uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários

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Este livro apresenta um repertório de textos que documentam a passagem da chamada antiga literatura para a literatura moderna, no período que vai do final do século XVII até a início do século XX. Nesta fase, consolida-se uma mudança da noção de letras para o conceito de literatura, que podemos chamar de "Uma ideia moderna de literatura". A prática das letras deixou de ser regulada pela legislação da gramática, da retórica e da poética para se tornar uma criação subjetiva, manifestação gratuita do belo, expressão individual de sentimento e de sensibilidade. Esta é uma obra recomendada a todos que desejam compreender a evolução da literatura num conceito amplo e moderno.

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Chapecó, 2011

Uma ideia moderna de literaturatextos seminais para os estudos literários (1688-1922)

Roberto Acízelo de Souza (Org.)

Page 4: Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários

ReitorOdilon Luiz Poli

Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e ExtensãoMaria Luiza de Souza Lajús

Vice-Reitor de Planejamento e DesenvolvimentoClaudio Alcides Jacoski

Vice-Reitor de AdministraçãoSady Mazzioni

Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto SensuRicardo Rezer

Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó

Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi – Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141(49) 3321 8218 – [email protected] – www.unochapeco.edu.br/argos

Conselho EditorialRosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente), César da Silva Camargo, Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato, Maria Luiza de Souza Lajús, Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski

Coordenadora Maria Assunta Busato

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

801 Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudosU48u literários (1688-1922) / Roberto Acