naiá e Florita vivem sob o mesmo regime de “cárcere privado”. Aliás,

Domingas e Anastácia possuem uma trajetória muito semelhante: provenientes de

algum orfanato de Manaus, foram, ainda crianças, morar com as famílias libanesas.

Viviam à margem desses lares, morando em quartinhos nos fundos dos quintais. Daí já

se observa a situação de exclusão e orfandade que essas mulheres trazem como marca

de uma existência miserável e sem perspectivas.

A condição subalterna e excludente vivida por Domingas, a empregada

doméstica de Zana no romance “Dois irmãos” (2000) é denunciada através da voz

inconformada de seu filho Nael, o que reitera mais uma vez a falta de autoridade

representativa do sujeito subalterno de que fala Spivak (1988). Narrador do romance,

Nael não só é filho da empregada indígena, como também, possivelmente, filho de um

dos gêmeos da patroa. A voz de Nael serve de mediação para denunciar as condições de

vida que levava junto à mãe, uma pessoa que, segundo ele, não fez escolhas, que

vivenciava em seu dia a dia a experiência da divisão social entre pobres e ricos, patroa e

empregada.

No romance “Cinzas do Norte” (2005), a personagem Naiá também se mantém

fiel e dedicada aos patrões durante toda a sua vida. Esta personagem difere um pouco

das outras duas empregadas no tocante à relação entre submissão e autoridade. Naiá,

que tanto se dedicava à patroa e ao filho desta, também cuidava do patrão, dava-lhe

remédios, fazia-lhe companhia. Confiante nos anos de convivência e serviços prestados,

exigia que a patroa desse mais atenção ao marido doente.

Page 445: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1223

Além de empregada, Naiá era também cúmplice e alcoviteira do romance

clandestino que a patroa mantinha com Ranulfo. Apesar do apreço que sentia pelo

patrão, era ela quem levava os recados de um para o outro. Através dessa relação de

cumplicidade, criava-se entre patroa e empregada uma complexa relação de

interdependência que interessava a ambas e garantia a cada uma a satisfação de suas

respectivas necessidades e desejos.

Também Florita, na obra “Órfãos do Eldorado” (2008), tem sua vida marcada

pela miséria e pela falta de perspectiva. Era ela quem cuidava do pequeno órfão,

Arminto Cordovil, e também da casa e de seu patrão. Como as demais serviçais dos

romances de Hatoum, Florita também atua como mediadora das conflituosas relações

familiares, e negociando continuamente seu status com cada membro.

Assim como Arminto, abandonado pelo pai e quase reduzido à condição de

mendicância, Florita também foi atingida pela ruína, após a morte do patrão. Ao longo

da narrativa, o corpo de Florita, já em processo de envelhecimento, apresentava marcas

do cansaço, do sofrimento e da miséria, como relembra Arminto, ao visitá-la pouco

antes de morrer: “Olhei para o chão e vi os pés de Florita. Inchados, sujos de terra, as

pernas também inchadas. O rosto já não escondia a velhice” (OE, 2008, p. 89).

A atenção de Arminto, dirigida ao corpo da empregada, demonstra o quanto o

homem necessita do corpo da mulher para mediar a sua relação com a natureza e o

mundo (BEAUVOIR, 1980), o que sugere que o corpo feminino está revestido de um

caráter meramente imanente. Enferma, feia, velha, a mulher sempre causa horror.

Como uma planta que murcha e seca, a mulher decrépita atemoriza o homem. É nesse

corpo que lhe é destinado que o homem experimentará sensivelmente a decadência da

carne, algo que suscita o medo e, não raro, um ódio profundo. Em contrapartida, o corpo

de outro homem jamais evocará nele essas mesmas sensações.

Pouco depois, Arminto é surpreendido pelo vizinho de Florita, que empurrava o

tabuleiro com o cadáver da empregada. O corpo abjeto de Florita, estendido no

tabuleiro, testemunha sua condição de servidão, assim como o corpo de Domingas (DI,

2000), que foi esmorecendo ao ritmo da labuta diária, até o dia em que se paralisou por

completo, inerte na rede desbotada. Como os demais corpos servis descritos por

Hatoum, destinados unicamente à produção, o corpo de Florita serve como instrumento

de denúncia de seu status “reificado”, na ordem exploratória em que se insere, como

Page 446: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1224

sugere o corpo inerte estendido sobre o tabuleiro, seu derradeiro instrumento de

trabalho.

Do mistério à perdição: mulheres amantes

Uma das características marcantes do romance hatouniano é a heterogeneidade,

o que torna inviável uma classificação homogênea da mulher enquanto foco de análise.

Essa diversidade não só inviabiliza uma categorização genérica, como também nos leva

a questionar a alteridade que se faz presente no universo feminino, principalmente no

tocante a questões familiares e às hierarquias sociais, inseridas em conceitos de classe e

etnia.

Dentre os vários aspectos de categorização feminina que permeiam os quatro

romances analisados, destaca-se também a figura flamejante e conflituosa da “mulher

amante”. Ela é concebida como uma espécie de antagonista, principalmente aos olhos

das “sogras”, mães dos “heróis”, que se sentem ameaçadas em sua estabilidade

emocional. Responsáveis pela quebra da ordem dentro dos lares, as pretensas noras

passam a ser desqualificadas, tendo sua imagem exposta de maneira negativa pelas

sogras, que resistem em aceitar sua integração no seio familiar.

A construção do perfil feminino na narrativa hatouniana se dá em geral de forma

maniqueísta, uma vez que oscila entre o céu e a terra, o bem e o mal, de maneira

formular: enquanto a esposa e mãe é investida de beleza, candura e amor imensurável (e

no entanto passível de ter sua honra maculada), as amantes são excluídas e

discriminadas, chegando a ser demonizadas e associadas a Eva, símbolo do pecado e da

tentação. Essas mulheres nunca estão à altura do modelo ideal almejado pelas mães dos

“heróis”. Ao contrário, são frequentemente qualificadas como “putas”, e exercem,

segundo as sogras, o poder de enfeitiçar os homens, produzindo, assim, a desgraça e a

perdição masculina. Trata-se de uma representação que segue os moldes da estereotipia

do “monstro”, tradicionalmente apontada nas representações masculinas da mulher,

conforme apontam Sandra Gilbert e Susan Gubar, na obra The madwoman in the attic

(2000).

Relevante para a nossa compreensão dessas representações femininas nos

romances hatounianos é o mito, que povoa o imaginário popular na Amazônia. Este se

insere na narrativa contextualizando-se com a cultura da região amazônica. A cidade de

Page 447: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1225

Manaus, cercada pelas águas escuras do rio Negro e pela floresta amazônica, torna-se o

berço de onde o mito emerge e se anuncia na fronteira entre a verdade e a mentira, a

história e a ficção, e ganha força nas paixões inacessíveis de homens e mulheres que

oscilam entre a realidade e a imaginação, o concreto e o abstrato.

Ao confrontar natureza e cultura por meio de um mundo primitivo e ao mesmo

tempo mágico, que ainda sobrevive na Amazônia através de suas tradições culturais,

Marcos Fredrico Krüger (2009), afirma que o mito, enquanto expressão das sociedades

primitivas, vem perdendo suas características, na modernidade, por influência de uma

nova ordem econômica, uma vez que os seres humanos estão submetidos ao transcurso

histórico. No entanto, a literatura, por meio da mitologização que se faz presente em

obras literárias contemporâneas, ganha uma nova roupagem pela busca de uma

sociedade diferente, uma vez que, através do mito, torna-se possível a recuperação do

paraíso perdido:

No imaginário amazônico, o boto representa o ser mítico masculino que tem o

poder de seduzir as moças e engravidá-las. Devido ao seu forte poder mitológico, o olho

do boto serve como amuleto e talismã na conquista da mulher amada. Essa crença é

resgatada por Hatoum em alguns episódios, como aquele em que Arminto parte em

busca de sua amada Dinaura: “Viajei numa embarcação velha [...] Pendurei no pescoço

o olho de boto que ganhei de Florita e enfiei no bolso da calça a fotografia de minha

mãe” (OE, 2008, p. 100).

Assim como existe no imaginário os seres que simbolizam a conquista

masculina, existem também aqueles que se ligam ao fascínio feminino, é caso, por

exemplo, do amor não concretizado pelo homem, que será referenciado na figura da

lendária “cobra grande”. Ela simboliza a história das paixões alucinadas, irrealizáveis, o

desvario masculino, que devastam e ameaçam as estruturas familiares. Por isso, o poder

de sedução feminina entra em choque com a visão das guardiãs das estruturas

familiares, associando a imagem de mulher sedutora aos encantos e perigos de seres

mitológicos.

A figura feminina, associada ao mito, adquire um sentido ambivalente e oposto

em determinados momentos: enquanto Dinaura representa a perdição aos olhos de

Florita, a figura materna de Angelina adquire um sentido maculado para o filho.

Arminto, por meio de uma fotografia, invoca sua proteção, como se recorresse à

Page 448: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1226

imagem da Virgem Maria, aquela que, cheia de misericórdia, protege seus filhos

durante as caminhadas por veredas desconhecidas e misteriosas. Segundo de Beauvoir,

“Esse papel misericordioso e terno é um dos mais importantes que foram atribuídos à

mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 225).

Em Dois irmãos (2000), quando Omar se envolve com Dália, Zana sente-se

afrontada com a presença da namorada do filho, qualificando-a como “uma dançarina

vulgar. Aquela mulher ia te levar para o inferno” (DI, 2000, p. 106). Ao se desviar do

perfil idealizado, as namoradas e amantes tem sua imagem associada aos mitos da

natureza, seres que seduzem e enfeitiçam os homens, imagens que atuam como

elementos de exclusão, principalmente em relação à mulher nativa.

Com a morena Pau-Mulato, moça bonita e atraente, não foi diferente. Zana se

sentia ameaçada pela rival e tentava, sem êxito, persuadir Omar a se afastar da mulher

que, segundo ela, seria sua perdição: “ela vai te sugar, te enfeitiçar” (DI, 2000, p. 144).

Para Zana, eram mulheres que jamais ocupariam o lugar digno de esposa dos filhos:

“desconhecidas que não freqüentavam os salões de beleza famosos... moças que nunca

tinham saído de Manaus, nunca viajaram ao Rio de Janeiro” (DI, 2000, p. 100).

Percebe-se também que a consciência de classe da protagonista a faz ver as pretendentes

de seu filho como candidatas desqualificadas por serem socialmente inferiores a ele.

A atitude dessas mães de discriminar e rejeitar a mulher nativa, por questões de

ordem econômica, social e comportamental, pode também ser analisada como uma

herança do período colonial na região. De acordo com Heloisa Lara C. da Costa (2005),

essa atitude de discriminação à mulher nativa era típica da elite estrangeira na época, o

que não só as diferenciava, como também obrigava uma mudança de comportamento

para que a mulher manauara pudesse se afirmar perante a elite:

[...] É muito freqüente no registro dos viajantes a referência à lascívia e

luxúria encontradas nas mulheres nativas. O espontaneísmo sexual dessas

mulheres indígenas e caboclas, na visão de estrangeiros, em sua maior parte,

de formação calvinista, etnocentricamente era visto como imoralidade. Para

uma elite regional que pretendia se afirmar perante o colonizador, cumpria se

distanciar dessas formas de comportamento, utilizando-se de símbolos como

roupas, jóias, objetos de decoração, atitudes de recato que cumpriam o papel

de diferenciá-las do resto da população empobrecida (COSTA, 2005, p. 152).

Com Arminto (OE, 2008), não foi diferente. Apesar de não ter a mãe em seu

convívio, Florita assume para si o papel de opinar e interferir em seus relacionamentos,

Page 449: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1227

graças à autoridade que o próprio Arminto lhe conferia por ela tê-lo criado. Confiante

em sua influência sobre Arminto, Florita achava-se no direito de interferir em sua

paixão por Dinaura, a qual ela renegava e discriminava, insistindo que a órfã era só

feitiço – o que a aproxima do estereótipo da bruxa ou monstro.

Dinaura, mais que todas as outras mulheres presentes nos demais romances,

simboliza a força da lenda e do mito amazônico: a moça de origem desconhecida torna-

se alvo das investidas de Florita: “parecia uma dessas loucas que sonham em viver no

fundo do rio” (OE, 2008, p. 31). O fundo do rio simboliza o mistério e a riqueza, o

Eldorado, a cidade encantada. Dinaura, na obra de Hatoum, é a reencarnação viva dessa

lenda. Ela representa o mito da mulher idealizada e inacessível, que se faz presente nas

relações abstratas, como um produto da própria existência humana, cujo estímulo se fixa

justamente na impossibilidade de realização.

Com o desaparecimento de Dinaura, ficou a dúvida lançada por Estiliano ao

revelar que a órfã era protegida de Amando, que este a trouxera, não se sabe de onde,

dizendo ser sua afilhada, entregando-a no convento. Dinaura seria então filha de

Amando? Ou sua amante? Seria ela, então, meio-irmã de Arminto? Ou sua madrasta?

Segundo o próprio Estiliano, “Tinha idade para ser as duas coisas” (OE, 2008, p. 98).

Esse mistério sobre Dinaura não é desvelado e se constituiu como mais um dos enigmas

indecifráveis apresentados por Hatoum em suas narrativas.

Dinaura representa o enigma da mulher cobiçada, idealizada e do amor não

realizado, é mais uma das mulheres/amantes de passado e origem desconhecidos, cuja

beleza e poder de sedução faz dela uma figura estigmatizada e cercada pelo mistério.

Seus atributos sedutores encontram equivalência no encantamento dos seres

sobrenaturais que povoam o imaginário amazônico e ganham espaço na narrativa

hatouniana. Dinaura representa o corpo belo e sensual da mulher nativa, permitindo aos

mitos a metaforização dos sentimentos mais profundos e inacessíveis dos homens.

Porém, a construção maniqueísta da “mulher boa”, associada à mãe e à esposa, e

da “mulher má”, associada à amante, escapa ao controle autoral, produzindo uma

ambigüidade quando se incluem as empregadas domésticas na categoria

namoradas/amantes, ou casos eventuais, uma vez que elas transitam por estes dois

grupos. Apesar de serem submissas e discriminadas, elas também são admiradas por sua

beleza, candura e amor, como é o caso de Domingas, cuja dedicação e afeto para com

Page 450: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1228

Yaqub e Omar desperta suspeita de um consentido relacionamento amoroso entre ela e

os gêmeos. Outro caso seria o de Florita, por quem Arminto não escondia sua

admiração, a mulher que o iniciara na arte do amor, mas que também fora responsável

por afastá-lo ainda mais do pai, aspectos que fazem dela um misto de bem e mal.

Atitudes dessa natureza, presentes nas empregadas domésticas, as situam ora no

patamar da “mulher boa”, amorosa, protetora e servil, ora no patamar da “mulher má”,

aquela que enfeitiça e seduz o homem, levando-o à “perdição”.

Considerações finais

Sendo os estudos de gênero subsidiados pelo caráter relacional, como nos aponta

Joan Scott (1990), é a partir do entrelaçamento da vida de homens e mulheres que se

derivam as complexas relações de gênero, identidade e poder. A partir deste

pressuposto, a presente análise tomou como ponto de partida a forma como o autor

enfatiza a presença da mulher frente aos conflitos domésticos e familiares que se

desenvolvem no interior da esfera doméstica e que constitui, dentro da narrativa, um

locus de produção e reprodução de ideologias de gênero, classe e etnia.

A estratégia de Hatoum em colocar sempre uma figura feminina no eixo central

da narrativa propicia uma análise das representações de gênero e do funcionamento do

poder centrados nas personagens femininas. Desta forma, as empregadas domésticas e

as pretensas noras tornam-se oprimidas e discriminadas, sendo o principal opressor uma

outra mulher. Este constitui, portanto, fator recorrente entre as obras: a mulher como

figura central nas relações familiares e detentora e propagadora das relações de poder

sobre os demais membros da hierarquia familiar, principalmente sobre outras mulheres.

Os determinantes de classe e etnia presentes na narrativa, bem como na estreita

relação que mantêm com as noções de gênero, se revelam na discriminação das

empregadas “nativas” e pobres, que dedicam toda uma vida em prol do trabalho servil,

sem reivindicar nada em troca, e também nas relações sociais e familiares que envolvem

as namoradas dos “heróis”, nas quais os fatores classe e etnia interagem de forma direta

na configuração de relacionamentos assimétricos.

Em se tratando da construção e representação da mulher por Hatoum, é válido

também apontar como se dão as duas vertentes da oposição na qual as mulheres são

situadas no decorrer dos romances: ora como dominadoras e opressoras, ora como

Page 451: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1229

discriminadas e oprimidas. Porém, nenhuma das mulheres/personagens consegue se

situar plenamente em qualquer uma dessas posições, pois tudo depende da relação que

se estabelece entre elas e os outros personagens. As empregadas, por exemplo, são

oprimidas por sua condição de pobreza, marginalidade social, mas têm certa ascensão

sobre os patrões e filhos destes – que as adotam, possivelmente as amam, ou as colocam

no lugar materno, embora essas personagens em geral, terminem desvalidas. Como

resultado disso sua caracterização é perpassada de ambiguidades, uma vez que oscilam

entre o “bem” e o “mal”, sendo ainda “inacessíveis” ao controle masculino.

Desse complexo de relações de gêneros emerge uma visão contundente dos

diversos papéis que as personagens femininas desempenham dentro do contexto

romanesco, do qual deriva uma submissão feminina relativa, determinada pelas

categorias de gênero, classe social e etnia, reiteradas frequentemente através da

essencialização das identidades femininas. Porém, diversas estratégias são utilizadas

pelas personagens oprimidas para compensarem a exclusão e a discriminação. A leitura

das relações gênero, no complexo universo ficcional de Milton Hatoum, evidencia a

significativa interação entre os fatores classe social e etnia, além do gênero,

responsáveis pela subordinação e discriminação da mulher amazônica e, ao mesmo

tempo, as formas de resistência, associadas principalmente às trocas afetivas, que

atenuam ou problematizam o exercício do poder e do controle social.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. v. 1, trad. Sérgio Milliet. 4 ed.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

COSTA, Heloísa Lara Campos da. As mulheres e o patrimonialismo. In: Somanlu:

Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e

Cultura na Amazônia. Ano 1, n. 1. Manaus: Edua/Ufam, p. 145-158, 2005.

GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan. The madwoman in the attic: the woman writer

and the nineteenth-century literary imagination. New Haven/London: Yale University

Press, 2000.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz T. (Org.). Identidade e

diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103-133.

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Page 452: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1230

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2 ed. São Paulo: Companhia das

Letras, 2002.

HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. 3 ed. Manaus: Valer, 2009.

LORDE, Audre. Age, race, class, and sex: women redefining difference. In:

McCLINTOCK, Anne; MUFTI, Aamir, SHOHAT, Ella (eds.) Dangerous liaisons:

gender, nation, and postcolonial perspectives. Minneapolis/London: University of

Minnesota Press, 1997, p. 374-380.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade.

Porto Alegre, 16(2), p. 5-22, julho/dezembro 1990.

SPIVAK, Gayatri. “Can the subaltern speak?”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG,

Layrence (eds.). Maxist interpretation of culture. London: Macmillan, 1988, p. 24-28.

Page 453: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1231

INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA:

ANÁLISE COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE

CABOCLO” [Voltar para Sumário]

João Batista da Silva (UFRPE/UAG)290

Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG) 291

Introdução: intertextualidades como aspecto metaliterário

É notável como pode haver remissão de uma obra literária à outra, ainda que não

completamente; mas um estilo, um tema, ou até mesmo uma personagem. Porém, o mais

intrigante é que muitas vezes as obras que fazem remissão foram produzidas em épocas,

países e contextos distintos uma da outra, ou seja há uma “rede de conexões”, direta ou

indireta, entre as obras, a intertextualidade.

De acordo com Sandra Nitrini (2010), Kristeva apoiou-se em reflexões propostas por

Bakhtin, em La poétique de Dostoievski, para criar o conceito de intertextualidade, teoria que

prioriza a totalidade do texto, ou seja, que engloba o sujeito, o inconsciente e a ideologia,

numa perspectiva semiótica, em que o texto literário relaciona-se com vários outros textos; o

que implica afirmar que não existe um texto totalmente inédito.

Todavia, se não existe texto inédito, o que vai definir o caráter de originalidade de um

texto literário em relação a outro? Em resposta a este questionamento, Valery (In: NIITRINI,

2010) afirma que a originalidade é um caso de assimilação, ou seja, a capacidade de um autor

fazer uso do “substrato” dos outros vai definir o que é o original e o que é plágio. Entretanto,

a assimilação de um autor por outro nem sempre acontece de forma direta. Nesse sentido, para

Cionarescu (Apud NITRINI,2010), a influência apresenta duas acepções. A primeira está

assoviada à ideologia, ou seja, umas conversas, uma leitura, além das experiências de mundo

podem influenciar na escrita de um autor. Por sua vez, a segundo acepção diz respeito às

290 Graduado em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de

Garanhuns. 291 Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco - Campus de Garanhuns-PE

(UAG/UFRPE).

Page 454: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1232

similaridades entre as obras, sem que um haja lido a obra do outro. Nesse sentido, a segunda

acepção.

Por sua vez, Culler (1999) afirma que ler uma obra literária é fazer relações com

outras obras literárias e contrastar as formas como cada uma faz sentido. Assim, segundo este

autor, a Literatura é uma prática na qual os escritores buscam fazer avançar e renovar a

própria literatura. Essa prática corresponde a uma reflexão da Literatura sobre ela mesma, ou

metaliteratura.

Em relação ao conceito de Metaliteratura, os pesquisadores do projeto “Metaliteratura

e suas metáforas”292

trazem discussões mais específicas sobre o fenômeno da

autorreferenciação da Literatura, e afirmam que uma obra pode remeter a elementos que

fazem a literatura operar, são eles: a obra, o escritor e o leitor, assim como a processos que

compõe a obra literária: ato de escrever, ato de ler etc.

A partir das discussões apresentadas, pode-se concluir que a relação intertextual

realiza-se mais na leitura (recepção) do que propriamente na produção (criação), pois um

autor, muitas vezes, não percebe que sua obra remete à outra, num processo de assimilação da

cultura. No entanto, as suas experiências de leitura, assim como o seus conhecimentos de

mundo tornam possível a relação intertextual.

Assim, é perceptível que a intertextualidade se comporta como um aspecto

metaliterário, na medida em que há uma remissão intertextual de uma obra a outras e, com

isso, torna possível a renovação da Literatura. Esse aspecto de renovação sem a necessidade

coercitiva de leitura anterior verificável (de um autor a outro), portanto, pode ser empreendida

por uma análise comparativa de força intertextual, tal qual a que será demonstrada a seguir.

1. Leitura intertextual de Vidas Secas e “Faroeste Caboclo”: análise comparativa

Antes de qualquer coisa, faz-se necessário deixar claro que o aspecto que mais

aproxima as duas obras é a narratividade. Nesse sentido, por mais que “Faroeste Caboclo”

possa ser classificada como uma “poesia moderna”, ou seja, por estar disposta em versos e por

possuir características tanto líricas, quanto épicas e dramáticas, essa letra de música é

predominantemente uma narrativa (épica). Dessa forma, os elementos líricos (assonância,

292

Projeto de Pesquisa “Metaliteratura e suas metáforas”. Projeto de Pesquisa da Universidade Federal Rural de

Pernambuco, 2011. Fizeram e/ou fazem parte deste projeto os pesquisadores: Nilson Pereira de Carvalho

(coordenador), Jaime de Queiroz Viana Neto (bolsista de Iniciação científica do CNPq), João Paulo de Souza

Araújo (bolsista de Iniciação científica do CNPq) e João Batista da Silva (autor deste artigo, bolsista de Iniciação

científica do CNPq).

Page 455: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1233

aliteração, etc.) e dramáticos (diálogos), até mesmo a variação rítmica, quando a letra está

sobreposta à música, corroboram com a narratividade. Em relação a Vidas Secas, por ser um

romance, a narratividade é a sua característica principal, mas isso não implica dizer que a obra

de Graciliano Ramos não possua características dramáticas e líricas, muito pelo contrário.

Entretanto, assim como ocorre em “Faroeste Caboclo”, os aspectos líricos e dramáticos de do

romance de Graciliano Ramos também contribuem com a narratividade da obra.

Assim, essa análise se debruçará sobre o elemento que mais aproxima as obras a serem

analisadas, a narratividade. Com isso, pretende-se analisar os dramas, os sonhos e as

decepções de personagens que buscam por um lugar melhor, mas que esbarram no meio

social, por isso, enfrentam várias idas e vindas em suas trajetórias e, no final, não atingem o

objetivo.

Segundo Antônio Candido (2005), os romances modernos procuraram diminuir a ideia

de sistemas fixos das personagens, assim como ocorre nos romances tradicionais. Segundo o

autor, o trabalho de seleção do romancista é responsável pela criação de personagens mais

parecidos com as pessoas do mundo objetivo, logo, mais complexas.

Nessa perspectiva, as personalidades das personagens de Vidas Secas e “Faroeste

Caboclo” vão ao encontro desta afirmação, assim, para demonstrar o que está sendo

defendido, e para fins de análise comparativa, quatro categorias de personagem que merecem

destaque em ambas as obras são trazidas à tona: o protagonista, o antagonista, as mulheres e o

doador.

Em Vidas Secas, o protagonista é um vaqueiro ruivo e pele queimada pelo sol. Rude,

acostumado a estar junto com os animais e que não consegue falar direito, tampouco

raciocinar sobre as coisas que acontecem ao seu redor, este é Fabiano. Vive no sertão e, para

sobreviver nesse lugar tão seco de vidas e de esperança de dias melhores, tanto sua aparência

quanto suas atitudes assemelham-se a animais: forte no mato, mas indefeso na cidade grande:

“Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animas. Os pés duros quebravam espinhos e

não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele”

(RAMOS, 2005, p.20).

Por outro lado, o protagonista de Faroeste Caboclo é João de Santo Cristo, jovem

negro do interior que, desde pequeno, praticava crimes, “ia para igreja só para roubar o

dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar” (RUSSO, 1987). Além disso, ao

contrário de Fabiano, João de Santo Cristo pensa, pois elabora planos para ir em busca das

“coisas que ele via na televisão” (RUSSO, 1987). Santo Cristo possui um caráter

contraditório, pois é descrito de várias formas na letra de música: como malvado, vitima,

Page 456: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1234

cruel, protetor e como herói. Além disso, diferentemente do que acontece com Fabiano, Santo

Cristo sofre tanto por ser sertanejo quanto por ser negro: “Não entendia como a vida

funcionava/Discriminação por causa de sua classe e sua cor” (RUSSO, 1987).

Em se tratando da figura do antagonista, Vidas Secas possui o Soldado Amarelo,

personagem que engana Fabiano e o prende por motivo torpe. Por sua vez, em “Faroeste

Caboclo”, não existe apenas um antagonista, mas dois. Nesse caso, Jeremias, “traficante de

renome”, com quem Santo Cristo protagoniza um duelo sem vencedores (ambos morreram); e

o General de dez estrelas, personagem que faz uma “proposta indecorosa” a Santo Cristo.

O Soldado Amarelo é uma personagem frágil fisicamente, mas que faz uso de sua

autoridade para amedrontar os vaqueiros. Ao contrário de Fabiano, o Soldado é valente na

cidade, mas covarde no sertão. Além disso, para Fabiano, ele é tido como um representante do

governo, mas que faz uso da autoridade investida a ele para agir em benefício próprio, uma

espécie de “governo paralelo”.

Por outro lado, Jeremias, como é descrito na canção, é um “maconheiro sem

vergonha” que “desvirginava as mocinhas inocentes” e “se fingia que era crente, mas não

sabia rezar”. Essa personagem protagoniza algumas disputas com João de Santo Cristo, dentre

elas o “amor” de Maria Lúcia e o duelo final. Por sua vez, o General de dez estrelas tem a

mesma representatividade que o Soldado Amaro tem para Fabiano (autoridade que oprime os

mais fracos). Trata-se de um militar reformado, que surge quando João do Santo Cristo se

arrepende de seus “pecados” e passa a viver, em paz, com Maria Lúcia, e o faz sair

novamente da “zona de conforto”; ou seja, ao recusar a “proposta indecorosa”, Santo Cristo

perde tudo que havia conquistado até então. Sem saída, o protagonista torna-se traficante.

Em relação às personagens mulheres que merecem destaque, Vidas Secas tem Sinha

Vitória; mulher forte, mas também ingênua. Forte, pois ela é o cérebro de Fabiano, cuida dos

filhos, da casa e sobrevive ao sertão opressor. Mas ingênua por achar que a felicidade dela e

de sua família depende da aquisição de uma cama de couro, igual a que Seu Tomás da

Bolandeira tinha.

Por outro lado, Maria Lúcia é maliciosa, pois a princípio surge como “a figura do

amor” para Santo Cristo, capaz de tirar a alma do protagonista “das trevas” em que estava

imersa. Entretanto, não demora muito, e Maria Lúcia transforma-se na figura responsável pela

derrocada da personagem principal ao casar-se com Jeremias, principal rival do protagonista.

Assim sendo, ela é responsável despertar todo o ódio de Santo Cristo, e o faz “ir ao

inferno”. Todavia (novamente), ao ver protagonista agonizando sob o sol (após levar um tiro

pelas costas), ela arrepende-se e leva a arma Winchester-22 (presente que Pablo deu ao Santo

Page 457: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1235

Cristo) até ele. De santa a Vilã, e de vilã a Santa, essas são as representações de Maria Lúcia

na Letra de Russo.

Em relação à figura do doador, as obras apresentam Tomás da Bolandeira (Vidas

Secas) e Pablo (“Faroeste Caboclo”). Essas personagens correspondem aos exemplos de

sucesso para as personagens principais. O primeiro é tido como uma pessoa culta, que fala

palavras difíceis e que tinha uma cama de couro, por isso é um exemplo para Fabiano e sua

esposa. Porém, Tomás da Bolandeira morrera no sertão e é evocada pelo fluxo de desejo tanto

de Fabiano quanto de Sinhá Vitória. Nesse caso, Tomás da Bolandeira é o exemplo de que

diante do sertão, não adianta ser culto ou bruto, pois todos parecem caminhar em uma única

direção; a direção da morte.

Na outra obra, Pablo é “um peruano que vivia na Bolívia” que, além de primo,

corresponde também a um exemplo para Santo Cristo; um exemplo de criminoso, é verdade,

mas ainda assim um exemplo. Ao contrário do que acontece com Tomás da Bolandeira (que é

evocado), Pablo está vivo; e se Tomás da Bolandeira, mesmo que morto, é um exemplo de

pessoa bem sucedida no sertão, Pablo é a personificação do sucesso para quem quer vencer na

vida em uma metrópole capitalista e violenta. Além disso, Pablo é quem cede a arma para que

Santo Cristo tenha o seu desfecho final.

Com isso, conclui-se que as personagens de Vidas Secas e “Faroeste Caboclo” vão ao

encontro dos conceitos de personagens de romances modernos, ou seja, personagens que

possuem características complexas e que sempre surpreendem o leitor. Nesse sentido, fica

nítida a preocupação dos autores em criar personagens que se aproximam de pessoas reais, e

com problemas reais, pois quanto mais às personagens têm essa aproximação

(verossimilhança), mais complexas elas serão.

2. O Eldorado e a Via Crucis

Durante séculos o mito do Eldorado teve muitas versões; na antiguidade clássica, por

exemplo, muitos buscaram a famosa “Atlantida”, e até mesmo o Brasil, no período colonial,

já foi considerada “a terra prometida”, devido às suas minas de ouro. Outra versão desse mito

é que na Floresta Amazônica havia uma cidade feita de ouro e que virou objeto de cobiça de

muitos exploradores que saíram a sua procura. Procuraram, mas sucumbiram diante da vida

selvagem.

Nesse caso, tanto em Vidas Secas quanto em “Faroeste Caboclo”, há também uma

procura por uma espécie de Eldorado. Porém, a busca de Fabiano e de sua família não é por

Page 458: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1236

uma cidade feita de ouro, mas por um lugar onde possam estar livres da seca e onde possam

“engordar” e serem tratados como “gente”. Já em “Faroeste Caboclo”, a busca de João de

Santo Cristo não é só por um lugar melhor, mas também pelas “coisas que ele via na

televisão”, ou seja, pelas vantagens que uma sociedade capitalista pudesse oferecer.

Entretanto, pesa contra essas personagens o meio social (espaço), o qual age como o maior de

todos os inimigos, pois as transforma e não permite que consigam chegar ao Eldorado. Em

Vidas Secas, o algoz das personagens é o sertão e a seca, enquanto em “Faroeste Caboclo”, a

metrópole representa a “ida ao inferno” de João de Santo Cristo.

De acordo com Lins (Apud CARVALHO, s/data.), o espaço age sobre as personagens

e as modifica tanto fisicamente como mentalmente. Neste sentido, o autor afirma que o

espaço traça as particularidades dos personagens (físicas e comportamentais) e os influencia,

provocando suas ações.

Assim, ao analisar a ação das personagens de Vidas Secas no espaço em busca da

“terra prometida”, percebe-se que elas começam migrando (capítulo “Mudança”) e terminam

migrando novamente (capítulo “Fuga”). Nesse caso, esse “girar em círculo” das personagens

corresponde a uma ação do espaço sobre Fabiano e seus familiares, pois, para “os infelizes”,

só restavam duas opções: ficar e morrer na seca, ou migrar e tentar sobreviver em um local

que eles não conheciam, mas tinham esperança que existisse: “Não obstante, há sempre um

pensamento de um espaço em que a família venha a se satisfazer completamente. Será o céu?

Será o sul? Ambos?” (CARVALHO, s/data, p.4). Além disso, no ato de migrar e tentar

sobreviver, o meio opressor faz com que pareçam animais, fortes, mas incapazes que

encontrar algo melhor para suas vidas, afinal de contas “bicho do mato” não vive em

sociedade.

Por ironia, o ser mais humanizado da obra é Baleia (a cachorra), pois ela brinca com

os filhos, caça com Fabiano, acompanha Sinhá Vitória nos afazeres domésticos e cuida da

família. Além disso, vale lembrar que no começo da jornada, a família seguia a cachorra, ou

seja, ela mostrava a direção pela qual os “infelizes” deveriam seguir. Aliás, para não dizer que

nem todos os personagens conseguiram chegar ao Eldorado, a cachorra consegue chegar,

ainda que no seu leito de morte.

Baleia respirava depressa, a língua pendente e insensível [...] Baleia queria dormir.

Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um

Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio

enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos,

enormes. (RAMOS, 2005, p.91)

Page 459: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1237

Nesse caso, com os delírios de morte de Baleia, vem à tona a ideia de morte como

libertação de todos os sofrimentos, ou seja, a morte é tida como o verdadeiro paraíso, pois só

com ela os infelizes poderiam se libertar daquele meio tão opressor.

Em “Faroeste Caboclo”, o pouco desenvolvimento e o “marasmo da fazenda”, além da

gana de conseguir “as coisas que ele via na televisão”, fazem com que João do Santo Cristo

saia da “cercania onde morava” e busque o seu Eldorado (ação do espaço sobre o

personagem). Porém, ao contrário do que acontece em Vidas Secas, em que as personagens

não sabem para onde vão, João do Santo Cristo, logo quando chega a Salvador, encontra um

boiadeiro que lhe orienta a ir a Brasília, pois segundo ele: “neste país lugar melhor não há”.

Na capital Brasil, alimenta a esperança de ter uma vida diferente da que tinha antes.

Entretanto, durante sua estada ali, o protagonista passa a ter contato com uma metrópole

capitalista, na qual as pessoas agem em benefício próprio e em prol do poder monetário; não

demorou e ele próprio se tornou um contraventor. Resultado: sua busca pelo Eldorado

termina com sua morte sob o sol escaldante.

Dessa forma, assim como o sertão fez com que Fabiano e a sua família migrassem e se

“animalizassem” para sobreviver à seca, Brasília fez com que João do Santo Cristo se tornasse

um fora da lei. Desta forma, em ambos os casos, houve a busca pelo tão sonhado Eldorado,

mas assim como aconteceu com as pessoas que tentaram encontrar a cidade de ouro, não

tiveram sucesso. Fabiano e sua família voltaram para o local onde estavam (Sertão) e João de

Santo Cristo caminhou rumo à morte. Portanto, a trajetória das personagens de ambas as obras

pelo espaço esboça um enredo penoso.

Nesse sentido, ressalta-se a compreensão da expressão Via Crucis, atribuída ao

percurso tortuoso enfrentado por Jesus Cristo até a sua crucificação. Tal expressão foi trazida

ao contexto deste artigo com o intuito de demonstrar que, da mesma forma que Jesus Cristo,

Fabiano e sua família, assim como João do Santo Cristo, também enfrentam uma caminhada

em direção ao sue próprio “calvário”. Entretanto, a cruz que as personagens de Vidas Secas e

“Faroeste Caboclo” carregam não é de madeira; mas social, afinal de contas, viver em um

meio que lhes oprime e que não os permite “ser gente”, sem infringir a lei (caso de “Faroeste

Caboclo”), parece ser um peso insuportável. Com isso, esta etapa da análise mostrará a ação

das personagens tanto de Vidas Secas quanto de “Faroeste Caboclo”, até as suas respectivas

“crucificações”.

Segundo Silva (1973), a narrativa moderna busca representar o mundo objetivo e as

ações dos homens na realidade externa. Assim, nos dias atuais, o narrar tende a caracterizar as

personagens, o espaço e as ações de forma mais verossímil possível. A narrativa moderna

Page 460: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1238

apresenta personagens que, muitas vezes, não têm um final feliz, ou seja, elas podem começar

em uma situação difícil, ascender e atingir a felicidade, mas no final, podem acabar em um

“calvário” igual ou maior do que o do início.

Nessa perspectiva, as ações das personagens de Vidas Secas fazem jus ao título da

obra, pois, Vidas Secas remete a algo que necessita de água para florescer novamente. Nesse

caso, as personagens da obra começam em grande estado de “secura”, tentando sobreviver na

imensidão e na seca do sertão:

Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do

rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma

sombra [...] A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas

brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus faziam círculos altos em redor de

bichos moribundos. (RAMOS, 2005, p. 9 - 10)

Porém, depois de tanto caminhar, conseguem chegar a uma fazenda abandonada e

descansam sob a sombra dos juazeiros. As coisas, enfim, começavam a dar certo para eles; lá

eles fazem planos: “iriam engordar” e Fabiano seria “o vaqueiro daquela terra”. Dessa forma,

as personagens atingem a felicidade plena, não com muito, mas com o máximo que eles

poderiam conseguir, diante daquele meio tão desumano. Nesse instante, as “Vidas” até então

“Secas”, recebem uma grande dose de água (ou melhor, de chuva) e florescem novamente:

A fazenda renasceria e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono

daquele mundo [...] Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de

Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das

cabras.Chocalhos tilintariam pelos arredores; a caatinga ficaria verde (RAMOS,

2005,p.16).

Durante a estada dos “infelizes” na fazenda, suas vidas apresentaram muitas idas e

vindas, narradas pelos capítulos da obra. Nesse caso, os capítulos: “Fabiano”, “Sinhá Vitória”,

“O menino mais novo”, “O menino mais velho” e “Baleia” mostram as características de cada

uma dessas personagens tentando fixar-se no espaço. Nesses capítulos, são descritos os

desejos, os sonhos e as angústias, dessas personagens, diante da possibilidade de conseguir,

enfim, ter um lugar para ficar. Além disso, no capítulo “Baleia”, as personagens têm que

superar a morte daquela que os guiava e que, apesar de ser uma cachorra, era o “ser mais

humano” dentre aqueles infelizes.

Os capítulos: “Contas”, “Cadeia” e “Festa” apresentam o contato dos sertanejos com a

cidade e com o capitalismo. Em “Contas”, Fabiano e sua família têm contato com o dono da

fazenda, homem egoísta, que os explora com o seguinte pretexto: “aceita ou vai embora”.

Page 461: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1239

Fabiano não entendia o que era certo nem errado, sabia que não queria voltar ao sertão, por

isso, aceitava. Já “Cadeia” destaca-se por mostrar o primeiro contato de Fabiano com a

cidade. Nesse capítulo, depois de ser preso por fugir da mesa de jogo, o sertanejo vai parar em

um lugar que lhe é estranho. Dessa forma, a cadeia para Fabiano pode ser comparada a uma

jaula para um animal selvagem, ambos presos em um espaço que não lhes pertence.

No Capítulo “Festa”, acontece o segundo encontro de Fabiano com a cidade, mas,

dessa vez, junto de sua família. Na festa, os sertanejos conseguem, apesar da bebedeira de

Fabiano e do sumiço de Baleia, ter um pouco de alegria, mesmo longe do “habitat natural”.

Por fim, dois capítulos que também demonstram as idas e vidas, e também merecem

destaque são: “O Mundo Coberto de Penas” e “Fuga”. No primeiro, surgem os sinais de que a

seca estava voltando, e com ela, o “pesadelo da fome”. Por fim, “Fuga”, como o título já

indica, descreve a saída das personagens em busca (novamente) de um lugar melhor, pois a

permanência ali seria a certeza da morte. Partiram pela manhã. Destino? A cidade:

Iriam para adiante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e

acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era [...] andavam

para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes

(RAMOS, 2005, p.127).

Como pode ser verificado, a obra encerra-se com as personagens no sertão, “do sertão

vieram e para o sertão voltaram”. Por isso, não é possível afirmar o que aconteceu depois (se

morreram ou não). A única certeza é de que a cruz que carregam (o sertão) transformou suas

almas de tal forma que, por mais que tentem mudar seus destinos, acabarão como “cachorros,

inúteis, acabando como Baleia” (RAMOS, 2005, p.128).

A história de Santo Cristo, diferente do que acontece em Vidas Secas, começa em uma

cercania no interior da Bahia, ou seja, Santo Cristo possuía um lugar que era seu. Entretanto,

por mais que tivesse onde viver, o marasmo, a violência, o racismo e o pouco

desenvolvimento de sua terra, fizeram com que esse herói nordestino partisse em busca de

uma vida melhor, por isso, rumo a Salvador. Lá, João de Santo Cristo conhece um

“boiadeiro” que o orienta a ir a Brasília. Ao chegar à capital, ele encontra uma cidade toda

iluminada, como se estivesse esperando por ele: "Meu Deus, mas que cidade linda /No Ano-

Novo eu começo a trabalhar/Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro /Ganhava cem mil por

mês em Taguatinga” (RUSSO, 1987).

Desde sua chega a Brasília, João de Santo Cristo traçou “planos santos” para

conquistar seus objetivos. A princípio tenta vencer na vida honestamente, mas aos poucos,

Page 462: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1240

Santo Cristo (ao contrário de Jesus), cede às “tentações diabólicas” do meio em que estava

inserido, e torna-se um fora da lei. Contudo, como todos têm direito ao perdão, Santo Cristo

arrependeu-se de seus pecados graças à Maria Lúcia, e tentou viver decentemente, mas por

mais que evitasse, Santo Cristo já havia “vendido sua alma ao diabo”, por isso, “Decidiu

entrar de vez naquela dança” (RUSSO,1987). Seu destino? A morte.

Todavia, algo muito interessante que acontece é que uma letra de música carece da

riqueza narrativa possível em um romance. No caso de “Faroeste Caboclo”, ganham

importância os ritmos, pois, na execução da letra sobreposta à música, a variação de ritmos

supre as carências da narrativa, ou seja, elementos como o espaço, a aventura, tensões, assim

com as decepções, o amor e até mesmo o clímax, são delineados pela variação de ritmos.

Nesse caso, alguns exemplos podem ser verificados facilmente, como por exemplo, a

balada inicial (com triângulo) descreve a partida de Santo Cristo, herói nordestino rumo à

capital; o reggae (associando o ritmo aos usuários de maconha) serve como “pano de fundo”

no momento em que Santo Cristo torna traficante; a balada romântica quando ilustra o

momento em que a personagem principal conhece o amor nos braços de Maria Lúcia; assim

como o rock nos momentos de aventura e/ou fúria do protagonista.

Em tempo, outro aspecto muito interessante diz respeito ao último verso, pois ao gritar

a palavra “sofrer”, ao invés de cantar, Renato Russo enfatiza o aspecto de denúncia da letra, e

revela o descontentamento com o fato de que muitas pessoas ainda sofrem em suas

“cercanias” e continuam migrando para as capitais e, pior, acabam como João de Santo Cristo.

Assim, a letra de “Faroeste Caboclo” denuncia que, assim como acontece em Vidas Secas, o

ciclo de migração continua.

Além disso, os textos parecem indicar que o caminho percorrido pelas personagens

não importa, pois a opressão é interna, o meio modifica as personagens em seus múltiplos

aspectos. Assim, por mais que tentem fugir dos seus destinos, não o conseguem, pois a

opressão já os havia transformado física, sócio e psicologicamente.

Considerações finais

Assim, ambas as obras analisadas narram o sofrimento do imigrante, em épocas e

contextos sociopolíticos diferentes. Em Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve o drama

enfrentado por uma família; e “Faroeste Caboclo” apresenta o drama de um imigrante. Todos

tentando melhorar de vida.

Page 463: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1241

Nesse caso, é bem verdade que não é possível afirmar com veracidade documental que

Renato Russo leu a obra Vidas Secas para escrever “Faroeste Caboclo”. Porém, diante dos

temas que aproximam as duas obras apresentados neste trabalho, é inegável que haja uma

influência, direta ou indireta, da obra de Graciliano Ramos sobre a de Renato Russo.

Entretanto, apesar de apresentarem temáticas semelhantes, as obras possuem algumas

características contrastantes, pois Vidas Secas é um romance (gênero épico) e descreve

sertanejos que tentam sobreviver na imensidão do sertão, enquanto “Faroeste Caboclo” é uma

letra de música, que, apesar de disposta em versos, é uma narrativa e mostra o drama de um

sertanejo tentando vencer na vida em uma grande cidade.

Nesse sentido, o caráter de originalidade de “Faroeste Caboclo” em relação a Vidas

Secas ocorre devido ao fato de Renato Russo conseguir expressar o mesmo drama e o mesmo

teor de denúncia trazida por Graciliano Ramos, mas em uma letra de música. Ou seja, uma

tarefa difícil de ser realizada, pois enquanto o romance prioriza a narrativa e a riqueza de

detalhes, a letra tende a ser curta, pois é feita para ser musicada.

Além disso, de certa forma, “Faroeste Caboclo” traz à tona a continuidade do ciclo de

imigração dos sertanejos, iniciado na obra de Graciliano Ramos, afinal de contas, as

personagens de Vidas Secas, no final da obra, migram em direção à cidade alimentando o

sonho de que, lá, pessoas como eles teriam dias melhores. Entretanto, “Faroeste Caboclo”

narra o percurso João do Santo Cristo, que consegue chegar à cidade, mas, ao contrário do que

pensavam Fabiano e Sinha Vitória, depara-se com uma cidade sem oportunidades; sem ter

escolha, torna-se um fora da lei e acaba morrendo baleado.

Nesse caso fica perceptível que Renato Russo sofreu influência, direta ou

indiretamente, de Graciliano Ramos, porém, fez-se valer, conscientemente ou não, de tal

influência para produzir uma obra que trouxe elementos de originalidade.

Referências

CARVALHO, Nilson Pereira de. Uma reflexão sobre o espaço em Vidas Secas de Graciliano

Ramos. Goiânia, s/ed. s/data.

______(Coord.). Metaliteratura e suas metáforas. Projeto de Pesquisa da Universidade

Federal Rural de Pernambuco, 2011.

______. A personagem do romance. In: ROSELFELD, Anatol (org). A personagem de

Ficção. 11ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo:

Beca produções culturais, 1999.

Page 464: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1242

CANDIDO, Antônio. personagem do Romance. In: ROSELFELD, Anatol (org). A

personagem de Ficção. 11ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

LANGER, Johnni. O mito do Eldorado: origem e significado no imaginário sulamericano

(século XVI). Disponível em:

<http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/18809/20872>. Acessado em:

23/10/2014.

NITRINI, Sandra. Literatura Comparada, História, teoria e crítica. 3ª. Ed. São Paulo:

Editora Universidade de São Paulo, 2010.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

RUSSO, Renato. Faroeste Caboclo. In: Que país é este. Emi-Odeon Brasil, 1987.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Lírica, narrativa e drama. In: Teoria da literatura. 3ª ed.

Coimbra, 1973, p. 227-242.

Page 465: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1243

CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO

CARNAVALESCO? [Voltar para Sumário]

-Jociane da Silva Luciano (UFRN)

Introdução

O carnaval é uma festa popular que teve sua origem na Antiguidade, acredita-se

que na Grécia em medos dos anos 600 a 520 a. C., através da qual os gregos realizavam

seus cultos em agradecimento aos deuses pela fertilidade do solo e pela produção. Os

festejos, desde o século VIII, passaram a ser realizados nos dias anteriores ao período

religioso da quaresma.

Os festejos do carnaval apresentam uma relação com o cômico, por meio dos

atos e ritos e por isso apresentam uma ligação com o riso. De acordo com Bakhtin

(1987, p. 4) “os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a ele se

ligam, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval”. O carnaval

é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso, riso esse carnavalesco, que é um

dos interesses da nossa pesquisa. Para tratar do carnaval e do riso carnavalesco,

recorremos a Mikhail Bakhtin (1987), contudo nem todo riso é carnavalesco, desse

modo recorremos também a Vladimir Propp (1992) que trata do riso de zombaria.

Procuramos compreender, sob essa perspectiva, como os aspectos cômicos, com

especial atenção para o riso carnavalesco estão presentes no gênero discursivo charge.

Assim, analisaremos se as charges ensejam um riso carnavalesco com o seu aspecto

universal e ambivalente (renega e regenera) ou um riso de zombaria que renega.

O presente artigo se organiza da seguinte maneira: primeiramente, expomos

algumas considerações sobre a charge como um gênero humorístico e em seguida,

discorremos sobre o riso carnavalesco e o riso de zombaria. Após os pressupostos

Page 466: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1244

teóricos, apresentaremos a análise de duas charges, publicadas durante o carnaval de

2015, procurando mostrar que riso engendra-se nesse gênero.

Charge: Um gênero humorístico

É cada vez mais evidente no universo acadêmico o interesse de se trabalhar com

gêneros humorísticos, dentre eles podemos citar: a tirinha, o cartum, as histórias em

quadrinhos, a piada e a charge, que pertencem ao mesmo campo discursivo – o

humorístico.

Ao falar sobre charge não podemos deixar de tocar na questão do humor, tendo

em vista que é um gênero que visa causar uma crítica por meio desse recurso. O humor

é uma condição humana e manifesta-se numa dimensão linguística e discursiva. E ainda

que não se encontre em todas as manifestações discursivas, necessariamente, passa pela

linguagem (MUNIZ, 2013). Há quem diga que a capacidade de compreender e procurar

solucionar as estruturas linguísticas, sociais e culturais que compõem o humor é uma

das poucas e valiosas qualidades que nos diferenciam dos outros seres vivos.

O humor pode ser entendido como uma ferramenta social, pois descortina aquilo

que poderia estar encoberto pelos discursos considerados sérios. De acordo com Brait, o

discurso humorístico “possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais,

sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem

menos críticos” (2008, p. 17). Ele desmascara assuntos e trata de temas tabus que se

instauram histórico-socialmente, esses temas muitas vezes não podem ser tratados da

mesma maneira em outros campos discursivos, como por exemplo, o religioso, o

científico ou o político. É como se existisse uma espécie de contrato entre a sociedade e

o campo humorístico para que a charge possa tratar de determinados assuntos

polêmicos.

Dessa forma, o discurso humorístico:

[...] como qualquer outro, traz as marcas sócio-históricas – as diversas

manifestações culturais e ideológicas, valores arraigados que nele se

manifestam e, por isso, ele não deve ser entendido apenas como um

instrumento de diversão; o que nele está sendo dito não pode ser

simplesmente ignorado (FOLKIS, 2004, p. 01).

Page 467: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1245

Mas será que o discurso humorístico pode mesmo ser considerado como um

campo discursivo, assim como temos o campo discursivo religioso, político e científico?

As considerações do estudioso da linguagem Sírio Possenti (2010) apontam para o sim.

De acordo com Muniz (2013) a noção de campo esteve inicialmente ligada a Pierre

Bourdieu (1998) e seus estudos eram voltados para determinadas regras que os

membros de um campo tinham que seguir.

Na Análise do Discurso francesa, quem mais se debruçou sobre esse conceito foi

Dominique Maingueneau, propondo a noção de campo discursivo. Para ele, o campo

discursivo é “um espaço no interior do qual interagem diferentes “posicionamentos”,

fontes de enunciados que devem assumir os embates impostos pela natureza do campo,

definindo e legitimando seu próprio lugar de enunciação” (2010, p. 50), portanto, essa

noção está intrinsicamente relacionada a de posicionamento. Determinado indivíduo só

pertencerá a um campo específico se cumprir certos princípios e adotar certos

posicionamentos que o legitimem nesse segmento da sociedade, por exemplo, para que

uma pessoa possa se enquadrar no campo discursivo do humor, ele precisa produzir

algum gênero discursivo humorístico, possuir um senso crítico, publicar seus trabalhos

em jornais, em livros ou na internet, participar de eventos que façam parte desse

universo, etc.

De acordo com Possenti (2010), mesmo sabendo que há procedimentos

relativamente claros, embora instáveis que caracterizam cada campo é preciso

compreender estes como sendo internamente heterogêneos, por exemplo, no campo

filosófico em que se tem diversas escolas ou ainda no literário em que tendências vão e

voltam ao longo do tempo.

Comparando por analogia o humor e a literatura, Possenti (ibidem) propõe

alguns traços que podem definir o humor como um campo discursivo: primeiramente

temos as práticas do sujeito: os humoristas não se formam assim como os médicos ou

advogados, humor não se aprende na escola ou até mesmo na universidade, esses

autores podem surgir em qualquer espaço e ter outras atividades que podem ser

próximas da profissão de humorista.

Um segundo elemento definidor é o tema (assunto que o campo humorístico

aborda), o humor trata de qualquer assunto e inclusive luta para que nenhuma proibição

possa atingir suas produções. Este tenta fugir do “controle do politicamente correto”

Page 468: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1246

(2010, p. 175) por defesa de funções e práticas específicas. Inclusive, mesmo que

implicitamente, traz à tona temas tabus, ou seja, aqueles que não podem ser tratados de

qualquer maneira e por qualquer um, uma vez que geram na sociedade preconceito de

indivíduos e/ou grupos políticos. Frequentemente as charges trabalham com negros,

homossexuais, com religião e principalmente com a política.

O terceiro traço são os modos de enunciação (os gêneros preferenciais do campo

humorístico). O humor é um campo agregador de vários gêneros. Em suas palavras:

O humor, como a literatura, é um campo em que se praticam gêneros

numerosos, da comédia à charge, passando pelas “crônicas” e narrativas,

histórias em quadrinhos, tiras, pelas piadas e pela exploração humorística de

numerosos outros tipos de textos (provérbios alterados, pseudoaforismos),

“comédias em pé”, programas de rádio e televisão... Além de os gêneros

humorísticos serem muito numerosos, pode haver manifestações humorísticas

no interior de todos os tipos de texto (dos tratados aos ensaios, da Bíblia aos

romances) (POSSENTI, 2010, p. 175).

Consideramos ainda o fator da profissionalização e mercantilização do humor, o

que possibilita a expansão, favorecendo também sua legitimação como campo

discursivo.

O riso carnavalesco e de zombaria

O estudioso russo Mikhail Bakhtin tratou do riso no contexto da Idade Média e

Renascença através da carnavalização literária na obra de François Rabelais, chamando

a atenção para a “alegre relatividade de tudo” (1987, p. 125). Neste trabalho, Bakhtin

considera o riso como o elemento mais emblemático da cultura popular medieval e

renascentista, principal instrumento de manifestação de uma cosmovisão carnavalesca.

Observando o carnaval, entre os séculos XIV e XVI, ele o compreende como a

afirmação festiva e ritual da relatividade do mundo, marcado por elementos como o

livre contato familiar entre os homens, a excentricidade, as alianças e a profanação

(BAKHTIN, 1997).

O carnaval é narrado em Bakhtin como uma festa onde não há divisão entre

atores e espectadores. O carnaval não é, portanto, uma festa que deve ser observada,

mas vivida. “Essa vida carnavalesca é uma vida diferente da cotidiana, pois ela desvia a

Page 469: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1247

ordem habitual, transformando-se em uma ‘vida às avessas’, ‘num mundo invertido’”

(ROMUALDO, 2000, p. 51).

O conceito de carnavalização bakhtiniana abrange vários pontos, como

exposições de corpos, dessacralização, destronamento, dualidades, entre outros,

inclusive o que está presente nesse estudo, o ritual de coroação-destronamento

(ROMUALDO, 2000).

Segundo Roberto Stam (1992) em seu livro Bakhtin: da teoria literária à cultura

de massa:

No carnaval, todas as distinções hierárquicas, todas as barreiras, todas as

normas e proibições são temporariamente suspensas, estabelecendo-se um

novo tipo de comunicação, baseado no ‘contato livre e familiar’. O carnaval,

para Bakhtin, gera um tipo especial de riso festivo. Mais do que uma reação

individual a um evento cômico isolado, é uma espécie de alegria cósmica, de

âmbito universal, dirigido a tudo e a todos, inclusive aos participantes do

carnaval. Para Rabelais e para o espírito carnavalesco em geral, o riso tem um

profundo significado filosófico; é um ponto de vista particular sobre a

experiência, não menos profundo que a seriedade. É uma vitória sobre o

medo que torna comicamente grotesco tudo o que aterroriza. O riso popular

festivo triunfa sobre o pânico sobrenatural, sobre o sagrado, sobre a morte;

provoca a queda simbólica de reis, de nobrezas opressoras, de tudo o que

sufoca e restringe. Em Rabelais, o riso assumiu o papel de uma nova

consciência, uma consciência crítica, através da qual o dogmatismo e o

fanatismo eram ridicularizados. A filosofia de Rabelais, para Bakhtin, não

deve ser procurada nos trechos em que ele parece mais sério, mas sim quando

ele ri com mais vontade (1992, p. 44).

A partir desses estudos, Bakhtin conclui que o riso carnavalesco da Idade Média

e Renascimento é um riso do povo, em que todos riem, além disso, é geral, universal e

ambivalente, universal porque o mundo inteiro parece cômico e é percebido e

considerado em seu aspecto jocoso, ambivalente porque nega e afirma, amortalha e

ressuscita simultaneamente (1997).

Outro estudioso que também se dedicou ao estudo do riso foi Vladimir Propp.

Em seu trabalho “Comicidade e Riso”, Propp (1992) parte da concepção de que não é

possível estudar comicidade fora da psicologia do riso e da percepção do cômico. Para

ele, a comicidade acontece devido a uma contradição entre a forma e conteúdo,

aparência e essência. A contradição costuma estar associada ao descobrimento de

defeitos, segredos, daquele ou daquilo que suscita o riso.

A partir do pressuposto de que o riso e o cômico não são abstratos, pois o riso

faz parte do comportamento humano e o homem é o único ser com capacidade de rir de

Page 470: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1248

algo que seja humanamente ridículo, Propp (ibidem) cita três casos em que o riso surge

a partir da manifestação repentina de defeitos ocultos: pode ser algum defeito

encontrado no corpo, pode ser pela semelhança, quando vemos duas pessoas iguais,

pensamos que elas não têm diferenças internas, ou pode ser pela diferença, uma

particularidade ou estranheza que distingue uma pessoa do meio em que vive.

Para ele existem vários tipos de riso, o riso bom, maldoso, cínico, alegre, entre

outros que surgem quando são observados defeitos no mundo em que o homem vive e

atua. No entanto, o riso de zombaria é o aspecto que está permanentemente ligado à

esfera do cômico e é esse tipo o que mais se encontra na vida e dentre as coisas que

podem suscitar o riso no ser humano a mais comum e natural é rir daquilo que é

ridículo, podem ser ridículos o rosto de uma pessoa, sua silhueta e até os movimentos.

Algumas vezes é o próprio indivíduo que revela inconscientemente os lados cômicos de

sua natureza, mas em outros casos quem zomba o faz propositalmente (PROPP, 1992).

Reafirmando a ideia de que o cômico está intimamente relacionado aos textos

humorísticos Propp coloca que:

Para resolver o problema da comicidade não podemos nos limitar à obra dos

clássicos e aos melhores exemplos do folclore. Foi necessário conhecer a

produção corrente das revistas humorísticas e satíricas, incluindo-se os

folhetins publicados em jornais. As revistas e a imprensa refletem a vida

cotidiana (1992, p. 17).

O autor explica que as condições para suscitar a comicidade são, primeiramente,

quem ri tem pelo menos uma noção das exigências morais da natureza humana, algumas

concepções do que seja justo e correto, e, por último, quando rimos é porque

encontramos algo que contradiz o que consideramos certo dentro de nós, ou seja, algum

defeito no mundo.

Análises

O objetivo dessa seção é analisar como os aspectos cômicos, com especial

atenção para o riso carnavalesco e o de zombaria engendram-se nas charges

selecionadas e constituem os possíveis efeitos de sentido. Observemos a primeira

charge:

Page 471: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1249

Disponível em: <http://fotografia.folha.uol.com.br/.> Acesso em 16/02/2015.

Nesta charge publicada na Folha de São Paulo durante o carnaval do ano de

2015, evidenciamos que esta é composta por dois quadrinhos que constituem momentos

diferentes. No primeiro, temos um cenário visual que remete a uma festa carnavalesca,

isso se comprova pela animação das pessoas, pela presença das serpentinas e dos

confetes (elementos característicos desse período) e por fim pela linguagem verbal que é

composta pela legenda: “Durante o carnaval”.

Recorrendo ao nosso conhecimento de mundo, compreendemos que essa

imagem se refere a um dos momentos mais marcantes do carnaval brasileiro, o desfile

das escolas de samba, que ocorrem mais precisamente nas cidades do Rio de Janeiro e

São Paulo. Sempre ao término dos desfiles, os garis (responsáveis pela limpeza dos

locais) “desfilam” – ao som de muito samba, recolhendo toneladas de lixo que são

produzidas durante e após os desfiles. Podemos visualizar esse cenário na imagem do

carnaval – 20151.

1 Disponível em: http://www.naturalfashion.com.br/site/wp-content/uploads/2015/02/gari-

sapuca%C3%AD.jpg. Acesso em 26/04/2015.

Page 472: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1250

No segundo quadro, formado também pela junção da linguagem verbal e não

verbal temos a legenda “Depois” mostrando o espaço temporal que se dá após a festa

caranavalesca. Agora nesse ambiente urbano, vemos as pessoas andando, assim como os

carros circulando nas vias. Diferentemente do primeiro quadro, as feições dos homens e

mulheres não são de alegria, mas sim de desânimo e até mesmo de indiferença para com

o gari que está varrendo a rua, já que um indivíduo passa ao lado do depósito de lixo e

mesmo assim joga-o no chão.

A imagem dos garis no Sambódromo após a passagem de cada escola já é um

elemento característico dessa festa. Demonstram ser tanto profissionais da limpeza

quanto artistas do samba. Mas, curiosamente, ao sambar durante o trabalho, ocupam um

espaço que lhes era negado.

Relacionando a charge com a carnavalização podemos identicar nesse exemplar

uma das características do carnaval: o mundo às avessas. Isso está representado

claramente pela oposição dos momentos na charge. Durante o carnaval há um contato

aproximado e sem hierarquias entre os garis e os foliões, um rompimento de barreiras

entre as classes sociais, os personagens encontram-se próximos, sem a distância da vida

cotidiana. No carnaval todos os participantes são ativos, vivem em vez de assistir. E

essa vida carnavalesca tem leis que diferem do caráter oficial, tornando-se uma vida às

avessas. As leis revogavam-se durante o carnaval e as distâncias entre os homens

deixavam de existir, ocorrendo um leve contato familiar em praça pública (BAKHTIN,

1997). É o que acontece com o gari no carnaval, ele participa, vive a festa.

Outra ação carnavalesca é a coroação e o posterior destronamento do rei do

carnaval, revelando dessa forma o sentido de morte e renovação do carnaval, o mundo

carnavalesco às avessas e a consciência de que nada é absoluto, mas relativo. Nesse

caso, o gari torna-se uma espécie de rei coroado na avenida, onde todos riem junto com

ele, mas logo após as festividades ele é destronado e volta a “vida real”, em que é

muitas vezes, assim como nos mostra a charge, inferiorizado pelo trabalho que realiza.

A coroação do bobo com data previsível para seu destronamento evidência o sentido de

mudança, morte e renovação que acompanha o sentido de ambivalência carnavalesca e

influencia tanto produções literárias como outros gêneros, e no caso aqui explanado, a

construção da charge.

Page 473: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1251

Desse modo, considera-se que o riso carnavalesco faz-se presente nesta charge,

uma vez que, é um riso do povo, em que todos riem (os garis e a plateia, os ricos e

pobres), além disso, é universal e ambivalente, universal porque o mundo inteiro parece

cômico, ambivalente porque nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (o

gari é coroado e destronado, lembrado e esquecido).

Segunda charge:

Disponível em: <http://www.capasface.com.br/buscar/1/pulando.html.> Acesso em 13/02/2015.

Na charge acima, que também traz a temática envolvendo o carnaval, temos um

personagem que está “pulando” o carnaval. No verbal temos três enunciados, a legenda

no canto esquerdo que diz “Pulando o carnaval”, a palavra “CARNAVAL” e a fala do

personagem com a expressão “Tô fora!”.

A charge foi publicada antes do início do carnaval, mais precisamente na sexta-

feira dia 13 de fevereiro. O carnaval chegou ao Brasil em meados do século XVII, sob

influência das festas carnavalescas que aconteciam na Europa. A festa ocorre em

diversos estados brasileiros, contudo aqueles em que o período toma proporções

nacionais e até internacionais são Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Nos

dois primeiros, o carnaval é conhecido pelos grandes desfiles e campeonatos das escolas

de samba, já o Pernambuco permaneceu com as tradições originais do carnaval de rua

em Recife e Olinda, e na Bahia o carnaval fugiu da tradição e conta com trios elétricos

embalados por músicas dançantes.

Todo ano, milhares de pessoas participam das mais variadas festividades nesse

período, mas há também aqueles que acham que esse tempo deveria ser usufruído de

outra maneira (sem o barulho intenso, sem pessoas alcoolizadas, etc.) e principalmente

que parte do dinheiro público envolvido poderia ser destinada para outros setores que

necessitam de recursos.

Page 474: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1252

Primeiramente, observamos que o cômico dessa charge se dá por meio da

técnica de humor denominada de ambiguidade, procedimento que ocorre quando há o

duplo sentido em uma palavra, expressão ou frase. Possenti (1998) afirma que essa

técnica é o equívoco que a linguagem pode produzir. Nesse caso, a ambiguidade está

presente na expressão “pulando o carnaval”, uma vez que podemos entender o termo

tanto no sentido de festejar, participar do carnaval, assim como no sentido de não

participar da festa, cair fora. Analisamos ainda, outra técnica de humor que é a do

deslocamento, que consiste na quebra de expectativas por parte do leitor, em que um

esquema de raciocínio se sobrepõe a outro (MUNIZ, 2013). A cena apresentada sugere

um raciocínio que é a de pular o carnaval (cair no samba, saltar atrás do trio elétrico),

mas que é quebrado em seguida pela fala do personagem “Tô fora!”.

Essas técnicas linguísticas e discursivas convergem para o aspecto do humor que

leva o ser humano a zombar, depreciar e ridicularizar o próprio homem – a zombaria.

Como o próprio nome já afirma, o riso de zombaria traz em si a matriz da zombaria e do

deboche.

O chargista constrói sua crítica ao carnaval e as pessoas que participam dele, por

meio do riso de zombaria, pois zomba e ridiculariza das atitudes e dos comportamentos

sócio-histórico-culturais de determinados indivíduos nesse período. Propp compreende

que “todo o vasto campo da sátira baseia-se no riso de zombaria” (1992, p. 28). “O

escárnio presente no riso de zombaria está na constituição do caráter do homem, pelo

âmbito de sua vida moral, de suas aspirações, de seus desejos e objetivos” (1992, p. 29).

Em outras palavras, é o riso de zombaria profundamente relacionado com as condições

sócio-histórico-culturais do homem em sintonia com seu meio.

Assim, diferentemente da primeira charge, observamos aqui um riso que renega,

renega esse período de festa popular. Isso é importante para mostrar que nem todo riso

regenera, que nem todo riso é carnavalesco, mas há também aquele que critica, que

zomba. Ao comentar sobre a comicidade, Romualdo (2000) destaca que o riso de

zombaria, no discurso chargístico, é provocado pelos defeitos da personagem ou da

situação da qual se ri, que é o que acontece na charge em questão. A própria diferença

entre coisas, pessoas, comportamentos, faz surgir o riso e nesse caso a diferença

existente é ironizada e criticada.

Page 475: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1253

Considerações finais

Este trabalho teve por objetivo analisar os aspectos cômicos, com especial

atenção para o riso que se engendra nas charges que trazem a temática do carnaval. Com

base no que foi apresentado e respondendo a pergunta feita no título do trabalho,

destaca-se que os conceitos de riso de zombaria e de carnavalização foram percebidos

no corpus deste artigo.

Com o rompimento das barreiras sociais do dia a dia durante o carnaval, as

pessoas riem juntas, não assistem à festa, mas a vivem, mesmo que depois isso acabe

como ocorreu na primeira charge, o que mostra que o carnaval tem o poder de criar

outra vida, uma segunda vida. Observamos ainda que nem só o riso carnavalesco

constituiu as charges que compuseram nosso corpus, mas tivemos também o riso de

zombaria, o que confirma a compreensão de que nem todo riso é festivo, mas há

também o que renega e critica.

Assim, fica claro que o riso não serve apenas para fazer rir, ele vai além. A

charge é a todo momento construção de sentidos e esses risos convergem para essa

constituição de significações.

Referências

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de

François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da

UnB, 1987.

_______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BOURDIEU. Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas. Tradução de Sérgio Miceliet

al. São Paulo: EDUSP, 1998.

BRAIT, B. Ironia em Perspectiva Polifônica. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2008.

FOLKIS, G. M. B. Análise do discurso humorístico: as relações marido e mulher nas

piadas de casamento. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de

Campinas, Campinas: SP, 2004.

MAINGUENEAU, D. Campo Discursivo – A propósito do campo literário. Tradução

de Fernanda Mussalim. In: _______ Doze Conceitos em Análise do Discurso.

Page 476: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1254

Organização de Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva e Sírio Possenti. São Paulo:

Parábola Editorial, 2010.

MUNIZ, Cellina. Na tal cidade do humor. Natal: Sebo Vermelho, 2013.

POSSENTI, S. Os humores da língua: análise linguística de piadas. Campinas:

Mercado de Letras, 1998.

_______.Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Editora Ática, 1992.

ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um

estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000.

STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática,

1992.

Page 477: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1255

PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS

INICIANTES EM LETRAS

[Voltar para Sumário]

Joelma da Silva Santos (UFPB)

Introdução

Nosso trabalho tem como foco a escrita em processo de transição do Ensino

Médio (EM) para o Ensino Acadêmico (EA). Sabemos que escrever consiste em uma

prática social que é realizada por pessoas com domínio da língua na sua modalidade

escrita, tendo como finalidade a interação com outrem, a fim de atender o que a situação

comunicativa exige mediante os diferentes gêneros textuais presentes em nossa

sociedade. Sendo assim, a escrita é, portanto, concebida como prática social,

compreendendo que se escreve, atendendo-se a um conjunto de condições, tais como:

para quem se escreve, o que se escreve e como se escreve, numa perspectiva

sociointeracionista de linguagem.

Ante o exposto, considerando que escrevemos em contextos diferentes e que

estes, por sua vez, exigem de nós capacidades distintas, haja vista não escrevermos

sempre da mesma maneira nem com o mesmo objetivo, nosso trabalho tem como

pretensão apresentar e discutir os impactos sentidos pelos alunos recém-ingressos no

curso de Letras no que se refere às suas primeiras produções textuais acadêmicas.

Gênero: objeto de ensino-aprendizagem na educação básica e na graduação em

Letras

Os gêneros textuais na abordagem do ISD se configuram mediante a apropriação

de práticas sociais, os quais com o tempo se modificam, devido às formações sociais de

linguagem (BRONCKART, 2006). Nessa abordagem, nossos textos devem estar

Page 478: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1256

interligados às representações sociais vigentes. É nossa ação social que determina

nossas produções.

Podemos inferir que, para cada produção, o sujeito interage com o contexto e a

situação de produção. Daí ser um equívoco abordar os gêneros textuais, na sala de aula,

sem considerá-los como parte integrante da realidade do aluno. Infelizmente, a maioria

de nossas escolas continuam abordando o ensino de gêneros textuais como uma prática

baseada em estruturas, ou seja, ao invés de ensinar a escrever a partir do uso efetivo dos

gêneros textuais, visando sua funcionalidade, pautada na situação comunicativa, elas

têm ensinado aos alunos a estrutura do gênero, a exemplo: as características que têm

uma carta, um conto, um bilhete, entre outros, mas sem colocar em uso essas situações

de comunicação.

Para Marcuschi (2005, p.10) “não se ensina um gênero como tal e sim se

trabalha com compreensão de seu funcionamento na sociedade e na sua relação com os

indivíduos situados naquela cultura e suas instituições”. É preferível que se ensine a

escrita mediante o uso dos gêneros, pois a todo o momento falamos e/ou escrevemos

baseados nos gêneros textuais, sejam eles orais ou escritos, isto é, para cada situação

comunicativa produzimos textos diferentes.

Cabe à escola, portanto, colocar em ação processos de aprendizagens e de

desenvolvimento, que visem o ensino dos gêneros como “atividade linguajeira

significativa; que um gênero pode transmutar-se em outra estrutura relativamente

estável” (BALTAR, 2006, p. 182).

Vale destacar que, principalmente na escola, os alunos, geralmente, não se

sentem motivados a escrever, pois a escrita ensinada nesse contexto, na sua maioria, se

restringe a uma escrita imposta. Daí ser relevante que fique claro para o aluno o que ele

vai escrever, para quem e como. Razão esta em que o importante não é mostrar para eles

a variedade dos gêneros que circulam socialmente e sim sua funcionalidade social.

Partindo dessa premissa, acreditamos que é de suma importância enfatizar a

aplicabilidade dos gêneros em sala de aula, uma vez que estes visam ordenar e

estabilizar as diferentes formas de comunicação presentes no nosso dia-a-dia.

Concordando com Vian Jr (2006) vemos, na maioria das vezes, que os alunos

chegam à academia com dificuldade de aprendizagem em relação aos gêneros textuais.

Um estudo feito por Silva (2009, p. 150) constatou que os alunos que não possuíram

Page 479: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1257

experiências, durante o letramento escolar, com outros gêneros textuais, além do texto

dissertativo “demonstraram um efeito retroativo no desempenho quanto às provas de

redação” aplicadas por algumas instituições tais como UFRN, UNB, UEPB, UFCG e

UFPB, as quais exigem outros tipos de práticas de letramentos, quanto à produção de

gêneros textuais diversos, do tipo carta protesto, relato de experiência, carta-denúncia,

memorial, resenha e palestra, em detrimento, apenas, da produção de uma dissertação.

Esses alunos, quando ingressam no ensino superior, além de sentirem

dificuldade de adequar suas escritas aos moldes da academia, continuam, muitas vezes,

produzindo textos apenas com função acadêmica, isto é, para obtenção de uma nota, e

assim, permanecem sem entender a relevância do ensino-aprendizagem dos gêneros.

Concordando com Motta-Roth (2006, p. 504), entendemos que

o ensino de produção textual depende de um encaminhamento conceitual da

representação do aluno sobre o que é a escrita, para quem se escreve, com

que objetivo, de que modo e sobre o quê [...] as atividades de produção

textual propostas devem ampliar a visão do aluno sobre o que seja um

contexto de atuação para si mesmo.

Desse modo, no contexto acadêmico o ensino de gêneros textuais deve ser

situado e, portanto, faz sentido ensinar resenha, relatórios, artigos, resumos, se o curso

for de Letras ou Educação. Contudo, o docente necessita conduzir o aluno para a

reflexão de que os gêneros são diversificados e instáveis, ou seja, muda conforme o

contexto de comunicação. Ainda de acordo com Motta-Roth (2006, p. 505) é

fundamental que o aluno entenda o contexto em que escreve, por exemplo,

compreendendo as seguintes indagações: “para que serve esse gênero? Como funciona?

Onde se manifesta? Como se organiza? Quem participa e com que papeis? (quem pode

ou deve escrever e quem pode ler)?”. Não queremos mencionar um ensino de fórmulas,

pois não há como apresentarmos uma estrutura única de um determinado gênero, haja

vista o mesmo não ser algo estático, mas que se adequa “conforme as diferentes funções

que se pretende cumprir” (ANTUNES, 2003, p. 49).

Em outras palavras, os gêneros são infinitos e como tal não dá para apreender a

todos, mas apropriar-se daqueles que circulam em nosso meio, que podem ser os

gêneros acadêmicos: resenha, resumo, para alunos de Letras; relatórios diários, para

alunos da Medicina; relatório de condicionamento físico, para alunos de Educação

Física; e assim, por diante (BALTAR, 2006).

Page 480: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1258

Dessa forma, entendemos que gênero não é só o texto, mas o conteúdo, sua

forma organizacional e situação comunicativa. Marcuschi (2005, p. 243) defende que

“os gêneros não são simples formas textuais, mas formas de ação social”. Concordando

com o grupo Didactext (2006, p. 114) acreditamos que ensinar a escrever implica

considerar as práticas de escrita que os alunos têm em seus cotidianos, a fim de que eles

escrevam objetivando a comunicação com o outro, haja vista, na maioria das vezes, “os

alunos associarem a escrita escolar apenas com os aspectos formais e normativos

(caligrafia, ortografia) e como realização de seus deveres”.

Os alunos para escreverem necessitam estar situados em um contexto sócio-

histórico, ninguém escreve no vazio, isto é, sem um interlocutor. A proposta defendida

por Bakhtin (1997), Antunes (2003), Marcuschi (2008), Schneuwly e Dolz (2004),

Bronckart (1999) é que todos os textos produzidos são baseados em gêneros. Para tanto,

priorizamos o ensino e o estudo da escrita pautado a partir da diversidade dos gêneros

que permeiam nossa sociedade. Para Motta-Roth (2006, p. 501) é o contexto que

determina o “critério para se escolher o que e como dizer ou escrever”.

Quando falamos ou escrevemos, somos conduzidos a nos adequarmos à esfera

comunicativa, considerando, portanto, o contexto, ou as condições de produção – o que

dizer, para quem dizer e como dizer. Confirmando, assim, a fala de Marcuschi (op. cit.

p. 174), quando diz: “o conteúdo [do dizer] não muda, mas o gênero é sempre

identificado na relação com o suporte”, ou seja, dependendo de onde falamos ou

escrevemos o gênero é moldado.

No entanto, devido às práticas de ensino-aprendizagem de escrita voltarem-se,

muitas vezes, apenas, para cumprir obrigações escolares, como por exemplo, obter uma

nota, nossos alunos acabam sendo, portanto, submetidos ao ato de escrever, contudo

sem saberem por que escrevem, bem como não compreenderem o sentido de suas

escritas.

É função, pois, tanto das instituições de ensino básico como superior oferecerem

situações de ensino-aprendizagem da escrita, pautados na diversidade dos gêneros

discursivos, que incitem o aluno a escrever, atendendo as suas reais necessidades, a fim

de que não seja uma escrita apenas, como produto, mas dinâmica e significativa. Ou

seja, que os alunos escrevam, compreendendo a relevância de seu texto para o contexto

a que está sendo produzido, embora sua produção consista em uma obtenção de uma

Page 481: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1259

nota, o aluno precisa escrever de forma coerente, concisa e argumentativa,

demonstrando domínio no que escreve (ou fala – se for um texto oral).

É imprescindível que o professor deixe claro para o aluno que gênero está sendo

solicitado, seja um resumo, uma resenha, um artigo, uma monografia etc; assim como

que finalidade tem cada gênero, como se estrutura e qual seu destinatário. Essas

questões são relevantes, pois os alunos precisam produzir seus textos compreendendo o

que vão escrever, para quem e como vão escrever.

Contextualizando a pesquisa

O corpus de análise foi coletado com alunos recém-ingressos no curso de Letras,

de uma universidade pública do Estado da Paraíba. Estes alunos estavam cursando as

primeiras disciplinas relacionadas à leitura e a escrita – Leitura e Produção Textual I

(PLPT I) e II (PLPT II).

Para compor os dados de análise, observamos algumas aulas da disciplina PLPT

I, bem como entrevistamos e aplicamos questionários com toda a turma. Contudo, nos

detemos nos dados obtidos apenas de três alunos, os quais foram escolhidos em

conjunto com a professora ministrante. Essa escolha se deu após a docente ter feito

análises prévias acerca do nível de proficiência de escrita que cada aluno se encontrava,

no momento da pesquisa, estabelecendo-se assim, níveis de proficiência de escrita para

os três alunos, com base nos seguintes critérios que foram observados em suas primeiras

produções acadêmicas: adequação ao gênero a ser produzido; pertinência ao tema

proposto; adequação de mecanismos de textualização e, por fim, adequação à variedade

linguística e às convenções da escrita. Ficando, assim, de forma situada e provisória, a

seguinte classificação: aluno iniciante na escrita acadêmica (I) – o que apresentou mais

dificuldades em suas produções; aluno mediano (M) – ora demonstrava proficiência ora

demonstrava inconsistência em sua escrita e, por fim, o aluno proficiente (P) – que

apresentou mais adequação e proficiência em suas produções.

Impactos sentidos pelos alunos recém-ingressos no curso de letras ao receberem

seus primeiros textos acadêmicos

Passaremos a analisar neste subtópico o que os alunos sentiram quando se

depararam com a metodologia acadêmica de correção de textos, demonstrando,

Page 482: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1260

inclusive, nos seus próprios comentários, como veremos adiante, que no Ensino

Fundamental e Médio não existia a prática de correção textual de forma evidente como

existe na academia. Daí, a mudança na forma de ver, refletir e escrever.

Vejamos o que os alunos I, M e P responderam, quando perguntamos: Quando

chegou à universidade sentiu diferença(s) no ensino de escrita? Qual (is)?

Exemplo 1:

“Muito, e assim por tá no curso de letras, né? que eu acho que prioriza muito isso, a questão da

leitura e da escrita né? eu acho que talvez se fosse outro curso a dificuldade não seria tanta, mas

assim é:: no curso de letras eu acho que eu tô sofrendo ((risos)) muito viu?”

(Aluno I)

“Sim, bastante. Você escreve mais e o tipo de correção não é só ortografia. Você :: .é :: tem que

corrigir as ideias se tiver e as próprias opiniões do professor lhe ajuda a escrever melhor e é fácil

você reescrever tudinho, coisa que no ensino médio a gente não tinha”.

(Aluno M)

“Eu senti, porque eles puxam :: eles requerem mais coisas de você :: eles ensinam mui :: eles

mostram muito da teoria e querem a prática também e isso difere muito da escola, porque na

escola você só tem aqueles modelos prontinhos e aqui não você vai trabalhando com a mente,

vai vendo várias perspectivas para fazer você poder fazer seu texto. É bem mais complexo”

(Aluno P)

As respostas dadas, quanto ao ensino de escrita em transição do EM para a

academia, nos evidenciaram os impactos concernentes ao modo como os alunos veem o

processo de escrever, nos mostrando, assim, que os alunos recém-ingressos no curso de

Letras, de fato, se sentem impactados nesse período de transição, já que a academia

propõe um ensino pautado na concepção de escrita sociointeracionista, diferindo do

oferecido no EM, principalmente, se o curso é de Letras, como destaca o aluno I.

Analisando as respostas dos alunos I, M e P, exemplo 1, percebemos que eles

reforçam que o ensino de escrita que tiveram no EM foi de ordem estritamente escolar e

com função de se obter uma nota para passar de ano, assim como, para que

posteriormente concorresse a uma vaga na universidade. Podemos ver essa questão mais

evidente quando dizem:

Exemplo 2:

“Pra mim a escrita no Ensino Médio era só para concretizar as atividades. A escrita era isso :: é::

digamos concretização de uma atividade na escola :: acho que a escrita era mais voltada para a

escola, né?”.

(aluno I)

Page 483: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1261

“Acho que era apenas criar um texto, fazer um texto qualquer POR obrigação ::”

(aluno M).

“No ensino médio era basicamente a redação do vestibular. Eu achava assim: eu sei escrever

bem, porque quando eu faço um texto nos moldes do vestibular a professora diz que está bom”.

(aluno P)

Seus depoimentos reforçam a ideia de um EM focado em “preparar” o aluno

para ingressar na universidade, no entanto o faz de maneira equivocada, tendo em vista

os gêneros textuais solicitados hoje em concursos de vestibular não serem, apenas, o

texto argumentativo ou dissertativo como costuma ser explorado na escola, visando à

preparação do aluno, mas propostas outras, como: carta protesto, palestra, resenha e

outros.

Essa prática, que ainda há no EM provoca no aluno recém-ingresso na academia

um impacto, pois o aluno passou nove anos estudando escrita, basicamente, como

produto e após as discussões teóricas acerca do que é escrever de forma situada – escrita

sociointeracionista –, seus textos serem passíveis de reformulações, que praticamente

não havia no EM, o aluno entra em conflito com suas concepções e, assim, acaba,

passando por um processo de reaprendizagem de escrita, ou seja, torna-se um impacto.

É o que nos mostra o depoimento do aluno I, ao dizer:

Exemplo 3:

[...] é tanto que quando eu comecei a escrever, eu cheguei aqui a produzir meus primeiros

textos, tudo que eu sabia é como se eu não soubesse de nada e eu sentia uma angústia tão

grande: como é que eu não sei de nada? Assim, quer dizer, é:: esse contato que eu tô tendo aqui,

tipo assim, eu desaprendi o que eu sabia pra aprender algo novo então tá sendo assim pra mim

todo tempo [...] Eu tô desconstruindo muitas coisas pra poder construir novas e eu acho assim,

que a partir disso, né, talvez eu venha a desenvolver mais, mas antes é:: eu eu sentia dificuldade,

toda vez que construía um texto que pegava o texto que me dava o texto todo, eu digo não, eu

sabia fazer alguma coisa, e hoje eu não sei fazer nada [...] como se tudo que eu produzisse tava

errado, tava errado, tava errado, mas agora assim, até que eu tô me adaptando, não sei [...].

[grifos nossos]

(Aluno I)

Vejamos como o aluno I se sente impactado ao receber seu texto, supostamente

com as correções da professora. Fica claro, nos trechos de seu depoimento, esse

impacto, quando revela sua angústia: “eu sentia uma angústia tão grande [...] como é

que eu não sei de nada? [...] hoje eu não sei fazer nada [...] tudo que eu produzisse tava

errado, tava errado, tava errado [...]”, talvez toda essa indignação se deva ao fato de

Page 484: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1262

considerar que nada do que estudou anteriormente à academia serviu. Isso nos mostra a

disparidade do ensino de escrita na academia, em particular, no curso de Letras, em

comparação com os anos estudados no EF e EM, daí esses alunos recém-ingressos

sentirem diferenças tanto no momento da sua escrita quanto na correção da mesma, o

que provoca um impacto.

A resposta do aluno M, exemplo 2, demonstra que a escrita vivenciada no EM

era uma escrita imposta – POR obrigação –, vejamos que ele enfatiza isso na sua

resposta, o que implica dizer que escrever é algo desagradável, uma vez que só se

escreve para atender a um determinado fim, como obter uma nota. O que não implica

ser uma prática incorreta, porém se é feita sem funcionalidade ou objetivo, torna-se

insuficiente para a apreensão da escrita formal e desejável, que é a escrita que cumpre

funções sociais distintas.

Como impacto na fala do aluno P, percebemos que ele passa a entender que

antes, no EM, havia um modelo pronto a ser seguido, exemplo 2, enquanto que na

academia, o texto que se fazia uma só vez no EM, é em algumas situações, refeito

quantas vezes for preciso, ou seja, a escrita é um processo contínuo.

Outro ponto a ser observado diz respeito aos impactos sentidos pelos alunos no

momento em que recebiam seus textos acadêmicos corrigidos. Veremos essa questão no

subtópico que se segue.

Correção como impacto

Analisando as respostas dos alunos, principalmente do aluno I e P, verificamos

que as correções de suas atividades, quando estavam iniciando o curso de Letras,

consistiram em um dos mais fortes impactos sentidos por eles. Vejamos o que eles

responderam à pergunta Como você reage às correções de seu texto na disciplina de

PLPT I? E por quê?, do questionário aplicado na disciplina PLPT I:

Exemplo 4:

[...] causa mal-estar, eu mim sinto como uma pessoa incapaz é como se tudo que eu aprendi

está sendo desconstruído [...]

(Aluno I)

É confortável, pois é indicado os erros e consequentemente poderei corrigi-los.

(Aluno M)

Page 485: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1263

Agora estou mais tranquila, porque compreendo melhor a proposta da disciplina. No começo eu

ficava simplesmente desesperado – por mais que eu tentasse, não conseguia escrever um texto

bom – e isso me causava mal-estar.

(Aluno P)

As declarações dos alunos I e P nos mostram um desconforto quanto às

correções de seus textos. Verificamos que tanto o aluno I como o aluno P se utilizaram

do vocábulo “mal-estar”, ao se referirem a essas correções, indicando não a esperarem,

o que nos faz inferir que, ao entrarem na academia, acreditavam saber escrever; no

entanto, ao receberem seus textos corrigidos, sentiram o impacto do “não saber

escrever”. Essa sensação de incapacidade e de processo de reaprendizagem ocorre com

a maioria dos alunos recém-ingressos na academia, principalmente, nos cursos que

exigem mais dedicação à língua, na sua modalidade escrita culta, como é o caso do

curso de Letras.

O aluno P demonstra essa angústia ao afirmar que por mais que tentasse escrever

um texto bom não conseguia. Para esse aluno, talvez, sua escrita já estivesse

consolidada, não esperando, assim, “falhas” em suas produções, supostamente porque

nunca eram apontadas durante sua trajetória escolar. Vejamos o seu depoimento, feito

em PLPT II,

Exemplo 5:

“Eu acho que escrevia bem, em relação a muitas outras pessoas que eu conheci, que passaram

também no vestibular, não só pra cá mas também pra outras universidades, eu creio que eu

escrevia bem. Agora em relação ao que a academia pede eu ainda tenho que melhorar muito,

ainda falta melhorar bastante”.

(trecho da entrevista feita em PLPT II, aluno P)

Constatamos em seu depoimento, que o aluno P, de fato, ingressou na academia

com a crença de que escrevia bem; contudo, partindo do pressuposto de que escrever é

um contínuo e de que se desenvolve de acordo com o contexto social, o aluno P

reconhece e alega que, após entrar na academia, precisa melhorar muito sua escrita. E

esse reconhecimento se deu mediante as correções feitas em suas atividades. Daí, ser

um impacto as correções da professora, pois provocaram no aluno a reflexão e a

desconstrução de saberes até então consolidados.

O aluno M nos pareceu o mais receptivo às correções feitas em seus textos,

conforme vemos na palavra grifada do exemplo 4. Embora os textos desse aluno tenham

Page 486: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1264

tido também consideráveis correções, ele demonstra considerá-las positivas, para seu

crescimento acadêmico, ou seja, os erros são apontados e a partir deles se pode melhorar

o texto, proporcionando, assim, domínio de modelos de escrita que circulam na

academia.

Nesse sentido, as correções da docente foram de extrema relevância para o

ensino-aprendizagem de escrita dos alunos, lhes provocando um impacto, tendo em

vista não estarem afeitos a tal prática, uma vez que seus textos não eram passíveis de

correção no EM.

Os exemplos a seguir nos mostram que os alunos I, M e P, respondendo à

pergunta da entrevista em PLPT II (Como você reagiu às correções de seu texto na

disciplina de PLPT I? e reage às correções em PLPT II? E por quê?), reafirmam suas

angústias sentidas no primeiro período letivo, mas de maneira mais consciente, ou seja,

confirmam o impacto, no entanto demonstram aceitação desse tipo de correção por parte

da professora. Vejamos os exemplos que se seguem.

Exemplo 6:

Ah em PLPT I, como eu já disse, foi a desconstrução de tudo que eu já conhecia [...] hoje não

((risos)) acho que eu já estou madura aqui :: mais madura não no sentido escrever, mas de

aceitar esse não tá certo, vamos melhorar e antes eu não aceitava :: assim, aceitava com aquela

tristeza, porque assim, tudo que eu aprendi não tá valendo de nada, né? Vamos quebrar tudo,

mas agora não, eu vejo que é preciso melhorar.

(Aluno I)

Eu geralmente aceito as correções, porque assim, como eu errei eu vou aceitar o que a

professora está dizendo e as vezes se discordar de alguma coisa tentar ver o que eu errei e tentar

falar com a professora, por quê isso aqui ta errado?

(Aluno M)

Aceitei. Não, eu concordei, eu concordei. Até porque, as vezes, quando eu escrevo um texto eu

quero me livrar logo do texto para entregar, eu escrevo, mas eu olho e digo: esse texto não ta

bom, mas eu vou entregar assim mesmo (risos), sei que ela vai falar alguma coisa [...] mas eu

nunca tive problemas com... as correções de professor, se o professor dizia que estava errado,

tudo bem, eu ia tentar melhorar.

(Aluno P)

Essas respostas indicam ser o aluno I, justamente o que demonstra menos

domínio de escrita formal, o que teve mais dificuldades em aceitar as correções de seu

texto, principalmente ao dizer: vamos quebrar tudo, por receber seus textos com várias

correções, quando cursava a disciplina PLPT I. Entretanto em PLPT II demonstra estar

Page 487: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1265

consciente e aceitar as correções como um fator positivo, com vistas a um crescimento

na escrita, uma vez que reconhece que precisa melhorar.

O aluno M manteve-se com a mesma opinião dada ao cursar PLPT I, exemplo 4.

Analisando suas respostas, em nenhum momento vimos à correção como um impacto

negativo, de forma explícita, mas como um recurso propiciador de desenvolvimento da

aprendizagem escrita. Vejamos que, no exemplo 4, o aluno declara que é “confortável”

e, agora, já na disciplina PLPT II, permanece dizendo: “eu aceito as correções [...]”. Ele

demonstra que a correção aponta os erros e o ajuda na aprendizagem da escrita, o que

também é um impacto percebido, pois há aprendizagem e reconhecimento por parte do

aluno de que forma ela está ocorrendo.

Já o aluno P, por sua vez, apresenta uma voz modalizada, que se diferencia de

seu primeiro posicionamento, exemplo 4, em que se mostrou bastante incomodado por

ver seus textos com algumas correções; no entanto agora, no exemplo 6, o aluno a fim

de não revelar de forma tão afirmativa sua rejeição pela correção em PLPT I, ele diz que

aceitou, mas depois refaz o que disse, alegando “Não, eu concordei, eu concordei”. Ou

seja, ainda demonstra o impacto recebido em PLPT I, na verdade não houve uma

aceitação plena, mas um reconhecimento de que precisava melhorar. De sua fala ainda

encontramos resquícios do impacto sofrido.

Considerações finais

De um modo geral, percebemos que os alunos I, M e P sentiram-se impactados

quando ingressaram na academia e viram que não escreviam no Ensino Fundamental e

Médio, muitas vezes, atendendo aos propósitos comunicativos: o que escrever, para

quem escrever e como escrever, tendo em vista os textos produzidos anteriormente à

academia terem sido apenas com o intuito de cumprir obrigações da escola, ou seja,

atribuição de uma nota.

A partir da análise feita, dos comentários dos alunos I, M e P, o que se constata é

que escrever na academia é algo complexo e trabalhoso, isto é, a escrita acadêmica

exige mais, uma vez que nesse contexto os alunos precisam ler mais textos teóricos,

muitas vezes densos e complexos, escrever a partir de gênero textual (resumo, resenha,

fichamentos, relatórios, artigos, monografias etc), bem como escrever para um

Page 488: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1266

determinado interlocutor, seja ele o professor, uma banca de revisores de uma revista ou

de um congresso, enfim, na academia os alunos escrevem com objetivos e para um

interlocutor que vai, de fato ler o seu texto, o que parece que na escola do ensino

fundamental e médio essa escrita não existe ou se existe ainda não prepara efetivamente

os alunos para ingressarem na universidade, principalmente, no curso de letras.

Em suma, fica evidente que os alunos I, M e P sentiram-se impactos com o

ensino de escrita da academia. Para esses alunos a escrita passou de ser uma escrita

meramente com funções de atingir uma determinada nota para a escola para uma escrita

social, em que para escrever é necessário uma base teórica, metodológica e processos de

reescritas, a fim de atender aos mais diversos gêneros textuais sejam eles acadêmicos

e/ou não.

Bibliografia

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. – São Paulo: Parábola

Editorial, 2003 – (Série Aula; 1).

BALTAR, Marcos. A competência discursiva e gêneros textuais: uma proposta

pedagógica para a LPI. In: Trabalhos em Linguística Aplicada. Universidade Estadual

de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem. – Campinas, SP, 45(2): 175-186,

Jul./Dez. 2006.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros discursivos. In: BAKHTIN, M. Estética da criação

verbal. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRONCKART, J.- P. Atividades de linguagem, textos e discursos – por um

interacionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Rachel Machado; Péricles Cunha.

São Paulo: EDUC, 1999.

_______. Por que e como analisar o trabalho do professor. In: MACHADO, A. R.,

MATÊNCIO, M. L. L. (Orgs.) Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento

humano. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2006. – (Coleção ideias sobre linguagem).

BRONCKART, J. P. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos

trabalhadores. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2008.

DIDACTEXT, G. La escritura de textos expositivos en aulas de primaria. In: CAMPOS,

Anna. (Coord.). Diálogo e investigación em las aulas. Barcelona: GRAO, de IRIF, S. L.

2006.

Page 489: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1267

MARCUSCHI, Luiz A. Apresentação. In: BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais,

tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

_______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. – São Paulo: Parábola

Editorial, 2008.

MOTTA-ROTH, Désirée. O ensino de produção textual com base em atividades sociais

e gêneros textuais. In: BONINI, A. & FURLANETTO, M. M. (Orgs.). Linguagem em

discurso: Gêneros textuais e ensino-aprendizagem. Tubarão, SC. v. 6, n. 3,

set/dez.2006.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (5ª a 8ª): Língua Portuguesa/ Secretaria

de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998.

SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado

de Letras, 2004.

SILVA, Elizabeth Maria. Histórico de letramento e práticas letradas em redações de

vestibular. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande –

PB, 2009.

VIAN Jr., Orlando. Gêneros discursivos e conhecimento sobre gêneros no planejamento

de um curso de Português instrumental para Ciências Contábeis. In: FIGUEIREDO,

Maria M. F. & BONINI, Adair. (Orgs.) Linguagem em discurso: Gêneros textuais e

ensino-aprendizagem. V.6, n.3, set/dez. 2006, p. 389-411.

Page 490: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1268

GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO

PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E

IDENTIDADE SOCIAL [Voltar para Sumário]

John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)1

Considerações iniciais

Diante do crescente desenvolvimento tecnológico e aproximação da

globalização, são grandes as necessidades de comunicação em todo o mundo, entre os

países, etc. Assim, diante deste contexto, a educação é um meio de promover uma

comunicação e relacionamento mais amigáveis, uma vez que as necessidades de

informação, mão de obra qualificada, viagens, dentre outros aspectos, motivaram os

estudos da língua e da linguagem de cada povo e de cada país.

Dessa forma, os estudos de gêneros textuais e ou discursivos estão ganhando

espaços cada vez maiores ao passo que os gêneros são definidos como todo ato de

comunicação e interação social, dentro das diversas atividades humanas, os quais se

modificam de acordo com a necessidade e aperfeiçoamento da língua, portanto são

infinitos, variáveis e presentes na determinação de uma linguagem especifica a cada

campo de atividade, bem como importante para a organização e interpretação da

interação (CASSANY, 2008; BAKHTIN, 2011; BAZERMAN, 2007; MARCUSCHI,

2008).

Dentro desta perspectiva, o tema proposto para discussão aprecia as formas de

linguagem através da análise linguística dos gêneros textuais e ou discursivos para um

melhor entendimento e aprofundamento das diferentes maneiras de comunicação em

uso real e contextualizado da língua e da linguagem, nas mais diversas situações de

interação.

1 Mestrando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.

Page 491: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1269

Soma-se a isto o estudo da língua que carece de constantes olhares voltados para

o ensino aprendizagem, onde o desenvolvimento tecnológico e os meios de

comunicação necessitam de uma atenção especial quanto ao entendimento de uso e

entendimento das informações como formador do processo de organização linguística e

identidade social.

Este estudo se justifica pela necessidade de compreensão das construções de

sentido no uso de uma língua, provenientes do trabalho com gêneros textuais ou

discursivos, objetos deste estudo, no processo de ensino aprendizagem de língua e

discussão deste ensino como relevante para a estruturação comunicativa, organização

linguística e identidade social dos sujeitos da aprendizagem.

Uma problemática considerada relevante para a realização deste estudo centra-se

em saber se o estudo de gêneros textuais ou discursivos aliado a análise linguística pode

ser favorável ao processo de organização linguística e identidade social no desenvolvimento

do ensino aprendizagem?

A partir do problema exposto, tem-se como hipótese que o estudo de gêneros

textuais ou discursivo aliado à análise linguística pode sim ser favorável ao processo de

organização linguística e identidade social no desenvolvimento do ensino

aprendizagem, pois o estudo de gêneros discursivos precisa ser dinâmicos, situados,

desenvolver um proposito, estarem organizados em forma e conteúdo, delimitar

comunidades discursivas com suas normas, conhecimento e práticas sociais, construir e

reproduzir estruturas sociais.

Assim, de modo geral objetiva-se apresentar os gêneros textuais ou discursivos e

análise linguística como processo de organização linguística e identidade social no

desenvolvimento do ensino aprendizagem. Nessa perspectiva, objetiva-se mais

especificamente: expor considerações sobre gêneros e análise linguística, discorrer

sobre o processo de organização linguística e identidade social a partir do estudo de

gêneros e análise linguística, e mostrar o ensino aprendizagem de gêneros como

importante paro o processo de organização linguística e identidade social.

Para realização deste estudo, tomou-se como metodologia um levantamento

bibliográfico que consta de exposição de um relato teórico. Assim, destaca-se o estudo

dos teóricos: Bakhtin (2011); Marcuschi (2008); Mendonça (2006); Bezerra e Reinaldo

Page 492: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1270

(2013); Cassany (2008) e Bazerman (2007), no conjunto das discussões apresentadas no

discorrer deste trabalho.

Assim, mediante as teorias apresentadas e discussões levantadas, é possível

considera que o estudo de gêneros e análise linguística possuem um papel fundamental

para o processo de organização linguística e identidade social, bem como no

desenvolvimento do ensino aprendizagem, organização e interpretação da interação por

meio de linguagem especifica a cada comunidade discursiva.

Dessa forma, este estudo possui uma característica de entendimento do contexto

e interação social na educação a partir dos diversos tipos de estudo que a análise

linguística pode favorecer através do estudo da língua e da linguagem proveniente do

trabalho com gêneros. Desse modo as discussões são pertinentes ao processo de organização

linguística e identidade social além de promover o ensino aprendizagem de língua. Por outro

lado, o estudo aqui apresentado abre caminhos para novas pesquisas e discussões pertinentes ao

estudo de gêneros e análise linguística.

Breves considerações sobre gêneros

As teorias de gêneros textuais e ou do discurso que se tem atualmente são

provenientes das teorias de gêneros do discurso, produto do teórico Mikhail Bakhtin,

um crítico e pensador russo que se dedicou ao estudo da interação verbal e, por ventura,

veio a interpretar o enunciado como unidade de comunicação verbal, visto que gêneros

são enunciados orais e escritos que ajudam na comunicação humana.

O tratamento de gêneros por Bakhtin é voltado para o processo de produção,

assim, é caracterizado pelo autor como gêneros do discurso o que não diferencia da

abordagem de Marcuschi que se utiliza do pseudônimo de gêneros de texto. A diferença

é que gêneros discursivos abrangem todos os termos, desde a oralidade a escrita e

gêneros de texto torna-se necessário o uso de uma especificação para o oral e para o

escrito.

Nesse contexto, Bakhtin (2011) veio introduzir os estudos de gêneros como

característicos da língua e produção de sentido através de um conteúdo temático, um

estilo e uma construção composicional presente na linguagem dos participantes da

comunicação em uma abordagem mais teórica. Do mesmo modo, Marcuschi, no

entanto, trata o gênero na produção de textos voltado para o ensino.

Page 493: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1271

Para Bakhtin (2011), os gêneros do discurso são unidades de sentido que se

desenvolve a partir das interações humanas e se complexificam à medida que cresce a

necessidade de comunicação nos diversos campos da ação do homem, são divididos em

formas de enunciados ou gêneros primários envolvendo em sua maioria a comunicação

oral simples como o diálogo, a carta, dentre outros, e em gêneros secundários

característicos de uma realização mais complexa como romances, dramas, pesquisas

cientificas, etc.

A definição de gêneros textuais proposta por Marcuschi, vem propor que há uma

união de interação e comunicação com todos os fatos do dia a dia, mediada, portanto,

com as interconecções discursivas, tais como: cultural, politica, religiosa e social desse

ou daquele campo de convivência humana. Assim, o autor diz que:

Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que

apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por

composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente

realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.

São entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em

designações diversas, constituindo em princípio listagens abertas. [...] são

formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente

situadas (MARCUSCHI, 2008, p.155).

Os gêneros textuais e ou discursivos abrem um grande leque possíveis de estudo

nas mais diversas áreas de conhecimento, o que permite a abrangência deste no ensino

de língua por um contexto interativo real e possível a todos os integrantes da língua.

São denominados gêneros do discurso todo enunciado que tem em sua estrutura

o objetivo de comunicar alguma coisa. Desse modo, cada campo do conhecimento e

cada atividade humana que se utiliza da língua, utiliza também tipos de enunciados

característicos específicos da área de atuação dos sujeitos escritores ou falantes, o que

determina tipos relativamente estáveis de enunciados.

Bazerman (2007), um estudioso de gêneros é Professor de Educação nos Estados

Unidos (EUA), que se interessa pela dinâmica social da escrita, pela teoria retórica e

pela retórica da produção e uso do conhecimento. Ele elabora uma teoria de gênero e

atividades diferenciadas das demais, pois, “o gênero fornece um meio para a

compreensão dos processos e atividades do escritor, dos desafios de aprender a escrever

e dos sistemas sociais de que a escrita nos permite participar” (BAZERMAN, 2007,

Page 494: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1272

p.11), pois esta teoria difere em relação à força positiva do enunciado mais do que as

limitações e traços textuais.

Outro autor que se faz necessário apresentar é Daniel Cassany (2008), que

trabalha com Oficina de Textos, ele mostra uma proposta prática que ajuda a facilitar a

aprendizagem de leitura e escrita de gêneros, onde o domínio destes gêneros, que são

específicos a cada área ou comunidade discursiva, ajuda os sujeitos da aprendizagem a

tomarem consciência da função que desempenha cada discurso, bem como identifica

quem escreve, os utilizam, visto que revela a identidade profissional, social, cultural e

intersubjetiva das diferentes formas de compreensão de mundo e interpretativa das

situações propostas pelo meio em que vive.

Desse modo, Cassany vem fazer uma apresentação ao estudo do gênero como

importante ao ensino.

O interesse em estudar cada gênero está em que, ao conhecer como [é e como

funciona], podemos melhorar seu ensino e aprendizagem: aprender a utilizar

um gênero é aprender a desenvolver as práticas profissionais que se

desenvolvem com ele (CASSANY, 2008, p. 17).

Nesse sentido, a autora destaca que alguns dos traços mais relevantes dos

gêneros discursivos é que eles são dinâmicos, estão situados, desenvolvem um

proposito, estão organizados em forma e conteúdo, delimitam comunidades discursivas

com suas normas, conhecimento e práticas sociais, e constroem e reproduzem estruturas

sociais. Ainda nesse contexto, os gêneros desempenham basicamente três funções, a

saber: função cognitiva, função interpessoal e função sociopolítica. Desse modo, o

gênero contribui para a elaboração do conhecimento e para desenvolver a atividade

profissional.

Quando se trabalha com a escrita de gêneros, o autor do texto deixa suas marcas

pessoais, onde os escritos contribuem para a elaboração da imagem, revelando seus

conhecimentos, habilidades e competências não só da produção escrita mas da

linguagem acerca do conteúdo e de suas relações com o mundo.

Análise linguística: prática reflexiva no ensino de gêneros

O termo análise linguística tem sido utilizada desde que a linguística tomou

como objeto de estudo a língua, como estabelecido por de Saussure (2006), no livro

“Curso de Linguística Geral”, organizado e publicado três anos após a sua morte por

dois discípulos em 1916.

Page 495: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1273

No entanto, a análise linguística tem sido utilizada para análise de diferentes

aspectos da língua, tendo como objeto de análise aquilo que o pesquisador pretende

demonstrar para sustentar suas teorias quanto ao assunto estudado. Assim, tem surgido

no contexto educacional uma nova forma de estudo de língua.

Desse modo, Mendonça (2006) vem dizer que o termo análise linguística foi

apresentado como pressuposto de estudo dos usos da língua no sistema linguístico,

visando o tratamento dos fenômenos gramaticais, os fenômenos textuais e discursivos

voltados para o ensino de língua na escola e nas universidades, a partir dos anos 1970,

para tratar da apropriação dos recursos linguísticos na consciência das diversas

possibilidades de uso em confronto com o ensino tradicional.

Assim, Mendonça (2006) enfatiza que a análise linguística, denominada pela

autora na sigla AL, consiste numa reflexão dos aspectos linguísticos e estra linguísticos

da língua na constituição das competências e habilidades no uso das mais diversas

linguagens nas atividades comunicativas, estabelecidas no momento de interação e

produção de conhecimentos. Desse modo, a autora diz:

Por isso, pode-se dizer que a AL2 é parte das práticas de letramento

escolar, constituindo numa reflexão explícita e sistemática sobre a

constituição e o funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou

gramatical), textual discursiva e também normativa, com o objetivo de

contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta, de

produção de textos orais e escritos e de análise e sistematização de

fenômenos linguísticos (MENDONÇA, 2006, p.208).

Dessa forma, a análise linguística é um tema fundamental para o ensino, pois

propicia o desenvolvimento de competências comunicativas dos alunos tanto de língua

portuguesa quanto de língua estrangeira, bem como desenvolve a essência da

interpretação, produção oral e escrita e a comunicação nos diversos contextos de

interação da língua pelas diferentes formas de linguagem situadas ou não no processo de

expressão e atividade em cada campo do conhecimento, pois os gêneros são enunciados

orais e escritos.

Esses enunciados refletem as condições especificas e as finalidades de cada

referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de

linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e

2 Grifo da autora.

Page 496: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1274

gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional

(BAKHTIN, 2011, p.261).

Assim, a análise linguística se encaixa a uma abrangência de desenvolvimento

pedagógico, uma vez que a riqueza e diversidade de gêneros são infinitas e se misturam

a vida através da língua. O que pode-se, pois ir além dos estudos já descritos acima

como promover interações interdisciplinares “com atenção especial para o

funcionamento da língua e para as atividades culturais e sociais” apresentadas por

Marcuschi (2008, p.155-156).

Em Mendonça (2006) a análise linguística abrange os estudos gramaticais e

adiciona novos modelos de estudo à medida que os objetivos pretendidos pelo professor

se encaixam a outros aspectos fora dos conteúdos centrados na gramática, assim, análise

linguística faz uma reflexão sobre o sistema linguístico e usos da língua, com vistas ao

tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos.

Ainda na perspectiva de um esclarecimento de análise linguística as autoras,

Bezerra e Reinaldo (2013), referente aos estudos linguísticos, comentam que a análise

linguística é dividida em dois tipos de práticas, as quais:

A primeira refere-se ao ato de descrever e explicar ou interpretar aspectos da

língua, [...] trata-se do fazer próprio do estudo científico da língua, a respeito

de suas diversas unidades (o fonema, o morfema, a palavra, o sintagma, a

frase, o texto e o discurso) e se desenvolve com base em estudos descritivos

de diversas tendências teóricas, desde o estruturalismo até tendências

funcionalistas atuais, passando por teorias gerativistas, semânticas e textual-

interativas, por exemplo. E a segunda também se volta para a descrição, mas

com fins didáticos (BEZERRA & REINALDO, 2013, p.21).

Assim, a análise linguística de gêneros apresenta-se como suporte teórico-

metodológico favorável para o ensino aprendizagem de língua, tanto no ensino básico

quanto no ensino superior, bem como uma ferramenta indispensável para professores

em sua prática pedagógica nas mais diversas formas de tratamento da língua, seja ela

materna ou estrangeira, pois se fundamentam no princípio de produção, entendimento e

situação comunicativa.

O gênero como um recurso organizador da linguagem: processo de organização

linguística, identidade social e ensino aprendizagem

Page 497: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1275

Os estudos de organização de gêneros de texto ou de discurso com base nas

contribuições da análise linguística, como aspecto de reflexão dos constituintes

comunicativos e sociais, implementa o papel da linguagem na construção do

conhecimento, da organização social e cultural fortemente representada pela

competência linguística, pela identidade social e pelo ensino aprendizagem que se

caracteriza em letramentos.

Para Bazerman (2007) os estudiosos possuem a tarefa de entender como cada

sociedade elabora um modo de vida a partir do letramento, e a participação destes

membros no sistema letrado de leitura e escrita. O autor diz que as instituições escolares

vem promover um desenvolvimento de mobilidade social, de vantagens de classe que

seguem caminhos diversificados no domínio da criatividade e da cultura nos mais

diversos espaços de tempo, particular a cada modo de vida em mudanças constantes da

sociedade.

Assim, Bazerman acredita que essa infraestrutura fornece a maior implicação da

história social. Pois, a leitura e a escrita como formas de letramentos, são essenciais

para a sociedade contemporânea, onde o gênero é “um dos mecanismos-chave para a

estruturação de mensagens e ações dentro das formas culturais” (BAZERMAN, 2007,

p.19), visto que desenvolve não apenas a competência linguística mais a identidade

social do ser humano.

Nesse sentido, os gêneros estruturam situações, relações e ações sociais

possibilitadas pelo letramento, pois na teoria do gênero, a escrita torna as ações mais

convincentes, elaboradas, confiáveis e frequentes a depender de uma leitura ampla da

mensagem exposta no texto escrito (BAZERMAN, 2007).

O letramento em seu uso depende das escolhas agentivas e estratégicas dos

autores, visto que, “o letramento oferece algo diferente do que anteciparam”

(BAZERMAN, 2007, p.21), pois o letramento é uma forma de conhecimento subjetivo

que se manifesta de dentro para fora na hora de exercer uma atividade em confronto

com as situações sociais. Assim em uma atividade planejada, o letramento do sujeito

executor da ação, vai permitir a inteligência criativa para exercer uma atitude ideal a

situação e ao contexto.

Para este autor que segue um grupo de teóricos e pesquisadores dos estudos da

escrita e da retorica, os gêneros assumem um papel central e visível na sociedade

Page 498: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1276

contemporânea porque são reconhecíveis de uma sociedade que fornece um repertorio

disponível de formas, ações e motivos, visto que, “Essas formas são maneiras de ver

quais atos são disponíveis e apropriados ao momento como você o percebe – aquilo que

você pode fazer, aquilo que você pode querer fazer” (BAZERMAN, 2007, p.22).

O poder social do letramento é o domínio de informações, realizado somente

através do manejo dos sistemas pela produção, recepção e usos ativos de textos

particulares de cada área. Um texto escrito, por um indivíduo letrado que contém uma

informação pode atravessar gerações sem perder seu valor, pois as informações

produzidas dentro de um tipo particular de documento são enunciadas na ideologia de

um dado gênero (BAZERMAN, 2007).

Assim, Bazerman diz que para “compreender o que é a informação, como a

usamos, como a comparamos e calculamos e como chegamos à conclusão sobre ela, é

entender muito sobre como pensamos hoje” (BAZERMAN, 2007, p.35-36). Dessa

forma, o entendimento, compreensão e uso das conclusões informativas é que determina

o verdadeiro letramento.

Como dito, o letramento é um conhecimento processado por informações de

determinado assunto ou atividade. Nas mais diversas áreas de ação humana, o homem

produz conhecimentos expostos nos mais variados gêneros, típicos a cada atividade em

especifico, o que faz do gênero um recurso organizador da linguagem. Portanto, o

estudo, bem como a compreensão e uso de gêneros através da análise linguística,

favorece ao processo de organização linguística e identidade social movido pelo ensino

aprendizagem.

O que se pode perceber no texto de Bazerman é que o conjunto de

conhecimentos é entendido como agência de muitos indivíduos e organizações. O autor

diz que tal agência de conhecimento é ao mesmo tempo uma indústria internacional e,

portanto, o cultivo do ambiente letrado passa por mudanças, intertextualidade e que é

usada para orientar a vida na atualidade.

Assim, a invenção dos gêneros e das formas de atividades socialmente

organizadas é grandes instituições das diversas ciências, construídas a partir do

letramento e da invenção de formas complexas de interação letrada ou social, ou seja,

como sistemas baseados no letramento. Igualmente, vê-se em Bakhtin (2011) que a

existência dos gêneros do discurso torna a comunicação verbal possível.

Page 499: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1277

O letramento é uma forma de conhecimento que permite pensar, conhecer e agir

bem como modificar a forma de se viver, de se criar e recriar as coisas, pois é o

letramento que fornece as mais diversas formas de significar o mundo. Assim, as

manifestações de letramento são possíveis a partir da produção de enunciados, gêneros

discursivos ou textuais.

Para tanto, vale considera que as relações que o homem estabelece com o mundo

identificam sua posição social, seu repertorio linguístico, suas aptidões e aprendizagem

cultural, permeada por diferentes manifestações ideológicas, formas viventes,

organização social, organização física, hábitos pessoais e cotidianos de seu espaço.

Nesse exposto das questões de letramento, Bazerman chama atenção para as

necessidades do mundo moderno, no dizer que “hoje as crianças precisam não somente

achar seu caminho no ambiente construído das cidades, dos subúrbios, do campo, e das

escolas, elas precisam achar seu caminho no ambiente simbólico construído dos livros,

da mídia, dos símbolos nos muros” (BAZERMAN, 2007, p.44).

O estudo de gêneros com base em uma reflexão dos sistemas de comunicação

verbal constitui conhecimentos e estímulos de desenvolvimento linguístico e de

identidade para os estudantes, que carecem de diversos conhecimentos para uma

comunicação, interação e interpretação dos mais diversos símbolos, escritos, orais e

visuais, próprio do sistema de letramento, útil às necessidades da vida em sociedade e

funcionamento da linguagem (BEZERRA & REINALDO, 2013; MENDONÇA, 2006).

Nessa perspectiva de compreensão do gênero e análise linguística como

processo de organização linguística e identidade social, a partir da escrita de gêneros

textuais ou discursivos possui uma influência no sistema mental, na produção escrita e

publicação de variados textos, pois na produção, o sujeito escritor, deixa uma imagem

de seu desempenho em determinada área.

Para Cassany “o gênero é a estrutura discursiva, o recurso retórico ou a ação

comunicativa que utiliza os profissionais para resolver boa parte das tarefas ou

atividades de nossa disciplina e em nosso ambiente de trabalho” (CASSANY, 2008,

p.18). Desse modo, conhecer os gêneros como eles são e como funcionam facilita o

ensino e a aprendizagem, pois, vê-se neste estudo, que eles são relevantes para o

processo de organização linguística, identidade social e ensino aprendizagem.

Page 500: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1278

Na escrita de gêneros em sua composição tanto discursiva quanto textual deixa

registradas as marcas pessoais de seu enunciador ou escritor, pois há uma elaboração da

imagem, dos conhecimentos, das habilidades e das competências de produção escrita de

uma linguagem especifica, bem como acerca do conteúdo e de suas relações com o

mundo, com sua comunidade, com sua cultura, etc. em uma interconecção com diversas

formas de pensamento, interpretação e espaços de ação humana as quais este sujeito ou

individuo se insere.

Considerações finais

O objeto deste estudo, gêneros textuais ou do discurso, compreende as

construções de sentido no uso de uma linguagem, no processo de ensino aprendizagem

de língua e discussão deste ensino como relevante para a estruturação comunicativa,

organização linguística e identidade social dos sujeitos da aprendizagem, o que tornou a

hipótese inicialmente levantada um ponto de partida para este estudo bem favorável

para as discussões levantadas.

Quanto aos objetivos do trabalho, foi possível entender que a exposição de

considerações sobre gêneros e análise linguística, discorrida sobre o processo de

organização linguística e identidade social a partir do estudo de gêneros e análise

linguística, é amplamente influente paro o processo de organização linguística,

identidade social e imprescindível no ensino aprendizagem de língua.

A exposição do relato teórico em detrimento as discussões a respeito da

temática, considera-se que o estudo de gêneros e análise linguística possuem um papel

fundamental para o processo de organização linguística e identidade social, bem como

no desenvolvimento do ensino aprendizagem, organização e interpretação da interação

por meio de linguagem especifica a cada comunidade discursiva.

Nessa perspectiva, os gêneros textuais ou de discurso e a análise linguística,

abordam teorias metodológica capaz de transformar o ensino aprendizagem em um

momento de estudo motivado pelas diferentes situações comunicativas e realização da

língua, criando espaços de interação e promovendo o letramento, ou seja, construindo

competências uteis para a ação independente e autônoma dos indivíduos.

Page 501: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1279

Assim, a análise linguística seve como instrumento de apoio para o

conhecimento produção, desenvolvimento e interpretação tanto das informações que

circulam quanto da identificação pessoal voltada para o contato e contexto social, onde

todo enunciado proferido pelos integrantes da comunicação e materializado em forma

de gêneros textuais e ou discursivos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São

Paulo: Martins Fontes, 2011.

BAZERMAN, Charles. Escrita, Gênero e Interação Social. HOFFNAGEL, Judith C. e

DIONISIO, Angela P (Orgs.). São Paulo - SP: Cortez, 2007.

BEZERRA, Maria Auxiliadora; REINALDO, Maria Augusta. Análise linguística:

afinal, a que se refere? São Paulo: Cortez, vol. 3, 2013.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação. Linguagem códigos e suas

tecnologias: conhecimentos de língua estrangeira moderna. In; Parâmetros Curriculares

Nacionais: Ensino Médio. Brasília, 2000.

CASSANY, D. Oficina de textos: compreensão leitora e expressão escrita em todas as

disciplinas e profissões. [Tradução: Valério Campos]. Porto Alegre: Artmed, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Sã

Paulo: parábola, 2008.

MENDONÇA, M. Análise Linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro

objeto. In: Clécio Bunzen e Márcia Mendonça (Orgs). Português no ensino médio e

formação do professor. São Paulo. Parábola Editorial, 2006.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística Geral. São Paulo: Citrix, 2006.

Page 502: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1280

A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO

CÉSAR: UM LEITURA DE A PROSA IMPÚRPURA DE

CAICÓ [Voltar para Sumário]

Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)

1. Canção (e) poesia: uma leitura

Antes de adentrarmos no foco desse trabalho, uma leitura neobarroca sobre a

canção do compositor paraibano Chico César, faz-se necessário abordarmos, ainda que

brevemente, a relação entre letra de música e poesia. Na música brasileira existem

diversos letristas que fazem canções com um elevado grau de poesia, podemos citar

Noel Rosa, Edu Lobo, Itamar Assumpção, Djavan e Alceu Valença. De outra parte

existem poetas que se propuseram, também, a escrever letra de música, entre eles está

Paulo Leminski, Antônio Cícero e Wally Salomão.

A relação entre canção e poesia, além de antiquíssima, é fronteiriça. Lembramos

que na tradição poética dos trovadores provençais do século XII música e poesia eram

indissociáveis, a literatura ainda não havia conquistado a autonomia que conhecemos

hoje, vinda com a ascensão da burguesia. As cantigas dos trovadores eram feitas para

serem recitadas e/ou cantadas. O poeta e compositor popular Vinicius de Moraes, em

entrevista concedida à Clarice Lispector, publicada originalmente na revista Manchete,

afirma: “Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções” (HOMEM,

2013. p.16.). Tal assertiva reitera que a linha que separa letra de música da poesia dos

livros —se é que exista tal necessidade de distinção— é bastante ténue.

Existe uma difícil discussão quando pensamos em determinar um veredito sobre a

plenitude da análise de letra de música apenas como texto poético, sem analisarmos a

tessitura músical que aquele texto está sendo vinculado (instrumentos, harmonia,

melodia...). O brasilianista Charles Perrone descreve a canção popular como uma

Page 503: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1281

literatura de performance, segundo o autor “se um texto é criado com a finalidade de

ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve ser estudado na forma dentro da

qual foi concebido”. (PERRONE, 1988, p. 23).

Corroboramos que os aspectos musicais da canção popular são muito relevantes

para a apreciação do objeto artístico e também a análise destes elementos pode ser

muito enriquecedora. Os estudos semióticos são uma possibilidade de abordar a canção

na sua duplicidade de signos, como tão bem faz o crítico Luiz Tatit1. Porém, não

concordamos com a impossibilidade da análise da letra de música dissociada da parte

musical. Entendemos que é necessário relativizar o absolutismo dessa premissa uma vez

que a letra de música pode ter uma infinidade de elementos textuais a serem analisados.

Canções como “Construção”, de Chico Buarque, e “Os quereres”, de Caetano Veloso,

são exemplos da riqueza do signo verbal na canção popular.

Pensamos, ainda, nos casos dos diversos poemas que são musicados, ou ainda dos

textos que se conceberam inicialmente como canção e se tornaram poesia de livro.

Textos como “Poema dos olhos da amada” ou “Rosa de Hiroshima”, ambos nasceram

como poemas “de livro” de Vinicius de Moraes e depois foram musicados. Sobre essa

discussão, o professor e semioticista Amador Ribeiro Neto2 nos atenta para alguns

cancionistas, e entre eles o caso de Arnaldo Antunes que, além de compositor de MPB,

é poeta de livros. Temos o exemplo do poema-canção “O quê?” que foi concebido e

publicado como música e depois foi transposto para livro, como um poema de

influência concretista. O próprio Arnaldo Antunes transformou o poema “Budismo

moderno”, de Augusto dos Anjos, em uma canção.

Como podemos observar nos exemplos citados, se concordássemos

completamente com a assertiva de Perrone não poderíamos analisar as canções como

textos poéticos, apenas a partir dos signos linguísticos, mesmo sendo estes

extremamente ricos para uma análise. Atentamos, ainda, que tal veredito inibiria o

campo de estudo da literatura para a análise da poesia trovadoresca, uma vez que os

textos eram orais e criados, geralmente, para a execução acompanhada de instrumentos

musicais. Tão pouco vemos uma arte maior do que a outra, o fato de um texto ser poesia

não o faz, intrinsecamente, melhor do que o texto de uma canção.

1 VER: TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Ed. Escuta, 1994. 2 VER: RIBEIRO NETO, Amador. Uma levada maneira: ao ar, poesia e música. In Conceitos, v.3, João

Pessoa: ADUFPB, p; 21-27, 2000.

Page 504: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1282

Esclarecida nossa perspectiva de que é possível analisar o texto poético da canção

sem, necessariamente, discorrer sobre as questões musicais, este trabalho se voltará para

uma breve discussão sobre o barroquismo presente na poética de Chico César, trazidos à

baila com a análise da canção “A prosa impúrpura do Caicó”. Atentaremos, mais

especificamente, para as relações entre a canção e alguns conceitos da estética barroca

alinhavadas Severo Sarduy (1979).

2. Uma leitura neobarroca d’A prosa impúrpura do Caicó

Exuberância, desperdício e dualidade são palavras muito gratas ao estilo

seiscentista. Os espelhamentos e as oposições de luz e sombra, característicos do

barroco, podem ser vistos desde a arquitetura das igrejas católicas do período, até os

poemas de Gregório de Matos. Perpassam, na verdade, para muito além do poeta

baiano, uma vez que a história da arte é feita de rompimentos e reaproximações com

estéticas anteriores; rompe-se com algumas, dialoga-se com outras. Sobre a estética

barroca Sarduy afirma:

Desde seu nascimento, o barroco estava destinado à ambiguidade, à difusão

semântica. Foi a grossa pérola irregular – em espanhol barrueco ou berrueco,

em português barroco – a rocha, o nodoso, a densidade aglutinada da pedra –

barrueco ou berrueco -, talvez a excrescência, o quisto, o que prolifera, ao

mesmo tempo livre e lítico (SARDUY, 1979, p 161)

O homem barroco é essencialmente feito de dualidade, sabe da efemeridade da

vida e sofre da tensão entre aproveitar os prazeres que dispõe e a esmagadora culpa

cristã. O homem do entre-lugar, em tanto similar com estes tempos líquidos. As canções

do cantor e compositor paraibano Chico César, por diversas vezes, trazem essas

inquietações, essas tensões provocadas pelas dualidades tão marcadas pelos eu-líricos.

Nas letras do compositor cabem todos os, supostamente, opostos: São Paulo e Catolé do

Rocha; Mallarmé e Zabé da Loca. Encontram lugar na sua canção os bantos, os curdos,

Nelson Mandela e José Lins do Rego. O mundo é quintal e o quintal é mundo na canção

do paraibano.

Tendo em vista a possibilidade de uma visada neobarroca sobre as canções de

Chico César, tomaremos como guia, principalmente, os conceitos explicitados por

Sarduy (1979) para analisar a canção A prosa impúrpura do Caicó presente no disco

Page 505: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1283

Aos Vivos de 1995. A canção apresenta um eu-lírico cercado pelos antagonismos. O

regional e o cosmopolita; a tradição e a modernidade; o popular e o erudito. Nossa

análise se deterá, principalmente sobre dois conceitos: i) a intertextualidade; ii) a forte

construção antitética das percepções e sentimentos do eu-lírico. Vamos à canção:

A prosa impúrpura do Caicó

Ah! Caicó arcaico

Em meu peito catolaico

Tudo é descrença e fé

Ah! Caicó arcaico

Meu cashcouer mallarmaico

Tudo rejeita e quer

É com, é sem

Milhão e vintém

Todo mundo e ninguém

Pé de xique-xique, pé de flor

Relabucho, velório

Videogame oratório

High-cult simplório

Amor sem fim, desamor

Sexo no-iê

Oxente, oh! Shit

Cego Aderaldo olhando pra mim

Moonwalkmam

(CÉSAR 1995)

Uma das principais características neobarrocas, segundo Sarduy (1979), é a

intertextualidade, não como mero adorno ou excrecência, mas como traço estruturante

na obra. Na discografia de Chico César abundam os exemplos de textos que são

formados a partir de uma marcada intertextualidade, podemos citar como exemplos

Papo cabeça, presente no disco Beleza mano (1997) e moer a cana, do disco De uns

tempos pra cá (2006).

Na canção analisada observamos que a incorporação de textos estrangeiros

acontece desde o título “A prosa impúrpura de Caicó” relembrando o filme de Woody

Allen “A rosa púrpura do Cairo” (1985). Lembramos que o filme de Allen se constrói a

partir da metalinguagem e do jogo com os planos ficcionais, uma linguagem debruçada

em si mesma, não nos parece haver gratuidade nas relações estabelecidas pelo

compositor. Durante toda a canção o autor estabelece um jogo com a recepção dos seus

Page 506: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1284

ouvintes/leitores a partir da incorporação de vários elementos que estão além do seu

próprio texto. Para esclarecer tais afirmações, analisaremos mais atentamente verso a

verso.

A canção inicia-se com o anagrama “Ah! Caicó arcaico” reiterando o antigo, a

tradição dentro de Caicó, a cidade como um símbolo do regional ou ainda o Caicó

dentro do (ar)caico. No verso seguinte o eu-lírico se refere ao próprio peito como

“catolaico”, há nesse caso uma condensação, pensada aqui nos termos explicitados por

Sarduy: “permutação, miragem, fusão, intercâmbio entre elementos – fonéticos,

plásticos, etc. – de dois termos de uma cadeia de significante, choque e condensação dos

quais surge um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros”. (1979, p.

167) Os significados de católico e laico são contemplados no mesmo significante,

catolaico. A dualidade do eu lírico é transportada para essa fusão, para a linguagem

utilizada pelo autor. Essa interpretação ganha força quando pensamos no verso seguinte:

“tudo é descrença e fé” Se instala, então, a profunda duplicidade do eu-lírico que irá

estender-se ao longo da composição.

No quinto verso o eu-lírico refere-se (assim como ao seu “peito catolaico”) ao seu

“cashcouer mallarmaico”. O cache-coeur é uma indumentária que protege o peito, mas

não podemos deixar de atentar para a uma possível condensação das palavras cash,

dinheiro em inglês, e coeur, coração em francês. Esse artifício reafirma um dos lados da

antítese estabelecida entre o cosmopolita e o regional. Também podemos observar a

relação dicotômica entre dinheiro e coração, entre a materialidade e a subjetividade do

eu-lírico. Seguindo o seu cashcoeur temos o mallarmaico o adjetivando. Fica explicita a

referência ao poeta francês Mallarmé e assim como em catolaico, há uma condensação

entre os possíveis significados que a obra e a figura do poeta trazem e o significado de

arcaico, formando o significante já mencionado. Na canção Paraíba, meu amor,

presente no disco Beleza mano (1997), o compositor também se refere ao lance de

dados de Mallarmé no verso “o acaso da minha vida um dado não abolirá”. A

intertextualidade, o dialogo entre o telúrico e o mundo são marcas muito presentes nas

canções do autor analisado.

Do sexto verso até o decimo quarto a antítese se torna a coluna vertebral da

canção. O jogo de luz e sombra barroca se reflete e se esconde nos versos “É com, é

sem/ Milhão e vintém/ Todo mundo e ninguém”. A partir de então as antíteses

Page 507: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1285

abandonam os seus pares óbvios e passam a assemelhar-se ao procedimento de

substituição no qual, segundo Sarduy (1979), o significante correspondente a um

determinado significado que foi escamoteado da sentença e substituído por outro

afastado semanticamente daquele e que só funciona como o primeiro no contexto em

questão. Sabemos das diferenças discrepantes entre os pares apresentados (“Pé de

xique-xique, pé de flor// Relabucho, velório/ Videogame oratório”), porém eles tornam-

se semanticamente antitéticos apenas no contexto da canção.

Durante o referido jogo de antíteses a relação entre as partes, teoricamente

antagónicas, também surpreende a partir do olhar mais atento. Alguns pares são

separados pela vírgula (“É com, é sem”; “Pé de xique-xique, pé de flor”) outros pela

preposição ‘e’ (“Milhão e vintém/ Todo mundo e ninguém”) e por fim existem os pares

em que não há nada entre eles (“Videogame oratório/ High-cult simplório”). O terceiro

caso nos chama atenção pela dubiedade da própria antítese, uma vez que podemos ler

como um só termo, ou um termo servindo de adjetivo para o outro. Nesse caso o high-

cult tanto pode ser lido como opositor ao simplório, como ele mesmo sendo simplório.

Na última estrofe a intertextualidade retoma a figura central da canção. No verso

“sexo-no-iê” fica clara a referência à doutrina filosófica oriental Seicho-no-iê. No verso

seguinte “Oxente, oh! Shit” as interjeições da língua portuguesa e inglesa se aproximam

foneticamente (re)criando a ideia de oposição entre o cosmopolita e o regional. A

referência ao poeta popular Cego Aderaldo é seguida pelo verso de desfecho

“Moonwalkman”. O Monwalk, como sabemos, é o famoso passo De Michael Jackson,

onde na simulação de caminhar para frente o dançarino se movimenta para trás, tal

imagem reitera os jogos presentes durante toda a canção. O Walkman é um dispositivo

de reprodução de música portátil, muito usado nos anos 80 e começo dos 90 (e nem tão

portátil assim para os dias de hoje).

Considerações finais

Como podemos observar durante a análise, a canção demonstra, do título ao

último verso, a artificialização tão grata a estética barroca e neobarroca. A forte

intertextualidade e os jogos antitéticos se mostram fundamentais na construção dos

sentimentos antagônicos do eu-lírico. Alguém entre a tradição dos cantadores e o pop

Page 508: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1286

estadunidense; entre o erudito e o popular; entre o moderno e o arcaico. O eu-lírico

mostra-se (neo)barroco dentro das inúmeras dubiedades que transmite, homem que

dialoga com os extremos e, talvez, por isso seja estrangeiro em toda parte. O eu-lírico

revela-se perdido nesse entre-lugar, isso demonstra-se na canção através dos recursos

estéticos. Estes não funcionam como mero adornamento para o conteúdo, antes, forma e

conteúdo unem-se de maneira indissociável.

REFERÊNCIAS

HOMEM, Wagner, DE LA ROSA, Bruno. História das canções. São Paulo: Leya, 2013.

http://www.chicocesar.com.br/disco_ver.php?titulo=Aos%20vivos. Acessado em 26 de

março de 2015

http://www.chicocesar.com.br/disco_ver.php?titulo=Beleza%20mano. Acessado em 26

de março de 2015

http://www.chicocesar.com.br/disco_ver.php?titulo=De%20uns%20tempos%20pra%20

c%C3%A1%202006 Acessado em 26 de março de 2015

PERRONE, Charles. Letras e Letras da MPB. Rio de Janeiro: BookLink, 2008.

POUND, Ezra. ABC da literatura. 11.ed. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo:

Cultrix, 2006.

RIBEIRO NETO, Amador. Uma levada maneira: ao ar, poesia e música popular. In:

Conceitos, v3, João Pessoa: ADUFPB, p. 21-27, 2000.

SARDUY, Severo. O barroco e o neobarroco. In: MORENO, César Fernández (org.)

América Látina em sua literatura. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva

(Col. Estudos, v. 52). 1979.

TATIT, Luiz. Semiótica da Canção: Melodia e Letra. São Paulo: Ed. Escuta, 1994.

Page 509: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1287

A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE

MIA COUTO [Voltar para Sumário]

José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)

Eu e o outro nos encontramos mutuamente na

contradição absoluta do acontecimento.

(Mikhail Bakhtin)

A imagem do homem que confessa é constante na trajetória escritural de Mia

Couto. Segredos, crimes, culpas e angústias são externados por personagens que, ao se

desnudarem diante de um leitor-ouvinte, almejando acima de tudo a consolação de uma

escuta, deixam entrever em seus “corpos” as marcas deixadas pelo convívio em

sociedades nas quais crenças e valores de proveniências diversas dividem espaço.

“Vozes” narrativas se erguem em meio a estórias que promovem um encontro, muitas

vezes conflituoso, com a diferença, no qual o contato entre seres com mundivivências

distintas coloca em face do confessor a efígie do “outro que é ele mesmo” (PAZ, 2012,

p. 119). Os discursos de confissão têm um papel ambivalente nas narrativas do autor,

pois registram a admissão de culpas com a mesma intensidade com que promovem

reflexões sobre a fragilidade das certezas humanas. Refletir sobre o caráter dialógico

desses discursos, a partir da análise do conto Afinal, Carlota Gentina não chegou de

voar?, é o objetivo central deste trabalho.

Em Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?, narrativa de Mia Couto

publicada em Vozes anoitecidas, seu primeiro livro de contos, deparamo-nos com a

emblemática figura de um narrador que, logo nas primeiras páginas de seu relato,

proclama-se “mulato”, não de raças, “mas de existências” (COUTO, 2013: 75) e ao

contar sua história revela-nos o caráter plural de sua identidade, forjada a partir do

diálogo entre visões de mundo distintas. Diálogo este, que transparece em meio à

ambígua confissão de um homem que embora admita ser o responsável pelas ações que

levaram sua esposa, Carlota Gentina, à morte, não se considera merecedor da

Page 510: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1288

condenação que lhe é imposta, pois afirma ter agido de acordo com os preceitos de sua

tradição. Ao longo do relato conduzido pelo narrador-personagem, edifica-se um

discurso ambivalente, no qual se sobressai um intenso diálogo de consciências que a um

só tempo legitima a sua culpa e denuncia a injustiça de sua condenação.

Na narrativa, tem-se a história de um homem que ao saber que o cunhado

aparentemente descobriu que a esposa era uma “nóii” (feiticeira que, de acordo com as

crenças da tradição, sai à noite deixando em seu lugar um animal para o qual transfere

sua aparência1) começa a desconfiar que Carlota Gentina, sua esposa, também poderia

ser uma feiticeira. E, para livrar-se da desconfiança que o atormenta, decide submeter a

mulher a uma provação, causando-lhe uma dor física profunda durante a noite, para que,

caso ela tenha colocado um animal em seu lugar, este se revele quando torturado. Para

levar adiante o plano, o homem utiliza-se de água fervente: surpreende a esposa com um

banho de “fervuras”. O resultado de tamanha tortura é o falecimento de Carlota Gentina.

A esposa do narrador-personagem morre sem externar seu sofrimento: o silêncio é a

única resposta da mulher diante da dor que lhe é infligida; e esse ato de total submissão

aos desígnios do esposo tanto comprova para ele que Carlota não era uma feiticeira,

quanto se converte em uma lembrança dolorosa que persegue o narrador-personagem

durante todo o seu relato. A morte silenciosa de Carlota faz com que o narrador passe a

considerá-la um pássaro, que cala sem externar as razões que o levaram ao silêncio. A

mulher é metaforizada na narrativa: convertida em pássaro pelas dores que lhe são

causadas pela provação a que é submetida. Se o homem tira a vida de sua esposa ao

causar-lhe dores de proporções imensas, a imagem dela torna-se uma espécie de

constante na memória do narrador; seu falecimento transtorna o homem, roubando-lhe a

alegria e afastando-lhe de qualquer perspectiva de reconstrução de sua vida. Tem-se na

narrativa de Mia Couto, um narrador-personagem situado em uma espécie de situação-

limite: a solidão causada pela morte de Carlota faz com que o homem se entregue a

polícia e passe seis anos recluso, aguardando um julgamento. A sua história é por ele

contada em meio a uma espécie de carta que escreve para o advogado que assume a

incumbência de cuidar de seu caso e defendê-lo em juízo. Como fruto dessa singular

1 A esse respeito, a análise empreendida por Silvania Núbia Chagas (2011: 101-108) é elucidativa, por

demonstrar as relações entre os atos do narrador-personagem no conto de Mia Couto e as crenças

presentes no sul da África, estudadas por Henri Junod, em seu livro Usos e costumes dos bantu (2009).

Page 511: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1289

epístola, edifica-se um discurso ambíguo, um relato que é, de uma só vez, confissão da

culpa e testemunho da inocência do narrador-personagem.

A narrativa inicia-se com a seguinte observação:

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste?

Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam

minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o

problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não

das raças, mas de existências (COUTO, 2013: 75).

As primeiras linhas do texto remetem justamente ao caráter plural da

identificação do narrador-personagem e demonstram a pertinência da constatação de

Stuart Hall, de que “dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em

diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente

deslocadas” (HALL, 2006: 13). A figura de um “mulato de existências” coloca em

evidência não só o homem fruto do contato entre diferentes povos, mas o ser resultante

da convergência entre distintas visões de mundo que, direta ou indiretamente, exercem

influência na maneira como este se posiciona em relação aos acontecimentos com os

quais convive ao longo de sua existência. A incerteza que transparece na alternância

entre o uso das construções “Eu somos triste” e “Nós sou triste” (intercaladas pela

assertiva “Não me engano, digo bem”, que reforça os sentidos expressos pelas duas

frases), demonstra a dificuldade encontrada pelo homem ao tentar definir-se: o ser

percebe a pluralidade que traz em si, mas não sabe se ela provém de sua gênese (que

poderia estar representada nas orações supracitadas pelos pronomes pessoais eu e nós)

ou se ela é fruto dos elementos externos indispensáveis à construção de sua

subjetividade (que poderiam ser representados nas mesmas orações pelas formas verbais

somos e sou, que se associam com os pronomes pessoais). A falta de concordância entre

sujeito e verbo, presente nas duas orações analisadas, aponta para as contradições que

assinalam os processos de identificação, daí a pertinência da afirmação “Sou muitos”,

que as sucede na composição do parágrafo transcrito. A idiossincrasia dessas

combinações sugere a falta de coerência entre o “sujeito” e as “leis” do mundo em que

ele se insere (que parece ser uma das mais relevantes temáticas presentes na narrativa

em análise), lembrando-nos a premissa bakhtiniana de que “No homem sempre há algo,

algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre da autoconsciência e do discurso,

Page 512: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1290

algo que não está sujeito a uma definição à revelia, exteriorizante” (BAKHTIN, 2013:

66). Ao longo da elaboração do discurso do narrador, impressões das quais ele próprio

não parece estar seguro são desnudadas. O processo de abstração que dá origem ao

relato traz à tona aspectos do humano que parecem estar se revelando aos olhos do

narrador no exato momento em que ele procura os termos adequados para contar sua

história, daí a profundidade do texto que resulta de suas reflexões sobre o passado. Na

passagem que transcrevemos acima, é extremamente significativa a seguinte

constatação feita pelo homem: “quando conto a minha história me misturo”. Aqui

vemos a insinuação de que é o próprio ato de narrar que proporciona o intenso diálogo

de consciências que permeia a elaboração do conto. O processo de abstração necessário

para a tessitura da narrativa deságua em uma profunda reflexão sobre o passado, sempre

marcada pelo diálogo com o outro, do qual resulta um constante entrelaçar de vozes que

se perfaz na narrativa. Ao escolher palavras para narrar a sua história, a “voz” que

conduz o relato dialoga com outras vozes e, como demonstraremos mais adiante,

mistura-se a elas sem necessariamente aceitar de forma passiva as supostas “verdades”

que se exprimem através das mesmas.

E em linhas posteriores do conto, o narrador assume a autoria do suposto crime

que leva Carlota Gentina à morte:

A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era

um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar

(COUTO, 2013: 75).

O discurso de confissão é ambíguo, uma vez que ele admite ter matado a esposa,

mas com a ressalva de que a culpa pelo assassinato de Carlota Gentina lhe é atribuída

pela voz de outrem, haja vista o emprego da forma verbal dizem. Ao enfatizar que “na

vida real” matou uma mulher que não existia, o homem chama a atenção para o fato de

que existe uma disparidade entre os fatos tais e quais ocorreram e a maneira como eles

são vistos e julgados pelas pessoas e, com isso, coloca em evidência que qualquer tipo

de recordação ou recorrência ao passado é sempre influenciada por questões de ordem

subjetiva. Questões ideológicas exercem forte influência na maneira como as pessoas

veem e encaram os acontecimentos que se desenvolvem ao seu redor. Convergem para o

discurso narrativo pontos de vista divergentes sobre o acontecimento relatado e a

Page 513: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1291

distância entre essas visões torna-se mais perceptível no momento em que ele esclarece

as razões que o levaram a escrever sua história em uma missiva destinada a seu

advogado de defesa:

O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos,

um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para

me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa,

doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto,

mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui

preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser

moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco (COUTO, 2013: 75-76).

Nesse ponto de seu relato, o narrador afirma que está escrevendo porque “o

senhor, doutor das leis,” lhe solicitou que o fizesse. Também diz que após passar seis

anos confinado, já não sabe como viver, perdeu o gosto pela vida. Entretanto,

desenvolve uma narração que justifica os atos que originaram o suposto crime e essa

atitude vai de encontro a sua fala, pois embora se diga indiferente ao que possa lhe

acontecer, o homem busca na figura do outro a compreensão, e com ela a confirmação

de que não é o grande responsável pela morte da esposa.

Ainda no fragmento supracitado, observa-se que o advogado pediu para que o

narrador escrevesse sua história e, apesar de encontrarmos marcas textuais na narrativa

que a aproximam do gênero epistolar, vemos, no fragmento transcrito, a ressalva de que

o homem está “falando” ao desenvolver seu texto escrito, o indivíduo faz questão de

salientar que está fazendo uso da fala, da oralidade, como que para ressaltar sua

resistência em render-se à escritura e abrir mão do texto oral, tão importante para a

propagação de saberes. Temos aqui um índice que evidencia que oralidade e escritura

mesclam-se na composição da narrativa – esse, aliás, é um dos traços que singularizam

a escritura de Mia Couto: seus textos promovem uma aproximação entre voz e letra e

convertem em palavra escrita elementos geralmente comuns ao universo da oralidade.

Outro interessante elemento presente no discurso do narrador-personagem é a

inserção do questionamento: “O meu sofrimento lhe interessa, doutor?” (COUTO, 2013:

75). Não podemos perder de vista que estamos diante de um homem que cometeu um

assassinato motivado por inquietações relacionadas às crenças de sua tradição. Ao

declarar que, mesmo que lhe tenham solicitado um texto escrito, ele está “falando” ao

contar sua história, o narrador dá visibilidade às estreitas relações que mantém com o

Page 514: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1292

universo dos textos orais e, tendo em vista todo esse contexto, a inserção da referida

pergunta, em meio às malhas discursivas da narrativa, demonstra que a preocupação do

“doutor” – e por que não dizer dos “doutores”? – (homem que por seu trabalho em geral

faz constante uso da escrita) com os homens que vivem em situação semelhante a do

narrador-personagem não é algo comum no contexto social recriado. Ao expor o crime

cometido, o narrador-personagem não deixa de também expor a indiferença com que

são julgados os crimes semelhantes ao seu. Indiferença comprovada, inclusive, pelo

longo período de tempo (seis anos) que ele passa enclausurado aguardando uma posição

definitiva da justiça em relação a seu caso.

Ainda mais interessante, no interior do texto, é a informação de que o narrador

se entregou às mãos que o condenam por vontade própria:

Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi

ninguém que queixou. Farto de mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo.

Devido, talvez, o cansaço do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca

consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal

eu? O lugar da minha vida não é esse tempo (COUTO, 2013: 76)?

Atormentado pela ausência de sua esposa, o homem se autodenuncia. Sua

solidão, somada à angústia de sentir-se responsável pelas ações que levaram a esposa à

morte, parece obrigá-lo à autopunição. Consciente de que não contaria com a

compreensão no que se refere aos atos que praticou orientando-se pelos princípios de

sua tradição, é interessante a iniciativa do narrador-personagem em entregar-se às

autoridades, quando poderia negligenciar o crime cometido e, com isso, permanecer em

liberdade. As afirmações “Posso esperar, nunca consigo nada” e “O futuro quando

chega não me encontra” denunciam a situação marginal do narrador e nos remetem aos

muitos homens que não encontram lugar no futuro que lhes é projetado por aqueles que

assumem a missão de trabalhar em prol do progresso de um país. A falta de perspectivas

de futuro externada através dessas duas frases parece não ser desencadeada somente

pela prisão do homem.

De acordo com Mikhail Bakhtin, “O homem não tem um território interior

soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos

olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2013: 323) (Grifos do autor). Os

incessantes diálogos entre as duas instâncias mencionadas – “homem/eu” e “outro” –

Page 515: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1293

são permeados por negociações de sentidos, que conferem às identidades culturais um

caráter acentuadamente plural. As visões de mundo do homem e do “outro” se

entrecruzam e, inevitavelmente, se influenciam, pois como muito bem salienta Stuart

Hall, “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que

não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2006: 13). Esse intenso e

incessante entrecruzar de visões faz com que o narrador-personagem procure o “outro”

para entregar-se e responder pelos atos que ocasionaram a morte de sua esposa. Apesar

de ter a oportunidade de escapar impune da situação em que se encontra, o homem não

consegue fugir desse “outro” que inevitavelmente se faz presente em seu território

interior e, embora não concorde com os posicionamentos do “outro”, não deixa de se

submeter aos olhos dele quando reflete sobre seus atos e, consequentemente, sobre suas

possíveis culpas. O “outro” apresenta-se como fator decisivo na história do narrador-

personagem desde o início de seu relato, pois não podemos esquecer que as suspeitas de

que Carlota Gentina era uma feiticeira surgem após uma conversa em que o cunhado do

narrador – personificação do outro – relata-lhe uma experiência vivida com a esposa.

O narrador que se apresenta no texto de Mia Couto nos remete ao inacabado, ao

inconcluso, age e identifica-se mediado por uma visão de mundo constituída a partir das

lentes que lhe são cedidas pelo outro, que se apresenta como instância indispensável na

construção da imagem que ele tem de si mesmo. Como destacamos anteriormente, ele

mesmo decide entregar-se e confessar o crime. No entanto, sua decisão faz com que se

sinta injustiçado por não ser compreendido pelos que ponderam sobre sua culpa. Tal

atitude evidencia a constante oscilação do narrador-personagem entre valores culturais

de proveniências diversas.

Ao avaliar o peso de suas atitudes, o narrador revela seu desconcerto diante da

incompreensão dos que julgam os seus atos, como se pode perceber no trecho abaixo

transcrito:

O senhor me pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime?

Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não desses

que enterra as lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não

afasta-me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia.

Só os vivos têm datas separadas (COUTO, 2013: 81).

Page 516: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1294

O homem confessa ter assassinado Carlota, mas deixa evidente em seu discurso

de confissão que não se considera um criminoso. Na sequência textual transcrita, o

questionamento “Foi crime?” é acompanhado da resposta evasiva “Talvez, se dizem”,

demonstrando que é a voz do outro que legitima a culpa do narrador e o força a

considerar a possibilidade de ter cometido atos dignos das punições que recebe.

Mikhail Bakhtin ressalta que “a verdade sobre o homem na boca dos outros, não

dirigida a ele por diálogo, ou seja uma verdade à revelia, transforma-se em mentira que

o humilha e mortifica caso esta lhe afete o “santuário”, isto é, o “homem no homem”

(BAKHTIN, 2013: 67) (Grifos do autor)”. De certo modo, percebe-se na narrativa de

Mia Couto a existência de uma verdade que se impõe ao narrador, mediada pela voz do

outro. É a autoanálise impregnada pelo olhar do outro que faz com que o homem admita

a possibilidade de ser um criminoso (a oscilação entre a verdade do narrador e a que se

impõe através do outro transparece, no trecho que citamos anteriormente, através do uso

do termo “talvez”, que revela a admissão da culpa sem promover a anulação da

inocência do homem). Os posicionamentos do narrador-personagem revelam o

complexo diálogo que se processa entre sua visão de mundo e a visão de outrem, nem

sempre amparado pela compreensão das diferenças existentes entre ambas.

Ao fazer um apanhado sobre a história de Moçambique, país de origem de Mia

Couto, Leila Hernandez destaca que

Em síntese, é possível considerar que Moçambique condensava a

heterogeneidade própria das Áfricas, no geral. Apresentava povos falando

línguas diferentes, com tradições religiosas e noções de propriedade distintas,

valores diversos e vários modos de hierarquização de suas sociedades,

articulando-se e rearticulando-se de acordo com seus próprios interesses,

resultando em organizações políticas várias que ora se uniam ora entravavam

em disputa [...] (HERNANDEZ, 2005: 592).

Tais constatações nos permitem ter uma ideia da diversidade de valores e visões

de mundo que disputam e dividem espaço no contexto social do qual emerge a escritura

de Mia Couto. Diversidade esta que não é encontrada somente no país de origem do

escritor (pois não podemos negligenciar o fato de que até mesmo as culturas que muitos

consideram atávicas são formadas por inúmeras contribuições, de proveniências várias),

mas nele ganha maior visibilidade devido ao doloroso processo de dominação colonial

ainda recente que pregava a superioridade de uma cultura em detrimento a outras.

Page 517: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1295

José Luís Cabaço, em análise ao contexto social moçambicano, destaca que,

durante os anos que acompanharam a dominação colonial portuguesa, “o encontro de

culturas e civilizações se pautava pelo desconhecimento recíproco, pela incompreensão

e, frequentemente, pela intolerância em relação a essas diferenças” (CABAÇO, 2009:

84). Se hoje podemos falar de algumas lutas que marcaram o processo de dominação

colonial usando verbos no pretérito, não se pode fazer o mesmo no que se refere à

incompreensão e a intolerância às diferenças, que têm suscitado copiosos debates ainda

em nossos dias. Ao compor um texto ficcional que mantém estreitos vínculos com a

realidade e com a história de seu país, Mia Couto suscita a reflexão sobre temáticas de

alcance universal, que ultrapassam barreiras geográficas e temporais e remonta a

questões que acompanham o homem desde os mais remotos tempos.

E na narrativa, o discurso de confissão do narrador tem seu ápice quando ele

assume ser culpado, não por um crime, mas por um engano. O homem recusa a defesa

do advogado e mostra-se disposto a assumir a condenação que lhe será imposta, pois

segundo ele o cunhado volta a lhe procurar para dizer que sua esposa, afinal, não era

uma feiticeira. Sendo assim, ele cometeu um grave erro ao submeter à mulher a

dolorosa provação:

De escrever me cansei das letras. Vou ultimar aqui. Já não preciso defesa,

doutor. Não quero. Afinal das contas, sou culpado. Quero ser punido, não

tenho outra vontade. Não por crime mas por meu engano. [...] Há seis anos

me entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu me condeno (COUTO,

2013: 82).

Na passagem acima transcrita tem-se a rendição do narrador-personagem em

face às leis do outro. O homem aceita as possíveis punições que lhe serão impostas e, ao

curvar-se diante do julgamento do outro, ressalta a inadequação das divisões que são

feitas entre “brancos” e “pretos”:

Assim, mesmo brancos somos pretos. Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor

também. Defeito da raça dos homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e

rota, já não manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo

esses começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno é fazer os

outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos

maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como que

podem acreditar no céu (COUTO, 2013: 82-83)?

Page 518: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1296

Com essas afirmações de admiráveis profundidade e beleza, o homem chama a

atenção para as incoerências inerentes à ideia de segregação entre brancos e negros (não

podemos perder de vista que em Moçambique, principalmente durante o período

colonial, mas não só nessa época, o preconceito em relação aos homens negros

funcionou como barreira que limitava o seu acesso às áreas tidas como propriedades dos

brancos. Não se pode também esquecer que, por muito tempo, defendeu-se a

superioridade da cultura do colonizador em relação à cultura do povo colonizado). Suas

palavras sugerem, por um lado, a existência de algo muito maior e mais importante que

a cor dos homens (haja vista a referência a uma “raça” de todos), que os une, mesmo

que não se vejam os laços que promovem essa união; por outro ângulo, sugerem

também as intersecções entre as visões do mundo do negro e do branco que são

inevitáveis em um contexto social em que a convivência entre eles é constante. Ao

designar a voz dos homens como “cega e rota”, o narrador parece apontar para as muitas

falas impensadas, afirmações infundadas que tentam sustentar a ideia de que

determinados grupos humanos são superiores a outros: Pseudoverdades que de tão

reiteradas ao longo da história raramente são contestadas pelos homens. A autoridade de

uns sobre outros é questionada nessa parte da narrativa, e aqui se promove um encontro

entre o “eu” e o “outro”: essas duas entidades convergem na contradição absoluta dos

“acontecimentos” que fazem parte de suas vidas. O discurso do narrador-personagem é

o ponto em que dialogam consciências – é notório no fragmento transcrito que o

narrador se antecipa diante das possíveis réplicas de seu advogado, esclarecendo, por

exemplo, que o está chamando de “preto” com respeito. A rigidez das barreiras que

tentam separar os homens se desfaz diante da apreciação de sua essência. O céu é

apresentado como algo que não pode ser imaginado por aqueles que só conhecem a

opressão. E a essas afirmações segue-se a constatação: “Descompletos somos,

enterrados terminamos” (COUTO, 2013: 83), que demonstra que o homem tem

consciência de sua inconclusibilidade. Seu discurso ergue-se como testemunho de sua

sensação de incompletude e a transitoriedade que assinala os processos de identificação

é colocada em evidência no instante em que se ressalta a inevitável incompletude do

homem.

Note-se ainda, que no fragmento transcrito a cor da pele das personagens é

colocada em tela: o homem que está preso é negro, já seu advogado é um homem

Page 519: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1297

branco, como se pode inferir a partir do pedido de desculpas que o narrador faz ao dizer

que todos os homens são “pretos”.

Condescendente em relação às punições que receberá, o narrador declara-se

arrependido, nas últimas linhas de seu relato:

Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha

tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este

seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá

podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser

defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor:

justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não

conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar (COUTO, 2013: 84).

Aqui, uma vez mais, se reforça a ideia de que o homem sente-se injustiçado

diante de sua condenação. Ele demonstra-se arrependido, não de ter banhado a esposa

com água fervente, mas de ter se refugiado em um mundo onde ninguém é capaz de

realmente o ouvir e compreender. As falas da personagem questionam a incompreensão

diante da diferença. Pertencendo a um grupo com determinadas crenças e tradições, o

narrador percebe que qualquer julgamento, que não tenha em vista os preceitos que

motivaram suas ações, será injusto por desconsiderar sua mundivivência e as

singularidades de sua cultura, tendendo sempre a avaliar somente a crueldade de seus

atos.

Bakhtin constata que

A palavra, a palavra viva, indissociável do convívio dialógico, por sua

própria natureza, quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica ela

pressupõe também a última instância dialógica. Receber a palavra, ser

ouvido. É inadmissavel a solução à revelia. Minha palavra permanece no

diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida e reapreciada

(BAKHTIN, 2013: 337) (Grifos do autor).

Desmotivado a continuar lutando para provar que não teve a intenção de cometer

o crime do qual é acusado e cansado de tentar falar quando ninguém parece disposto a

lhe ouvir, o narrador, ao escrever seu relato, parece buscar, acima de tudo, a consolação

de uma escuta. O advogado de defesa, ao solicitar que o homem escreva sua história, lhe

dá a oportunidade de externar suas angústias e colocar em evidência a injustiça dos

juízos que são formados a partir de sua história. Ao elaborar sua confissão, o homem

Page 520: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1298

considera não só a visão dos outros em relação a suas ações, mas coloca em questão a

validade dessas visões que negligenciam as peculiaridades de sua cultura. Embasada em

uma proposta de diálogo com o advogado, que aparentemente não pertence à mesma

comunidade que o homem, a carta parece ter sido escrita com o intuito de reunir

argumentos não para a absolvição do narrador, mas para a reconsideração dos

horizontes que limitam o olhar para a cultura do outro. As relações dialógicas presentes

na narrativa nos remetem ao caráter dialógico da vida. Fazendo-nos perceber o diálogo

ininterrupto que permeia a convivência entre os homens.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo:

Martins Fontes. 2011.

_______. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud & Yara Fratesschi

Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.

_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2013.

CABAÇO, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo:

UNESP, 2009.

CHAGAS, Silvania Núbia. Nas fronteiras da memória: Mia Couto e Guimarães Rosa,

olhares que se cruzam. Recife: EDUPE, 2011.

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique - experiência colonial e territórios literários.

Cotia: Ateliê, 2005.

_______. Mia Couto - voz nascida da terra. Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo, 1998.

COUTO, Mia. Vozes anoitecidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomáz Tadeu da Silva

& Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história contemporânea.

São Paulo: Selo Negro, 2005.

JUNOD, Henri. Usos e costumes dos bantu. Campinas: UNICAMP, 2009.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Coisac

Naify, 2012.

Page 521: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1299

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-

modernidade. São Paulo: Cortez, 1997.

Page 522: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1300

ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS

SÉRIES FINAIS: PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO

COM O GÊNERO MEMÓRIAS [Voltar para Sumário]

José Aurélio da Câmara (UFRN)

Introdução

Apontando para a melhoria da qualidade de ensino, João Wanderley Geraldi

(1997), há várias décadas, orientava o estudo do texto em sala de aula como o meio

mais adequado e fácil para o ensino de Língua Portuguesa. Nessa perspectiva, diante do

fracasso escolar que se desenhara no Brasil, o Ministério da Educação – MEC elaborou

e adotou essa orientação proposta pelo autor, na década de 1990, nos Parâmetros

Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998), que se configura como o documento

oficial do País que passou a orientar o trabalho pedagógico em sala de aula, tentando

quebrar os paradigmas que norteavam, até então, a prática escolar.

Sob esse novo olhar, os alunos seriam coautores do conhecimento, refletindo

sobre a língua, seja na modalidade escrita seja na oral, objetivando a aquisição de

diversas competências. Ademais, considerar-se-ia a diversidade de textos que poderiam

ser lidos, ouvidos e produzidos nas mais diversas situações de interação.

Essa grande contribuição que os pesquisadores e estudiosos da linguística deram

para o ensino da língua materna manifestou-se, principalmente, quando priorizaram os

gêneros textuais que circulam socialmente como o caminho mais adequado e eficiente

para que o aluno exerça, com pleno domínio de suas competências, o uso da língua.

Desse modo, a proficiência genérica na língua materna implica muito mais que o

simples domínio do código linguístico e suas regras normativas. Envolve a formação

plena de um ser que interage, relaciona-se com o outro, necessita ascender socialmente

Page 523: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1301

e profissionalmente como cidadão politizado, conforme perfil idealizado nos PCN.

Fortalecemos esse discurso ao concordarmos que “A participação efetiva da pessoa na

sociedade acontece, também e muito especialmente, pela ‘voz’, pela ‘comunicação’,

pela ‘atuação’ e ‘interação verbal’, pela linguagem, enfim”. (ANTUNES, 2003, p. 15).

Tudo isso se ancora na grande contribuição do Círculo Bakhtiniano que foi

pioneiro nesses estudos, uma vez que embasou os PCN, cuja indicação orienta que o

professor precisa realizar ações didáticas que privilegiem a diversidade de gêneros

textuais para a prática de leitura e produção de textos orais e escritos numa perspectiva

de uso da linguagem como meio de interação social.

Essa contribuição revela a identidade de um gênero discursivo sobre três

aspectos, quais sejam: o conteúdo temático, o que é dito; a estrutura composicional; a

organização do que foi dito e do estilo, no que se refere aos meios linguísticos que

foram operados para a realização da comunicação. Nessa perspectiva, a grande

importância dos gêneros textuais é a de facilitar a comunicação verbal, em situação real

de comunicação, com sujeitos participantes do processo social no qual estão inseridos.

Isso se contrapõe ao equívoco de gramáticos tradicionalistas que estudam a língua como

algo imutável e estanque, sem levar em conta a vivência contextual, social, histórica e

política desses sujeitos.

Ao considerarmos a língua como uma prática social e cultural, cuja nascente

emerge na interação entre os sujeitos, buscamos nesta intervenção pedagógica

analisarmos os processos de retextualização (da fala para a escrita) sugeridos na

concepção teórica de Luiz Antônio Marcuschi (2010) a partir do gênero textual

memórias.

Na tentativa de contribuir com a melhoria do ensino de Língua Portuguesa no

ensino fundamental, elegemos como locus privilegiado uma turma do 9º ano do ensino

fundamental de uma escola estadual em Bento Fernandes, Município do Estado do Rio

Grande do Norte. Enquanto o corpus de análise será formado a partir de relatos orais

(memórias) dos idosos da comunidade local.

Nesse intento, buscamos compreender o que é memória, sua importância para o

registro da língua falada e da cultura locais, bem como realizar ações didáticas que

favoreçam a aprendizagem dos alunos nas atividades de retextualização – da fala para a

escrita. Sobretudo, levá-los a perceber as peculiaridades da fala e da escrita e como elas

Page 524: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1302

se concretizam simultaneamente no uso da língua. “As diferenças entre fala e escrita se

dão dentro do contínuo tipológico das práticas sociais de produção textual e não na

relação dicotômica de dois polos opostos”. (MARCUSCHI, 2010, p. 37).

Evidentemente, a fala possui características próprias e, por muito tempo, foi

margeada pelos compêndios gramaticais escolares que sempre privilegiaram a escrita

como o parâmetro ideal para o ensino de línguas. Entre tais características da fala,

claramente, encontramos uma linguagem relativamente não planejável, interação em

tempo real; descontinuidades frequentes no fluxo discursivo; sintaxe característica,

embora amparada na sintaxe gramatical; hesitações; marcadores conversacionais;

palavras iniciadas e não concluídas; pontuação fornecida com base na intuição das falas;

repetições; reduplicações; redundâncias; uso constante de pronomes egóticos (eu, nós).

Vale ressaltar que, diante das nove operações textuais discursivas citadas na obra

de Marcuschi (2010), analisaremos aquelas mais recorrentes nos textos. Serão

dispensadas das análises as duas últimas operações por tratar-se de sequências textuais

argumentativas que pouco incidem no gênero textual memórias de sequência narrativa.

Tendo como panorama fazer uma reflexão do contínuo em interseção entre a

língua falada e a língua escrita, o presente trabalho constitui-se como uma proposta de

intervenção pedagógica, organizada a partir de sequências didáticas, que contemplaram

os processos de retextualização, no qual os alunos desenvolveram atividades de

produção textual, percebendo como se dá a passagem da oralidade para escrita.

Nesse sentido, é imprescindível que o aluno perceba e reflita que a fala e a

escrita são duas modalidades necessárias e complementares dentro de uma língua.

Comumente, ainda detectamos no contexto das salas de aula o desenvolvimento de

práticas pedagógicas pouco relevantes para o ensino da oralidade da Língua Portuguesa.

O educando, por conseguinte, pouco ou quase não estabelece relação da língua que ele,

de fato, faz uso em seu meio social com aquela vista na escola de forma, muitas vezes,

descontextualizada, distante e imposta.

Essa situação, geralmente dar-se amparada por gestores, pais e instituições

escolares, notadamente equivocados com as novas perspectivas metodológicas para o

ensino de língua. Os próprios alunos, por estarem numa situação passiva, não podem

contribuir para uma mudança significativa nessa ordem no intuito de trazer textos orais

Page 525: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1303

e escritos como objetos de estudo para a sala de aula, para suas vivências, para

representar seu lugar no mundo social.

Por sua vez, muitos professores parecem acomodados, talvez pelo medo da

ruptura do tradicional com o novo que se descortina à sua frente. O fato é que,

independentemente desses medos, o educador tradicional não tem mais lugar no século

XXI, haja vista que as mudanças vieram e, com elas, a necessidade de um profissional

engajado, motivado, preparado e, muito mais que isso, fundamentado teoricamente em

concepções de linguagem e de ensino que o orientem a trabalhar o ensino de língua a

partir de textos orais e escritos.

Além disso, os docentes precisam perseguir o objetivo de desenvolver a

competência discursiva dos alunos, tendo em vista que precisam interagir nos múltiplos

contextos interacionais dos quais participam, constituindo-se, assim, conforme aponta

Mikhail Bakhtin (2010) como sujeitos no outro, com o outro e pelo outro.

Contextualizando a pesquisa

A abordagem de pesquisa adotada segue o padrão das investigações do tipo

qualitativo. Trata-se, nesse caso, de uma situação na qual analisaremos a produção

textual e as operações de retextualização da fala para a escrita produzida pelos alunos a

partir dos relatos orais dos idosos, que foram gravados e transcritos. Tudo isso,

respeitando o valor dos dizeres orais na escrita.

Para atender ao objetivo proposto, selecionamos o gênero memórias, pois

entendemos que é, por excelência, o mais adequado para esse intento. Além disso, esse

gênero foi indicado para as séries finais do ensino fundamental no manual da Olímpiada

de Língua Portuguesa – Escrevendo o futuro. Esse manual é um norteador dos trabalhos

de retextualização desenvolvido para se trabalhar produção textual nas escolas

participantes desse evento de cunho nacional que mobiliza a maioria das escolas

públicas brasileiras.

Esperamos que essa escrita se dê de forma interativa e significativa dentro de

uma prática social que tenha a oralidade, os relatos dos idosos, transformados em textos

escritos no formato do gênero memórias. Nesse evento de produção textual em que a

Page 526: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1304

cena enunciativa será encontro de gerações, os alunos poderão relacionar o seu tempo e

o seu ambiente com o das pessoas mais velhas, em um constante ir e vir.

A evidência de que as línguas só existem para promover a interação entre as

pessoas nos leva a admitir que somente uma concepção interacionista da

linguagem, eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma

ampla e legítima, fundamentar um ensino de língua que seja, individual e

socialmente, produtivo e relevante. (ANTUNES, 2003, p. 41).

Nesse contexto de uso real da língua materna, pretendemos que os alunos

percebam, enquanto sujeitos sócio-históricos numa situação de comunicação e interação

social, que a modalidade escrita não prevalece sobre a oralidade e vice-versa.

Desse modo, não há sentido em privilegiar uma posição extrema em considerar

a fala como concreta, contextual, de estrutura simples, lugar do caos e do erro; por seu

turno, a escrita como abstrata, elaborada, complexa, formal, uso da boa forma e do bom

uso da língua, quando, de fato, são duas ordens que se complementam em uma gradação

contínua de usos formais e informais atendendo os propósitos comunicativos dos

interlocutores.

Admitimos que as duas modalidades (fala e escrita) estão a serviço dos usuários

da língua no mesmo patamar valorativo quanto aos usos e funções. Porém, “Há práticas

sociais mediadas preferencialmente pela escrita e outras pela tradição oral”.

(MARCUSCHI, 2010, p. 36-37).

Equivocadamente, a escola ainda persiste em conceber o ensino de Língua

Portuguesa numa visão dicotômica entre a fala e a escrita. Isto se acoberta em raízes de

interesses políticas e ideológicas de grupos que detêm e se perpetuam no poder. Fato,

que só contribui para aumentar alguns mitos, tais como, o ensino de Língua Portuguesa

deve ser centralizado apenas na escrita engessado do código formal da língua; E, o de

que a oralidade não deve ser ensinada na escola, uma vez que a fala já nasce com o

indivíduo.

Nesse cenário, estudos linguísticos, claramente, derrubaram esses mitos, pois

comprovaram que há, por um lado, gêneros textuais na modalidade escrita muito

próximos da oralidade como, por exemplo, o bilhete, que é totalmente composto por

uma estrutura simples, contextual e informal. Por outro lado, sabemos que há gêneros

textuais da oralidade, tal como um discurso oficial de posse de um executivo, por

exemplo, que é altamente elaborado em uma estrutura complexa e formal. Nessa

Page 527: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1305

perspectiva, chega-se ao postulado de que o uso da língua é heterogêneo e variável,

distanciando-se da visão de sistema único e abstrato, reforçando, assim, que o uso entre

a modalidade oral e a modalidade escrita, mesmo apontando diferenças, dá-se de forma

gradual e escalar.

Entretanto, esse fato é pouco difundido nos nossos manuais didáticos que

recebem grande influência de gramáticos conservadores em sua elaboração. Na maioria

das vezes, esses manuais aparecem como o único instrumento do professor para o

ensino de Língua Portuguesa nas escolas públicas brasileiras. Eles abordam as relações

entre textos orais e escritos, baseados, estritamente, na língua escrita fundada na norma

padrão. “O que conhecemos não são nem as características da fala como tal nem as

características da escrita; o que conhecemos são as características de um sistema

normativo da língua”. (MARCUSCHI, 2010, p. 34-35). Isso parece levar os professores,

sem uma fundamentação teórica linguística, a acreditar e a perpetuar em suas aulas a

polarização entre textos orais e escritos.

Considerando-se a ocorrência dos textos orais e escritos em práticas sociais

simultâneas de comunicação, não há como caracterizá-los como duas propriedades de

sociedades variadas. Nesse sentido, há uma postura ideológica fomentada, sobretudo no

espaço escolar, de elevar como prestígio social o domínio de textos na modalidade

escrita em detrimento de textos da oralidade.

A retextualização não é um processo mecânico, já que a passagem da fala

para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização.

Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem

tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem

sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita. (MARCUSCHI,

2010, p.46)

Desse modo, uma boa compreensão do entrevistador daquilo que foi dito pelo

entrevistado é um pressuposto básico para obter êxito no processo de retextualização.

Compreensão que envolve não somente os aspectos linguísticos, mas a situação

contextual de interação a partir dos interlocutores, do propósito comunicativo e do

contexto de produção.

No que diz respeito aos sujeitos da pesquisa, são alunos matriculados em uma

turma do turno vespertino, composta de 24 alunos, divididos em 12 do sexo masculino e

12 do sexo feminino, numa faixa etária que varia dos 13 aos 17 anos. São alfabetizados,

Page 528: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1306

contudo apresentam um baixo nível de letramentos quando se trata de domínio dos

gêneros discursivos mais complexos.

Constituem-se, ainda, como sujeitos da pesquisa um grupo de aproximadamente

30 idosos que se reúnem semanalmente em sede própria, moradores de uma mesma

comunidade no interior do Rio Grande do Norte. O ponto de partida dos relatos baseia-

se na seguinte temática “Memórias da minha infância e da minha mocidade”.

Assim sendo, o uso dessa temática não contemplou apenas uma produção

textual, mas, ao contrário, criou uma situação sociocomunicativa em que não ocorreu

uma simples apropriação de um gênero textual, mas o resgate de uma identidade

cultural de uma comunidade, aproximando passado e presente, unindo, portanto, as duas

pontas da vida: aqueles que contam e aqueles que ouvem.

Para isso, os alunos tiveram encontros com o grupo de idosos da cidade de Bento

Fernandes, Município da região do Mato Grande, distante 90 quilômetros de Natal.

Nesse encontro, os relatos orais foram coletados na forma de entrevistas gravadas em

celulares. Entrevistas que foram instigadas por objetos e fotografias, previamente

solicitados, que remetiam ao passado e às memórias dos idosos.

No transcorrer das análises, os alunos participantes serão referidos como AP1

(aluno participante 1), AP2 (aluno participante 2), e assim por diante, conforme o total

de alunos sujeitos inseridos na pesquisa. Para tanto, foram realizadas entrevistas, sem

grande rigidez no tocante ao tema e ao número de perguntas, partindo sempre da

espontaneidade oral dos entrevistados. Assim, os alunos se sentiram livres para criar

suas próprias perguntas a partir das curiosidades que surgiram no curso da escuta dos

relatos.

Tais relatos constituíram uma atmosfera de lembranças e sentimentos que

envolviam, a cada instante, entrevistador e entrevistado, criando um momento de

interação e de encontro único de gerações. Isso emergiu por meio de elementos

recheados de histórias que evocavam as memórias dos entrevistados, como velhas e

desbotadas fotografias, objetos pessoais, cujos cheiros e texturas faziam surgir

momentos de grande emoção.

Dessa forma, os entrevistados relembravam diversos acontecimentos que teriam

marcado a sua infância ou a sua mocidade, como uma festa, uma travessura, um passeio,

uma viagem, uma grande enchente ou uma seca, por exemplo. Nessa direção, os alunos

Page 529: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1307

norteavam o andamento dos relatos, questionando os entrevistados quanto aos modos de

viver do passado (namorar, casar, frequentar a escola, relação com os pais, brincadeiras,

trabalhos e crenças).

Posteriormente, os relatos orais gravados foram transcritos na íntegra pelos

alunos, de forma que observassem as características próprias da fala em relação à

escrita. Na sequência, executaram a retextualização da modalidade oral para a

modalidade escrita seguindo as operações discursivas.

Durante a execução dos processos de retextualização os alunos produziram seus

textos como se fossem os próprios entrevistados.

Procedimentos de análise

Elencamos, a seguir, as operações textuais discursivas propostas por Marcuschi

(2010). Aliado a isso, analisaremos as produções mais recorrentes de retextualização

dos alunos escolhidas para o fim a que se propõe este trabalho. As transcrições serão

representadas por (T); Em seguida, o mesmo trecho retextualizado pelo aluno será

representado por (R), a saber:

a. A primeira operação – Eliminação de marcas estritamente interacionais, hesitações e

partes de palavras (estratégias de eliminação baseadas na idealização linguística).

Nessa estratégia, buscamos eliminar os elementos linguísticos tipicamente de marcas da

oralidade ausentes em textos escritos.

“Ave Maria naquele tempo minha filha nós tínhamos dificuldades para arranjar o que

comer, mas mesmo assim era até divertido...” (T, AP13);

“Naquele tempo, tínhamos dificuldades para arranjar o que comer, mas, mesmo assim,

era até divertido...” (R, AP13).

b. A segunda operação – Introdução da pontuação com base na intuição fornecida pela

entoação das falas (estratégias de inserção em que a primeira tentativa segue a

sugestão da prosódia). Nessa operação, fez-se necessário analisar o uso da pontuação

para um claro entendimento do texto escrito. Assim sendo, na pontuação nas produções

textuais dos alunos, levamos em conta a entoação da fala, uma vez que o objeto de

aplicação do processo de retextualização são relatos orais.

Page 530: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1308

“Eu me chamo Sandoval tenho 81 anos nasci em Assu me criei em Assu mas conheci 49

cidades do Brasil já me casei duas vezes.” (T, AP21);

“Sou Sandoval, tenho 81 anos. Nasci e me criei em Assu-RN, mas conheço 49 cidades

do Brasil. Casei-me duas vezes.” (R, AP21).

c. A terceira operação – Refere-se à retirada de repetições, reduplicações, redundâncias,

paráfrases e pronomes egóticos (estratégia de eliminação para uma condensação

linguística). Levando em consideração que a oralidade caracteriza-se por uma sucessiva

repetição. Isso ocorre tanto no campo lexical quanto no sintagmático, concorrendo para

um exagero de construções paralelas.

“Eu lembro muito na época que eu com 6 a 7 anos íamos pegar leite lá no Riacho

Fechado I, eu e a minha irmã aí sempre sempre eu fazia umas travessuras era quebrar

litros e chegava em casa colocava culpa na irmã sem ela ter culpa de nada...” (T, AP20);

“Na época, lembro muito que entre 6 e 7 anos íamos pegar leite no Riacho Fechado I. Ia

junto com a minha irmã. Sempre fiz travessuras como quebrar litros e colocava a culpa

nela.” (R, AP20).

d. A quarta operação – Introdução da paragrafação e pontuação detalhada sem

modificação da ordem dos tópicos discursivos (estratégia de inserção). Nessa operação,

buscamos depurar dois constituintes desse processo, a pontuação e o parágrafo, cuja

natureza remete à idealização linguística.

“Sou um rapaz que trabalhou pelo mundo sem irmão, com isso, eu aprendi a passar, a

lavar e a cozinhar. Na viagem do tempo da foto, trabalhei na agricultura colhendo café,

limpando café, plantando lavoura. Fui lá para o sul, trabalhei quatro anos só na

agricultura. Quando fui para Paranaguá não tinha trabalho de agricultura, trabalhei em

um armazém de exportação de café para o exterior.” (T, AP11);

“Sou um rapaz que trabalhou pelo mundo sem irmão. Com isso, aprendi a passar, a

lavar e a cozinhar. Esta foto foi numa época em que viajei para trabalhar na agricultura

colhendo e limpando café, além de plantar lavouras.

Fui para o sul, trabalhei quatro anos somente na agricultura. Depois fui para Paranaguá,

mas lá não havia trabalho nisso. Passei a trabalhar em um armazém de exportação de

café para o exterior.” (R, AP11);

Page 531: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1309

e. A quinta operação – Introdução de marcas metalinguísticas para referenciação de

ações e verbalização de contextos expressos por dêitico (estratégia de reformulação

objetivando explicitude). Para essa operação, elegemos uma das características

principais da oralidade que é utilizar-se sistematicamente do contexto físico,

notadamente para uma operação espacial. Nesse aspecto, buscamos eliminar esse

contexto físico em detrimento de informação que possa recuperar aquilo que foi

verbalizado.

“Eu nasci em São Paulo do Potengi que era papai morava antes de vim para cá, as casas

eram bem simplesinhas e eram bem poucas. A minha era simples também, mas não

importava muito não e quando era menina, eu gostava de brincar de boneca, aquelas de

pano mesmo, até hoje (risos) eu não brinco não, mas gosto de guardar.” (T, AP14);

“Nasci em São Paulo do Potengi, uma cidade onde papai morava antes de vir para Bento

Fernandes. Aqui, as casas eram poucas e simples, a minha também era modesta, mas eu

não me importava.

Quando menina gostava de brincar com bonecas de pano. Hoje já não brinco com elas,

mas gosto de guardá-las.” (R, AP14).

f. A sexta operação – Reconstrução de estruturas truncadas, reordenação sintática,

encadeamentos (estratégia de reconstrução em função da norma escrita). Essa etapa

constitui-se como uma das mais importantes do ponto de vista da normatização da

escrita e irá envolver diversos aspectos linguísticos textuais, como, por exemplo,

acréscimos informacionais, substituições lexicais, entre outras.

“Os namorados, o pai era no meio da gente na sala, hoje em dia os namoros é libertos,

no meu tempo não era assim não.” (T, AP8);

“No meu tempo, os namoros não eram assim liberados. O pai ficava na sala entre nós.”

(R, AP8).

g. A sétima operação – Tratamento estilístico com seleção de novas estruturas sintáticas

e novas opções léxicas (estratégia de substituição visando a uma maior formalidade).

Essa operação revela aspecto de fundamental importância na retextualização,

compreendendo o fenômeno cognitivo da interpretação referente à compreensão textual.

Page 532: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1310

É fato que esse é um aspecto delicado, uma vez que para transformar é necessário

compreender o texto a fim de evitar uma retextualização falseada.

“O modo de antigamente num era que nem o de hoje, vocês vê né? A criação da gente

era diferente da de vocês, vocês hoje, vocês são vaidosos, a gente não tinha vaidade, nós

não tinha infância. A infância da gente era só trabalhar e a gente estudava muito pouco,

terminei de estudar no quinto ano.” (T, AP9);

“Antigamente, o modo de viver não era como hoje. Fomos criados diferentes de vocês.

Não tínhamos vaidades nem infância. Nessa fase, era só trabalho e pouco estudo, tanto

que parei de estudar no quinto ano.” (R, AP9).

Dessa forma, as sete operações foram trabalhadas, a partir de uma sequência

didática, enfocando os processos de retextualização do gênero textual memória

produzidos pelos alunos.

Considerações finais

Para que as retextualizações produzidas pelos alunos fluíssem de maneira

proveitosa, foi necessário dispor de gravações e transcrições. Além do mais, a

compreensão da fala do entrevistado (idosos) pelo entrevistador (os alunos) foi um

importante fator para a realização de uma retextualização fidedigna.

Vale ressaltar que este trabalho, fundado na teoria proposta por Marcuschi

(2010), caracteriza-se como um norte para os professores observarem e viabilizarem que

o ensino da língua portuguesa pode e deve contemplar a oralidade e a escrita dentro de

um processo sociointerativo que transpassa o próprio código da língua. “O uso de

determinada língua constitui mais que um fato isolado. É um ato humano, social,

político, histórico, ideológico, que tem consequências, que tem repercussões na vida de

todas as pessoas”. (ANTUNES, 2007, p. 20-21). Isto enfraquece alguns equívocos que

ainda perpetuam-se nas aulas de Língua Portuguesa das escolas brasileiras: Como o de

apresentar a variedade padrão como único meio para o ensino de língua e o de conceber

a escrita como uma representação da fala.

Os alunos envolvidos na pesquisa fizeram uso e comprovaram que as

modalidades orais e escritas de uma língua apresentam peculiaridades distintas quanto à

ocorrência composicional e organização. Perceberam, também, que as duas modalidades

Page 533: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1311

são úteis à interação verbal que se dá mediante os diversos gêneros textuais circulantes e

necessários à comunicação no meio social. Além disso, destaca-se que tais modalidades

são flexíveis no tocante ao propósito comunicativo e contextual a que se propõe o

falante. Ambas apresentam sua importância sociointeracional comunicativa e se

complementam em um mesmo grau valorativo para um eficiente e adequado uso da

linguagem.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. 6. ed. São Paulo:

Parábola, 2003.

________. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho.

São Paulo: Parábola, 2007.

BAKHTIN, Michail. (1979). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,

1992.

BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:

terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – língua portuguesa. Secretaria de

Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10.

ed. - São Paulo: Cortez, 2010.

Page 534: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1312

VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA [Voltar para Sumário]

José Helber Tavares de Araújo (UFPB)

Sobre a situação do romance brasileiro durante os anos de ditadura militar,

podemos afirmar que havia duas posturas que caracterizavam as narrativas mais

relevantes do período: uma, a ficcionalização do engajamento no contexto do regime,

muitas vezes buscando a explicitação da intensa violência institucional realizada nos

atos de repressão dos indivíduos; outra, a representação da falta de referencialidade do

sujeito, que incide no insulamento da subjetividade dos personagens e, em consequência

disso, na fragmentação formal da linguagem. Digamos que as obras que conseguiram

gerar uma tensão na relação entre estas duas vertentes obtiveram um maior destaque no

cenário desolador da cultura nos anos 60-70, pois conseguiram enriquecer tanto o

diagnóstico histórico extraído da realidade, sem a vertente panfletária, quanto evidenciar

a riqueza da autonomia estética das formas narrativas, sem perder de vista a exploração

da condição psicossocial dos personagens.

Somos levados assim a nos perguntar, a partir de nossas observações sobre o

tratamento periférico do problema da ditadura nos romances de Osman Lins, o que a

obra Avalovara pode dizer a respeito da violência ligada ao contexto da época? Sem

entrar diretamente nas questões que envolvem as ricas pesquisas desenvolvidas sobre as

intertextualidades da obra e as orientações deixadas em marginálias e depoimentos do

autor sobre as quais a crítica se debruçou nos últimos tempos, somente encontraremos

nossa resposta na interpretação intrínseca da obra. A violência em Avalovara surge sob

duas vertentes em disputa que configuram esteticamente a narrativa e diz respeito à

conjuntura da literatura no período ditatorial: uma advém de uma violência totalitária,

de conduta impositiva e intimidadora, muitas vezes explicitamente física, e que

podemos observar na situação vivenciada na ação brutal dos soldados contra o

Page 535: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1313

protagonista Abel nos últimos capítulos de“Cecilia entre os leões” ou na postura fria e

racionalista do militar Olavo Hayano, Iólipo repressor de , personagem inominável.

Por outro lado, há em Avalovarauma violência negativa, ou seja, que não é

explicitamente visível e que só pode ser percebida quando atentamos para a

compreensão de que o sofrimento subjetivo está em diálogo constante com os conteúdos

normativos da exterioridade. Os anseios de liberdade, expressos na consciênciaem fluxo

dos protagonistas, ou a reprodução fragmentária da narração como expressão do

desnorteamento das subjetividades, são maneiras de uma exposição negativa da

violência.A limitação da liberdade acaba sendo incorporada como conteúdo da obra, ora

através da mimetização das ações violentas ao objeto do qual o sistema, e sua violência

explícita, buscam eliminar, ora através de um experimentalismo formal que expresse de

modo clivado as angústias do não-dizer. Deste modo, Avalovara é um romance que

apresenta, tanto no plano temático quanto no formal, um jogo de conflito entre a

exposição da tentativa positiva de cristalização das formas de vida e, em sua

contraposição, a luta pelo reconhecimento e autenticidade da vida dos seus personagens,

ainda que expressa na condição de sofrimento ou no esforço de garantir uma alteridade.

Poucas vezes esta violência intrínseca ao texto de Avalovara foi abordada com

profundidade pela crítica. Nitrini chega a esboçar uma reflexão em torno de questões

importante sobre o tema, mas apenas deixa breves apontamentos:

O romance é permeado de violência, nas diferentes linhas temáticas,

correspondente às várias histórias de Avalovara, desde as que remetem à

metalinguagem até as que colocam em cane Abel imerso no mundo, às voltas

com sua família, com suas mulheres e com os personagens próximas a elas.

O ápice da violência ocorre quando o marido da não nomeada a flagra com

Abel, na alegórica cena de união sexual sobre o tapete com motivos

paradisíacos no apartamento de São Paulo, e os assassina. A violência se

presentifica nas estruturas sociais e políticas que regem a vida das

personagens, indicando pela inclusão de trechos de jornal relativos a

acontecimentos no Brasil, sob a ditadura militar. Esta manifestação

intertextual hibrida, com a convivência dos discursos literário e referencial,

revela o claro comprometimento de Osman Lins com o seu tempo.

(NITRINI, 2010, p. 145-146)

Não parece ser difícil estabelecer paralelos entre as nuanças da estrutura

ideológica do regime totalitário que domina o universo kafkiano, como epopeia

negativa, com a atmosfera de forças de dominação e violência inerentes aos atos de

Olavo Hayano. Também os descompassos do sofrimento e indeterminação do sujeito

Page 536: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1314

como soluções estéticas do ‘modelo’ beckttiano encontram, principalmente nas

personagens femininas de Avalovara e nos caminhos incertos da introspecção de Abel, a

experiência da voz negativa, que não se quer se extinguir no processo de identidade da

razão administrada.

O nosso primeiro ponto de nossa análise dos processos de violência na obra

Avalovara diz respeito ao espancamento sofrido por Abel, na linha T, “Cecília entre os

Leões”. Já sabemos que os significados do contexto histórico ditatorial na obra de

Osman Lins tem recebido tratamento secundário dentro da obra, muito pela posição,

como crítico literário que foi, do próprio autor em buscar oferecer coordenadas de

leitura do seu próprio romance, muito pela sutileza com que aparece o tratamento deste

tema na complexidade da obra, que tem como pilares mais evidentes de sua

estruturação, por exemplo, os dialogos com o medievalismo ou com o misticismo

oriental. Entretanto, lembremos, por outor lado, que nossa estrátegia teórica, desde o

início, consiste em discutir justamente aquilo que está presente no texto literário sob

uma condição de exclusão, de negacionismo do negativo. Sendo assim, é muito

improvável que a cena de violência física que envolve Abel e Cecília, cuidadosamente

datada em 1962, bem antes do golpe de 1964, não esteja vinculada aos fundamentos da

repressão e autoritarismo militar. Vale a pena citar a passagem inteira:

Cecília, desguarnecida, enrijece o corpo e não parece medir a diferença de

forças, agora inconteste: quatro vultos nos espreitam, o espessor da ameaça

enegrecendo-os. Volteia o busto, calada, cisca a areia com os dedos. Acha o

que procura? Uma pedra? A mão fechada. Três dos estranhos mantêm-se um

pouco afastados, todos de cabeça descoberta; o outro, de capacete, segura um

bastão. Polícia? Este se dirige para o lugar onde estamos. Pode fazê-lo sem

pressa: seus três comparsas barram nossa fuga eventual. O de capacete: "Que

estão fazendo aí?". Um dos três solta uma risada fina e sôfrega. Sem dar

resposta, levanto-me; ajudo Cecília a levantar-se. O carneiro desapareceu.

"São surdos? São surdos?" Cecília pôs a bolsa a tiracolo e tem nas mãos os

sapatos. Os três paisanos fecham mais o quadrado, enquanto o outro nos

ordena mostrar os documentos. Documentos? Intimação expressa numa

língua morta ou ainda larvar. A presença dos intrusos, esta me parece clara.

Assume um drástico sentido de expulsão, nada casual. Seguro a mão de

Cecília e tomo a decisão de afastar-me como se os quatro indivíduos não

existissem. Mas o de capacete atravessa a ponta da botina entre os tornozelos

e empurra-me. Caio com a boca na areia e antes que inicie um gesto fazem-

me rolar com pontapés à altura dos rins. Passa entre as estrelas, curva, a

cauda do farol. Meu espancador, capacete na mão, atinge-me com os pés a

cada tentativa de erguer-me e Cecília defende-se dos outros. Espanta-me a

rapidez com que esquiva os golpes dos agressores e a obstinação com que se

conserva em silêncio, não emitindo um só grito de socorro. Consigo, no chão,

agarrar a perna do soldado e fazê-lo cair. Precipito-me, de braços abertos,

entre os que maltratam Cecília. Um deles segura-me e prende-me o fôlego.

Page 537: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1315

Mão dura, larga. Mordo-a, ouço um urro abafado. Curto golpe à altura da

nuca me derruba. Tento levantar-me. Tudo que consigo é rolar sobre um

ombro e entrever o corpo de Cecília, perdido o equilíbrio, ceder com lentidão

e baquear, lento, mais uma vez estapeado. Ouço um lamento, um grito, um

chamado, lançado cada um poruma voz diferente — e as estrelas ampliam-se,

lagos ofuscantes. Os passos dos ofensores afastam-se depressa. O tropel. A

praia estremecendo sob a carga desses passos na areia, como se percorrida

por um bando de rinocerontes. Cerro as mãos, tentando manter-me, por este

meio, na superfície da minha consciência. Houvesse, em minhas palmas, um

fio, uma corda capaz de arrebatar-me a esta cova profunda sobre a qual

flutuo! Os lagos das estrelas crescem e diminuem. Sobrevém um

esmorecimento, uma paz dissimulada, a doçura de morrer ou de cortar as

ligações. Um mel. Um nada. Abel! Meu nome bate à porta das trevas

(quantas vezes?) e impede que me renda. Aos poucos, movo-me. Cecília está

sentada, com as mãos sobre o sexo e as pernas estendidas, unidas, na exata

posição em que as mendigas, sem força para andar, pedem esmolas nas

calçadas. As feridas sangram e ela treme. De dor? Seus dentes batem sobre o

meu nome. Talvez de frio, o corpo desabrigado, exposto à brisa praiana.

Para uma melhor compreensão da violência exposta neste trecho, vale a pena

resgatemos o fato de que o casal é perseguido pelos irmãos de Cecília, obrigando-os a

encontros itinerantes secretos. Embora não pareça de forma categórica, tudo indica que

o fato de Abel ser um homem casado incomoda profundamente os irmãos de Cecília, de

modo que estes não conseguem visualizar nada mais do que uma ação que se ampare

em uma moralidade reguladora do outro, em uma violência normativa. Por outro lado,

os encontros secretos que Cecília e Abel vão vivenciar, devido à pressão coibitiva,

evidenciam que, na iminência do perigo, é necessário um estado de alerta constante caso

queiram agir em defesa de suas autonomias contra o interdito instaurado pelos irmãos.

Estes capazes de qualquer coisa no âmbito da agressão ao outro. Assim, na perspectiva

dos irmãos, o confronto somente teria solução se Cecília obedecesse a ordem arbitrária

instaurada pela norma da moral de um outro. Valores moralistas, regra normativa e

violência autoritária se tornam sinônimos e é deste emaranhado que fogem Cecília e

Abel.

É justamente nesta premissa sobre violência que Emílio Dellasoppa (1991) irá se

apoiar para diagnosticar o que ele chama de “autoritarismo socialmente implantado”,

encontrado tanto no nível institucional como também presente no nível individual no

regime militar brasileiro: “a convicção de que somente o restabelecimento da relação

ordem-obediência poderia resolver os problemas da sociedade levou a uma identificação

cada vez maior de autoridade com violência, baseada, talvez, como Arendt assinala, na

percepção de que, como violência faz as pessoas obedecerem, então violência é

Page 538: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1316

autoridade” (DELLASOPPA, 1991, p. 82). Os irmãos de Cecília têm como fundamento

autoritário uma prática social coerciva que visa a determinação involuntária do outro e

que nos leva a refletir que o ato contra Abel ocorreria no âmbito das sociabilidades se

não fosse um detalhe pequeno que ajuda a situar a narrativa no contexto da época: um

dos irmãos é policial. Assim, o problema que se daria no plano pessoal é transferido

também para o plano das estruturas repressivas do Estado. Colocado dessa forma, e

voltando ao excerto do romance, temos uma situação real de violência totalitária,

manifestada física e simbolicamente, e de violência negativa, a psíquica, que só

podemos perceber no procedimento de exposição da subjetividade do personagem.

Tanto assim que esta última surge antes de nada acontecer, surge do temor, e advém do

medo imprimido e desenvolvido ao longo dos encontros secretos, como que um

acúmulo angustiante de expectativas para uma situação inusitada em suspensão, um

porvir. O casal sente a impotência diante do que ocorre, são “incapaz de amedrontar”,

sentem o “desamparo”, sem “instrumentos precisos de defesa”, com “Ideia de nudez e

dependência”. O estado é de emergência e a ameaça certamente virá. Só que ela não

aparece em forma apenas de sujeito, a ameaça autoritária vem vestida de Estado

totalitário, de polícia autoritária, de violação dos direitos de liberdade. Frases como “o

que vocês estão fazendo aí?”, “São surdos? São surdos?” ou a exigência de documentos

aparecem como expressão cínica de utilização do sistema operante repressivo do Estado

em favor de uma ordem arbitrária. Neste sentido, podemos defender que existe, em

Avalovara, uma crítica cifrada contra a violência política da época da ditadura, e que

pode ser encontrada no desenvolvimento da ação dos personagens, ou seja, na práxis do

campo diegético, e não de forma alegórica como poderia alguém sugerir. Esta passagem

do romance da qual destacamos tem desdobramentos importantes na narrativa, haja

visto que o ataque é o clímax da tensão entre o casal e o espectro ameaçador dos irmãos.

É na sequência dos fatos que Abel descobre a androgenia de Cecília; que sua mãe, a

Gorda, permite que os encontros sejam no chalé; e que logo após a agressão é que Abel

e Cecília irão se unir carnalmente como uma forma de restauração da união cindida.

Admira-nos muito a crítica não reconhecer tal diálogo histórico no romance como um

de seus fundamentos, pois é evidente que o jogo de conflitos entre formas de vida fixas

e formas indeterminadas de liberdade surge como uma das principais pulsões que rege o

Page 539: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1317

romance e, ao mesmo tempo, no mínimo, expressa uma situação sócio-política do país:

o estado de exceção.

Recuperando então o trabalho Estado de Exceção (2004), de Giorgio Agamben,

principalmente no ponto onde o filósofo italiano trata da perspectiva benjaminiana de

violência, é importante destacar o questionamento de como um regime de repressão

sistemática é estimulado em sua forma pura a tal ponto que ele irá abdicar de qualquer

outra finalidade a não ser exceder a própria noção de domínio pela força. Em uma

sociedade com forte tendência autoritária como a que a brasileira viveu entre 1930 a

1985, o que se apresenta como implementação de uma força normativa se transforma

numa situação de exceção em que a agressividade da polícia militarizada, por exemplo,

podem agir, no plano cotidiano, com atos excessivos. O estado de exceção, que não é

uma regra no direito positivo, acaba assumindo uma forma de identidade total com a

regra autoritária e, com isso, vivencia-se assim uma zona de anomia em que a ordem da

tradição autoritária, a pulsão de violência legitimada da polícia sem qualquer relação

com o direito, garantem espaço para ação em pró de uma repressão de identidades. As

ações violentas dos irmãos de Cecília representam assim o que Agamben denominará de

“estatuto de violência como código da ação humana” (ABAMBEN, 2004, p. 92). Isso

fica claro quando eles, não mais enviando policiais, aparecem no chalé, para pressionar

Abel depois de saberem que Cecília estava grávida: “Damos vinte e quatro horas para

você fazer Cecília decidir-se. (...) Você não vai querer que a gente mesmo resolva essa

parada com um pontapé na barriga. Vai? Damos vinte e quatro horas” (LINS, 1995, p.

255, T16). O regime autoritário brasileiro potencializa estas atitudes do irmão policial,

de modo que aquilo que aparentemente vem a ser um meio de conseguir chegar a um

objetivo – a separação do casal – desmascara-se como uma forma objetiva de violência

em que se traduz como mera manifestação arbitrária “que simplesmente age e se

manifesta” (AGAMBEN, 2004, p. 96) como violência.

O nosso próximo ponto, e talvez o mais contundente, sobre as forças repressivas

e violentas agindo no interior do romance, e entendido dentro da configuração

linguística, irá tornar mais absurdo ainda o apagamento do plano político da obra.

Vejamos qual o papel assume a condição de Olavo Hayano, o Iólipo.As narrativas

conduzidas pelas linhas R, “ e Abel: encontros, percursos, revelações”, e O, “História

de , nascida e nascida”, apesar de se referirem ao intenso encontro amoroso entre os

Page 540: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1318

dois personagens no plano presentificado da história, em que R conduz o fluxo de Abel

e O, o fluxo de reminiscências de , ambos eixos deixam transparecer a lesa relação

que a personagem inominável se submete na vivência com seu marido Olavo Hayano.

Seguindo nossa percepção de que a violência se manifesta ao longo da narrativa tanto

no plano físico como subjetivo e simbólico, podemos chegar a compreensão de que o

dano causado por Olavo Hayano torna-se visível quando nos detemos na percepção do

grau de sofrimento que suporta e pela descrição, em tom testemunhal, do caráter frio

e positivado da natureza agressiva deste militar. Assim, é na compreensão do sofrimento

submisso pelo qual está submetida – na linguagem, na consciência e no corpo – que

chegamos ao entendimento do que, diferentemente das linhas S e T, esta violência é

mais elaborada, complexa e de difícil determinação, pois é uma violência silenciada,

sentida em quase toda a sua forma no plano psicológico, plano este que não nos chega

por um olhar preciso e distanciado de um narrador onisciente, mas na exposição

vinculada aos fluxo de consciência do sujeito. É neste ponto que a função do stream

abre uma janela para o entendimento do exterior social no sintoma asfixiante e

traumática do sujeito. Recuperando a discussão adornianas sobre o sofrimento, o

conflito interior de apresenta-se como uma agonia mental, mas na verdade, dentro

desta subjetividade encontra-se a coerção daquilo que não faz parte de sua identidade,

ou seja, o objeto não-idêntico a sua autonomia e que a constrange, comprime e preme. O

sofrimento interior de é o traço negativo da violência exterior degradativa de Olavo

Hayano. Há uma eminência de colapso da identidade pessoal da personagem

inominável, que somente se livrará desta vindoura catástrofe quando reconhece no

corpo de Abel o direito à não-identidade, pois a relação dos dois a leva ao

reconhecimento de sua autonomia. Sobre as formas de indeterminação que leva a

liberdade do sujeito, trataremos em capítulos posteriores, o que nos interessa aqui é a

expressão da violência do Iólipo. Tomemos estes dois primeiros trechos para

averiguação:

Meu marido, um vazio nele ou em torno dele, aproxima-se de mim, vejo-o

como mulher e também como criança, tira a minha grinalda, rasga meus dois

hímens, deflora-me e ao mesmo tempo, estupra-me, grito de prazer, de

horror. (LINS, 1995 ,p. 20, O2)

Ubatuba, nesta quinta-feira de novembro lembra uma cidade morta ou da

qual fugiram os habitantes. O rosto de , de perfil, adquire, à claridade fria

Page 541: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1319

da tarde, contra os vidros molhados do carro, uma transparência que o faz

intocável e distante. Erguese nas mudanças de marcha do vestido: seus

joelhos luminosos. Algumas casas antigas e de aparência nobre, também

estas malcuidadas, assinalam um período ascendente e encerrado. Castelo

Branco adia sine die a execução de novas cassaçõesde mandatos. Um

ciclista, conduzindo varas de pescar, passa sob a chuva fina.

- Traí e ofendi. Se você conheceu o desespero, talvez concorde

comigo, Abel:o desespero, em suas formas agudas, não é abstrato. (LINS,

1995, p. 24, R6)

Estes dois fragmentos de texto mencionam indiretamente, e pela primeira vez,

Olavo Hayano, embora ainda não se refira a sua natureza. No primeiro, em que o foco

narrativo apresenta os pensamentos de , o ato de estupro como violência

simultaneamente física e moral ganha contornos muito deletérios para a personagem, a

ponto de, na sequência da narrativa, ficamos sabendo da tentativa de suicídio como ato

desesperador, mas que em seguida a sobrevivência do tiro que dispara contra si mesma,

sua atitude será de resiliência, resistência comedida e melancolia. O contexto situacional

da ocorrência do disparo é a própria noite de núpcias do casal. Ao vê-lo como criança

ou mulher, não o reconhece como homem, e com o ato sexual consumado,

compreende que Olavo é corpo estranho que deixará sequelas, trauma, horror. No

segundo trecho, advindos do pensamento de Abel, entrecortado inicialmente por uma

súbita e inesperada notícia sobre o contexto político ditatorial, verbaliza sua inteira

dor. Esta irrupção do contexto histórico aparece como uma violação direta da forma

narrativa, já que quebra com o fluxo de pensamento de Abel. É uma intervenção que ao

mesmo tempo que situa a ação romanesca num determinado momento da história do

país, a arbitrariedade de sua aparição reporta, no constructo da linguagem, a mesma

violação excessiva do que o conteúdo da frase se refere. Ao longo do eixo R, tal

situação ocorrerá sistematizada, com referências claras e diretas ao regime dos militares.

Inegável é assim a presença do militar no corpo do texto através do uso de uma

linguagem abrupta, recurso que Osman Lins preconizará como uma estética literária de

violência formal, fragmentação e ruptura do fluxo. Mais tarde, mais precisamente no

ano seguinte a Avalovara, 1974, a obra Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, irá levar

até às últimas consequências tal empreitada literária. A fala em discurso direto de

que aparece quase como uma justificativa para a traição, na verdade, significa

primeiramente uma necessidade de concretização do plano da materialização do ato na

linguagem. A violência que determina o desespero é real e pragmática, é sofrimento na

Page 542: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1320

carne e na consciência, e diante daquilo que não é abstrato, algo na práxis deve ser feito

como reação, de forma empírica, como uma necessidade de encontrar a sua identidade

em uma outra forma de viver. Continua o discurso de :

De súbito, a gente sente na carne de um corpo estranho e deseja arrancá-lo.

Nada abstrato, o desespero. Uma raiz, Um sexo aquecido, incrustados num

ponto qualquer do tronco. Um gato podre. (LINS, 1995, p.25. R6)

Presidem este encontro o signo da escuridão — símile de insciência e do caos

— e o signo da confluência: germe do cosmos e evocador da ordenação

mental. Terra, espaço, Lua, movimento, Sol e tempo preparam a conjunção

da simetria e das trevas. Marechal Costa e Silva apoia o voto indireto.

— Os iólipos nunca têm irmãos mais novos do que eles. Tornam

para sempreestéril o ventre onde são gerados. (LINS, 1995, p. 32. R7)

Essas afirmações são importantes por sintetizarem a angústia e sofrimento de

em tudo aquilo que experiencia ao lado de Olavo Hayano. Símbolo de sua pulsão de

vida e reconhecido no encontro juvenil com Inácio Gabriel, mas sem poder desenvolver

as potencialidades, o pássaro Avalovara, que se encontra na interioridade de , definha

e se mantêm fossilizado. Se tentarmos entender esta questão a partir das nossas

discussões anteriores sobre o desdobramento da experiência proustiana contra a

experiência kafkiana, podemos enxergar que o apagamento vivificante de um pássaro

representante da autonomia e plenitude da vida, descoberto na vivência sentimental, tem

total condição de ser entendido sob os significados abertos da reminiscência proustiana.

A ideia persistente de uma articulação entre pensamento heterogêneo, gozo pessoal e

experiência não-identitária, ainda que tratada como um único ponto constelar que

precisa ser desdobrado em sentido para a vida, tornam-se horizontes de expectativas de

um mundo porvir, diferente do presente. Para entender este caminho trilhado por , a

função repressora do iólipo age violentamente em favor da debilidade e apagamento da

reminscência, ou seja, age em favor do mundo opaco kafkiano. Olavo Hayano, o Iólipo

de glade fria, cerceia, abafa e impede qualquer movimento em favor de uma

independencia moral de sua esposa. O Iólipo sente a necessidade do esclarecimento, no

plano da racionalidade, e para isso, lança mão de uma tortura psicológica em busca dos

motivos determinados – precisos e objetivos – do disparo contra de .

Levando em conta tal problema da violação normativa dos indivíduos, pensemos

no que nos diz Alex Honneth, em seu trabalho Luta por reconhecimento (2003).

Page 543: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1321

Dialogando com a tradição filosófica da teoria crítica, Honneth escreve que a

desconsideração da identidade do outro encontra sua motivação no interior das

“vivências afetivas dos sujeitos humanos” e que o colapso de uma identidade pessoal

manifesta-se em um desrespeito positivo da identidade do outro. Este processo de

violação como degradação do outro possui níveis diferentes de aparição sociopsíquico e

são medidos “pelos graus diversos em que se pode abalar a autorregulação prática de

uma pessoa, privando-a do reconhecimento de determinadas pretensões de identidade”

(HONNETH, 2003, p. 214). Estes níveis de violência, para Honneth, podem ser

percebidos sob três aspectos, todos passíveis de serem reunidos com certa clareza em

torno da relação de com Olavo Hayano:

Hayano entra no quarto, aproxima-se de mim e tira-me a grinalda. Eu o

desejo, é um desejo ácido, com gosto de vinagre, ardo de desejo e ardo de

pavor: queria fugir, mas quero ficar, fico (o pacto firmado na noite em que

luto e luto no chão, luto, até que surge a manhã, estabelece: seremos uma e

uma, una, para tudo o que vier, somos uma, sou uma), ele me inclina sobre os

lençóis, o abajur ao lado da cama está aceso, a lâmpada pendente de um fio

está acesa e se reflete no espelho oval do centro, com qualquer coisa de

meticuloso nos gestos Hayano despe-me a camisa rendada, cai sobre mim,

frases ditas por um homem ecoam em algum quarto próximo, Hayano rompe-

me o hímen, os himens, o lustre sobre nós, cristais e objetos de prata

oxidando-se aos poucos na penumbra, as palavras do homem ecoam sem

resposta, presa entre os braços de Hayano eu me debato, de prazer e de horror

eu me debato, ele conhece-me, estupra-me, grito de ebriez, choro de medo.

Fere-me o sexo de Hayano, duas vezes me rasga, gélido, e então eu sinto o

Avalovara, o pássaro, deixado em mim pela passagem de Inácio, dobrar-se

sobre si, transido, como se a fria glande de Hayano fosse a vinda de um

inverno rigoroso e súbito: a ave perde o bico e a voz, reduz-se a um

esqueleto, gravado em mim como na pedra o esqueleto de um fóssil — sem a

voz, sem a plumagem. (LINS, 1995, p.238. O23)

Tratando do nosso objetivo de compreender a forma literária de fluxo da

consciência em sua relação com uma estética negativa, sem desconsiderar a situação

social da qual os indivíduos vivenciam no plano psicológico, vemos que nesta

passagem, tomada como sumária da trajetória de , existe uma relação de difícil

distinção entre forças de violência como maltrato físico e sintoma de sofrimento

interior. Como já vimos construindo, nossa argumentação recai sobre a importância de

focalizar a técnica do fluxo porque é ela quem nos dá a condição de liberar este

sofrimento negativo. Olavo Hayano não compreende a dor de da mesma forma que

se tivéssemos uma descrição representacional realista e objetiva, também o leitor não

teria. Enxergamos a dor sufocada por termos acesso aos graus de subjetividade do

Page 544: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1322

sujeito através do fluxo de consciência, nele, podemos apreender as variações de luta e

dor com a indeterminação que passa ao longo de toda a convivência com o Iólipo.

De início, no trecho, a violência física é aqui apreendida como aviltamento pessoal pela

apropriação do corpo e do direito arbitral do outro de causar danos físicos a partir da

experiência emotiva. Mas o que é dor gélida, sensorial, vai mais além e aqui, evocamos

Honneth com sua primeira noção de degradação do homem. Para ele, maus tratos

práticos seriam o momento em que “o respeito natural por aquela disposição autônoma

sobre o próprio corpo” é subtraído da pessoa pelo desrespeito que agride “a forma mais

elementar de autorrelação prática, a confiança em si mesmo” (HONNETH, 2001, p.

214). A firmeza egótica em favor do direito de agir para além da normatividade das

formas de vida social fixa é represada pelo alto teor vigilante de Olavo: “Rejeita, sem

explicações, minhas tentativas de trocar um adorno ou de dispor os móveis a meu gosto.

Não consente sequer que eu determine a respeito de vestidos: acompanha-me às lojas e

escolhe-os por mim. Cerceador, corta-me os passos. Pai e patrono” (LINS, 1995, p. 243.

O24). Assim, a elasticidade do stream de , de identificar no plano interior as camadas

exteriores de sua subjetividade, nos dá acesso ao conteúdo de sofrimento difuso e ao

grau de autoritarismo do qual é submetida. Seu sofrer é indeterminado, não há uma

provável distinção entre psíquico e físico, reflexão e mundo empírico. O abatimento do

pássaro Avalovara sugere a representação simbólica desta condição. A forma não-

idêntica do sofrimento é negatividade e através dela, na subjetividade em fluxo de ,

chegamos aos graus de violência a qual é submetida. Podemos ir um pouco mais adiante

e dizer que o sofrimento é o traço definidor de uma violência negativa, seja esta

violência física ou psíquica. O mau trato é físico, mas o sintoma é corporal e psíquico.

Por outro lado, como já pudemos constatar, sobre , há também o mau trato moral:

A opressão, se instaurada como norma e ainda mais quando se manifesta com

instrumentos precisos, quase sempre revestidos de uma aura sacral, apossa-se

de um modo absoluto do mundo moral: uma réplica da gravidade no mundo

físico. Infiltra-se nos ossos e invade tudo. Infecciona o mundo. Infecciona o

mundo, eu disse? Sim, isto. Uma doença. (LINS, 1995, p. 191-192. R14)

Não há como não perceber que as forças de determinação que estão

presentes no autoritarismo e que vitimizam compõem junto com a aposta romana e o

confronto de Abel com os irmãos de Cecília um acúmulo de momentos e fatos

significativos, no corpo do texto de Avalovara, de relação entre violência, poder e

Page 545: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1323

autoritarismo militar. Estas forças não aparecem óbvias no texto, mas permitem a

percepção de que são elementos configuradores da obra, seja na influência sobre a

profundidade dos personagens, no desencadeamento do texto, ou na concepção

fragmentária da linguagem. Poderíamos arriscar dizer que estes momentos de violência

judicativa agregam a estes elementos formais tanto elementos contextuais quanto o

nível estático da concepção profunda de narrativa que o romance guarda na espiral

sobre o quadrado. A determinação de um modo de ser, as imposições de um sofrimento

como reprimenda corretiva ou como simples manutenção de uma servidão instauram

uma obsessiva visão conservadora da vida, de forma que tais situações funcionam como

marcação estática de experiências, de situações que envolvem a paralização das pulsões

de vida ou da reflexão do novo. A violência em Avalovara força uma identidade.

Isso significa que o esforço de totalização empreendido por uma ação judicante e

de lógica violenta representa uma exclusão – ou mesmo eliminação – daquilo que não se

adequa às razões da determinação. O impulso dialético, a transgressão como contraste e

heterogenia e a busca de alternativas para romper com esta ontologia forçada são

elementos que dirigem os personagens vítimas dessa violência para qualquer coisa que

os leve para fora deste molde determinante. Como vimos, o sofrimento em diversos

níveis, apreendido na subjetividade do sujeito, é uma destas formas de encontrar no não-

conceitual uma maneira de indeterminação. Não somente isso, mas como forma de

abordar o positivo pelo aspecto negativo. A dialética se instaura pelo viés ocultado. Se

nos questionarmos como isso ocorre no plano literário, nossa sugestão de resposta é a de

que é resgatando os processos de fluxo de consciência, no modelo joyciano, que

podemos, no âmago do sujeito, revelar estas dimensões não-identitárias e os limites da

força crítica de cada personalidade frente à um opaco e degradante autoritarismo. Mas o

sofrimento advindo desta degradação não seria a única forma de expressão de

indeterminação diante do positivo. No romance, esta indeterminação se manifesta sob

outras ricas maneiras, a saber através do erotismo, pela busca de uma plenitude de gozo

existencial ou pela “guerra sem testemunhas” que circunda os planos do protagonista

escritor. Mas antes de adentrarmos no universo que expressa um caráter negativo do

romance, é preciso ainda pensarmos na complexidade da situação do escritor Abel e de

como isso sinaliza para uma violação da forma narrativa pelo viés da substância

narrada.

Page 546: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1324

Referências

ADORNO, T.Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/ 34, 2003a.

AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

DELLASOPPA, E. Reflexões sobre a violência, autoridade e autoritarismo. São Paulo:

Revista Usp. n.9, 1991. p.79-96

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São

Paulo: ed. 34, 2003.

NITRINI, S. Transfigurações. São Paulo: HUCITEC, 2010.

LINS, O. Avalovara. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Page 547: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1325

O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD

ETCETERA”, DE E. E. CUMMINGS [Voltar para Sumário]

José Vilian Mangueira (UERN)

Introdução:

“my sweet old etecetera”, do escritor americano E. E. Cummings, contrasta a

visão de um soldado diante da realidade da guerra com a “ideia” de como seria o mesmo

fato visto pela perspectiva de certos membros da família desse soldado. O poema foi

publicado em 1926, no livro Is 5, assim descrito por Philip L. Gerber (1988, p. 177):

“[…] Is 5 (1926), was composed, like his three previous collections, largely of verses

exhumed from the immense manuscript he had completed by 1920, but it contained also

a number of new compositions that had been stimulated by post-1920 events”.

Devido à temática do poema, ele pode ser agrupado dentro da variedade de textos

da literatura americana que trata da Primeira Grande Guerra. O poema de Cummings

dialoga com outros escritores do período de 1915 a 1920, que escreveram uma obra que

se posicionava pró ou contra a guerra. No artigo intitulado “Wristers Etcetera:

Cummings, the Great War, and discursive struggle”, Tim Dayton (2013) aponta as

intertextualidades entre os poemas de E. E. Cummings “next to of course god america i”

e “my sweet old etecetera” e os textos de outros autores do período. Dentro deste

contexto de uma escrita sobre a Primeira Guerra Mundial, a poesia de Cummings

dialoga com uma propaganda de guerra que procurava destacar os Estados Unidos

dentro e fora do front.

O poema “my sweet old etecetera”, como ocorre com grande maioria dos textos de

Cummings, chama a atenção do leitor pela inovação quanto aos recursos tipográficos

utilizados, como o emprego de letras minúsculas, a falta de sinais de pontuação e a

disposição das palavras no papel. O modo como o autor escreveu certos poemas – e em

particular este – se aproxima das propostas da Poesia Concreta encabeçada pelos irmãos

Page 548: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1326

Augusto e Haroldo de Campos na Literatura Brasileira. Aliás, uma das melhores

traduções do poeta americano para o português é de autoria de um dos irmãos Campos,

trata do texto “somewhere i have never traveled gladly beyond”, posteriormente

musicalizado pelo maranhense Zeca Baleiro.

Quanto aos aspectos formais de “my sweet old etecetera”, o leitor seguramente

notará que há apenas duas letras em maiúsculo em todo o texto: Your (linha 25) e

Etecetera (linha 26). Estas palavras em maiúsculo aparecem não depois de um ponto

final, mas no meio de um período. Em se tratando dos sinais de pontuação, só aparecem

a vírgula e os parênteses. Estes dois sinais apenas marcam pequenas pausas do discurso,

sem fechar um pensamento completo do Eu que fala no poema. Graças à falta do ponto-

final para marcar o fim das sentenças, o poema se constitui uma fala ininterrupta do Eu

lírico.

Para se entender de que trata o poema, o leitor terá que preencher as lacunas

deixadas pelo poeta, na construção de seu texto. É necessário “re-escrever” a poesia,

quebrando a sequência ininterrupta da voz do texto, transformando as frases em

sentenças legíveis. Com este movimento de “re-escritura”, o texto parece querer do

leitor um diálogo com a voz que conduz o poema. Nesse exercício de leitura, a primeira

atitude do leitor deverá ser a de pôr o texto numa sintaxe apropriada, com uma

pontuação exigida para criar inteligibilidade. Além disso, todas as palavras “Etecetera”

deverão ser interpretadas. Cada vez que esta palavra aparece, o leitor percebe uma

mudança no tom do Eu lírico. Dessa forma, a palavra parece ganhar um destaque no

texto, conectando-se emocionalmente com o Eu que fala.

Atrás do não-dito: etcetera!

Fazendo uma primeira leitura mais superficial, entende-se que o Eu do poema é

um soldado que descreve o envolvimento de sua família com a guerra e o que esta

família pensa sobre o engajamento do soldado no combate. Ele também se refere aos

seus sentimentos quanto a sua presença no campo de batalha e, mais forte ainda, ao seu

desejo de rever uma possível pessoa que está distante. Para se chegar à compreensão

mais profunda do poema é necessário, como já falamos, entender os sentidos

denotativos e conotativos da palavra “etcetera”, repetida várias vezes no texto.

Page 549: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1327

No sentido denotativo, a palavra é usada, como aponta o dicionário Oxford

advanced learner’s dictionary (2000, p. 448), depois de uma listagem para expressar

que ainda há algo mais para ser acrescentado ao que foi dito. Tomando o sentido do

dicionário, podemos afirmar que ela é usada pelo Eu lírico para adicionar algo mais ao

seu discurso, falando sobre o que não pode ser dito abertamente. Já o sentido

conotativo, ou melhor, os sentidos conotativos, que a palavra ganha no poema, só

poderão ser apreendidos pelo leitor quando ele perceber que “etcetera” é usado em

diferentes situações ao longo do texto, para suprir a falta de palavras do Eu lírico.

Levando-se em conta a construção gramatical do texto, primeiramente, a palavra

repetida é usada no sentido de adjetivo, para atribuir qualidades ou características a um

membro da família: “my sweet old etcetera / aunt lucy during the recent”.

No sintagma nominal “My sweet old etcetera aunt lucy”, todas as palavras que se

referem ao substantivo próprio LUCY possuem o valor de adjetivo: o pronome

possessivo MY, os adjetivos SWEET e OLD, o substantivo AUNT, e, por fim,

ETCETERA. Todas estas palavras carregam uma semântica de afetividade na relação

sobrinho – o Eu que fala – e sua tia – Lucy. O substantivo AUNT oferece ao leitor os

laços de parentesco entre o rapaz que está na guerra e a primeira pessoa referida no

poema. O possessivo dá aos dois uma relação de proximidade, uma vez que mostra que

o Eu possui uma tia. Os dois adjetivos – SWEET e OLD – demonstram o quanto a

relação dos dois é baseada na afetividade. SWEET traz em si a conotação de algo

prazeroso, carinhoso e aconchegante. Ainda de acordo com o dicionário Oxford

advanced learner’s dictionary (2000, p. 1368), a palavra SWEET é usada para se referir

a algo que tem ou apresenta um caráter gentil. Assim sendo, a tia Lucy representa para o

rapaz, que está no front de guerra, as memórias mais doces de antes da batalha. A

mesma simbologia de afetividade será encontrada na palavra OLD. Isolada, ela pode ser

vista como algo de gosto duvidoso ou não prazeroso, uma vez que representa o que não

serve mais, o que está passado. Mas, dentro da sequência da frase e associada à palavra

SWEET, ela dá à tia uma característica de sabedoria, de conselheira. De todos da

família do Eu lírico, parece ser a tia a que instrui o rapaz com seus conselhos. Mais uma

vez, a relação dos dois é estreitada nessa última palavra do sintagma. Devemos somar a

tudo isso o fato de ser a Tia Lucy a primeira pessoa que vem à mente do Eu-lírico

quando ele relembra seus familiares.

Page 550: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1328

Falta apenas entender o sentido de ETCETERA, que se junta às outras palavras do

sintagma. Como o sobrinho está diante do horror da batalha e parece não ter tempo para

digressões longas, a palavra serve para mostrar que ele não quer ou não pode listar todos

os outros termos de afetividade que a lembrança da tia Lucy lhe oferece. Ele deixa para

o seu interlocutor preencher as lacunas do texto e, assim, completar o sentido afetivo

que a tia lhe proporciona. Desse modo, várias outras palavras de sentido positivo que

também caracterizariam a Lucy poderiam ser acrescentadas sem com isso quebrar a

construção feita pelo jovem soldado sobre sua tia.

Para se chegar ao entendimento da primeira oração do poema, é necessário re-

escrever o texto usando uma sintaxe apropriada e retirando a palavra ETCETERA.

Assim, eis como ficaria a frase depois de refeita: “During the recent war, my sweet and

old aunt Lucy could and what is more did tell me what everybody was fighting for”.

Entendida a acepção da palavra na primeira referência, o leitor capta a visão da tia

Lucy quanto à guerra: há uma explicação plausível para a luta, justificando a razão de o

sobrinho ir se juntar ao grupo que está lutando. Assim, como conselheira e amiga dele, é

ela a responsável por explicar ao rapaz o motivo da guerra. Esse trecho do poema serve

para esclarecer ao leitor que a figura da velha e boa tia insere o rapaz no contexto da

batalha. Como ela possui uma forte ligação com ele, mesmo agora, no front, ele procura

não questionar abertamente a justificativa da tia, supostamente trazendo a sua figura

para reforçar a necessidade de ele estar ali.

Enquanto a tia, que não pisa no campo de batalha, representa o lado racional da

guerra, o sobrinho, experimentando a realidade dos fatos, oferecerá um contraponto ao

pensamento dela no final do poema, quando é descrito o espaço em que ele se encontra.

Aproximando a tia que ficou em casa com o sobrinho que foi para a luta, o texto mostra

que o conselho da boa tia Lucy só trouxe complicações imerecidas para o jovem rapaz.

Dessa forma, a memória da boa e velha tia vem carregada de ironia, quando se põe em

contraste o discurso enciclopédico e pró-guerra da senhora com a realidade bélica do

jovem soldado.

A outra aparição da palavra ETCETERA está ligada à figura da irmã do Eu lírico:

my sister

isabel created hundreds

(and / hundreds) of socks not to

mention shirts fleaproof earwarmers

Page 551: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1329

etcetera wristers etcetera

Neste caso, a voz que fala no poema utiliza o termo para fazer referência a uma

enumeração, fazendo com que a palavra se una a outros substantivos para ganhar

sentido novo. Assim sendo, ela se refere ao material produzido pela irmã Isabel que será

utilizado pelos soldados durante os combates. A atitude da irmã constitui mais uma

demonstração de aceitação e aprovação dessa família quanto ao engajamento na guerra.

De sua casa, Isabel cria às centenas meias, camisetas, protetor para orelhas, proteção

para os punhos e mais uma variedade de indumentárias que, para não se perder na

enumeração, o Eu lírico se restringe a, duas vezes, usar a palavra ETCETERA para

demonstrar o quanto o trabalho da irmã é extenso e incansável.

No primeiro caso em que aparece no poema, o uso de ETCETERA está ligado à

ideia de afetividade, uma vez que funciona como adjetivo para qualificar a tia Lucy,

como já demostrado anteriormente. Neste segundo caso, como substantivo, ele

representa o produto do esforço da irmã Isabel para manter protegidos os rapazes que

estão no front. O trabalho manual é a contribuição da irmã do Eu lírico para sustentar a

guerra, assim como foi a explicação feita por tia Lucy, anteriormente. Ao apontar o

produto do trabalho da irmã, o Eu lírico traz para o seu discurso o contexto americano

do início da Primeira Grande Guerra que instigava as mulheres a produzirem artefatos

manuais para os soldados que estavam nas batalhas de além mar. Nas palavras de

Dayton (2013): “Cummings’ depiction of the industriousness of the speaker’s sister

provides an ironic counterpart to that of a number of women represented in the poetry of

the war”. Ainda Segundo Dayton, havia nos Estados Unidos um subgênero literário

durante o início da Primeira Guerra que encorajava as mulheres a cozerem e bordarem

para os soldados. Ao trazer para o seu poema uma referência a este tipo de literatura E.

E. Cummings procura ridicularizar o trabalho propagandístico pró-guerra, ao mostrar a

inutilidade do trabalho da irmã do soldado que fala no poema, pois o que ela produz não

teria tanta utilidade num contexto sangrento de guerra.

Ainda, ao apontar o trabalho manual da irmã, mais uma vez, o texto opõe duas

posições diferentes diante da guerra: enquanto Isabel confecciona, no sossego de sua

terra natal, produtos para os soldados, o irmão se vê desprotegido na batalha longe de

casa, tendo como consolo a lembrança da irmã e, supostamente, o material de pouca

serventia por ela feito.

Page 552: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1330

A terceira aparição da palavra ETCETERA liga-se à figura da mãe do soldado,

trazendo mais um membro de sua família para suas recordações:

my

mother hoped that

i would die etcetera

bravely

Esta parte do poema é de fácil entendimento, quanto à disposição das palavras na

frase, oferecendo ao leitor mais uma possível classificação de ETCETERA. Como

vimos, no primeiro caso, ela é um adjetivo que dá qualidades à tia; no segundo caso, é

um substantivo que se soma à lista de produtos feitos pela irmã; e, neste, devido à sua

posição na sentença, ela pode ser entendida como um advérbio, uma vez que se liga ao

verbo DIE e a ao outro advérbio, BRAVELY. Assim sendo, a palavra serve para

intensificar a morte do filho sonhada/desejada pela mãe, permitindo ao

leitor/interlocutor o acréscimo de palavras que ressaltem o modo como o jovem deve

morrer lutando por aquilo que é prezado pela sua genitora.

Ainda, esta parte do poema mostra o quanto os membros da família,

metonimizados na mãe, dão valor ao engajamento no combate. Segundo a visão

apresentada pelo rapaz, a mãe não se importa de perder o filho, desde que a morte deste

seja lutando e tenha um significado positivo para o que ela acredita ser o certo: morrer

na guerra. Interpretando a relação mãe/filho neste trecho, levando-se em conta o

contexto americano da Primeira Guerra Mundial, vemos que a lembrança de sua

genitora evocada pelo soldado não pode ser vista como um exemplo de uma mãe que

não ama o filho, mas como a repetição de um pensamento de grande parte da população

americana que via na morte em combate um ato de heroísmo. Este trecho do poema de

Cummings ecoa outros poemas escritos naquele momento de guerra, como o de William

H. Barter intitulado “That’s my boy”.

A ideia de rebaixamento do valor da vida do filho e de exaltação da guerra é

reforçada na aparição do outro membro da família, o pai:

of course my father used

to became hoarse talking about how it was

a privilege and if only he

could.

Page 553: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1331

As palavras do genitor do Eu lírico são um complemento do que é dito sobre a

mulher. Tanto é que, pela primeira vez, um trecho do poema relacionado a um membro

da família do soldado aparece sem a presença da palavra ETCETERA. É como se a

visão da mãe fosse complementada pela do pai, apresentado uma união de ideias que

solidificam o caráter valorativo da ação de lutar/morrer na guerra. Além disso, a estrofe

onde é posto o pensamento do pai quanto ao combate é a mais longa de todo o poema,

confirmando que ela une em um só trecho o que pensam mãe e pai sobre o engajamento

do filho nos eventos da guerra. O discurso parental mostra o quanto a guerra tem

destaque para os membros daquela família, refletindo um contexto americano que

valorizava a ação dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. Segundo Tim

Dayton (2013, p. 127): “Both the mother and the father in the Cummings poem express

sentiments—slightly inflated in the mother’s case—found elsewhere in American Great

War poetry, and which were part of the manipulation of American culture necessary to

promote U.S. intervention in the war”. Assim sendo, os pais do jovem que fala neste

poema são uma metonímia para o pensamento estadunidense sobre a luta na Primeira

Guerra Mundial.

Ainda quanto a este trecho da poesia que apresenta o pai do soldado, a falta do

vocábulo ETCETERA pode indicar uma menor ligação entre a voz do poema e seu

genitor, uma vez que o que se tem para dizer do pai não merece adendo nenhum, sendo

externado em uma sentença limpa de qualificação, de intensificação e de reticências,

como ocorre como os outros membros femininos da família.

Apresentado ao leitor o quanto a sua família dá valor aos eventos da guerra, resta

ao Eu lírico se voltar para si, no campo de batalha, e revelar qual a sua real situação,

criando uma dupla visão sobre a luta. Para contrastar as lembranças evocadas de casa

com sua condição no front, o soldado usa o advérbio de tempo MEANWHILE:

meanwhile my

self etcetera lay quietly

in the deep mud et

cetera

(dreaming,

et

cetera, of

Your smile

eyes knees and your Etecetera)

Page 554: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1332

É nesse trecho que aparece em abundância a palavra ETCETERA, quatro vezes,

no total. A sua aparição ainda se diferencia das anteriores, pois, agora, em duas

ocasiões, ela está quebrada e, na quarta aparição, ela está em maiúscula, mostrando

novos arranjos para sua utilização.

Enquanto sua família está no aconchego do lar, o soldado se encontra deitado na

lama imerso em suas lembranças. Percebe-se que a voz do soldado é produzida em um

momento de certa tranquilidade durante a luta, pois vamos encontrá-lo perdido em

recordações sobre os parentes que ficaram em casa. Neste trecho também notamos que o

poema ganha certa lentidão, graças à quebra da palavra ETCETERA. O leitor tem a

sensação, em certos pontos, do quão perdido em pensamentos está o soldado, na sua

quietude de descanso.

As três primeiras aparições da palavra repetida ao longo desta parte do poema têm

o mesmo valor. Elas funcionam como acréscimo ao que vai sendo dito sobre a atitude

do Eu lírico durante esse tempo de calma. A primeira delas pode ser entendida como

uma referência aos outros soldados que, também, estão deitados na mesma atitude de

descanso do Eu lírico. A segunda se refere ao lugar onde os soldados se encontram,

acrescentando uma característica a mais ao lamaçal onde eles estão. Assim deve ser

entendido o trecho: “meanwhile my self [and the others] lay quietly in the deep mud

[here]”.

Na terceira vez que a palavra aparece nesta parte final do poema, ela está

relacionada ao verbo DREAMING e funciona como mais um verbo no gerúndio, dando

à atitude de contemplação do soldado mais um reforço. Nesse campo semântico, ela

pode ser lida como qualquer verbo que mantém o sentido de DREAMING: THINKING,

WISHING, WAITING.

Na seguinte aparição da palavra, o texto revela o desejo do rapaz de rever alguém

querido. Como todos os membros de sua família já foram mencionados, pode-se inferir

que ele espera rever alguém que não faz parte do seu círculo consanguíneo. Além disso,

percebemos que toda a fala do Eu lírico é dirigida a essa pessoa, uma vez que aparecem

duas vezes o pronome possessivo YOUR. Desse modo, pode-se afirmar que quem o

soldado quer rever é o seu interlocutor textual. E o desejo de encontrar novamente esta

pessoa é tão grande que ele se perde em divagações, como mostram as quebras feitas na

palavra ETCETERA. Ainda relacionado a pessoa desejada à tia Lucy, à irmã Isabel, à

Page 555: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1333

sua mãe e ao seu pai, vemos que é nela que o Eu lírico põe mais destaque, pois é para

ela que ele reserva o uso de maiúscula: “Your smile”.

Do que foi levantado até agora, pode-se afirmar que o soldado deseja rever alguém

a quem se liga emocionalmente. Essa ligação afetiva entre o Eu lírico e seu interlocutor

explica o uso abundante da palavra ETCETERA, uma vez que é para essa pessoa que

ele tem mais para acrescentar. Como há um forte laço sentimental entre o Eu e o ser

amado, fica mais difícil o ouvinte compreender os sentidos vários que a palavra ganha

ao longo do discurso do soldado.

Embora o rapaz teça para seu interlocutor um discurso que funciona como

revelação de tudo o que o levou à guerra, transformando esta pessoa amada em

confidente de suas angústias, o desejo de revê-la é mais físico do que platônico. Isso

fica claro nas referências metonímicas da pessoa amada. É nesta relação metonímica

que encontramos a última menção à ETCETERA. Do seu amor, o soldado sente falta do

sorriso, dos joelhos e de uma outra parte. Seguindo o pensamento do desejo físico

movendo o Eu lírico, é possível assegurar que o termo que a palavra ETCETERA

substitui é o órgão genital do ser amado ou outra parte de mesmo valor prazeroso. Desse

modo, no descanso solitário da guerra e em meio a lembranças dos membros da família,

o Eu lírico se volta para o ser amado, deixando fluir os seus desejos.

O final e etecetera:

A repetição da palavra ETCETERA ao longo do poema mostra o quanto o soldado

está imerso em seus pensamentos, o quanto eles correm soltos sem o controle do rapaz e

o quanto ele está desligado do mundo à sua volta, pesando apenas naquilo que mais lhe

faz falta. Esta repetição ainda serve como inflexão no discurso do Eu lírico, dando às

outras palavras ao redor da repetida uma nova roupagem.

Em um texto poético, o uso de repetições deve ser sempre observado pelo leitor.

Em um texto tão condensado como é um poema, quando aparece mais de uma vez uma

mesma palavra, deve-se buscar o porquê de tal aparição. No caso do poema aqui

analisado, a repetição da palavra ETCETERA mostra o quanto o soldado tem a dizer

sobre todos os seus familiares, sobre a saudade que sente, dividindo seus pensamentos

com o interlocutor a quem se liga efetivamente.

Page 556: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1334

Devido a uma única particularidade, o uso de maiúsculas, entendemos que entre o

que é falado sobre os membros de sua família e sobre a pessoa amada se diferenciam.

As palavras usadas para descrever as ações da família em casa possuem menos

importância do que as que se referem ao seu objeto de desejo. O soldado parece deixar a

cargo de seu interlocutor o preenchimento de seu pensamento quanto ao que ele sente

sobre a tia, sobre a produção da irmã, sobre a ideia de morrer na guerra da mãe, sobre a

vontade do pai de participar da batalha. É por isso que a palavra aparece em minúsculo.

Em contrapartida, quando o rapaz fala do ser amado, ETCETERA aparece em

maiúsculo, mostrando que o destaque maior está no interlocutor. Ao que parece, a

ligação que há entre os dois participantes do discurso – o remetente e o destinatário –

permite particularizar, especificar a parte do corpo do outro que o soldado deseja.

Ainda, a visão da guerra que possui os membros da família se diferencia da que é

apresentada pelo Eu lírico. A tia, a irmã, a mãe e o pai demonstram vislumbrar a guerra

como uma ação patriótica, mecânica e cheia de discurso retórico. Já o Eu lírico

apresenta um contexto de dificuldade e falta de comodidade que a guerra traz, mas

apresenta também um sentido carnal e sexual – instigado pela lembrança do ser amado –

que em nada lembra a atmosfera assexuada de outros poemas sobre a guerra escritos por

outros autores americanos daquele período.

Referências:

BARTER, William H.. My flag and my boy and other war poems. Boston: Page, 1918.

CUMMINGS, E.E.. “my sweet old etcetera”. In: MEYER, Michael. The Compact

Bedford Introduction to Literature: Reading, Thinking, Writing. 5th

ed. Boston/New

York: Bedford/St. Martin’s, 2000, p. 158-159.

DAYTON, Tim. “Wristers Etcetera”: Cummings, the Great War, and Discursive

Struggle. Disponível em <http://www.gvsu.edu/english/cummings/Dayton17.pdf>.

Acesso em: 08 de mar. de 2015.

GERBER, Philip L.. E. E. Cummings's Season of the Censor. Contemporary Literature.

Vol. 29, No. 2. The University of Wisconsin Press, 1988, p. 177 – 200.

Oxford advanced learner’s dictionary. Oxford: University Press, 2000.

Page 557: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1335

ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS

CHARGES: DO MATERIAL LINGUÍSTICO À

MATERIALIDADE DISCURSIVA [Voltar para Sumário]

José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)

Considerações Iniciais

A charge, de acordo com Pilla e Quadros “[...] pode ser considerada uma prática

discursiva situada no cosmo das relações entre o linguístico e o histórico-social” (2009,

p. 1). Parece bastante pertinente ressaltar que a charge, enquanto gênero textual-

discursivo, apresenta inúmeros recursos expressivos, tanto linguísticos como

semióticos, os quais se constituem como interessantes eixos norteadores de interesse

analítico, tais como: da Semântica, da Pragmática, da Análise do Discurso (AD), dentre

outras perspectivas na Linguística, como também da Psicologia, da Sociologia etc.

Especialmente sobre a AD, essa corrente de estudos estabelece, dentre outros postulados

teórico-analíticos, a relação existente entre língua/sujeito/história, língua/ideologia,

heterogeneidade, formação discursiva, apenas para citar alguns presentes na produção

das charges.

Tomando por referência novamente Pilla e Quadros (2009), vemos que é de

extrema relevância e pertinência analisar as charges de acordo com o escopo teórico da

AD, uma vez que, como sugerem os autores, “todo o processo de elaboração das

charges tem por base ou fonte de inspiração outros textos e discursos, principalmente

notícias veiculadas por jornais impressos e outros meios de comunicação” (p. 1). É

notório o interesse em AD no que diz respeito à confirmação de que todos os discursos

são, de fato, formulações traspassadas por outros discursos, resultado, portanto, do que

sugere Bakhtin com relação ao dialogismo e à heterogeneidade constitutiva do discurso.

Page 558: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1336

Em outras palavras, configura-se como de interesse dos analistas do discurso

observar e corroborar a tese de que um discurso sempre dialoga e é constituído pelo

discurso do outro/Outro.

Indo no esteio do que vimos discutindo e tentando estabelecer uma relação entre

as pesquisas em AD e o corpus que pretendemos analisar, valemo-nos da seguinte

citação de Possenti:

Os estudos sobre textos humorísticos têm aumentado

exponencialmente nos últimos anos, em diversos campos de pesquisa

(estudos “culturais”, História, Sociologia, Psicanálise, Psicologia), e

os estudos de linguagem não têm sido indiferentes ao tema. [...]

Talvez se possa dizer que certos ingredientes dos “textos”

humorísticos, pelas relações peculiares que mantêm com várias

questões de ordem propriamente linguística, em primeiro lugar, mas

também pragmáticas, textuais, discursivas, cognitivas e históricas, têm

chamado a atenção dos estudiosos para os diversos gêneros do campo

(POSSENTI, 2010, p. 27).

Com base no exposto, temos como objetivo neste artigo, então, apresentar a

análise de 03 charges a partir do embasamento teórico fornecido pela AD. Tratar-se-ão

de leituras, pois, assim como sugere Sousa (no prelo), o que propomos neste artigo é

fazer um “exercício de leitura” (p. 3), justamente porque não invocaremos “verdades

absolutas”, mas sim leituras possíveis com as quais esperamos possibilitar um confronto

de ideias linguísticas.

Nesse sentido, interessa-nos verificar como a produção linguística das charges

estabelece relação com fatos históricos e sociais na construção de sentidos. Para tanto,

laçaremos mão de noções como a do discurso do outro/Outro acionadas pela memória

discursiva, mas também trataremos sobre a presença (marcada/mostrada) do sujeito no

discurso. Além disso, apoiaremos nossa análise na importância estabelecida pelos

elementos linguísticos na explicação do gatilho humorístico das charges, especialmente

quando inseridos em um contexto mais amplo da enunciação, no qual as condições de

produção de tais textos revelam-se através de fatores socioculturais.

Grosso modo, é na união de aspectos discursivos com aspectos semântico-

pragmáticos que se constrói o texto e a compreensão do discurso humorístico. Baseamo-

nos nas seguintes leituras: Possenti (2001, 2002, 2010), Mussalim (2012), Pilla e

Quadros (2009) e Authier-Revuz (2004).

Page 559: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1337

1. Um pouco de teoria: as charges numa análise discursiva

É consenso entre os autores que os estudos que colocaram o humor no âmbito

dos aspectos voltados à linguística, especificamente do campo da Semântica, foram

iniciados por Raskin (1985) em seu Semantic Mechanisms of Humor.

A justificativa para o fato de os estudos sobre o humor terem sido explorados

por tantas áreas além da linguística (na verdade, bem antes de haver tal preocupação no

campo da ciência da linguagem) é dada por Travaglia (1990). Segundo o autor, “sendo o

humor um fenômeno complexo e multifacetado, sua pesquisa se estabeleceu como um

campo de estudos necessariamente multi e interdisciplinar” (p. 57). É justamente por

isso “[...] que o humor tem sido estudado por antropólogos, comediantes, filósofos,

folcloristas, historicistas, linguistas, médicos, matemáticos” (cf. RASKIN, 1987, p. 441

e PEPICELLO, 1987, p. 27 apud TRAVAGLIA, 1990, p. 57).

É Raskin (1985) quem propõe uma teoria de base linguística a respeito dos

gêneros de humor. De acordo com Ferraz (2012), o autor:

[...] propõe uma teoria semântica do humor baseada em scripts, feixes

estruturados e formalizados de informação semântica inter-relacionada, a

partir da qual propõe duas hipóteses para caracterizar o texto humorístico: o

texto é compatível, em todo ou em partes, com dois scripts diferentes, e os

dois scripts com os quais o texto é compatível são opostos em um sentido

especial. Tal proposta tenta explicar o processo de compreensão de textos de

humor [...] (FERRAZ, 2012, p. 99).

Além disso, o autor distingue dois modos de comunicação: o confiável e o não-

confiável. O primeiro está comprometido com a verdade factual dos enunciados e com a

transmissão de informações relevantes. O segundo está ligado à piada. Dessa forma,

estabelecem-se as seguintes condições para que um texto seja humorístico:

O modo de comunicação confiável mudar para o modo não-confiável;

O texto ser intencionalmente humorístico;

Os dois scripts serem parcialmente sobrepostos e compatíveis com o texto;

Haver relação de oposição entre os dois scripts;

Gatilho, óbvio ou implícito, ser o responsável pela mudança de um script para o outro.

De maneira sintética, Raskin (1985) propõe que o humor verbal seja visto como

um texto, o que requer que se busque descobrir um conjunto de propriedades

Page 560: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1338

linguísticas tais que qualquer texto que as apresente será engraçado (pelo menos para

alguém) e todo texto engraçado terá algumas propriedades regulares.

Para Possenti (2001), as piadas (na nossa visão, também os outros gêneros da

ordem do humor, tal como a charge, a que nos deteremos) “[...] fornecem

simultaneamente um dos melhores retratos dos valores e problemas de uma sociedade,

por um lado, e uma coleção de fatos e dados impressionantes para quem quer saber o

que é e como funciona uma língua, por outro” (p. 72). Segundo o autor, o humor é um

campo de interesse para a linguística, no sentido de que é uma área onde se pode fazer

boa pesquisa fonético-fonológica, morfológica, sintática, semântica, sociolinguística e

até de pragmática discursiva.

De modo mais específico, segundo Mussalim (2012):

A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o

contexto histórico-social; ela considera as condições em que [...] [um

determinado texto], por exemplo, foi produzido. [...] Em outras palavras,

pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos (p.

146-147).

Para Ávila (2009), “o discurso humorístico, assim como todo processo

discursivo, pressupõe efeitos de sentido num processo interlocutivo afetado pelas

condições de produção, isto é, pela situação e pelo contexto histórico-social” (p. 46-47).

Essas noções, assim como outras já mencionadas na introdução, servem para justificar

uma análise das charges sob o escopo teórico da AD.

A charge, por seu turno, é uma ilustração que tem como objetivo satirizar e

criticar, através de um desenho, algum personagem ou situação social, ironizando e

exagerando suas características. Trata-se de um gênero textual-discursivo dependente da

intertextualidade, pois ela está sempre em relação com algum outro texto. Assim, a sua

interpretação depende muito do conhecimento de mundo (da memória discursiva) e,

atrelada a ele, as condições de produção a partir das quais sejam acionadas leituras que

tornem possível recuperar o(s) sentido(s) do texto com o qual a charge dialoga. Isso

vem ao encontro, como é sabido em AD, das noções de heterogeneidade e dialogismo.

Segundo Possenti (2001), as “[...] piadas estabelecem relações intertextuais

(exigem conhecimentos prévios, partilhados). Por isso, muitas piadas deixam de fazer

sentido em pouco tempo. É que dependem fortemente de fatores circunstanciais” (p.

73). Do mesmo modo apresentam-se as charges, cuja datação e relação jornalística são

Page 561: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1339

amplamente dependentes de acontecimento histórico em um dado momento. Logo,

entendemos que os fatores circunstanciais e os conhecimentos prévios, no caso as

memórias discursivas, devem ser acionados no tocante à interpretação de uma charge.

Ainda sobre a charge, Ferraz (2012) diz que:

[...] podemos resumir que a charge se caracteriza por ser um texto misto, em

que se relacionam os aspectos verbais e os não verbais, cuja intenção é a

crítica de cunho político e/ou social. Os chargistas se utilizam de temas

atuais, aproveitando-se de informações vinculadas por outros gêneros na

mídia, o que faz da charge um texto com prazo de validade. [...] No entanto,

alguns temas podem ser considerados atemporais, devido à recorrência com a

qual são veiculados em nossa sociedade [...] (FERRAZ, 2012, p. 111).

Mussalim (2012) sugere que em AD os textos não são vistos “[...] como um

conjunto de enunciados unificados por posições ideológicas não conflitantes” (p. 147),

ou seja, não são homogêneos. Ao contrário disso, segundo a autora, “[...] o texto se

constitui de posicionamentos divergentes cujas fronteiras se intersectam [...], nesse

sentido, [o texto] é constitutivamente heterogêneo, de modo que não é possível definir a

identidade de um desses posicionamentos sem remeter ao outro” (p. 147).

E é justamente essa heterogeneidade dialógica, essa necessária busca pelas

memórias discursivas, o constante diálogo entre os discursos do interlocutor com o

outro/Outro o que fazem das charges um dos gêneros do humor tão produtivos no que

diz respeito a análises em AD.

Na próxima seção, apresentaremos de que modo essas noções se materializam

no fio do discurso, muitas vezes, como sugere Possenti, através da materialidade

linguística.

2. Analisando o discurso nas charges

Possenti (2010) afirma que é consensual entre os analistas do discurso a

concepção de que “[...] um discurso está todo inteiro em qualquer fragmento, de

maneira que um corpus pode muito bem ser representativo sem ser exaustivo” (p. 18).

Esperamos que a mesma máxima possa ser aplicada a esta seção. Nela, apresentam-se 3

charges a partir das quais intencionamos discutir sobre algumas contribuições analíticas

e demonstrar como a materialidade linguística leva à materialidade discursiva.

Page 562: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1340

Observemos a primeira charge:

Figura 1: Charge 1 – discussão sobre a maioridade penal

Disponível em: <http://miniplif.no.comunidades.net/index.php?pagina=galeria>. Acesso em: 01/09/2012.

Uma máxima bastante presente em análises norteadas teoricamente pela AD

pode ser apreendida a partir do trabalho de Authier-Revuz (2004). A autora afirma que é

“no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz um certo número

de formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso [através da qual

se] inscrevem, em sua linearidade, o outro” (p. 12). Dito de outro modo, podemos

entender a noção de alteridade a partir da heterogeneidade constitutiva do discurso,

visto que as marcas do outro/Outro podem ser recuperadas, por estarem marcadas, no

fio de um dado discurso.

Na charge apresentada acima, podemos observar que o tema norteador diz

respeito à “redução da maioridade penal”. Ao acionarmos nossa memória discursiva,

vemos que esse tema se configura como um produtivo discurso nas mais variadas

instâncias sociais, sociológicas e históricas. Já há um bom tempo no Brasil vem sendo

discutida a questão da diminuição da maioridade penal. Alguns discursos, digamos

assim, giram em torno da defesa da idade atual, 18 anos, mas há muitos discursos,

inclusive proferidos na mídia, de que deve ser reduzida a idade penal para 16 anos,

talvez menos.

A cada vez que ocorre um crime cuja culpa direta ou indireta seja (possa ser)

impetrada a um menor de idade, voltam-se os olhos para o tema da diminuição da

Page 563: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1341

maioridade. Todas essas informações históricas se configuram como uma espécie de

contexto compartilhado necessário para a interpretação da charge, justamente porque é

esse mesmo contexto de mundo que funciona como pano de fundo basal para a

produção desse discurso, ou seja, faz parte de suas condições de produção. É notória,

portanto a presença do outro/Outro na constituição do discurso promovido pelo

chargista.

Poderíamos concluir, portanto, como já indicam algumas teses da AD, que o

discurso presente na charge não é original de um eu, mas sim de um outro discurso?

Segundo Possenti (2002), “[...] a presença do outro não é suficiente para apagar

a do eu, é apenas suficiente para mostrar que o eu não está só” (p. 64-65). Observemos,

então, a materialidade linguística apresentada nas falas das personagens da charge:

quando o primeiro policial, após revistar dois bebês suspeitos (?) afirma: “esses aqui tão

limpos”, construímos um mundo, um script (tal como é característico no humor) que

direciona a nossa interpretação de que o sentido de limpo refere-se ao comportamento

social lícito de um determinado cidadão. No jargão característico das “batidas

policiais”, um sujeito que está limpo não porta armas, não porta drogas, não porta nada

que seja ilegal. Porém, ao seguirmos o fluxo discursivo, vemos que limpo, ou mais

explicitamente, os complementos associados a esse lexema, por questões da composição

do discurso, configuram-se como ambíguos: limpo não diz mais respeito a uma questão

de comportamento social, mas sim estabelece uma antonímia com sujo, configurando-

se, então, numa questão física, corpórea, a que, por referência semiótica, apoiados na

leitura da imagem, vemos o policial com as mãos sujas, após fazer a revista do segundo

bebê.

Como sugere Possenti (2002), a constituição dialógica desse discurso, no qual é

clara a presença do outro/Outro, não elimina a presença do eu. O chargista claramente

lança mão dos mecanismos linguísticos que conhece (ambiguidade de limpo, a relação

de antonímia entre limpo e sujo), revelando, mesmo que implicitamente, sutilmente, um

eu que não é totalmente assujeitado. Esse trabalho, inclusive, parece sugerir uma

tomada de posição do eu a qual discorda da ideia de redução da maioridade penal, já

que o “crime” cometido pelo bebê é algo normal, fisiológico. O eu participa do diálogo

com o outro/Outro, constituindo-o, logo se configurando como o outro/Outro do

outro/Outro (cf. POSSENTI, 2002, p. 65).

Page 564: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1342

É, por fim, o trabalho com o material linguístico que indica e direciona o diálogo

entre o eu e o outro/Outro. É por meio desse material linguístico, presente na

ambiguidade e no deslizamento dos dois mundos/scripts construídos na leitura, que se

apoia o humor dessa charge e através do qual o discurso se materializa. Passemos a

próxima charge:

Figura 2: Charge 2 – discussão sobre as touradas

Disponível em: <http://www.sejavegetariano.com.br/charges-vegetarianas/>. Acesso em: 01/09/2012

De acordo com Pilla e Quadros (2009):

As charges comportam a articulação do verbal (palavra) com o não-verbal

(imagem) que constrói múltiplas direções de leitura, associando recursos

como a ironia e o desenho caricatural. Outro aspecto importante é que elas

costumam ser tão ricas e densas quanto outros textos opinativos, como

crônicas e editoriais, que transmitem um posicionamento crítico sobre

personagens e fatos políticos (PILLA e QUADROS, 2009, p. 2).

Na charge em análise, vemos que a afirmação extraída a partir de Pilla e

Quadros (2009) confirma-se. Nela, podemos perceber uma forte ideologia a qual

direciona a composição do discurso. Vale ressaltar que todo o apelo do verbal somado

ao não-verbal promovem, a um só tempo, tanto o humor da charge, ou seja, o seu

gatilho humorístico, quanto marcam os discursos presentes nela.

É de conhecimento geral que as touradas na Espanha (assim como as vaquejadas

e os rodeios, aproximando mais a discussão à realidade brasileira), são fruto de

polêmicas discussões entre, por um lado, adeptos defensores dos eventos,

caracterizando-as como festas esportivas, como, por outro lado, ONGS protetoras dos

Page 565: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1343

animais, cujo discurso apresenta essas atividades como sendo a própria promoção de um

show de horrores e maus-tratos com animais.

A fala do primeiro personagem parece estar inserida na discussão

resumidamente relembrada no parágrafo anterior. Quando enuncia: “quem não gosta de

touradas não vá...”, parece apresentar uma solução, até certo ponto grosseira, àqueles

que consideram tais eventos como nocivos e violentos. Esse é um discurso com o qual o

chargista dialoga, na verdade, poderíamos dizer que esse é o discurso do outro/Outro

retomado pelo eu. No entanto, ao observamos a fala do segundo personagem e, em

seguida, ao apoiarmos nossa leitura na imagem, vemos que um outro mundo possível, o

da inversão e do risível, se apresenta. Se a solução é assim tão fácil, ou seja, se é

preciso, apenas, que os desgostosos com as touradas não participem delas, logo, o touro

é quem não mais está interessado em participar. Ao enunciar “ok, ele não gosta” e ao

vermos um touro descontente, vemos que o complemento catafórico a ser relacionado

com o pronome ele (ou seja, o próprio touro) é o que direciona a interpretação que deve

ser dada à charge.

É, em síntese, apoiado no trabalho entre os elementos linguísticos, mais

especificamente pela catáfora decorrente do uso do pronome ele e também pelo gesto

dêitico do segundo personagem ao apontar o touro que o chargista constrói o discurso,

dialogando com outros discursos, de fato, tendo o seu discurso constituído por outros.

Além disso, a junção com os elementos não-verbais, característicos da charge como

gênero textual/discursivo, é o que nos leva a percepção da materialização do discurso.

Por fim, passemos à última análise:

Figura 3: Charge 3 – salário político X salário do trabalhador

Page 566: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1344

Disponível em: <http://www.odivisor.com.br/charges/charge-do-dia/1483>. Acesso em: 01/09/2012

Em Mussalim (2012) encontramos o seguinte argumento:

[...] um paradigma é constante nos estudos do círculo de Bakhtin: opõem-se o

dialógico ao monológico, o múltiplo ao único, o heterogêneo ao homogêneo.

O dialogismo do círculo de Bakhtin, no entanto, não tem como preocupação

central o diálogo face a face, mas diz respeito a uma teoria de dialogização

interna do discurso. É nesse sentido que, para Bakhtin, o discurso, cujo

dialogismo se orienta para outros discursos e para o outro da interlocução,

instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos [...] (MUSSALIM,

2012, p. 150).

A charge ora em análise serve para corroborar o apresentado por Mussalim

(2012) ao retomar o trabalho de Bakhtin e o círculo. De fato, o discurso presente na

charge nos obriga, principalmente se quisermos entendê-la corretamente, a retomar

vários outros discursivos os quais, efetivamente, constituem o discurso apresentado pelo

chargista.

O tema relativo aos salários dos políticos é sempre uma questão polêmica na

sociedade brasileira. Historicamente fica a cargo dos deputados e senadores, na

configuração política brasileira, proporem e votarem as leis. E são também eles que

votam, por lei, no quanto deve ser o salário mínimo do trabalhador brasileiro. Também

são eles que votam no quanto deve custar o salário dos próprios parlamentares.

Interesses pessoais à parte, está presente em nossa memória discursiva e, com

certeza, também faz parte da memória do chargista, essa polêmica questão sobre os

salários. Outro discurso acionado na leitura dessa charge diz respeito ao fato de serem

Page 567: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1345

altos os salários dos políticos, principalmente se comparados ao valor recebido pelo

trabalhador comum (podemos apoiar esse argumento nas imagens da charge).

Esses conhecimentos prévios, assim como já vimos fazendo anteriormente,

configuram-se como o ponto de partida basal sobre o qual se detém o chargista na

produção de seu discurso. São os discursos com os quais ele dialoga e que fazem de seu

discurso heterogêneo, múltiplo e dialógico.

O material linguístico fornecido é de extrema relevância para o direcionamento

do(s) sentido(s) que podem ser extraídos na leitura da charge. Ao compararmos os

enunciados: 1) “salário de parlamentar” com o 2) “salário para lamentar” o jogo de

sentidos devido à proximidade fonética entre o lexema parlamentar e os lexemas para

lamentar funcionam como orientadores do discurso. Essa materialidade linguística,

inclusive, põe em cheque a total inconsciência do sujeito que produz o discurso.

Entendemos, a partir das análises apresentadas, terem ficado claras as marcas do

outro/Outro, porém, tomando por referência o trabalho de Possenti (2002), entendemos

que, do mesmo modo, estão mostradas as marcas desse sujeito que trabalha com a

língua(gem), visando promover a materialização de seu discurso, mesmo que não seja

possível negar o diálogo desse discurso com o discurso do outro/Outro.

Considerações Finais

Esperamos, com as análises propostas, ter sido possível mostrar como o material

linguístico é decisivo na constituição e orientação da materialidade discursiva. Em

alguns momentos, inclusive, sendo possível falar num diálogo entre o eu e o

outro/Outro como se houvesse uma consciência (talvez seja ilusão) de que este eu é

produtor (autor) do seu discurso.

Com base no que fora exposto, é importante também ressaltar a importância do

trabalho com os gêneros do humor, dentre eles a charge, no espaço de sala de aula.

Partindo da presunção de que a linguagem é interação, um modo de ação social, um

lugar de conflitos e de controle ideológico, as charges (e também outros gêneros do

humor) se constituem numa fonte inesgotável e, por que não, irresistível, tanto para a

demonstração quanto para a compreensão dos mecanismos linguísticos e das ideologias

que se utilizam do discurso humorístico. Como vimos, são textos que se tornam em

Page 568: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1346

verdadeiros laboratórios para demonstrar a relevância dos fatores linguísticos e

discursivos.

O papel do professor é decisivo nesse aspecto, ainda mais se intencionarmos um

ensino de língua reflexivo e que aproxima o aluno das realidades de uso da linguagem.

Conforme Ilari e Geraldi (2006)

(...) precisamos esquecer as classificações morfossintáticas tradicionais e

fixar nossa atenção nas condições de uso; [isso demonstrará] que há interesse

em contar com categorias descritivas que dizem respeito menos à sintaxe ou

ao conteúdo objetivo das frases, e mais ao seu possível uso na interação dos

locutores. (ILARI & GERALDI, 2006; 80).

Portanto, dominar os recursos linguísticos de uma língua não somente auxilia o

produtor do discurso como também o leitor deste discurso, uma vez lhe permitir fazer

uma leitura crítica do texto, levando-o ao desenvolvimento reflexivo na língua.

Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo

enunciativo do sentido. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

ÁVILA, Fernanda Góes de Oliveira. Análise do discurso humorístico: as condições de

produção das piadas de Joãozinho. – Monografia, – Universidade Estadual de

Campinas. Campinas, 2002.

FERRAZ, Mônica Mano Trindade. Ensinando com textos de humor: sugestões de

leitura do gênero charge. In: PEREIRA, Regina Celi Mendes (org.). A didatização de

gêneros no contexto de formação continuada em EaD. – João Pessoa: Editora

Universitária/UFPB, 2012. (p. 95-124).

ILARI, Rodolfo & GERALDI, João Wanderley. Semântica. – 11. ed. – São Paulo:

Ática, 2006.

MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda, BENTES,

Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras, volume 2. – 8ª. Ed. –

São Paulo: Cortez, 2012 (p.113-165).

PILLA, Armando, QUADROS, Cynthia Boos de. Charges: uma leitura orientada pela

Análise do Discurso de linha francesa. Linguagens - Revista de Letras, Artes e

Comunicação. ISSN 1981-9943. Blumenau, v. 3, n. 3, p. 226-239, set./dez. 2009.

Disponível em: http://proxy.furb.br/ojs/index.php/linguagens/article/view/1497/1402.

Acesso feito em: 01 JUN 2014.

Page 569: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1347

POSSENTI, Sírio. O humor e a língua. Ciência Hoje, vol. 30, nº 176, p. 72-74, 2001.

Disponível em: <http://aescritanasentrelinhas.d3estudio.com.br/wp-

content/uploads/2009/02/o-humor-e-a-lingua-texto.pdf>. Acesso em: 03 SET 2012.

_______. Os limites do discurso: ensaios sobre o discurso e o sujeito. – Curitiba, Criar

Edições, 2002.

_______. Humor, língua e discurso. – São Paulo: Contexto, 2010.

RASKIN, Victor. Semantic Mechanisms of Humor. In: Studies in Linguistic and

Philosophy, 24. Holland: D. Reidel Publishing Company, 1985.

SOUSA, Maria Ester Vieira de. O eu e o outro eu: as astúcias do sujeito e o

deslocamento dos sentidos. Texto inédito. Discussão iniciada no III SINALGE na mesa

redonda: Análise de Discurso: relações de sentido e constituição do sujeito (no prelo).

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução ao estudo do humor pela linguística.

DELTA Revista de Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São

Paulo, v. 6, n. 1, p. 55-82, ISSN/ISBN: 01024450, 1990. Disponível em:

http://www.ileel.ufu.br/travaglia/artigos/artigo_uma_introducao_ao_estudo%20do_hum

or_pela%20linguistica.pdf. Acesso em: 03 SET 2012.

Page 570: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1348

EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO

DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE GÊNEROS PARA O

ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]

Josefa Maria dos Santos (UPE)

Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)

Introdução

Durante muitos anos, a concepção de ensino de língua que norteou o processo

educacional esteve focada na decodificação do signo. Entendia-se que para ler e

escrever era necessário que o aprendiz fosse capaz de formar sílabas, juntá-las para

compor as palavras e depois as frases. Essa compreensão passou, por volta da década de

80, a ser questionada e entre as críticas mais frequentes a esse modelo de ensino,

segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998, p. 18), destacavam-se: a

excessiva escolarização das atividades de leitura; o uso do texto como expediente para

ensinar valores morais e como pretexto para o tratamento de aspectos gramaticais; o

ensino descontextualizado da metalinguagem, normalmente associado a exercícios

mecânicos de identificação de fragmentos linguísticos em frases soltas.

Porém, ao longo do tempo, a compreensão textual passou a ser vista de maneira

indissociável da relação autor-texto-leitor, visto que é “no uso efetivo da língua e de

modo especial no texto em sua relação com seu leitor ou ouvinte que o sentido se

constitui” (MARCUSCHI, 2008, p. 234). Assim sendo, os textos pré-fabricados, isto é,

especialmente construídos para o aprendizado da leitura sofreram muitas críticas, e em

vista disso, muitos documentos oficiais foram reformulados.

No final da década de 90, com a publicação dos PCN, os livros didáticos tiveram

que se adequar às novas exigências educacionais de forma a proporcionar aos estudantes

e professores um contato mais efetivo com gêneros de diferentes esferas comunicativas.

Contudo, é imperativo frisar que as ‘mudanças’ no livro didático quanto ao ensino de

Page 571: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1349

gênero já vinham ocorrendo muito antes dos PCN ou do PNLD (Programa Nacional do

Livro Didático) exigirem. Em 1987, Geraldi já alertava os professores sobre a “roupa

nova” de alguns livros didáticos que cada vez mais habitavam o espaço escolar. Hoje,

mesmo diante das novas tecnologias e dos infindáveis recursos cada vez mais

sofisticados, o livro didático ainda assume, seja por lacunas na formação ou pela

elevada carga horária dos professores, posição preponderante nas aulas, prescrevendo o

que, como e quando se deve ensinar. Quanto a isso Geraldi (1997) é categórico ao

afirmar que o livro didático despontaria como a solução para o despreparo do professor,

bastando oferecer-lhe um livro que sozinho ensinasse aos alunos tudo que fosse preciso.

No entanto, não é interesse dessa pesquisa culpabilizar o livro didático pelos

baixos índices educacionais, uma vez que sua entrada no espaço escolar deveu-se à

necessidade de suprir as deficiências estruturais e pedagógicas de ensino, como nos

apontam Buzen e Rojo (2005), nem tão pouco justificar o mau uso desse instrumento

pedagógico por parte dos professores. Nosso interesse é lançar um olhar sobre a

proposta de ensino de gêneros constante no livro didático do 9º ano da coletânea

Singular e Plural (2012), das autoras: Laura de Figueiredo, Marisa Balthasar e Shirley

Goulart, identificando a perspectiva de gênero que a fundamenta e se atividades

propostas possibilitam ao educando a inserção nos mais diversos contextos de uso social

da língua.

A escolha da coleção justifica-se por três fatores que levamos em consideração

no momento de definirmos o corpus a ser analisado: a proposta organizacional

diferenciada das demais coleções constantes do PNLD (2013); o parecer sobre essa

coleção constante no guia para escolha do livro didático (PNLD) e o número

considerável de distribuição em 2014 (1.251.956 exemplares da coleção).

Para análise do corpus, utilizamos o exemplar do professor e dividimos o

trabalho em quatro etapas: inicialmente fizemos um levantamento dos gêneros textuais

que compõem a coleção e a recorrência de cada um deles, em seguida agrupamos os

gêneros a partir de seus respectivos domínios. Na terceira etapa analisamos as propostas

de atividades da coleção acerca da compreensão dos gêneros textuais e, por fim,

fizemos uma análise comparativa entre os princípios teóricos e metodológicos,

destinados ao professor na parte final do livro, e as atividades sobre os gêneros textuais

propostas pela coleção. Para isso, baseamo-nos nos estudos de Marcuschi (2008),

Page 572: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1350

Bakhtin (2011), Bazerman (2006) e no que preveem os PCN (1998), para o ensino de

língua portuguesa, que embora não sejam objetivos quanto à aplicabilidade dos gêneros

em sala de aula, traçam as diretrizes para o ensino de língua materna e direcionam o

processo de produção do livro didático.

1. Os gêneros textuais como objeto de ensino da língua e a contribuição dos PCN

As discussões envolvendo o ensino dos gêneros textuais não são recentes nem

consensuais, por isso apesar da grande quantidade de estudos a respeito da temática,

ainda, precisamos alinhar a teoria à prática, possibilitando uma real apropriação da

maior variedade possível dos gêneros textuais por parte dos alunos. Embora tenhamos

muito a avançar no que se refere ao ensino formal dos gêneros textuais, fica cada vez

mais evidente que eles são o principal objeto do ensino de Língua Portuguesa (LP).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua portuguesa (PCN) revelam

claramente uma aversão ao ensino tradicional da língua com base na “sequenciação de

conteúdos” (letras – sílabas – palavras – frases – textos), visto que reconhecem que o

objetivo do ensino da LP é levar o aluno a ler, interpretar e produzir diferentes textos

que circulam socialmente em diferentes situações comunicativas. E não é só isso, os

PCN também revelam que “O produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma

um todo significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto [...]” (PCN, 1998, p.

21).

Ao definir o texto como “o produto” da atividade comunicativa tanto oral quanto

escrita, os documentos oficiais levam em consideração a noção de texto da linguística

textual (LT) a qual, de acordo com Marcuschi (2008, p. 71), sustenta a ideia de que o

texto é “o único material observável”. No entanto, é importante salientar que reconhecer

o texto como “produto” e como “material observável” não implica na ideia de um

ensino de texto fundamentado em um conjunto de regras estanques, pois diante da

infinidade de gêneros textuais que circulam socialmente isso seria impossível. Na

verdade, os estudiosos da LT defendem o posicionamento de que o texto precisa ser

estudado em seu funcionamento, visto que ele “não é simplesmente um artefato

linguístico, mas um evento que ocorre na forma de linguagem inserida em contextos

comunicativos” (MARCUSCHI, 2008, p. 75, 76).

Page 573: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1351

Como Bezerra (2014) aponta que a definição dos termos “gênero textual” e

“texto”, muitas vezes, apresenta problemas entre estudantes de graduação e professores

da educação básica por sua proximidade conceitual, consideramos pertinente reforçar o

posicionamento de Marcuschi (2008, p. 154) sobre o fato de que “toda a manifestação

verbal se dá sempre por meio de textos realizados em algum gênero”. Dessa forma,

percebemos que, apesar da proximidade conceitual, não podemos utilizar os termos

“gênero” e “texto” como sinônimos, visto que, segundo Bezerra (2014, p. 3) isso seria

um equívoco:

[...] o gênero não deveria ser confundido com o texto que o “materializa”. Na

realidade, esse modo de descrever o fenômeno, bastante comum na literatura

especializada, pode se revelar bastante enganoso. Em que sentido o gênero

“se materializa” no texto? Penso, antes, que do gênero jamais se pode dizer

que “se materializa”. Apenas o texto pode ser descrito como tendo um

aspecto “material” ou uma materialidade linguística.

Dessa forma, percebemos que o texto é a materialidade linguística (oral e

escrita) dos gêneros textuais que, na visão bakhtiniana (2011, 262), são definidos como

modelos de enunciados “relativamente estáveis” construídos socialmente.

A publicação dos PCN LP marcou uma fase importante do ensino no Brasil, pois

além de intensificar as discussões sobre os gêneros textuais entre professores e

estudiosos da área, contribuiu para mudanças no ensino que tende, cada vez mais, a

distanciar-se da análise de frases soltas, desconectadas do texto. Além disso, segundo

Souza (2011, p. 44):

Com a publicação dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998), os LD

começaram a prever a inserção do estudo dos gêneros. E a obediência aos

PCN tornou-se inclusive uma exigência, uma vez que a avaliação e

aprovação dos LDLP submetidos ao PNLD tinham como um dos critérios a

abordagem dos gêneros textuais.

A inclusão dos gêneros textuais no livro didático (LD) é, sem dúvida, um

importante passo para o ensino da língua, visto que redireciona o foco do ensino das

regras gramaticais da norma padrão, muitas vezes, vistas em frases desconexas para o

ensino dos gêneros textuais, levando em consideração a leitura, a escrita e os aspectos

linguísticos. No entanto, a inclusão dos gêneros nas aulas de LP e no LD não é

suficiente para a efetivação do objetivo que tanto desejamos: que ao longo dos oito anos

do Ensino Fundamental "cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que

Page 574: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1352

circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes

nas mais variadas situações” (PCN, 1998, p. 19). Para que isso aconteça, precisamos

superar muitos entraves, sendo a falta de alinhamento entre teoria e prática um dos

principais, especialmente, quando se trata dos LD, visto que eles, infelizmente, ainda

são a principal ferramenta utilizada pelos professores nas aulas de LP.

2. Descrição e análise da coleção analisada

Como dissemos na introdução, a coleção analisada apresenta uma organização

diferenciada das demais coleções constantes no PNLD 2013. O livro divide-se em três

cadernos, sendo o primeiro de Leitura e Produção Textual, o segundo de Práticas de

Literatura e o terceiro de Estudos da Língua e Linguagem, os quais se subdividem da

seguinte forma: o primeiro caderno organiza-se em torno de três unidades intituladas de

“mudança e transformação”, “diversidade cultural”, “não é brincadeira: o problema do

trabalho infantil” (em cada unidade desse caderno encontramos também atividades de

produção escrita e oral, articuladas com a temática e o gênero explorados na leitura); o

segundo apresenta uma única unidade, intitulada “Entre leitores e leituras: práticas de

literatura” e por fim temos o terceiro caderno também organizado em três unidades

intituladas de “Língua e linguagem”, “Língua e gramática normativa”, e “Ortografia e

pontuação”.

Para uma análise mais sistemática dos gêneros textuais presentes na coleção,

fizemos a catalogação dos gêneros nos três cadernos, observando também o número de

recorrência em cada um: no 1º caderno, constatamos a presença de 20 gêneros com 101

recorrências; no 2º, verificamos um número menor, 13 gêneros e 31 recorrências; e no

último caderno, 21 gêneros e 79 recorrências. Para melhor ilustrar isso, produzimos um

quadro geral no qual podemos observar os gêneros selecionados para o 9º ano do ensino

fundamental, bem como aqueles mais recorrentes.

Figura 1

Ord. Gêneros textuais Recorrências

01 Boxe explicativo 58

02 Tira 21

03 Artigo científico 17

04 Verbete de dicionário 15

05 Biografia 14

Page 575: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1353

06 Artigo de opinião 11

07 Sinopse 9

07 Poema 8

09 Reportagem 8

10 Letra de música 6

11 Resenha 5

12 Anedota 5

13 Notícia 4

14 Texto dramático 4

15 Manchete 4

16 Anúncio publicitário 3

17 Pauta 3

18 Crônica 2

19 Auto 2

20 Comunicação oral 2

21 Conto 2

22 Fábula 2

23 Resumo 2

24 Capa de livro 1

25 Carta de reclamação 1

26 Cartoon 1

27 Cordel 1

28 Depoimento 1

29 Editorial 1

30 Entrevista 1

31 Gráfico 1

32 Mito 1

33 Placas de trânsito 1

34 Propaganda 1

35 Romance 1

Total de Recorrências 219

Ao analisarmos a figura 1, percebemos que o livro apresenta uma boa

diversidade de gêneros: são 35 gêneros com 219 recorrências, o que consideramos um

ponto positivo. No entanto, Marcuschi (2008) nos leva a questionar, a partir do que

coletamos, o seguinte: será que existe algum gênero ideal para o tratamento em sala de

aula? Ou ainda, será que existem gêneros que são mais importantes que outros? Para as

autoras do livro Singular e Plural parece que sim, pois se observamos as recorrências,

percebemos que os gêneros tira, artigo científico, verbete de dicionário e artigo de

opinião têm um grande destaque na coleção, enquanto os gêneros editorial, carta de

reclamação ou propaganda aparecem uma única vez.

Page 576: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1354

Temos consciência de que o universo de gêneros parece ser ilimitado, mas a

quem compete dizer quais gêneros são os mais indicados para a realidade social no qual

a comunidade estudantil está inserida? Marcuschi (2008) faz uma importante reflexão

sobre a questão ao afirmar que:

Uma análise dos manuais de ensino de língua portuguesa mostra que há uma

relativa variedade de gêneros textuais presentes nessas obras. Contudo, uma

observação mais atenta e qualificada revela que a essa variedade não

corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas

seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os

mesmos. Os demais gêneros figuram apenas para ‘enfeite’ e até para

distração dos alunos. (MARCUSCHI, 2008, p. 207).

A partir da crítica feita pelo autor, fizemos uma análise mais atenta do

tratamento dado aos gêneros na coleção e percebemos que embora a tira tenha sido

recorrente, não é explorada de maneira mais aprofundada, pois sua recorrência maior

(18) acontece no terceiro caderno, no qual é utilizada apenas como mote para a análise

de aspectos linguísticos e gramaticais. Enquanto isso, os gêneros artigo de opinião e

reportagem, por exemplo, aparecem com grande destaque nas seções de leitura e

produção.

Após catalogar os gêneros, fizemos uma análise, com base em Marcuschi

(2008), dos respectivos domínios discursivos, com isso, percebemos que os gêneros dos

domínios ficcional, instrucional e jornalístico são predominantes na coleção, enquanto

que gêneros dos domínios religioso, comercial, jurídico, entre outros, não aparecem.

Figura 2

Os domínios discursivos são definidos por Marcuschi (2008, p. 194) como

esferas da vida social ou institucional nas quais “se dão as práticas que organizam

formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão”. É evidente que

alguns domínios além de serem mais produtivos em quantidade de gêneros, ganham

Page 577: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1355

maior prestígios no âmbito escolar, sendo, portanto, mais explorados. Mas se pensarmos

na formação do indivíduo, percebemos que essa (des)valorização dos domínios não

contribui para o que preveem os PCN (1998, p. 23) ao afirmar que é “necessário

contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas

em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a

diferentes gêneros são organizados de diferentes formas”. Com isso, não queremos

negar a existência de uma maior relevância de determinados domínios em nossa cultura,

o que questionamos é a presença demasiada de gêneros de um domínio em detrimento

de outros.

3. A concepção de gênero textual no LD

A influência dos PCN na construção do LD parece não se restringir à inclusão

dos gêneros textuais como objeto de ensino da LP, mas também nas concepções de

língua e gênero textual que os fundamentam as quais são oriundas da teoria bakhtiniana.

Dessa forma, percebemos que o LD torna-se uma extensão teórica dos PCN, tornando-o

palpável ao professor o que a princípio é um fator positivo, pois além de ser uma

ferramenta de transposição didática, o LD, se for bem explorado pelo professor, torna-se

um material de apoio à formação docente, possibilitando o acesso às principais

discussões referentes ao ensino da LP.

Na coleção “Singular & Plural: leitura, produção e estudos de linguagem”, as

autoras confirmam essa predisposição dos LD em seguir o viés teórico dos PCN,

adotando, pois, a concepção bakhtiniana de linguagem como “produto e forma de

interação verbal” e a concepção de gêneros como “formas relativamente estáveis de

enunciados” que circulam socialmente. Além disso, as autoras também dialogam com a

teoria de aprendizagem socioconstrutivista de Vygotsky (1992), reconhecendo de forma

explícita que o conhecimento é também um produto das relações sociais; com os

estudos retóricos de gênero, ao reconhecer que os gêneros se articulam uns com os

outros nas diversas situações comunicativas, formando uma espécie de “sistema de

gêneros” (BAZERMAN, 2006), com vistas a ações sociais; e com os estudos sobre os

múltiplos letramentos, concordando com Soares (1998) a respeito do fato de que o ler e

o escrever não torna uma pessoa letrada, pois “letramento é o que as pessoas fazem com

Page 578: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1356

as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas

habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais” (1998, p. 72).

Ao analisarmos o aporte teórico usado pelas autoras na construção do manual

do professor, percebemos que elas buscam aproximar diferentes tendências de estudos

de gênero tais como a perspectiva dialógica da linguagem de base bakhtiniana e os

estudos retóricos de gênero (ERG). O diálogo entre essas duas tendências, presente na

coleção, é um elemento positivo, visto que as concepções de gênero que as

fundamentam não são díspares, mas complementares, pois tanto a abordagem de

Bakhtin quanto os ERG reconhecem os gêneros como tipos/tipificações construídas

historicamente dentro de uma dada situação comunicativa, com vistas a uma

ação/atividade social.

Dessa forma, percebemos que a coleção está fundamentada em teorias de

gêneros consistentes e atuais o que nos leva a pensar que o ensino de gênero estará

fundamentado em situações comunicativas reais ou próximas das reais e que objetivem

preparar o aluno para a participação nas diversas práticas sociais que envolvam a leitura

e a escrita.

4. Controvérsias entre a teoria e a prática do livro didático

4. 1. Controvérsia 1

Para as autoras, a divisão da coleção em três cadernos não implica em um ensino

fragmentado dos saberes da disciplina (leitura e escrita, literatura, aspectos linguísticos),

pois elas afirmam, na apresentação da coleção, que os componentes de cada caderno

não serão tratados de maneira estanque, mas sim de maneira articulada. E como

possibilidade para a articulação dos cadernos, há um quadro no manual do professor

(p.31) que sugere como o trabalho deve ser encaminhado.

Figura 3

Caderno de Leitura e

Produção

Cadernos de estudos

de língua e linguagem

Caderno de práticas

de literatura

Semana 1 2 aulas 2 aulas 1 aula

Semana 2 3 aulas 1 aula 1 aula

Semana 3 3 aulas 2 aulas -

Page 579: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1357

Semana 4 4 aulas - 1 aula

Fonte: Coleção Singular & plural

Porém, ao analisarmos as atividades presentes nos três cadernos, percebemos

que não há diálogo algum entre elas. Dessa forma, verificamos que a “articulação” dos

cadernos, de acordo com a proposta das autoras, reduz-se ao planejamento semanal, o

que, a nosso ver, fragmenta ainda mais o ensino, pois é como se ao ensinar leitura e

produção, não pudéssemos ensinar literatura e análise linguística e vice-versa. Na

primeira atividade do caderno 1 (p. 18, 19, 20), após a leitura e discussão da reportagem

“Adolescentes engravidam para segurar os parceiros”, temos dois blocos de atividades

distribuídos em duas seções: a primeira, intitulada de “primeiras impressões”, é

composta de 10 questões; e a segunda, “o texto em construção”, possui 3 questões das

quais apenas uma é voltada para a análise de recursos linguísticos, no caso, o uso do

discurso direto e indireto no gênero em estudo.

Diante disso, fica evidente que a divisão do ensino de língua portuguesa em

blocos, na verdade, configura-se como uma organização equivocada, já que parece ser

consenso entre os estudos mais recentes, a necessidade de um ensino de língua

integrado que englobe leitura, análise linguística e produção numa mesma perspectiva, e

não que as separe radicalmente de forma estanque e desarticulada. A própria equipe de

avaliadores do PNLD (2013) focaliza essa questão afirmando que a separação entre

textos literários e não literários em cadernos diferentes constitui um ponto fraco da

coleção.

4. 2. Controvérsia 2

Outra controvérsia presente na coleção é o fato de que nem sempre há coerência

entre a proposta teórico-metodológica direcionada aos professores sobre o ensino da

leitura e as atividades direcionadas aos alunos. No manual do professor, as autoras

afirmam que “as atividade de leitura estão presentes em todos os cadernos de cada

volume” (p. 12), porém, na unidade 2 do caderno 3, percebemos que há uma

predominância de atividades metalinguísticas e os gêneros são usados apenas como

fonte de extração de exemplos para os aspectos gramaticais abordados.

Ao iniciar o estudo das orações subordinadas substantivas, as autoras abrem a

seção com a tão conhecida canção “Quero” de Thomas Roth, interpretada por Elis

Page 580: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1358

Regina (p. 220), canção que traz no seu bojo discussões sociais e humanas muito atuais,

mas que serve apenas de mote para localizar informações gramaticais no texto como

podemos ver nas questões a seguir:

Figura 5

Dessa forma, fica evidente que o ensino dos gêneros textuais é um grande

desafio para professores e estudiosos na atualidade, especialmente, quando verificamos

que professores/pesquisadores afinados com as discussões teóricas atuais ainda

apresentam dificuldades na elaboração de atividades sobre os gêneros textuais que

contemplem as múltiplas categorias que lhe são subjacentes.

Considerações Finais

A investigação realizada no corpus, permite-nos afirmar que a proposta de

ensino de gêneros no livro didático Singular e Plural não contempla, em sua totalidade,

a teoria de gênero baseada na perspectiva dialógica da linguagem conforme aponta no

material teórico constante no manual do professor. A expectativa gerada em torno das

propostas do ensino de leitura e compreensão textual não se confirma, visto que o

conhecimento fica fragmentado: ora analisam-se aspectos estruturais do gênero, visando

a sua leitura e produção; ora observam-se questões de análise linguística dissociadas do

uso e do contexto, prevalecendo, dessa forma, uma perspectiva de ensino de língua em

que o domínio do código é prioridade em detrimento dos conhecimentos sócio-

interativos.

Page 581: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1359

Assim, verificamos que, nas atividades de análise linguística, os gêneros, usados

como pretexto, não ultrapassam os limites da norma desvinculada dos usos. Com isso, a

qualidade da atividade desenvolvida fica a cargo do professor que precisará buscar

formas de diálogos entre os cadernos ou até mesmo entre os textos da unidade, pois há

um hiato entre o que as autoras prometem fazer e o que de fato põem em prática em

forma de proposta de leitura e análise de gênero.

É fato que não há livros didáticos completos, que não careçam da intervenção do

professor e, provavelmente, as autoras esperam do mediador uma atuação que

complemente as propostas indicadas para os alunos. Contudo, diante do que já está

posto sobre os problemas na formação, a alta carga horária e falta de formações

contínuas para os professores da rede pública, talvez essa intervenção não se dê de

forma fácil ou de forma a suscitar um ensino com vistas à efetiva apropriação do uso

dos mais diversos gêneros que circulam socialmente por parte dos estudantes.

Portanto, pensando na quantidade de volumes distribuídos no ano de 2014

(1.251.956 unidades) de acordo com os dados do PNLD ( 2014), torna-se urgente uma

reflexão acerca de como utilizar um material que de certa forma não consegue efetivar

na prática as discussões teóricas atuais sobre ensino de gênero, quando apresenta um

material didático que fragmenta a aprendizagem. No que se refere à coleção Singular &

Plural, acreditamos que torna-se imperativo ao professor aprofundar a leitura da base

teórica do manual do professor para que, ao desenvolver as atividades propostas para os

alunos, possa suprir as lacunas deixadas pela divisão dos saberes da disciplina,

aproximando as atividades de reflexão linguística das de leitura e compreensão textual.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2011.

BEZERMAN, Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2006.

BEZERRA, Benedito G. Equívocos no discurso sobre gêneros. Trabalho apresentado

inicialmente como conferência de abertura do V Encontro Acadêmico Gêneros na

Linguística e na Literatura, realizado pelo Grupo de Pesquisa NIG/UFPE em Recife, de

17 a 19/09/2014.

Page 582: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1360

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:

língua portuguesa: terceiro e quarto ciclo, Brasília: MEC/SEF. 1998.

BRASIL. Guia de livros didáticos: PNLD 2014: língua portuguesa: ensino

fundamental: anos finais. Brasília: MEC. 2013.

BUNZEN, Clecio. ROJO, Roxane. Livro didático de língua portuguesa como gênero do

discurso: autoria e estilo. In: VAL, Maria da Graça Costa; MARCUSCHI, Beth. Livros

Didáticos de Língua Portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: Ceale;

Autêntica, 2005. (p. 73-118)

GERALDI, J. W. Livro Didático de Língua Portuguesa: a favor ou contra? Leitura:

Teoria e Prática, São Paulo, v. 9, jun. 1987. p. 4 -7.

_______. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.

São Paulo, SP: Parábola, 2008.

FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular &

plural: leitura, produção e estudos de linguagem. 1 ed. São Paulo: Moderna, 2012.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998b.

SOUZA, Arisberto Gomes de. Estudo dos gêneros textuais no livro didático de língua

portuguesa como ferramenta para as práticas linguísticas e sociais. 2011. 133 f. Tese

(Mestrado em Letras) - Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. RN. 2011.

VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 1. Ed. Tradução de

Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Pontes, 2001.

Page 583: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1361

A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA

CONSTRUÇÃO DO SER DA FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE

GRACILIANO RAMOS [Voltar para Sumário]

Josivaldo Silva Menezes1 (UPE)

É nítida, e não é de hoje, a relação que a Literatura estabelece com os mais

diversos campos de conhecimento. Podendo dessa maneira, reconhecer a contribuição

das áreas de conhecimento para se compreender o homem e o mundo que o cerca e

expondo ao mesmo tempo tanto o que é vivido quanto aquilo que é desejado expressar.

Frente às áreas de conhecimento às quais o campo literário tem se relacionado,

comumente a Filosofia, História e Linguística, é notado o quanto o espaço artístico

contemporâneo tem explorado e estabelecido um diálogo com a Psicanálise. E isto se

deve ao advento da psicanálise, junto aos estudos e teorias desenvolvidas por Freud no

início do século XX, com influência no âmbito literário, uma vez que a “análise dos

conflitos internos” do homem passam a estar cada vez mais presentes nas produções

literárias.

Com as mudanças ocorridas logo após as duas primeiras décadas desse período,

tendo o romance brasileiro sofrido modificações significativas e ressurgido renovado

desamarrando-se dos moldes tradicionais e do sentimentalismo “puro e ingênuo”, aqui

não será mais permitido o subjetivismo inocente de outrora. Agora o romance esta

repleto de dureza, secura, rispidez, enxugamento da linguagem e análises profundas do

comportamento do homem, abordando uma mistura de análise social, política e

psicológica.

Os anos de 1930, ao qual a obra Angústia está localizada, sendo uma narrativa

atemporal, será um dos períodos em que o campo artístico, cultural, político e social

encontra rupturas não apenas no cenário nacional. E principalmente na maneira como o

1 Graduado em Letras pela UFRPE/UAG e Pós-graduando Latu Sensu em Ensino de Língua Portuguesa e

suas Literaturas pela UPE

Page 584: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1362

campo ideológico que se encontrava em constante efervescência e caos político

influenciaram e contribuíram no fortalecimento do gênero prosa do século XX. Essas

mudanças ocorridas serão absorvidas por artísticas e intelectuais da época que se

mostravam bastante preocupados em desmascarar as mazelas da sociedade. Portanto,

Graciliano Ramos ganha destaque no espaço social e artístico, uma vez que acompanha

de perto a situação do país e busca expor uma realidade mascarada e até então

desconhecida, a saber, a injustiça, a opressão, submissão e exploração dos “menos

favorecidos”, o que, por sua vez, reflete um país de indivíduos sofridos, miseráveis,

indefesos e vítimas de sua própria situação e em conflitos de identidades com seus

mundos exteriores e interiores.

Esse novo olhar que é dado às narrativas modernas tende a examinar não apenas

a construção do ser da ficção, mas também exercem a função de registrar os dramas que

têm lugar dentro da consciência individual dos seres. Levando em conta as

problemáticas que o homem vive por meio da interação com o outro, ou como no caso

de alguns personagens de obras da literatura nacional, como ocorre em Angústia, pela

tentativa “desconfiada” e “desajeitada” de se relacionar com o outro. Dessa maneira

pode-se notar que as movimentações iniciadas, em pleno período de 1930, tanto por

escritores brasileiros quanto estrangeiros, contribuíram em técnica e conteúdo (forma)

na solidificação e amadurecimento da prosa realista.

O diálogo fixado pela Literatura e o campo psicológico, permitirá, portanto, ao

leitor se defrontar com o mundo “interior” dos seres que povoam as narrativas, de

maneira que se possa muitas vezes explorar um universo em fragmentação, detrimento e

realidade estilhaçada. E ao mesmo tempo, ocorre o contato direto com um tipo de

narrativa recheada de técnicas diversas que proporcionam às personagens um papel

importantíssimo dentro do ambiente narrativo, uma vez que a elas serão permitidas

exprimirem as angústias e crises interiores e que lhes causam as mais diversas

sensações.

Moraes Schirato (2011), em seu artigo O papel do monólogo interior na

construção da personagem no conto “Felicidade”, de Virginia Woolf, afirma que os

personagens desses “novos romances” também adquiriram um novo perfil, pois

passaram a exprimir aquilo que acontecia no interior de si mesmas. Em algumas obras,

foi tamanha a importância dada aos personagens e aos conflitos por eles vivenciados

Page 585: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1363

(internos e externos) que estes acabaram se tornando foco de muitos autores ao elaborar

suas produções.

É partindo dessa maneira de ver o mundo que o romancista constrói um universo

que percorre do mais simples ao mais complexo. E as mudanças ocorridas no campo da

psicologia permitem que o homem possa ser visto à luz da sua interioridade, ou seja, na

maneira como a sua relação com o outro auxilia ou interfere em seu mundo interior.

Criando muitas vezes um emparedamento social e psicológico que é reflexo da busca

incessante de pertenciamento de lugar, sendo o ser da ficção o responsável por

transmitir ao leitor esse choque conflitante que é o seu universo interno.

No que se remete a “análise mental” dos personagens, o século XX é o

responsável por grande parte das mudanças conceituais dos romances, período este que

se voltava em captar os mais diversos níveis de consciência (LEITE, 1994, p.66). Essas

mudanças garantiram um amadurecimento das narrativas, uma vez que partindo de

novas perspectivas traçadas pelos escritores era realizada uma análise aprofundada dos

comportamentos do homem moderno e que possibilitavam compreender a maneira

como as relações interpessoais, ou mesmo, a tentativa, muitas vezes mal sucedida, de se

relacionar com o mundo afetavam o seu desenvolvimento externo e interno, além de

esclarecer o quanto o ser da ficção tem se mostrado cada vez mais complexo e

contraditório em sua construção.

No rol da Literatura brasileira e contemporânea o romancista Graciliano Ramos

é um exemplo forte do quanto à relação de homem e mundo pode ser angustiante e de

como o ser da ficção é complexo em seus traços, uma vez que é na sua obra Angústia,

que o escritor permitirá ao seu leitor entrar em contato com uma narrativa densa e

introspectiva, trazendo todo um contexto recheado de inovações e técnicas que a fazem,

em seu conjunto, um trabalho cauteloso de enredo e espaços criados por um narrador

protagonista frustrado que planeja e realiza o ato de matar o seu opositor e que decide

contar todas as suas angústias por meio de um denso monólogo interior.

Graciliano Ramos como um romancista social não se preocupava em demonstrar

a mera e simples caracterização do pitoresco, em Vidas Secas, por exemplo, romance de

temática rural em que ele deixa de lado a narração na primeira pessoa e opta pelo

discurso indireto livre, já deixa transparecer a sua preocupação com a análise das

frustrações do homem diante das impossibilidades humanas e sociais. Contudo, se bem

Page 586: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1364

observado, desde a publicação do seu primeiro romance (Caetés, de 1933) e de

posteriormente a São Bernardo, em 1934, o autor já dava atenção às adversidades e

conflitos do mundo interior. E caberá a Angústia ser a responsável pela movimentação

tanto conceitual quanto técnica em suas produções, uma vez que trazia à preocupação e

o cuidado em descrever também o psicológico do homem num período modernizado

(CANDIDO, 2006. p.102)

O romancista emprega o uso de algumas técnicas modernas para registrar as

amarguras, perturbações e conflitos vivenciados pelo narrador e protagonista entre elas

a técnica do devaneio, o fluxo de consciência e o monólogo interior, objetivando

desvendar as mazelas da alma.

É importante salientar que Graciliano Ramos não criou essas técnicas de

narração, porém seria ele um inovador destes mecanismos no contexto nacional, uma

vez que elas já haviam sido empregadas por outros romancistas, comumente Marcel

Proust, James Joice e Virginia Woolf na literatura estrangeira e por Machado de Assis,

na literatura brasileira, em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas.

Há em Angústia um rompimento do tempo de maneira cronológica que acaba

por diluir toda e qualquer forma de ascensão do homem que se encontra em conflitos

com sua própria existência, pertencente a comunidade que tanto o exclui quanto o

aprisiona. Este homem que vive de maneira cada vez mais reclusa em um ambiente

asfixiante e em detrimento, onde a degradação da sua mente tem controle de sua vida.

Em seu ensaio Os bichos do subterrâneo, Antônio Candido (2006,p. 113) afirma

que na narrativa dessa obra o autor substitui a narrativa épica tradicional, com o uso

pertinente do monólogo interior, junto ao tríplice tempo- "passado narrado, lembranças

e recordação da infância e devaneio do passado, e por fim, um tempo subjetivo

interior"- como forma de levar o leitor ao contato com o universo em estilhaçamento e

degradação do narrador protagonista Luís da Silva.

No que concerne a obras de caráter psicologizantes de Graciliano Ramos, o

crítico Antônio Candido (2006, p. 102) atenta para o fato de que as produções na

primeira pessoa do discurso - entre as quais Angústia se localiza - ganham destaque haja

vista que "constituem uma pesquisa progressiva da alma humana, no sentido de

descobrir o que vai de mais recôndito no homem [...] tentando descobrir o homem

Page 587: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1365

subterrâneo". No geral, predomina a expressividade da linguagem e um profundo

caráter mórbido de auto criticidade e pessimismo.

Além de tudo sei que sou feio, Perfeitamente, tenho espelho em casa. Os

olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso. [...] E contrariei Pimentel

e Moisés, arranjei umas opiniões descabidas, porque realmente não sabia o

que eles estavam dizendo (RAMOS, 2007, p.41).

Daí a pouco lá ia de novo para o corredor, chegava à janela da frente, abria

o postigo. Olhava a rua. Mas não me voltava para direita. [...] a bichinha

sem vergonha devia andar ali por perto, saracoteando na calçada, indo

espiar a sala de D. Mercedes e os móveis de D. Mercedes (RAMOS, 2007,

p. 51).

Nos dois momentos citados acima, o narrador não esta verbalizando e sim,

monologando, sendo este um recurso bastante utilizado pelo romancista para expressar

o acentuado pessimismo e incertezas calcados no discurso do personagem. Dessa

maneira a narrativa ganha uma certa expressividade já que sendo uma narração em

primeira pessoa, o leitor estará diretamente em contato com "meias verdades" ou com

realidades retorcidas.

As técnicas empregadas por Graciliano Ramos, apesar de aparentemente visíveis

em sua narrativa, não são tão simples quanto aparentam. Em exemplo disso, toma-se a

distinção entre monólogo interior e fluxo de consciência, uma vez que geralmente uma

se encontra ligada a outra.

O monólogo é a forma direta e clara de apresentação dos pensamentos e

sentimentos dos personagens, recurso este muito antigo utilizado por Homero

em sua obra A Odisséia. Em determinados momentos dessa narrativa épica ao

leitor, por meio do monólogo, é permitida se defrontar com a força, a

coragem e o valor de Ulisses diante dos poderes e forças divinas.

(LEITE,1994, p. 67)

Já ao que se refere ao fluxo de consciência, o seu surgimento nasce da

necessidade de compreender os processos mentais de maneira não isolada, sem

fragmentação, ou seja, num fluxo contínuo e ininterrupto dos pensamentos. Seu termo

foi denominado pelo psicólogo William James e publicado no ano de 1890 em seu

trabalho Princípios da Psicologia.

A presença desse mecanismo de análise da mente do ser da ficção na Literatura é

forma de expressão direta do seu estado mental, manifestando ininterruptamente os

pensamentos. Quanto à sua estrutura, muitas vezes o leitor irá se deparar com um

Page 588: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1366

discurso marcado pela falta de pontuação. Isso se deve com intuito de que o personagem

possa expor a densidade e profundidade de suas emoções internas.

Assim como o fluxo de consciência, nota-se que por meio do monólogo interior

a personagem também se conecta com o seu eu interior, contudo aqui ele estabelecerá

um contato mais direto consigo mesmo. Ele não tem domínio de suas percepções e

pensamentos, porém expressa em seu interior, de maneira livre e desimpedida, as suas

mais diversas emoções. Esse mecanismo, diferentemente do fluxo de consciência é mais

organizado no que concerne a lógica dos fatos e será o responsável pela reprodução dos

pensamentos do personagem no texto.

O monólogo interior implica um aprofundamento maior nos processos

mentais da narrativa deste século (XX). A radicalização dessa sondagem

interna da mente acaba deslanchando em um fluxo ininterrupto de

pensamentos que se exprimem numa linguagem cada vez mais frágil em

nexos lógicos. E que em muitos casos, é o deslizar do monólogo interior para

o fluxo de consciência (LEITE, 1994, p. 67-68)

Como se nota, as técnicas empregadas pelos romancistas desse período não são

tão simples, ocorrendo muitas vezes o deslanchar natural de um para o outro, uma vez

que os movimentos estabelecidos pela mente do ser se chocam com os fatos sucedidos.

A presença dessas técnicas na narrativa de Angústia posicionam-na

esteticamente em um patamar diferenciado de outras obras até então produzidas, haja

vista que Graciliano Ramos emprega nela elementos pertencentes aos romances

psicológicos e contemporâneos. Ela representa na Literatura Brasileira uma obra de

aspectos e estilos ambiciosos e até então inovadores pertinentes a técnica literária

nacional, cabendo ao monólogo interior, recurso bastante pertinente neste romance,

impor a reflexão aprofundada da alma conflitante do indivíduo Luís da Silva.

Tomando como um dos pontos importantes para a compreensão do papel

exercido pelas técnicas modernizantes empregadas nessa obra atemporal -

principalmente o monólogo interior – poder-se-ia se pensar no seguinte questionamento:

uma vez que as obras do chamado Romance de 30 são construídas em todo de um

profundo realismo e objetividade dos fatos, em romances como Angústia tem-se a

presença do subjetivismo da linguagem. Essa subjetividade na visão dos fatos

processados pelo personagem não seria talvez um problema para o realismo e

objetividade na narrativa?

Page 589: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1367

Pelo contrário. Mesmo que os fatos aparentemente sejam dissolvidos pela

subjetividade, aqui encontra-se uma obra onde prevalece um "realismo profundo",

tratando ao mesmo tempo de uma realidade da sociedade brasileira, ou melhor dizendo,

de muitas problemáticas que cercam o indivíduo social, pessoal e economicamente em

conflito. Esse subjetivismo permite que o leitor se depare com um ser emparedado em

um universo "socialmente condicionado" pelo desequilíbrio e dissolução psicológica,

resultando em um homem desesperado, derrotado, desequilibrado e preso em uma

realidade estilhaçada e deformada (COUTINHO, 1978).

O monólogo interior trata-se, portanto do emprego de uma técnica visando

acentuar a realidade para melhor narrá-la (para reproduzí-la artisticamente) e

não da substituição da realidade essencial para reprodução mecânica de

associações mentais fetichizadas ou alegrias metafísicas. Em suma, em

Angústia, o monólogo interior é sempre um instrumento do realismo, nunca

um fim em si. (COUTINHO,1978, p. 103)

Para que não ocorra o enfraquecimento da objetividade dos fatos narrados, o

autor alagoano recorre ao recurso da ironia, pois é recorrente no protagonista de

Angústia a acentuada dissolução interior. Dessa maneira, por meio de uma personagem

auto-irônica se permite um distanciamento entre suas fantasias, desejos e aspirações

além de expor, com tom crítico e ao mesmo tempo sarcástico, sua vida miserável e

medíocre.

Esta vida monótona, agarrada à banca das nove ao meio dia e das duas às

cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha,

arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde da Ponta-da-

Terra (RAMOS, 2007, p. 10).

Trabalho num jornal. À noite dou um salto por lá, escrevo umas linhas. Os

chefes políticos do interior brigam demais. Procuram-me, explicam os

acontecimentos locais, e faço diatribes medonhas que, assinados por eles, vão

para a matéria paga. Ganho pela redação e ganho uns tantos por cento pela

publicação. [...] recebo de casas editoriais de segunda ordem traduções feitas

às pressas, livros idiotas, desse que Marina aprecia. Passo uma vista nisso,

alinhavo notas ligeiras e vendo os volumes no sebo. Alguns rapazes vem

perguntar-me: -Fulano é bom escritor, Luís? Quando não conheço fulano

respondo, sempre: É uma besta. E os rapazes acreditam. (RAMOS, 2007, p.

54-55).

A presença do monólogo interior permite, então, em Angústia, que o homem seja

mostrado diante de sua fragilidade e degradação, refletindo assim os valores do “herói

problemático” que é uma caracterização das personagens que habitam os grandes

romances do realismo crítico, sendo que as possibilidades de se ver livre e de

Page 590: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1368

realizações passam a serem apenas possibilidades abstratas e irrealizáveis

(COUTINHO, 1978).

Os problemas internos que o protagonista irá enfrentar aumentam ao passo que

Julião Tavares, seu opositor, insiste em se fazer presente na vida dele. E intensifica

quando aquele toma o lugar de Luís na vida e coração de sua noiva Marina. Daí para

frente os seus monólogos desencadeiam sofríveis e intensas angústias.

Ora, foi uma vida assim cheia de ocupações cacetes que Julião Tavares veio

perturbar. Atravancou-me o caminho, obrigou-me a paradas constantes,

buliu-me com os nervos. Moisés entrava, puxava uma cadeira, sentava, abria

o jornal. Vinha Pimentel, amarelo, triste, silencioso. Seu Ivo, bêbedo,

acocorava-se a um canto e punha-se a babar, cochilando. Com exceção de

Tavares, nenhuma dessas pessoas me incomodava(RAMOS, 2007, p.55).

Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção

maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora,

vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa

da vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha

chegada. Empurrei a porta brutalmente, coração estalando de raiva, e fiquei

em pé diante de Julião Tavares sentindo um desejo enorme de aperta-lhe as

goelas (RAMOS, 2007, p.91).

É claro que, como já foi mencionada anteriormente, a narrativa dessa obra não é

construída apenas pela presença do monólogo interior apesar deste ser uma técnica

predominante no texto. Contudo, ao que concerne a outras técnicas que constituem a

modernidade deste romance, pode-se citar também o fluxo de consciência auxiliando

nos momentos de devaneios e delírios. Na verdade o narrador em diversos momentos

relaciona fatos passados a momentos atuais e presentes num fluxo contínuo e confuso

de lembranças que se misturam e constroem um novelo cada vez mais complexo e

fechado.

Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor,

secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em

cima de uma coisa amarela e gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara

balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com

lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso. Afinal, tudo

desaparece (RAMOS, 2007, p. 07-08).

A neta de D. Aurora iria ao cinema com os hóspedes que a convidassem. D.

Aurora balançaria os caracóis e as banhas excessivas. Dagoberto se agarraria

ao compêndio e ao esqueleto. Impacientei-me e falei ao bodegueiro, tentando

explicar-lhe as letras pretas manchadas de verde (RAMOS, 2007,p. 214-21).

Como estaria Julião Tavares? Procurei distingui-lo, avancei a cabeça para o

lugar onde supunha ter ele ficado. Um vulto quase imperceptível na escuridão

leitosa. O rosto encostado à terra, naturalmente. Como estariam os olhos

dele? Os olhos de seu Evaristo, que vi de longe, esbugalhavam-se. E a boca

se escancarava, mostrando a língua escura e grossa. Provavelmente Julião

Page 591: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1369

Tavares tinha também os olhos muito abertos e o queixo desgovernado.–Mas

que diabo estou fazendo aqui?

Necessitava levantar-me, afastar-me depressa, entrar em casa, dormir.

(RAMOS, 2007, p.239).

Nesses fragmentos expostos, tem-se a constatação da presença do fluxo de

consciência, que assim como o monólogo interior, vem contribuir na construção

ficcional de Angústia e complexidade de seu protagonista. Com exceção do primeiro

fragmento, os demais expressam o quão perturbada e frágil se encontra a mente de Luís

da Silva, devido ao crime de assassinato por ele cometido. Observa-se o quanto ele sofre

com seus atos e na maneira como a realização do crime resulta em momentos de delírios

e perturbações incontroláveis. Há uma busca pela fuga da realidade, mas ela não o

permite fugir; e tudo em sua visão acaba se tornando deformada e angustiante.

Esses momentos finais da obra demonstram a pequenez e fragilidade de Luís da

Silva, se é que alguma vez ele tenha sido a imagem da “força”, já que sempre via-se

como “um molambo que a cidade puiu demais e jogou fora” (RAMOS, 2007, p.24).

Para tanto, o fluxo de consciência caminha lado a lado com a técnica do monólogo

interior em diversos momentos da narrativa, principalmente nos capítulos finais, pois o

adensamento psicológico não vem apenas demonstrar suas fraquezas como homem, mas

também como mecanismos definidores dos valores entre os dois mundos: o arcaico e o

moderno. Além do mais, demonstra a personalidade do homem contemporâneo que se

vê em conflitos eternos com a sociedade, mediante aos processos ideológicos do século

XX (e também dos dias atuais). Diante disso, percebe-se de que maneira esses processos

afetam ou contribuem em sua formação.

Referências

CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão:Ensaios sobre Graciliano Ramos. 3ª edição.

Rio de Janeiro: Ouro Azul, 2006, 156pág.

COUTINHO, Carlos Nelson. Graciliano Ramos. In Brayner, Sonia (org.) Graciliano

Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. (Coleção Fortuna Crítica

2)

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo. 7ª ed. São Paulo: Editora Ática,

1998.

RAMOS. Graciliano. Angústia; posfácio de Silviano Santiago- 62ª ed.- Rio, São Paulo:

Record, 2007.

Page 592: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1370

SCHIRATO, Marina Nobre de. O monólogo interior na construção da personagem no

conto “Felicidade”, Virgínia Woolf.2011. Disponível em:

<www.mackenzie.br/fileadmim/ Pos-Graduacao/ ... / Artigo_ Marina. pdf. Acessado em

abril de 2012.

Page 593: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1371

A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE

PROFESSORES DE INGLÊS [Voltar para Sumário]

Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)

Adriana Nunes de Souza (IFAL)

A proposta de pesquisa descrita neste trabalho surgiu a partir do comentário de

um aluno e professor de inglês da Escola Regular sobre um projeto que aconteceu na

escola em que trabalha intitulado “semana sem giz”. Segundo o professor o projeto

tinha como objetivo principal incentivar os professores a utilizar outras formas de

conduzirem suas aulas. O professor reclamava que não aguentava mais não poder usar a

lousa e o giz, já que, segundo ele, o uso dessas ferramentas conteria o barulho e a falta

de atenção dos alunos.

É inconcebível compreender tal reclamação quando temos uma gama de

possibilidades de otimizar as aulas de Inglês nessa era digital. O advento das tecnologias

tem mudado a forma de agir, pensar e viver da sociedade atual, e porque não

afirmarmos que as Tecnologias da Informação e Comunicação (Doravante TIC) também

mudaram a forma de ensinar e aprender Língua Estrangeira, como é o caso da língua

Inglesa. No entanto, percebemos que alguns professores ainda resistem ao uso das TIC,

privando, assim, seus alunos de novas possibilidades de aprendizagem que possam ser

capazes de aproximar o ambiente escolar da realidade do aluno.

Paralelo a esse entusiasmo, acompanha-nos uma preocupação em lembrar da

graduação, em especial às poucas aulas de Inglês no laboratório de informática nas

quais alguns colegas, futuros professores, sentiam-se tímidos por estarem em um

ambiente diferente da sala de aula e sem muitas habilidades ao utilizar o computador

conectado à internet. Se aqueles alunos, futuros professores, sentiam-se intimidados

com aquela ferramenta tão útil à sua prática docente, como eles fariam uso de tal

ferramenta em suas aulas de Inglês? De que forma os formadores de professores estão

Page 594: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1372

fazendo uso das TIC? Como os alunos-professores utilizam as TIC em suas práticas

docentes?

Diante de tantos questionamentos, sentimos a necessidade de analisar a relevância

de inserir as TIC no processo de formação de professores e refletir sobre a forma que o

letramento digital é desenvolvido em sala de aula, pois acreditamos não haver na matriz

curricular dos Cursos de Letras-Inglês do Estado de Alagoas uma disciplina direcionada

ao uso das TIC como ferramentas auxiliadoras do processo de ensino/aprendizagem de

Línguas. Pensamos que se houvesse uma disciplina direcionada à formação inicial de

professores dos Cursos de Licenciaturas, nesse caso Letras-Inglês, voltada ao uso das

TIC em sala de aula, talvez o ensino de línguas nas escolas públicas não fosse tão

defasado e limitado apenas ao suposto ensino/aprendizagem do verbo "To Be".

1.1 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS

A formação de professores de Inglês tem sido um tema muito discutido nos

últimos anos no meio acadêmico. Esse interesse em pesquisar, compreender e superar as

dificuldades enfrentadas pelos professores em formação inicial e continuada se dá,

primeiramente, devido à expansão e importância da língua inglesa no mundo. Em

seguida, devido a constante busca por uma educação de qualidade, uma vez que os

professores transmitirão aquilo que aprenderam para os seus alunos. E por fim, pela

constante busca por uma matriz curricular mais adequada ao curso e um método mais

eficaz para o ensino de línguas.

Para Barcelos (2004), o crescimento no número de estudos sobre a formação dos

professores de línguas estrangeiras (LE) demonstra, ainda, um reconhecimento por parte

de pesquisadores em educação, principalmente em Linguística Aplicada (LA), da

necessidade de se compreender como o profissional que vai atuar nas salas de aulas está

sendo preparado para assumir essa responsabilidade.

Nesse processo constante em busca de uma formação de professores de

qualidade, várias pesquisas são desenvolvidas com o objetivo de esclarecer e propor

novos meios de formar professores. Em se tratando de formação de professores de

Inglês, destacamos uma pesquisa realizada por Ifa (2014) na qual se percebeu que uma

Page 595: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1373

das recorrentes dificuldades enfrentadas por alunos era a falta de praticar o que

estudavam na Licenciatura e, principalmente, a distância entre a teoria e prática.

Assim, uma das grandes lacunas no processo de formação de professores,

observadas nas pesquisas, no que se refere aos cursos de Licenciatura, de um modo

geral, aponta para uma inadequação na realização de estágios. Nesse sentido,

percebemos que a disciplina de Estágio Supervisionado, a qual tem a função de

relacionar a teoria com a prática, não está cumprindo o que é proposto na ementa, nem

na grade curricular. A respeito da importância da prática na formação de professores,

Gatti (2003, p. 475) afirma:

Como se o professor pudesse ser professor sem ter refletido sobre educação,

sobre o desenvolvimento de crianças e jovens, sem ter feito um estágio

adequado, sem ter permanecido o tempo necessário em uma escola, sem ter

acompanhado o trabalho de outro professor, sem ter tido a chance de ensaiar

um trabalho com crianças ou adolescentes.

A respeito da inserção do licenciando no ambiente escolar, destacamos a

importância do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – Subprojeto-

Inglês (Doravante PIBID-Inglês) para a academia. O foco principal do programa é

incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica,

contribuindo para a valorização do magistério e elevando a qualidade da formação

inicial de professores nos cursos de licenciatura, através da integração entre educação

superior e educação básica.

Nesse programa, os alunos-bolsistas dedicam 20 horas semanais de trabalho no

subprojeto, dentre elas, 16 horas são dedicadas às aulas na área de formação em uma

das escolas conveniadas. Além de participarem de reuniões e congressos.

Outro protagonista desse projeto é o professor-supervisor, o qual deve, dentre

outras atribuições:

(1) estar efetivamente no exercício da função de professor da disciplina que

supervisionará no programa;

(2) Participar integralmente das atividades do PIBID, inclusive as específicas de

cada subprojeto, como reuniões na universidade;

(3) Dominar e consultar regularmente os dispositivos eletrônicos (e-mail, Moodle,

blog etc.) para o gerenciamento do programa e a comunicação entre os seus

participantes;

Page 596: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1374

(4) Ajudar a elaborar e acompanhar o plano de atividades dos bolsistas PIBID,

promovendo a sua adequação à realidade escolar, em concordância com o professor

coordenador do subprojeto;

(5) Auxiliar os bolsistas e os professores coordenadores do PIBID na divulgação e

disseminação dos resultados do Programa em eventos acadêmicos.

Acreditamos que a adoção do PIBID-Inglês na formação inicial é uma oportunidade

de inserção dos licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação,

proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências

metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar

que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-

aprendizagem.

1.2 AS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE INGLÊS

O uso das TIC na sala de aula tem crescido significativamente no Brasil. Esse

crescimento se deve, em grande parte, à criação de projetos de inclusão digital, tais

quais o UCA (um computador por aluno), o ProInfo e até mesmo o ProInfo Rural. Mas

segundo Almeida1 (2014), professora doutora da PUC-SP e pesquisadora do uso de

tecnologias na educação, apesar de o Brasil estar avançando bem no quesito tecnologias

em sala de aula, ainda estamos longe do ideal.

Para Almeida (2014), o ponto chave para a mudança vai além da inserção de

políticas públicas para o uso de ferramentas tecnológicas na educação. O avanço nessa

área está diretamente relacionado à formação de professores para que o uso das

tecnologias tenha resultados educacionais positivos. Ela acrescenta que “Mesmo que os

professores que estão terminando suas licenciaturas hoje já tenham um nível muito bom

de inclusão digital, o uso pedagógico dessas tecnologias envolve outro conhecimento, e

isso ainda precisa ser muito trabalhado na formação”.

Apesar dos avanços tecnológicos e das inúmeras possibilidades que as TIC têm

proporcionado ao processo de ensino/aprendizagem, o uso que os docentes fazem das

TIC ainda é limitado em sala de aula, relacionando-se ao uso pessoal que fazem destas

tecnologias (escrever, pesquisar etc) conforme apontam Coll, Mauri e Onrubia (2010).

1 Em entrevista concedida ao Instituto Claro sobre as TIC na educação: os passos que o Brasil precisa dar

para avançar.

Page 597: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1375

Desta forma, o uso eficaz das TIC pelos professores ainda está distante da sala

de aula e de um uso reflexivo por parte dos alunos. Por esse motivo a formação de

professores deve contemplar a inclusão digital e o uso pedagógico dessas tecnologias.

Tavares e Stella (2014) acreditam que a formação de professores deva considerar que

esse mundo digital oferece várias formas de fazer sentido, que nas formas tradicionais

do ensino e aprendizagem de línguas não são comtempladas, principalmente nas salas

de aula do ensino regular.

Muitos professores preferem manter o padrão tradicional nas salas de aula

devido à deficiência na formação no que se refere ao quesito letramento digital. Snyder

(2008) exemplifica essa situação quando afirma que os professores de alfabetização em

todos os níveis utilizam as novas tecnologias para continuar o que faziam com o livro

didático. Dessa forma, o meio digital é apenas mais uma ferramenta a qual o professor

inicia uma atividade, indica uma tarefa de casa e avalia se os trabalhos foram feitos de

forma satisfatória, mantendo a mesma abordagem tradicional.

É a incorporação e o uso das TIC por professores e alunos em sala de aula que vai

determinar seu maior ou menor impacto nas práticas educacionais e sua maior ou menor

capacidade para transformar o ensino e melhorar a aprendizagem (COLL, 2010). Por

isso a necessidade de formar professores capazes de utilizar essas ferramentas de forma

significativa na sala de aula.

Pensando nisso, o Ministério da Educação e da Cultura (MEC) em seus documentos

oficiais, com o objetivo de orientar a prática docente e informar sobre as políticas

educacionais, insere em suas propostas a inclusão das tecnologias na prática escolar.

Dentre eles, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) apresentam

algumas reflexões a respeito da prática docente no que se refere ao conhecimento de

Línguas Estrangeiras abordando a importância da inclusão digital no processo de

ensino.

Em se tratando das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de

Professores da Educação Básica, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação, por

meio da Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002 é sugerido que a formação

para a atividade docente prepare os professores para o uso de Tecnologias da

Informação e da Comunicação e de metodologias, estratégias e materiais de apoio

inovadores (Art. 2º, VI).

Page 598: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1376

Em se tratando da importância das TIC na formação de professores podemos

analisar, ainda, o documento referente ao perfil desejado do formando do Curso de

Letras onde veremos que ele deve ser “capaz de refletir teoricamente sobre a linguagem,

fazer uso de novas tecnologias e de compreender sua formação profissional como

processo contínuo, autônomo e permanente2”.

Todas as colocações documentais aqui citadas são fundamentadas e consideram as

TIC como ferramentas importantes no processo de ensino/aprendizagem. No entanto há

certa impertinência em relação às sugestões feitas pelo MEC em seus documentos

oficiais, como também nas matrizes curriculares dos cursos de Letras-Inglês no Estado

de Alagoas que não dispõem de uma disciplina que contemple a formação de

professores para o uso das tecnologias como recurso auxiliar do processo de

ensino/aprendizagem de línguas.

A problemática que aqui travamos é também fruto de uma pesquisa realizada por

Magalhães (2012) com professores de Inglês da rede Estadual da cidade de Arapiraca-

AL em 2012 onde constatou-se que 80% dos professores não têm acesso às capacitações

referentes ao uso das TIC ofertados pela Secretaria de Educação do Estado (SEE).

Constatou-se ainda que a maioria dos professores de Inglês da rede Estadual de ensino

ainda se detém ao uso do livro didático em sala de aula e que muitos professores nem ao

menos sabem manusear o computador e o projetor, além dos problemas referentes à

disponibilidade dos recursos tecnológicos pela escola (MAGALHÃES, 2012).

Além dos resultados obtidos na pesquisa supracitada e das dificuldades enfrentadas

por professores de Inglês, esse trabalho também parte do entusiasmo em ver as diversas

possibilidades de se trabalhar com a língua Inglesa através de um computador conectado

à internet nas diversas etapas do processo de ensino, antes (plano de aula), durante

(aula) e depois (correção e obtenção de resultados).

Dessa forma, cremos que devido ao resultado das pesquisas terem mostrado que há

limitações por parte dos professores quanto ao uso das TIC na sala de aula, que muitas

vezes o professor utiliza as TIC, porém reproduz a metodologia tradicional e que não há

na grade curricular do curso de Letras\Inglês do Estado de Alagoas, podemos concluir

que pode haver dificuldades quanto ao uso das TIC em sala de aula, seja devido às

limitações na formação do professor ou da escola. Acreditamos que alguns licenciandos

2 Parecer CNE/CES no. 492/2001

Page 599: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1377

já atuam como professores de Inglês em escolas da rede pública e/ou privada de ensino

e no entanto não possuem formação para o uso significativo das TIC em sala de aula.

Outro ponto importante a ser destacado nessa problemática é o papel da escola

na inserção das TIC no processo educacional. Acreditamos que a escola deva ser um

ambiente que possibilite o acesso à novas formas de os indivíduos produzirem

conhecimento.

Assim, não devemos ignorar a influência das TIC nos processos pedagógicos e

ainda, devemos questionar se a escola e os professores estão preparados para lidar com

essas ferramentas. Em se tratando de papel da escola, Tavares e Stella (2014) definem

esse ambiente como fundamental para esse processo, pois completa o conjunto de

sentidos para os Novos Letramentos e caracteriza-se pela não-passividade do sujeito

pela interação com o outro e produção de novos sentidos.

Considerando a importância da escola no processo de formação do cidadão e que

o professor faz parte dessa instituição, destaco a importância de formar professores para

a construção de identidades através das novas tecnologias. Nesse sentido, Perrenoud

(2000, p.125) afirma que:

formar para as novas tecnologias é formar o julgamento, o senso crítico, o

pensamento hipotético e dedutivo, as faculdades de observação e de pesquisa,

a imaginação, a capacidade de memorizar e classificar, a leitura e a análise de

textos e de imagens, a representação de redes, de procedimentos e de

estratégias de comunicação (PERRENOUD 2000, p.125).

Diante do que foi apresentado, é importante ressaltar que a proposta que aqui se

faz não se refere ao uso abusivo e irresponsável das TIC por parte de professores e

alunos, mas do uso consciente e adequado dessas ferramentas. Sobre isso Pierre Levy

(1999, p.172) sugere:

Não se trata aqui de usar as tecnologias a qualquer custo, mas sim de

acompanhar consciente e deliberadamente uma mudança de civilização que

questiona profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura

dos sistemas educacionais tradicionais e sobretudo dos papéis de professor e

de aluno (LEVY, 1999, p.172).

Não se pode negar a presença do Inglês no mundo virtual e as possibilidades das

TIC em potencializar o ensino/aprendizagem dessa língua, assim o computador

conectado à internet pode possibilitar diversas formas de desenvolvimento das práticas

Page 600: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1378

de ensinar e aprender o inglês, tendo em vista a autenticidade e dinamicidade do

ambiente virtual. Porém, como exposto anteriormente, o uso dessas ferramentas deve

ser feito de forma planejada e estratégica, por isso a necessidade de formação dos

professores.

Diante do panorama tecnológico atual, cresce ainda mais a responsabilidade do

professor em estar capacitado para o uso das tecnologias. Essa responsabilidade

aumenta mais ainda devido à distância que há entre o mundo do aluno e o mundo do

professor. Ou seja, o professor, naturalmente, sentirá o desejo de acompanhar as

demandas do aluno, que está a todo instante conectado com o mundo virtual. Prensky

(2001) caracteriza essa distinção digital entre alunos e professores como Nativos

Digitais e Imigrantes Digitas respectivamente.

O autor explica que “os estudantes de hoje são todos ‘falantes nativos’ da

linguagem digital dos computadores, vídeo games e internet.” Já os Imigrantes Digitais

são aqueles que nasceram em qualquer outra época diferente dessa, e que por fascinação

adotou os aspectos da nova tecnologia.

A respeito dessa temática, Prensky (2001) argumenta que “os nossos instrutores

Imigrantes Digitais, que usam uma linguagem ultrapassada (da era pré-digital), estão

lutando para ensinar uma população que fala uma linguagem totalmente nova”. Nesse

contexto, o desnivelamento de letramento digital entre professores e alunos torna-se um

problema para a o sistema educacional, já que a mudança faz-se necessária, os alunos

estão imersos nesse mundo digital e implicitamente clamam por evolução na sala de

aula no que tange o uso das TIC e a maioria dos professores não é capacitados para o

uso eficaz das ferramentas tecnológicas.

Para concluir, Buzato (2001) aponta, como resultado de sua pesquisa de

mestrado, que é visível a necessidade de criação nas Licenciaturas de um espaço

direcionado ao uso das TIC para que o aluno-professor possa desenvolver a habilidade

de interagir com o outro através de práticas sociais de leitura e escrita e assim, poder

desenvolver essa habilidade no seu aluno. Através de estudo de caso, Buzato (2001) nos

mostra que a falta de letramento digital por parte do professor pode ser considerada uma

barreira, impossibilitando o professor de lançar mão do uso das TIC de forma eficaz em

sua prática docente futura.

Page 601: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1379

Nessa perspectiva, a sociedade tecnológica requer um professor que vá além do

uso da lousa e do giz. Essa nova sociedade digital requer um professor preocupado em

aliar as TIC ao ensino numa perspectiva interacionista, proporcionando a aprendizagem

significativa e a construção do conhecimento pelos próprios alunos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Conforme discutido ao longo do texto, percebemos que, primeiramente, a

sociedade atual tem passado por diversas mudanças, entre elas, a inserção das

tecnologias em diversos ambientes, inclusive no ambiente escolar. Dessa forma, faz-se

necessário novas práticas de letramentos, dentre elas o letramento digital, uma vez que

as práticas adotadas anteriormente não suprem as necessidades e demandas da

sociedade atual.

Para que essas mudanças aconteçam, é, efetivamente, necessário que toda a

comunidade escolar esteja capacitada para essas novas práticas, principalmente os

professores, os quais estarão diretamente envolvidos nessa prática e precisam planejar,

aplicar, analisar e intervir, se necessário for. Não podemos deixar de mencionar a

importância de se ter equipamentos disponíveis e em boas condições para o uso dos

professores e alunos.

Há de se lembrar que, os documentos oficiais disponibilizados pelos MEC

mencionam a necessidade de inserir as TIC no ambiente escolar, no entanto na matriz

curricular dos cursos de Letras das universidades públicas do Estado de Alagoas não

existe uma disciplina que comtemple exclusivamente o uso didático dessas ferramentas.

Nesse contexto, é essencial que a matriz curricular do curso de Letras\Inglês seja

reanalisada e que se reflita sobre a criação de uma disciplina que instrua os alunos,

futuros professores, sobre o uso didático das TIC, já que, segundo pesquisas

mencionadas no decorrer do texto, muitos professores não sabem ao menos manusear o

computador.

É importante mencionar que, esse trabalho não tem o objetivo de inserir as TIC

no ambiente escolar a qualquer custo, mas que essa seja uma prática consciente, por

parte dos envolvidos no processo, visto que ter consciência do que é desenvolvido em

sala de aula faz parte das premissas dos novos letramentos, assunto defendido nesse

trabalho.

Page 602: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1380

Esperamos, contudo, que esse trabalho tenha despertado, de forma geral, o

desejo de refletir a formação de professores no âmbito do ensino de Inglês e do uso das

TIC, melhorando a educação como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP1/2002. Diário Oficial da União,

Brasília, 9 de abril de 2002, Seção 1,p.31. Republicada por ter saído com incorreção do

original no D.O.U. de 4 de março de 2002. Seção 1, 9p.

BUZATO, M. O letramento eletrônico e o uso de computadores no ensino de língua

estrangeira: contribuições para a formação de professores. Dissertação de mestrado -

IEL, Unicamp. Campinas, Unicamp: 2001.

COLL, César, MONEREO, Carles. Psicologia da educação virtual. São Paulo: Artmed,

2010.

COLL, César; MAURI, Teresa; ONRUBIA, Javier. A Incorporação das Tecnologias de

Informação e Comunicação na Educação: Do projeto técnico-pedagógico às práticas de

uso. In: COLL, César; MONEREO, Carles (Orgs.). Psicologia da Educação Virtual:

Aprender e ensinar com as tecnologias da informação e comunicação. São Paulo:

Artmed, 2010.

GATTI, Bernardete Angelina. Formar professores: velhos problemas e as demandas

contemporâneas. Revista da FAEEBA: Educação e contemporaneidade. Salvador, v. 12,

n. 20, p. 473-477, jul./dez., 2003.

IFA, S. A formação pré-serviço de professores de Língua Inglesa: representações do

ser professor em uma sociedade em processo de digitalização. Tese (Doutorado em

Lingüística Aplicada) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, (2006).

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

MAGALHÃES, Antônio C. As Tecnologias no Ensino de Língua Inglesa: uma

Investigação nas Escolas Públicas de Arapiraca/al. Trabalho de Conclusão de Curso

(TCC) – Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Arapiraca. 2012.

PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants. MCB University Press, 2001.

Disponível em: <http://www.marcprensky.com/writing/Prensky%20%20Digital%20

Natives,%20Digital%20Immigrants%20‐%20Part1.pdf>. Acesso em: 22 out 2013.

STELLA, Paulo Rogério. TAVARES, Roseanne Rocha. Projeto Pedagógico do Curso

de Licenciatura em Inglês da UFAL: os letramentos em questão. RBLA, Belo

Horizonte, v. 12, n. 4, p. 955-969, 2012.

Page 603: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1381

ZACCHI, Vanderlei J; STELLA, Paulo R. (Orgs.). Novos Letramentos, Formação de

Professores e Ensino de Língua Inglesa. Maceió: EDUFAL, 2014.

Page 604: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1382

O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM

PARIS” DE ROBERTO DRUMMOND [Voltar para Sumário]

Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)

Introdução

O texto literário nos afeta, questiona, desinstala, faz ultrapassar verdades óbvias

e caminhar pelo desconhecido ou inusitado, também nos leva a identificarmos com

personagens, sentir raiva, medo ou simpatia. Como tudo isso ocorre, no entanto, que

mecanismos são utilizados pelo escritor no processo de criação para nos fazer crer que o

que está contando é real, mesmo que saibamos estar em face de uma obra literária, é o

que a maioria dos leitores ignora. É o que nos diz Compagnon “o problema torna-se o

seguinte: não mais ‘Como a literatura copia o real? ’ mas ‘Como ela nos faz pensar que

copia o real? ’ Por quais dispositivos?” (COMPAGNON, 2012, p.107).

Já Aristóteles assegurava que “o papel do poeta é dizer não o que ocorreu

realmente, mas o que poderia ter ocorrido na ordem do verossímil ou do necessário”

(apud COMPAGNON, 2012, p. 103). A literatura seria então uma mímesis, imitação ou

representação da realidade. Com o avanço dos estudos literários, diversos teóricos nos

levam a perceber a literatura como recriação da realidade, uma recriação na que se

ultrapassa o verossímil e o necessário e se adentra no imaginário.

No presente trabalho, fruto das reflexões realizadas no Grupo de Estudos do

Imaginário Ficcional, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru, faremos

menção ao controverso conceito de literatura e analisaremos o conto “A morte de D.J.

em Paris” de Roberto Drummond, buscando compreender a dicotômica relação

realidade-ficção presente na obra, a partir de um terceiro elemento: o imaginário

ficcional, conceito apresentado por Wolfgang Iser. A partir desse conceito, apontaremos

Page 605: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1383

as nuances do processo de ficcionalização para desvendar o entrelaçamento realidade-

ficção.

O conto referido dá nome ao livro no qual se encontra. O livro, composto por

dez contos, é a primeira obra do mineiro Roberto Drummond, veio a público em 1971 e

representa um grande sucesso da literatura nacional. Expoente da chamada literatura

pop, Drummond utiliza uma linguagem desprovida de cerimônia e muito próxima do

cotidiano. Suas personagens apresentam o ser humano contemporâneo e seu mundo

fragmentado e paradoxal. Escritos em plena ditadura militar no Brasil, os contos, e “A

morte de D.J. em Paris” muito especialmente, trazem as marcas deste período, bem

como, as alternativas de sobrevivência que precisou-se inventar.

O imaginário ficcional e os atos de fingir

Adentrar-se no mundo da crítica literária supõe, de alguma forma, vê-se

envolvido numa discussão bastante controversa e acalorada, que remonta à própria

fundação da Teoria da Literatura como ciência. Trata-se da complexa definição do

conceito de literatura, suposto objeto de estudo dessa teoria. Silva nos diz que “não é

possível simplesmente pelo conhecimento estrutural de um texto delimitá-lo como

ficcional” (SILVA, 2013, p. 25). Terry Eagleton (2006) chega a dizer que a literatura

pode ser tudo ou nada, uma vez que seu conceito está muito relacionado com um

contexto sócio-histórico-político-cultural em constante transformação. Segundo o autor

“a literatura não pode ser, de fato, definida ‘objetivamente’. A definição de literatura

fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que

é lido” (EAGLETON, 2006, p.12).

Desse modo, todo conceito de literatura é de alguma forma um conceito

provisório. Antônio Soares Amora nos traz algumas características essenciais da obra

literária, que nos parecem bastante pertinentes: o texto literário seria “um conteúdo

intuitivo e individual e uma forma, produto da criatividade expressiva do artista”

(AMORA, 2006, p.53). Segundo Amora, enquanto a forma é concreta e se expressa

através da linguagem, o conteúdo é abstrato, e não consegue ser totalmente expresso,

sempre sobra um fundo indizível no escritor e um conteúdo indefinível no leitor.

Page 606: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1384

A este fundo indizível, abstrato, difuso, informe e fluido como um sonho, que

estaria na gênese e no horizonte final do texto, Wolfgang Iser deu o nome de

imaginário. Devido às características mencionadas, não podemos acessar diretamente o

imaginário, precisamos então da ficção, que através dos chamados atos de fingir

estabelece uma relação dialética entre o imaginário e o real, provoca uma transgressão

de limites, uma reformulação do mundo formulado, tornando a realidade irrealizável e

realizando o imaginário, que, segundo o mesmo autor, nasce de um ato intencional, ou

seja, o imaginário ficcional é um imaginário forjado.

Eagleton afirma que as obras literárias envolvem, diferentemente do sonho, um

trabalho consciente. O próprio sonho, no entanto, segundo Freud, quando contado, se

desloca do plano do inconsciente, uma vez que são utilizadas técnicas para torná-lo

inteligível, passível de representação e aceitável para os ouvintes. Esta, de acordo com

Iser, é a função do processo de ficcionalização: tornar o imaginário (que pode assumir

configurações diversas porque é fluido) apto para o uso, permitir ao texto um sentido,

uma dimensão traduzível.

O conto que passaremos a analisar “A morte de D.J. em Paris” de Roberto

Drummond (2002) está ancorado na dicotomia ficção-realidade. Um professor de

francês transforma o sótão de sua casa numa Paris de papel e de lá começa a mandar

cartas a seus amigos.

E, quando os pombos começaram a voar na Île de St. Louis e a primavera

pulou na capa do Paris Match, você abraçou amigos, anotou as encomendas

de cada um num caderninho de capa azul, fechou a porta de Paris e, de lá

começou a mandar cartas para o Brasil (...) ‘Paris, coeur du monde, 29 de

abril de 1969...’ (DRUMMOND, 2002, p.96).

Suas cartas provocam controvérsias, quando publicadas nos jornais: para alguns

elas são “fruto de imaginação fértil, mas doentia”, para outros contém muita “pieguice”,

há também os que as taxam de “mensagens comprometedoras”. Há momentos em que

nos perdemos na leitura e não conseguimos elucidar se os elementos apresentados são

“reais” ou fictícios, frutos da insanidade da personagem. O imaginário ficcional nos

ajuda a adentrar nesta relação – que na verdade não é dual, mas uma tríade: realidade-

ficção-imaginário. Não podemos deixar de ressaltar que a própria ideia do que seja

“real” é relativa. Segundo Lima da Silva (2013), o real não é algo dado, mas sim algo

construído socialmente.

Page 607: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1385

Embora conto, “A morte de D.J. em Paris” está organizado em atos, como no

texto teatral. Se insinua que a vida, os devaneios, as lutas, e até mesmo a suposta morte

da personagem é apenas uma apresentação dramática. Cada um dos sete atos traz o

depoimento de alguma testemunha do misterioso caso de D.J., ou a leitura do diário do

réu e de suas correspondências apreendidas. Com exceção de Maria Mariana ou

Marimá, nenhuma testemunha tem seu nome revelado, são identificadas pela aparência

física ou pela profissão: homem magro de óculos escuros, um jovem repórter, o homem

rouco, homem meio grisalho, a Mulher Azul.

O interessante é que a única personagem que tem nome não é uma, mas duas:

Maria Mariana, a irmã de D.J. de 49 anos e Marimá, uma jovem de 23. Essa dupla

personalidade cria situações inusitadas, como podemos observar no sexto ato, as duas

estão depondo, e as personalidades vão se intercambiando:

Maria Mariana é quem responde (de Marimá só ficara um cigarro aceso na

mão de Maria Mariana, que olhou muito assustada, sem saber o que fazer

dele) (DRUMMOND, 2002, p. 119).

Por algum motivo, talvez porque as personagens estejam ligadas diretamente ao

conturbado momento político que vive o país, conforme insinua D.J. quando fala em

“nossos tempos clandestinos”(p.109), as identidades não são reveladas. A Mulher Azul

é apelidada de Lu, o que pensamos ser apenas uma referência a “bleue”, azul em

francês. O próprio D. J. é uma incógnita, que nem a morte, nem a formalidade do

tribunal consegue decifrar.

E esse D.J., que não sabemos bem quem seja, é o ponto chave de uma

investigação “o homem magro de óculos escuros conta o que sabe, na sala do tribunal,

sobre um morto, de nome D.J. que está sendo julgado” (p. 87). Aqui já temos uma

quebra no paradigma de realidade: um morto pode ser julgado? Que crimes são esses, os

de D.J, que nunca são revelados?

O que sabemos é que D.J., “le brésilien” é um inconformado com a realidade.

Ele ultrapassa, transcende a mediocridade do cotidiano, rompe com a pobreza de sua

rotina através da imaginação, do sonho. Toma café da manhã se lembrando do leite do

Bairro Latino, em Paris. De caminho até o Colégio Dom Bosco, onde é professor de

francês, com sapatos gastos atravessa um jardim pensando no Jardim de Luxemburgo,

“você via ‘le petit fleuve’ que cortava sua cidade e que não era o Sena, atravessava uma

Page 608: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1386

ponte que não era a Pont Neuf e nem a Pont de l’Alma” (p. 92). Enquanto caminha, D.J.

imagina e ensaia toda a conversa que vai ter com o diretor para pedir aumento, mas não

tem coragem de fazê-lo. D.J. se sente impotente para enfrentar seus “verdadeiros”

conflitos cotidianos.

Até na sala de aula D.J. fantasia, olha nos olhos da aluna Vera Sílvia, perdendo-

se “nuns outros olhos, no limite do Brasil com Paris”. Confessa a seus alunos um dos

nós que traz na garganta: o trauma causado pelo colégio católico interno em que

estudara “chegava a Semana Santa e a gente se sentia culpado pela morte de Jesus

Cristo...” As músicas que embalavam sua vida eram a sirene da escola e o apito do trem

na estação Central do Brasil, que ele ouvia do Bar Flor de Minas, onde todas as noites,

conversava com os amigos sobre as mulheres azuis que havia em Paris:

Lembro que os trens apitavam lá na estação Central do Brasil, eram uns

apitos chorados e roucos e mui tristes, doía como uma faca furando uma

coisa que a gente nem tinha mais (mão ou perna amputada) (DRUMMOND,

2002, p. 88).

D.J. tinha três mistérios: uma cicatriz no supercílio esquerdo, da qual os amigos

ignoravam a origem; a idade que flutuava, ora tinha 45 anos, ora ficava com 29 anos;

era solteiro por amor. D.J. esperava pela Mulher Azul: “é preciso estar em estado de

graça para ver uma ‘femme bleue’” (p.89).

A partir do que já elencamos do conto, e buscando uma chave de interpretação

para o mesmo, nos deparamos com os atos de fingir – que representam a transgressão de

limites. O primeiro deles, a seleção, diz respeito, segundo Iser, ao mecanismo, através

do qual, são escolhidos elementos da realidade e desvinculados de sua estruturação

semântica. Assim, através da seleção podemos conhecer a suposta intencionalidade da

obra que não se manifesta na consciência do autor, mas sim na decomposição dos

campos de referência do texto.

No nosso caso temos: um drama composto por sete atos, pessoas que não podem

ter seus nomes identificados, correspondências apreendidas, um homem que sonha com

outras paisagens para suportar sua tediosa rotina e esquecer suas cicatrizes misteriosas e

a dor causada por uma ausência presente (mão ou perna amputada). Por que o espaço

Paris? Por que o nome D.J.? Como entender que a irmã de D.J. fazia sonhos e os

adoçava com açúcar para o café da manhã? Por que “tempos clandestinos”? Por que o

Page 609: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1387

Brasil é um nó na garganta? De acordo com Iser “A linguagem em questão deve

transgredir sua função designativa, para manifestar, pelo uso figurativo, a

intraduzibilidade de sua referencialidade” (in LIMA, 2002, p.968).

Outra transgressão de limites é representada pela combinação, ato de fingir no

qual os elementos selecionados são combinados, gerando relacionamentos intratextuais,

esses relacionamentos podem ser mais ou menos plausíveis. No conto analisado, por

exemplo, D.J. fala de um limite entre o Brasil e Paris, sonha com uma mulher azul que

mora em Paris, que fala com uma voz de frevo tocando, e que faz limonada para curá-lo

da febre de primavera. A figura da mulher azul, chamada Lu, nasce de uma combinação

de elementos contraditórios: ela mora em Paris, mas tem o corpo queimado pelo sol do

Rio de Janeiro, e agarra o salto do sapato nos passeios de Belo Horizonte, é azul, mas

trabalha como babá na Rua de L’Etoile – Rua da Estrela.

Outro processo interessante de combinação é o que observamos na personagem

Maria Mariana ou Marimá, a irmã de D.J. Ela é duas mulheres ao mesmo tempo. Como

Maria Mariana é uma beata de 49 anos, com roupas longas e uns “olhos esquecidos de

que eram verdes olhando para a ponta dos sapatos.” Como Marimá, uma jovem com 23

anos, de minissaia, fumando, “e seus olhos sabiam que eram verdes e nunca fugiam dos

outros olhos.”

Segundo Iser, “a força, o poder de qualquer texto (...) está naqueles momentos

que excedem nossa capacidade de categorizar, que conflitam com nossos códigos

interpretativos, mas que apesar disso parecem corretos” (in LIMA, 2002, p.966).

Como se: o mundo posto entre parêntese

Levado pelo devaneio de ir a Paris, D.J. transforma o sótão de sua casa numa

Paris imaginária, colando fotos de revistas, depois se despede dos amigos, fecha a porta

e de lá começa a escrever cartas para o Brasil: “Aqui estou, Antoine: depois de adiar

minha vinda nem lembro quantos anos, aqui estou, em Paris” (DRUMMOND, 2002,

p.96). Quando chega à Paris, D.J. rejuvenesce e perde inclusive a cicatriz “descobriu

que estava com trinta anos, porque foi aos 31 que aconteceu o que D.J. nem de lembrar

gostava e ele ficou um homem marcado”(p.97). Agora D.J. tem outra música, não mais

Page 610: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1388

a sirene e o apito do trem, agora canta a “Marselhesa”, hino nacional da França, símbolo

da Revolução Francesa. A obrigação e a rotina dão lugar à liberdade.

D.J. sai por Paris, caminha pelo Quartier Latin, passa pela Sorbonne e pelo Rio

Sena, à procura de sua “Femme Bleue”. Na Île de St. Louis, imagina uma conversa com

ela, que é interrompida por uma voz que chega do Brasil: “então uma voz de mulher,

cantando desentoada e infeliz, chegava à Paris de D.J., mesmo na Île de St. Louis aquela

voz chegava” (p.100). Era Maria Mariana ou Marimá, a irmã solteirona de D.J.

cantando o ofício da Imaculada Conceição. Sua irmã era uma típica beata, que se

escondia em roupas compridas e olhava a vida pela janela, de atraente só tinha os olhos

verdes. D.J. lhe prometera rezar algumas orações quando estivesse em Paris, em troca

de seu silêncio e de sua ajuda – Maria Mariana era funcionária dos Correios e

Telégrafos.

Ela até pensava em ir ver seu louco irmão, mas como iria penetrar naquela

Capital do Pecado? Para afastar a tentação lia livros religiosos: “Mas sei que o mundo e

seu barulho, já mais que um sonho me são...” (p.102). É exatamente o que o mundo é

pra D.J. agora e para a própria Maria Mariana, que de repente virava Marimá, uma

jovem de minissaia, e voava pra Paris ao encontro de D.J. Em Paris, recebia serenatas

de um barbudo que pulava sua janela.

Amora (2006) nos diz que o artista ao apresentar a realidade, não faz desta uma

cópia fotográfica – como queria a mímesis de Aristóteles– senão que a deforma

tendenciosamente, é o que vamos entender com o terceiro ato de fingir: o desnudamento

da ficcionalidade. Segundo Ricoeur (apud COMPAGNON, 2003, p. 127), “o artesão das

palavras não produz coisas, apenas quase-coisas, inventa o como-se”. De acordo com

Pereira, “é por causa do desnudamento que o texto ficcional posiciona o leitor em

suspensão entre o mundo real e o mundo representado, criando entre eles o contraste,

induzindo ao ‘como se’” (PEREIRA, 2013, p. 170).

Através do como se, a realidade repetida se transforma em signo de outra coisa.

O “mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado não

é o mundo dado, mas deve ser apenas entendido como se o fosse” (ISER in LIMA,

2002, p.973). Segundo Iser, a função do como se é causar reações sobre o mundo.

Assim, quando em nosso conto encontramos o desejo de D.J. de fugir para Paris, não é

da cidade Paris, capital da França, que estamos falando, mas de um lugar onde a

Page 611: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1389

personagem pode encontrar a liberdade, o amor, a juventude, pode esquecer os traumas

vividos no Brasil, ainda que esse lugar se configure, no conto, como uma fuga da

realidade, uma farsa “Paris, Paris é ilusão D.J., um pedaço de papel colorido, puro

pedaço de papel...” (DRUMMOND, 2002, p.93).

Paris não é Paris, é como se fosse. Paris é o lugar onde D.J. deixa de ser um

homem marcado, se torna alguém autônomo, decidido, e até dá conselhos aos amigos, o

que se torna uma ironia, D.J. encarcerado numa Paris de papel, escreve a um amigo, no

quarto ato: ”o importante, Geraldo, é isso: fazer o que a gente quer. Não fique mais

sentado deixando a vida andar”(p.106). Em Paris, D.J. se liberta, descobre os pequenos

prazeres da vida, derruba a cerca de arame farpado que o prendeu no internato e pro

resto da vida: “Pulei a cerca, Gilu: Paris me libertou. E quero declarar solenemente, que

não fui eu quem matou Jesus Cristo e não tenho nenhuma culpa se Madalena quis ser

Madalena” ( DRUMMOND, 2002, p. 107).

Em Paris, D.J. encontra a Mulher Azul e os dois podem andar a pé pelas ruas,

sem pressa, podem passar a tarde toda no quarto do Hotel St. Michel. Na Capital da

Liberdade, D.J. pode também dizer o que quer, até mesmo xingar seus oponentes num

idioma que eles não entendem (cf. p.118).

Em Paris, Maria Mariana, transformada em Marimá, pode romper com uma

religiosidade condenatória, soltar-se das mãos dos confessores e ser livre para mostrar

seu corpo, redescobrir seus olhos verdes, pode amar sem remorsos nem culpa. Pode

entender que “Jesus é alegria”. E o Brasil? “Brasil é um nó na garganta”. Um lugar no

qual nestes “nossos tempos clandestinos”, para se amar “dois amantes têm que se

esconder como mortos, fingir de mortos!...” (p. 109).

Nas palavras de Iser, “o mundo do texto, sob o signo do como se não mais pode

se designar a si mesmo, mas sim remeter ao que não é” (in LIMA, 2002, p.977). É o que

Roland Barthes afirma ao tratar do prazer do texto: “Ele (o texto) produz em mim o

melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se lendo-o sou arrastado a

levantar muitas vezes a cabeça a ouvir outra coisa” (BARTHES, 1987, p.35).

A irmã de D.J. – Maria Mariana e não Marimá – tenta “salvá-lo” daquele

“delírio”, ou obrigá-lo a aceitar e compartilhar com ela de uma realidade que a fazia

infeliz.

Page 612: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1390

Não tem Lu, D.J., não tem Paris: é tudo sonho, tentação, pecado; é invenção,

D.J., não existem mulheres azuis!... Se você continuar nesta Paris de papel,

D.J., é a morte: ainda há tempo para você se salvar (DRUMMOND, 2OO2,

p.124).

Parece que D.J. não quis “salvar-se”: “morrer, Lu, é uma forma de viver”.

Drummond nos faz entender que algo passou ali naquele quarto, de modo que D.J.

morreu ou desapareceu. A própria Lu afirma em depoimento no sétimo ato: “Agora

você me pergunta se D.J. está morto; respondo: alguns hão de querer que D.J. esteja

vivo, outros não” (p.126). E o conto termina e nos deixa a perguntar: afinal, qual foi o

crime de D.J.? O crime de não sucumbir à realidade, mas inventar um lugar onde

pudesse viver? O crime de acreditar no que todos diziam inexistir? O crime de fazer de

sua história um como se?

Todo esse processo desencadeado pelos atos de fingir vai forjando, criando,

fazendo possível o imaginário ficcional, “a própria língua é transgredida e enganada,

para que, no engano da língua, o imaginário, como causa possibilitadora do texto, se

torne presente” (ISER in LIMA, 2002, p.984). E podemos dizer que esse imaginário

está tanto na gênese como no final do texto literário, se levarmos em consideração a

recepção desse mesmo texto pelo leitor. Iser nos diz que na recepção – de modo diverso

da interpretação, que apenas semantiza o imaginário – “se trata de produzir, na

consciência do receptor, o objeto imaginário do texto, a partir de certas indicações

estruturais e funcionais. Por esse caminho chega-se à experiência do texto” (in LIMA,

2002, p. 950). Paris pode ser a referência a um dos destinos mais comuns dos brasileiros

que se exilavam, fugindo da repressão do regime militar, como também, se levamos em

conta a relação entre os nomes D.J.- Lu, Paris pode ser um déjà vu de alguém.

De todo modo, em contato com o misto de realidade e ilusão no mundo

inventado por D.J., o leitor pode experimentar o desejo de também pular o muro,

romper as cercas que o mantém preso a uma rotina enfadonha e medíocre, e habitar

outros espaços, criar sua Paris. Eagleton nos afirma que “a ‘literatura’ pode ser tanto

uma questão daquilo que as pessoas fazem com a escrita como daquilo que a escrita faz

com as pessoas” (EAGLETON, 2006, p. 10).

Considerações (in)conclusivas

Page 613: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1391

De acordo com Barthes, o texto de fruição é

aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um

certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor,

a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar

em crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1987, p. 22).

Portanto, não podemos dizer que a literatura sempre provoque prazer, às vezes

nos causa perplexidade, estranhamento, desconforto. É exatamente o que nos pode

ocorrer em face do conto de Roberto Drummond. D. J. e sua Paris de papel nos faz

questionar alguns conceitos, por em dúvida nossa noção de realidade, imaginação,

liberdade, felicidade, lucidez e sandice.

Ao fazê-lo, no entanto, nos leva além do leitor comum, nos instiga a explorar

esse mundo fascinante do imaginário e a desvendar os caminhos pelos quais ele foi

sendo forjado: os atos de fingir. Quando o imaginário presente no texto, o fundo

indizível, deixa em nosso imaginário pessoal um conteúdo indefinível, podemos dizer

que a obra literária atingiu sua completude.

Referências

AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. 13ªed. São Paulo: Cultrix,

2006.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo

Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.

DRUMMOND, Roberto. A morte de D.J. em Paris. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 6ªed. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos

chave da época in LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura e suas fontes. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

_________. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional in LIMA, Luiz Costa

(org.). Teoria da literatura e suas fontes. V. 02, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2002, pp. 955-987.

Page 614: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1392

LIMA DA SILVA, Carla Araújo. Mímesis e representação em O visconde partido ao

meio in FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L. Ramalho de

Farias, Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa Comunicação, 2013.

PEREIRA, Kleyton R. Wanderley. Mímesis e reescritura em Fradique Mendes in

FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L. Ramalho de Farias,

Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa Comunicação, 2013.

SILVA, Frederico José Machado da. Sobre o mundo da Ficção: fonteiras, definições e

inconsistências in FARIAS, Sônia L. Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L.

Ramalho de Farias, Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa

Comunicação, 2013.

Page 615: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1393

O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES

LINGUÍSTICAS NOS LIVROS DIDÁTICOS DE

PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS

FINAIS) APROVADOS PELO PNLD-2014 [Voltar para Sumário]

Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)

Introdução

No contexto educacional contemporâneo, o livro didático é uma ferramenta

inegavelmente presente na grande maioria das salas de aula brasileiras. Sua utilização, a

cada ano, por dezenas de milhões de alunos das escolas públicas do país não pode ser

considerada algo irrelevante.

Diante dessa realidade, acreditamos ser importante lançar um olhar sobre os

livros didáticos de língua portuguesa do Ensino Fundamental (anos finais) utilizados nas

escolas brasileiras, mais especificamente, no que diz respeito ao trabalho com as

variedades linguísticas. Acreditamos ainda que o livro didático de português deve ser

um instrumento capaz de promover a reflexão sobre os múltiplos aspectos da realidade

linguística e estimular a capacidade investigativa do aluno para que ele assuma a

condição de usuário competente da língua vernácula, bem como conheça as variedades

linguísticas e os valores sociais nelas implicados.

A partir desse aspecto específico dessa ferramenta pedagógica, indagamos: o

livro didático de português do Ensino Fundamental (anos finais), aprovado pelo PNLD-

2014, constitui-se realmente como um importante mediador entre o aluno e as

variedades linguísticas na escola ou perpetua um ensino tradicional de língua materna,

obscurecendo o caráter fugidio, dinâmico, heterogêneo, sociocultural do português

brasileiro?

Diante dessa curiosidade central que instiga a nossa pesquisa, procuramos

verificar como se processa a abordagem das variedades linguísticas nos livros didáticos

Page 616: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1394

de português indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD – 2014) para

o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental – anos finais, mais

especificamente a partir das atividades elencadasno livro didático de português

destinado ao 6º ano escolar.

Nesta pesquisa, de natureza bibliográfica, selecionamos, como recorte para

constituir o nosso corpus, livros didáticos do Ensino Fundamental (anos finais),

especificamente do volume I, que integram as coleções didáticas aprovadas pelo

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD -2014). Tendo em vista o exíguo espaço

deste artigo nos deteremos à análise apenas do exemplar de umas dessas coleções.

Sociolinguística: um novo marco teórico-metodológico nos estudos da linguagem

Linguagem e sociedade estão, indiscutivelmente, ligadas entre si por laços

indissolúveis. Isso porque todos nós temos uma linguagem e fazemos parte de uma

sociedade. Ninguém pode negar essa indissolubilidade que há entre a linguagem e a

sociedade.

Segundo Alkmim (2007), ao discorrer sobre a visão benvenistiana a respeito da

relação entre língua e sociedade, explica que na concepção de Benveniste, linguista

francês, língua e sociedade não podem ser concebidas uma sem a outra. Pois é no seio

da, e pela língua, que o indivíduo e a sociedade se definem reciprocamente, tendo em

vista que tanto um quanto outro só adquirem existência pela língua. Ainda, de acordo

com a autora, para Benveniste, sociedade e língua são grandezas de ordens distintas, que

têm organizações estruturais diversas: a língua se organiza em unidades distintas, que

são em números finitos, combináveis e hierarquizadas; o que não se observa na

organização social.

Alkmim (2007, p. 21), a partir dessa constatação que, a priori, pode nos

parecer óbvia e simples, mas concomitantemente complexa, nos lança questionamentos

desafiadores: “Por que se fala, então, em Sociolinguística? Ou melhor, por que existe

uma área, dentro da Linguística, para tratar, especificamente, das relações entre

linguagem e sociedade – a Sociolinguística? A linguagem não seria, essencialmente, um

fenômeno de natureza social?”

Não são perguntas com fáceis respostas, isso porque “dizer que a

Sociolinguística trata da relação entre língua e sociedade é fazer uma afirmação correta,

Page 617: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1395

mas, ao mesmo tempo, excessivamente simplificadora”, adverte CAMACHO (2007, p.

49).

Neste tópico, nos deteremos a conhecer um pouco a história da Sociolinguística

e, após esse breve histórico da disciplina, falaremos também um pouco sobre o seu

objeto de estudo. Essa disciplina científica se situa no paradigma linguístico

representado pelo modelo teórico funcionalista. Contrariamente aos princípios do

Estruturalismo de Ferdinand de Saussure e do Gerativismo de Noam Chomsky que

concebem a língua como realidade abstrata, independente de fatores extralinguísticos,

nasce na década de 60, nos Estados Unidos, a Sociolinguística. Como veremos, a

Sociolinguística, estreada na década de 60, procurava desenvolver uma nova concepção

de estudo da Linguística. A Sociolinguística, diferente das teorias linguísticas vigentes

da época, para as quais a língua seria um sistema homogêneo, unitário, propõe uma

visão de língua como um sistema heterogêneo e plural.

As primeiras investigações a respeito dos estudos sociolinguísticos se

preocuparam, refutando as abordagens saussuriana e chomskiana de língua, em

incorporar os aspectos sociais nas descrições linguísticas. A contribuição maior para

fortalecer os estudos relacionando língua e sociedade surgiu num congresso organizado

por William Bright, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), no ano de

1964. Nesse evento, pela primeira vez, estudiosos como John Gumperz, EinarHaugen,

William Labov, Dell Hymes e John Fisher e José Pedro Rona passaram a compor a mais

recente área da Linguística: a Sociolinguística. A publicação, organizada e publicada

por Bright, em 1966, dos trabalhos apresentados no referido congresso com o título

de Sociolinguistcs, trouxe como texto propedêutico “As dimensões da sociolinguística”

no qual Brigth define os pressupostos da nova vertente dos estudos linguísticos

(ALKMIM, 2007).

Bright alegava que a diversidade linguística é precisamente a matéria de que

trata a Sociolinguística, ou seja, seu objeto de estudo. Segundo esse teórico, as

dimensões desse estudo estão condicionadas a vários fatores sociais, com os quais a

diversidade linguística se encontra relacionada nas identidades sociais dos interlocutores

e na situação comunicativa. Essa nova área de estudo linguístico, denominada

sociolinguística, surge confusa e carente do domínio de um marco teórico. A esse fato,

Monteiro assim se pronuncia:

Page 618: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1396

As primeiras intenções de se delimitar o campo da sociolinguística foram

infrutíferas, pois nem mesmo Bright (1966) e Fishman (1972), que foram os

pioneiros, conseguiram defini-la com precisão. A nova disciplina surgiu

então meio confusa, desprovida de um rigoroso marco teórico, além de sofrer

a desconfiança dos linguistas que já pertenciam a alguma escola.

(MONTEIRO, 2008, p. 15)

Labov, dando prosseguimento aos estudos de Bright, reafirma uma nova

perspectiva, mostrando que o ponto de vista não seria mais o do estruturalismo. Nem

seria o de Chomsky, que não considera as questões sociais como elemento necessário à

sua proposta de estudo. Mas, um que considera a língua em seu contexto social. Labov

passa a descrever a heterogeneidade linguística, pois na concepção laboviana, todo fato

linguístico relaciona-se a um fato social, e que a língua sofre implicações de ordem

fisiológica e psicológica. Devido à natureza de seus estudos, Labov ficou conhecido por

ser o representante da Teoria da Variação Linguística.

Labov apresenta, então, uma metodologia, tendo como objeto de estudo a fala,

observando seu contexto e indicando ser possível sistematizar o aparente caos

linguístico. Para a Teoria da Variação Linguística, a língua é heterogênea, de caráter

social e de variabilidade submetida, sendo a heterogeneidade algo inerente a ela. Porém,

ao contrário do que afirmaram estudos baseados no estruturalismo, para os

sociolinguistas a heterogeneidade da língua é passível de ser sistematizada pelo fato de

existirem fatores linguísticos e sociais que condicionam e que favorecem a escolha de

uma das formas variantes encontradas nas comunidades de fala.

Um dos pilares dessa nova proposta foi a negação da homogeneidade como

condição necessária para o funcionamento da língua e a necessidade de considerar os

fatores sociais no seu processo de estruturação, ou seja, o sistema de funcionamento da

língua não poderia ser analisado sem o recurso às condições sociais em que a atividade

linguística se atualiza. Tais questões foram excluídas dos estudos saussurianos e

gerativistas que, como já havíamos mencionado, veem a possibilidade de estudo

sistemático apenas tendo a língua como abstração, não sendo necessária para o estudo a

coleta de dados por meio da fala de vários indivíduos.

Mas a Sociolinguística é uma área da Linguística que estudará a língua através

de que perspectiva? Elegendo que objeto, conceitos e pressupostos? Ao consultar os

teóricos encontraremos várias acepções, a partir de seu objeto de estudo, de

Sociolinguística, como “podemos dizer que o objeto da Sociolinguística é o estudo da

Page 619: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1397

língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é, em

situações reais de uso” (ALKMIM,2007, p. 31); “a sociolinguística tem por objeto de

estudo os padrões de comportamento linguístico observáveis dentro de uma comunidade

de fala e os formaliza analiticamente através de um sistema heterogêneo” (LUCCHESI,

2004, p. 66); “a Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística e estuda a língua em

uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação

que correlaciona aspectos linguísticos e sociais” (MOLLICA, 2007, p. 9); “para a

sociolinguística é exatamente este o objeto de estudo: a variação, princípio geral e

universal” (SILVA, 2009, p. 20).

Diante desse elenco de conceitos, verificamos que, levando-se em conta a

natureza social da linguagem, a Sociolinguística se interessa pelas variedades

linguísticas, as comunidades linguísticas, as funções da linguagem na sociedade, a

mudança linguística e a interação social. Na perspectiva sociolinguística, a língua é

considerada como um conjunto de variedades, de níveis de expressão, atestando que

nenhuma língua é inteiramente homogênea. Cada falante é, ao mesmo tempo, usuário e

agente modificador de sua língua, nela imprimindo marcas geradas pelas novas

situações com que se depara.Para Bagno:

O objetivo central da Sociolinguística, como disciplina científica, é

precisamente relacionar a heterogeneidade linguística com a heterogeneidade

social. Língua e sociedade estão indissoluvelmente entrelaçadas,

entremeadas, uma influenciando a outra, uma constituindo a outra. Para o

sociolinguista, é impossível estudar a língua sem estudar, ao mesmo tempo, a

sociedade em que essa língua é falada. (BAGNO, 2009, p. 38).

Assim sendo, Bagno quer dizer que o ponto de partida vai ser sempre a

comunidade linguística, onde podem ser encontrados os diversos tipos de falares e

consequentemente o fenômeno das variações linguísticas. Fica evidente que a língua é

um conjunto de variedades. Logo, é intrinsecamente heterogênea, múltipla, instável,

mutante e, inevitavelmente, está em constante processo de transformação e

reconstrução. Ela é uma atividade social infindável empreendida por todos os seus

falantes. Não nos esqueçamos e nem recusemos o fato de que as línguas apresentam

variação linguística em qualquer tempo e em qualquer sociedade e essa variação jamais

é aleatória e caótica, mas sim ocorre de forma estruturada, organizada e condicionada

Page 620: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1398

por vários fatores. Afirmar que a língua não é heterogênea e mutante é absurdamente

almejar mumificá-la e fossilizá-la.

A variação linguística

O Brasil, um país geograficamente continental, tem como idioma oficial o

português, mas convivemos com mais de uma língua. Essa constatação se comprova

pelo fato de sermos um país plurilíngue, basta lembrar que em nosso território (e

deveria ser bem mais, se não fossem as barbaridades desenfreadas cometidas pela

colonização europeia) existem aproximadamente 180 línguas indígenas. Sem contar as

comunidades bilíngues (português/alemão, português/italiano, português/japonês, por

exemplo) existentes principalmente na região Sul do país, as quais dominam o

português e o idioma do seu país de origem.

Ampliando a ilustração desse exemplo, pensemos nos oito países que falam

português: Brasil (América do Sul), Portugal (Europa), Cabo Verde, Guiné-Bissau, São

Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique (África) e Timor Leste (Oceania). Então,

imagine como uma língua geograficamente intercontinental, primeiro indício de

heterogeneidade, não tolerar variações? Certamente encontramos um sem-número de

variantes que podem ser explicadas com base na localização geográfica dos falantes e

em aspectos sociais, tais como escolaridade do falante e formalidade ou informalidade

da situação de fala. Diante disso, não restam dúvidas de que a língua é um sistema

intrinsecamente variável.

De um modo geral, podemos descrever as variedades linguísticas a partir de

dois eixos essenciais: a variação diatópica (também denominada de variação geográfica)

e a variação diastrática (chamada de variação social). O primeiro tipo de variação está

relacionado às variantes regionais de uso da língua, podendo ser observada entre

falantes de origens geográficas distintas, como por exemplo, as grandes regiões, os

estados, as zonas rural e urbana. A língua além de variar geograficamente, varia de

acordo com o contexto social onde o falante está inserido, podendo ser verificada na

comparação entre os modos de falar das diferentes classes sociais, temos então a

variação diastrática. Esse contexto de natureza social é um conjunto de uma série de

Page 621: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1399

situações específicas: a) origem geográfica; b) status socioeconômico; c) grau de

escolarização; d) idade; e) sexo; f) mercado de trabalho; g) redes sociais.

Conforme observamos, a partir da Sociolinguística, desmistificou-se a ideia da

língua homogênea e de que a heterogeneidade era impossível de ser sistematizada. A

Sociolinguística existe justamente porque “se cada grupo apresentasse comportamento

linguístico idêntico não haveria razão para se ter um olhar sociolinguístico da

sociedade” (MOLLICA 2007, p. 10). A Sociolinguística, na contemporaneidade dos

estudos dos fenômenos linguísticos, multiplica suas abordagens com a incumbência de

investigar a estabilidade e a mutabilidade da variação e oferecer valiosa contribuição no

sentido de destruir preconceitos linguísticos.

Em suma, a Sociolinguística, considerando a contraparte social da linguagem,

oferece o caminho para o tratamento adequado da heterogeneidade linguística na escola.

Para essa ciência, a variação e a mudança linguísticas são processos naturais e têm

motivações várias.

O contínuo de urbanização

Antes de apresentarmos a análise do tratamento dado às variedades linguísticas

no LDP, é interessante fazermos uma pausa para explicarmos que a

sociolinguistaBortoni-Ricardo (2004) aconselha que para se conhecer a diversidade do

português brasileiro, se tome por base três contínuos: o contínuo de urbanização, o

contínuo de oralidade-letramento e o contínuo de monitoração estilística. A autora

explica que essa proposta evita a clássica e tradicional criação de fronteiras rígidas entre

língua-padrão, dialetos, variedades não-padrão, etc que compõem o português

brasileiro. Dessa forma, a autora mostra-nos que o português brasileiro não é uno, mas

sim é uma entidade que apresenta heterogeneidade linguística. Portanto, cada um desses

contínuos oferece uma rica possibilidade de reconhecimento das características das

variedades linguísticas, desde as menos as mais prestigiadas. Para o nosso estudo, vai

nos interessar, especificamente, o contínuo de urbanização. Sobre o contínuo de

urbanização, Bortoni-Ricardo explica que

Em um dos polos do contínuo [de urbanização], estão as variedades rurais

usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No polo oposto,

estão as variedades urbanas que receberam a maior influência dos processos

de padronização da língua [...]. No espaço entre eles fica a zona rurbana. Os

Page 622: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1400

grupos rurbanos são formados pelos migrantes de origem rural que preservam

muito de seus antecedentes culturais, principalmente no seu repertório

linguístico, e as comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos

semi-rurais, que são submetidas à influência urbana, seja pela mídia, seja pela

absorção de tecnologia agropecuária. (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 52).

O contínuo de urbanização é representado por Bortoni-Ricardo (2004, p. 52)

assim:

variedades área variedades

rurais isoladas rurbanaurbanas

padronizadas

A autora expõe, ainda, em sua análise, dois traços para os falares: os

descontínuos e os graduais. O primeiro refere-se a palavras utilizadas no polo rural, que

vão se apagando na proximidade do polo urbano. São traços com distribuição

descontínua justamente por terem seu uso descontinuado em áreas urbanas. Enquanto

que o segundo traço, o gradual, encontra-se presente na fala de todos os brasileiros,

distribui-se gradualmente ao longo de todo o contínuo, contrário dos descontínuos.

Análise do corpus: o tratamento dado às variedades linguísticas nos LDP

Coleção Projeto Teláris – Português

Para tratar da variedade linguística, a partir do aspecto regional, é apresentada,

na p. 32, como texto motivador, a canção Cuitelinho,de autoria desconhecida, que é da

tradição popular brasileira.Acerca dessa canção, as autoras propõem cinco questões.

Essa atividade comete alguns equívocos ao tratar da variedade regional. A

questão 1 revela uma inadequação metodológica. Não há dúvidas de que a canção

Cuitelinho apresenta variedades linguísticas. No entanto, essa questão, ao propor a

alteração da linguagem informal para a formal, desconsidera a natureza textual, pois

descaracteriza o gênero textual canção popular de tradição brasileira.

Outro equívoco da questão é de inconsistência teórico-metodológica visto que as

próprias autoras do LDP, ao falarem sobre o emprego da linguagem formal e informal,

afirmam que, na página que antecede a atividade, “a escolha para empregar a

linguagem formal ou a informal depende da situação em que o falante estiver

envolvido, de suas intenções e das pessoas a quem estiver se dirigindo” [grifo das

Page 623: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1401

autoras] e, logo após, solicitam ao aluno que “leia a letra da música, fazendo as

alterações para tornar a linguagem mais próxima da linguagem formal”. Se a canção

popular, na qual se enquadra a canção Cuitelinho, não é um gênero de natureza

científica, por exemplo, por que então solicitar uma atividade que não respeita as

peculiaridades desse tipo de gênero textual? Acreditamos ser mais interessante e exitoso

optar por outra estratégia metodológica, pois “se a intenção é incentivar o aluno a

reescrever, fazendo a transposição da linguagem informal para a formal, é necessário

propiciar uma situação comunicativa em que o emprego da linguagem formal seja

exigido” (DIONISIO, 2005, p. 86). Ao propiciar uma situação comunicativa autêntica

para propor atividades de reescritura ou alteração pela via oral, vai permitir ao aluno

refletir sobre as adequações linguísticas à situação sócio-comunicativa, ou seja, fazer

com que o aluno aprenda por meio da reflexão (DIONISIO, 2005).

Na questão 2, além de cometer a inconsistência teórico-metodológica comentada

acima, as autoras do LDP praticam outra forma equivocada de se tratar as variedades

linguísticas, uma vez que, segundo a resposta que se dá a essa questão,

na fala regional, a forma de dizer algumas palavras é diferente em relação à

linguagem formal escrita, como em espaia e espalha, ou em bera e beira; a

letra s, que indica plural, é suprimida dos nomes e os verbos ficam no

singular” [grifo nosso].

Essa questão propõe mostrar as diferenças entre a variedade regional e a

linguagem formal escrita. No entanto, os exemplos retirados da canção não se

configuram como uma ocorrência exclusiva da “fala regional”. Além de negligenciar

como se dá o processo de ocorrência da concordância não-redundante, desperdiça-se a

oportunidade de levar o aluno a aprofundar sua conscientização sobre a variação

linguística.

Bortoni-Ricardo (2004, p. 61) explica que “as regras fonológicas que

caracterizam o português brasileiro podem ser classificadas como descontínuas ou

graduais.” Esses traços descontínuos e graduais ilustram os diferentes usos linguísticos

presentes no contínuo de urbanização. Os traços descontínuos são aqueles que são

próprios dos falantes situados no polo rural e vão desaparecendo à proporção que vão se

aproximando do polo urbano, por isso são descontínuos, pois sua ocorrência é

Page 624: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1402

descontinuada nas áreas urbanas. Já os traços graduais são aqueles que estão presentes

na fala de todos os brasileiros, ou seja, estão distribuídos ao longo de todo o contínuo de

urbanização. Geralmente as comunidades urbanas conferem aos traços descontínuos

maior carga de avaliação negativa.

O vocábulo “espalha” sofre interferência descontínua, tendo em vista a

semivocalização do /lh/, ou seja, de “espalha” para “espaia” e, portanto, é privativo da

fala regional. No entanto, o vocábulo “beira” sofre a interferência de traço fonológico

gradual, qual seja, a monotongação do ditongo crescente ei, ou seja, de “beira” para

“bera” e, portanto, não é privativo da fala regional, pois a respeito dos traços graduais,

Bortoni-Ricardo (2005, p. 56) afirma, de forma clara, que “eles funcionam como

indicadores de variedades sociais, diastráticas, mas também como marcadores de

registro entre falantes na língua culta, ocorrendo com maior frequência nos registros

não-monitorados”. Há uma incoerência a respeito desse item pelas próprias autoras, pois

na resposta à questão 2, afirmam que o vocábulo “bera” é peculiar da fala regional, mas

ao enunciar a questão 5, escrevem

na letra de ‘Cuitelinho’, em vez de beira apareceu bera. O desaparecimento

do i na pronúncia do grupo ei é muito comum não apenas na região onde a

música foi encontrada, mas também em nosso falar cotidiano. Fale cinco

palavras que têm o grupo de vogais ei e que você pronuncia como se tivesse

apenas o /e/.

Portanto, há uma flutuação argumentativa, pois ora as autoras do LDP afirmam

que a forma “bera” é de ocorrência exclusiva na fala regional, ora afirmam que essa

forma é também de ocorrência no português brasileiro.

Ainda sob o mesmo ponto de vista de Bortoni-Ricardo, é enquadrada a

interferência de regras que alteram ou suprimem morfemas flexionais, implicando

modificação nas regras de concordância na variedade de prestígio. Ao se limitar em

responder, de forma simplista, que “a letra s, que indica plural, é suprimida dos nomes e

os verbos ficam no singular”, as autoras do LDP em análise negligenciam o fato de que

há, no português brasileiro, uma tendência a não se fazer a concordância nominal, ou

seja, a concordância dos determinantes com o núcleo do sintagma nominal no plural. É

o que comprova Bortoni-Ricardo (2004, p. 89) ao afirmar que “em estilos não-

monitorados, tendemos a usar uma regra geral de concordância não-redundante, isto é,

Page 625: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1403

em vez de flexionarmos todos os elementos flexionáveis do sintagma, flexionamos

apenas o primeiro”. É o que acontece em alguns sintagmas nominais da canção em

estudo, como “as onda se espaia”, “as garça dá meia-volta”, “terras paraguaia”, “fortes

bataia”, “os oio se enche d’água”.

Bortoni-Ricardo ainda ressalta que não devemos cometer o erro de pensar que

esse tipo de regra só ocorra no polo rural/ rurbano do contínuo de urbanização, pelo

contrário, sua ocorrência também se dá ao longo de todo o contínuo, ou seja, ocorre

tanto nos estilos não-monitorados, como pode até mesmo alcançar os estilos

monitorados. Também, segundo Bortoni-Ricardo, os nossos alunos certamente vão usar

a regra da concordância não-redundante, por estar tão generalizada na língua, em suas

produções escritas. Por isso, devemos ficar muito atentos, ao trabalhar esse tipo de

variação, pois segundo a autora

1) no português brasileiro, tendemos a flexionar o primeiro elemento do

sintagma nominal plural e a não marcar os demais. Esta é uma tendência que

se explica porque geralmente dispensamos elementos redundantes na

comunicação e as diversas marcas de plural no sintagma nominal plural são

redundantes. Ao escrever sintagmas nominais plurais, seu aluno vai tender a

flexionar somente o primeiro elemento, que pode ser um artigo, um pronome

possessivo, demonstrativo etc. Exemplos: ‘os amigo’; ‘meus brinquedo’;

‘aqueles homi’; ‘os meus tio’. 2) Quanto mais diferente for a forma do plural

de um nome ou pronome da sua forma singular, mais tendemos a usar a

marca de plural naquele nome ou pronome. Quando a forma de plural é

apenas um acréscimo de um /s/ tendemos a não empregá-la. (BORTONI-

RICARDO, 2004, p. 89).

Portanto, a regra da concordância não-redundante, comentada acima, a qual se

encontra no repertório de praticamente todos os brasileiros, independentemente de seus

antecedentes geográficos, requer muito de nossa atenção em sala de aula, isto “porque é

preciso que os alunos que usam a variante sem redundância na linguagem oral,

espontânea, aprendam a se monitorar para usar a variante com plurais redundantes nos

estilos monitorados e na linguagem escrita” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 60).

Considerações finais

A análise de que maneira as variedades linguísticas são tratadas, a partir das

atividades, especificamente no livro didático de português destinado ao 6º ano escolar,

contribuiu significativamente para que se pudesse saber se o livros didático de

Page 626: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1404

português do Ensino Fundamental (anos finais), aprovado pelo PNLD-2014, constitui-se

realmente como um importante mediador entre o aluno e as variedades linguísticas na

escola ou perpetua um ensino tradicional de língua materna, obscurecendo o caráter

fugidio, dinâmico, heterogêneo, sociocultural do português brasileiro. A partir do

exemplar analisado, percebeu-se que, apesar da tentativa dos autores de adequá-lo à

concepção sociointeracionista de linguagem, particularmente aos avanços

sociolinguísticos, ainda não apresenta de forma satisfatória o tratamento dado às

variedades linguísticas. Verificamos ser unanimidade que, ao abordar o tema da

variação linguística, as atividades do LDP analisado se limitam densamente às

variedades regionais, de modo que fica implícita a crença ilusória de que os falantes

urbanos mais letrados se comportam linguisticamente de acordo com as normas

prescritas pela tradição gramatical.

Podemos depreender ainda, através da análise realizada e das nossas leituras

teóricas sobre a temática, que falta nos LDP o estudo a partir de manifestações

autênticas da realidade linguística brasileira. É preciso, como afirma Bagno, uma

reeducação linguística, caracterizada como uma proposta que leva em conta os avanços

das ciências da linguagem, bem como as dinâmicas socioculturais em que a língua está

inserida. A variação linguística precisa ser estudada como fato social e cultural,

considerando a riqueza que representa e seu papel revelador do dinamismo da língua.

Além disso, a abordagem das variedades linguísticas ainda é preconceituosa e

distorcida metodologicamente. Na maioria das atividades, ainda prevalecem questões de

reescrita que solicitam ao aluno que, diante de um gênero textual em estudo, passe uma

variedade estigmatizada para a norma padrão. Portanto, como afirma Bagno, o fato de o

LDP reconhecer a existência das variedades linguísticas não significa respeitá-las.

Por fim, acreditamos que a adoção do contínuo de urbanização, um dos três

contínuos proposto pela sociolinguistaBortoni-Ricardo, se constitui como um modelo

que pode representar uma renovação na abordagem das variedades linguísticas no livro

didático de português e, consequentemente, nas práticas pedagógicas de educação de

língua materna, uma vez que esse contínuo, a partir dos traços graduais e traços

descontínuos, permite entender a flexibilização das fronteiras que demarcam falares

rurais, rurbanos ou urbanos.

Page 627: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1405

Referências

ALKMIM, Tânia Maria. Sociolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.

C..Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007. v. 1.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação

linguística. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

BORGATTO, Ana Trinconi; BERTIN, Terezinha; MARCHEZI, Vera. Projeto teláris:

português. São Paulo: Ática, 2012. v. 1.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística

na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

_______. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolinguística e educação: Parábola

Editorial, 2005.

BRASIL. Guia de livros didáticos: PNLD 2014: língua portuguesa: ensino

fundamental: anos finais. Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação

Básica, 2013.

CAMACHO, Roberto Gomes. Sociolinguística. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.

C..Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007. v. 1.

DIONISIO, Ângela Paiva. Variedades linguísticas: avanços e entraves. In: DIONISIO,

Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). O livro didático de português:

múltiplos olhares. 3 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

LUCCHESI, Dante. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, M. Linguística

da norma. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

MOLLICA, Maria Cecilia. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In:

MOLLICA, M. C.; BRAGA, M. L. Introdução à sociolinguística: o tratamento da

variação. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007.

MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes,

2008.

SILVA, Rita do Carmo Polli. A sociolinguística e a língua materna.1. ed. Curitiba:

Ibpex, 2009.

Page 628: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1406

A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A

MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA NA FICÇÃO DE

LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA [Voltar para Sumário]

Júlio César Martins de Sales (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo primeiro, mostrar a forma como a

personagem Iluminata, representa a mulher em diversas épocas, principalmente o século

XIX. E logo será discutido sobre até que ponto esta mulher reprimida e subalterna, pode

estar presente na narrativa, de maneira que ela reflita na sua estrutura interna, aspectos

históricos, sociais e de gênero. Para desenvolver este trabalho, utilizamos os

pressupostos teóricos de BRAIT (1990) e os estudos de CANDIDO (1918), FORSTER

(1969), LOPES (2010), ALVES E PITANGUY (2003) e BARBOSA (2011).

Caracterizando o elemento – a voz feminina no romance. A intenção aqui por

sua vez, é apresentar a aproximação da voz (mulher) que permaneceu por bastante

tempo silenciada, mas que se manifesta na narrativa através do discurso da própria

personagem título-protagonista.Desta forma é de extrema e definitiva importância que

se observe certas características presentes na narrativa – como as ações que a

personagem realizou secretamente, por serem proibidas para uma mulher daquela época,

sendo a escrita, a única forma para compartilhar o que viveu.Após o feminismo,

ocorreram mudanças no que tange, as personagens femininas dos romances, também de

autoria feminina. Os autores passaram a atribuir mais autenticidade a estas personagens.

O Iluminata apesar de ter sido publicado em 2012, é um romance ligado ao

passado, em que a narrativa mostra aspectos vigentes no século XIX. Mesmo estando

inserida neste “contexto” sua personagem principal, realiza alguns de seus desejos, no

Page 629: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1407

fim da vida. Através da sua decisão de mudança, a autora reorganiza ficcionalmente, o

sujeito social feminino, do plano “real”, aproximando personagem e sociedade.

A personagem de ficção

Personagem é um ser fictício que vive, sonha, morre dentro do plano de uma

narrativa, na qual existe um universo onde se desenrola a ação dos fatos vividos pela

mesma. A origem desse ser, se dá as vezes no interior de um autor, que cria apenas

uma trajetória pela qual ele deve passar, ou pode ser uma possível recriação de alguma

pessoa que está inserida na vida real de seu autor. Toda história é construída por pessoas

que a vivem, fazendo com que ela possa acontecer, no caso da estória, que está ligada

ao mundo imaginário, precisa de personagens que dão vida a mesma, sob a projeção do

criador. Nota-se a visão de Forster em relação à personagem:

[...] geralmente nasce, é capaz de morrer, requer pouco alimento ou sono, está

incansavelmente ocupado com relações humanas, e - o mais importante -

podemos saber mais sobre ele do que qualquer um dos nossos semelhantes,

porque seu criador e narrador é um só. (FORSTER, 1969, p.35)

A personagem não pode ser confundida com a pessoa, pois apesar de terem

algumas semelhanças, elas fazem parte de planos diferentes. Trata-se de um ser criado a

partir das palavras, essa é a única maneira de provar sua existência e é por meio destas,

que este ser se torna “real” dentro do plano da narrativa. Toda a autonomia e “vida” que

a personagem adquire com a mediação do seu criador, estão intrinsecamente ligadas à

construção do texto, que nos diz algo sobre ela e sobre sua personalidade. Já em se

tratando de pessoas, elas habitam num mundo real, são materializadas fisicamente e sem

contar, que são ilimitadas. Mesmo que a forma de comportamento da personagem

mantenha alguma relação com o mundo exterior a narrativa, ela não pertence a este.

Em sua obra, A personagem, Beth Brait, apresenta pontos importantes e

necessários, para que se possa compreender a distinção entre pessoas e personagens, que

muitas vezes são pensadas como seres de mesma natureza.

Partindo da premissa de que a personagem é um habitante da realidade

ficcional, de que a matéria de que é feita e o espaço que habita, são diferentes

da matéria e do espaço dos seres, mas reconhecendo também que essas duas

realidades mantêm um íntimo relacionamento... (BRAIT, 1990, p.11-12)

Page 630: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1408

Apesar de estarem vinculadas, pessoa e personagem têm também funções

diferentes, pois uma se constitui como sendo real e a outra como recriação ou

reorganização do “real”. Ao criar uma personagem, o autor pode se utilizar de

características apresentadas pela pessoa humana, mas a partir do momento que estas se

tornam parte do texto ficcional é distanciada da realidade e remodelada pelo toque

artístico e imaginário.

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de

encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou

para dar forma as suas criaturas, e aí pinçar a independência , a autonomia e a

“vida” desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de

deslindamento do espaço habitado pelas personagens, que poderemos ser útil

e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação

de uma realidade exterior ao texto. (BRAIT, 1990, p.11)

Acerca desta temática, Brait estabelece relações com o pensamento de Horácio,

que fala sobre a atribuição das características humanas às personagens, refletindo e

avaliando-a segundo o modelo humano e trabalhando o conceito de mimese, que diz

serem as relações da personagem com a exterioridade, apenas uma imitação da pessoa

real.

Horácio concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres vivos,

mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e

virtude e advogando para esses seres o estatuto de moralidade humana que

supõe imitação. Ao dar ênfase a esse aspecto moralizante, ainda que suas

reflexões tenham chamado a atenção para o caráter de adequação e invenção

dos seres fictícios, Horácio contribuiu decisivamente para uma tradição

empenhada em conceber e avaliar a personagem a partir dos modelos

humanos. (BRAIT, 1990, p.35)

A partir das novas e renovadoras visões do século XVIII e XIX, esta visão de ser

ficcional passou a ser considerada rasa e insatisfatória, pois começou a se pensar numa

personagem mais relacionada à interioridade e a corrente de pensamento de seu criador.

A trajetória de vida percorrida pela personagem é pensada e construída pelo autor que,

muitas vezes, já conhece cada passo que ela vai dar, cada palavra que ela expressará e

até mesmo os pensamentos que vão habitar sua mente. Estas são questões mais

discutidas e levadas em consideração pela visão psicologizante da personagem, que

substitui a concepção herdada de Aristóteles e Horácio. Com estas mudanças, não só as

personagens, mas também o romance de uma forma geral começaram a ser pensados

Page 631: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1409

como parte do psicológico e da maneira de ser do autor, embora a personagem ainda

continue sendo observada como ser antropomórfico cuja avaliação se vincula a pessoa

humana. Então se pode afirmar que estas são apenas diferentes formas da visão de

personagem antropomórfica.

Em meados do século XX, a obra Teoria do romance, de György Lukács, trouxe

uma nova ótica a respeito da problemática da concepção do personagem de ficção. O

herói problemático entra em voga nas obras e luta contra o conformismo e as

convenções, estando em oposição e comunhão com o universo. Entretanto, Brait deixa

bem claro que, novamente, essa visão encerra-se no dualismo homem-personagem. Só

a partir de Forster é que a tendência antropomórfica da personagem vai sendo deixada

de lado, mesmo que não seja totalmente. Estando ligadas as produções literárias do

contexto histórico e ainda mais com o surgimento do New Criticism, Forster considera a

intriga, a história e a personagem como as bases estruturais do romance. As personagens

deixam de refletir o mundo exterior, para fazerem exclusivamente parte da obra. De

acordo com este ponto de vista, elas são tratadas como seres de linguagem.

Forster também traz informações com relação às classificações e tipos de personagens,

de acordo com a personalidade e o comportamento das mesmas na “realidade” ficcional.

Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem

ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas são

construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são

definidas em poucas palavras, estão imunes a evolução no transcorrer da

narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de

personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor (BRAIT,

1990,P.40-41)

As personagens planas são identificadas facilmente, pois buscam sempre o

mesmo objetivo sem mudança de pensamento e linha de raciocínio, além de não

sofrerem grandes mudanças de personalidade, que pode ser facilmente compreendida.

Este tipo de personagem, muitas vezes, influencia pouco no conflito da diegese e acaba

por ser um elemento decorativo. Já as personagens mais complexas, cujas

personalidades são alteradas ou geram dúvida no decorrer da narrativa, são as que

Forster classifica como redondas. Geralmente este tipo de personagem é imprevisível e

pode ter ações e pensamentos completamente diferentes das que o leitor espera.

Page 632: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1410

Brait diz que apesar destas contribuições de Forster para a mudança de se pensar

a personagem como imitação da pessoa humana, sua teoria continua parcialmente presa

à dualidade ficcional-pessoa humana.

Mas a esta altura, o leitor poderia perguntar: “Apesar da contribuição e das

inovações apresentadas por Forster no que diz respeito ao estudo da

personagem, ele ainda não estaria pautado na ligação entre ficcional-pessoa

humana? Ou de uma outra maneira: “será que existe realmente alguma forma

de escavar a materialidade dos seres fictícios abstraindo inteiramente sua

relação com o ser humano? (BRAIT, 1990, P.41-42)

A dissociação entre pessoa e ser ficcional só chega a existir totalmente, a partir

dos formalistas Russos, com a publicação do formalismo Russo, Victor Erlich que traz

uma nova visão acerca da literatura. Os formalistas focaram na organização do texto e

de sua composição. Tudo que está inserido na obra de ficção é considerado como

fábula. De acordo com este pensamento, a personagem possui vínculo com a fábula e

só chega à plenitude de ser fictício, a partir do momento em que suas ações coincidem

com o desenrolar dos acontecimentos da trama, sendo, portanto seres de linguagem.

Quanto às classificações das personagens, podem também ocorrer conforme a

sua posição na estória. Algumas são consideradas fundamentais para a estória de ficção,

entre eles estão o protagonista e o antagonista, que são antônimos na linguagem teatral,

literária, novelística, cinematográfica e entre os mais variados gêneros onde se possam

encaixar personagens. O primeiro é o que possui papel de destaque na trama, ou seja, é

o ícone principal do enredo em questão e em muitos casos, os acontecimentos giram em

torno dele. O segundo também se destaca na obra, mas nem sempre é um ser humano,

pode ser um obstáculo na vida do protagonista em forma de gente, animal,

circunstâncias, entre outros. Este tem a função de boicotar ou dificultar os planos do

protagonista, gerando conflitos.

Aspectos sociais e históricos

Em Iluminata, seu romance de época, Ferreira apresenta a história de uma

mulher culta, inteligente, que durante muito tempo viveu presa ao sistema vigente do

século XIX e a ignorância do seu marido, que era um homem rico e que preservava a

sua imagem diante da sociedade. Após a morte do seu marido, depois de ter vivido

Page 633: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1411

muitos anos de submissão, Iluminata resolve lutar contra a imposição pelo meio, em

busca da sua própria felicidade, e após ter vivido altas aventuras consideradas

inadequadas para uma senhora daquele tempo, ela resolve passar suas experiências para

o papel, expressando aquilo que ela não poderia mostrar, devido aos limites do contexto

histórico.

[...] Theotonio morto. Se quero de fato tentar um mergulho no mais profundo

de mim, sou obrigada a confessar: sua morte não me deixara o vazio que

todos – todas – dizem sentir ante a perda de um cônjuge. Quantas vezes – e

tenho pejo de o confessar, mesmo nestas linhas de minha propriedade

somente e de mais nenhum outro ser humano, que ninguém nunca lerá,

certamente - , quantas vezes desejei sua morte. Por curiosidade. Por desejo de

independência. Como seria me sentir outra vez livre para viver minha própria

vida? Que seria poder retraçar, sozinha, o desenho de meus dias, refazer

caminhos, escolhas? Ou então não planejar nada, deixar simplesmente

escorrer o fio dos dias, abandonar-me às águas da vida,(...)

(FERREIRA,2012,P.20-21)

As experiências da personagem Iluminata no romance mostram a realidade do

cotidiano das mulheres que viveram antes, durante e depois do século ressaltado no

plano da narrativa. Através dessa personagem histórica, a autora aproxima à possível

“realidade” do seu universo ficcional, da realidade propriamente dita, pois sabe-se que a

literatura se constitui como a reorganização do real, mas isso não quer dizer que ela é

uma cópia fiel do exterior. A isso nos alerta Candido:

Com efeito, todos sabemos que a literatura, como fenômeno de civilização,

depende, para se constituir e caracterizar, do entrelaçamento de vários fatores

sociais. Mas, daí a determinar se eles interferem diretamente nas

características essenciais de determinada obra, vai um abismo, nem sempre

transposto com felicidade. (CANDIDO, 1918, p.21)

As ações no desenrolar do enredo, mostram a submissão das mulheres, que já

estava emaranhada no cotidiano das mesmas como algo fixo e imutável. A personagem

Iluminata, é o espelho da mulher recifense do século XIX, que vivia presa ao sistema

vigente da época, e ao mesmo tempo representa a voz feminina deste contexto histórico,

quando as mulheres não podiam fazer suas vontades e não tinham a oportunidade para

se posicionar nas decisões, pois Iluminata além de tomar coragem e lutar contra a

padronização da sociedade, também encontra na arte de escrever, o meio para dizer as

aventuras amorosas que viveu, mesmo que no fim da vida.

Page 634: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1412

Estrutura

O romance Iluminata é composto por 155 páginas, as quais estão divididas em

25 capítulos consecutivos. Estas questões estruturais precisam ser levadas em

consideração, pois no romance há a presença de dois discursos correspondentes às duas

vozes narrativas que se seguem expressas uma após a outra e podem ser identificadas

não só por meio daquilo que dizem, mas também pelas diferenças nos tipos de letras

usadas para mostrar cada uma delas.

Como já foi dito, a história de vida da personagem é contada por ela mesma, por

folhas escritas e guardadas, que foram encontradas pela filha, alguns anos após a sua

morte.

Revolvendo gavetas de um velho guarda-louça, pertencente a minha mãe,

encontrei as páginas seguintes, que o leitor lerá, com interesse talvez, com

enjôo algumas vezes, surpreso certamente, de que uma senhora como minha

mãe tenha colocado no papel essas confissões [...] (FERREIRA,2012,p.7)

Há a presença de duas narradoras personagens no romance, Iluminata, que fala

sobre a sua própria trajetória acinzentada de esposa, mãe e proibida de ser mulher

encantadora e atraente, sem desconsiderar a falta de liberdade e autonomia, que

rondaram sua vida por bastante tempo, principalmente antes de Theotonio, seu marido,

falecer. O outro discurso é constituído pelas considerações da filha, com alguns

questionamentos externos com relação ao que a mãe escreveu. Ela mostra seu ponto de

vista, frente a tudo que foi narrado. A filha também participou da vida de Iluminata e

tece comentários sobre ela, mas, às vezes, se mostra surpresa com as declarações feitas

pela mãe:

Engraçado: enquanto vivia Theotonio, as atenções de Antonio Peregrino me

lisonjeavam e até me interessavam, talvez pela atração que sempre exerce

sobre nós o proibido, a presença do esposo punha um limite aos galanteios

permitidos. Aconteceu-me até sentir um tantinho de ciúme ao ver como

Antonio Peregrino se cercava de senhoras, recitando improvisos, escrevendo

poemas em seus álbuns de recordação. (FERREIRA, 2012, p.13)

Vejamos os comentários da filha em relação aos sentimentos expressos pela

mãe:

Page 635: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1413

Nunca notei entre minha mãe e o doutor Antonio Peregrino alguma coisa

mais que a amizade e o respeito que existia nas relações de meus pais, com

os outros amigos frequentadores de nossa casa. É bem verdade que eu era

menina quando morreu meu pai e o carinho e o interesse que o Doutor

Antonio Peregrino sempre mostrou por nós – chegou mesmo a escrever um

poema em meu álbum de adolescente (FERREIRA, 2012, p.15)

Assim se dá toda a estrutura do livro, de maneira que para cada parte narrada

pela mãe, existe um comentário da filha, que também é uma narradora cuja focalização

é também homodiegética, pois ela está inserida na estória.

O espaço e o contexto histórico, ao qual o romance faz referencia, é o Recife do

século XIX, época em que se tinha uma sociedade de pensamento bastante conservador

e patriarcal, na qual as mulheres não tinham o direito de se expressar, nem viver de

acordo com seus próprios pensamentos. A partir disso, pode-se estabelecer uma relação

entre a situação feminina da época, com a presença proposital das duas vozes femininas

que se expressam no romance. A personagem título-protagonista e sua filha expõem

suas ideias em relação aos fatos, prática que na época não poderia ser concretizada.

Através destas duas vozes que se expressam livremente no romance, expondo seus

sentimentos, a autora denuncia a voz feminina reprimida do passado, fazendo com que

ela se manifeste através das personagens criadas por ela. Desta forma, pode-se dizer que

a luta das primeiras feministas permanece viva, através do romance de

Ferreira, de maneira que suas personagens femininas refletem a condição da

mulher, pertencente ao plano da realidade, evidenciando algumas questões como:

A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente

conduzidas tivera como consequência a sua ampla visibilidade como sujeito –

inclusive como sujeito da ciência. Assim, os estudos iniciais se constituem,

muitas vezes, em descrições das condições de vida e de trabalho das mulheres

em diferentes instancias e espaços. (LOURO, 2010, p.17)

No romance Iluminata, isso pode ser exemplificado, através das personagens,

Iluminata e de sua amiga de infância, Delphina, que em seus pensamentos e conversas

particulares, desabafam, sobre a condição de ser mulher, os desejos que não podem

realizar, devido à maneira de pensar e do contexto histórico já mencionado. Observa-se

o que pensa a protagonista, com relação a isto:

Mas, nós, as mulheres temos um tal desejo de ser felizes, guia-nos uma tal

força interior que conseguimos achar o caminho que concretizará nosso

Page 636: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1414

projeto pessoal de ser alguém. E isso apesar das poucas ocasiões que nos

outorgam o direito de agir por nós mesmas, de nos isolarmos, de fazer agir

nossa imaginação e viver existências tão mais ricas que aquelas permitidas

por pais, noivos, maridos, irmãos, tios. (FERREIRA, 2012, p.33)

Em um diálogo entre as duas, elas manifestam indignação à subalternidade

atribuída ao gênero feminino. Naquela época, as ações das mulheres eram limitadas,

suas trajetórias eram construídas sob a ótica masculina dominante. Então não eram

livres para buscarem seus próprios prazeres.

[...]- E imagina, querida, nunca nos deixaram imaginar que isso existia, que

era possível que uma tão grande alegria pudesse surgir em nós, assim, de

repente, como um dom que a pessoa amada nos ofertasse. Sabes o que

pensei? Que durante anos esconderam das mulheres como eu e tu, que tal

coisa existe sim. Os pais por temor que a curiosidade levasse a filha a se

perder, quando um herói qualquer lhe fizesse vislumbrar, mesmo de leve,

essa alegria dos corpos. Os padres por querer evitar que a ovelha se perdesse.

E os maridos temerosos de suscitar desejos que eles não podiam ou não

quereriam abrandar, desejos podendo levar a mulher a buscar em outra parte

o que haviam vislumbrado.

Suspirou, um suspiro de indignação:

- Fomos obrigadas a viver como se essa coisa não existisse ou fosse

pecaminosa. Vivemos na ignorância, afastadas dos homens, separadas,

resguardadas. E uma noite nos jogam nos braços de um desconhecido – sim,

porque entre o noivo respeitoso e apaixonado e o marido que se reconhece

todos os direitos, sobre nossos corpos, sobre nossas almas, existe um abismo.

É como se nos impedissem de aprender a nadar e depois nos jogassem ao

mar.

Eu ouvia tudo em silencio. Minha amiga tinha razão, mas o pudor me

impedia de mostrar cumplicidade. (FERREIRA, 2012, P.143)

Através desta conversa, nota-se que o texto aproxima-se da “realidade”, das

mulheres da época, de maneira que a narrativa reorganiza ficcionalmente, situações

exteriores a ela, as quais são comentadas por Alves e Pitanguy:

[...] Toda a educação das mulheres deve ser relacionada ao homem. agradá-

los, lhes ser útil fazer se amada e honrada por eles, educá-los quando jovens,

cuidá-los quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida útil e

agradável - são esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que

lhes deve ser ensinado desde a infância”. (ROUSSEAU apud ALVES e

PITANGUY,2003)

Através do romance Iluminata, o leitor se depara com diversos aspectos

sociológicos, históricos pertencentes à formação da identidade feminina, mais

especificamente a partir das vivencias e conflitos da personagem protagonista. Casada

por puro tédio e conveniência a mesma se introduz na narrativa como uma senhora,

Page 637: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1415

atuante no comando da casa, precisando se dedicar a manter a reputação do marido,

afinal a sua maneira de se portar nas mais diversas situações, contariam para as boas ou

más impressões que iriam ter de Theotonio. Como se percebe que fora as tarefas do

ambiente doméstico, ela foi apenas um troféu para dar mais prestígio ao respeito que as

pessoas tinham pelo marido. Estas condições eram tão banais na vida de uma mulher em

diferentes épocas, sendo sempre atribuídas ao feminino, que grande parte delas, já as

aceitava como forma natural em que as coisas deveriam ocorrer.

Dessa forma, atribui-se como próprias do universo feminino, todas as atividades

internas, sendo contra o sistema, a sua participação ativa, nas questões políticas e

sociais.

[...] Eu, esta leitora gendrada - percebo como particularidades próprias a meu

universo cultural, à maneira distintiva como minha subjetividade (construídas

nas relações intersubjetivas com essas meninas e outras produções simbólico-

discursivas postas as disposições dos sujeitos sociais) se reconhece ao

reconhecer aquilo que as práticas, os discursos, os dispositivos sociais, enfim

circunscrevem sob o nome de feminino o qual, por ação dos mesmos

dispositivos, se cola a minha condição de mulher, definida pelo sexo a que

pertenço (QUEIROZapudBARBOSA2011,p.21)

Veja-se o que diz Iluminata:

Agradeci com um sorriso. De fato, eles é que me haviam ofertado a alegria da

companhia, em uma noite que eu planejara perfeita: o jantar fora preparado

com cuidado, os pratos estavam deliciosos, eu mesma arrumara os bouquets

sobre os móveis, a luz dos lampiões era suave, de modo a criar um ambiente

de intimidade. (FERREIRA, 2012, p.41)

Por apresentar uma vida referente ao privado, já que a maioria das ações e

vivencias das mulheres eram ligadas ao interno, em outras palavras, ao lar, é que se

afirma ser através da personagem Iluminata, apresentadas questões próprias a dita

formação da identidade feminina.

Considerações Finais

A personagem Iluminata, criação de Luzilá Gonçalves Ferreira, é o espelho da

mulher recifense do século XIX, que vivia presa ao sistema vigente da época e, ao

mesmo tempo representa a voz feminina deste contexto histórico, em que as mulheres

não podiam fazer suas vontades e não tinham a oportunidade para se posicionar nas

Page 638: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1416

decisões, pois Iluminata além de tomar coragem e lutar contra a padronização da

sociedade, também encontra na arte de escrever o meio para dizer as aventuras

amorosas que viveu, mesmo que no fim da vida.

Relaciona-se também o fato de a protagonista ter deixado suas próprias

experiências por escrito, a negação da capacidade que as mulheres tinham para serem

autoras, construtoras da sua própria história, sem ter regras estabelecidas e ditadas pelo

meio. Hoje os romances cujas autorias são femininas retratam a identificação da mulher

a partir da sua diferença, criando personagens autênticas, resgatando a mulher através da

arte literária.

Referencias

AlVES, Branca Moreira O que é feminismo/ Branca Moreira Alves, Jacqueline Pitanguy

– são Paulo: Brasiliense, 2003. – (Coleção primeiros passos; 44)

BARBOSA, Adriana Maria de Abreu. Ficções do Feminino / Adriana Maria de Abreu

Barbosa – Vitória da Conquista: Edições UESB, 2011

BRAIT, Beth A personagem Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110 Tel.:

(PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegráfico ‘Bom livro” — São Paulo

CANDIDO, Antonio Literatura e Sociedade 1918 12ª. Edição revista pelo autor/ Rio de

Janeiro: Ouro sobre Azul 2011/ 204 pág.

FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Iluminata. Recife: Fundação de Cultura Cidade do

Recife, 2012.

FORSTER, E.M. Aspectos do Romance. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre:

Editora Globo, 1969.

LOURO, Guacira Lopes Gênero, sexualidade e educação 2010 11ª. Edição Uma

perspectiva pós-estruturalista/ Guacira Lopes Louro – Petrópolis, RJ.

Page 639: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1417

IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E

CONCEIÇÃO EVARISTO [Voltar para Sumário]

Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)

1. Nação, identidade e memória

Ao lançarmos mão da escolha deste corpus de análise, o cantopoema No Fundo

do Canto, da autora guineense Odete Semedo, e Poemas da recordação e outros

movimentos, da autora brasileira Conceição Evaristo, pretendemos observar como essas

autoras, ao tecerem em seus poemas situações experienciadas por elas mesmas, ou que

estão em seu imaginário, a partir de situações vividas por gerações anteriores às suas,

promovem uma releitura do passado de suas nações e buscam uma inserção de

memórias silenciadas no processo de construção da memória nacional.

Em seu capítulo intitulado “Disseminação”, constante do livro O local da

cultura, Homi Bhabha (2013) nos levar a questionar a ideia de homogeneidade e

horizontalidade associada à nação como uma “comunidade imaginada”. Para Bhabha,

nação é narração. Nesse sentido, ele desenvolve em seu texto o argumento de que as

narrativas dos povos errantes (colonizados, pós-colonizados, migrantes e minorias), que

historicamente foram colocados à margem da nação oficial, são o que ele chama de

contra-narrativas, as quais apresentam o contraponto da nação homogênea e horizontal.

Bhabha (2013) considera que essas contra-narrativas estão permeadas pelos

“fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana [que] devem ser repetidamente

transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato da

performance narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais”. Sob essa

perspectiva, podemos relacionar os poemas de Odete Semedo e Conceição Evaristo à

ideia contida no conceito de contra-narrativa. Para tanto, consideramos que, do relato

Page 640: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1418

poético dessas duas autoras, emergem as diversas faces da condição de mulher, do

sujeito “pós-colonizado” e em diáspora, dos conflitos enfrentados por sua gente, dos

fragmentos e retalhos da vida cotidiana, que pode ser traduzida como metáfora da vida

nacional.

Corroborando com o exposto acima, essas contra-narrativas evocam e rasuram

as fronteiras totalizadoras da nação e “perturbam aquelas manobras ideológicas através

das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas” (BHABHA,

2013, p. 211). Reforçando a concepção de Bhabha, Wander Miranda (2012, p. 362)

afirma que “se a fronteira é o que diferencia uma nação do que está fora dela — o

território do outro —, o discurso minoritário assinala a existência de fronteiras internas,

que demarcam o espaço heterogêneo da identidade a ser compartilhada”. Dessa

maneira, relatos como os de Semedo e de Evaristo contribuem para a revisão e a

desconstrução de uma imagem de suas nações que apresenta o povo “como um”.

No Fundo do Canto foi publicado inicialmente em 2003, em Portugal, e conta

com uma edição brasileira de 2007. Nele, Odete Semedo nos traz uma voz poética que

se constrói como o tcholonadur (mensageiro) de sua nação. A experiência narrada em

seu relato é o da vivência na guerra civil que devastou a Guiné-Bissau, entre 1998 e

1999. A encenação poética dá conta de três momentos: a conjuntura política que

antecedeu o conflito; a eclosão e os horrores da guerra e, por último, a voz poética

convoca a participação de todas as etnias guineenses, através de suas dividades

protetoras (irans), para analisar o conflito e encontrar uma solução para a paz. Com esse

gesto, a autora evoca uma imagem de nação inclusiva e será nessa última parte que

focaremos a nossa análise.

Conceição Evaristo publicou Poemas da recordação e outros movimentos em

2008. As páginas de sua “escrevivência”, como ela mesma batiza a sua escrita literária,

traz para a sua encenação poética várias vozes anônimas, representadas na figura de sua

filha, sua mãe, sua tia, seus amigos, das crianças na rua, de negros e negras. Essas

vozes, concorrendo com o espaço periférico em que habitam, também foram relegadas

ao anonimato nas representações simbólicas da nação brasileira.

Compreendemos que as duas autoras encenam realidades distintas, mas com

pontos em comum. Ambas tratam da temática da violência e da força do trauma dela

decorrente na vivência de suas gentes. Se Odete Semedo fala do horror da guerra civil,

Page 641: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1419

passando pela dificuldade de encontrar a estabilidade política no país pós-

independência, Conceição Evaristo se remete à violência da escravidão e as

consequências desse sistema para a sua gente, ao revisitar o imaginário das gerações que

a antecederam e as que lhe são contemporâneas.

Cientes de que as autoras convocam elementos culturais eventualmente distantes

e heterogêneos entre uma e outra realidade, a possibilidade de colocar essas duas vozes

em relação trar-nos-á uma compreensão mais ampla acerca do processo de construção e

de revisão de suas respectivas nações. Na Guiné-Bissau, o momento é de juntar as

partes estilhaçadas pela guerra e de (re)construir a nação. No Brasil, o tempo é de

revisão da memória nacional para a inclusão das memórias dos que ficaram à margem

de seu processo de construção.

A partir da concepção de identidade-rizoma, postulada por Glissant (2011),

entendemos que a noção de identidade que permeia a obra dessas duas autoras

compreende uma construção múltipla. Conforme Glissant, o ente que não vem de uma

raiz única, mas de uma raiz que vai ao encontro de outras raízes.

Ao encontro das considerações acima, convocamos o entendimento sobre

identidade na perspectiva de Stuart Hall (2003). Para ele, a identidade é uma

“celebração móvel”, transformada permanentemente. Nessa concepção, a instabilidade,

a descentração, o questionamento e a problematização da identidade são fundamentais

para as nações “pós-coloniais”. Cabe aqui trazer a relação entre identidade individual e

cultura nacional exposta por Hall. Segundo esse teórico, a cultura nacional produz

identificação porque é

um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza

tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos […] As

culturas nacionais, ao produzir sentidos com os quais podemos nos

identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias

que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o

seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2003, p. 50-51)

Odete Semedo e Conceição Evaristo têm consciência da importância de seu

papel na textualização da nação. Elas sabem que a literatura é o espaço privilegiado para

a inscrição de suas memórias nos projetos de nação que estão se configurando. Essa

observação vem corroborar com a ideia de nação como plebiscito diário, exposta por

Ernest Renan. Para Renan, a nação é a própria vontade de ser nação, um processo de

Page 642: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1420

negociação entre indivíduos, que ocorre continuamente. Nesse sentido, tal concepção

asseguraria o tempo de reinscrição da nação, fundamental para compreendermos essas

duas poéticas.

Em convergência com o que ora afirmamos estão as palavras da estudiosa

Inocência Mata (2007, p. 33), ao ressaltar a necessidade “de se pensar a identidade

nacional, social e cultural, como processo em constante reconfiguração”. Isto porque, se

consideramos que o indivíduo está em contínuo questionamento da imagem de si

mesmo e nesse processo podemos localizar a interseção entre identidade individual e

nacional (AUGEL, 2007a, p. 267), compreendemos que, ao revisar a imagem de si, o

sujeito acaba também por revisar a identidade nacional.

Buscarmos compreender a nação a partir da perspectiva do indivíduo nos

possibilita visualizar a rearticulação de identidades e de fronteiras das nações modernas.

Tal singularização é necessária até mesmo como uma forma de colocar-se em oposição

à perspectiva totalizadora da nação “coesa”, em que muitos são vistos como “um”. Ao

garantir o espaço do indivíduo, constrói-se a possibilidade da emergência de memórias

que exponham as fraturas ocultadas pela totalidade da nação.

Michael Pollak desenvolve a noção de “memórias subterrâneas” para definir as

memórias que são abafadas pela memória oficial, entendendo como subterrâneas as

memórias dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. Em seus estudos, Pollak

foca no debate em torno da violência contida no gesto da escolha das memórias oficiais,

do questionamento acerca da conciliação de memórias e do espaço para emergência das

memórias individuais. Segundo o autor (1989, p. 11), “através [do] trabalho de

reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações

com os outros”.

Odete Semedo conta as suas memórias sob a perspectiva das vítimas da guerra.

Uma guerra entre irmãos, em que não há heróis nem fatos heroicos. O que está em

evidência são os desdobramentos do conflito na vida dos civis e todo o caos que tomou

conta do país: a necessidade de partir e deixar tudo que se construiu durante toda a vida;

o não ter para onde ir; as pessoas verdadeiramente sem chão; o desafio de reconstruir do

país sob os escombros da guerra.

Conceição Evaristo narra a violência cotidiana de uma guerra silenciosa contra

as pessoas negras, no Brasil. A autora investe em sua escrita a reivindicação do espaço

Page 643: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1421

para a memória dos povos afro-brasileiros, que foram ocultados na face harmônica da

nação miscigenada. Faz emergir imagens do cotidiano, da violência física e moral, dos

gritos silenciados, de desigualdades, de fome, de injustiças.

Pela via da escrita ou da militância literária e intelectual, Odete Semedo e

Conceição Evaristo têm empreendido uma luta para romper tabus e construir espaços de

interlocução para essas memórias subterrâneas. Ambas tornam evidente em sua

literatura a necessidade de escrever as suas lembranças contra o silêncio, conforme

podemos observar nos seguintes trechos dos livros escolhidos neste estudo:

[…] Volto a descerrar este Fundo, imbuída de um novo Canto que se quer um

cantopoema, vivo, como deve ser viva a poesia guineense: Um verbo que

canta, que reconhece o seu canto em cada fala do chão guineense; um verbo

que chora sem complexos a sua dor, mas que se rebela contra a indigência,

contra a lassidão; escritos que não atiçam o ódio e que a todos acordam para a

busca e para a beleza espontânea das letras. Um canto/mantenha que em cada

um e em cada uma e em cada um avive a chama verdadeira da liberdade e a

responsabilidade de construção de um país que se deseja… que se ambiciona

Novo. (SEMEDO, 2007, p. 15-16)

— nossos poemas conjuram e gritam —

[…]

O silêncio mordido,

antes o pão triturado

de nossos desejos,

avoluma, avoluma

e a massa ganha por inteiro

o espaço antes comedido

pela ordem.

E não há mais

quem morda a nossa língua

o nosso verbo solto

conjugou antes

o tempo de todas as dores.

[…] (EVARISTO, 2008, p. 49)

Notamos que Odete Semedo e Conceição Evaristo veem no gesto de sua escrita

o instrumento de luta, o espaço da reivindicação, da construção do novo, do tempo de

reinscrição da nação. As palavras de Semedo estão na nota de abertura de seu livro. As

de Evaristo estão no poema intitulado “Da Conjugação dos Versos”. Ambas imprimem

em suas palavras o sentimento que está na interseção entre o individual e o coletivo: as

suas dores individuais na busca de metaforizar as dores de sua gente. Além dessas

Page 644: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1422

questões, os dois trechos citados ainda se aproximam ao utilizarem palavra “verbo”

como metonímia para “poema” e creditarem nela o poder de rebelião contra o silêncio e

contra as injustiças.

O sentido de literatura que flui na escrita dessas duas autoras é o da “perda de

memória do continuum da história” (MIRANDA, 2012, p. 358). Isto porque, ao

inserirem as suas memórias, corroboram com a desconstrução do entendimento da

história como curso unitário e possibilitam o olhar para as fraturas da totalidade da

nação.

2. A nação guineense na poesia de Odete Semedo

Moema Augel (2007a) salienta que é na literatura que começa a se processar o

pensamento identitário e a se configurar o caráter nacional da Guiné-Bissau. Para ela, de

maneira clara ou subliminar, há na literatura guineense um movimento de afirmação da

identidade individual ou coletiva, que implica na tentativa de compreensão do passado

ancestral e das experiências humanas no território nacional.

Diante da necessidade de fazermos um recorte da obra para analisar neste

estudo, e por não acharmos viável recorrer a trechos de poemas, optamos por trazer um

único poema, mas que traduzisse, em caráter exemplar, a imagem de uma nação

guineense inclusiva. O poema em questão, “Bissau levanta-se”, é da última parte do

livro e compõe o último dos três “embrulhos”:

Bissau escutou a sua irmã Guiné

viu os embrulhos abrirem-se

ante os seus olhos

ouviu o discurso proferido

por um corpo sem cabeça

lutando contra a morte

Bissau quis levantar-se

Soergueu-se

pernas pesadas dormentes

braços descaídos

Sozinha não era capaz

De repente

outras mãos

fizeram-na levitar

Mãos da Guiné?

Page 645: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1423

Sentiu-se leve leve

como lã de polon

Três Onças de ar feroz

O Porco-formigueiro… matuto

a Lebre… astuta

o Macaco… ágil

o Abutre… persistente

a Cabra do mato… elegante e veloz

o Lobo… matreiro e tenaz

O Cavalo… ligeiro e vistoso

a Jiboia… serpenteante

o Hipopótamo… corpulento

o Crocodilo… forte e pérfido

o Pis-bus… vigoroso e potente

o Sapo… saltitão

Oraga… muito rápida

Ogubane com a sua destreza

Ominga habilidosa

Oracuma destemida

Onoca com a sua luz

Dabatchiar e Badingal

experientes

Bakapu felina

Badapa arisca

Bapusa altiva

Baluk possante

Babame e Bandika humildes

Bamoio Bamedu atentas

Batinatch rigorosa

Todos… de fidalgos a servidores

viventes da terra

do mar e do ar

beijaram o chão de bruços

levantaram os olhos ao céu

nas águas do mar molharam as mãos

limparam os rostos

Purificaram com água doce e salgada

Bissau e Guiné

enquanto sem cabeça

o corpo se debatia

na agonia

De joelhos no chão

juraram todos

Page 646: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1424

proteger Bissau e Guiné

De costas deitaram-se

erguerem Bissau e Guiné

pareciam sumaúma

mais leves que uma pena

Os irans das djorsons sentiram

Guiné e Bissau uma só

erguendo-se com vigor

rearfirmando a sua força

ante o corpo

finalmente vencido

O corpo sem cabeça

sucumbiu

cremado

As cinzas

levadas

pelo macaréu

De mãos juntas

os irans

pediram mais força e mais vigor

invocaram todas as energias

do alto às profundezas do mar

e o chão foi abençoado (SEMEDO, 2007a, p. 157-159).

O título do poema traz na significação do verbo “levantar” a imagem de dois

movimentos: o da queda e o da ascensão. Mas “levantar” pode significar, para um país

saindo de uma guerra, a construção, a edificação do que foi reduzido a escombros.

Ainda podemos sugerir que há também o sentido de “despertar”, um gesto que vai ao

encontro da imagem do renascimento da nação.

A metáfora da capital caída remete às ruínas do país devastado pela guerra, toda

Bissau lançada ao chão. Nesse momento, uma sequência de imagens a faz mirar o

passado e imprimir a busca necessária para compreender as escolhas que a levaram ao

caos. Localizados os erros, é necessária a correção, para se tentar reerguer-se.

Para compreender o significado da imagem do “corpo sem cabeça”, na primeira

estrofe do poema, recorremos ao poema anterior, “Discurso de Urdumunhu”, e ao

posfácio do livro, escrito por Moema Augel. Essa imagem protagoniza o poema,

proferindo um discurso, e personifica a sede de poder, a motivação da guerra e as

estratégias para manter-se no poder. Esse “corpo sem cabeça” constrói seus argumentos

com base num retorno ao “original” e ao “tradicional”, uma espécie de exorcismo a tudo

Page 647: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1425

que for herança colonial, como no trecho: “Para quê, luz elétrica?/ Saudosismo/ do

imperialismo colonial/ pois nada melhor que uma noite escura/ para contemplar a

natureza/ e a beleza celestial/ Voltemos às nossas origens irmãos/ Para quê, importar

fósforos?”. Nesses versos, evocados como amostra, é possível perceber o tratamento

irônico que a autora imprime ao poema. Quanto à representação do “corpo sem cabeça”

no imaginário guineense, valemo-nos das considerações de Augel (2007b, p.193-194):

“na Guiné-Bissau existe a crença de que uma pessoa reconhece inconscientemente que

está prestes para morrer e, nesse período que antecede a morte, a cabeça, isto é, a razão,

já não domina os seus atos e essa pessoa muitas vezes se comporta de forma insana e

desarrazoada”.

Prosseguimos a leitura do poema e percebemos que esse levantar não é um gesto

autônomo. Bissau não tinha forças para fazê-lo só: “pernas pesadas dormentes/ braços

descaídos/ sozinha não era capaz”. Eram necessárias outras forças, e essas não só a

fizeram erguer-se, mas levitar. O verbo levitar, que é seguido dos versos “Mãos da

Guiné?/ Sentiu-se leve leve/ como lã de polon”, sugere a libertação de um fado que fez

Bissau cair e não conseguir reeguer-se. Esse fado, pelo que acompanhamos ao longo do

cantopoema, seria decorrente da ganância que fez com que seus filhos excluíssem

irmãos de outras djorsons, olvidassem da sabedoria ancestral e nada fizessem para que o

vaticínio não se cumprisse. A evocação do gesto de outras mãos ajudando Bissau a

levantar-se, “Mãos da Guiné?”, funciona como uma espécie de reconciliação e

pacificação. Levitando com a colaboração das mãos irmãs, o país agora podia pensar no

futuro.

As quatro estrofes seguintes convocam os totens de diversas linhagens

guineenses. Todos são apresentados com as suas respectivas características: “a Lebre…

astuta/ o Macaco… ágil/ o Abutre… persistente”. Dessa união de todos os irans, que se

somam contribuindo com o que podem em prol do bem comum, a voz poética sugere a

necessidade de que todas as pessoas sejam representadas na construção da nova nação.

A sétima estrofe é iniciada com a palavra “Todos” e reúne “de fidalgos a

servidores/ viventes da terra/ do mar e do ar” para juntos se debruçarem sobre aquele

chão e, numa demonstração do afeto, todos o beijaram. Nos três últimos versos dessa

estrofe, podemos perceber a representação de dois tempos: o futuro, no gesto de

levantar os olhos para o céu, e seguir para esse futuro de cabeça erguida, superando o

Page 648: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1426

passado devastador, que é sugerido nos seguintes versos: “nas águas do mar molharam

as mãos/ limparam os rostos”.

Nas quatro últimas estrofes, a imagem do futuro começa a ser construída. Esta se

inicia no momento em que os “irans” rendem rituais de purificação a Bissau e Guiné e

que o corpo sem cabeça agoniza, estando prestes a morrer. Na sequência, na

antepenúltima estrofe, mais uma vez observamos a ocorrência da palavra “todos” em

referência aos irans, que juram proteger Bissau e Guiné. Esse é o tempo em que Bissau

e Guiné são erguidas juntas, purificadas de suas respectivas culpas.

As duas últimas estrofes confirmam a vitória da unidade e da paz contra a

imagem da guerra, personificada no corpo sem cabeça. Ao vencer o pivô de toda a

discórdia, Guiné e Bissau, unidas, erguem-se dos escombros e reafirmam a sua força, a

sua capacidade de superação, para construir o novo. O poema, então, encerra-se com

uma bela imagem que evoca os irans de todas as linhagens de mãos juntas para, após

pedirem mais força e mais vigor e invocarem “todas as energias/ do alto às profundezas

do mar”, abençoarem o chão da Guiné-Bissau.

3. A nação brasileira na poesia de Conceição Evaristo

Nazareth Fonseca, ao discorrer sobre as imagens de negros na cultura brasileira,

analisa histórico e literariamente a exclusão do negro dos projetos de identidade

nacional brasileira. Ao considerar a transição da ordem escravocrata para o capitalismo,

a estudiosa afirma que “livre da escravidão, mas vitimado por intensa pobreza e

preconceitos e não protegido por qualquer política de integração à sociedade, [o negro]

ficou à margem dos projetos de identidade nacional ou neles só pôde figurar enquanto

força de trabalho, que sustenta a mesma ordem que o exclui” (FONSECA, 2010, p.90).

As palavras de Fonseca vão ao encontro dos argumentos de Pollak,

anteriormente citados, e reafirmam a violência contida no processo de escolha das

memórias que compõem a nação. No caso da nação brasileira, essa violência é

disfarçada na composição da face única e harmônica da nação miscigenada. Ao

apresentar a imagem do povo como um, o miscigenado, a nação brasileira condena ao

esquecimento toda a violência praticada contra os povos negros. Estes, além de

carregarem consigo as marcas do passado, entre elas a discriminação racial, e o estigma

Page 649: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1427

da escravidão, são relegados aos espaços periféricos dos centros urbanos. Ao serem

excluídos da pólis, são, ao mesmo tempo, excluídos dos direitos sociais que os

“cidadãos” vão conquistando.

Conceição Evaristo vem contestar o caráter pacífico dessa imagem miscigenada

da nação brasileira ao trazer à tona os verdadeiros espaços nos quais os povos negros

foram obrigados a ocupar. Constrói, para tanto, uma voz poética em Poemas da

recordação e outros movimentos que parte do olhar sobre si mesma, mãe, mulher negra,

para proceder a uma grande imersão na memória, tanto individual quanto coletiva. Essa

voz se propõe, desde o primeiro poema, a fazer o caminho da volta, a releitura do

passado nacional.

Cada poema traz consigo vozes, imagens, corpos e cenas dos excluídos do

projeto de nação brasileira. Constituem-se como uma resistência à totalização da nação.

Dessa forma, podemos entender que a escrita de Conceição Evaristo, em si, já se

constitui como uma reivindicação para que as memórias que são postas “em cena”

sejam incluídas na imagem da nossa nação. Ao propor essa inclusão, Evaristo nos faz

perceber que essas narrativas são necessárias a uma imagem mais “verdadeira” de nós

mesmos.

Assim como fizemos com o livro No Fundo do Canto, adotaremos o recorte de

apenas um poema do livro, para que possamos trazê-lo na íntegra.

Vozes-Mulheres

A voz da minha bisavó ecoou

Criança

nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

Page 650: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1428

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. ]

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato

O ontem — o hoje — o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2008, p. 10-11)

A voz poética individualiza as suas memórias ao trazer para a sua escrita as

imagens de sua bisavó, avó, mãe, de si mesma, e de sua filha. Entretanto, sabemos que

essas imagens funcionam como metonímias de várias gerações ocultadas na história do

Brasil. São memórias trazidas sob uma perspectiva da violência contida no silêncio e na

trajetória de mulheres negras. Ao trazer essas gerações, Evaristo recupera uma parte da

história marginalizada dessas mulheres, uma história que passa pela escravidão e pela

cozinha dos “brancos-donos”, mesmo após o fim do regime escravocrata. A voz da

poeta se insere no momento de ruptura dessa ordem: do “fundo das cozinhas alheias”

para o limiar da voz.

A abertura para a reinterpretação da memória de várias gerações traduz o desejo

de conhecimento de si mesmo e de suas raízes, que é uma atitude no presente e que visa

também à projeção de um futuro diferente para as futuras gerações.

O título do poema “Vozes-Mulheres” já nos apresenta a um recurso recorrente

na poesia de Conceição Evaristo: a criação de novos sentidos, a partir de um processo

original de composição por justaposição de palavras. Ao longo do poema em questão,

são três ocorrências dessas palavras compostas: Vozes-Mulheres, brancos-donos, vida-

liberdade.

Esse procedimento linguístico é muito importante para a compreensão da poética

de Conceição Evaristo. Ela nos apresenta a sua voz subversiva e, na subversão do

silêncio imposto por várias gerações até chegar a sua, demonstra também que, ao se

Page 651: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1429

apropriar da língua portuguesa, está à vontade para subverter o código linguístico. No

tempo de releitura da nação, ela cria o seu espaço de enunciação, e o faz abrindo novos

espaços para a reinterpretação de signos. Esses, ao receberem uma segunda palavra que

os qualifica, passam a ter uma nova significação. Tal processo, portanto, sugere-se

como metonímia da própria voz da autora, uma vez que ela se constrói como uma voz

que visa à busca de um novo e mais completo “significado” para a sua nação. Devemos

considerar que num processo de composição das palavras, saímos da generalidade da

palavra “única” para termos um sentido mais vertical e particular, com a junção da

segunda palavra. O processo de justaposição ainda pode nos remeter à coexistência do

diferente: dois elementos de significações diferentes se juntam, ambos estabelecem

relações entre si, o segundo passa a dar um novo sentido ao que veio primeiro, tornam-

se interdependentes e têm igual importância no novo que surge.

Ainda sobre o título “Vozes-Mulheres”, nada melhor do que questionar o

silenciamento, começando pela palavra “voz”. A expressão evoca duas faces da

exclusão: o silenciamento dos povos negros e, mais ainda, das mulheres negras, ou seja,

o discurso da minoria da minoria. “Vozes-Mulheres” sintetiza gerações de mulheres

negras que tiveram as suas vozes abafadas e que encontram, na voz da poeta, ainda

perplexa “com rimas de sangue/ e/ fome”, a força para transgredir o espaço imposto

pelos “brancos-donos”, e pela qual, através da voz da sua filha, chegar-se-á à “vida-

liberdade”.

O poema traz os três tempos: passado, presente e futuro. Percebemos que há três

momentos nesse passado: o de sua bisavó, o de sua avó e o de sua mãe. Ao trazer essas

três gerações, a voz poética evoca três faces dessa voz no passado: a voz que ecoa

lamentos de uma infância perdida, a que ecoa obediência e a que ecoa revolta. No

presente, a voz poética dissemina em seus versos a sua voz e, ao mesmo tempo, a de sua

mãe, a voz de uma subversão no silêncio: “ecoou baixinho revolta/ no fundo das

cozinhas alheias”. Ainda no presente, “agora”, a voz poética afirma que a sua filha fará

a convergência de todas as vozes das gerações anteriores: “recorrer todas as nossas

vozes/ recolhe em si/ as vozes mudas caladas/ engasgadas nas gargantas.” e, num futuro

que se almeja próximo, “fará ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade”. Entendemos

que a poeta encerra o poema com a expressão “vida-liberdade” para denotar que apenas

Page 652: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1430

quando essas vozes se fizerem ouvidas, reunindo “a fala e o ato”, ressoar-se-á a “vida-

liberdade”.

Essa temporalidade também é traduzida no verbo ecoar, que ocorre em quatro

estrofes. Notamos que ele aparece conjugado no passado, nas três primeiras, e no

presente, na quarta. Na quinta, ele se torna o substantivo “eco”, sinônimo de substantivo

ressonância, que é empregado após a locução no futuro “se fará ouvir”. A ocorrência

dele, de forma repetida, é a própria imagem metafórica de seu sentido de ressonância,

como extensão e intensidade do som. A repetição acena para o desejo e a necessidade

dessa voz de ser ouvida, o que acontece na voz da poeta, ao traduzir esse eco presente

no imaginário de gerações, na metalinguagem de sua poesia: “A minha voz ainda/ ecoa

versos perplexos/ com rimas de sangue/ e/ fome.”.

4. Considerações finais

O trabalho de análise comparativa entre os poemas de Odete Semedo e

Conceição Evaristo nos possibilitou uma compreensão de como as duas autoras, por

meio de seus poemas, promovem uma releitura da memória e buscam uma redefinição

da identidade nacional de seus países. Em cada uma delas foi possível visualizar como a

literatura exerce o papel fundamental de construção das imagens de nação, bem como o

de dar voz aos excluídos da nação.

O estudo desses poemas nos propiciou o encontro de pontos convergentes nos

projetos estéticos das duas autoras. Ambas se colocam como mãe e mulher e revisitam o

seu imaginário ancestral, trazendo-o para o centro da sua poesia. Elas evocam esse

imaginário para promover o debate inadiável de suas respectivas nações: a inclusão de

memórias silenciadas.

As duas autoras trazem em sua poesia faces da memória traumática de sua gente.

Se em Guiné-Bissau percebemos, em Odete Semedo, imagens da violência de uma

guerra civil declarada, no Brasil, em Conceição Evaristo, é possível perceber imagens

da violência de uma guerra silenciosa que vitima os povos negros.

5. Referências

Page 653: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1431

AUGEL, Moema. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na

literatura da Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007a.

AUGEL, Moema. Posfácio: Cantopoema do desassossego. In: SEMEDO, Odete Costa.

No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007b. p. 185-198.

BHABHA, Homi K. DissemiNação. In: BHABHA, Homi K. O local da cultura.

Tradução Myriam Ávila et al. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte:

Nandyala, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagens de

negro na cultura brasileira. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.). Brasil afro-

brasileiro. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 87-115.

GLISSANT, Édouard. Poética da Relação. Tradução Manuela Mendonça. Porto: Porto

Editora, 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A,

2003.

MATA. Inocência. A crítica literária africana e a teoria pós-colonial: um modismo ou

uma exigência? In: A literatura africana e a critica pós-colonial: reconversões. Luanda:

Nzila, 2007.

MIRANDA, Wander Melo. À margem da nação. In: LEITE, Ana Mafalda et al. (orgs.)

Nação e narrativa pós-colonial I – Angola e Moçambique. Lisboa: Edições Colibri,

2012. p. 353-377.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.3-15.

RENAN, Ernest. Que é uma nação?. Plural. Sociologia, USP, São Paulo, n. 4, 1. sem.

1997, 154-175. Disponível em:

<http://www.revistas.usp.br/plural/article/viewFile/75901/79400>. Acesso em: 2 nov.

2014.

SEMEDO, Odete Costa. No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.

Page 654: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1432

NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE [Voltar para Sumário]

Karina Kelly Amâncio1 (IFAL)

INTRODUÇÃO

Os desafios da atualidade frente para a formação de professores exigem dispor

de ambientes que permitam autoria de estudos, mediação pedagógica, interação,

produção de colaborativo conhecimento e o desenvolvimento de competências na

utilização das novas tecnologias da informação.

A formação nos meios tecnológicos permite configurar diversos cenários

formativos que analisados podem proporcionar aprendizagens mais qualitativas na

comparação entre os diferentes momentos e ensino em função de aulas tradicionais que

utilizem recursos da internet.

Mediante a isso, surge uma nova visão relacionada ao papel do educador e ao

meio educacional sobre as novas tecnologias, sendo diferenciada. Com elas pode-se

desempenhar um conjunto de situações com interesse pedagógico e didático que

favorece a escola em seu todo.

NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE

Em uma sociedade cada vez mais tecnológica reconhece-se a necessidade de

inclusão em currículos escolares de competências e habilidades para lidar com as novas

tecnologias. No contexto de um meio social do conhecimento, a educação tem exigência

numa abordagem diferente na qual o avanço digital não pode ser deixado de lado.

O aumento exponencial da informação e as novas tecnologias levam a um novo

de organização de trabalho, na qual se faz necessário a busca por saberes, a

interdisciplinaridade e a colaboração transdisciplinar, sendo assim cada indivíduo

1 Pós-graduanda em Linguagem e práticas sociais – IFAL – (Instituto Federal de Alagoas) – 2014.

Psicopedagoga Clínica e Institucional – Faculdade São Luís de França, Polo Penedo/AL – 2013/2014.

Pedagoga – Faculdade Raimundo Marinho de Penedo (2012). Professora de Educação Infantil.

Page 655: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1433

envolvido nesse processo precisa estar atento a utilidade na vida econômica e ao acesso

a informação.

Diante disso, surge um novo paradigma relacionada ao papel do professor e a

educação ao que diz respeito as novas tecnologias, com diferenciação. Com elas pode-se

desempenhar um conjunto de situações com interesse pedagógico e didático.

O educador, nesse contexto de avanços, deve saber orientar os estudantes a

respeito da coleta de informação, como utilizar e como tratar. Esse profissional será o

conselheiro da aprendizagem dos discentes e encaminhador da autopromoção, ora

apoiado aos trabalhos de equipes para áreas afins, ora estimulando a individualização da

turma.

A qualidade educacional, centrados geralmente em mudanças didáticas e

curriculares, não pode colocar-se a margem de recursos disponíveis, levando adiante

inovações em disciplina educativa, reformas, nem de maneira de gestão que

possibilitem a implantação.

A incorporação de novas tecnologias em conteúdos básicos comuns é uma

metodologia que pode colaborar para uma vinculação maior entre as culturas

desenvolvidas fora da escola e os contextos de ensino.

Mediante a essa posição, as instituições educativas enfrentam o desafio não

apenas em trabalhar as novas tecnologias como conteúdos, mas também partir e

reconhecer as ideias que os estudantes têm a respeito delas para elaborar, desempenhar e

avaliar práticas pedagógicas, promovendo o desenvolvimento de usos tecnológicos e

disposição reflexiva sobre os conhecimentos.

O meio social na atualidade propõe mudanças profundas caracterizadas pela

valorização da informação. Nesse caso, a chamada sociedade da informação, momentos

de aquisição do conhecimento assumem papel fundamental, passando a exigência de um

professor criativo, crítico, tendo capacidade de aprender a aprender, pensar, trabalhar

em grupo e de se autoconhecer como pessoa.

Cabe à educação formar o educador e com isso, essa não se fortalece apenas ao

instrui-lo com relação ao discente, mas ao construir o conhecimento por ele e no

crescimento de novas competências, tais como: criar o novo a partir do conhecido,

adaptar-se a ele, autonomia, comunicação, criatividade e capacidade de inovar. É função

Page 656: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1434

da instituição hoje, preparar os estudantes para responder rapidamente as mudanças

constantes, saber pensar e resolução de problemas.

As novas maneiras de aprender e as novas tecnologias

Com as novas tecnologias surgem-se diversas possibilidades para educação, no

qual exige nova postura do professor. A utilização de redes telemáticas no meio

educacional obtém-se informações em bibliotecas, universidades, permitindo atividades

diferenciadas em parceria com diferentes instituições, conexão com estudantes e

docentes em qualquer horário e localidade, favorecendo o desempenho de trabalhos para

haver troca de informações entre estados, escolas e países, através de contos, cartas,

sugerindo ao profissional trabalhar melhor o desenvolvimento do saber.

Paulo Neves (1996, p.11) em seu livro o que é o virtual? Destaca que

Um movimento geral da virtualização afeta hoje não apenas a informação e a

comunicação, mas também, os corpos, o funcionamento econômico, os

quadros coletivos da sensibilidade ou o exercício da inteligência.

O autor transmitiu a importância da virtualização, ou seja, a forma como ela esta

inserida na sociedade e que precisa envolver-se em principal com a escola, podendo

acontecer avanços de qualidade tanto individual como coletiva.

O acesso a redes computadorizadas interconectadas a distância possibilitam que

a aprendizagem acontece com frequência no espaço tecnológico, precisando ser

aplicadas as práticas pedagógicas. A instituição educativa é um ambiente privilegiado

de interação social, mas esse precisa integrar-se e interligar-se com os diversos espaços

do saber existentes na atualidade e incorporar os recursos tecnológicos e a comunicação

entre redes, no qual permitirá a realização de pontes sobre transformação e

conhecimentos.

A formação de educadores nessa perspectiva tem sido bastante crítica e não tem

privilegio de forma efetiva pelas políticas públicas em educação nem pelas instituições

federais de ensino. As soluções sugeridas seria a inserção de programas de formação de

nível de especialização ou, programas para qualificar os recursos humanos.

A finalidade de implantar novas tecnologias na escola é para realização de

situações novas e pedagogicamente importantes, não podendo ser feitas de outras

Page 657: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1435

formas. A instituição passa a ser um lugar mais motivador para preparação de

estudantes numa visão futura. A aprendizagem centra-se na capacitação destes,

tornando-se independentes da informação e nas diferenças individuais.

Cabem as escolas a condução do processo de mudanças da atuação do docente,

principal ator desse crescimento, capacitando o discente no intuito de buscar

corretamente a informação em fontes de vários tipos e a introdução das novas

tecnologias de comunicação. Fica sendo necessária também, a conscientização de toda a

sociedade escolar, em especial os estudantes, da importância da tecnologia no

desenvolvimento cultural e social.

Com as novas formas de aprender, novas tecnologias, novas competências são

exigidas, novas maneiras de realização de trabalho pedagógico são fundamentais e

essências, é necessário formar o novo educador continuamente na atuação em ambientes

telemáticos, no qual a tecnologia sirva como mediador do processo ensino

aprendizagem.

Exigências de formação e perfil do profissional da educação

As dificuldades existentes em meios convencionais para preparar profissionais

no uso adequado das novas tecnologias são evidentes, pois fica sendo necessário haver a

formação para atuação dos mesmos num crescimento pessoal.

Existem tentativas para incluir o estudo de novas tecnologias nos currículos dos

cursos de formação de educadores, mas esbarram em dificuldades sobre investimento

exigido na aquisição os equipamentos, e na ausência de professores capazes de superar

os preconceitos e as práticas rejeitadas a tecnologia mantendo uma formação na qual

predomina modos substituíveis por outros adequados aos problemas educativos.

É necessário motivar a pesquisa e colocar-se a caminho com o estudante e estar

sempre aberto à exploração, da descoberta de que o educador, pode também aprender

com o mesmo na formação docente, esse, segundo Luís Paulo (1998) destaca que

durante e no final do processo, precisa incorporar na sua metodologia:

Conhecimento das novas tecnologias e da maneira de aplica-las; estímulo à

pesquisa como base de construção do conteúdo a ser veiculado através do

computador, saber pesquisar e transmitir o gosto pela investigação a alunos

de todos os níveis; capacidade de provocar hipóteses e deduções que possam

Page 658: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1436

servir de base à construção e compreensão de conceitos; habilidade de

permitir que o aluno justifique as hipóteses que construiu e as discuta;

especialidade de conduzir a análise grupal a níveis satisfatórios de conclusão

do grupo a partir de posições diferentes ou encaminhamentos diferentes do

problema; a capacidade de divulgar os resultados da análise individual e

grupal de tal forma que cada situação suscite novos problemas interessantes à

pesquisa.

Ao professor cabe a função de estar engajado no processo, tendo consciência não

só das capacidades reais de tecnologia, de suas limitações para poder selecionar qual a

melhor utilização a ser determinada num conteúdo determinado e do seu potencial, na

melhoria do ensino aprendizagem, por meio de uma renovação da prática pedagógica do

educador e da mudança do discente, como sujeito ativo na construção do seu

conhecimento.

As informações que os estudantes obtém com relação a internet não são apenas

recebidas e guardadas. Essas representam um ponto de saída e não um fim em si

mesmas. Quando um discente encontra-se com informação no meio tecnológico, ele

coloca-a no seu contexto, da sua vivência, buscando mais informações sobre, tornando-a

um elemento da sua própria formação, tendo a consciência da importância do que

aprendeu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As novas tecnologias podem trazer impacto a respeito do papel do professor, na

reciclagem recebida constante via rede, referentes a conteúdos, metodologias e uso da

tecnologia, no qual apoia um modelo geral de ensino que enfrente os discentes como

ativos participantes do processo de aprender e não como passivos receptores de

conhecimento ou informações, no incentivo de professores na utilização de redes e

iniciarem a reformulação de suas aulas, encorajando-os na participação de experiências

novas.

Alguns pontos produtivos: tendo acesso as tecnologias da informação e sua

transformação em conhecimento no decorrer de todo o período escolar, os estudantes

serão em seguida agentes de mudança no meio de produção e de serviços ao

naturalmente influir ao utilizar destas.

Page 659: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1437

As atividades de pesquisa devem ser compartilhadas por outros discentes e

divulgadas na rede instantaneamente para quem sentir interesse. Discentes e docentes

encontram diversos recursos para facilitação na tarefa de preparar as aulas, fazendo

trabalhos de pesquisa e tendo materiais que chamem atenção na apresentação.

O esperado do professor do século XXI é que ele seja aquele agente que

colabore na trama do desenvolvimento coletivo e individual, sabendo manejar os

instrumentos a formação cultural irá indicar na representação das formas e viver e de

pensar a civilização, específicos de tempos novos. Com isso, ainda são necessárias

várias pesquisas com relação as novas tecnologias da informação, interações entre

pares, modelos cognitivos, aprendizagem cooperativa que se adequem ao modelo que se

baseie em tecnologia, orientando a formação de educadores no seu desempenho e

ofereça parâmetros para atividade educativa nessa perspectiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LÉVY Pierre, tradução de Paulo Neves. O que é o virtual? São Paulo: ed. 34, 1996.

MERCADO, Luís Paulo Leopoldo. Formação docente e novas tecnologias.

Universidade Federal de Alagoas – Brasil, 1998.

NÓVOA, A. Formação contínua de professores: realidades e perspectivas. Aveiro,

Universidade. Aveiro, 1991.

Page 660: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1438

UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM

AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA NO BRASIL – SAEB

E PROVA BRASIL [Voltar para Sumário]

Karine Alves David (UFRN)

1 Introdução

O artigo em epígrafe propõe um estudo sobre a argumentação no processo de

avaliação de língua portuguesa dos exames em larga escala no Brasil (SAEB e Prova

Brasil). Nosso propósito é, a partir dos pressupostos de algumas abordagens recentes

sobre a argumentação, verificar como essas abordagens são consideradas na matriz de

referência para elaboração das provas.

No que concerne a estudos da argumentação nos deteremos aos pressupostos de

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Anscombre e Ducrot (1983). Ducrot (1987, 1990,

2002), Carel (1995) e Carel e Ducrot (2001, 2005). Este aparato teórico nos servirá

como base para que possamos responder à seguinte indagação: Qual o conceito de

argumentação subjaz aos descritores das matrizes de referência do SAEB e da

Prova Brasil?

A relevância desta pesquisa encontra-se no fato de podermos contribuir

sobremaneira para futuras reflexões em torno da complexa tarefa de estabelecer critérios

de análise para as matrizes de referência e de correção dos exames em larga escala que

trazem avaliações de língua portuguesa no Brasil. Sabemos, portanto, que não existe

uma grade de parâmetros perfeita que possamos vir a propor, mas se faz essencial

qualquer esforço para tentarmos amenizar as dificuldades existentes tanto na concepção

das provas, como também ao processo de avaliação dos estudantes no que concerne ao

processo da argumentação da língua.

Page 661: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1439

2 As avaliações em larga escala no Brasil: SAEB (ANEB) e Prova Brasil

(ANRESC)

Atualmente, são realizadas seis avaliações em larga escala no Brasil, todas sob a

responsabilidade da Diretoria de Avaliação da Educação Básica (DAEB), vinculada ao

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). São

elas: o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA); o Exame Nacional do

Ensino Médio (ENEM); o Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens

e Adultos (ENCCEJA); a Provinha Brasil; o Sistema Nacional de Avaliação da

Educação Básica (SAEB) e a Prova Brasil. (JACOBSEN; MORI, 2010).

O Saeb é composto por três avaliações externas em larga escala: ANEB,

ANRESC e ANA. Neste artigo, nos deteremos aos exames relacionados ao Saeb

(ANEB) e Prova Brasil (ANRESC).

Conforme dados dos cadernos do Saeb (2011) o Sistema de Avaliação da

Educação Básica (SAEB) tem como principal objetivo avaliar a Educação Básica

brasileira e contribuir para a melhoria de sua qualidade e para a universalização do

acesso à escola, oferecendo subsídios concretos para a formulação, reformulação e o

monitoramento das políticas públicas voltadas para a Educação Básica. Além disso,

procura também oferecer dados e indicadores que possibilitem maior compreensão dos

fatores que influenciam o desempenho dos alunos nas áreas e anos avaliados.

A Avaliação Nacional da Educação Básica – Aneb (também conhecida por

SAEB) abrange, de maneira amostral, alunos das redes públicas e privadas do país, em

áreas urbanas e rurais, matriculados na 4ª série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino

Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio, tendo como principal objetivo avaliar a

qualidade, a equidade e a eficiência da educação brasileira. Apresenta os resultados do

país como um todo, das regiões geográficas e das unidades da federação.

Já a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar - Anresc (também

denominada "Prova Brasil") é uma avaliação censitária envolvendo os alunos da 4ª

série/5ºano e 8ªsérie/9ºano do Ensino Fundamental das escolas públicas das redes

municipais, estaduais e federal, com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino

ministrado nas escolas públicas. Participam desta avaliação as escolas que possuem, no

mínimo, 20 alunos matriculados nas séries/anos avaliados, sendo os resultados

disponibilizados por escola e por ente federativo.

Page 662: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1440

A Aneb/SAEB e a Anresc/Prova Brasil são realizadas bianualmente, enquanto a

ANA é de realização anual.

3 Argumentação retórica e argumentação linguística

Perelman com a colaboração de Olbrechts-Tyteca propõe a Nova Retórica, teoria

por meio da qual se propõe uma nova roupagem para os estudos retóricos, sem

desprezar os preceitos advindos da retórica aristotélica (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, 2005). Melhor dizendo, a Nova Retórica é um retorno à Dialética de

Aristóteles e não necessariamente à própria Retórica, haja vista Perelman asseverar que

tanto a Retórica quanto a Dialética supõem um auditório e ambas buscam persuadir

alguém. Para ele, esses traços em comum o autorizaram a fazer a substituição.

Acontece, porém, que o conceito de auditório de Perelman não é o mesmo da Antiga

retórica aristotélica. Segundo este autor, um auditório é algo virtual, trata-se de um

auditório construído pelo argumentador.

Na Nova Retórica o conceito de auditório é um elemento essencial para que se

possa desenvolver uma argumentação. Vejamos o que diz Ribeiro (2009, p.27):

é a relação entre orador e auditório que constitui o sentido da argumentação

[...] a concepção de auditório vista sob a ótica da heterogeneidade, que supõe

a existência de vários indivíduos, pensando de forma diferente e

possivelmente chegando também a conclusões diferentes [...].

Ao revitalizarem a noção aristotélica de auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca

(2005) resgatam o conceito de que a retórica é a arte de argumentar, desde que com

pensamento lógico e racional, pois a verossimilhança só adquire status de verdade na

instância interlocucionária – momento em que o discurso é ouvido pelo auditório.

“Somente nessa situação é que se pode obter adesão do auditório e é para esse fim que

as provas são necessárias” (OLIVEIRA, 2013, p.232).

Outra definição importante para esses dois autores além da concepção de

auditório diz respeito à ideia de orador e discurso que são, de acordo com Ribeiro

(2009, p.26) “elementos responsáveis pelo movimento argumentativo”.

No momento em que um orador apresenta um discurso, ele quer que as pessoas o

aceitem e abracem sua ideia. Para conseguir a adesão do auditório há a necessidade do

Page 663: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1441

orador em persuadir o seu público. “A Nova Retórica concebe a argumentação como um

conjunto de meios verbais pelos quais um orador tenta provocar ou reforçar a adesão de

um auditório às teses que ele submete a seu assentimento” (OLIVEIRA, 2013, p.233).

O conceito de argumentação utilizado para a Nova Retórica de Perelmam então

é o que chamaremos de Argumentação Retórica. E nos valeremos desse conceito para

analisarmos as matrizes de referência das provas do SAEB e Prova Brasil.

Já a Teoria da Argumentação da Língua (ADL) ou Semântica Argumentativa

surge a partir dos anos 70 por meio de estudos desenvolvidos pelo francês Oswald

Ducrot com a colaboração de Jean-Claude Anscombre (ANSCOMBRE e DUCROT,

1983). A primeira fase foi denominada de Forma Standard, e a segunda Forma Stardard

Ampliada ou Teoria dos Topoi Argumentativos. É com a contribuição de Marion Carel

que teremos uma terceira fase conhecida por Teoria dos Blocos Semânticos (CAREL,

1995).

Conforme Graeff e Timmermann (2014, p.98) a Teoria dos Blocos Semânticos,

originada a partir da Teoria da Argumentação da Língua (ADL), foi o resultado de

reflexões sobre o sentido argumentativo nas palavras que deixa de lado por completo o

sentido informativo. Ao perpassarmos por estas três fases, poderemos acompanhar as

modificações sofridas pela própria noção de encadeamento argumentativo.

Na primeira fase da ADL, a fase conhecida por Standard, a ideia apresentada é a

de que as palavras não possuem sentido antes de conclusões delas tiradas conforme este

exemplo: Faz sol, vamos sair. Faz sol, não vamos sair. Observemos que o valor

semântico da expressão faz sol vai variar de acordo com as conclusões tiradas dela. Em

um momento, o sol é favorável, e em outro é desfavorável.1

Foi Ducrot e Anscombre (1983) que primeiramente observaram o valor

argumentativo das palavras em detrimento de seu valor informativo. Para estes autores,

existem pares de frases cujos enunciados designam o mesmo fato, quando o contexto é

o mesmo, sendo as argumentações, possíveis a partir desses enunciados completamente

diferentes.

Para Ducrot (1990) existem operadores na língua que, mesmo sendo diferentes,

podem chegar a uma mesma conclusão, basta que sejam utilizados diferentes princípios

argumentativos que venham a garantir a passagem do argumento para a conclusão. A

1 Exemplo retirado de Graeff e Timmermann (2014, p.98)

Page 664: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1442

esses princípios Ducrot chama topoi, termo que traz de Aristóteles, mas que modifica o

sentido que foi atribuído primeiramente por este filósofo.

Para Aristóteles, de acordo com Ducrot (1990, p.102) um topos é uma espécie de

depósito no qual um orador pode encontrar toda classe de argumentos que servem para

defender sua tese. Para Ducrot, os topoi possuem um sentido mais estreito, são crenças,

lugares comuns argumentativos que possuem a tarefa de orientar o argumento em

direção a uma conclusão. No momento em que Ducrot inclui os topoi nessa discussão, é

determinada a mudança da Forma Standard para a Standard Ampliada ou Teoria dos

Topoi.

A noção de topos é deixada de lado e surgem outros conceitos como os de:

blocos semânticos; aspectos normativo e transgressivo e argumentação interna e

externa. Para Carel (1995) a Teoria de Topoi, na verdade, contrariava a ADL, pois

“baseava a argumentação em elementos existentes no mundo exterior, enquanto o que

se tentava estabelecer é que argumentação era de ordem puramente linguística”

(GRAEFF; TIMMERMANN, 2014, p.101).

Para Carel e Ducrot (2005) bloco semântico é definido como o resultado de

sentido entre dois segmentos X e Y, ligados por um conector que pode ser normativo

(donc/logo) ou transgressivo (pourtant/no entanto). Desse modo um bloco semântico

pode expressar vários aspectos: positivo, negativo, recíproco; converso, normativo,

transgressivo etc.

No conjunto desta teoria, a perspectiva é a de argumentação linguística, aquela

calcada a partir de preceitos da língua. Nesse caso, o signo é a frase complexa: o

significado de uma frase simples só pode ser definido por suas possibilidades de

combinação com outras frases simples.

Ducrot (2009, p. 20) deixa muito clara a diferença entre argumentação retórica e

argumentação linguística. Para ele a argumentação retórica seria “a atividade verbal que

visa fazer alguém crer em alguma coisa”, ao passo que a argumentação linguística diz

respeito aos “segmentos de discurso constituídos pelo encadeamento de duas

proposições A e C, ligadas implícita ou explicitamente por um conector do tipo de donc

(portanto), alors (então), par consequente (consequentemente)”.

A principal diferença entre as duas concepções de argumentação encontra-se no

fato de existir ou não a abordagem linguística. Ducrot entende que a argumentação

Page 665: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1443

retórica precisa valer-se de uma série de outros mecanismos, ou da análise de tais

mecanismos, que não são linguísticos, para se efetivar como argumentação que leva

alguém a fazer algo (desenvolvimento de uma imagem positiva do locutor e do desejo

do ouvinte de crer no orador). Para este autor, palavras e enunciados oferecem uma

orientação argumentativa ao discurso pois assevera que o próprio sistema linguístico é

argumentativo. Para tal, vejamos este exemplo: “tu diriges depressa demais, tu corres o

risco de sofrer um acidente”, depressa demais e acidente possuem uma relação

semântica atualizada pelo discurso, diferente da relação possível entre, por exemplo,

depressa demais e multa. O argumento só será compreendido se este for direcionado a

uma conclusão (DUCROT, 2009, p.22).

Conforme Barbisan (2013, p.136)

a ADL de Ducrot se trata de uma proposta semântica que se ocupa do sentido

no discurso construído por meio da relação entre palavras, frases, e

principalmente entre discursos. É, pois, uma teoria semântica que não

esquece o linguístico. Sendo uma teoria do discurso, a partir de um olhar

enunciativo sobre a linguagem, revela como se produz a argumentação,

presente em todo discurso. Com esse posicionamento, a teoria de Ducrot

afirma que argumentação está na língua, articulando consequentemente

sistema e uso do sistema.

4 Uma breve análise da Matriz de Referência do SAEB e da Prova Brasil

A Matriz de Referência de Língua Portuguesa do Saeb e da Prova Brasil

apresenta a relação entre os temas, os descritores e as habilidades estabelecidos para a

avaliação dos alunos dos 4ª série/5º ano e 8ª série/9º ano do ensino fundamental e da 3ª

série do ensino médio.

No total, a Matriz de Referência de Língua Portuguesa do Saeb e da Prova Brasil

é composta por seis tópicos: I. Procedimentos de Leitura; II. Implicações do Suporte, do

Gênero e/ou do Enunciador na Compreensão do Texto; III. Relação entre Textos,

Coerência e Coesão no Processamento do Texto; IV. Relações entre Recursos

Expressivos e Efeitos de Sentido e V. Variação Linguística.

No que concerne a sua estrutura, a Matriz de Língua Portuguesa divide-se em

duas dimensões: uma denominada Objeto do Conhecimento, em que são listados os seis

tópicos; e outra denominada Competência, com descritores que indicam habilidades a

serem avaliadas em cada tópico. Para a 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental (EF), são

Page 666: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1444

contemplados 15 descritores; para a 8ª série/ 9º ano do EF e 3ª série do Ensino Médio

(EM) são acrescentados mais 6, totalizando 21 descritores. Os descritores aparecem,

dentro de cada tópico, em ordem crescente de aprofundamento e/ou ampliação de

conteúdos ou das habilidades exigidas.

A seguir, apresentamos um modelo de Matriz de Referência organizado por nós

que demonstra quais os descritores são cobrados para os alunos de 5º, 9º e 3º anos nas

avaliações do SAEB e da Prova Brasil.

Descritores do Tópico I. Procedimentos de Leitura 5 º

ano

9 º

ano

ano

D1 – Localizar informações explícitas em um texto. X X X

D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão. X X X

D4 – Inferir uma informação implícita em um texto. X X X

D6 – Identificar o tema de um texto. X X X

D14 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato. X X X

Descritores do Tópico II. Implicações do Suporte, do Gênero

e /ou do enunciador na Compreensão do Texto

D5 – Interpretar texto com auxílio de material gráfico diversos

(propagandas, quadrinhos, foto, etc.).

X X X

D12 – Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros. X X X

Descritores do Tópico III. Relação entre Textos

D20 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação

na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função

das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será

recebido.

X X X

D21 – Reconhecer posições distintas entre duas ou mais

opiniões relativas ao mesmo fato ou ao mesmo tema.

X X

Descritores do Tópico IV. Coerência e Coesão no

Processamento do Texto

D2 – Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando

repetições ou substituições que contribuem para a continuidade

de um texto.

X X X

D7 – Identificar a tese de um texto. X X

D8 – Estabelecer relação entre a tese e os argumentos oferecidos

para sustentá-la.

X X

D9 – Diferenciar as partes principais das secundárias em um

texto.

X X

D10 – Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos

que constroem a narrativa.

X X X

Page 667: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1445

D11 – Estabelecer relação causa/consequência entre partes e

elementos do texto.

X X X

D15 – Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto,

marcadas por conjunções, advérbios, etc.

X X X

Descritores do Tópico V. Relações entre Recursos

Expressivos e Efeitos de Sentido

D16 – Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados. X X X

D17 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente do uso da

pontuação e de outras notações.

X X X

D18 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de

uma determinada palavra ou expressão.

X X

D19 – Reconhecer o efeito de sentido decorrente da exploração

de recursos ortográficos e/ou morfossintáticos.

X X

Descritores do Tópico VI. Variação Linguística

D13 – Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o

locutor e o interlocutor de um texto

X X

Os questionamentos que nos restam são: Qual é a abordagem de Argumentação

que é apresentada nestes descritores? Essa noção de argumentação, quando aparece, é

explicita ou implícita?

Nesta sessão, analisaremos os tópicos e descritores que fazem menção ao

processo argumentativo da linguagem, levando-se em conta também alguns itens que

são apresentados como exemplos no manual.

Começaremos pelo Tópico III – Relações entre textos. Encontramos o descritor

D21 – Reconhecer posições distintas entre duas ou mais opiniões relativas ao mesmo

fato ou ao mesmo tema. Esse item trata acerca de “opinião” só a habilidade avaliada por

meio deste descritor diz respeito à identificação por parte do aluno de opiniões

diferentes emitidas sobre o mesmo fato ou tema. Aqui, encontramos um item que traz

dois textos cujo tema é “casamento arranjado” e o enunciado é o seguinte: “Sobre

‘casamento arranjado’ o texto I e o texto II apresentam opiniões..." as alternativas para

este item são: a) complementares; b) duvidosas; c) opostas; d) preconceituosas e e)

semelhantes. A resposta seria a letra “c”. A abordagem da argumentação que passa mais

próxima aqui é a da argumentação retórica. Neste item são utilizados recursos para

sustentar mais de uma opinião relacionada a um único fato. É como se o estudante fosse

chamado a ser persuadido por duas opiniões e tivesse que analisar a relação semântica

Page 668: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1446

existente entre estas e “ser levado a fazer alguma coisa, apoiado sobre um fazer crer”

(DUCROT, 2009, p.20).

Para o Tópico IV que se refere à Coerência e Coesão no processamento do texto

identificamos três descritores que fazem menção ao tema argumentação.

O Descritor D8 – Estabelecer a relação entre a tese e os argumentos oferecidos

para sustenta-la, tem como objetivo, não somente identificar a tese, mas também fazer

com que o leitor identifique argumentos utilizados pelo autor do texto na construção de

um texto argumentativo. Ou seja, primeiramente, o estudante precisa reconhecer o ponto

de vista que está sendo defendido e, posteriormente, relacioná-lo aos argumentos que o

sustentam. O item que serve de exemplo diz respeito a um texto cujo título é “A língua

está viva”. O enunciado solicita o seguinte: “A tese da dinamicidade da língua

comprova-se pelo fato de que...”. Em seguida aparecem 5 opções as quais tratam de

frases declarativas que possivelmente tratam sobre a tese.

Sobre os descritores 7 e 8 que tratam acerca da tese e dos argumentos

relacionados a esta, o aluno é alertado para a existência de uma tese central e de

argumentos que apoiam esta tese. A abordagem dada a este item oscila entre alguns

conceitos sobre argumentação e conceitos relacionados à retórica, como por exemplo, o

de argumentação de autoridade, lugar comum e valores. Do ponto de vista linguístico a

relação entre forma e argumentação nem sempre é bem clara. Há uma aproximação da

abordagem da argumentação retórica sob alguns aspectos, mas não coincidem com esta

em totalidade, não sendo possível se afirmar, que se está diante de uma proposta retórica

da argumentação.

No descritor D11 – Estabelecer relação causa-consequência entre partes e

elementos do texto, a habilidade avaliada é a identificação de elementos que, no texto,

estão na interdependência de causa e consequência, ou seja, o aluno deverá identificar o

motivo pelo qual os fatos são apresentados nos textos, ou seja, o reconhecimento de

como as relações entre os elementos organizam-se de forma que um torna-se o resultado

do outro. Segundo os cadernos do SAEB, “Entende-se como causa consequência todas

as relações entre os elementos que se organizam de tal forma que um é resultado do

outro.” (BRASIL, 2011, p. 51). O exemplo apresenta um texto-base cujo título é “O

Quiromante”. O enunciado reza o seguinte: “O trecho “a partir daí, abandonou a

quiromancia” (l.8) apresenta, com relação ao que foi dito no parágrafo anterior o sentido

Page 669: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1447

de...”. As pretensas respostas são: a) comparação; b) condição; c) consequência; d)

finalidade e e) oposição.

Por último, o descritor D-15 trata sobre “Estabelecer relações lógico-discursivas

presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios etc.”. Por meio deste descritor,

pretende-se avaliar a habilidade do aluno em perceber a coerência textual, partindo da

identificação dos recursos coesivos e de sua função textual. Um item que se volta para o

reconhecimento de tais relações deve dar foco às expressões sinalizadoras e seu valor

semântico, sejam conjunções, preposições ou locuções adverbiais. Estas relações podem

ser as de causalidade, de comparação, de concessão, de tempo, de condição, de adição,

de oposição etc. Para se apreender a coerência de um texto é fundamental reconhecer

qual o tipo de relação semântica estabelecida por esses elementos de conexão (BRASIL,

2011, p.53). O item dado como exemplo tem como titulo “Câncer”, texto retirado da

Revista Galileu. O enunciado traz o seguinte comando: “O conectivo “portanto”, (l.13),

estabelece com as ideias que o antecedem uma relação de..." As opções são as

seguintes: a) adversidade; b) conclusão; c) causa; d) comparação e e) finalidade.

No que se refere aos descritores D11 e D15 que tratam sobre relações lógico-

discursivas, deparamos com itens em que os operadores argumentativos estão

desvinculados do discurso por meio de frases isoladas. O modo de observar a linguagem

em uso continua bastante próximo do estudo da gramática, do sistema da língua. Por

meio destes descritores observamos a redução do conceito de argumentação linguística

postulada por Ducrot, pois tal conceito ultrapassa os liames da palavra. Ducrot (2009)

diz que essa definição pode ser estendida aos encadeamentos que ligam não duas

proposições sintáticas, mas duas sequências de proposições, como por exemplo, dois

parágrafos de um artigo.

Em relação aos Tópicos I -Procedimentos de Leitura, V- Relações entre

Recursos Expressivos e Efeitos de Sentido - e VI – Variação Linguística -, não

identificamos nenhum descritor que faça referência ao processo argumentativo.

Após elencarmos os tópicos e descritores que apresentam itens que fazem

menção à argumentação o que observamos foi que, na verdade, o processo

argumentativo ainda é tratado de forma muito superficial nessas questões. A abordagem

a partir da qual se concebe argumentação nessa matriz não pode ser identificada de

forma clara. De fato, ela é apenas implícita.

Page 670: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1448

5 Conclusões

Nas avaliações em larga escala do SAEB e Prova Brasil a argumentação é

tratada de forma genérica sem o cuidado de ser partir de uma concepção teórica definida

sobre o fenômeno. Há questões que abordam noções de argumentação, porém, não se

consegue identificar o tipo de abordagem balizadora dos descritores, no caso do

trabalho em epígrafe, se a argumentação retórica ou a argumentação linguística.

No pouco que podemos tecer até aqui, fica clara a importância da argumentação

enquanto objeto de estudo para várias áreas do saber, desde a antiga Grécia até os dias

atuais. Tentamos fazer um recorte dos estudos da argumentação desde as contribuições

de Perelman sobre a argumentação retórica até Ducrot no que tange à argumentação

linguística e o que concluímos a priori foi que nas matrizes de referência das provas do

SAEB e Prova Brasil ainda não se assume um viés teórico situado ou na linha da

argumentação retórica ou uma argumentação fundamentada no uso da língua. Na

verdade o que falta é um conceito sobre o que, de fato, se entende por argumentação.

Como então se pode avaliar um aluno no que tange a tal processo, se não se tem sobre

ele uma teoria, um conceito propriamente dito.

O que postulamos, ainda a priori é que não há uma delimitação das teorias

argumentativas abordadas nas avaliações de LP nos exames em larga escala no Brasil,

no caso de nossa pesquisa, SAEB e Prova Brasil. E quando há uma menção implícita

sobre a argumentação não há, também, uma devida observação das relações existentes

entre estas teorias.

Referências

ANSCOMBRE, J-C.; DUCROT, O. L’argumentation dans la langue. Bruxelles:

Mardaga, 1983.

ARISTÓTELES. Rhétorique. Paris: Librairie Générale Française, 1991.

BARBISAN, Leci Borges. Uma proposta para o ensino da argumentação. Letras de

Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 2, jun. 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação:

SAEB: ensino médio: matrizes de referência, tópicos e descritores. Brasília, 2011.

Page 671: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1449

CAREL, M. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatics, v.24, p.167-

188, 1995.

CAREL, M.; DUCROT, O. O problema do paradoxo em uma semântica argumentativa.

Trad. Sheila Elias de Oliveira. In: GUIMARÃES. Línguas e instrumentos lingüísticos 8.

Campinas: Pontes, 2001, p. 7-32.

CAREL, M.; DUCROT, O. La semántica argumentativa: una introducción a la Teoría

de los Bloques Semánticos. Trad. e org. Maria Marta García Negroni e Alfredo M.

Lescano. Buenos Aires: Colihue, 2005.

DUCROT, O. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.

DUCROT. O. Polifonía y argumentación.Cali: Universidad del Valle, 1990.

DUCROT. Os internalizadores. Letras de Hoje (A Teoria da Argumentação na Língua:

estudos e aplicações), Porto Alegre, v. 37, n. 3, p. 7-26, set. 2002.

Ducrot, Oswald. Argumentação retórica e argumentação linguística. Letras de Hoje, v.

44, n. 1, jan./mar. 2009.

GRAEFF, T.; TIMMERMANN, R. O encadeamento argumentativo como doador de

sentido na análise dialógica do discurso e na semântica argumentativa. Bakrtiniana, São

Paulo, v.01, n. 09, p.90-107, jan./jul. 2014.

JACOBSEN, C. C.; MORI, N. N. R. Prova Brasil e desempenho em língua portuguesa:

um estudo com escolas paranaenses. HISTEDBR On-line, Campinas, n. 38, p. 80-91,

jun. 2010.

MENEZES, W. A. Faces e usos da argumentação. In: MARI, H., MACHADO, I. L.;

MELLO, R. (Org.). Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: FALE

/UFMG, 2001, p.179-199.

OLIVEIRA, J. V. C. A Persuasão na mídia impressa: um estudo retórico do discurso

argumentativo na Revista VEJA. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 02, n. 01, p.

230 –241, jan./jun. 2013.

PERELMAN, C; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova

retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005 ou 1996.

RIBEIRO, R. M. A construção da argumentação oral no contexto de ensino. São Paulo:

Cortez, 2009.

SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F. Um estudo da Teoria da Argumentação da

Retórica Aristotélica à Teoria dos Blocos Semânticos. Diálogo das Letras, Pau dos

Ferros, v. 02, n. 01, p. 4 – 23, jan./jun. 2013.

Page 672: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1450

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO

FREIRE: UMA ANÁLISE CRÍTICA [Voltar para Sumário]

Karla Karine Claudino Tenório (UPE)

Introdução

A escolha desse autor contemporâneo se deve ao fato de acreditarmos que temas

“debatidos” na mídia e relevantes na sociedade atual são ressemantizados em seus

contos. Isto porque em sua obra conseguimos ver temas contemporâneos como a

sociedade do espetáculo, a sociedade líquida, a sociedade da simulação e medo líquido,

que culminam numa reflexão da realidade. Conforme as teorias sociológicas de

Goldman (1979), a escrita literária manifesta uma multiplicidade de acontecimentos que

estão relacionados à existência humana, sem dúvida esta é uma questão importante,

tendo em vista que o escritor ao construir sua obra é influenciado pelo meio social. A

análise parte não somente da ligação do texto com o indivíduo, mas também da

linguagem contemporânea.

Este trabalho tem por finalidade analisar algumas obras de Marcelino Freire,

segundo as teorias sociocríticas fazendo uma abordagem do contexto social, histórico e

cultural; com isso tentamos fazer uma reflexão sobre a linguagem literária e sua

inserção na compreensão dos processos sociais.

Para Schollhammer (2003, p. 87), “o confronto entre a imagem e o texto oferece

atualmente uma abordagem fértil para compreensão da literatura numa sociedade cada

vez mais dominada pela dinâmica da “cultura da imagem””. A imagem é um elemento

significativo que traz mediações da realidade; essa cultura visual, conforme o autor se

apresenta a partir do discurso cultural e de sua visibilidade literária. O texto depende

mais do que nunca da qualidade visual, já que sua materialidade escrita depende do seu

Page 673: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1451

meio gráfico, esclarecendo que nada é puramente visual ou verbal, isto é, as linguagens

são complementares.

No livro Angu de Sangue (2002) de Marcelino Freire, por exemplo, o conjunto

de imagens não são ilustrações das palavras que compõem os contos, mas sim, uma

interpretação dos textos. O projeto gráfico da artista Silvania Zandomeni (2002)

funciona como um instrumento de significação, uma espécie de interpretação dos

conjuntos, em que “o conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo

fundamental para a compreensão das condições representativas em geral”, como

argumenta Schollhammer (2003, p. 88).

Considerando que um papel da literatura é a reflexão, a leitura de Angu de

Sangue possibilita ao leitor entrar em diferentes espaços do cotidiano brasileiro. As

visões sobre esses espaços não são fatos individuais e sim sociais. O escritor, através da

linguagem, expressa no plano conceitual uma visão e descreve as formas de

interpretação do mundo. Isso nos leva a perceber que a obra apresenta, constrói,

possibilita reflexões sobre o mundo, revelando que tais espaços correspondem a

algumas classes sociais de nosso país.

Ao refletir sobre a contemporaneidade, a partir de uma leitura das linguagens

que compõem este “Angu”, cujo título já nos remete ao “caos” do mundo atual1,

buscamos através da análise das obras Angu de sangue (2002); e Contos Negreiros

(2005) de Marcelino Freire, mostrar como o estudo da literatura é importante para a

compreensão não só da sociedade, mas também da cultura representada nos contos

contemporâneos.

Nesta apresentação, propomos que na realização dos contos de Marcelino Freire,

a crítica social não se faz apenas de monólogos e denúncias, mas principalmente ao

chamar atenção do leitor para sentir através da voz das personagens a aproximação dos

espaços sociais, das denúncias, da condenação aos detritos. No texto, a própria

personagem “Totonha” é narradora das experiências de seu cotidiano. Nesta abordagem

da obra literária, buscamos apoio na teoria social de Luiz da Costa Lima (2002) e

Antônio Cândido (1985), dando ênfase ao contexto contemporâneo social brasileiro. O

intuito é fazer uma análise sociológica da obra e dos fatos literários, dessa forma, o

discurso sociológico se defronta com a obra literária, se preocupando com a construção

1 Angu tanto pode ser uma comida típica, quanto remeter, por analogia, à ideia de confusão, conflitos

humanos que são agravados ou superdimensionados a partir da composição junto à palavra “sangue”.

Page 674: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1452

das linguagens, como afirma Lima (2002, p. 664), “o texto é um instrumento que aponta

para fora de si”.

Na análise da obra de Marcelino Freire, aparece uma leitura em movimento, isso

não quer dizer que, literatura não é movimento, mas especificamente a obra Angu de

Sangue (2002), possibilita ao leitor uma espécie de mobilidade literária. O que isto quer

dizer? Uma leitura não linear, e não sequencial da obra. A linearidade está relacionada

às formas de leituras e linguagens da obra Freiriana, também nas decisões do leitor no

processo de leitura. O leitor pode tomar a liberdade ao ler o livro ao observar outra arte;

Artes Plásticas, por exemplo, ou seja, o livro seria em um dado momento a própria arte.

As páginas seriam movimentadas à revelia, uma leitura em que o leitor esquece

a ideia de que (mesmo que o autor nos apresente um texto escrito) o que existe são

outras formas de linguagens que antecipam cada conto de Angu de Sangue. O leitor teria

a liberdade de construir no primeiro momento de sua leitura a eliminação da leitura

escrita, ou seja, tudo vira ou se transforma em um imenso angu, a que sugere a nossa

literatura contemporânea. Para Todorov (2006, p. 120) “Toda narrativa é uma descrição

de caracteres”, representados por meio da palavra (a ação da personagem e seu caráter),

pode ser uma história virtual ou uma forma de apresentar a vida em sociedade.

A comunicação artística busca investigar como são condicionados os elementos

constituintes das ações sociais. Na medida em que estes elementos são dependentes de

três pontos fundamentais para a compreensão e produção artística (autor, obra e

público), isto no ponto de vista sociológico, o autor constrói sua obra através de uma

leitura sobre a influência social, do público em contextos distintos, onde podemos

concordar com Sainte – Beuve (apud CÂNDIDO 1985. p. 18) quando aponta que a obra

“tem em seu núcleo e o seu órgão através do qual tudo que passa se transforma, por que

ele combina, cria e devolve a realidade”. (p.18).

A literatura contemporânea brasileira tem se apresentado de maneira provocativa

ao utilizar a linguagem. É preciso entender a linguagem contemporânea como uma

linguagem de intravisões. Ou seja, os autores presentes em um contexto social, político

e histórico, fazem uso dos discursos da sociedade para compor a obra literária. A

linguagem crítica utilizada na obra de arte causa um efeito nos leitores, quando fala

sobre a complexidade da vida contemporânea.

Page 675: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1453

Podemos considerar as Metamorfoses da Cultura Contemporânea de Fernando

Schuler (2006) nos debates e discursos da sociedade atual, “associados à crise das

ideologias, ” apresentados nos discursos Freirianos. Aqui a literatura não surge como

resultado ou quebra da tradição oral, mas com novos elementos, como leituras de

imagens, que estão presentes na construção dos contos; essas imagens provocam no

leitor a sensação de pré-interpretação textual, como se ela distorcesse a realidade. Na

verdade, quem distorce: a realidade ou o texto? É preciso ter cuidado para não avaliar a

obra como um reflexo da realidade. Assim o que esses contos trariam de novo?

Na compreensão dos contos de Marcelino Freire, os textos se apresentam muito

antes de sua escrita. São as imagens que dialogam com o leitor, ou seja, a própria capa e

contracapa já revelam este cenário, em muitos casos o leitor, antes mesmo de abrir o

livro já se vê parte do próprio livro. As imagens que antecipam a interpretação do leitor

são utilizadas no texto para confrontar a escrita; faz-nos refletir sobre o caminho que

trilha a sociedade atual, em se tratando de multiplicação do aparelho do pensamento,

chega-se a uma percepção dos processos artísticos em relação ao reconhecimento da

obra.

Em Angu de sangue o texto é iniciado com uma frase do autor Ariano Suassuna,

ao apresentar que cada palavra que compõem esta obra deve ser compreendida “como

um tiro ou uma facada. Cada palavra tem seu significado sangrento” (FREIRE, 2000 p.

15). Não podemos deixar de perceber a importância e intensidade que o autor a concede

a cada palavra, como um elemento de caráter crítico, que tem a função de chocar e

confrontar o leitor.

Segundo Bonald (apud PRATA, 1997), “a literatura é uma expressão da

sociedade” (p.151). Uma representação nítida das relações sociais; enquanto houver

humanidade haverá história e literatura, pois somos nós seres construtores desta arte de

narrar. Nos contos de Marcelino Freire, os signos, códigos e sinais podem ser

compreendidos por meio dos fundamentos teóricos de Green (apud, LIMA, 2002), ao

afirmar que “o livro é um conjunto de sinais que não representam nenhum objeto. Para

ver é preciso ler, isto é, ligar caracteres tipográficos (...)” (p. 235).

Para Terry Eagleton (2001), a “Literatura pode ser tanto uma questão daquilo

que as pessoas fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas”.

(EAGLETON, 2001 p. 9). No processo de leitura e escrita, as palavras são relacionadas

Page 676: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1454

a um contexto de significação no mundo, essa linguagem que se refere a algo, uma

espécie de “linguagem que fala de si mesma”. (EAGLETON, 2001 p. 11).

1.A linguagem em Marcelino freire em angu de sangue (2005) e contos negreiros

(2005).

Na escrita de Marcelino Freire, é notável uma tensão de linguagem, tensão que

conduz a personagem no plano dialógico, ao representar os espaços de opressão social,

nos revela coisas que nenhuma teoria sociológica ou politicológica poderá no dizer. O

movimento nesta leitura se faz pela imagem ao transforma-se tecnicamente reprodutível

a palavra. Essa “reprodutibilidade” da obra de arte depende das técnicas e autenticidade

gráfica de produção ao preservar a naturalidade das ilustrações do cotidiano brasileiro.

(BENJAMIN, 1994 p. 66).

Marcelino Freire é um escritor raro, não lê e escreve como o costume. Não vê as

palavras por fora, mas por dentro. “Reside no que fala e muda os móveis e o

vocabulário de posição. ”Eve Lyn (apud, FREIRE, 2002 p. 2), por ser considerado um

escritor contemporâneo e criativo, é possível identificar em sua obra traços culturais de

nossos tempos hodiernos, associados “a crise das ideologias”, de Schuler (2006).

As imagens que antecipam cada conto de Angu de sangue funcionam como

links, espécie de elemento hipertextual/semiótico, que aponta e interliga os textos que

compões esta obra de Marcelino Freire. Ao destacar os contos Freirianos ligados por

uma rede, que está vinculada as representações da sociedade atual. Destaca-se a voz das

personagens como uma forma aproximada da linguagem das camadas sociais, ao

representar através deste conflito de vozes uma aproximação da tradução oral, os contos

de Marcelino Freire podem ser considerados aproximadamente a ressemantização da

poesia épica. Por meio da utilização do discurso direto, seja este do autor narrador ou

das personagens narradoras dos fatos, linguagem ritmada, cuja sua sonoridade é

representada pela denúncia, das condições a sobrevivência em meio aos detritos,

apontado no primeiro conto desta obra “Muribeca”. “Não eles nunca vão tirar a gente

deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar agente deste

lixo”. (FREIRE, 2005 p. 23).

Page 677: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1455

As vozes narrativas destes contos são as vozes dos excluídos, (no sentido

figurado, que nos remete ao literal), que participam de um espaço de violência e

exclusão humana. Nessa configuração do próprio título da obra, temos a palavra Angu

referenciada não apenas a uma comida típica regional brasileira, mas como uma

aproximação do caos da sociedade contemporânea; neste contexto a palavra sangue

permanece a espirrar das inadequações sociais. A voz feminina que abre as portas para

adentramos neste enquadramento, é a voz da catadora de lixo, condenada aos retos da

sociedade de consumo e abundância, contos ilustrados pela carência de uma atividade,

porta-voz de um seguimento social, de uma herança cultural despedaçada pela

inadequação à existência urbana, numa sociedade abundante em desigualdade. “Lixo?

Lixo serve para tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e

ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão. ” As

personagens que compõe estas obras têm em sua totalidade vozes que “são restos”, ou

seja, no sentido literal ou figurado, a sua adaptação no universo, violência e existência

urbana. (FREIRE, 2005 p. 23).

A articulação entre a oralidade e as técnicas discursiva das personagens, são

compotas pelo lirismo próximo de um poema, faz parte da função metalinguística desta

obra, as técnicas discursivas decorrem de uma cuidadosa imbricação narrativa, o autor

através da palavra “Falta”. “A palavra verdade e verdadeira, ” apresentada no conto

“Belinha”, questiona o leitor sobre o poder das palavras, em um mundo é composto por

linguagens, sejam verbais ou não verbais, além de passar uma mensagem, as

necessidades de adequação entre a palavra “falta” como objeto para a declaração

amorosa. Linguagem esta que termina por ser a matéria substancial da narrativa. “Eu

disse a palavra, a palavra que faltava que sempre falta uma palavra. Falta. ” (FREIRE,

2005 p. 30).

Em Angu de Sangue, no conto “Cidades ácidas”, temos a escrita aproximada da

fala da personagem que remete a um bêbado, por meio da oralidade autor aproxima-se

do estado de intoxicação alcoólica destacado pela pontuação. Esse conto “Cidades

ácidas tem características futuristas, Segundo Marinetti (1905), espírito contestador que

o futurismo representava e que poderia servir aos anseios “libertários” ressurge na

crítica ao futuro, temos elementos que ressaltam este movimento, a inquietação com o

mundo.

Page 678: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1456

Os sinais de trânsito. Em nome do Pai, do Filho, do espírito Santo. O carro

sem saber para onde ia. O carro como cinza de cigarro. O bêbado havia

chegado ao seu destino. Velocidade. Vela. Véu. Automóvel. A chave. Ficou

parado, esperando a. Chave. Esperando, Bêbado. Para tentar sub. Ir Aos céus.

(FREIRE, 2002 p.116).

Já por falar-se de uma obra cujo seu próprio título tem duplo sentido, implica

esclarecer que: Angu tanto uma comida misturada pela farinha quanto um estado de

confusão, tendo em sua duplicidade a intensificação dos valores sociais. O autor faz

uma analogia entre o angu, comida típica regional em relação com as inadequações

urbanas, sendo o sangue aquilo que expira destas inadequações.

Na produção da obra contos negreiros (2002) de Marcelino Freire, temos a capa

e contracapa, como uma efígie da realidade. O selo de código de barras, sobreposto na

vestimenta desta obra, opera como uma espécie de repressão, cuja, numeração

apresentada no código de barras, serve para identificar o valor que exerce o homem na

sociedade contemporânea. Podemos nos apoiarem Guy Debord (2003) quando fala

sobre a sociedade do espetáculo, “sem dúvida o nosso tempo, (...) Prefere a imagem à

coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser”. O escritor

contemporâneo Marcelino Freire (2005), motivado por uma “grade” urgências, no

sentido figurado ou literal, elenca essas urgências como realidade histórica; ao tomar

posse das palavras de Schollhammer (2009, p 10), pode-se considerar que “a realidade

histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la especificamente

atual, em seu presente. ” Toma-se como elemento reflexivo as palavras Freirianas

quando apresenta suas urgências ao lanças seus livros, Rasife: mar que arrebenta,

Contos Negreiros (2005) e Angu de Sangue (2002); as personagens destas obras são

(porta-voz) de toda insatisfação social do povo brasileiro, obras que nos tiram da zona

de conforto.

De fato escrevo curto, e sobretudo, grosso. Escrevo com urgência. Escrevo

para me vingar. E esta vingança tem pressa. Não tenho tempo para

nhenhenhéns, quero logo dizer o que quero e ir embora. (FREIRE, 2008).

Segundo Karl Eric Schollhammer (2009, p. 9), “as obras na perspectiva

contemporâneas deveriam ser representadas pelo que compartilham com as tendências

contemporâneas atuais e, num sentido mais amplo, pela inserção da literatura na

contemporaneidade. ” Para o autor a literatura contemporânea não é necessariamente

Page 679: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1457

aquela que representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza

histórica que a faz perceber zonas marginais e obscuras do presente, que se afastam de

sua lógica. Compreende-se que “ser contemporâneo é ser capaz de se orientar no escuro

e a partir daí, ter coragem de estranheza histórica que a faz perceber zonas marginais e

obscuras do presente, que se afastam de sua lógica. (SCHOLLHAMMER, 2009 p.10)

A subjetividade do “corpo” em Nossos Ossos (2014), o primeiro romance de

Marcelino Freire, representa o desmembramento do corpo do Boy, a personagem

principal da referida obra é um dramaturgo narrador dos fatos, personagem que mapeia

o esqueleto que terce o cenário nordestino e dialoga com o leitor, descreve a vida de

Cícero, um “Michês” que foi friamente assassinato, texto referente a tramas policiais, e

os ossos que são restos desta obra e representa o corpo do Brasil, como a nação atual.

O primeiro capítulo desta obra é descrito como o “próximo” sentido figurado ou

literal, que nos remete ao próximo, pensar no próximo, no outro, no humano, é respeitar

as diferenças entre nação o entre os povos. O autor constrói o personagem Heleno ao

descrever as brincadeiras de crianças do nordeste com os ossos de carcaças de bois, o

elemento principal da caça da personagem Heleno não é mais o boi e sim os boys, jogo

dialético entre as palavras (bois - boys), a personagem Heleno emigra para se tornar boy

em são Paulo; nesta conjuntura é possível refletir através da oralidade poética e gritante

de Marcelino freire, personagem de urgências diluídas, conduzidas por um tom que não

perdesse na musicalidade do livro, separados apenas por vírgulas, os pontos finais que

só acontecem no final de parágrafos, os períodos são compostos, diferentes de seus

contos, o conto Muribeca é composto por períodos simples, há o uso de muitos sinais de

pontuação que indicam pausas no texto, como se fosse uma escrita fragmentada.

A linguagem Freriana traz em sua construção linguística elementos pertencentes

à fala do cotidiano, espécie de ladainha, composta por conectores sequenciais

explicativos. Ao ler “Nossos Ossos” o leitor monta a história, o próprio corpo do

romance, também nas unidades, nos capítulos e nos parágrafos o leitor constrói, faz seu

garimpo, trabalho arqueológico no encontro do corpo deste romance. As releituras

abrem novas possibilidades de análise que consistem em argumentar sobre a

importância da literatura para compreensão do mundo atual. As obras Freirianas não são

apenas obra contemporâneas, são obras que ampliam discussões sobre a literatura, capaz

de ratificar o próprio sentido de literatura que é a ampliação de significados.

Page 680: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1458

1.2 Sequências estruturais explicativas no conto “curso superior” de Marcelino

Freire.

A obra “contos negreiros” traz em sua roupagem uma leitura dialogada, por

apresentar elementos novos na disposição das palavras sobre o texto. Pode-se observar

no conto “curso superior” como as estruturas sequenciais explicativas acontecem na

reprodução da escrita Freiriana, e que revela por meio da fala da personagem o espaço

que ela ocupa nessa configuração do texto. A facilidade inferencial, segundo Adam

(2008), ocorre pela ação explicativa feita pelos conectores como: PORQUE, QUE,

NEM, É PORQUE, PORQUE, E, O QUE É QUE; O sentido do texto será dado através

destes conectores. Substituindo os sinais de pontuação; esses marcadores não

estabelecem apenas uma remissão referencial, mas sim as estruturas explicativas que

apontam as relações (negativas /explicativas) quando a apresentada no texto da seguinte

forma:

“O Meu medo é a situação piorar E eu não conseguir arranjar emprego NEM de

faxineiro NEM de porteiro e o pessoal dizer QUE o governo já fez o QUE pôde e o

QUE pôde já deu a sua cota de participação hein mãe não sei”. (M. FREIRE,

2005.p.98). Os marcadores à esquerda (NEM/E), apresentam uma ação negativa indireta

ou alternativa, por se tratar de uma possibilidade, de acontecimentos. Já na direita temos

o marcador (QUE), como um escopo que aponta para o encerramento do discurso que se

supões alcançado. Estes elementos hipotéticos e funcionais dão todo o sentido expresso

pelo autor ao texto, sem utilizar os sinais de pontuação, forma característica do autor.

A ciência dos signos é chamada de semiótica, que segundo Charles Pirce (apud,

Jakobson, 1987 p.77). “O signo é formado pelo homem, onde todo signo verbal ou não

verbal comporta códigos linguísticos, pertencentes a uma comunidade e tem em sua

finalidade é passar uma mensagem”. Tem como instrumento de comunicação a

possibilidade de troca, que designa o tipo de informação e construção desta mensagem.

Já na concepção de (Colin Cherry apud Jakobson, 1987, p.78). “Não são imagens da

realidade, mas documentos a partir dos quais construímos nossos modelos pessoais. ”

Diante desta descrição, pode-se afirmar que a composição dos símbolos se apropria do

uso da metalinguagem, ou seja, os símbolos já existentes na língua, e recodifica esses

Page 681: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1459

elementos da língua, sejam esses verbais ou não verbais, apenas busca-se compreender a

ligação e sua função crítica e reflexiva.

Segundo Walter Benjamin (1994), o autor destaca que a reprodução da imagem

foi liberada da responsabilidade artística, passa a depender do olhar que se tem sobre

uma imagem. Para ele o olhar captura as coisas de forma rápida, podendo acompanhar

as palavras sem um nível disjuntivo. Em uma escala valorativa, para poder acompanhar

a sociedade atual, se faz necessário compreender o reflexo da imagem que é reproduzida

pela sociedade. A ideia não é desvalorizar a imagem em tela, ou seja, a criação manual;

como a escultura; mas relatar que a imagem capturada por uma câmera fotográfica, tem

uma função rápida e natural da imagem cotidiana.

A comunicação artística busca investigar como são condicionados os elementos

constituintes das ações sociais. Na medida em que estes elementos são dependentes de

três pontos fundamentais para a compreensão e produção artística (auto, obra e

público), isto no ponto de vista sociológico, o autor constrói sua obra através de uma

leitura sobre a influência social, do público em contextos distintos, onde podemos

concordar com (SAINTE–BEUVE apud CÂNDIDO 1985 p. 18), nos afirma que é de

fundamental importância entenderem que aspectos a obra faz parte do social?

Podemos responder essa indagação, na medida em que a obra “tem em seu

núcleo e o seu órgão através do qual tudo que passa se transforma, por que ele combina,

cria e devolve a realidade”. Diante da fala expressa pelo autor entende-se que a obra tem

a função de transformar a realidade, ou seja, nenhuma análise sociológica pode dar

conta de tudo que ocorre na sociedade mediada pela obra literária, mas temos aqui a

teoria como uma vestimenta para se compreender a obra literária e sua construção

estética e contextualizada, para assim adentrarem uma leitura social, a qual nos remete

através da obra Freiriana, um entendimento das relações sociais como um reflexo da

realidade contemporânea.

Ao analisar as tendências contemporâneas podemos nos apoiar em Alfredo Bosi,

(2006), ao relatar que a contemporaneidade inicia-se a partir da década de 1930, tudo

que foi construído depois desta época contém traços da atualidade, e mantém uma

ruptura com a estética de uma época, seria a inovação dos métodos e a transmissão das

informações embutidas em nossa sociedade. O cântico primeiro de “Contos Negreiros”

é “Trabalhadores do Brasil”; conto ritmado de uma sonoridade tão forte que pode ser

Page 682: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1460

cantada, foi transformada em música pela banda Cordel do fogo encantado. Ao

considerar os cânticos da realidade brasileira, nessa configuração do texto, cuja a

linguagem é conduzida pelo jogo dialógico e metafórico utilizado pelo escritor ao

conduzir sua narrativa. É notável neste texto a imagem de um trabalhador, pertencente a

uma sociedade capitalista, símbolo de consumismo desenfreado, uma espécie de

escravidão mascarada, representação do talhador em sua atividade cotidiana, de como é

visto na atualidade, esse humano oprimido, imageticamente uma mercadoria

sistemática, essas temáticas dialogam por meio de uma cultura que se encontra

enraizada pela linguagem de extração rural e urbana.

Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal

de transito Ossonhe sonha com um novo amor para ganhas 1 passeou 2

passes na praça turbulenta do pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for

tá me ouvindo bem? (...)em seu branco safado? Ninguém aqui é escravo de

ninguém. (FREIRE p. 19 e 20).

No processo de imitação construído transversalmente pelo gênero “cântico”,

como uma espécie de ressignificação da poesia da épica, suscitando emoções do gênero

mais antigo, o canto que é subdividido em contos. A literatura de Marcelino Freire

incomoda o leitor, traz inquietações sobre a sociedade brasileira. Ele é considerado um

agitador cultural, porque fala de uma sociedade que não vai bem, demonstra através da

linguagem esse espaço de banalização e violência cotidiana. Freire escreve para se

vingar de algo que o inquietou, mas ele não escreve apenas textos sangrentos, expressa,

através de seus personagens, uma agonia, um conflito de vozes, um aperreio, já que as

personagens apresentam os espaços sociais de forma gritante.

Não é, entretanto, uma oralidade que vincule facilmente os contos de

Marcelino Freire à tradição oral e que, sobre tudo no Brasil, encontra suas

raízes nas sociedades de extração rural, como é aquela de boa parte das obras

ficcionais resultantes da literatura regionalista do seu apogeu anos 30.

(FREIRE, 2002 p. 12).

A escrita Freiriana é contemporânea por que representa os espaços urbanos, esse

movimento social, confere à obra a capacidade de refratar através da criação verbal, e de

seu conteúdo temático, o estilo e a estética, pertencentes à linguagem dos tempos

hodiernos; sua obra contribui para a sociedade, para o público leitor e estudiosos de

literatura, na medida em que dá voz às personagens que participam de um espaço de

exclusão. O escritor Marcelino Freire faz uso de símbolos representativos das palavras

Page 683: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1461

em suas narrativas, compostas não apenas pela linguagem verbal, mas também por

elementos semióticos.

Os métodos adotados para atingirmos os objetivos desta pesquisa foram de

levantamentos bibliográficos de revisão literária, tendo como foco principal analisar as

obras Angu de Sangue (2002); Contos Negreiros (2005), e Nossos Ossos (2013), através

das teorias de Schollhammer (2003). Ao discutir sobre os diálogos literários e as

múltiplas vozes que compõem os textos ficcionais de Marcelino Freire, a convenção

literária refrata um olhar particular, entre o narrador e a personagem, por exemplo,

“entre uma voz e uma visão, entre aquilo que é dito (telling) e aquilo que é mostrado

descritivamente (showing)” (SHOLLHARMMER, 2003 p. 89), o reforço interpretativo

é preenchido a partir da oralidade e da criação imagética no texto literário.

A obra trata da banalização da violência diária instigando o leitor a uma reflexão

sobre o processo de espetacularização produzida pela mídia. A ideia é confrontar a

linguagem Freiriana, com o discurso midiático, ou seja, dos meios de comunicação, TV,

jornais, blogs, revistas online e etc. Trata-se de encontrar na obra de arte aspectos

experimentais quanto à representação da realidade. Em se tratando da obra de arte,

podemos citar Kundera (1996), que nos fala sobre o poder do escritor de desmascarar

um sistema social, e desenvolver mecanismos que mostrem através da linguagem a

exclusão e a angustia do ser excluído, condenado ao conformismo, entre a realidade e a

ficção, sendo uma violação perpétua das formas de vida. Na análise reflexiva de Contos

Negreiros (2005), cujo próprio título esta fincado em expressões culturais e literárias

das periferias, sejam essas urbanas ou regionais; na linguagem de suas personagens há

um forte apelo às questões que envolvem a escrita entrelaçada pela oralidade, nesta

construção a ficção dar lugar aos testemunhos as personagens que participam de um

espaço de exclusão social, destes que não tem lugar na cultura (forma literária)

dominante.

Referências

ADAM, Jean- Michael. A linguística textual, introdução a analise textual dos discursos.

São Paulo: Cortez, 2008.219p.

BEJAMIN, Walter, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura, 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 170 p.

Page 684: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1462

CÂNDIDO, literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária/ Antônio

Cândido, 7ª ed. São Paulo: Nacional, 1985.17 - 39 p.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura, São Paulo. Martins fontes, 2001.341p.

FREIRE, Marcelino, Contos negreiros, 1ª ed. Rio de Janeiro, Record, 2005.103 p.

FREIRE, Marcelino. Angu de Sangue, 2ª ed. São Paulo: Cotia: 2005.131 p.

FREIRE, Marcelino. Nossos Ossos, 1ª ed. Rio de Janeiro: Record: 2013.121 p.

GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura, tradução de Luiz Fernando Cardoso, Carlos

Nelson Coutinho e Giseh Vianna Konder. – 2ª ed.- Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979.

LIMA, Luiz Costa, Teoria da Literatura e suas fontes, 2ª ed. Rio de Janeiro, civilização

Brasileira, 2002.1037 p.

LODGE, David. A arte da ficção, L&PM, Porto Alegre, 2011.240 p.

OLINTO, Heidrun Krieger & SCHOLLAMMER, Karl Erik, Literatura e cultura, Rio

de Janeiro: Ed. PUC- Rio; São Paulo: Loyola, 2003. 72, 86 p.

PRATA, Maria Rodrigues. Métodos críticos para análise literária, ed. São Paulo,

Martins Fontes, 1997. 145 p.

SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado. Metamorfoses da Cultura, Porto

Alegre: Sulina, 2006.176 p.

Page 685: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1463

A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE

PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS PARTICIPANTES

DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP [Voltar para Sumário]

Karolynne Kaya Maria Amorim Moura 1 (PPGE)

Adna de Almeida Lopes (UFAL) 2

INTRODUÇAO

Em termos gerais, quando o assunto é escrever na sala de aula, o ritual parece se

repetir. Os alunos escrevem. Alguns tão compenetrados que não tiram o olhar da folha e, ao

mesmo tempo, do “horizonte” onde parecem buscar as palavras e as ideias; outros, já mais

dispersos, não acham palavras que preencham o papel enquanto o tempo passa. Tempos

depois, a professora começa a receber os textos, um a um. Neste momento, uns mais à

vontade logo se levantam e vão deixando a folha sobre a mesa; outros mais tímidos já

escondem seu papel embaixo do monte. O tempo vai passando e a aula termina com o sinal da

escola. A professora recolhe tudo. Será iniciado um novo ritual: a leitura e as intervenções em

cada texto.

Certamente, muitos dos professores de língua portuguesa já vivenciaram cenas como

essas. E, foi nessa direção, pensando como docente de língua portuguesa, que surgiram

questionamentos sobre as ações do professor diante do texto do aluno: Como é feita a

intervenção didática? Quais os tipos desse procedimento? Como a intervenção pode levar a

aluno a melhorar o seu texto escrito?

Diante dessas questões norteadoras, tomamos como objetivo principal, neste

trabalho, apresentar uma reflexão sobre a intervenção do professor na produção textual de

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE/UFAL ([email protected]). 2 Professora Associada da Universidade Federal de Alagoas/UFAL ([email protected]).

Page 686: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1464

alunos de escolas participantes da Olimpíada de Língua Portuguesa–OLP3. Tem-se visto que

as experiências com a produção de textos escritos em sala de aula têm sido transformadas

pelos estudos já realizados e metodologias relacionadas ao ensino de língua portuguesa.

Neste trabalho, o nosso olhar será voltado, especificamente, à busca de marcas

deixadas pelos professores em torno do processo de intervenção na construção textual do

aluno, procurando refletir sobre o papel da relação dialógica de linguagem na observação

dessas marcas direcionadas à melhoria do texto produzido.

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

O trabalho de reescrita do aluno conduzido pela intervenção do professor é, sem

dúvida, questão determinante do sucesso que o aluno possa alcançar em seu processo de

aquisição da escrita. Para isto, no entanto, este sujeito/professor não deve atuar apenas como

corretor dos problemas apresentados no texto, mas como um mediador das ideias e do

aperfeiçoamento do texto do aluno, olhando cada texto como uma peça singular fruto de uma

relação formada por experiências e vivências distintas. Nessa perspectiva, Bucheton (2009)

esclarece que “alunos e professores têm de se considerar, para a compreensão de suas relações

e comportamentos, como pessoas portadoras de uma história, de uma cultura, de uma relação

com o saber ensinado”.

Na intervenção didática, consoante Ruiz (2010), o primeiro passo é compreender o

que cada um sabe, já que a necessidade de um aluno nas fases iniciais de escolaridade é

diferente daquele que já utiliza as formas da língua pertinentemente. Por isso, o grande

trabalho do professor não é saber qual a escrita de cada aluno, mas entender o que cada escrita

significa, para poder pensar as formas de interação e mediação. Intervir é, sobretudo, construir

um ambiente em que todos se sintam estimulados e confiantes para produzir, é, ainda, montar

um trabalho que implica em desafio (pois escrever não é fácil), paciência e dedicação. O

importante é considerar que a cada (re)escrita, o aluno terá uma “marca” (ABAURRE, FIAD

3 A Olimpíada de Língua Portuguesa é um concurso de redação promovido pelo Ministério da Educação-MEC,

nos anos pares, destinado aos alunos dos 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio das redes

públicas de ensino. A OLP tem o assessoramento do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e

Ação Comunitária-CENPEC com o intuito de ampliação do conhecimento e desenvolvimento do ensino da

escrita, tendo como estratégia ações de formação para a produção dos gêneros textuais: poema, memória

literária, crônica e artigos de opinião (BRASIL, 2010).

Page 687: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1465

e MAYRINK-SABINSON, 1997) deixada pelo mediador (o professor), a qual indicará os

caminhos que poderá seguir para desenvolver o seu texto.

A intervenção, assim como a escrita, trata-se de um processo intenso em constante

movimento. Ocorre que o trabalho de interferência realizada pelo professor mostra que o

sujeito/outro pode tanto ser um aprendiz de escrita em busca de autonomia quanto um letrado

já de muito tempo. (ABAURRE, FIAD e MAYRINK-SABINSON, 1997).

Sobre o processo de intervenção, toma-se como ponto inicial, neste trabalho, os

estudos desenvolvidos por Ruiz (2010) ao apresentar que os tipos de intervenção do professor

podem ser efetivados a partir de quatro modalidades, quais sejam: correção indicativa,

correção resolutiva, correção classificatória e correção textual-interativa.

Quanto à intervenção indicativa, Serafini (1989) aponta que:

A correção indicativa consiste em marcar junto à margem as palavras, as frases e os

períodos inteiros que apresentam erros ou são pouco claros. Nas correções desse

tipo, o professor frequentemente se limita á indicação do erro e altera muito pouco;

há somente correções ocasionais, geralmente limitadas a erros localizados, como os

ortográficos e lexicais (SERAFINI, 1989, p.27).

Como se pode observar, essa modalidade parece fazer ligação direta com as questões

que envolvem apenas o tópico normativo da língua, pois limita-se, sobretudo, à indicação do

erro, sem interferência na construção textual-discursiva.

Quanto à modalidade Resolutiva, a autora esclarece, ainda, como sendo aquela em

que o professor corrige todos os erros identificados no texto do aluno, reescrevendo palavras,

frases ou até períodos inteiros como formas de apresentar uma solução para o problema

destacado. Ela destaca, contudo, que:

O professor realiza uma delicada operação que requer tempo e empenho, isto é,

procura separar tudo o que no texto é aceitável e interpretar as intenções do aluno

sobre trechos que exigem uma correção; reescrever depois tais partes fornecendo um

texto correto. Neste caso, o erro é eliminado pela solução que reflete a opinião do

professor (SERAFINI, 1989, p. 31).

A terceira modalidade de intervenção é a chamada Classificatória, que consiste no

trabalho do professor em classificar os problemas identificados no texto escrito pelos alunos,

através de alguns símbolos acordados entre professor e alunos, pelo menos até que todos

possam ter fixados. Como exemplos apontados pela autora, podemos destacar: Amb para

Ambiguidade; CN para concordância nominal; A para acentuação; Dr para crase; Ds para

divisão silábica.

Page 688: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1466

A quarta e última modalidade foi acrescentada por Ruiz (2010) aos estudos de

Serafini (1989): a intervenção Textual-interativa, que consiste em comentários mais longos do

que os que se fazem à margem da folha, razão pela qual são geralmente escritos em sequência

ao texto do aluno em um espaço (espaço chamado pela autora de pós-texto, ou seja, aquele

que fica ou ao final da folha do texto do aluno ou em uma folha a parte, como um “bilhete”).

Esse “bilhete” pode ter, para a autora, duas finalidades: falar sobre a tarefa de revisão pelo

aluno ou dos problemas do texto e/ou tratar metadiscursivamente sobre a própria tarefa de

correção do professor.

Dessa forma, como se observa a partir das modalidades de intervenção apresentadas,

o modo ou o trabalho do professor, sem dúvida, é determinante no processo de constituição do

sujeito (o aluno), pois além de determinar a inscrição deste, contribui na formação do “eu” no

processo de aprendizagem. De modo que é possível dizer que tanto o interventor quanto o

aluno estão submetidos.

Para Fiad (1989, p. 74), o ato de escrever não se efetiva apenas na primeira versão do

texto. Citando Culioli (1982), ela define o processo como “"un ensemble complexe d' états

successifs en voie de stabilisation" (um conjunto complexo de estados sucessivos em vias de

estabilização). A autora afirma, ainda, que o ato de escrever “se revela em diversas escritas,

que precedem a versão considerada final ou definitiva”.

Desse modo, o discurso (no sentido de processo de escrita) vive e evolui a partir da

comunicação verbal, bem como a partir da interação entre os interlocutores, no processo de

produção de sentido, mas nunca a partir do sistema abstrato das formas da língua. Os

participantes, por sua vez, articulam-se interativamente, sempre de forma interligada e jamais

de forma isolada. Assim, ainda que o ser manifeste-se individualmente, haverá sempre um

interlocutor ligado a ele no processo de construção. (BAKHTIN, VOLOSHINOV, 1926, p.

10).

Nesse caminho, o processo de intervenção do professor é a manifestação de

sentido responsiva ativa do docente ao projeto de dizer do aluno, levando em conta as

medidas por ele escolhidas. Dessa mesma forma, o texto que o aluno escreve e reescreve

responde a uma proposta didática contínua, a qual, sem dúvida, e de certa forma, permeia o

processo de refacção de textos como bem demonstra Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson

(1997).

Page 689: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1467

Como o objetivo desta pesquisa está voltado para o processo de escrita e reescrita de

textos, o Concurso OLP foi prontamente definido como fonte de coleta de dados, já que para

o aluno chegar às fases finais, ele precisaria escrever algumas versões ou fazer reescritas dos

seus textos, por isso elegeu-se a Olimpíada de Língua Portuguesa.

Referente a este quadro de reflexões pautado em questionamentos acerca do ensino

de língua como atividade social, a partir da perspectiva da interação na relação entre os

interlocutores, a proposta de pesquisa aqui apresentada visa aprofundar as investigações

relacionadas aos processos de escrita dos alunos da rede pública alagoana, adotando como

foco as intervenções realizadas pelo professor nos textos selecionados.

Por tudo, lembrar que a reflexão aqui proposta não apresenta o professor como o

único responsável pela escrita do aluno em sala de aula, mas, como bem esclarece Menegassi

(2003), “confere-lhe um papel, na assimetria das relações de sala de aula, como mediador do

processo, em que possa apresentar o sentido que construiu ao texto, sem considerar os

sentidos que são delineados pelos demais atores desse processo”.

Por fim, como requisito de embasamentos teóricos desta pesquisa, tomaremos os

conceitos de intervenção e correção didática em textos de alunos, a partir das ideias e

concepções de teóricos que discutem o tema, entre eles Dolz, Gagnon & Decândio (2010),

Ruiz (2010) e o conceito de sequência didática apresentado por Machado (2009), como

vivência de uma metodologia de ensino de língua que trabalha com gêneros textuais.

REFLEXÃO SOBRE OS DADOS

No momento em que foi definido o recorte desta pesquisa, o objetivo era bastante

definido: colher dados que contemplassem textos e suas respectivas versões com

interferências do professor dentro de um número de variáveis. Ocorre que contamos com um

número mínimo de professores e escolas que aceitariam fornecer os materiais de seus alunos,

bem como os diários de classe de cada um deles.

Assim, para os fins dessa pesquisa, contamos apenas com os dados de 2 (duas)

professoras participantes do concurso de escrita, sendo uma eliminada na etapa 2 (dois) e a

outra, uma das premiadas da etapa final. A título de organização das análises, as professoras

serão identificadas, aqui, por P1 e P2.

A princípio, o que foi possível confirmar numa leitura inicial das versões colhidas é o

que, via de regra, já se sabe: o trabalho de intervenção das professoras observadas tem o

Page 690: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1468

objetivo de destacar os problemas no texto dos alunos, intervenções que aparecem como uma

espécie de “caça erros”, ou seja, sobre o que há de transgressão às regras gramaticais no texto.

A esse respeito, Calil (2000) argumenta que um dos problemas no processo de

intervenção é exatamente este, o de reconhecer apenas os “erros” presentes no texto do aluno,

o que acabou se perpetuando e não havendo a diversidade de intervenção em gêneros textuais

distintos.

No ensino fundamental, os textos escritos por alunos invariavelmente sofrem

intervenções do professor de forma bastante semelhante, não havendo significativas

diferenciações entre tipos de textos, diferentes condições de produção, ou ainda,

entre diferentes textos escritos por um mesmo aluno ou entre um mesmo tipo de

texto escrito por alunos diversos. Em geral, as intervenções dos professores

destacam problemas ortográficos e gramaticais, incidindo sobre uma única versão do

texto, que não será reescrita pelo aluno2, mas sim, “avaliada”, “corrigida” ou

“passado-a-limpo” (CALIL, 2006, p.11).

Sobre isso, Ruiz (2010) explica que a forma como o professor intervém no texto do

aluno, na maioria das vezes, tem caráter normativo, pois visa apenas eliminar os problemas

detectados nesse texto. Quando, em verdade, esse processo poderia ser aproveitado de uma

outra maneira, ou seja, a ponto de proporcionar ao aluno a reflexão do próprio erro no texto. E

ai, sim, o procedimento seria decisivo na construção da escrita.

Quando o professor, por sua vez, assume uma função restrita de buscar apenas os

erros, os chamados erros gramaticais, há de se levar em conta que ele desloca toda a sua

atenção para o que o texto tem de “ruim” e, assim, raramente as qualidades e benfeitorias nas

produções textuais são focalizadas pelo professor e dificilmente o aluno poderá adquirir

confiança e reflexão no momento da escrita.

A exemplo disso, seguem os trechos marcados pela P1 sobre o texto de um aluno do 2º

ano do ensino médio, cujo tema proposto, definido pela OLP, foi “O lugar onde eu vivo”:

Page 691: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1469

Como pode ser visto, as marcas da professora apontam para as inadequações

normativas do uso da língua. Ela marca, a princípio, a letra E de “eu” (maiúsculo) no título

para chamar a atenção que ali o aluno deveria escrever “eu” com o “e” minúsculo, por está no

meio da frase; assim como o destaque sobre a “bola” que o aluno fez sobre a letra “i”, ao

invés do pingo. Como se observa, as marcas da professora não param por aí, mas seguem por

todo o texto.

É possível perceber, contudo, que outros aspectos relevantes quanto às inadequações

linguísticas não são contemplados pela professora, como os aspectos textuais, a margem

direita do texto que aluno ultrapassou e o uso de letra legível, por exemplo. Mas como já

mencionado, a principio, o olhar do professor sobre as inadequações normativas parecem

prevalecer.

Schneuwly & Dolz (2005) esclarecem que “[...] é natural que ocorram inadequações,

principalmente para o aluno que está numa fase de aprendizagem, tanto com relação ao

gênero quanto com relação às questões formais da língua [...]”. O que implica em dizer que,

certamente, a leitura feita pelo professor em busca de marcas de “violações” linguísticas não é

a mesma feita pelo leitor comum.

Outro aspecto de análise faz relação à classificação das intervenções, a partir de

modalidades já estudadas em pesquisas anteriores como a de Aplebee, 1981 (apud Serafini),

que apresenta tendências de correções de redações na escola realizadas por professores de

língua portuguesa. Quais sejam: a indicativa, a resolutiva e a classificatória. Vale ressaltar,

contudo, que além dessas, Ruiz (2010) apresenta mais uma modalidade em seu trabalho

publicado em 2010 (resultado da tese de doutoramento): a chamada correção “textual-

interativa”.

Page 692: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1470

Antes mesmo de adentrar em cada tipo de correção, é necessário destacar que nos

textos analisados, as interferências das professoras indicam mais de uma forma interventiva,

quando intercalam tipos diferentes de correção. Os exemplos a seguir poderão ilustrar estas

observações.

a) Intervenção indicativa

Esta modalidade ocorre na grande parte dos casos, pois os professores fazem uso da

estratégia indicativa, seja mais ou menos acentuada, mas o que se sabe é que elas são

realmente frequentes. A estratégia indicativa pode tanto aparecer na parte interna do texto do

aluno, como se observa no escrito abaixo, como também situada na margem da folha. Ela é

chamada indicativa porque como o próprio nome diz são marcas do professor interventor para

indicar problemas no texto do aluno:

b) Intervenção resolutiva

Esta modalidade de intervenção também é presente nos textos analisados. Apesar de uma

frequência menor, ela pode ocorrer isoladamente ou até mesmo em concorrência com a

modalidade indicativa, ou seja, primeiro a professora indica o local do problema e na

sequência ela mesma apresenta a solução por ela considerada. Então, a intervenção

Page 693: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1471

resolutiva, como dito anteriormente, ocorre quando a professora já apresenta de pronto a

solução ao problema encontrado. Observemos o exemplo a seguir:

Como se vê, a professor considera um problema a palavra “tapada” usada pelo aluno,

então ela corta palavra cm um traço e acrescenta ao texto a palavra “escondida” na parte

superior. Mais adiante, ela substitui o trecho “com as nossas tradições” pela palavra

“tradição” apenas, bem como faz com a palavra “Brasil”, a qual o aluno escreveu com “b”

minúsculo e ela prontamente faz a correção e acrescenta o “B” maiúsculo.

Para melhor ilustrar este tipo de intervenção, segue outro exemplo:

Marca sobre a forma verbal “está”, escrito pelo aluno “ta”.

Observa-se, ainda, que no momento em que a professor insere no texto do aluno

aquilo que considera ser resolutivo ao problema encontrado, estamos diante também de

operações linguísticas ou comentários aos textos conhecidos como operações dos tipo:

substituição, adição, supressão e deslocamento (FABRE, 1987; FIAD, 1991).

c) Textual-interativa

Como vimos, as intervenções apontam, em sua maioria, apenas para as questões

normativas, como já identificado anteriormente. Mas, vale ressaltar, contudo, que além dessas

modalidades apresentadas, Ruiz (2010) também explora a modalidade “textual-interativa”,

como sendo aquela que melhor conduziria o aluno ao avanço do texto.

Como se vê nos exemplos que seguem, a modalidade está presente, porém as

informações parecem não muito claras para o aluno.

Como veremos no exemplo a seguir, o professor que produz um pequeno “bilhete”

após o texto do aluno aponta questões que o aluno talvez nem conheça ou muito menos saiba

transformá-la em sentidos construtivos ao seu escrito. Observe o trecho extraído do

manuscrito:

Page 694: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1472

Percebamos que a professora escreve um “bilhete” para o aluno apontando pontos

que este precisa melhorar, mas os pontos apresentados para melhoria contemplam aspectos

como “originalidade”, “coesão”, “coerência”, por exemplo, que necessitariam ser bem

definidos, com orientação dos procedimentos a serem adotados. Talvez este aluno não saiba

nem o que significa esses termos, muito menos como adaptá-los ao seu texto. Isso acaba

resultando em trabalho desconexo do professor sobre o processo de construção do texto do

aluno, apesar de ao final do “bilhete” se apresentar à disposição do aluno com a expressão

“Conte comigo”.

O exemplo a seguir ilustra um dos mais momentos mais intrigantes dentre os

materiais coletados. Ocorre que após a primeira versão produzida pela aluna, a professora,

após a leitura, deixa sua intervenção textual na parte superior da folha. A aluna,

provavelmente com o intuito de tentar atender o que foi solicitado, ou mesmo podendo não ter

compreendido as orientações escritas pela professora (pois como já dito anteriormente,

conceitos e definições sobre coesão, coerência e originalidade são vagos e precisariam ser

apontados no texto), corta praticamente seu texto por inteiro.

Page 695: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1473

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas experiências determinam e confirmam a importância do papel do docente no

processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa a fim de que os alunos possam

desenvolver suas capacidades autônomas diante da escrita, fazendo das ferramentas dialógicas

em todos os contextos da vida social.

Como se vê, as questões que permeiam o trabalho do professor, como uma atividade

interativa e de construção de sentidos e sujeitos que envolvem a construção do processo de

ensino da língua, remetem a Bahktin (1986), como lembra Marcuschi (2008, p. 20), ao dizer

que a língua deve ser tratada como um conjunto de práticas enunciativas e não como formas

desconexas: “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de

formas linguísticas nem pela enunciação monológica e isolada [...] mas pelo fenômeno social

da interação verbal. Logo, a língua é um fenômeno social”.

Page 696: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1474

Comungando essa ideia, recorremos aos argumentos de Antunes (2007) que entende

que a língua não é somente meio de mera comunicação, é um exercício de constituição da

espécie humana, pois isso não basta estudar ou evidenciar, no processo de ensino, as

nomenclaturas, tendo em vista que o discurso não se constitui de regras gramaticais, mas de

um apanhado de conteúdos. Desse modo, portanto, perceber que há mais elementos do que

simplesmente “erros” ou “acertos” gramaticais. A língua, nessa perspectiva, deve ser pensada

como um fator social, que se desenvolve e se transforma a partir da construção com o “outro”.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Muito além da gramática:por um ensino de línguas sem pedras no caminho.

São Paulo: Editora Parábola, 2007.

BAKHTIN, M M; VOLOSHINOV, V N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética

sociológica), 1926.

BAKHITIN, M. (V. N. VOLOCHINOV). Marxismo, Filosofia e Linguagem. São Paulo:

Hucitec, 1986.

BUCHETON, D; SOULÉ, Y. Os gestos profissionais e o jogo das posturas dos professores

em sala de aula: Um multi-agenda de preocupações encadeadas. Educação & Didática, 2009.

BRASIL. Olimpíada de Língua Portuguesa. Disponível em:

https://ww2.itau.com.br/itausocial/olimpiadas2010/web/site/oquee.htm. Acesso em 27 de

julho de 2011.

CALIL, Eduardo. “Os efeitos da intervenção do professor no texto do aluno” In: Denilda

Moura (org.) Língua e Ensino: dimensões heterogêneas. Maceió: EDUFAL (29-40), 2000.

CALIL, Eduardo. Autoria: A criança e a escrita de histórias inventadas. São Paulo: Eduel,

2009.

CALIL. Eduardo. Escutar o invisível: a escritura e a poesia em sala de aula. 1ª ed. São

Paulo: Editora da UNESP/FUNART, 2008.

DOLZ, Joaquim; GAGNON, Roxane & DECÂNDIO, Fabrício. Produção escrita e

dificuldades de aprendizagem. Campinas-SP, Mercado de Letras, 2010.

FIAD, R. S. O Professor escrevendo e ensinando a escrever. Em: Contexto e educação , 16.

Ijuí: Universidade de Ijuí, 1989.

RUIZ, E. D. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.

Page 697: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1475

SCHNEUWLY; DOLZ. Prática de revisão de textos - Interferências do professor. São

Paulo: 2005.

LUCKESI, C. Conduta na produção do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2005.

MARCHUSCI. L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:

Parábola, 2008.

MENEGASSI, R. J. Procedimentos de leitura e escrita na interação em sala de aula. In:

MENEGASSI, R. J. (2003) Professor e escrita: a construção de comandos de produção de

textos. Trabalhos em Linguistica Aplicada, Campinas(42): 55-79, jul./dez.

Page 698: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1476

CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA

ANÁLISE DOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA

CONTEMPORANEIDADE NA REDE SOCIAL FACEBOOK [Voltar para Sumário]

Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)

1 Introdução

Relacionamento é um assunto muito discutido, atualmente, em todas as esferas

da sociedade. Literaturas de autoajuda e toda espécie de manual de como relacionar-se

podem ser encontrados em qualquer banca de revista, ou ainda, podemos constatar a

quantidade de programas de televisão que dão foco a esse tema em todas as suas

variantes e, também, todo o acervo que está à disposição na “internet”. Essas relações

são fugidias e, portanto, padecem, também, dessa fluidez moderna, sendo consideradas

como bens de consumo, o que Bauman (2001, p. 10) chama de “relacionamentos de

bolso”, que podem ser utilizados quando se quer, tornando a guardá-los a fim de dispor

em outra ocasião em que se fizerem necessários.

Essa misteriosa forma de relacionar-se num ambiente virtual em que a falta de

contato físico com o outro parece impedir mais aproximação, instigando as pessoas a

manterem certa distância dos seus parceiros virtuais e a estabelecerem-se em “redes” de

contato em que se pode adicionar uma infinidade de “amigos” na mesma velocidade

com que são excluídos ao toque da tecla “delete”. Os relacionamentos em geral, na

atualidade, estão extremamente flexíveis e vistos como mercadorias que, ao primeiro

sinal de problema ou de um modelo novo, pode ser trocado por outro, como acontece

com aparelhos de celular, máquinas e automóveis.

É nesse contexto que Bauman (2004, p.12) faz uma grande reflexão sobre “essa

‘rede’ que serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar”. O que ele

desenha aqui é justamente o fato de as “redes” trazerem no seu bojo o poder da escolha

Page 699: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1477

de “entrar e sair dos ‘relacionamentos virtuais’”, muito antes de eles se tornarem

detestáveis, o que dificilmente aconteceria nos relacionamentos sólidos nos quais o

compromisso se dava em longo prazo e, diante da presença do outro, o rompimento

poderia ser uma tarefa árdua.

Esses contatos tecidos em rede apontam para uma faceta muito pessimista dos

relacionamentos afetivos nas diversas esferas – como as de contato familiar, de amizade

e de amores – qual seja: a de relacionamentos instáveis. Esses novos relacionamentos,

sem dúvida, conduzem à necessidade de se pensar sobre qual ética guiará esses novos

padrões de comportamento. Nesse contexto, cabe a discussão sobre o lugar do sujeito

contemporâneo, com toda multiplicidade, incertezas, incompreensões, posicionamentos

em seus relacionamentos com o outro, que lhe é virtualmente estranho.

Nesse novo desenho social, Hall (1997) considera que há uma “crise de

identidade” no sujeito contemporâneo, que deixou de ser único em si mesmo para se

revelar múltiplo numa sociedade cujas transformações se deram numa velocidade

global. Esse sujeito saiu de uma era conhecida como Iluminismo, que tinha a

centralidade na figura humana, para uma realidade nova que mostra o surgimento de um

sujeito social múltiplo, em interação com o mundo pós-moderno, com múltiplas

identidades.

Esse sujeito pós-moderno caracteriza-se por uma identidade multifacetada,

fragmentada, aberta, contraditória com vistas aos diferentes pontos de vista que podem

assumir a partir de suas subjetividades. Esse modo como foi construído esse sujeito pós-

moderno traça o diálogo permanente entre os dois fenômenos causadores dessa ruptura

com o sujeito unitário: a modernidade e a globalização, sendo esta última a causadora

de um grande impacto sobre as identidades nacionais, caracterizando-se principalmente

pela “‘compressão espaço-tempo’, a aceleração dos processos globais, de forma que se

sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em determinado

lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande

distância” (HALL, 1997, p. 73).

Nesse cenário, a perda de um sentido sólido, em si mesmo, é caracterizada pelo

autor como deslocamento ou descentralização do sujeito. Nessa perspectiva, o

deslocamento se dá tanto em si mesmo como no lugar que ocupa no mundo da vida e no

mundo da cultura, constituindo, dessa forma, uma “crise de identidade”. Todo esse

Page 700: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1478

processo provoca uma profunda transformação na construção de uma nova sociedade

em que o próprio fenômeno da globalização entra em xeque. Sobre essa questão social,

Hall (1997, p. 80) diz:

Quanto mais a vida se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares

e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos

sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades de

tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e

tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados

por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou

melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece

possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como

realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado

cultural”.

Todo esse painel nos faz perceber que a pluralidade cultural é o foco que

fomenta discussões e levanta debates sobre o seu papel na constituição dessas

identidades. As Ciências Humanas e Sociais, em toda a história, sempre apontaram e

disseminaram a importância da cultura como constituidora de significados, de

subjetividades e, assim, de identidades na história do homem como ser de linguagens

múltiplas que interpretam, ressignificam e valoram o mundo no qual constrói suas

próprias generalidades.

2 Bakhtin e as práticas discursivas ideológicas nas relações sociais

O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão

ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma,

antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Qualquer

enunciação, por mais significativa que seja, constitui apenas uma fração de

uma corrente de comunicação verbal ininterrupta. Mas essa comunicação

verbal ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na evolução

contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado

(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p. 123).

A luz desse pensamento sedimenta-se a base sobre a qual trata este trabalho,

cujo objeto de estudo são os verbos cutucar, curtir comentar e compartilhar como

expressão das relações afetivas na contemporaneidade, em enunciados produzidos na

rede social Facebook. Dessa feita, é objetivo deste trabalho analisar posicionamentos

axiológicos subjetivos a partir do estudo dos verbos cutucar, curtir, comentar e

compartilhar, nas práticas sociais discursivas virtuais.

Page 701: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1479

A discussão acadêmica que envolve questões de significação é uma das mais

problemáticas na Linguística (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009). Pensar o signo numa

perspectiva ampla que extrapole seus próprios limites de sentido e reflita seu caráter

ideológico, não se restringindo apenas ao domínio linguístico, mas que se espraie ao

domínio discursivo e, consequentemente, à vida é o que revela a preocupação dos

autores do Círculo de Bakhtin a respeito dessa questão. Nesse sentido, a discussão em

torno desse tema ganhou relevância tanto nos postulados teóricos quanto nas

preocupações em se verificar como se dá esse processo numa situação de contexto

social.

Para Oliveira (2002), deve-se pensar a linguagem na perspectiva de uma prática

social, na qual o discurso, moldado pelas relações de poder e ideologias, apresenta-se

como processos de significação, manifestação de pontos de vista, de subjetividades,

provocando efeitos nas construções identitárias. Sendo assim, deve-se pensar uma

concepção de linguagem, portanto, para além das relações que se estabelecem nos

limites da língua, condensando a ideia básica de que todo fato de significação é

resultado de um trabalho social, realizado por sujeitos ativos no processo de

interação/troca/comunicação verbal, fazendo emergir signos portadores de valores

sociais, definidos a partir do horizonte social de sua época e pelas formas das relações

sociais nas quais se constroem.

Esse discurso é validado tomando como base os pressupostos teóricos do Círculo

de Bakhtin que concebem a linguagem como uma atividade cognitiva, cuja orientação

se dá na esfera da comunicação, manifesta na pluralidade linguística, em que a língua

não mais é concebida como forma apenas. Essa orientação focada no universo sígnico

verbal determina, portanto, o estabelecimento da relação de uma língua real, utilizada

em contextos reais por e para falantes reais que, no dizer de Oliveira (2002), incorpora

ao ensino e à aprendizagem da língua materna questões relacionadas ao sujeito do

discurso, passando, portanto, pelas noções de valor, das vozes sociais e de suas relações

dialógicas.

Conforme Bakhtin (2010), devem-se estudar e compreender os aspectos e as

formas de relação dialógica entre enunciados, formatados em diversos gêneros

discursivos, plenos de orientações apreciativas, juízos de valor, em síntese, elementos

que, embora alheios ao sistema linguístico, remetem para o próprio funcionamento do

Page 702: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1480

enunciado, no qual se fazem ressoar vozes, algumas vezes longínquas e até

imperceptíveis, entre as quais distribuem-se os sentidos. Tais vozes são compreendidas

como manifestação de consciências que dialogam, debatem, concordam, discordam,

silenciam a voz do outro ou a si próprio, expressando valores, plurais ou não,

personificação de diferentes sujeitos, de diferentes visões de mundo. A esse respeito,

Oliveira (2002, p. 8) diz:

É nas relações dialógicas, portanto, que se pressupõem sujeitos, ainda que

seja difícil reconhecê-los, face à sua não concretude imediata, e que vão

desde aquelas mais simples, como a polêmica, a paródia, até aquelas que vão

permitir e possibilitar ultrapassar, no ensino da língua, o nível da organização

do texto, penetrando no campo das significações, dos valores, da

subjetividade, enfim, da linguagem concebida como uma prática discursiva.

Portanto, dentro desse pensamento é que se pode analisar práticas textuais como

enunciados, no sentido bakhtiniano, permitindo, assim, distinguir, entre textos

aparentemente semelhantes, a singularidade de cada um deles e as tomadas de posição

desses sujeitos, bem como esses enunciados são atravessados por valores e sentidos

diversos.

3 A fluidez e as mudanças nas relações afetivas contemporâneas na era digital

Se estamos na era da globalização, da modernidade líquida e, por consequência

do amor líquido, encontramo-nos, possivelmente, na era da instantaneidade, do

individualismo, do descompromisso, do descarte, na qual as coisas acontecem numa

velocidade espantosa.

A modernidade fluida espelha uma profunda mudança na ordem mundial. Nessa

perspectiva, ser moderno significa estar em constante movimento, estar à frente de seu

tempo, buscar uma identidade não fixa a fim de tornar-se um sujeito múltiplo,

plurissignificativo. Uma das principais ferramentas para esse novo momento, em que as

palavras de ordem são poder e dominação, são os meios tecnológicos, cuja velocidade é

fundamental na conquista do espaço. Assim, essas categorias ganham significativa

relevância por ser determinantes na caracterização da vida moderna.

Nessa modernidade, o espaço é o lugar de encontros fugidios que não favorecem

a interação, mas respondem a um apelo social de pertencimento a uma determinada

Page 703: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1481

comunidade. Assim, apesar de diversos em suas características físicas, igualam-se no

apelo ao consumo a que se destinam, sejam de quais ordens forem essas formas de

consumo. Esses espaços urbanos “públicos-mas-não-civis”, chamados de êmicos,

fágicos, vazios “desencorajam a ideia de ‘estabelecer-se’, tornando a colonização ou

domesticação do espaço quase impossível” (BAUMAN, 2001, p. 119).

Quanto à presença dos indivíduos nesses espaços transitórios, é de natureza

puramente física, não interessando, portanto, suas subjetividades. A principal

característica desses “não lugares” é a conduta dos transeuntes, que devem manter um

comportamento universal que seja compreendido e aceito mutuamente. Como encontrar

sentido, então, nesses não lugares que hoje ocupam tanto espaço na modernidade? Para

responder a essa indagação, Bauman (2001, p. 120) nos esclarece que:

Os espaços vazios são antes de mais nada vazios de significado. Não que

sejam sem significados porque são vazios: é porque não têm significado, nem

se acredita que se possam tê-lo, que são vistos como vazios (melhor seria

dizer não-vistos). Nesses lugares que resistem ao significado, a questão de

negociar diferenças nunca surge: não há com quem negociá-la.

É nesse cenário que analisaremos os verbos cutucar, curtir, comentar e

compartilhar como expressão das relações afetivas na contemporaneidade. E dentro

desse contexto, buscamos em Bauman (2001), com base no que ele mostra acerca da

modernidade e do amor do ponto de vista da liquidez dos sólidos; e em Hall (1997), no

que diz respeito à multiplicidade do sujeito contemporâneo e à forma como a cultura

afeta os modos de vida desses sujeitos.

Falar de relacionamentos é, de fato, um ponto delicado e nos leva sempre a um

questionamento sobre nossas próprias relações afetivas, como a conduzimos e como

somos conduzidos por elas. Certamente, quando tratamos dessa questão, estamos

adentrando um terreno extremamente multifacetado, culturalmente modificado pelos

modos de ser e de agir das pessoas, ou seja, em que questões de todas as ordens que

influem e confluem para delinear a nossa postura diante do mundo.

Quando se discutem relacionamentos afetivos na contemporaneidade, parece

haver um choque de cultura entre o que se entendia por relações afetivas nas gerações

passadas e as que estão postas na sociedade atual. Esse choque é emblemático porque

expõe um traço revelador que caracteriza a sociedade contemporânea: a fluidez das

relações afetivas. Essa ideia de fluidez foi amplamente difundida pelo sociólogo polonês

Page 704: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1482

Bauman (2001) em seu livro Modernidade Líquida, no qual, de forma contundente,

apresenta-nos um panorama, não muito otimista, de como as transformações sociais

convergem para a formação de uma nova sociedade, cujas alterações de toda ordem se

dão em todas as esferas das relações humanas.

Bauman (2001), ao tratar desse fenômeno social, constrói uma metáfora

lancinante e, não menos factual, do derretimento dos sólidos, ou seja, da liquefação das

instituições sociais sólidas em toda sua magnitude, sejam elas as da instituição familiar,

das relações de trabalho, da vida pública e privada, entre tantas outras, histórica e

culturalmente cristalizadas na nossa sociedade, que surgem ganhando outras nuanças,

outras formas, outros contornos, numa grande velocidade em que, disformes pelo

fenômeno da liquefação, procuram “encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e

adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e

apropriados para aquele lugar” (BAUMAN, 2001, p. 13).

Em consequência dessas transformações sociais, na atual sociedade liquefeita,

entra em cena outra natureza com relação aos laços sociais afetivos, que constituem o

cerne dessa problemática e que determina as novas formas de expressão das relações

afetivas. Se, por um lado, o advento da “modernidade líquida” trouxe em seu bojo um

momento novo em que o desapego e o descompromisso sugerem certa liberdade; por

outro lado, revela a sensação de individualização, estabelecida entre os sujeitos

envolvidos nesse processo que elimina a estrutura macrossocial em detrimento de um

convívio social individualizado, fragmentado, fluido.

A própria categoria denominada “indivíduo” é uma constatação feita a partir das

reflexões que surgem do crescente processo de individualização social, amplamente

discutido e teorizado por Bauman (2001). Esse processo de individualização social ao

mesmo tempo que descontrói instituições sólidas, como, por exemplo, o modelo

prototípico da família tradicional, faz surgir, como consequência desse novo momento,

novas redes de pertencimento, em que o indivíduo passa a ser constituído por outras

subjetividades.

Nessa perspectiva, uma nova cultura se descortina para novos comportamentos:

o eu passa a determinar culturalmente o que antes era protagonizado pelo nós e, assim,

os sujeitos desse processo aponta para relacionamentos em que predominam laços mais

Page 705: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1483

frágeis em que podem ser desfeitos a qualquer momento e, em qualquer situação que

possa desagradar quaisquer das partes envolvidas.

Assim, há um processo de privatização das parcerias humanas em que, cada vez

mais fragmentados, descompromissados e fluidos, os relacionamentos são, muitas

vezes, vistos sob a ótica da leveza e da liberdade individual, o que, de certa forma,

mascara determinadas posturas adotadas sob a condição dessa suposta liberdade.

Ademais, essa nova realidade traz consigo manifestações sintomáticas características:

solidão, depressão, isolamento e carência, que figuram nesse campo como as mais

frequentes sensações dessa individualidade moderna. Em face desse caos moderno,

entram em cena laços sociais afetivos perversos que tomam a forma de guetos, comuns

num crescente processo de tribalização social (BAUMAN, 2001).

Na modernidade líquida, “O interesse público é reduzido à curiosidade sobre as

vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição

pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados” (BAUMAN,

2001, p. 46). Nessa perspectiva, há um esgarçamento tangencial entre o social e o

individual, o que poderia contribuir para uma falta de compromisso e durabilidade nas

relações afetivas, uma vez que a liberdade individual preconizada pela modernidade

líquida vai ser, muitas vezes, atrelada ao poder de consumo desse indivíduo e, assim, o

consumidor pode se descartar dessas relações como se fossem uma mercadoria.

Diante do fenômeno da liquidez moderna, instauram-se outros modelos de

relacionamentos que se moldam às realidades, sendo a velocidade dessa modernidade

feroz se descortinando à nossa frente. Além disso, a família tradicional – composta de

pai, mãe e filho – convive lado a lado com outros modelos, como os que comportam os

casais homossexuais e filhos, avós e netos, paternidade e/ou maternidade independente,

os mais variados tipos de consórcios familiares surgem e, com eles, reações da

sociedade de aceitação ou de negação desse novo quadro. As relações afetivas, antes

sólidas, imutáveis, modelo de uma sociedade patriarcal, acresce-se de um novo

delineamento, mais solto, menos compromissado, mais livre, individualista, fluido.

À luz dessa nova era, podemos dizer que essa natureza líquida da sociedade vai

dar o tom a novas formas de relacionamentos afetivos, os quais caracterizam-se, muitas

vezes, pela ausência de compromissos mais firmes e duradouros e serão determinantes

para ilustrar como essa liquidez interfere no comportamento das novas gerações. Nesse

Page 706: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1484

cenário, as relações humanas parecem se mover num ritmo tão intenso que as

características desses relacionamentos são marcadas, principalmente, pela ausência de

compromisso. Esse processo de liquefação dos laços sociais não é um desvio de rota na

história da civilização ocidental, mas uma proposta contida na própria instauração da

modernidade (BAUMAN, 2001).

O que dizer então dos laços afetivos na era da globalização em que a velocidade

das informações caminha junto com a dos acontecimentos e, nessa perspectiva, também

arrola nesse patamar a mesma velocidade com que surgem e desaparecem os

relacionamentos?

De fato, na era da tecnologia e dos inúmeros sites de relacionamentos, observa-

se uma crescente necessidade de se expor, de ser visto, de ser aceito nas comunidades

virtuais, de se amarrarem uns aos outros por sua própria necessidade de estarem

“conectados”. No entanto, essas conexões não são uma “garantia da permanência”

(BAUMAN, 2001, p. 7), muito pelo contrário, são vínculos frouxos que podem ser

desfeitos a qualquer momento, de acordo com a mudança dos cenários e que fatalmente

se repetirá inúmeras vezes, conforme a necessidade de atar ou desatar novos laços, o

que expõe, de fato, a real dimensão da fragilidade dos laços humanos.

.

4 Considerações finais

Neste artigo, discorremos sobre as categorias de sentido e valor atribuídos aos

verbos cutucar, curtir, comentar e compartilhar em enunciados produzidos por

internautas na rede social Facebook. Com relação às formas de manifestação desses

sentidos, o texto de Bakhtin/Voloshinov (2009) nos coloca no foco central dessa

discussão, o que nos dá uma real dimensão dessa problemática manifesta no

pensamento dos autores do Círculo de Bakhtin.

Diante dessa perspectiva, verificamos que os sentidos atribuídos aos enunciados

propostos são atravessados por valores construídos socialmente, o que leva a crer que a

palavra é significada e ressignificada no eterno discurso do já-dito e valorada por vozes

sociais presentes na história de vida dos sujeitos nela envolvidos, numa perspectiva

dialógica semiotizada num mundo de relações fluidas e complexas, em que as relações

sociais cada vez mais se fragmentam e passam de instituições concretas, cristalizadas

Page 707: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1485

socialmente e ideologicamente, a partir da história da humanidade, a relações móveis,

não acabadas e numa constante reinvenção desses novos modelos.

Consequentemente, este trabalho, numa visão de linguística aplicada, faz-nos

refletir acerca da construção dos sentidos dos verbos cutucar, curtir, comentar e

compartilhar, presentes nas práticas discursivas em ambientes virtuais em que

predominam relações afetivas de toda ordem. Os sentidos e valores que essas categorias

verbais assumem nos enunciados em análise esboçam modelos de relacionamentos de

uma nova ordem, atravessadas por vozes que encontram eco e fazem ressoar novas

práticas discursivas produzidas em espaços e situações específicas em que os sujeitos

estão envolvidos em um cronotopo específico, qual seja: o de uma rede social, cuja

análise se dá sob o olhar da teoria dialógica dos autores do Círculo de Bakhtin e da

modernidade líquida baumaniana.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2010.

BAKHTIN, Mikhail. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de

Michel Lhud e Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 2009.

BAUMAN, Z. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 2004.

_______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 2001.

HALL. S. A. Identidades Culturais na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

OLIVEIRA, M. B. F. de. Bakhtin e a cultura contemporânea: sinalizações para a

pesquisa em LA. Revista da ANPOLL, São Paulo, v. 13, p. 105-121, 2002.

Page 708: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1486

PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –

UMA VISÃO SOBRE O ENSINO DE LINGUAS NA ERA

DIGITAL

[Voltar para Sumário]

Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)

Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)

Introdução

O objetivo deste trabalho é sensibilizar os profesores de produção de texto para o

uso da escrita através da WEB 2.0. Muito se fala sobre o uso da internet e das novas

tecnologias aplicadas ao ensino de línguas, principalmente da necessidade que o ser

humano está tendo de se expor através da internet. É relevante perceber que o proceso

de construção textual visto pelo ponto de vista escolar sofreu um breve declinio, uma

vez que o alunado tem se manifestado contra essa prática dizendo-se “não saber

escrever”, no entanto, é perceptível que esse mesmo grupo que se denomina incapaz de

produzir um texto no ambiente escolar produz inúmeros textos de diferentes gêneros,

incoscientemente, no ambiente virtual, ora se eu comento um perfil, analiso uma

imagem, crio a minha descrição, exponho a minha opinião sobre determinado fato e

isso de forma espontânea como posso afirmar não saber escrever? Essa seria a

indagação inicial, que já vem sendo explicada ao longo dos anos através de estudos em

Linguística aplicada e teorías linguísticas específicas, no entanto, embora tenha-se dito

que esta geração não lê e não escreve, é visivel o número de jovens interesados na

leitura e na escrita através das redes sociais, talvez o que haja hoje seja uma forma

diferente de ver a leitura e a escrita. É esse olhar diferente que a geração web 2.0 tanto

anseia e que também é desejado pelos professores de Língua Portuguesa que iremos

discutir neste trabalho, para melhor nos fundamentar, tomarei como corpus de análise as

Page 709: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1487

entrevistas realizadas com profesores da Rede Pública de ensino de Alagoas, essas

entrevistas refletem os intereses dos profesores de língua portuguesa e foram coletadas a

partir do projeto de extensão Professores das escolas Públicas de Alagoas: gerando

reflexões e ações” esse projeto é proposto pela UFAL – Universade Federal de Alagoas

e pelo IFAL – Campus Murici, nele são avaliados os desejos dos professores e que

dificuldades eles encontram em sala de aula.

Para analise da contemporaneidade teremos os pensamentos de Z. Bauman

(2005) , sobre a modernidade liquida e de Moita Lopes ( 2001) através de seus estudos

sobre identidades fragmentadas; Para analisar a escrita digital e o papel da web 2.0 nas

aulas de Língua Portuguesa, utilizaremos os conceitos de Barba (2013) que reflete sobre

a educação 2.0 Rojo (2013) que aborda em sua obra Escola Conectada diversas

experiências em sala de aula através dos multiletramentos e das TICs; Para a analise da

linguagem nos fundamentaremos no conceito de dialogismo abordado por Bakhitin em

seu ciclo de estudos.

Por fim, veremos como as práticas da web 2.0 auxiliam no processo de produções de

texto e como o professor pode explorar essa ferramenta dentro da sua prática de ensino.

A escrita liquida – entre o virtual e o real

Pensar a educação desvinculada da tecnologia é no mínimo ingenuidade, uma

vez que as duas estabelecem uma relação de simbiose, não que só existam juntas, mas

por que separá-las seria quase impossível pela forma como ela, a tecnologia, adentrou

no rol educacional, mesmo diante das barreiras que pensávamos que as separavam, essa

junção da “cibercultura” e dos gêneros digitais dentro dos muros da escola foi

fundamental para reforçar essa vontade de mudança cultural que passamos a viver a

partir da criação da web 2.0.

Ao pensarmos a sociedade pelo viés da modernidade a imagem que logo nos

assoma é do computador, pequenos grupos de seres robotizados capazes de infinidades

coisas, a cultura de massas ver na cibercultura uma forma de se destacar, isso porque,

foi a partir da web 2.0 que o receptor de textos digitais começou a sair da inércia de

apenas receber textos e mensagens , para viver em um novo mundo onde ele é o rei e a

busca da informação e do entretenimento é comandado por seus dedos de maneira quase

Page 710: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1488

que imperceptível, pois se eu acesso uma informação estou dentro de tantas outras, com

tantos e tantos objetivos que fica impossível deixá-las passar de maneira imperceptível.

É necessário observar que o que tínhamos anteriormente na sociedade era um

modelo uniforme de ser humano, um ser capaz de situar-se em uma única identidade,

que ora já lhe fora lhe presenteada. Atualmente é quase impossível alguém ser único

diante das inúmeras possibilidades de ser, como já foi afirmado por Brumn, somos um

mosaico de nós mesmos, encontrar-se e identificar-se é quase um duelo consigo mesmo,

essa angústia é comprovada por BAUMAN (2005, p. 18-19) ao defender que em nossa

época liquido-moderna o mundo a nossa volta está repartido em fragmentos mal

coordenados, as identidades flutuam no ar é preciso estar em alerta constante para

defender a primeira em relação às últimas e então onde podemos colocar todas essas

identidades em um mesmo espaço? No ambiente virtual. É lá que as identidades se

camuflam, se distinguem, se opõem, por isso vemos cada vez mais jovens interessados

em criar perfis nas redes sociais, jovens que se utilizam da palavra para se definir,

definir alguém, expressar sentimentos, indagações, essa necessidade de utilizar a

palavra é vista em Bakhitin ( p. 113) onde o autor afirma que é através da palavra que

alguém se define em relação ao outro, e só assim se define em relação à coletividade, o

autor ainda afirma ser a palavra o meio capaz de produzir lentas mudanças na

linguagem que nunca encontrar-se-á acabada devido a sua forma ideológica, desta

forma considerar a linguagem ideológica seria considerá-la dialógica, liquida e

heterogênea. Dialógica por só existir, segundo o autor em relação ao outro; liquida por

sua fluidez em relação ao sentido, contexto e historicidade e heterogênea por assumir a

forma que os enunciadores determinam dentro do enunciado.

A palavra é suporte de todas as mudanças, ela registra pequenos movimentos

discursivos e registra segundo Bakhitin (p.41) as fases mais intimas, mais

efêmeras das mudanças sociais.

Sendo assim, podemos afirmar que a palavra é poder, e dentro das redes sociais

ela vem ganhando mais efervecência, mais força com ela criamos passeatas, reunimos

multidões em praças públicas, divulgamos abaixo-assinados, vídeos de protesto, fatos

reveladores de denúncia social, enfim, é através do ambiente virtual que os novos

“escritores” se escondem é lá que encontram o seu eu desejado e o eu desejado de

alguém, no entanto precisamos ser cautelosos, pois se antes expressar esses sentimentos

Page 711: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1489

era uma “heresia” hoje, expô-lo é ato de heroísmo, gerado através de curtidas e

compartilhamentos é o que Bauman (2005, p. 43) afirma ser a batalha do

reconhecimento, escrevemos, pois, digitalmente na era da modernidade liquida para

sermos reconhecidos, vistos e curtidos pelo maior número de pessoas. E isso não é a

toa:

A guerra por justiça social foi, portanto reduzida a um excesso de batalha por

reconhecimento. Reconhecimento pode ser aquilo que mais faça falta a um

outro grupo dos bem sucedidos.

Outra característica da escrita digital na era da modernidade liquida é a

individualidade e não aquela individualidade de cem anos atrás mapeada pelo ser, mas

sim pelo tornar-se, uma individualidade que muda e que exige aparecer, a

individualidade é a luta por si mesmo, é a luta pela vontade e pelo poder. A escrita no

ambiente virtual revela essa individualização, são frases de repúdio ao pensamento

alheio, indiretas aos outros pensamentos, conceitos e dizeres que remetem aos novos

escritores uma necessidade de reconhecimento de autoria que consequentemente os

autoriza discursivamente a dizer e a ouvir também do outro as conseqüências do dito.

Ao passo que essa interação acontece construímos e reconstruímos as nossas

identidades e as dos outros, vale aqui ressaltar que o plural em as identidades se refere

as concepções de Bauman sobre as identidades. São esses ir e vir de argumentos que

rondam as redes sociais, esses rastros de nós mesmos, essa luta por justiça social, por,

reconhecimento, por individualidade que faz com que a busca da autoria faça sentido,

dizer pois, na escrita digital significa poder e realização social. O ethos digital, o

fingimento do ser, é segundo Amossy (2008, p11) a competência cultural da

comunicação, é a preocupação com a imagem que eles fazem de si mesmos , dos outros

e a imagem que os outros fazem deles que o faz com que o discurso se manifeste. A

identidade não está ligada a ser, mas a representar e ao mesmo tempo que o sujeito se

fragmenta ele se une em busca de urgências nunca saciadas, com uma necessidade de

ser único, mas igual a todos.

Com o surgimento da Web 2.0 qualquer pessoa pode ser ou ter qualquer coisa

virtualmente e distribuir esse material para o mundo inteiro, tudo de graça ou por um

preço bem reduzido, fazer parte da web 2.0 é estar 24 horas antenado no mundo, ter

Page 712: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1490

“escolas conectadas1” é conectar a aula com o mundo e isso só é possível se houver

determinação do professor para delimitar, se é que seja possível delimitar qualquer

coisa na internet, o que se quer naquele momento com a aula. Dessa forma o olhar do

professor de produção de texto não poderá ser aquele olhar medíocre de observar apenas

os erros e adequação de gêneros, mas também o grau de informatividade e de

expressividade que o texto se revela no outro através do número de acesso, leituras e

curtidas.

Metodologias digitais para as aulas de produções de texto

Por ser uma pesquisa de caráter quantitativo, incluir intenções, significados e

valores, e busca investigar como as ações de letramento digital e a produção de texto

digitais influenciam na formação de uma ou várias identidades do sujeito pesquisado,

compreendendo como essas ações se apresentam de forma efetiva na transformação

social, cultural e profissional desse individuo. Entendo que a tecnologia surge como um

princípio fundamental para a acessibilidade a cultura e a conhecimentos dos sujeitos em

ambientes reais e (ou) virtuais acessibilidade que interferem na prática pedagógica

estabelecendo uma discussão de até que ponto a internet e as Tic’s são suficientes para

constituir no processo de produção de texto e como o professor, que ensina a produzir

um texto pode ter a destreza de o mesmo ser também produtor do texto e de revelar

suas identidades pessoais em mundos digitais.

Para atingir os objetivos, no presente trabalho usamos o método etnográfico e o

método clínico, o primeiro segundo Lakatos (2010; 94) consiste no levantamento de

todos os dados possíveis de uma sociedade ou de um determinado grupo, com a

finalidade de conhecer melhor o estilo de vida ou a cultura desses sujeitos. Esse método

está baseado na observação é descritivo, contextual, aberto e profundo, o que segundo

Wilcox ( 1993 apoud Lakatos 2010) implica:

a) Aceder, manter, desenvolver uma relação com as pessoas geradoras de

dados;

b) Empregar uma variedade de técnicas para coletar o maior numero de

dados e/ou informações, aspecto que redundará na validez e confiabilidade do

estudo;

1 Usando aqui a ideia de escolas conectadas do livro de Rosane Rojo.

Page 713: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1491

c) Utilizar teorias e conhecimentos para guiar, informar as próprias

observações do que viu e ouviu, redefinir temas e depurar o processo de

estudo.

Para conceber as intervenções utilizamos o método clínico, que segundo Lakatos

(2010; 95) caracteriza-se por possuir relação intima e pessoal entre o entrevistador e o

sujeito e o emprego de uma serie de dados ou sinais. Para uma execução do método nos

valeremos das técnicas de entrevistas, histórias de vida, observação e interação de

relação pessoal.

Portanto, é necessário nessa pesquisa além de todo o conhecimento dos fatos, ou

seja da verdade empírica do professor produtor de textos e dos alunos como produtores

de textos digitais, a analise da teoria e da ciência para que haja uma orientação e

restrição da amplitude dos fatos a serem estudados, selecionando dentro do universo de

possibilidades os dados que serão relevantes para objeto de análise.

Para levantamento de dados utilizamos a observação direta intensiva, que nesse

caso agrega duas técnicas: a observação e a entrevista. Com a observação dos textos

produzidos pelos professores, bem como seus perfis de internet, seus blogs, chats de

bate papo, para analisarmos a produção, exploração e divulgação desses textos, essa

observação será registrada através de coleta de dados impressos e virtuais, esses dados

serão profissionais e pessoais, para que seja respondida a pergunta sobre que tipos de

textos esses sujeitos estão produzindo e como estes textos estão sendo veiculados ou

divulgados.

Para o estudo de investigação social das identidades do sujeito utilizamos

entrevistas, que por sua vez nos ajudaram a nortear os indivíduos que dão aula de

produção de texto e como podemos direcionar esses estudos a partir da WEB 2.0,

analisar por meio das definições individuais respondidas em entrevistas as necessidade

de se trabalhar mais essa preparação do professor para a produção de textos digitais,

adequar as determinadas situações para gera um ambiente propicio à esse tipo de

produção e assim prever qual seria a sua postura diante da escrita digital como

professor, a fim de compreender o que deveria ter sido feito e o que é possível fazer. Por

fim, inferir que condutas esse professor poderá ter ao se ver diante das inúmera

possibilidades do uso da web 2.0, como ele se constituirá professor no futuro,

conhecendo a maneira pela qual ele se comportou no passado ou se comporta no

presente, quanto a ser digitalmente aceito.

Page 714: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1492

Desse modo, a inclusão de recursos tecnológicos em sala de aula, há de ser

compreendida não por uma série de pespectivos de auxílio em dinamização de aulas

apenas, mas pela multiplicidade de funções a ela atribuída, funções que norteiam a

identidade dos sujeitos, bem como a sua atuação no mundo contemporâneo,

questionamentos possíveis, se pensarmos no grande universo de pensamento de

professores que desprezam o universo on line, portanto é essa analise da práticas de

leitura e escrita na internet e pela internet que nos fará constituir um perfil particular do

professor blogueiro, do professor que utiliza-se das redes sociais para comentar,

justificar, analisar e expor conceitos posteriores a sua aula,professores que alimentam

nos seus alunos a necessidade de produção, produção que deve ser lida, avaliada, curtida

e compartilhada, professor que é capaz de desvincular-se do universo de produção

textual estagnada pela modernidade e ver nesta a oportunidade de construir consciencia

critica e expressividade na escrita digital, isto é, explorar a forma linguistica que a web

explora de nós, socializar-se letrado virtualmente e buscar no mundo digital a

autonomia do ser e dessa forma colocar-se em diálogo com o outro.

Essa preocupação em ver a utilidade do uso do computador para o currículo

pedagógico vem alimentando estudos cada vez mais complexos na área educacional,

pois os alunos estão chegando à escola com mais vontade de ver e contribuir para a sua

formação escolar, diante dessa vontade temos a tecnologia, somos a terceira geração de

celulares e tablet`s cada vez mais potentes, lidamos com a agilidade e o imediatismo das

informações de forma lúdica e prática, podemos usar num mesmo celular, internet, TV,

radio,filmar, fotografar, gravar vídeo e vozes e todos esses recursos devem ser

associados a escola sob forma de produção viva de conhecimento ou seja, o segredo

não é usar o vídeo, as imagens expostas, o segredo é produzir o vídeo, compor seu blog,

instigar a produção através da própria criação.

Esse é o novo olhar do professor de produção textual, olhar que apresenta o

mundo através da escrita e da oralidade, Steven Johnson afirma que o uso de um

processador de texto muda a nossa maneira de escrever, não só por que estamos nos

valendo de uma nova ferramenta, mas também por que o computador transforma

fundamentalmente o modo como concebemos a frase e o pensamento que se desenrola

paralelamente ao processo de escrever, isso por que sabemos que alguém vai ler, mas

Page 715: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1493

não é um só alguém professor, é todo alguém que curta o meu blog, o meu pensamento,

a minha ideia e isso pesa e muito para a minha identidade digital.

Considerações finais

A pesquisa realizada no projeto de extensão Professores das escolas Públicas

de Alagoas: gerando reflexões e ações” conta com 6 professores da rede municipal e

estadual de ensino de alagoas, dois professores coordenadores e 6 alunos colaboradores.

Inicialmente foi aplicado um questionário para a sondagem desses professores, quando

abordados sobre quais temas lhe causariam mais interesse 6 optaram pela leitura, 4 pela

escrita e 4 pela tecnologia os outros pela variação, é fácil verificar que o discurso desses

professores se encontram, ao serem perguntados pelas dificuldades encontramos as

seguintes respostas:

I - Em sua opinião, o que é dar aula de Língua Portuguesa na

atualidade? Por quê?

Professor 1 - Entendo que hoje, deixando de lado a questão da valorização do

professor, torna-se uma competição muito injusta com o mundo virtual. Os

alunos tem acesso a um mundo totalmente informal e quando tem que

optarem entre o que é correto e este mundo, o fazem por um mundo mais

próximo e, para ele, mais atrativo.

Professor 2: É bater em uma educação falida, baseada num sistema

deficiente. Pois cada dia a língua portuguesa sofre a desvalorização e a ação

da tecnologia, refletindo na falta de interesse dos próprios alunos.

Professor 3: Desafiante, visto que o ensino de língua portuguesa bem como

as demais matrizes e nossos colegas de profissão, nos deparamos

ultimamente com uma inovação tecnológica chamada de redes sociais que se

dissiminou entre as pessoas especificamente entre os jovens e que estão

importando para dentro da sala de aula, dividindo assim a atenção na aula e

nos atrativos das redes sociais. Como conseqüência a aprendizagem, o

feedback, o raciocínio é comprometido.

Professor 4: Ministrar aula de língua portuguesa tem sido um grande desafio,

por que os alunos sente-se atraídos pelas novas tecnologias e não têm

interesse em adquirir informações através de outros meios. Além disso as

péssimas condições de infraestrutura da escola comprometem muito no

processo de ensino-aprendizagem.

Como podemos constatar os professores sentem uma angústia em relação ao uso

exacerbado da tecnologia, é interessante verificar que esses professores sabem que

podem usar a tecnologia na sala de aula, mas tentam separar esse uso do cotidiano e é

Page 716: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1494

esse olhar que não podemos mais ter, de que estar dissociado sala de aula e tecnologia,

um está ligado ao outro, por que se eu tenho no discurso de P3 que a consequência da

tecnologia é o comprometimento do raciocínio, eu desvinculo totalmente o uso da

tecnologia para ensinar a pensa, interagir, dialogar e a argumentar e todos essas

capacidades são decorrentes dos PCN’s de língua portuguesa.

O outro problema abordado por esses professores é a falta de empenho para a leitura

e escrita, no entanto, a leitura vai além daquilo que é ensinado em sala de aula, é algo

que vai além do próprio texto e que a escrita, embora tenhamos uma gramática

normativa, não se baseia apenas nela. È interessante ver os comentários dos professores

quanto o desafio é o ensino de língua, para nos sensibilizarmo-nos da angústia de

olharmos além do que temos como recursos.

II - Quais são suas dificuldades em relação às aulas de Língua Portuguesa?

Por quê?

Professor1: Hoje além da briga com o sistema, que a meu ver privilegia a

falta de interesse e a indisciplina do aluno, é o acesso às redes sociais, que

tornam os alunos reféns e próximos de uma escrita demasiadamente informal.

Professor2: Manter a atenção do aluno. É possível apontar vários fatores para

essa falta de atenção a tecnologia é uma, a falta de estrutura familiar....

Professor 3: Não vejo maiores dificuldades no processo de transmissão do

saber, das informações inerentes ao conteúdo trabalhado, isso por que além

de usarmos técnicas inovadoras no processo metodológico, mais que isso é

preciso adentrar no mundo desses jovens e procurar compreendê-los.

Professor 4: As dificuldades estão relacionadas à prática de leitura e

produção de textos, porque tem sido cada vez mais difícil incultir no aluno o

gosto pela leitura e escrita de forma prazerosa. É um desafio manter os alunos

de hoje se dedicando na aula e fazer com que o conteúdo de ensino seja

realmente para eles.

Sabemos que o uso de computadores, redes sociais, fanfics, todo aparato

tecnológico não resolverá sozinhos essas dificuldades, mas é perceptível que a leitura de

textos variados ocorre na internet, e que os alunos também comentam, opinam,

escrevem e interagem, que reportagens jornalísticas podem ser revisadas em sala de

aula, jornais podem ser acessados on-line por celulares, i-phones etc, livros e contos

podem ser salvos e lidos na sala de aula. Releio aqui o pensamento de Steven Jobson,

ler através do computador e do celular é a mesma leitura, mas há algo lá que seduz e

que brinca com o universo de leitura e da escrita, esse universo é a web 2.0 que assim

como o sistema nos dá a ilusão de que estamos livres para fazer o que queremos, Pois lá

Page 717: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1495

nós não apenas lemos, nós criticamos, comungamos do mesmo pensamento e

socializaremos a leitura e a escrita.

Como o projeto ainda está em andamento não podemos constatar se as ações e

as reflexões desses professores possibilitará esse novo olhar para a escrita digital, mas

todos concordam, a partir do resultado do segundo questionário, com a ideia de que é

preciso sim utilizar esses artifícios da web 2.0 como auxilio para uma escrita autônoma

que passa do professor para o aluno através de blogs, paginas de redes sociais, site e

grupos restritos e do aluno para o mundo, para o reconhecimento. Resolvendo em parte

um questionamento recorrente do professor de produção de texto: “o que fazer com essa

infinidade de textos que recebo diariamente de alunos dos mais variados níveis e

series?”

Enfim o monitoramento da escrita se eleva e melhora devido a exposição do

texto, o aluno se torna corresponsável pela correção. Embora haja uma ideia do senso

comum de que escrever na internet é escrever de qualquer jeito, as pessoas têm se

preocupado muito em escrever com coerência e expressividade para serem lidas,

curtidas, compartilhadas e seguidas pelo mundo digital.

O que estamos querendo dizer é que esses professores escrevem e leem, buscam

a perfeição e o empenho no cumprimento do seu papel, ensinar a ler e a escrever, mas

onde se constroem essas identidades, esses discursos? Esses discursos emergem das

mais variadas situações da sala de aula, o professor é vítima e sofredor ao mesmo tempo

e estão em busca de um agir no mundo social.

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. in: AMOSSY, Ruth

(org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto,

2008.

ALMEIDA, Maria Elizabeth Bianconcini de. Inclusão digital do professor: formação e

prática pedagógica. São Paulo: Ed. Articulação. 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

BRAGA, D. B. “A Comunicação Interativa em Ambiente Hipermídia: as vantagens da

hipermodalidade para o aprendizado no meio digital. In: XAVIER, A.C. &

Page 718: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1496

MARCUSCHI, L. A.(Orgs.) Hipertexto e Gêneros Digitais: novas formas de construção

de sentido. Rio de Janeiro: Ed Lacerna, v. 1, 2004, pp. 144-162.

BORGES, P. (2003) A força da internet nas salas de aula. Correio Brasiliense.

Caderno especial, 15/4. Em: www2. Correioweb. Com.br/cw/ edição_20030415. Ultimo

acesso em 19/01/2012

CAVALCANTE, M. C. B. Mapeamento e produção de sentido: os links no hipertexto.

In: MARCUSCHI, L.A; XAVIER, A.C. Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de

construção de sentido. São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 198-206.

CAVALCANTI, M.C. Um evento de letramento como cenário de construção de

identidades sociais. In: Maria Inês Pegliarini Cox; Ana Antonia de Assis – Peterson.

(Org). Cenas de Sala de Aula. 1 ed. Campinas:

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5.ed. São Paulo: Atlas,

2010.

KENSKI, Vani Moura. Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação.

Campinas, SP, Parirus. 2007

KOMESU, Fabiana. Pensar em hipertextos. In: ARAÚJO, J.C; BIASIRODRIGUES, B.

Interação na Internet: novas formas de usar a linguagem. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna,

2005, p.87-108.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia

cientifica.7.ed. – São Paulo : Atlas, 2010.

LEFFA. V.J. Texto, hipertexto e interatividade. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16,

n. 2, p. 166-192, jul./dez. 2008. Disponível em:

<http://www.leffa.pro.br/textos/trabalhos/Vilson_Leffa-Rafael_Castro.pdf>. Acesso em:

02 ago. 2013.

LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da

informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.

LÉVY, P. Cibercultura. Trad: Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. in: AMOSSY, Ruth

(org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Editora Contexto,

2008a.

TEDESCO, J. C. Educação e novas tecnologias: esperança ou incerteza? In:

Page 719: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1497

TEDESCO, J. C. (Org.). Educação e tecnologias: esperança ou incerteza? São Paulo:

Cortez, 2004. p. 9-13.

XAVIER, Antonio C. S. da informação: a O Hipertexto na sociedade constituição do

modo de enunciação digital. Tese de Doutorado, Unicamp: inédito, 2002. Acesso em:

ago, 2007

Page 720: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1498

GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA [Voltar para Sumário]

Katiane Silva Santos1 (IFAL)

Introdução

É notório que o ensino de língua portuguesa está mais centrado nos gêneros

textuais. Embora haja vários estudos acerca do tema, ainda há muito que debater.

Muitas pesquisas foram realizadas no que tange à inserção dos gêneros textuais na sala

de aula, porém o que foi comprovado com os resultados das pesquisas é que as

atividades relacionadas ao gênero são desenvolvidas de maneira equivocada. Na

dissertação de mestrado “Ensino-aprendizagem da língua portuguesa, gêneros textuais e

prática pedagógica" (2010), a pesquisadora da Universidade Católica de Pernambuco,

Gilvânia Gonzalez mostra, através de seus estudos, que alguns professores de língua

portuguesa sequer têm noção da concepção de gênero textual. Haja vista, alguns fazem

uso da diversidade de gêneros, no entanto o fazem de maneira equivocada. Observa-se

que o trabalho desenvolvido na sala de aula não tem os gêneros textuais como eixos

norteadores do ensino. Apesar de os planos de ensino contemplar as variedades textuais

como componentes curriculares, verifica-se que os procedimentos didáticos voltam-se

para a exploração dos aspectos formais e estruturais da língua, desvinculando o texto

das práticas sociais de comunicação.

Os conhecimentos adquiridos nas aulas de língua materna devem voltar-se, não

só para o âmbito escolar, mas também fora dele, pois o objeto de ensino e

aprendizagem, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, p.22), “é o

1 Pós-graduanda do curso de especialização em Linguagem e Práticas Sociais pelo Instituto Federal de

Alagoas (IFAL) e graduada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Page 721: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1499

conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das

práticas sociais mediadas pela linguagem”.

Embora seja inegável que os PCN’s sirvam de apoio aos professores, o

documento se trata apenas de uma referência para as discussões curriculares, não traz,

portanto, propostas as quais orientem o trabalho do docente. A este, “cabe planejar,

implantar e dirigir as atividades didáticas...” (PCN’s, 1998, p.22). Não há, portanto, uma

apresentação que mostre a maneira que o trabalho será desenvolvido, como as

atividades serão organizadas de forma que o aluno amplie seu domínio discursivo nas

diversas situações de comunicação, inclusive nas instâncias públicas de uso da

linguagem. Daí a importância de realizar um estudo, o qual tem como objetivo mostrar

como as atividades relacionadas à inserção dos gêneros orais e escritos poderão ser

aplicadas na sala de aula. Desse modo, a temática foi escolhida por conta de que muitos

materiais os quais tratam dos gêneros textuais não dão suporte necessário ao professor, a

fim de que o trabalho em sala seja desenvolvido de forma efetiva.

Assim, primeiramente discute-se a teoria dos gêneros na perspectiva de

Marcuschi (2008), explicitando a noção de gênero e chamando atenção para a distinção

entre gênero e tipo textual. Logo após, faz-se uma abordagem da exploração dos

gêneros na perspectiva de Passarelli (2012). Já no terceiro momento apresentam-se as

propostas elaboradas por Dolz e Schneuwly (2004) para tornar possível o entendimento

das peculiaridades de cada gênero. E para finalizar, as considerações finais.

1 Gênero textual na perspectiva de Marcuschi

A noção de gênero não está mais vinculada apenas à literatura. Marcuschi (2008,

p. 147) faz referência à Swales (1990) para dizer que hoje o gênero é utilizado em

qualquer tipo de discurso, seja ele falado ou escrito, com aspirações literárias ou não.

Contudo, é na linguística que interessa analisar a noção de gênero.

Luis Antônio Marcuschi (2008), na segunda parte de sua obra intitulada

“Gêneros textuais no ensino de língua”, defende que no processo de comunicação

verbal não há como não fazer uso de algum gênero, assim como não há comunicação

verbal sem texto. Sendo assim, em toda e qualquer prática comunicativa faz-se

necessário a utilização de algum gênero de texto, seja oral ou escrito. Em vista disso, há

Page 722: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1500

uma diversidade de texto, a ponto de um sujeito não conseguir identificá-los pelo fato

de a quantidade de gêneros existentes nas esferas da sociedade ser imensa, o que não

quer dizer que sejam infinitos. Na esfera jornalística, por exemplo, há o editorial, o

artigo de opinião, a carta ao leitor, etc.; na esfera religiosa há a oração, a prece, o

sermão, etc. À proporção que cada esfera da atividade humana se desenvolve, mais

gêneros surgem para atender as necessidades das práticas sociais

É importante não confundir gênero textual com tipo ou formal, visto que um

gênero textual não é uma forma linguística, mas “uma forma de realizar

linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.”

(MARCUSCHI, 2008, p. 154).

O tipo textual são modos textuais, os quais são identificados pela sua

composição. Compreende as categorias conhecidas como narração, argumentação,

descrição, injunção e exposição, predominando, assim, a identificação de sequências

linguísticas como norteadoras. Já o gênero textual refere-se ao texto que é produzido

para atingir determinado objetivo, numa dada situação comunicativa. Vale ressaltar, que

os gêneros não são modelos estanques, e sim dinâmicos, pois são variáveis e sócio-

históricos. Por este motivo, contá-los seria uma tarefa quase impossível, porque vários

gêneros surgem a partir das necessidades do homem, das atividades socioculturais e das

inovações tecnológicas.

Nas situações de comunicação do cotidiano, tanto o gênero quanto o tipo textual

constituem o funcionamento da língua, por isso é interessante frisar que “os gêneros não

são opostos a tipos e que ambos não formam uma dicotomia e sim são complementares

e integrados.” (MARCUSCHI, 2008, p. 156). Desse modo, todo gênero possui uma

sequência tipológica, ou seja, em um gênero pode predominar a narração, a descrição,

ou mesmo a exposição. Esse tipo de análise pode ser observado em qualquer gênero,

logo, o que vai predominar no tipo textual é a identificação da sequência linguística, ao

passo que no gênero textual vão predominar os propósitos, os critérios de padrões

comunicativos e inserção sócio-histórica. É nesse sentido que Marcuschi (2008) reforça

que para distinguir os gêneros textuais utilizam-se critérios linguísticos e funcionais, de

modo que os tipos textuais são distinguidos através de critérios linguísticos e estruturais.

No entanto, a preocupação não é classificar o gênero, mas sim explicar como se

constituem e como circulam nas práticas sociais.

Page 723: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1501

2 Exploração dos gêneros atrelados às práticas sociais

Em muitas situações, a escola contribui para que os alunos acreditem que a

escrita é uma exigência apenas da escola, sem qualquer utilidade fora dela. No entanto,

é importante que seja mostrado aos alunos que “a linguagem se realiza em situações

práticas, de convívio social, por textos orais e escritos, mediante as quatro habilidades

linguísticas básicas: falar, escutar, ler e escrever.” (PASSARELLI, 2012, p. 116). É

nessa perspectiva, que o capítulo 4 do livro de Passarelli (2012), intitulado “Funções da

escrita de diferentes gêneros textuais”, é dedicado à exposição acerca do tratamento dos

gêneros na sala de aula. A ideia é criar na escola, situações que se assemelhem às

existentes no ambiente social externo.

Nesse sentido, a autora contribui bastante para o trabalho docente apresentando

de forma clara o propósito comunicativo dos gêneros, quer em situações da vida

cotidiana, quer na vida escolar. Diante disso, o quadro abaixo mostra os gêneros que

podem ser utilizados na escola e também aqueles que simulam situações da vida diária.

Quadro 1- Funções sociais da escrita

Função social ou propósito comunicativo Gênero

Fornecer, obter informações e resolver

problemas práticos do dia a dia

Cheque; carta comercial; ofício,

memorando, relatório técnico,

circulares; curriculum vitae; textos de

procedimentos; e-mails; provas,

redações e trabalhos escolares;

convites; textos para mural; regras de

jogos; manuais de instrução; receita

médica; bula de remédio.

Partilhar vivências Depoimentos em redes sociais, em

colunas de revistas; blogue; ágora.

Reivindicar, manifestar ou formar opinião Carta de leitor; carta de reclamação;

artigo de opinião; editorial.

Não esquecer

Fornecer suporte à memória

Fichamentos, resumos, resenhas etc.;

anotações pessoais e calendários;

páginas de agendas; receita; data de

aniversário; listas.

Formalizar registros permanentes Convites; certidões; certificados;

diplomas; frases de tatuagens.

Substituir comunicações próprias do contato

face a face

Bilhetes, cartas; telegramas, mensagens

eletrônicas [via computador, telefone].

Page 724: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1502

Satisfazer curiosidades, inteirar-se Folhetos religiosos; mensagens que

orientam papéis sociais; propagandas

institucionais; cadernos de perguntas

pessoais dos adolescentes.

Passar o tempo, ter momentos de lazer Poemas, pichações em muros, cadernos

pessoais.

Obter informações, esclarecimentos ou trocar

mensagens atinentes a relações sociais com

parentes, amigos e namorados

Torpedo; telegrama; carta; e-mail ou

outra correspondência eletrônica;

cartões de Natal, de aniversário.

Produzir literatura Acróstico, crônicas, contos, romances,

poemas, haicais, limeriques.

Para facilitar o trabalho docente, Passarelli (2012) explicita um exercício

bastante significativo a fim de relacionar a escrita com a vida em sociedade. A ideia é

distribuir textos dos mais variados gêneros e pedir para os alunos analisarem as

características de tais textos indicando:

O gênero textual: Forma textual materializada em situações comunicativas orais ou

escritas

O suporte: De onde, materialmente, o texto foi retirado;

A veiculação: Tipo de situação em que o gênero se encontra;

A função social: Propósitos comunicativos, por exemplo, entreter,

informar, instruir, documentar;

A natureza da informação: A informação transmitida;

O tipo textual: Narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo;

Variante linguística: Formal, informal;

Domínio discursivo: Esfera de atividade discursiva, por exemplo,

acadêmica, jornalística, publicitária, científica, religiosa, jurídica.

O intuito de Passarelli (2012) é propiciar a identificação dos gêneros textuais e

oportunizar o uso e a exploração desses gêneros na sala de aula. A intenção é que “o

ensino da produção textual escrita associe a escrita à vida em sociedade.”

(PASSARELLI, 2012, p. 128).

3 Sequência Didática

Page 725: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1503

Muitas atividades propostas e praticadas em sala de aula não abordam as

peculiaridades de cada gênero. Os textos aparecem como suporte para o trabalho de um

tema, não havendo indicação que destaque um trabalho estruturado numa sequência

didática, tal qual propõem Dolz e Schneuwly (2004). Estes autores definem “sequência

didática” como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira

sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito.” (DOLZ e SCHNEUWLY,

2004, p. 96). O intuito da sequência didática é dar auxílio para que o aluno tenha

domínio de um gênero de texto, o que permite que ele escreva ou fale de um modo mais

adequado em determinadas situações de comunicação.

O grupo de Genebra apresenta um esquema para a realização da sequência

didática. Esta é dividida em quatro momentos: apresentação da situação, primeira

produção, módulos e produção final.

No primeiro momento, o professor apresenta para a turma o gênero a ser

trabalhado, dando indicações que respondam às seguintes questões: Qual gênero será

abordado? A quem se dirige? Qual forma assumirá após a produção? Quem participará

da produção?

Se na fase de apresentação a situação é bem definida, todos os alunos são

capazes de produzir o texto. Na produção inicial os alunos buscam produzir o gênero

proposto. É por meio da avaliação inicial que o professor percebe o grau de dificuldades

que os alunos têm sobre os gêneros, buscando, assim, soluções para os problemas que

aparecem.

Nos módulos, os problemas diagnosticados na primeira produção são

trabalhados. O professor irá desenvolver atividades e exercícios diversos, os quais

permitirão aos alunos dominar o gênero escolhido. Através das variadas atividades

realizadas nos módulos é que os alunos superarão os problemas. O essencial em cada

módulo é diversificar os modos de trabalho, e para que isso ocorra é necessário

enriquecer o trabalho na sala se aula com atividades diferenciadas. Vale destacar que

são três categorias de atividades e exercícios, a saber: atividades de observação e análise

de textos; tarefas simplificadas de produção de textos; e elaboração de uma linguagem

comum.

Após cumprir as atividades dos módulos, os alunos além de aprenderem a falar

acerca do gênero abordado, também adquirem um vocabulário técnico, o qual será

Page 726: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1504

comum à turma e ao professor. Ao final de cada sequência, é feita uma síntese para

recapitular o que foi trabalhado.

O último momento é a produção final, que possibilita ao aluno pôr em prática o

que aprendeu, e ao professor, realizar uma avaliação formativa. É importante salientar,

portanto, que a proposta pressupõe o trabalho tanto com os textos orais, quanto com

escritos.

Conclusão

Nota-se cada vez mais que o estudo sobre os gêneros tem sido imprescindível

para que as ideias possam ser conhecidas e questionadas.

Espera-se ter atingido o objetivo de pensar na importância dos trabalhos

desenvolvidos que levam em consideração os gêneros textuais. Contudo, a pretensão

deste trabalho não é ser um guia, mas um subsídio que auxilie o professor de língua

portuguesa na sua prática pedagógica.

Logo, a inserção dos variados textos no processo de ensino e aprendizagem

torna-se indispensável, visto que funcionam como instrumentos de trabalho na ação

docente. Nesse sentido, é inegável a necessidade da presença dos gêneros na sala de

aula. O importante é que o professor desenvolva uma prática pautada nas sequências

didáticas, o que fará os alunos compreender melhor uma diversidade de textos,

permitindo, assim, boas condições para a recepção e produção de textos, além de dar

suporte para que o professor realize uma atividade ampla com os textos, atrelando-os às

práticas sociais de comunicação.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais:

terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: SEF/MEC,

1998.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências

didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim

e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras,

2004, p. 95-128.

Page 727: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1505

GONZALEZ, Gilvânia Oliveira. Ensino- aprendizagem da língua portuguesa, gêneros

textuais e prática pedagógica. 2010. 138f. Dissertação (Mestrado em Ciência da

Linguagem) – Universidade Católica de Pernambuco, Recife. 2010.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais no ensino de língua. In: MARCUSCHI,

Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:

Parábola, 2008, p. 145-281.

PASSARELLI, Lílian Ghiuro. Funções da escrita de diferentes gêneros textuais e

princípios norteadores para o ensino da produção textual. In: PASSARELLI, Lílian

Ghiuro. Ensino e correção na produção de textos escolares. São Paulo: Telos, 2012, p.

115-141.

Page 728: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1506

UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS

REFERENCIAIS CURRICULARES PARA O ENSINO

MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE BAKHTIN [Voltar para Sumário]

Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)

Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)

Introdução

Os conteúdos de ensino, definidos historicamente, resultam da seleção daquilo

que é dado ou digno de saber. Dessa forma, existem conteúdos assim como

metodologias de ensino que só se justificam quando pensamos na “naturalização” de um

discurso pedagógico constituído historicamente e socialmente, ou seja, não há uma

justificativa plausível para o seu ensino/aprendizagem que não a sacralização desses

conhecimentos tidos “necessários ou essenciais.” Contudo, a LDB 9394/96 e, em

consonância com esta, os Parâmetros Curriculares Nacionais, apresentam-se como um

“marco teórico” em que deparamos com um novo discurso e, entre eles, o trabalho com

os gêneros textuais/discursivos.

Os gêneros estão inseridos nesse “novo discurso” de ensino em todas as esferas

da atividade humana estão relacionadas com o uso da língua em forma de enunciados

(orais e escritos). Esses enunciados são determinados pelas múltiplas especificidades em

cada campo de atividade humana, ou seja, aspectos relacionados com o seu conteúdo

temático, estilo e organização composicional. Cada enunciado particular é individual,

contudo, as várias esferas das comunicações elaboram seus tipos relativamente estáveis

de enunciados, o que chamamos de gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003).

Desenvolvemos uma pesquisa de cunho bibliográfico e documental a partir dos

Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (RCEMPB1) - Língua

1 Abreviação estabelecida para: Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba.

Page 729: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1507

Portuguesa, nos atendo, principalmente, à análise da transposição dos conceitos

referentes aos Gêneros textuais/discursivos e de que forma eles estão sendo abordados

neste referencial buscando estabelecer uma leitura sobre quais concepções são

assumidas nessa parte do documento.

Estabelecemos como categorias teórico-analíticas, a partir da leitura do corpus,

as noções de língua, linguagem, enunciado, enunciação, ideologia, polifonia e gêneros

discursivos (BAKHTIN, 2010). É válido lembrar que a partir de nosso corpus lançamos

mão dos pressupostos teóricos encontrados em Mikhail Bakhtin (2003), Mikhail

Bakhtin /Volochínov (2012) e o círculo, Beth Brait (2006), além dos estudos de Cristovão

Tezza (2001) e Augusto Ponzio (2009).

A importância de nossa análise parte da necessidade de um olhar crítico sobre

esse documento, tendo em vista que a fundamentação teórica que o respalda supõe

conhecimentos que muitos professores ainda não partilham e que são norteadores da sua

prática em sala de aula, neste nível de ensino.

Para uma melhor visualização do corpus, o trabalho encontra-se dividido nos

subtítulos abaixo em que procuramos destacar também em suas caracterizações nos

objetivos específicos: 1. Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba –

Língua Portuguesa, onde apresentamos a composição geral do documento; 2. Conceitos

e Concepções nos Referenciais estabelecem uma reflexão com trechos retirados do

documento em que procuramos desenvolver um diálogo com alguns conceitos e

concepções inseridos nos estudos bakhtinianos e o círculo. Esse tópico deve ser visto

como um capítulo teórico/analítico; 3.Gêneros Textuais/Discursivos, em que

procuramos analisar como o documento expõe os conceitos desse conteúdo e ainda

investigar quais concepções são assumidas no respectivo referencial de forma que

possamos identificar com quais autores ele mantém o diálogo.

1.Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba: língua portuguesa

A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,

LDB, Lei 9.394/96, da instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino

Médio, da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,

entre outras ações desenvolvidas para difundir os princípios da reforma do Ensino

Page 730: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1508

Médio, a maioria dos estados brasileiros iniciou estudos na perspectiva da construção de

Referenciais Curriculares que pudessem contribuir para consolidar a organização

curricular desse nível de ensino.

Para garantir a autonomia pedagógica preconizada na LDB (art.15), faz-se

necessária a construção de uma referência, sobre a composição do currículo, nesse

sentido, essa referência deve dar conta das características regionais da sociedade, pelas

circunstâncias econômicas e intelectuais do público de determinada região.

Na Paraíba, o processo de construção dos referenciais teve início nos fóruns, nos

seminários e nas ações de formação continuada de professores da rede estadual de

ensino, tendo em vista que as incumbências e responsabilidades do Estado são assegurar

o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o

demandarem. Esse processo, então, constituiu numa iniciativa de ampliação das

orientações previstas em documentos anteriores para um ensino mais “compatível” com

as nossas particularidades locais, tal como é previsto no artigo 26 da LDB ao se tratar da

parte diversificada dos currículos do Ensino Fundamental e Médio e artigo 10, inciso V,

sobre a complementaridade de normas para o seu sistema de ensino.

Os Referenciais Curriculares: Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias são

divididos em cinco “conhecimentos”: conhecimento de Língua Portuguesa, de

Literatura, de Línguas Estrangeiras, de Arte e de Educação Física. Neste trabalho, nos

ateremos ao conhecimento de Língua Portuguesa que possui setenta e quatro páginas

divididas em cinco subtítulos, quais sejam:

1. A língua como uma forma de manifestação da linguagem;

2. Eixos estruturantes dos conteúdos/objetos de ensino: quais são e como se

apresentam?;

3. Propostas de organização curricular dos conteúdos/objetos de ensino;

4. Orientações metodológicas para o ensino das práticas de linguagem;

5. O ensino noturno de Língua Portuguesa;

Antes de seguirmos com as discussões acerca das concepções, faz-se necessário

o entendimento dos objetivos apresentados pelo documento (RCEMP, 2006, p. 19):

Page 731: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1509

Explicitar os objetivos para o ensino de língua portuguesa, tendo em vista

o perfil do usuário da língua(gem) que se pretende formar;

Fornecer subsídios teóricos e metodológicos aos professores de Língua

Portuguesa na definição dos eixos estruturantes dos objetos de ensino (práticas de

linguagem: escuta, leitura, produção oral e escrita, análise linguística) a serem

desenvolvidos nas propostas pedagógicas das escolas;

Resignificar o ensino noturno de língua portuguesa;

Fornecer subsídios teóricos e metodológicos para a prática de avaliação

de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa.

O documento destaca que o professor deve considerar que a proposição dos

Referenciais deve ser realizada por meio da “[...] discussão e defesa de uma concepção

de ensino e dos objetos de ensino”. Passemos, então, para as categorias teórico-

analíticas dos conceitos e concepções que dão respaldo aos conhecimentos na disciplina,

tais como língua, linguagem e ideologia; nos ateremos, principalmente, à análise da

transposição dos conceitos e concepções referentes aos Gêneros textuais/discursivos e

de que forma eles estão sendo abordados neste referencial.

2.Conceitos e concepções nos referenciais

2.1.Língua, Linguagem

O documento apresenta como primeiro objetivo para o ensino de língua

portuguesa a preocupação com a formação do perfil do usuário da língua(gem) que se

pretende formar e destaca que, a partir de reflexões produzidas sobre esses termos, deu-

se início a um debate em torno de uma possível revisão desse objeto de ensino. Ou seja,

percebeu-se que o ensino centrado numa concepção de língua como código “[...] é

insuficiente para que o educando se engaje em práticas de linguagem.” (RCEMPB,

2006, p. 20)

O estruturalismo ou linguística estrutural, tendo como principal representante

Ferdinand de Saussure, distingue a tríade: língua, fala e linguagem. Linguagem, para o

estudioso, possui dois lados essenciais, que são a língua e a fala; assim, ao estudarmos

Page 732: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1510

Saussure, deparamos com algumas dicotomias que caracterizam o pensamento do

linguista, entre elas estão: língua, entendida com um sistema, ou seja, um conjunto de

signos usados por uma determinada comunidade linguística que obedecem a

determinadas regras e princípios, constituindo-se em um todo coerente; e fala,

constituída pelo uso individual da língua pelo sujeito.

De forma a alcançar o primeiro objetivo, os Referenciais Curriculares da Paraíba

concebem a língua como uma forma de “manifestação da linguagem”, isto é, a língua é

vista a partir de princípio sócio-interacionista que a vê como um fenômeno de interação

social. Vejamos o conceito apresentado no documento em questão: “[...] a língua não

deve ser tomada como um sistema fechado e imutável, mas como processo dinâmico de

interação, em que interlocutores atuam discursivamente sobre o outro.” (RCEMPB,

2006, p. 22)

Surge, então, a figura de Mikhail Bakhtin (2003) que explora o caráter

enunciativo da língua(gem) o que implica “[...] deslocar-se de uma visão de sentido

imanente ao enunciado linguístico, como um produto acabado, para uma visão de

sentido determinado pelas suas condições de produção[...]” (RCEMPB, 2006, p.21). O

trecho citado apresenta uma concepção de língua enquanto processo de evolução que se

realiza através da interação verbal social dos locutores envolvidos, tal como Bakhtin, e

efetua-se em forma de enunciados orais ou escritos, concretos e únicos, proferidos pelos

integrantes de uma determinada esfera da atividade humana. Assim, a língua, enquanto

sistema estável, é apenas uma abstração.

2.2.Enunciado e Enunciação

No documento encontramos alguns conceitos centrais do sócio-interacionismo,

apesar de não haver nenhuma referência à fonte: “o diálogo com o outro, a interação,

condições de produção, enunciado.” Até aqui, observamos claramente que o documento

assume uma postura de que “[...] a língua não se esgota na compreensão de sua

estrutura, mas remete à exterioridade”, destacando os elementos constitutivos do fazer

interativo/comunicativo: o enunciado e a enunciação (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,

2012, p.23).

Page 733: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1511

Faz-se necessária a descrição não apenas dos enunciados, efetivamente

produzidos pelos usuários, mas também do processo de enunciação

(condições de produção relativas a tempo, lugar, papéis representados pelos

interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na

interlocução) como constitutivos do(s) sentido(s) desse enunciado e

determinante das escolhas linguísticas realizadas.

Nesse sentido, a enunciação é o processo e o enunciado é o produto, elementos

que estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente

determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. A

construção do enunciado, apesar da vontade discursiva do falante, não pode ser

considerada como uso e combinação absolutamente livres das formas da língua.

Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada

esfera da atividade humana não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da

linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais fraseológicos e gramaticais da

língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional.

2.3.Heterogeneidade

Nesse contexto, trazemos à tona o sócio-interacionismo, concebendo a

linguagem a partir de uma concepção interacional e regida pelo princípio dialógico.

Para Bakhtin2, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de

participar, com ele, de um processo de interação. Nesse sentido, os Referenciais trazem

à tona outro conceito: a heterogeneidade. Observemos a definição abaixo:

[...] uma propriedade constitutiva da linguagem consiste no fato de um texto

se constituir a partir de outros textos. Por essa razão, todos os textos são

atravessados pelo discurso do outro, pois sob as palavras de um discurso há

outras palavras, outro discurso, outro ponto de vista social: um discurso é

sempre a materialização de um modo social de considerar uma questão.

(RCEMPB, 2006, p.29-30)

Para Bakhtin, a linguagem é heterogênea e assim o discurso é construído

a partir do discurso do outro, dessa forma, todo enunciado é uma resposta ao “já dito”.

Não existe, nesse sentido, um discurso primeiro e único, apenas o Adão mítico, como

cita o autor, que chegou “com a primeira palavra num mundo virgem” poderia produzi-

2 O Discurso no Romance (Texto encontrado na internet em extensão doc.)

Page 734: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1512

lo, ou seja, para o discurso humano, real, histórico, evitar o dialogismo em sua

concretude é impossível.

Ao usarmos a noção proposta por Bakhtin (2012), segundo o qual o enunciado

constitui uma unidade comunicativa da língua e se difere das unidades linguísticas por

levar em consideração aspectos como: o sujeito, a história e a situação comunicativa do

discurso. Observamos que o discurso é orientado para a resposta e, assim, ele não pode

“esquivar-se” à influência profunda do discurso da resposta antecipada, como destaca o

autor.

Mikhail Bakhtin, ao afirmar que o sujeito é formado por diferentes vozes e que

ele só se constitui através da interação com o outro, institui a noção de polifonia. O

dialogismo, no entanto, não pode ser confundido com a polifonia, pois o primeiro é o

princípio constitutivo da linguagem, como trata Bakhtin, e o segundo se caracteriza por

vozes polêmicas em um dado discurso. Dessa forma, para o autor, heterogeneidade é

entendida a partir do conceito de dialogismo, o que é diferente de seu conceito de

polifonia, como já vimos.

No trecho acima “[...] pois sob as palavras de um discurso há outras palavras,

outro discurso, outro ponto de vista social.”(grifo nosso), podemos apreender a noção

de gêneros dialógicos polifônicos e não monofônicos em que há o predomínio de uma

voz dominante e, não polêmica, concepção de “polifônicos”. Nesse sentido, o trecho dá

margem para pensarmos que o documento, nesse momento, refere-se aos conceitos

estabelecidos por Bakhtin. O gênero romance, no texto: O Discurso em Dostoiévski

apresenta diferentes vozes sociais que se defrontam, manifestando diferentes “pontos de

vista sociais” sobre um dado objeto; portanto, é gênero polifônico por natureza. Assim,

temos uma concepção bakhtiniana de polifonia. Esta análise se justifica com o seguinte

trecho do Referencial (2006, p. 29): “Esse fenômeno é também conhecido como

polifonia, “coro de vozes”, usado para referir à representação, encenação, em dado

texto, de perspectivas ou pontos de vista de enunciadores diferentes.”

Por outro lado, Jaqueline Authier-Revuz, em consonância com o pensamento

bakhtiniano, redefine a noção de polifonia e a descreve como heterogeneidade, ou seja,

o sujeito não é homogêneo, pois este é atravessado por diferentes discursos que o

configuram.

Page 735: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1513

A heterogeneidade pode ser de dois tipos: a heterogeneidade mostrada e

constitutiva. A primeira é aquela em que há a denúncia do outro, ou seja, sua presença

no discurso e a segunda o outro está inscrito no discurso, mas sua presença não é

explícita ou demarcada. Como podemos observar, no documento, o trecho a seguir

apresenta as características das marcas linguísticas que representam o conceito de

heterogeneidade mostrada: “Os mecanismos linguísticos mais conhecidos para mostrar,

demarcando diferentes vozes no interior de um texto, são: o discurso direto [...] o

discurso indireto [...] e o discurso indireto livre.” (RCEMPB, 2006, p. 29)

Para Bakhtin o que importava era a heterogeneidade constitutiva, pois ela se

estabelecerá entre discursos. Somado a isso, os grifos abaixo representam o ponto

comum entre as concepções bakhtinianas à medida que destaca: 1. a relação entre os

discurso e 2. O discurso polifônico: “[...] o falante/escritor leva sempre em conta a de

outro, que, de certa forma, está também presente no discurso constituído. Esses pontos

de vista são sociais, são as posições divergentes que se estabelecem numa dada

sociedade [...]” (RCEMPB, 2006, p.29-30) (grifo nosso)

Nos Referenciais Curriculares da Paraíba, podemos pensar que há certa

“confusão” na transposição desses conceitos, porque não fica claro para o leitor em

quais autores o documento se baseia no trato com esse tema, como podemos observar.

2.4.Ideologia

É válido também notar nos Referenciais Curriculares da Paraíba como se

apresenta a noção de ideologia, vista como “[...] um conjunto de valores e crenças

sócio-culturais, construídas nas práticas de linguagem.” (grifo nosso). Sabemos, no

entanto, que para determinarmos se um enunciado é ou não ideológico, é necessário que

ele se encontre inserido em seu contexto de produção, dessa forma, a identidade volta-se

bem mais para o enunciador e o seu destinatário do que as suas propriedades

linguísticas.

Para Bakhtin (2012, p. 31), “Tudo que é ideológico possui um significado e

remete a algo situado fora de si mesmo.” O ensaio de Volochínov “Che cosa é Il

linguaggio?” (1930) é considerado por Augusto Ponzio (2008, p. 114) como o único

texto no qual encontramos de forma mais direta e explicitamente uma definição de

Page 736: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1514

ideologia descrita por Bakhtin, para ele: “[...] todo conjunto dos reflexos e das

interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se

expressa por meio das palavras [...] ou outras formas sígnicas.”

O documento apresenta um conceito em consonância com as ideias apresentadas

em Bakhtin. Para o autor, no signo ideológico, encontra-se presente uma “acentuação

valorativa”, que faz com que esse signo não seja reduzido apenas a uma ideia, mas a

expressão de uma determinada posição, ou seja, uma práxis concreta.

Em qualquer forma de comunicação, produzimos bem mais que frase e orações

isoladas, ou seja, interagimos com o outro num processo contínuo de trocas nem sempre

similares e pouco conflituosas; nossos enunciados, nesse contexto, refletem a nossa

ideologia em uma determinada situação comunicativa e momento histórico.

3.Gêneros textuais/discursivos

O conceito de gênero está presente nos Referencias Curriculares da Paraíba,

supondo um conhecimento partilhado pelos leitores, apesar da diversidade

terminológica que podemos encontrar no respectivo material com diferentes abordagens

de texto e do discurso.

A partir dos anos 1960, surgiram várias correntes linguísticas e, entre elas, a

linguística textual, numa tentativa de superar uma concepção simplista da língua como

um conjunto de frase isoladas. Assim, a Linguística textual passou a se dedicar

primeiramente às relações coesivas e para, em seguida, os estudos da coerência no texto.

Em suma, o texto passou a ser visto como um processo complexo de construção e não

como produto.

Todavia, com a divulgação da teoria dos gêneros de Bakhtin, observou-se que os

estudos se voltaram para os gêneros, que são vistos como tipos de enunciados,

relativamente estáveis e normativos que estão vinculados a situações típicas da

comunicação social e somente nessa situação de interação comunicativa que se podem

apreender a constituição e o funcionamento dos gêneros. Como tipos temáticos,

estilísticos e composicionais dos enunciados individuais, Bakhtin descreve que os

gêneros se constituem historicamente a partir de novas situações de interação verbal

Page 737: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1515

(relação dialógica), que vão se estabilizando no interior das esferas sociais a partir de

suas particularidades.

É importante sabermos, no entanto, que a noção de gênero como tipo de

enunciado não é a das sequências textuais, descritas por J. M. Adam, mas uma

“tipificação” social dos enunciados que apresentam certos traços ou regularidades

comuns, que se constituíram historicamente nas atividades humanas em uma situação de

interação relativamente estável e que é reconhecida pelos falantes.

Bakhtin (2003) mostra que gênero é uma coisa e enunciado é outra, ninguém se

comunica a não ser por meio de gêneros do discurso. O estudioso nega que os gêneros

sejam apenas uma forma, e que, portanto, possam ser distinguidos pelas suas

propriedades formais. Em resumo, o que constitui o gênero é a sua ligação com uma

situação social de interação e não as suas propriedades formais, pois não é a forma em si

que “cria” e define o gênero, embora os gêneros mais estabilizados possam ser

reconhecidos pela sua dimensão histórico-social. Como modos sociais de ação e de

dizer, os gêneros “regulam”, organizam e significam a interação.

Como as possibilidades da atividade humana são “inesgotáveis” e como cada

esfera da atividade social tem um “repertório” de gêneros particulares que se diferencia

e cresce à medida que a própria esfera se desenvolve e se “complexifica”, há a

existência de uma grande variedade de gêneros na sociedade.

Nos RCEMPB, encontramos a relação da heterogeneidade dos gêneros em

consonância com os diferentes domínios discursivos ou esfera social. O processo de

intercalação é um dos lugares onde observar a plasticidade dos gêneros. Todas essas

características apontam para sua relativa estabilidade, sua dinamicidade e sua relação

inextricável com a situação social da interação.

Podemos dizer que há uma intenção de se trazer para o Ensino Médio das

escolas paraibanas a concepção de linguagem amparada na abordagem sócio-

interacionista mesmo sem qualquer citação direta a Bakhtin. Contudo, ora os autores do

documento destacam os gêneros numa concepção textual, ora numa concepção

discursiva. Parece que não se compreendeu que a escolha de um dois conceitos tem

repercussões teóricas e metodológicas profundas no ensino da língua.

Os gêneros textuais, por sua vez, sob diferentes modos de realização oral

(conversa, entrevista, debate, exposição etc) ou escrita (bilhete, notícia,

Page 738: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1516

entrevista, editorial etc), atendem a diferentes domínios discursivos (esferas

sociais), científica, escolar, jurídica, virtual, publicitária, religiosa, entre

outras. São veiculados em diversos suportes materiais impressos (jornais,

revistas, livros, cartazes), eletrônicos (rádio, TV) e virtuais/digitais

(sites,blogs) que determinam o modo de elaboração e compreensão das

práticas de linguagem. (RCEMPB, 2006, p. 23)

No trecho acima, podemos apreender inicialmente uma mistura de conceitos nos

Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba. Sabemos que toda produção

de linguagem se dá na forma de texto, seja na forma verbal ou não-verbal. No entanto,

mesmo que a princípio o documento apresente uma concepção bakhtiniana de língua,

quando se atém aos gêneros apresenta uma perspectiva textual como a de Luiz Antônio

Marcuschi que estabelece uma definição para gênero com base em critérios não

linguísticos, tal como propõe a linha de teorização proposta por Bakhtin.

A língua realiza-se por meio de textos, definidos como um todo significativo,

independentemente de sua extensão, e concretizadas por meio de formas

sócio-historicamente estabilizadas, denominadas gêneros textuais.

Em sua proposta de organização curricular dos conteúdos/objetos de ensino, no

trabalho pedagógico a ser desenvolvido, destacamos o trabalho com os “gêneros

textuais”, numa organização em espiral dos gêneros, mas não verificamos a exposição

de um trabalho efetivo com seus elementos constitutivos, tais como estilo, conteúdo

composicional.

Nesse sentido, fornecer subsídios teóricos e metodológicos aos professores de

Língua Portuguesa na definição dos eixos estruturantes dos objetos de ensino é

primordial para a complementaridade nesse nível de ensino nas escolas paraibanas;

contudo, verificamos que isso é um processo lento e gradativo e, para isso, os autores

responsáveis pelo referencial deveriam se debruçar sobre o documento de tal forma que

possa corrigir e/ou verificar as nomenclaturas apresentadas e concepções apresentadas.

Fazê-las, portanto, significantes para uma grande massa de professores que já

possuem um bom conhecimento das teorias e estudos sobre os gêneros e também para

aqueles que não estudaram esse conteúdo de ensino nos currículos em formação inicial,

tendo em vista que possuem anos de sala de aula e seu ensino estava amparado em

currículos antigos, sob perspectivas outras.

Conclusão

Page 739: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1517

A maioria dos conceitos e concepções em destaque, nesse artigo, é desenvolvida

sob uma perspectiva bakhtiniana, além de sugerir um trabalho com a linguagem

concebida numa perspectiva dialógica, social, histórica, mas em sua maioria falta ao

documento unidade teórica. Nesse sentido, trazem à área as contribuições dos estudos

de Mikhail Bakhtin, contudo pouco ou nada faz de referência ao estudioso, como se a

maioria dos professores do Ensino Médio tivesse um conhecimento partilhado da teoria,

o que é pouco provável, tendo em vista que a divulgação dos postulados bakhtinianos

começou há menos de duas décadas.

Além disso, os Referenciais misturam algumas concepções teóricas, não sendo,

portanto, de fácil compreensão para um leitor desatento, principalmente, nos conceitos

de heterogeneidade e polifonia que em sua grande maioria ora podemos apreender a

concepção bakhtiniana numa perspectiva da Análise Dialógica do Discurso.

Vemos ainda uma proposta bakhtiniana no trabalho com a linguagem, todavia,

constatamos que, para o documento, todo gênero é dialógico porque o dialogismo é

constitutivo da linguagem. Mas, como acontece com a “heterogeneidade”, os produtores

do Referencial trazem um teoria textual no trato com o gênero e não na concepção

bakhtiniana: gêneros discursivos. Pensemos que pode até mesmo ter ocorrido uma

confusão na nomenclatura, contudo, o objetivo do Referencial Curricular para o Ensino

Médio da Paraíba é estabelecer um “norte” para os professores poderem realizar um

ensino mais eficaz nas escolas paraibanas. Dessa forma, seria necessária uma revisão

para torná-lo mais legível e de fácil compreensão para que esses docentes possam

cumprir o papel que lhe cabe: ensinar.

Para concluir, diríamos que a maior parte do documento de Língua Portuguesa é

voltada para discussão do funcionamento da linguagem na vida e para algumas questões

relativas ao ensino de língua portuguesa, trazendo uma série de conceitos, mas a

concepção que prevalece intrinsecamente ao Referencial é a perspectiva bakhtiniana.

Referências

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal; introdução e tradução do russo

Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. – 4, ed. – São Paulo:

Martins Fontes, 2003. – Coleção Biblioteca Nacional.

Page 740: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1518

BAKHTIN, Mikhail M. 1895-1975. (VOLOCHÍNOV,V.N) Marxismo e Filosofia da

linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. – 13, ed. –

São Paulo: Hucitec, 2012.

PARAÍBA, Secretaria de Estado da Educação e Cultura.Coordenadoria do Ensino

Médio. Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba:Linguagens,

Códigos e Suas Tecnologia/Girleide Medeiros de Almeida Monteiro (Coordenação

Geral). João Pessoa: [s.n.], 2006.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia

contemporânea. – São Paulo: Contexto, 2008.

Page 741: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1519

A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO

[Voltar para Sumário]

Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL – Campus Maceió)

Nádia Mara da Silveira (IFAL – Campus Maceió

I. Introdução

Levando em consideração que a matemática está presente no cotidiano do sujeito

e que desempenha uma função significante no desenvolvimento da sociedade, no qual

o homem, desde os primórdios, encontra maneiras para solucionar problemas através do

conhecimento herdado culturalmente, isso significa dizer que, enquanto sujeitos

criativos do conhecimento, os homens têm um saber matemático inato, ou seja, “o

homem tem uma predisposição genética para aprender matemática, a mesma

aptidão para aprender a linguagem e que se faz necessário utilizar a linguagem para

obter um melhor desempenho na matemática.” (DEVLIN, 2005, p.16).

Desse modo, a proposta deste artigo consiste em analisar a linguagem do

problema matemático, sob o ponto de vista da sociolinguística, observando a questão da

diversidade linguística, entendendo que o Brasil é um país de proporção

continental ocasionando, no entanto, uma grande variedade linguística, onde cada região

do país apresenta uma particularidade marcante que tem reflexos em sua própria

linguagem e seu meio de se comunicar e que, evidentemente, esses efeitos são sentidos

no âmbito escolar e no processo de aprendizagem em geral.

Nesse estudo, buscaremos verificar a forma como é abordada a linguagem do

problema matemático, através de uma pesquisa bibliográfica, para que, na sequência,

possamos compreender a clareza dessa linguagem e se a mesma estabelece um diálogo

aberto e adequado ao repertório idiomático do aluno e os interesses escolares do

mesmo. Assim, escolhemos como perguntas de partida desse trabalho as seguintes

indagações: por que há tanta dificuldade para ler e compreender o problema

Page 742: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1520

matemático? Até que ponto a valorização do contexto social e da linguagem cotidiana

do aluno pode o ajudar na interpretação do problema matemático?

De maneira geral, este artigo reflete sobre estas questões, centrando-se,

particularmente, sobre as relações entre os problemas matemáticos, a linguagem e o

contexto cultural do aluno, problematizando a epistemologia interna da matemática no

sentido de aferir até que ponto as suas categorias e conceitos podem ser colocados em

debate e ser trabalhados para relacionar com a realidade do aluno em seu contexto social

distinto, dentro de uma perspectiva metodológica que sugere novos modelos de

interpretação ou didática no ensino e aprendizagem da matemática, voltadas a

valorização da diversificação cultural, do conteúdo matemático e à transformação do

fracasso do aluno na disciplina em bom exemplo de aprendizagem escolar, uma vez que

“é preciso que a escola entenda seu papel social e sua função numa sociedade de grupos

muito diversificados” (POPPOVIC apud CARRAHER, 1982, p. 80).

Portanto, nesse sentido, propomos que a escola se adeque a situação social e

cultural do aluno e se esforce no sentido de capacitar os professores na democratização

do conteúdo escolar, através de métodos como jogos, essenciais para estimulação de um

melhor aprendizado em sala de aula.

II. Metodologia

Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que conforme

Triviños (1987, p. 109) possibilita “ao investigador aumentar sua experiência em torno

de determinado problema”, investigar a linguagem dos problemas matemáticos,

considerando a questão da diversidade linguística e partindo do princípio de que cada

região do país apresenta uma particularidade marcante que tem reflexos em sua própria

linguagem e seu meio de se comunicar, e, que, evidentemente, esses efeitos são sentidos

no âmbito escolar e no processo de aprendizagem, interferindo, possivelmente, no

entendimento dos problemas matemáticos pelos alunos, uma vez que eles se apoiam em

uma linguagem científica que pode diferir da linguagem aprendida em seus contextos de

vida.

Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário

um levantamento bibliográfico, que consiste, de acordo com Santos (2002, p.31), no

Page 743: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1521

“conjunto de materiais escritos/gravados, mecânica ou eletronicamente, que contém

informações já elaboradas e publicadas por outros autores”. Visando obter, em torno da

temática da linguagem dos problemas matemáticos, evidências que possam esclarecer e

entender como podemos tornar essa linguagem mais acessível para os alunos,

possibilitando que a aprendizagem da matemática aconteça de forma mais eficiente e,

talvez, mais prazerosa.

III. Discussão Teórica

Linguagem e matemática são duas habilidades mentais intrínsecas dos seres

humanos através das quais os sujeitos são capazes de transformar em diversas

dimensões da realidade o espaço cultural no qual vivem. A cada instante estas duas

habilidades estão sempre em processo de evolução, devido à acelerada mudança da

sociedade, em particular, a sociedade contemporânea (DAVLIN, 2005).

Na perspectiva da sociolinguística, apoiados em Labov (1974), pode-se afirmar

que a língua é heterogênea e que ela pode variar não só de acordo com a região a que

um sujeito pertence, mas também, conforme a sua classe social, o sexo, a idade e outros

fatores; inclusive, depende do contexto em que o sujeito está inserido, ou seja, a

situação de comunicação em que se encontra.

Além disso, conforme Faraco (1991, p. 115), a Sociolingüística é “o estudo de

correlações sistemáticas entre formas linguísticas variantes (isto é, entre diferentes

formas de dizer a mesma coisa) e determinados fatores sociais tais como a classe de

renda, o nível de escolaridade, o sexo e a etnia dos falantes.”.

Desse modo, pode-se afirma que a linguagem é um fenômeno que evolui de

acordo com a necessidade dos sujeitos falantes de uma comunidade e com isso vai se

modificando, sofrendo influência dessa comunidade social. Para Geraldi (2002, p. 40)

“a cada instante, linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma

evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado”. No

entanto, vale ressaltar que a linguagem matemática está em igualdade com a linguagem

materna, assim Silva; Silva (2012, p. 265) afirma que:

Como forma expressiva de linguagem, a Matemática possibilita ao sujeito

formar os primeiros esquemas operatórios, repertório este que,

Page 744: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1522

gradativamente, se alia à linguagem materna para fornecer instrumentos

efetivos à leitura e a compreensão do seu mundo particular e do seu entorno.

Nessa perspectiva, a linguagem tem um papel fundamental na vida do sujeito,

pois se trata de uma ferramenta de interação social, uma vez que permite ao indivíduo

inter-relação pessoal e processos para construção do aluno na busca e domínio do

conhecimento em todos os campos do saber, em particular da matemática. Por

conseguinte, observa-se que a linguagem matemática, nesse decurso, também é

influenciada pelo contexto sociocultural, que também sofre constante processo de

mudanças, sob influência de fatores externos como a globalização e de forças internas

como alteração de configuração familiar e outras mudanças que ocorrem em nossos

grupos primários e secundários de socialização, o que implica adequar o ensino da

matemática de modo a torná-lo mais acessível, possibilitando ao texto matemático se

acondicionar as mais variadas realidades culturais.

Segundo Bicudo e Borba (2009, p. 215) “discussões no campo da educação

matemática no Brasil e no mundo mostram a necessidade de se adequar o trabalho

escolar às novas tendências que podem levar a melhores formas de ensinar e aprender

Matemática”. Nessa circunstância, a linguagem científica ou padrão da matemática

precisa se moldar a língua corriqueira do aluno dentro do contexto cultural ao qual o

aluno está inserido. Acredita-se que a matemática só ganha sentido e significado se os

seus problemas forem elaborados num contexto de diálogo intersubjetivo. Entretanto,

para que o aluno possa evoluir na resolução de problemas da matemática, esse processo

deve ser efetivado na forma de diálogo entre sujeitos e esta interação entre os sujeitos

ou diálogo deve ser na base tanto de textos escritos como no saber prático do dia a dia

do aluno.

No entanto, compete à escola reconhecer a fragilidade do aluno e suas

limitações enquanto estudante de matemática, ampliando sua visão tanto para o discurso

científico proposto pela escola quanto para o discurso empírico existente nas classes

menos favorecidas, fazendo-se necessário que a escola encontre outras possibilidades

metodológicas para ensinar a matemática.

Para Smole e Diniz (2001, p. 89), tais possibilidades didático-metodológico

podem ser encontradas se alterarmos formas de comunicar os termos matemáticos e se

nos esforçarmos na perspectiva de construção de planos de aulas baseados em saberes

Page 745: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1523

oriundos da experiência do aluno, privilegiando ou desenvolvendo atividades

relacionadas com o cotidiano do mesmo, o que cria igualmente oportunidade em

despertar no estudante o gosto pela matemática, a fim de que o aluno possa apreciar esta

disciplina e, consequentemente, ter um desempenho escolar melhor, rompendo certos

temores que ele possa ter em relação aos números. Afinal

Ao se deparar com um problema no qual não identifica o modelo a ser

seguido, só lhe resta desistir ou esperar a resposta de um colega ou do

professor. Muitas vezes, ele resolverá o problema mecanicamente, sem ter

entendido o que fez e sem confiar na resposta obtida, sendo incapaz de

verificar se a reposta é ou não adequada aos dados apresentados ou à

pergunta feita no enunciado (SMOLE; DINIZ, 2001, p. 101).

Desse modo, um problema quando é apresentado ao aluno embasado no

conhecimento que ele traz consigo, na sua linguagem do dia a dia, despertará nele o

interesse de buscar soluções para o problema com o qual se depara e, de forma criativa,

resolver mais que uma questão aritmética estabelecida, pois estará absorvendo os

conceitos de determinados assuntos matemáticos propostos. Uma vez que, quando o

aluno chega ao ambiente escolar ele tem um universo de conhecimento que corresponde

ao seu meio social e cultural, e nesse mundo de saberes o sujeito consegue, por meio de

suas próprias experiências, medir, quantificar, comparar e avaliar.

Segundo D’Ambrosio (2011), quando a linguagem dos problemas matemáticos

se afasta de sua realidade, tudo parece mais complicado e fica mais difícil para o aluno

aprender, pois ele pode passar a rejeitar a disciplina de matemática ocasionando o

fracasso escolar. O autor defende, ainda, que um verdadeiro projeto de educação escolar

é aquele que põe na frente a própria cultura e, afirma ser:

Um crime contra a educação impor as pessoas um conteúdo disciplinar

desprovido de filosofia, da sabedoria prática ou de aspirações espirituais do

cotidiano; seria ainda uma maior ofensa desprover um aluno do seu

patrimônio de reflexão, em que somente na posse do qual poderia haver um

ponto inicial para uma aprendizagem mais elevada (D’AMBROSIO, 2011, p.

197).

Alargando um pouco mais sua análise, D’Ambrosio (2011) assevera que a

Matemática se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido importantes

contribuições das civilizações do Oriente e da África. Assim, falar da matemática em

contextos culturais diversos implica analisar, por exemplo, conceitos usados para a

Page 746: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1524

quantificação e classificação, números e formas, relações e inferências. Nelas, há

sempre um fim que pode ser considerado manipulável. E esse momento manipulável

pode ser evidenciado, por exemplo, na passagem necessária do concreto para o abstrato.

Para ensinar o número dois em contextos culturais diferentes, por exemplo, e tendo em

conta que o dois é um símbolo abstrato, não é a mesma coisa se objetivamos o

número dois em duas maças ou duas batatas-doces. Este momento de exemplificação é

culturalmente manipulável.

No entanto, se levarmos em conta a possibilidade de manipulação política de

matemática pode-se sustentar a idéia de ensino de matemática mais contextualizado,

centrado na realidade do aluno, trazendo assim noções do seu dia a dia para que o aluno

tenha uma maior compreensão. (Carraher, 1982)

Um bom exemplo sobre essa problemática foi tecida por Carraher, quando

analisou crianças e adolescentes inseridas no mercado de trabalho, pois precisavam

ajudar no rendimento familiar, e dessa maneira foram ingressas desde cedo na área da

matemática – quanto a isso pode-se ver crianças vendendo mercadorias nos ônibus, nas

feiras e em diferentes lugares. Apesar de esse saber matemático ser intrínseco a essas

crianças ou esses adolescentes, eles não apresentaram, contudo, um bom rendimento

escolar. Levando-nos a uma necessária reflexão a respeito da linguagem abordada em

sala de aula e o modo a qual é mediada.

O estudo desenvolvido por Carraher (1982) renova a ideia da importância do

estudo sobre a linguagem científica da matemática e o modo como ela é transmitida pela

escola, na prática de sala de aula, pois, é ainda, uma questão pouco discutida de modo

profundo, no âmbito da sociolinguística, considerando a escassez de acervo teórico que

reflita sobre essa implicação na aprendizagem de matemática.

Alguns dos estudos encontrados sobre a temática concentram-se em ideias que

tendem a enfatizar que a dificuldade dos alunos com problemas matemáticos decorrem

de: problemas estruturais das nossas escolas, dos conteúdos matemáticos em si, do

despreparo dos nossos professores e, até mesmo, da falta de interesse dos próprios

alunos em estudar a disciplina.

No entanto, poucos refletem a possibilidade de que a causa da dificuldade de

aprendizagem da matemática pode estar associada, também, a questão da linguagem

matemática, entendida como parte fundamental para a compreensão dos problemas

Page 747: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1525

matemáticos. Afinal, como defende D’Amore (2007, p. 249), “O ensino é a

comunicação e um de seus objetivos é o de favorecer a aprendizagem dos alunos, em

primeiro lugar, então, quem comunica deve fazê-lo de maneira tal que a linguagem

utilizada não seja ela própria uma fonte de obstáculos à compreensão”.

Contudo, o que se observa em relação à sala de aula é que é um privilégio

aferido à escola quanto à utilização de uma linguagem científica, marcada por um

modelo tradicional característico da classe dominante, dificultando a aprendizagem do

aluno, à medida que os termos, muitas vezes empregados, se afastam da língua do dia a

dia, ficando fora de contexto.

D’Amore (2007), por exemplo, defende que o ponto de partida para os estudos

matemáticos deve ser colocado no questionamento sobre o conceito de matemática e o

respectivo objeto de estudo, ou seja, para ele é tão importante estudar a história da

matemática, como também a filosofia da própria matemática. Pois, segundo o autor,

houve “distorções” causadas por dois processos subsequentes: as

“descobertas” européias e a consequente colonização dos povos não-europeus. Ambos

os processos tiveram como resultado a marginalização de todo tipo de conhecimento

produzido por pessoas consideradas periféricas, persistindo, esse fato, até os dias atuais.

O autor chama atenção, ainda, para os cuidados que o professor deve ter com a

utilização de “linguagem específica”, por compreender que ela gera um afastamento

entre o aluno e o conteúdo a ser explorado em sala de aula. Nesse sentido, o professor, a

fim de gerar uma aproximação de conhecimento, interagir com os alunos e garantir a

aprendizagem, deveria adaptar a sua linguagem e a dos problemas matemáticos, de

forma a tornar tais conhecimentos acessíveis. Não queremos dizer com isso que a

linguagem científica deva ser menosprezada, pelo contrário, ela precisa ser adquirida

pelos alunos, mas de forma mais escalonada, ou seja, partindo da sua realidade até

apresentar-lhe uma nova.

Assim, D’Amore (2007, p. 249), compartilha da idéia de que é preciso adequar

a linguagem a ser utilizada em sala de aula para que o aluno tenha uma compreensão

melhor da disciplina de matemática, já que a comunicação “deveria acontecer na língua

comum”.

Outro autor que discorre sobre esta questão é Gardner (1995, p. 24), quando

alarga o conceito da matemática e enfatiza que é preciso a estimulação dessa

Page 748: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1526

inteligência lógico-matemática através dos jogos, pois o jogo também é uma forma de

linguagem facilitadora para aquisição do conhecimento da matemática, além de ter um

papel fundamental no processo de ensino-aprendizagem, como um mediador entre o

conhecimento a ser adquirido e a didática do professor.

Assim, tomando em consideração a complexidade do tema e a diversidade de

questões envolvidas, temos a plena consciência da existência de múltiplos limites postos

à nossa análise. Dessa forma, esperamos que as conclusões deste trabalho e as

informações nele apresentadas, possam oferecer pistas para futuras investigações.

IV. Considerações Finais

Após refletirmos sobre esta questão específica – a linguagem do problema

matemático – apoiando-se em vários autores, chegamos a uma compreensão parcial

sobre o panorama geral da pluralidade cultural que caracteriza a extensão continental do

nosso país, tendo como seu principal reflexo a diversidade sociolinguística do mesmo.

Este artigo discutiu sobre a linguagem do problema matemático, levando em

consideração as experiências sociais e culturais dos alunos apoiando-se numa

pluralidade de referências teóricas, assim como na nossa própria experiência enquanto

usuários da língua materna, aprendida oralmente desde a tenra idade, e da experiência

de contato com a versão científica da mesma, habitualmente aprendida na escola.

Consideramos que este encontro de dois níveis da linguagem tem provocado

dificuldades, em grande parte de natureza linguística, na resolução de problemas

matemáticos por parte dos alunos, dificuldades que, em nossa opinião, está localizada

na falta de mediação linguística que envolveria não apenas o professor de Matemática,

que vai continuar a orientar a prática do ensino dos problemas matemáticos, mas

também, com a colaboração do professor de Língua Portuguesa, de modo a viabilizar

leituras de textos matemáticos na perspectiva de facilitar a compreensão do seu

conteúdo e dos problemas sobre qual ele versa.

Enfim, a escola atualmente deve buscar um novo conceito educacional pautada

em fundamentos dialógicos, flexíveis, plurais e dinâmicos, dentro de uma perspectiva

que visa modelos que estimulem o aprendizado do aluno diante do problema

matemático e de aprendizagem de outros conteúdos disciplinares como um todo,

Page 749: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1527

levando em conta que a linguagem matemática, especificamente, e a linguagem

materna, em particular, estão presentes em qualquer área do conhecimento humano.

Estas duas dimensões linguísticas constituem meios, condições, possibilidades de

resolução de problemas, com seus instrumentos próprios de expressão e comunicação.

IV. Referências

BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. BORBA, Marcelo de Carvalho. Educação

matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Cortez, 2009.

CARRAHER, Terezinha et al. Na vida, dez; na escola, zero: Os Contextos Culturais da

Aprendizagem da Matemática. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, v.42, p. 79 – 86, 1982.

Disponível em http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/588.pdf.

D’AMBROSIO, Ubiratan. Globalização, Educação Multicultural e o Programa

Etnomatemática. Um olhar sobre a diversidade cultural e a aprendizagem matemática.

Edições Hímus. Famalicão, 2008.

D’AMORE, Bruno. Elementos de didática da matemática. [tradução Maria Cristina

Bononi] São Paulo: Editora Livraria da Física, 2007.

DEVLIN, Keith. O Gene da Matemática. Rio de Janeiro: Record, 2005.

FARACO, Carlos Alberto. Linguiística histórica. São Paulo: Ática, 1991.

GARDNER, Howard. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes

Médicas, 1995.

GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo, SP. Ática, 2002.

LABOV, William. Estágios na aquisição do inglês standard. In: FONSECA, Maria

Stella V., NEVES, Moema F. (Orgs). Sociolingüística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.

POPPOVIC, A.M. Enfrentando o fracasso escolar.ANDE. Revista da Associação

Nacional de educação, 1981, 1(2), 17-21.

SANTOS, Antonio Raimundo. Metodologia Científica: a construção do conhecimento.

Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SILVA, Dariluce Gomes da; SILVA, Adelmo Carvalho da. Linguagem, Literatura

Infantil e Ensino de Matemática. In: Ensinar Matemática: formação, investigação e

práticas docentes. Orgs. SILVA, Adelmo Carvalho da; CARVALHO, Mercedes;

RÊGO, Rogéria Gaudêncio do. Cuiabá: EdUFMT, 2012, p. 263-276.

Page 750: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1528

SMOLE, Kátia Stocco; Diniz, Maria Ignez. Ler, escrever e resolver problemas:

habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução Á Pesquisa em Ciências Sociais: a

pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

Page 751: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1529

FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA

MIDIÁTICA EM REDE [Voltar para Sumário]

Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)

Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Introdução

Por muito tempo o ensino de Língua Portuguesa limitou-se ao ensino do texto como

pretexto para o aprendizado de regras de gramática, contudo, avanços nos estudos linguísticos

lançaram teorias sobre a aprendizagem da linguagem mediante o ensino de gêneros textuais,

os quais adquiriram amplo espaço nas salas de aula após as proposições dos Parâmetros

Curriculares Nacionais, elaborado com o intuito de renovar metodologicamente o ensino de

português.

Contudo, o ensino de gêneros é, por vezes, abordado em sala de aula e em livros

didáticos como pretexto para leitura e ensino de gramática, ou até mesmo são simulados

didaticamente, ou seja, são explorados os seus aspectos internos sem que haja referência

alguma aos fatores externos do gênero. À vista do exposto, a referida pesquisa, que é parte de

um projeto de mestrado, apresenta uma maneira de dinamizar as aulas de português a partir do

ensino de gêneros textuais, de modo a considerar os aspectos internos e externos do gênero,

seu contexto de uso e sua função na sociedade atual.

No âmbito teórico o problema da pesquisa encontra respaldo nos Estudos Retóricos de

Gêneros (ERG), tradição de ensino marcada por uma abordagem dos gêneros contextualizada.

Embora não tenham surgido de um imperativo pedagógico, os ERG sugerem que os gêneros,

para serem compreendidos como artefatos retóricos e sociais em uma perspectiva pedagógica,

não podem ser explicados nem adquiridos apenas por meios textuais ou linguísticos, nem

podem ser abstraídos de seu contexto de uso para fins pedagógicos.

Partindo do princípio de que os gêneros não existem isoladamente e que são marcados

por sua interação com outros gêneros e com interlocutores em determinadas situações,

acreditamos, com base nos ERG, que para que o estudante compreenda gêneros como

artefatos sociais ele precisa conhecer as relações que os gêneros estabelecem dentro do

Page 752: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1530

contexto em que estão inseridos. Esta é a condição necessária para que o gênero seja

reconhecido e compreendido como artefato social complexo e dinâmico, o que consiste em

um desafio, inclusive para os professores de português.

Nessa perspectiva sociorretórica de gênero, a presente pesquisa representa uma

tentativa de responder a seguinte questão: como ensinar gêneros conservando a sua

complexidade e o seu status como algo mais do que simples traços retóricos tipificados?

Portanto, é esse o nosso alvo de intervenção. Assim sendo, nosso principal objetivo consistiu

em explorar as potencialidades didáticas do Facebook para o ensino e análise do gênero

anúncio publicitário, de modo a considerar os aspectos retóricos, textuais, linguísticos e

sociais do referido gênero dentro de seu contexto real de uso, como uma possibilidade para o

ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II.

Procedimentos e opções metodológicas

Nesta seção nos propomos a narrar o itinerário metodológico que guiou nossa

pesquisa. Em termos de caracterização, a referida pesquisa insere-se na perspectiva

qualitativa, uma vez que os dados foram obtidos mediante o contato direto e interativo da

pesquisadora com o objeto de estudo, bem como foram descritos e interpretados

detalhadamente nos resultados.

Dentre as variadas formas de pesquisas qualitativas, o referido estudo atribui ênfase a

pesquisa-ação, por suas possibilidades de aplicação, inclusive no âmbito escolar. Thiollent

(1985) descreve pesquisa-ação como um tipo de pesquisa social com base empírica,

concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou mesmo com a resolução de um

problema coletivo, no qual os pesquisadores e os participantes representativos do problema

estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Em suma, buscamos analisar, investigar, explicar e avaliar as possibilidades de ensino

e análise de gêneros através da rede social digital Facebook, aproveitando, destarte, o fascínio

que o referido site exerce sobre os adolescentes e jovens, sobretudo em idade escolar para

dinamizar as aulas de Língua Portuguesa.

Para trabalhar o gênero dentro do próprio contexto de circulação nós criamos um

grupo virtual na própria plataforma, sendo este um dos recursos favorecidos pelo Facebook.

Nos grupos a interação é mais direcionada e consistente o que possibilitou seu uso de forma

didática, de modo a potencializar o ensino e análise de gêneros.

Page 753: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1531

É oportuno notar que ao abrirmos a nossa página no Facebook somos bombardeados

por anúncios de diferentes empresas, as quais circulam entre os perfis dos usuários sob o

rótulo de amigos. Diante dessa invasão no referido site e por ser o gênero anúncio constituído

de mensagens repletas de conotações linguísticas, icônicas e ideológicas, ocorreu-nos pensar

tal gênero como um importante recurso a ser utilizado em atividades de leitura, compreensão

e análise linguística, contribuindo, assim, para o desenvolvimento crítico e discursivo dos

estudantes.

Assim sendo, planejamos oito oficinas pedagógicas, com atividades baseadas nas

seguintes abordagens: ERG, conforme exposto no problema de pesquisa e os estudos de

gênero em inglês para fins específicos (English for Specific Purposes - ESP). Sendo esta uma

área que estabelece ligação entre as tradições linguística e retórica em questões de método de

estudo e ensino de gêneros aplicados. Embora não seja um processo linear, tal orientação

tende, em geral, a partir do contexto para o texto.

Convém salientar que no referido artigo não vamos nos estender sobre a maneira como

as oficinas pedagógicas procederam em termos de metodologia com o ensino dos aspectos

retóricos, linguísticos e sociais do gênero, vamos nos delimitar a explicar como o gênero foi

explorado dentro de seu contexto de uso, a partir da experiência vivenciada no contexto

escolar.

A proposta de ensino que vem sendo aqui desenhada foi realizada em uma escola da

rede pública municipal, localizada na cidade de Garanhuns – PE. As oficinas pedagógicas

ocorreram na Sala de Informática da referida escola, com estudantes de faixa etária entre 13 a

17 anos de uma turma do 8º ano do Ensino Fundamental II.

Considerações sobre os Estudos Retóricos de Gênero – ERG

Sobre os Estudos Retóricos de Gênero – ERG, Bawarshi e Reiff (2003) observam que

os gêneros desempenham um papel relevante no processo de estruturação social, de modo a

considerar nesse processo as ações e as relações propiciadas pelos gêneros para a realização e

reprodução social, ou seja, os gêneros sustentam e refletem hierarquias. Conforme os ERG os

gêneros não funcionam isoladamente, mas sim em relação a outros gêneros, por isso não

devem ser abstraídos de seu contexto de uso para serem ensinados explicitamente no contexto

da sala de aula.

Seguindo a perspectiva da nova retórica Carolyn Miller (2012) concebe gênero como

ação retórica tipificada baseada em situações recorrentes e socialmente definidas. Se gênero

Page 754: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1532

representa ação, ele tem que envolver situação e motivo, pois a ação humana só é

interpretável num contexto de situação e por meio de atribuições de motivos.

A autora defende que a compreensão de gênero retórico baseia-se na prática retórica,

compreensão que não se presta a taxonomia, uma vez que os gêneros mudam, evoluem e

decaem. Desse modo, os gêneros estão intimamente relacionados às características e

necessidades da sociedade, até mesmo em virtude das necessidades oriundas das novas

situações comunicativas advindas do uso intensivo da tecnologia, representada, inclusive,

pelas redes sociais. Tal perspectiva sugere que aprender um gênero não se limita a aprender

um padrão de formas ou um método para realizar propósitos próprios: aprender um gênero é

aprender quais propósitos se podem ter através de um gênero – e isso para a autora em

referência é o mais importante.

Estudos de gênero em Inglês para Fins Específicos

Os estudos de gênero em Inglês para Fins Específicos (English for Specific Purposes –

ESP), é uma área que estabelece uma “ligação entre as tradições linguísticas e retórica”,

propõem que o gênero é uma classe de eventos comunicativos (linguísticos e retóricos

tipificados), cujos membros da comunidade discursiva partilham certo conjunto de propósitos

comunicativos para atender e atingir objetivos compartilhados. As abordagens em ESP

remontam aos estudos linguísticos dos registros em uma língua, a fim de identificarem

recorrência em traços linguísticos de determinado registro para tornarem-se foco de instrução

linguística (BAWARSHI; REIFF, 2003).

Vijay Bathia (2009), um dos representantes de ESP, define gêneros como eventos

comunicativos caracterizados por um conjunto de propósitos comunicativos que são

identificados e compreendidos pela comunidade em que ocorrem. São construtos altamente

estruturados e convencionados, apesar disso, possuem, embora pouco, espaço para que seus

membros contribuam individualmente em sua construção, a fim de que expressem intenções

particulares ao lado dos propósitos socialmente reconhecidos.

Para o referido autor o propósito comunicativo é o traço marcante para a identificação

do gênero, o qual possui uma integridade própria que combina fatores textuais, discursivos e

contextuais, o que conduz o trabalho com gêneros a concentrar-se no uso da língua em

detrimento da superfície do texto.

Educação e Tecnologia

Page 755: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1533

Na contemporaneidade é fácil perceber a marcante presença da tecnologia na

sociedade, baseada nos avanços das Tecnologias de Informação e Comunicação – TICs.

Como características de tais mídias destacamos a linguagem digital, possibilidades de

interação síncrona e assíncrona na comunicação, circulação de variados gêneros, inclusive

emergentes, entre outros aspectos inerentes ao meio digital. A evolução tecnológica fez

emergir um novo espaço para a prática de leitura e de escrita, local onde a linguagem flui e as

relações sociais digitais se estabelecem.

O uso das TICs, cada vez mais intenso por adolescentes em idade escolar, impõe à

educação contemporânea novos desafios e nos impele a refletir e redefinir papéis e práticas

docentes. Concordamos com Soto (2009, p. 17) quando ele afirma que “ensinar e aprender são

atividades complexas e que exigem um esforço de sintonia, com o outro e com o tempo em

que vivemos”, assim sendo, as (novas) tecnologias que medeiam estes processos também não

podem passar desproblematizadas.

Diante dessa nova perspectiva a escola precisa desenvolver atividades que possibilitem

a inclusão digital. No entanto, não basta ao estudante o simples acesso às TICs. Para Pereira

(2011) incluir digitalmente implica em fomentar o uso das TICs de maneira eficiente e

consciente, cujo usuário seja capaz de dominar os recursos que as TICs oferecem em

benefício próprio, principalmente na busca e apreensão de conhecimentos e nas novas formas

de interação, minimizando assim a exclusão digital.

Soares argumenta que a tela do computador, como novo espaço de escrita e traz

significativas mudanças nas formas de interação. Tais mudanças configuram-se no

“letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da

nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela” (SOARES, 2002; p.

151). Rojo (2012) amplia o referido termo e apresenta a expressão multiletramentos, tendo em

vista que os textos contemporâneos, inclusive das mídias digitais, são compostos de variadas

linguagens e exigem capacidades e práticas de compreensão e de produção de cada uma delas

para fazer significar.

Os gêneros digitais

O surgimento e a propagação das novas TICs alteraram consideravelmente as

atividades comunicativas e interativas entre as pessoas e entre a organização dos gêneros

textuais, com destaque nos ambientes virtuais advindos da Internet. Esse ambiente discursivo

Page 756: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1534

possibilitou o surgimento de novos usos da linguagem e de relação com os gêneros, inclusive

por meio de práticas de leitura e de escrita inusitadas.

A esse respeito Marcuschi (2010) esclarece que a Internet “transmuta de maneira

bastante complexa gêneros existentes e desenvolve alguns realmente novos e mescla vários

outros” (MARCUSCHI, 2010, p. 22), os quais se desenvolvem mediante os usos que os

homens fazem das mídias digitais. Tais gêneros, além de serem caracterizados pelo ambiente

eletrônico em que emergem e pelo livre acesso que proporcionam, caracterizam-se também

pela sua forma hipertextual e multimodal, isto é, aspectos de sua funcionalidade intensificados

pela mídia digital.

As Redes Sociais

A expansão e popularização da Internet propiciou o surgimento de redes sociais

digitais – dispositivo que permite ao usuário apresentar-se virtualmente por meio de um perfil,

fazer amigos e interagir com eles por meio de recursos oferecidos pela própria plataforma.

Hoje em dia essas redes sociais digitais fazem parte do cotidiano de muitas pessoas, inclusive

de estudantes. É importante salientar que o Facebook não é, por si, uma rede social, é um site

que potencializam a formação de redes sociais digitais. Raquel Recuero (2009) elucida que

“uma rede social é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas,

instituições ou grupos; os nós das redes) e suas conexões (interações ou lações sociais)”

(RECUERO, 2009, p. 24).

O Facebook é um site que potencializa a formação de redes sociais digitais. O

dispositivo possibilita a criação de perfis, favorecendo, desse modo, a interação e ligação com

outros perfis, mediante a qualidade de “amigo”. A interação entre os usuários da rede

acontece por meio de uma variedade de gêneros, a troca de mensagens síncronas e

assíncronas, publicações, entre outros recursos fornecidos pela própria rede. Importante

mencionar que para tais interações não há fronteiras, pois para criar, manter e interagir através

do site basta estar conectado à Internet.

A linguagem publicitária

Como nosso objetivo foi trabalhar o gênero anúncio publicitário através das

abordagens sociorretóricas convém discutir aspectos relacionados à linguagem publicitária.

Assim sendo, insta esclarecer que a publicidade é uma das diversas forças de comunicação, a

Page 757: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1535

qual utiliza de técnicas específicas para promover lucratividade em atividades comerciais,

além de tentar conduzir o consumidor à ação de comprar o produto ou a aderir a uma ideia ou

marca. É, inclusive, uma das interfaces da comunicação de massa.

O acesso livre a todo tipo de informação gerou, entre as pessoas, uma grande

interatividade, o consumo cresceu assustadoramente devido à facilidade de compra e venda na

Internet. Pode-se dizer que “a publicidade encontrou na internet um estratagema ideal para a

divulgação de produtos e propagação de seu “estilo de vida” capitalista” (CARVALHO apud

XAVIER, 2011, p. 192).

Consoante Carvalho (2014), a força da publicidade está, sobretudo, na palavra, de

modo que a persuasão é o resultado da organização da mensagem, cuja linguagem, aliada aos

recursos icônicos, impõe valores, ideias e objetos de consumo através de recursos próprios da

língua. No tocante ao ensino, o estudo da publicidade é uma maneira de mostrar aos

estudantes a língua em ação na sociedade, além de revelar valores e atitudes culturais de sua

época. Por essa forma, os estudantes terão condições de analisar o texto publicitário, rejeitar

aqueles que fogem à verdade dos fatos ou os falsificam e tornar-se-ão adultos conscientes.

Para Carvalho (2014) os principais aspectos linguísticos que compõem as mensagens

nos anúncios organizam-se sob três aspectos: itens léxico-semânticos e suas formas de uso;

relações frasais estabelecidas no texto e modos discursivos que organizam a mensagem. Esses

recursos, no texto, servem ao propósito de conquistar o público-alvo por meio de três

maneiras distintas entre si: ordenar (fazendo agir); persuadir (fazendo crer) e seduzir

(buscando o prazer). Os fatores ora apresentados podem e devem ser explorados em sala de

aula, pois são relevantes tanto para o conhecimento da língua como para o desenvolvimento

da criticidade dos estudantes, inclusive de nível fundamental.

Análise e discussão dos resultados

Esta seção volta-se para a análise e a descrição das atividades que foram realizadas

durante as oficinas pedagógicas que tiveram como objetivo principal trabalhar o gênero

anúncio publicitário dentro do contexto em que circula, ou seja, no próprio Facebook.

Importante mencionar que as oficinas foram vivenciadas na Sala de Informática da escola

campo de pesquisa e consistiram em aulas presenciais, sobretudo. Utilizamos a ferramenta

PowerPoint Online, mediante o auxílio de Datashow para o ensino explícito do gênero, o qual

foi explorado em seus aspectos linguísticos, retóricos e ideológicos dentro de seu contexto de

Page 758: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1536

uso, para isso usamos computadores com acesso a Internet, tanto para a pesquisadora como

para os estudantes.

Como pode ser verificado na figura abaixo o PowerPoint Online foi utilizado através

do grupo, após publicação dos slides, tendo em vista que, o ato de clicar no link direcionou os

agentes da pesquisa ao hipertexto. Desse modo, favoreceu o acesso à página da empresa que

divulgou o anúncio em análise e aumentou o leque de conhecimentos dos estudantes, pois

tiveram ciência que estudavam hipertextos.

Figura 1: Utilizando o PowerPoint através do grupo virtual

Fonte: Esta pesquisa, 2015.

Cada oficina acontecia em dois momentos, no entanto, de maneira integrada. No

primeiro momento, com o uso do Datashow e no segundo realizando tarefas mediante os

recursos Word e PowerPoint. O trabalho com os gêneros em seu contexto de uso favoreceu a

leitura não linear conduzida pelos hipertextos e a participação atenta dos estudantes, conforme

está representado na figura 2.

Figura 2: Estudo e análise de gênero no Facebook

Fonte: Esta pesquisa, 2015.

Page 759: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1537

Dado o exposto, fica claro, portanto, que o gênero foi explorado didaticamente dentro

de seu contexto real de uso, com ênfase na explicação dos aspectos estruturais e sociais do

gênero, no intuito de possibilitar a identificação e a localização dos gêneros em seus

ambientes de circulação. Também possibilitou a identificação das ações que os gêneros

ajudam a produzir, de modo a ampliar a análise do sistema formal da língua para a análise do

entorno social e contextual do gênero.

No processo de ensino-aprendizagem o gênero anúncio foi contemplado como ação

social e retórica, ressaltando, inclusive o seu proposito comunicativo que consiste em

persuadir o consumidor em potencial, ou seja, convencê-lo a aderir o que está sendo

anunciado.

Vale salientar que nosso propósito não foi trabalhar o gênero anúncio com fins em si

mesmo, mas em relação com os outros gêneros aos quais estabelece relação, de modo a

considerar a sua complexidade e o seu status, bem como os seus traços formais e funcionais

em termos de análise linguística através dos recursos disponibilizados pelo Facebook. A

figura abaixo demonstra a análise de práticas discursivas a partir das postagens dos anúncios

pelas empresas, isto é, mostra a relação do gênero anúncio com outros gêneros, sendo estes

próprios da plataforma digital e produzidos por internautas usuários da rede virtual.

Figura 3: Análise de práticas discursivas no Facebook

Fonte: Esta pesquisa, 2015.

Analisar o gênero no meio digital fomentou discussões acerca da interação entre os

internautas e da postura das empresas mediante as ferramentas “curtir”, “comentar” e

“compartilhar”, próprias da plataforma. Esses momentos foram fundamentais para que os

estudantes visualizassem práticas efetivas com a linguagem, percebendo que a interação

Page 760: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1538

comunicativa acontece através de gêneros, os quais consistem em ações retóricas tipificadas

produzidas com um propósito comunicativo reconhecido socialmente.

As atividades publicadas pelos discentes no grupo eram, geralmente, respondidas no

próprio grupo, através do recurso “comentar”, ou em Word ou PowerPoint, conforme pode

ser verificado na figura abaixo:

Figura 4: Atividade respondida no grupo pelos estudantes

Fonte: Esta pesquisa, 2015

É importante lembrar que as atividades respondidas no grupo foram visualizadas por

todos os membros, bem como foram comentadas pelo mediador durante as aulas, de modo a

descentralizar práticas de correção tradicionais. Vejamos a imagem que representa a referida

situação de ensino:

Figura 5: Discussão oral a partir de respostas de um estudante

Fonte: Esta pesquisa, 2015.

Page 761: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1539

Considerações finais

Mediante as oficinas que foram desenvolvidas concluímos que os gêneros publicitários

que circulam no Facebook podem ser ensinados de modo a conservar a sua complexidade e o

seu status como algo mais do que simples traços retóricos tipificados, pois, o referido site

possui recursos que podem ser customizados para o ensino de gêneros em aulas de português,

no nível fundamental II de ensino, sobretudo por considerar os aspectos retóricos, textuais,

linguísticos e sociais do gênero dentro de seu contexto real de uso.

A referida proposta de ensino, mediante o acesso ao contexto de uso autêntico do

gênero, também apresentou implicações para a educação retórica, pois seu estudo

potencializou a aprendizagem de gênero e das situações em que surgem, bem como a

aquisição de habilidades e competências tecnológicas, adquiridas em práticas reais de uso.

Todas as atividades que foram realizadas em documentos como Word e PowerPoint foram

publicadas no grupo pelos próprios estudantes. É relevante mencionar que todas as atividades

publicadas foram visualizadas por todos os envolvidos no processo, descentralizando a

maneira tradicional de correção de atividades.

Consideramos que o Facebook é uma ferramenta que pode e deve ser utilizada para o

ensino e análise de gênero, tendo em vista os recursos que a própria rede digital oferece e que

as abordagens em ERG e ESP podem ser adaptadas ao nível fundamental II de ensino, com

enfoque dado a leitura e compreensão do gênero anúncio e, consequentemente, de outros

gêneros que circulam na mídia digital.

Referências

BATHIA, Vijay K. A análise de gêneros hoje. In: BEZERRA, Benedito G.; BIASI -

RODRIGUES, Bernardete; CAVALCANTE, Mônica M. (orgs.). Gêneros e sequências

textuais. Recife: EDUPE, 2009.

BAWARSHI, Anis S.; REIFF, Mary Jo. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. Tradução

Benedito Gomes Bezerra. São Paulo: Parábola, 2013.

CARVALHO, Nelly; LINS, Rebeca; WANDERLEY, Rita de Kássia. Inovação publicitária nas

redes sociais. In: XAVIER, Antonio Carlos. Hipertexto e Cibercultura: links com literatura,

publicidade, plágios e redes sociais. São Paulo: Respel, 2011. p. 187-210.

CARVALHO, Nelly M. O texto publicitário na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2014.

Page 762: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1540

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital.

In: _______; XAVIER, Antonio Carlos (Orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas

de construção de sentido. São Paulo: Cortez, 2010. 15 - 80.

MILLER, Carolyn R. Gênero como ação social. In: ______. Gênero textual, agência e

tecnologia. Tradução de Angela Paiva Dionisio; Judith Chambliss Hoffnagel. (orgs.). São

Paulo: Parábola Editorial, 2012.

PEREIRA, João Thomaz. Educação e sociedade da informação. In: COSCARELLI, Carla

Viana & RIBEIRO, Ana Elisa (Orgs.). Letramento Digital: aspectos sociais e possibilidades

pedagógicas. 3ª ed. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2011. p. 13-24.

RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

ROJO, Roxane Helena Rodrigues; Mouro Eduardo (orgs.). Multiletramentos na escola. São

Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e

Sociedade. Campinas. V. 23, n. 81, dez. 2002, p. 143-160. Disponível em

<http://www.cedes.unicamp.br>

SOTO, Ucy. Ensinar e aprender línguas com o uso de (novas) tecnologias: novos cenários,

velhas histórias? In: SOTO, U. et al. Novas tecnologias em sala de aula: (re)construindo

conceitos e práticas. São Carlos, SP: Claraluz, 2009. (p. 11-24)

THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez,1985.

Page 763: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1541

CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS

LATINO-AMERICANAS

[Voltar para Sumário]

Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)

Publicidade, propaganda e verbo-visualidade.

No Brasil, propaganda e publicidade são usados intercambiavelmente, mas, ainda que

possuam em comum a capacidade informativa e a força persuasiva, distinguem-se, todavia,

em seu caráter: a publicidade é comercial enquanto a propaganda é ideológica. Mais

atualmente, propaganda passou a ser o modo de apresentar uma informação sobre um produto,

marca, empresa ou política com a finalidade de influenciar a atitude de uma audiência para

uma causa, posição ou atuação.

Para cumprir sua função persuasiva, a propaganda pode influenciar o consumidor

através da formação de atitude (ALDRIGHI, 1989), isto é, uma predisposição psicológica em

três dimensões: cognitiva, afetiva e conotativa. De outro modo, não é necessário alterar os

sentimentos ou pensamentos do consumidor, atribuindo-se à persuasão uma atuação mais

discreta, não notada pelo consumidor.

Associada ao fim mercadológico da publicidade, a propaganda trabalha com arte,

criatividade, raciocínio, moda, cultura, psicologia, tecnologia, um complicado composto de

valores e manifestações da capacidade humana. Nesse sentido, a publicidade elabora um

discurso com fins de convencimento consciente ou inconsciente através de argumentação

icônico-linguística (CARVALHO, 1996). Desse modo, a propaganda pode ser caracterizada

como multimodal.

Multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que entende a comunicação e a

representação como envolvendo mais que a língua, ela pressupõe pessoas orquestrando o

sentido através de uma seleção e configuração particular de modos, enfatizando a importância

da interação entre modos. Abordagens multimodais têm proposto conceitos, métodos e

perspectivas de trabalho para a coleção e análise de aspectos visuais, auditivos, corporificados

e espaciais da interação e dos ambientes, bem como da relação entre os mesmos. Com o

Page 764: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1542

rápido desenvolvimento tecnológico e a possibilidade de articular diferentes mídias em

práticas comunicativas antes inteiramente verbais, os estudos da multimodalidade permitem

uma compreensão privilegiada das articulações de sentido em determinados gêneros. Para dar

conta da riqueza de sentidos que a composição visual das propagandas articula, recorremos à

Gramática do Design Visual (doravante GDV), proposta por Kress e van Leeuwen (2006

[1996]).

Gramática do Design Visual: os significados e sentidos das imagens

A GDV foi desenvolvida com base nas metafunções da linguagem (ideacional,

interpessoal e textual) apresentadas na Gramática Sistêmico-Funcional que, quando retomada

por Kress e van Leeuwen (2006) as denominam representacional, interativa e composicional.

A função representacional é responsável pelas estruturas que compõem visualmente o que

está representado, isto é, o que se supõe que está “ali”; a função interativa se volta para a

relação entre quem vê e o que é visto; e a composicional analisa os significados obtidos a

partir da distribuição da informação ou dos elementos na imagem.

A função representacional trata dos participantes representados, dos quais as

composições visuais tratam (em oposição aos participantes interativos, que produzem e

visualizam as imagens). Nesse sentido, a relação entre os participantes representados pode se

dar em forma de estrutura narrativa, quando há uma ação sendo desenvolvida, ou estrutura

conceitual, quando há uma taxonomia ou relação hierárquica.

Para a estrutura narrativa, pensaremos nos participantes representados em termos de

atores: se há apenas um ator e a ação não é dirigida a nada ou ninguém, temos uma estrutura

não transacional; porém, quando a ação de um ator é dirigida a outro participante, esse se

torna a meta e a estrutura é transacional. Há ainda casos nos quais os atores aparecem apenas

parcialmente (um pé ou mão representados), sugerindo um apagamento daquele

ator/participante, a ser investigado em perspectiva crítica.

Nas representações narrativas é importante também considerar as ferramentas usadas

nos processos de ação. Os autores distinguem as circunstâncias, isto é, participantes

secundários que podem ser locativos (se relacionam a um participante específico); de meios

(ferramentas usadas na ação, particularmente quando não há uma relação clara entre a

ferramenta e o ator); e de companhia (não há relação entre os participantes, mas ambos têm

um papel na composição).

Page 765: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1543

Como dito, além de narrativas, as representações podem ser conceituais, ou seja,

descrevem o participante representado em processos de classificação, analíticos ou

simbólicos. Nos primeiros, há uma relação taxonômica entre os participantes. Nos processos

analíticos, os participantes se relacionam em função de todo-parte, isto é, há um portador e

seus atributos possessivos. De acordo com Kress e van Leeuwen (2006, p.89), numa imagem

analítica, não há riqueza de detalhes, o cenário é geralmente excluído ou pouco importante,

não há profundidade e as cores são restritas, afinal, o objetivo é expor os atributos possessivos

e identificar um portador.

Por fim, os processos simbólicos apontam o que os participantes significam ou são e

dividem-se em dois tipos: atributivos e sugestivos. Os primeiros representam significados e

identidades que são atribuídos ao portador. No segundo caso, significado e identidade são

decorrentes de algo da natureza do portador. Para os processos simbólicos sugestivos, há um

participante em evidência por uso de recursos visuais (foco, plano, luz ou cor, por exemplo),

apontados por um gesto que não representa uma ação, ou, ainda, convencionalmente

associados a um valor simbólico.

Segundo a GVD, significados são expressos, também, pela forma como se estabelece a

relação entre os participantes representados da imagem, ou entre os produtores da imagem

com seus participantes interativos. Para isso são acionados os conceitos de Contato e de

Distância Social. O contato ocorre quando os participantes presentes nas imagens olham ou

não para o observador, gerando uma demanda (há contato visual) ou oferta (sem contato

visual). Já o que determina a distância social é o enquadramento utilizado na imagem. O plano

fechado sugere uma intimidade entre participantes representados e interativos; a qual regride à

medida que se abre o plano, de modo que com o plano aberto, há impessoalidade entre os

participantes.

No que concerne à composição das imagens, os autores da GDV também apresentam o

princípio da estrutura dado-novo. De acordo com os autores, o dado já é conhecido pelo

observador, e está posicionado à esquerda na imagem; o novo, por sua vez, significa algo

ainda não conhecido, localizado à direita da imagem. Por outro lado, as informações podem

integrar uma expressão real ou ideal. No primeiro caso, estarão na porção inferior da

composição, ao passo que a expressão ideal estará na parte superior.

O valor informativo de uma composição, por sua vez, será dado em termos de

centralização: um elemento esteja no centro, este será considerado o núcleo da informação, ao

passo que os elementos posicionados na margem serão dependentes ou subordinadas ao

elemento central. Os autores (KRESS e van LEEUWEN, 1996, p.212) observam, ainda, a

Page 766: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1544

saliência dos elementos (se estão à frente ou fundo, tamanho, contraste de cor), através da

qual os observadores são capazes atribuir “peso” aos mesmos e; o enquadramento, isto é a

inter-relação dos objetos da composição, a qual pode ser forte (sentido de individualidade e

diferenciação à imagem) ou fraca (identidade de grupo).

Kress e van Leeuwen (p.161) discutem que textos visuais também trazem cargas de

modalização. Imagens representam pessoas, lugares e coisas como se fossem reais, como se

existissem desse ou daquele modo, e julgamentos de modalidade são sociais, dependentes do

que é considerado real, ou verdadeiro ou sagrado, por exemplo, pelo grupo social para quem

aquela representação é direcionada. Esse direcionamento está firmemente vinculado ao

aspecto cultural, a uma história e a uma configuração de sociedade, isto é, a um “tipo

particular de realismo é em si um signo motivado, no qual os valores, crenças e interesses de

um grupo encontra sua expressão” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.158).

Assim, para que uma imagem seja julgada real, olhamos, por exemplo, para a

saturação da sua cor: se as cores são exageradas, as imagens parecem mais do que reais, e,

quando menos saturadas, parecerão menos que real. Assim, quão maior seja a saturação ou o

nível de detalhe, maior será a modalidade e se a imagem é planificada, menor o nível de

detalhe e, assim, menor a modalidade.

Criadas e malvadas: visualizando as latino-americanas

Com base nos parâmetros até aqui apresentados, nos propusemos analisar os pôsteres

utilizados em meio digital para divulgação e promoção do seriado norte-americano Devious

Maids (Criadas y Malvadas, na tradução para o espanhol). Criada por March Cherry,

produzida pela ABC Studios e televisionada pela Lifetime em 23 de junho de 2013, a série

mostra o cotidiano de quatro empregadas domésticas (de origem latino-americana) em

residências de luxo em Beverly Hills. A trama principal, baseada na série mexicana Ellas son

la alegria del hogar, segue a investigação do assassinato de uma empregada (de origem

latino-americana) por uma professora de nível universitário (também latina), mãe do acusado

pelo crime.

Popular por sua programação voltada para o público feminino ou que coloca a mulher

em papeis de liderança, a Lifetime está presente em 82,4% dos lares norte-americanos. Foi

essa emissora, inclusive, que televisionou o seriado também protagonizado por mulheres

Desperate Housewives, do mesmo criador de Devious Maids, Marc Cherry. Em 2006, a

Page 767: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1545

Lifetime mudou seu slogan de “televisão para mulheres” para “minha estória está na

Lifetime”, para ser substituído em 2008 por “Conectar. Jogar. Compartilhar”.

Devious Maids surge como um interessante objeto de estudo em função das condições

de produção do seriado em termos de emissora e alcance, mas principalmente por apelar para

uma parcela cada vez maior da população norte-americana: os descendentes de

hispânicos/latinos. De fato, entre 2000 e 2010 a presença desse grupo populacional aumentou

em 43%, fazendo com que os mesmos representem 16% da população daquele país. Dentre a

população latina/hispânica residente e trabalhando legalmente naquele país, as mulheres

constituíam 41% da mão de obra, em 2011.

Propomo-nos, então, analisar a construção da imagem da mulher latino-americana

como representante da categoria das empregadas domésticas – oferecida pela série e

divulgada pela emissora – nos pôsteres promocionais, divulgados online. Na seleção dos

pôsteres, nos concentramos em três exemplares que possuíssem a presença da relação entre

imagem e palavra. Assim, para os fins deste artigo, iremos apresentar nossas considerações

acerca dos pôsteres “mentiras”, “assassinato” e “sexo”.

Pôster “mentiras”

Uma das características mais marcantes da publicidade são as cores, com predominância

do branco do cenário, do cinza e branco do uniforme da empregada e o toque de areia do

tapete e da sujeira. O destaque está para o título do seriado televisivo em vermelho, cor forte

que transmite ideias de força, energia, ação, poder e paixão.

A empregada retratada está de joelhos sobre o tapete,

varrendo a sujeira para baixo do tapete; salienta-se que a

sujeira tem um significado próprio expresso pela palavra

“mentira” e é este dizer, não a empregada que está no centro

do anúncio.

A imagem apresenta um processo narrativo não

transacional, uma vez que representa uma ação,

protagonizada por uma mulher, mas não orientação dessa

ação para nada ou ninguém. Há, porém a presença uma

ferramenta que possibilita a participante realizar a sua ação,

a vassourinha. Há, também, um processo analítico, no qual constam a participante

representada e seus atributos possessivos mais relevantes: o uniforme (curto e cinza) e o

Figura 7 Pôster "Mentiras"

Fonte: Internet Movie

Poster Awards

Poster Aw

Page 768: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1546

avental (branco) e a vassourinha; também não há grandes detalhes com relação ao cenário,

apenas o tapete e os traços pouco nítidos de uma escada e uma porta.

Podem-se comentar, ainda, processos conceituais simbólicos, voltados para o que o

participante é ou significa. Quando há apenas um participante na imagem, ocorre um processo

simbólico sugestivo, no qual os detalhes perdem sua ênfase em favor da “atmosfera” e fazem

com que o portador pareça representar uma essência generalizada. No pôster, o cenário branco

e pouco nítido bem como a iluminação do cenário cria uma atmosfera de limpeza ao redor da

empregada representada. A essa figura, representada sem muitos detalhes, é atribuída uma

atmosfera de limpeza diretamente relacionada à identidade do portador (a empregada).

Ainda há de se pensar o significado simbólico representado pelo ator: varrer a sujeira

para debaixo do tapete. Como a atmosfera da imagem implica claridade e limpeza, temos o

agente de limpeza atuando contra a sujeira no chão. Todavia, essa sujeira (já uma metáfora em

“varrer a sujeira para debaixo do tapete”) desdobra-se em outro significado, mais literal,

talvez, atribuído pela linguagem verbal: “mentiras”. Logo, além de agente da limpeza, é

pertinente à identidade da empregada a ação de “varrer as mentiras para debaixo do tapete”.

Nesse ponto, faz-se necessário questionar: estaria a empregada (inferiorizada pelos recursos

visuais) varrendo as suas mentiras ou as mentiras de outrem para baixo do tapete?

Como não há interação de olhar entre o ator e o observador, temos a oferta da imagem

da empregada em plano aberto. Com relação à oferta do participante representado tem-se que

“em produtos dramáticos ou científicos para televisão e filmes, as ilustrações tendem a

“oferecer”, de modo que uma barreira imaginária é erigida entre participantes representados e

os observadores, desligando-os” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.121).

É importante observar, também, que no cartaz oculta-se a identificação da representada

e, principalmente, seu olhar, gerando um apagamento que deve ser lido criticamente. Soma-se

a esse apagamento facial da participante, o ângulo superior da observação, numa

“contemplação do mundo do ponto de vista de uma divindade, que coloca o objeto a seus pés,

em detrimento do alcance de suas mãos” (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p.145). Nota-se,

portanto, a convergência da postura da participante representada de joelhos aos pés do

observador, em sua instância superior.

De outro modo, o observador não está no mesmo ângulo do participante representado.

Ao discutirem a perspectiva da observação, Kress e van Leeuwen (2006, p.136) revelam que o

ângulo oblíquo evidencia o não alinhamento do observador com a realidade do observado,

desse modo, no cartaz há um não pertencimento do observador à ação narrada. Além disso, há

Page 769: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1547

uma distância social a partir do enquadramento da participante representada (p.125), o que

nos leva a afirmar, portanto, a inferioridade da participante representada.

A estrutura composicional do cartaz é predominantemente vertical e posiciona a

empregada na parte superior esquerda do anúncio, enquanto a palavra “mentiras” ocupa o

centro, e contrasta com o título do programa, disposto logo abaixo, em fonte maior e em cor

mais forte. Desse modo, temos que a empregada é o elemento de idealização mais alto, isto é,

a promessa do produto anunciado, ao passo que as informações do programa televisivo são

factuais, revelando como conseguir o que é idealizado.

Além disso, há uma relação de marginalidade entre a participante representada e o título

do programa, sugerindo uma similaridade entre tais elementos, no sentido que as empregadas

não seriam somente empregadas, mas seriam “desviantes”. Tais elementos e seus significados

se relacionam, também, com o núcleo informativo, as “mentiras”, localizadas no centro do

anúncio. Isto é, não é as empregadas desviantes o real foco do programa, mas as mentiras e o

desenvolvimento da própria trama.

Cartaz “sexo”

A figura representada está posicionada contra uma

parede de vidro. A instalação foi recentemente utilizada como

se nota pela condensação ainda presente e a palavra “sexo”

escrita com nitidez. A imagem apresenta um processo

narrativo não transacional, isto é, a participante está limpando

o vidro do box (como indica a palavra “sexo” já meio

apagada), porém não está direcionada a alguém ou a um

objeto. Tal como no cartaz “mentiras”, novamente se

evidencia uma ferramenta: a esponja. De fato, um segundo

ponto em comum entre o cartaz “mentiras” e o cartaz “sexo” é

a ferramenta que ao mesmo tempo em que possibilita a representação de um processo

narrativo, também contribui para a emergência identitária da participante.

Em termos de processos analíticos, há consonância com o pôster anterior: a

participante é ofertada para escrutínio do observador, representada com mínimos detalhes,

pouca iluminação ao seu redor (o que destaca partes de sua vestimenta, como a gola do

decote) e seus atributos (o uniforme e a ferramenta). Uma diferença na composição visual é a

ausência de profundidade, pois a participante está encostada no vidro como sugerido pelo

Figura 2 Pôster "Sexo"

Fonte: Internet Movie

Poster Awards

Page 770: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1548

braço ou prolongamento do pescoço. O cenário é ainda mais obscuro com a condensação

ocultando o entorno, do qual se vê a parede de tijolos.

Pensando nos processos simbólicos do cartaz “sexo”, torna-se evidente os mesmos

princípios do cartaz “mentiras”: uma atmosfera genérica para uma representação genérica,

sem laços no tempo e no espaço. Porém, ao contrário do pôster “mentiras”, o fundo da

composição apresenta iluminação reduzida, logo, não é possível distinguir nada além de uma

parede de tijolos por detrás da condensação do vidro, onde a empregada já limpou. Esse jogo

da pouca iluminação com a condensação do vidro cria um mistério ao redor da figura

feminina, a qual se apresenta um estímulo aos sentidos: o toque pela proximidade e pela

exposição de sua pele pelo decote do vestido.

Em contiguidade com o apelo sensual, a palavra motivo do cartaz “sexo” compõe

também a representação da figura feminina: há um decote profundo, um vestido curto, as

unhas vermelhas, e a pose da empregada encostada contra o vidro. A proximidade do título do

programa televisivo, “empregadas desviantes”, também deve ser considerada, por sua

contiguidade da cor vermelha com o esmalte das unhas: identifica-se o elemento “desviante”,

“ardiloso” como a empregada. A identidade que emerge da participante representada é de

mulher, objeto de desejo e com atributos de sensualização.

Não é possível localizar, também nesse segundo pôster, o olhar da participante, de

modo que esta se oferece aos julgamentos do observador em plano médio: não se oferece o

corpo em totalidade da participante, apenas o tronco e parte da perna. Já a proximidade do

enquadramento da figura feminina sugere um grau de intimidade sensual, proposta pelos

atributos possessivos, pela composição do cenário e pela própria palavra “sexo”.

Analisar o ângulo de observação é particularmente delicado, pois como a noção de

profundidade é afetada, supõe-se que há envolvimento do observador pelo ângulo frontal,

todavia, o posicionamento de braço e pescoço da participante representada revela que,

novamente, o observador se afasta (ainda que discretamente) do universo da figura feminina.

O ângulo é, assim, oblíquo e um pouco mais baixo, o que empodera a participante, no sentido

que enquanto objeto de desejo e ostentação sensual, ela tem poder sobre o observador – ainda

que não haja interação direta explícita entre ambos.

A estrutura composicional do cartaz cria seções verticais e horizontais: no eixo

vertical. No eixo horizontal, temos a figura feminina e seus atributos como o elemento

“dado”, ao passo que o elemento “novo” é a palavra “sexo”, parcialmente escrita na superfície

de vidro. Mas, do lado “novo”, também temos a mão com a esponja, isto é, ao mesmo tempo

Page 771: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1549

em que a empregada e sua caracterização sensualmente apelativa possam ser “dadas” para o

observador, o elemento “novo” também é composto da tentativa de apagar esses atributos.

No eixo vertical, o título do programa ocupa a posição de idealização, o produto a ser

desejado. As informações do programa são, novamente, as mais factuais, na porção inferior

do cartaz. E entre idealização e realidade está “sexo”, isto é, a mediação entre aqueles

elementos. Os elementos do eixo vertical também se relacionam no eixo horizontal: o título

está próximo ao colo da figura feminina; o elemento “sexo” na altura dos quadris; e as

informações factuais, próximas aos joelhos. A não representação da face da empregada, no

eixo vertical associa-se, ainda, ao índice de idealização: deseja-se saber sua identidade, mas

para isso é necessário atender ao que dizem as informações reais e assistir ao programa.

Pôster “assassinato”

A imagem da empregada limpando algo no chão da cozinha representa um processo

narrativo não transacional, com uma ação executada, um ator, mas sem direcionamento. Para

processar a ação, a participante usa um esfregão. Os processos analíticos possuem estrutura

similar aos pôsteres anteriores, nos quais há poucos detalhes na cena, os quais apenas

propiciam o reconhecimento de uma cozinha. Novamente, não há cores, nem formas de se

estabelecer uma relação contextual, mas um participante genérico, exercendo uma ação em

um ambiente igualmente genérico.

Quanto à participante, seus atributos possessivos permanecem os mesmos dos outros

cartazes, todavia, acrescenta-se a esse quadro os sapatos de salto agulha. Além disso, a

participante está em plano aberto, com todo o corpo, em particular as pernas e oferecido para

observação.

Por só haver uma única participante representada,

novamente, ocorre processo simbólico sugestivo, no qual se

cria uma atmosfera pelo brilho e cor branca do entorno

(limpeza). Todavia, a saliência da palavra “assassinato”, em

vermelho sobre o piso branco, cria uma atmosfera oposta; a

cor vermelha, associada à palavra “assassinato” remete ao

sangue jorrado em um crime. Nessa atmosfera, a ação da

participante não é somente agente de limpeza higiênica, mas

uma cúmplice a limpar a cena e a evidência de um crime.

Figura 3 Pôster "Assassinato"

Fonte: Internet Movie

Poster Awards

Page 772: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1550

Alia-se a essa significação da participante, um fator importante: os sapatos de salto

alto. Geralmente, exige-se para o uniforme de funcionários de limpeza, sapatos baixos,

impermeáveis e antiaderentes, o que não ocorre com essa participante. A presença do sapato

de salto alto contribui para a saliência da figura feminina, prolongando os membros inferiores

e definindo a musculatura, ao mesmo tempo em que a empodera – estereotipicamente sapatos

de salto alto são associados à segurança, elegância e autoconfiança feminina. Logo, a

participante não é cúmplice na limpeza da cena de um crime, ela está no controle da situação,

o que nos leva a questionar, a relação entre essa participante e o “assassinato”.

Como nos outros cartazes, não há contato estabelecido através do olhar entre

participante e observador. Sem identificação da participante, seu enquadramento não

pressupõe nenhuma intimidade, pelo contrário, observador e participante estão em relação

caracterizada pela formalidade e impessoalidade, na qual se diz “distancie-se para que eu

possa olhar para você” (KRESS e VAN LEEUWEN, 2006, p.125).

Os ângulos da observação também ajudam a distanciar o observador da participante

representada, enquanto o observador de frente para o cenário, seu posicionamento é oblíquo

em relação à empregada e à palavra “assassinato”. De fato, o próprio corpo da participante

representada está voltado em outra direção, seguindo a linha do esfregão e da mancha sobre o

assoalho. O ângulo alto, em relação à palavra “assassinato”, deixa a figura feminina em visão

periférica e evidenciando o poder do observador sobre ambos os elementos.

Considerações Finais

Neste trabalho inicialmente apresentamos os parâmetros que nos serviriam de base

para análise multimodal de pôsteres de divulgação de um seriado televisivo norte-americano.

O seriado foi escolhido em função de seu público alvo e do grupo populacional retratado

como protagonista da trama: mulheres de origem latino-americana. Transmitido por uma

emissora tipicamente do mainstream, foi nossa intenção investigar, em três pôsteres lançados

para a campanha publicitária da primeira temporada do seriado em 2013, os discursos e

ideologias que motivaram a composição visual dos pôsteres.

Os exemplares assemelham-se composicionalmente com a representação de um corpo,

feminino, e por articulá-lo a grupos de informação verbal. Foi possível, então, observar o

apagamento da figura representada pela elisão de sua face e sua associação a um tipo humano

genérico: a empregada. Ainda, à mulher latina sem identidade é também atribuída uma

ambiguidade de atitudes: se em primeira instância a empregada é vista como símbolo de

Page 773: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1551

limpeza, em seguida a diminuímos por impor-lhe relações com atos mentirosos; de outro

modo, se a empregada limpa o chão ensanguentado, como dizer que ela não é responsável

pela mancha em primeiro lugar?

Considerando o fator propagandístico do pôster, naturalmente essas perguntas

emergem para levar o observador a assistir o seriado. Mas deve-se estar atento que é através

da relação das palavras temáticas de cada pôster que os significados mais sutis relacionados à

doméstica e à mulher de origem latina fluem pela composição visual: afastamento social,

oferta de sua figura sensualizada e, principalmente, sua natureza genérica.

Referências

ALDRIGHI, V. Tudo que você queria saber sobre propaganda e ninguém teve a paciência de

explicar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1989.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: ÁTICA, 1996.

GOBBI, A. A relação das mulheres e seus sapatos. Disponível em:

<https://psicologaalinegobbi.wordpress.com/2013/01/04/a-relacao-das-mulheres-e-seus-

sapatos/> Acessado em: 15 Março 2015.

INTERNET MOVIE POSTER AWARDS. Devious Maids Posters. Disponível em:

<http://www.impawards.com/tv/devious_maids.html> Acessado em: 15 Março 2015.

KNOLL, G. F. Propaganda, identidade e subjetividade. In: Nonada Letras em Revista, v. 1, n.

15, 2010, pp.1-14. Disponível em: <seer.uniritter.edu.br> Acessado em: 25 março 2015.

KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London,

New York: Routledge, 2006[1996].

PEREIRA, P. P. Uma análise comparativa de textos multimodais de traduções de anúncios

publicitários de produtos Nívea em língua espanhola e portuguesa. Monografia. 55f. 2013.

Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades. Fortaleza, 2013.

PETERMAN, J. Analisando a Publicidade Bom Bril como Texto Multimodal. In: XXIX

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília, 2006. Disponível em:<

http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R0624-1.pdf> Acessado em 25

março 2014.

SANT’ANNA, A. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Pioneira, 1998.

Page 774: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1552

SIMÕES, A.C. e MACEDO, F. J. F. Todos tem um lado devassa, qual é o seu? Uma análise

discursiva das publicidades da cerveja devassa. In: Revista FACEVV, n.10, 2013, pp.4-17.

Disponível em: <www.facevv.edu.br/Revista/10/Artigo1.pdf> Acessado em: 25 março 2014.

Page 775: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1553

DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM

“NOIVAS PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA

CASA SECRETA DA NOITE DO TEMÍVEL DESEJO” [Voltar para Sumário]

Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)

Introdução

“A função da narrativa não é a de ‘representar’, mas de constituir um

espetáculo que ainda permanece muito enigmático.”

Roland Barthes

Recentemente, a literatura fantástica vem ganhando espaço sob os holofotes da crítica.

Saindo da posição marginal que ocupava com frequência, está agora atraindo olhares diversos

acerca dos elementos que a compõem. A sua construção é feita de forma singular, pois, dentro

de um texto fantástico, o que é real? O que é ficção?

Dentre esses elementos que formam a narrativa, faz-se necessário destacar o

imaginário da obra – partindo dos conceitos de Wolfgang Iser (2002) – que desempenha uma

função particularmente interessante nos textos de fantasia. Por se tratar de obras que articulam

características e fatos de forma bastante única, e visando a criação de uma realidade

alternativa que seja tão verossímil quanto a nossa, é inegável a singularidade na organização

do imaginário desses textos.

Partindo dessa perspectiva da literatura fantástica como um elemento em ascensão, e

levando em consideração todas as minúcias que formam o texto literário, propõe-se a seguir a

análise do conto “Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da Noite do

Temível Desejo”, escrito pelo autor inglês Neil Gaiman. Sempre buscando apoio nos

conceitos-chave da teoria do imaginário de Iser, pretende-se abordar e discutir os aspectos do

texto que influenciam a desconstrução da realidade como conhecemos para a construção do

que é “real” ou “ficcional” dentro da história analisada.

Page 776: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1554

Conceituando o imaginário

Iniciar a análise de um texto literário é um processo que envolve diversas etapas, das

quais a maioria remonta à pergunta fundamental da Teoria da Literatura: o que é literatura?

Terry Eagleton tenta esclarecer a questão, deixando-nos um pensamento bastante interessante

a esse respeito: “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém

resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12).

Em contraposição, Antônio Soares Amora delimita literatura como aquilo que

“expressa uma concepção intuitiva e individual da realidade (em cada caso, a concepção do

autor da obra)” (AMORA, 2006, p. 51). Tomando a visão deste autor, pode-se afirmar que a

literatura é sempre subjetiva e, mais ainda, é portadora de um elemento que é elaborado pelo

autor e transmitido ao leitor através da obra; pois “seu conteúdo, ou aquilo que ela expressa, é

uma realidade abstrata, que existiu no espírito do autor [...] e passará a existir no espírito dos

seus leitores” (AMORA, 2006, p. 57).

Para que essa realidade abstrata do autor chegue ao seu leitor é necessária a

intervenção daquilo que Wolfgang Iser chama de "imaginário". O imaginário da obra – que

sempre é forjado, fingido e inacessível – é construído pelo autor de forma a permitir que sua

abstração atinja o público da maneira mais plena possível. Mas, assim como Amora nos traz

as ideias de indizível (para o autor) e indefinível (para o leitor), Iser concorda que o processo

nunca é perfeito, pois “a ficção não é idêntica com o por ela representado e desta identidade

carente deriva a presença do imaginário do texto” (ISER in LIMA, 2002, p. 949).

A partir dessa inexatidão surge a necessidade dos atos de fingir, auxiliares na

composição do imaginário. Esses atos transgridem os limites do real ao torná-lo ficção no

texto e transgridem o imaginário ao determiná-lo no próprio texto, processo citado por Iser

como “irrealização do real e realização do imaginário”. É interessante notar o funcionamento

desses atos dentro do conto “Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da

Noite do Temível Desejo”, presente no livro "Coisas Frágeis 2" (2010), tendo em vista o jogo

que o autor Neil Gaiman faz com os elementos da narrativa. Gaiman inverte diversos papéis

ao situar o real do texto como um mundo fantástico, onde existem monstros e maldições,

sendo seu protagonista um aspirante a escritor que deseja fazer literatura como “uma imitação

da vida, uma representação exata do mundo como ele é, da condição humana.” (GAIMAN,

2010, pp. 36-37)

Além do autor, o próprio personagem faz uso dos atos de fingir ao tentar escrever seu

romance; é possível, então, observar um processo sempre duplo. A partir dos primeiros atos:

Page 777: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1555

seleção, a qual Iser (in LIMA, 2002) afirma ser a desvinculação dos elementos que formarão

o texto literário de seus sistemas preexistentes, e combinação, que é a acentuação dos

“espaços semânticos constituídos a partir de elementos selecionados das realidades

extratextuais” (Idem, p. 964); é curioso notar que Gaiman, ao escrever a sua literatura, utiliza

a seleção para escolher características que, ao serem combinadas, deem forma a um mundo

fantástico. Por outro lado, seu protagonista seleciona o máximo de detalhes reais do seu

mundo fantástico para que, combinados de forma a prezar pela faticidade, possam conferir

qualidade de literatura ao seu texto, o que, inclusive, permitiria uma nova reflexão sobre a

pergunta inicial: o que é literatura?.

O último dos atos de fingir, o desnudamento da ficcionalidade do texto, se faz de

forma peculiar em meio à construção dicotômica de “Noivas Proibidas dos Escravos Sem

Rosto na Casa Secreta da Noite do Temível Desejo”. Segundo Iser, a obra de ficção não tenta

qualificar-se como real – ao contrário, tem o fingimento como condição básica para ser

compreendida. De tal forma que “pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no

texto literário se transforma em um como se” (in LIMA, 2002, p. 973, grifo do autor). Assim,

embora o mundo real do conto seja fantástico, é posto para o leitor que aceite como se fosse

realidade; por outro lado, o protagonista entedia-se com o que escreve por não precisar fingir

para crer em seu texto: o fantástico já é a sua realidade cotidiana.

É a partir desses três atos de fingir – seleção, combinação e desnudamento – que o

autor constrói o imaginário e permeia seu texto com ele, possibilitando assim a transferência

de conteúdos no sentido autor-leitor da qual fala Amora. Pois, segundo o teórico, “o ato

criador de um poeta, um ficcionista ou um teatrólogo é sempre empenho no sentido de

expressar, o melhor possível, o que deseja dizer ao leitor.” (AMORA, 2006, p. 61, grifo

nosso).

Iser aponta esse processo de construção do caráter de “como se” da literatura como um

modo de suscitar sentimentos e emoções em seu leitor. O imaginário vem auxiliar exatamente

nessa expressão do autor, de forma que possa levá-la ao leitor no estado mais fiel possível –

lembrando sempre que a fidelidade completa é impraticável. Porém, cada leitor receberá a

carga de informações trazidas no texto de um modo diferente, tendo em vista o caráter

extremamente particular de sua visão de mundo, sua vivência e sua psique (o indefinível); do

mesmo modo que o autor sempre terá um sentimento que não foi transmitido para sua obra (o

indizível). É exatamente com o intuito de diminuir ao máximo essas fronteiras que o

imaginário surge.

Page 778: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1556

Por fim, é importante ainda lembrar “que o fenômeno literário é muito mais que

simplesmente uma obra que está diante de nossos olhos” (AMORA, 2006, p. 61), ideia

reiterada também por Eagleton em “a literatura não existe da mesma maneira que os insetos”

(EAGLETON, 2006, p. 24); de tal forma que a literatura nos permite imergir em um mundo

curiosamente real, incrivelmente fictício e absolutamente fascinante, o qual não admite pré-

julgamentos e simplismos.

As duas narrativas

O conto “Noivas Proibidas” nos relata o conflito do personagem protagonista – ao

qual não é atribuído nenhum nome – no processo de construção de sua obra literária. De tal

forma que, simultaneamente a esta problemática, também nos é apresentada a narrativa da

obra que o personagem citado vai construindo. Essas duas linhas da história são diferenciadas

de modo a deixar bastante claro onde se passa cada passagem narrada.

De início, é mostrado apenas uma frase que prepara o leitor para levar em

consideração que a parte seguinte seria uma história dentro do plano normal do conto: “Em

algum lugar da noite, alguém escrevia.” (GAIMAN, 2010, p. 33). Com esse trecho, o autor

anuncia que o que se segue – que, inclusive, possui uma formatação editorial diferenciada –

trata-se de uma ficção dentro de outra.

Em seguida, é apresentada a história que está sendo construída dentro da realidade do

conto pelo personagem escritor. Sem rodeios, a ambientação é feita visando a elaboração de

um ambiente sombrio, noturno e que inspire algum temor. É interessante notar a escolha de

palavras para a caracterização da cena, pois todas contribuem para a construção dessa aura de

soturnidade. A protagonista desta linha, Amelia Earnshawe, confirma todas essas emoções ao

surgir amedrontada, implorando por abrigo em uma mansão desconhecida.

Corria como se tivesse as legiões do inferno em seus calcanhares, e não

olhou nem uma vez para trás até chegar à entrada da velha mansão. À luz

pálida da lua, as colunas brancas pareciam esqueléticas, como os ossos de

um animal gigante. Ela se agarrou ao batente de madeira, puxando haustos

de ar, olhando para trás no longo caminho, como se esperasse por alguma

coisa, e então bateu na porta – timidamente, de início, depois mais forte as

batidas ecoaram pela casa. Ela imaginava, pelo eco que voltava, que lá de

longe vinham batidas em outra porta, abafadas e mortas. (p. 34)

Ao fim dessa segunda parte – o conto, ao todo, possui nove – retorna-se ao plano do

protagonista-escritor. Essa alternância se mantém até o final, fazendo se sempre de forma a

Page 779: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1557

mostrar o que se passa com o protagonista após a criação de cada nova passagem que conte a

história de Amelia.

Na parte III, finalmente conhecemos o personagem que está escrevendo a segunda

linha narrativa. Ele se apresenta insatisfeito com o que produz, alegando inserir, sem intenção,

piadas e traços humorísticos ao longo de seu texto. Em sua fala ao mordomo, que parece

acompanhar o progresso de sua obra, relata que está “tentando criar uma imitação da vida,

uma representação exata do mundo como ele é, da condição humana” (pp. 36-37). A partir

desta fala, é possível notar uma certa contradição entre as palavras do personagem e seu texto

produzido: ora, em que contexto a fuga de uma órfã por um matagal lúgubre e a consequente

descoberta de uma mansão que em muito parece ser mal-assombrada lembram o mundo

exatamente como ele é?

De uma forma bastante natural, essa dúvida é resolvida. É possível ao leitor, então,

chegar à conclusão que o ajudará a compreender melhor o conto de Gaiman.

Do cômodo proibido no último andar da casa, partiu um uivo sombrio e

lancinante que ecoou por toda a casa. O jovem suspirou. – É melhor

alimentar a tia Agatha novamente, Toombes.

– Muito bem, senhor. (p. 37)

“Noivas Proibidas”, na verdade, é um conto que se faz fantástico do começo ao fim.

Por tratar de um personagem que está inserido num contexto de fantasia e que deseja escrever

uma literatura que “reflita a vida como ela é, que a espelhe nos mínimos detalhes”, esse

caráter fantástico que envolve o protagonista-escritor acaba por transferir-se para o texto que

este produz ao longo do conto.

A insatisfação com sua obra, porém, faz com que este protagonista busque o auxílio de

outros personagens secundários – seu mordomo Toombes, a empregada doméstica Ethel –

para que estes possam lhe iluminar a respeito dos caminhos que deve tomar para que produza

um livro de qualidade respeitável. Mas nada surte o efeito esperado, e ele continua julgando

fazer piada da realidade. Continuando a escrever a saga de Amelia Earnshawe de forma a

retratar a realidade em suas minúcias, o personagem-escritor é, por fim, levado à reflexão por

um corvo falante. Se dá conta, então, que aquele gênero realmente não lhe apetece, o que o

leva a inserir as zombarias dentro de seu próprio texto.

Por fim, na penúltima parte do conto, nos é apresentada a narrativa “fantástica”

desenvolvida pelo protagonista, que agora possui perspectivas distintas graças aos conselhos

do corvo. O novo texto, na verdade, traz Amelia não como uma órfã que lida com o sombrio,

Page 780: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1558

mas como uma dona de casa que está insatisfeita com o comportamento de seu marido. Na

nona e última parte, a narrativa se volta novamente para o protagonista, que parece mais

empolgado do que jamais esteve com os novos rumos de sua história. O conto se encerra com

uma espécie de lembrete de que, apesar da “fantasia” inserida no texto desenvolvido pelo

personagem-escritor, a “realidade” dentro do conto continua como sempre fora.

Havia rostos nas janelas e palavras escritas em sangue; no fundo da cripta,

um ser solitário roía algo que talvez um dia tivesse vivido; raios bifurcavam-

se e lanhavam a noite de ébano; criaturas sem rosto vagavam. Tudo estava

bem no mundo. (p. 46)

As (des)construções

A partir das duas perspectivas apresentadas que se fazem presentes em “Noivas

Proibidas”, é notável o trabalho que foi realizado pelo autor para que se pudesse conceber

uma narrativa que contém outra, sendo que ambas brincam com as concepções de realidade e

ficção. Lembrando que esses trabalhos de desconstrução e construção são simultâneos e

interdependentes – pois só se constrói no mundo ficcional se desconstruirmos a realidade –

faz-se necessário elucidar as questões referentes à conceituação e à apresentação do real e do

fantástico dentro do conto analisado, fundando-se nos atos de fingir e em outros processos

referentes ao imaginário.

Transformando a realidade em fantasia

Romero afirma ser a realidade “aquilo que se nos apresenta com as feições do

verdadeiro, provável, plausível e acreditável” (apud CASTRO, 2007); de tal forma que, em

condições normais, todo o mundo extratextual – no qual vivemos – seria considerado o real.

Sendo o imaginário exatamente a ponte entre esse real e o texto ficcional, o primeiro dos atos

de fingir (seleção) se faz a partir do real, para que com os aspectos colhidos ocorra a

combinação e possa se construir o texto ficcional. Este último seria uma espécie de “mundo

entre parênteses”, já que reuniria apenas alguns traços do plano extratextual.

Se formos perceber esse processo dentro do conto “Noivas Proibidas”, é possível notar

que Gaiman o fez de três maneiras distintas. A primeira delas, para construir a primeira linha

narrativa do conto, foi realizada de modo a dar vida a um mundo o mais distante possível do

real extratextual. Dessa forma, criou-se o plano do conto, um “real” entre parênteses que

Page 781: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1559

responde apenas por essa história. A partir de outro princípio da teoria do imaginário, o como

se, que é possível tomar essa construção como válida. Sobre esse assunto, Iser afirma:

Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário se

transforma em como se. [...] também a realidade representada no texto não

deve ser tomada como tal; ela é a referência de algo que ela não é, mesmo se

este algo se torna representável por ela. (ISER in LIMA, 2002, p. 973)

De tal modo, compreende-se que o mundo representado por Gaiman não é

propriamente real, mas que se apresenta como se o fosse para que a intenção do texto se

cumpra. O objetivo, inicialmente, é criar um plano que seja tão diferente do extratextual que

cause certa estranheza ao ser introduzido. É possível notar essa intencionalidade, em especial,

a partir do processo de seleção (Idem, 2002, p. 983), no qual Gaiman destaca os aspectos que

mais induzem ao diverso, ao fantástico e sombrio.

Da mesma forma, todos os relacionamentos intratextuais criados no conto a partir do

processo da combinação se mostram com o intuito de fazer o leitor questionar as regras

vigentes daquele mundo ficcional. Iser afirma que a combinação baseia-se nas revelações

entre diferenças e semelhanças, e este jogo fica bastante claro na forma como as ações dos

personagens são apresentadas. O mordomo Toombes, por exemplo, surge no primeiro plano

da narrativa fazendo o que se espera de qualquer mordomo – escutar os resmungos de seu

patrão e sugerir alguma atitude que julgue coerente. Porém, se retira do recinto após receber

as ordens de “alimentar a tia Agatha”, as quais só foram dadas depois de ser ouvido um uivo

“sombrio e lancinante” – implicando que tia Agatha é, na verdade, algum tipo de monstro.

Parece característico de Gaiman nesse conto apresentar sempre aquilo que há de “normal” ou

de “real” dentro da história para, logo após, desconstruir essas semelhanças com o mundo

extratextual a partir de traços completamente diferentes daqueles que esperamos.

O segundo mundo entre parênteses

A segunda maneira como o autor realiza o processo citado no tópico anterior parece

constar como uma maneira de reafirmar a primeira. Não tanto uma desconstrução, mas o

protagonista do conto tenta copiar seu “real” para dentro de sua literatura, resultando num ato

que não o satisfaz. É possível até pensar que isso ocorre pois não se pode fazer literatura

apenas como uma cópia da realidade, mas faz-se necessário selecionar, combinar aquilo que

Page 782: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1560

se julgue adequado de forma a construir um novo mundo – o qual, certamente, não existe;

mas é autossuficiente para o seu respectivo fim.

Ao tentar ignorar essas etapas para a construção de sua narrativa, o protagonista do

conto cria um efeito deveras interessante: os relacionamentos criados a partir da combinação

dentro do seu texto são bastante semelhantes àqueles feitos pelo imaginário configurado por

Gaiman para a narrativa principal de “Noivas Proibidas”. Com intenções opostas – Gaiman, a

de criar um mundo notavelmente distinto do seu; o protagonista do conto, a de copiar sua

realidade – eles acabam por chegar à uma organização textual e à uma configuração de

imaginários curiosamente parecidas.

A tentativa do protagonista, de transferir inteiramente sua realidade para dentro da

história que cria, pode ser ligada ao conceito de mimeses, por querer fazer de sua obra uma

fonte imaculada de realismo. Sobre este aspecto, Compagnon diz:

A mimèses faz passar a convenção por natureza. Pretensa imitação da

realidade, tendendo a ocultar o objeto imitante em proveito do objeto

imitado, ela está tradicionalmente associada ao realismo (COMPAGNON,

1999, p. 106 – grifo do autor)

Porém, Iser destaca que a ficção nunca é idêntica àquilo que representa, e é

exatamente deste desacerto que surge o espaço para o imaginário fluir como mensageiro entre

a ficção e a realidade que a inspira. Nesta dinâmica, entende-se realidade e ficção não como

opostos naturais, mas como conceitos interdependentes que se completam mutuamente. É

função do imaginário transgredir os limites de ambas, ao mesmo tempo que realiza um

intercâmbio de informações entre elas (CASTRO, 2007).

Levando em conta estas ligações, nota-se que o protagonista de “Noivas Proibidas”

tenta evitar com que esse imaginário exista, pois deseja estabelecer uma igualdade impossível

entre realidade e ficção. A tentativa resulta inútil, causando a citada frustração com seus

escritos e a consequente criação de uma nova narrativa – esta, fugindo dos padrões

cristalizados no protagonista.

A criação final

Esta nova narrativa, a última criada no conto, dista do modelo citado no tópico anterior

e se aproxima mais dos atos de fingir do primeiro plano do conto. Os processos utilizados até

agora com intuito de construir um mundo fantástico são suspensos em função da criação de

Page 783: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1561

um plano que se aproxime mais da realidade do leitor - mas que, ao mesmo tempo, se

distancie o máximo da realidade criada por Gaiman dentro do conto. Apesar desse terceiro

mundo criado ser bastante semelhante ao que chamamos realidade, não deve ser tomado como

tal; continua sendo apenas um sistema fictício manifesto no texto. Iser afirma que "o mundo

do texto, construído pela intencionalidade e pelo relacionamento, não é idêntico ao do

contexto, de onde se tiraram seus elementos." (in LIMA, 2002, p. 975)

É curioso notar que os processos – realizados pelo protagonista do conto para a

construção dessa última narrativa – são agora bastante semelhantes àqueles que Gaiman

cumpriu para a formação do primeiro plano narrativo de "Noivas Proibidas". Mas, diferente

do que ocorreu com o produto da primeira narrativa desenvolvida pelo protagonista-autor, o

resultado desta segunda é um oposto do resultado de Gaiman. Com o intuito de fazer

"fantasia", o protagonista realiza a seleção de forma a dar vida a um universo que destoe de

sua realidade - embora essa criação nos pareça completamente comum.

Seguindo o mesmo raciocínio apresentado nos tópicos anteriores em relação à criação

da primeira linha narrativa do conto, o protagonista realiza uma seleção que permite a criação

de um sistema longe de sua realidade - intenção que fica clara pois "esta [a seleção] é

governada apenas por uma escolha feita pelo autor nos sistemas contextuais, através de seu

ato de tematização de mundo." (ISER in LIMA, 2002, p. 962)

Iser se refere aos relacionamentos criados pelo ato da combinação como "fact from

fiction" (in LIMA, 2002, p. 965), e nessa narrativa o seu caráter de faticidade aparece muito

mais forte. Isso se dá pelo fato do autor (neste caso, o autor-personagem) chamar de fantasia

aquilo que nos aparenta ser realidade, causando um choque entre a expectativa do leitor e o

produto apresentado. Ainda sobre esse assunto, Iser afirma que a faticidade dos

relacionamentos "não se funda no que é, mas naquilo que por ele se origina" (in LIMA, 2002,

p. 965) – por dar origem a uma fantasia que nos é real, com base na dinâmica de

diferenças/semelhanças da combinação, essa faticidade se faz mais concreta.

Reconhecimento da ficcionalidade

Quanto ao último dos atos de fingir de Iser, o desnudamento da ficcionalidade, faz-se

necessário analisar todas as suas ocorrências de uma só vez. Sobre o desnudamento, Iser

declara:

É característico da literatura, em sentido lato, que se dá a conhecer como

Page 784: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1562

ficcional, a partir de um repertório de signos, assim assinalando que é

literatura e algo diverso da realidade. Normalmente, no entanto, os diversos

signos ficcionais não indicam que por eles se opera uma oposição à

realidade [...] (ISER in LIMA, 2002, p. 969).

Essa oposição, de fato, não é apontada na primeira linha narrativa do conto. Gaiman

nos apresenta um personagem ansioso por escrever literatura, sendo este um habitante de um

mundo macabro que sabemos ser ficcional - mas que é tomado como plausível para atribuir

sentido àquilo que se lê. O leitor reconhece, no entanto, que o texto é um fingimento;

resultando na atribuição do caráter de "como se" da literatura.

Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário

se transforma em um como se. O por entre parênteses explicita que todos os

critérios naturais quanto a este mundo representado estão suspensos. [...]

Esses critérios naturais são postos entre parênteses pelo como se. (ISER in

LIMA, 2002, p. 973 - grifo do autor)

Ao apresentar as narrativas desenvolvidas pelo protagonista do conto, porém, se

chama a atenção para o fato de que elas não são verídicas pelo próprio contexto do plano

narrativo do protagonista que escreve. Ao se queixar dos resultados que obtém e também por

alterar ao seu bel-prazer os rumos da história, o protagonista-autor deixa claro o caráter de

ficção das outras partes do conto.

Apesar de ser característico do texto ficcional, o desnudamento da ficcionalidade da

forma apresentada por Iser acaba por só se realizar de forma mais convencional naquilo que

tange o primeiro plano narrativo de "Noivas Proibidas". Pelo fato do próprio conto destacar o

caráter de "história criada" das outras narrativas apresentadas - bem como por ser necessário

que se aceite esse aspecto para o entendimento da história - esse ato de fingir é diminuído por

Gaiman na construção da narrativa.

Conclusão

A forma como foi construído o conto analisado é de uma engenhosidade tal que se torna

impossível esgotar sua análise. Enquanto este artigo debruçou-se sobre o imaginário ficcional

do texto, a forma como cada ato de fingir se manifestou na obra, há tantas outras faces da

mesma literatura que são passíveis de – e aguardam por – um estudo detalhado.

Mas, após a análise dos aspectos contidos neste trabalho, é possível notar a

complexidade daquilo que tange qualquer gênero literário. A fantasia, não sendo menor que

Page 785: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1563

nenhum outro, também conta com essa organização singular. Mais ainda, “Noivas Proibidas”

mostra opiniões peculiares – ora ácidas, ora distorcidas – a respeito do modo como se encara

os diversos gêneros literários. Essas opiniões, obviamente, não estão lá por acaso: são a

manifestação dos relacionamentos intratextuais, surgidos da seleção e da combinação.

O estudo tanto dos atos de fingir como do imaginário ficcional nos permite perceber

essa face dos textos literários, a forma pela qual se organiza cada um deles. E, acima de tudo,

nos mostra que a literatura não é feita por acaso: sempre há uma intenção que leva ao início

das transgressões (dentro do texto) de limites impostos pela realidade.

Referências

AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

CASTRO, Sandra de Pádua. O imaginário na construção da realidade e do texto ficcional.

Belo Horizonte: Txt, v. 5, 2007. Disponível em http://

www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/revistatxt5/sandraartigo.html - Acesso em 14 de março de

2014.

COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. 6. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2001.

GAIMAN, Neil. Noivas Proibidas dos Escravos Sem Rosto na Casa Secreta da Noite do

Temível Desejo. In: Coisas Frágeis 2. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010. pp. 33-46.

GONSALVES, Elisa Pereira. Conversa sobre iniciação à pesquisa científica. 4. ed.

Campinas, SP: Alínea, 2007.

ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz

Costa. Teoria da literatura em suas fontes, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2002. pp. 955-987.

ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: O imaginário e os conceitos-chave

da época. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes, vol. 2. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002. pp. 927-953.

SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos: Ensaios sobre dependência cultural. 2.

ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

Page 786: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

Nas fronteiras da linguagem ǀ 1564

GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE

CONTEXTUALIZAÇÃO NO ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO

MOVIMENTO OCUPE ESTELITA [Voltar para Sumário]

Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)

Introdução

O movimento popular Ocupe Estelita surgiu em reação ao projeto imobiliário

denominado Novo Recife, que prevê a construção de edifícios residenciais e comerciais no

bairro histórico de São José da cidade do Recife (PE). O movimento, impulsionado e

coordenado pelo grupo popular Direitos Urbanos, busca questionar a legitimidade do projeto

Novo Recife. Inspirado em outros movimentos de ocupação, o Ocupe Estelita ganhou

visibilidade à medida que as negociações e trâmites para a implantação do Novo Recife

avançaram. Buscamos, neste trabalho específico, analisar a atuação do Movimento no

ambiente online Facebook sob a hipótese de que esta atuação discursiva constrói contextos

comunicativos e contribui para a notoriedade do Movimento.

No mês de junho de 2014 a relação entre o Movimento e outras mídias se tornou

especialmente tensa devido à tentativa de início das obras de demolição dos armazéns do cais

e subsequente ocupação do espaço por integrantes e simpatizantes do Movimento. Por isso,

examinamos a produção discursiva do Movimento entre maio e junho de 2014, por

compreender este como um momento crucial na formação do Ocupe Estelita e sua identidade

como grupo atuante na questão. Buscamos, especificamente, compreender como o

Movimento constrói uma representação de si e do outro (grupos antagônicos), através do

emprego de certos gêneros textuais e discursivos.

Pensamos ainda a importância do próprio ambiente internet nessa conjuntura, como

ambiente que proporciona uma pluralização de vozes atuantes frente ao monopólio de mídias

tradicionais sobre a produção e divulgação da informação. Mídias sociais como o Facebook

proporcionam um suporte para diferentes atores e produtores de discursos e informações ao

mesmo tempo em que permitem o fomento de novas práticas discursivas. Porém, o ambiente

Page 787: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 1565

internet não pode ser visto como espaço de total liberdade, sendo ele também produto humano

resultado de certa conjuntura social e histórica (SILVA SOBRINHO, 2011).

Incialmente discutiremos questões teóricas que dão apoio para as análises e orientam a

investigação das hipóteses de trabalho. Em primeiro lugar, repensamos o conceito de contexto

e como ele vem sendo tratado e explorado para explicar fenômenos da interação comunicativa

em diferentes tradições linguísticas. A partir disso, exploramos a reconceituação do contexto

como um construto sociocognitivo e discursivo a partir das reflexões propostas por Van Dijk

(2012) que abre a possibilidade para uma atuação mais contundente por parte dos atores

sociais engajados em atividades discursivas. Em seguida, aprofundamos a reflexão sobre o

papel do gênero textual/discursivo e sua relação constitutiva com o(s) contexto(s) em

situações comunicativas. Em um segundo momento, apresentamos a análise das postagens

realizadas pelo Movimento em sua página de Facebook, a fim de verificar esses eixos teóricos

em funcionamento.

Repensando a noção central de “contexto”

O contexto vem sendo explorado nas ciências da linguagem como grande responsável

pelo sentido “real” das produções discursivo-linguísticas. Tanto na Pragmática, que se baseia

nessa premissa para estabelecer-se como uma parte essencial da Linguística, quanto na

Sociolinguística, o papel do contexto é preponderante. Contudo, argumentamos com Van Dijk

(2012) que essa importância ou atribuição dada ao contexto parte de um pressuposto

questionável: de que haveria um contexto real e objetivo a ser identificado, levado em

consideração ou desvendado. Além disso, esse suposto contexto, visto normalmente como um

conjunto de categorias objetivas a serem observadas e apreendidas pelos participantes, seria

dado a priori, estabelecido e posto antes mesmo de que a situação comunicativa se instaure de

fato.

A partir do marco da análise crítica sociocognitiva que orienta a análise deste trabalho,

a noção de modelos mentais postulada por Van Dijk (2010; 2012) ajuda a explicar a

construção de conhecimento, e como cada indivíduo pode adotar perspectivas diferentes

acerca de um mesmo evento. Isto por que os modelos mentais, segundo a definição de Van

Dijk (2012, p. 92):

não representam objetivamente os eventos de que fala o discurso, mas antes a

maneira como os usuários da língua interpretam ou constroem cada um a seu modo

Page 788: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 789: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 790: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 791: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 792: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 793: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 794: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 795: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 796: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 797: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 798: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 799: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 800: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 801: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 802: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 803: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 804: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 805: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 806: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 807: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 808: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 809: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 810: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 811: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 812: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 813: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 814: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 815: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 816: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 817: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 818: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 819: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 820: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 821: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 822: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 823: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 824: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 825: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 826: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 827: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 828: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 829: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 830: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 831: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 832: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 833: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 834: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 835: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 836: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 837: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 838: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 839: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 840: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 841: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 842: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 843: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 844: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 845: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 846: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 847: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 848: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 849: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 850: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 851: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 852: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 853: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 854: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 855: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 856: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 857: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 858: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 859: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 860: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 861: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 862: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 863: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 864: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 865: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 866: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 867: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 868: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 869: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 870: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 871: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 872: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 873: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 874: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 875: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 876: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 877: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 878: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 879: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 880: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 881: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 882: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 883: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 884: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 885: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 886: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 887: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 888: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 889: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 890: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 891: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 892: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 893: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 894: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 895: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 896: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 897: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 898: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 899: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 900: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 901: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 902: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 903: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 904: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 905: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 906: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 907: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 908: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 909: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 910: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 911: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 912: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 913: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 914: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 915: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 916: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 917: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 918: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 919: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 920: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 921: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 922: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 923: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 924: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 925: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 926: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 927: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao
Page 928: Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao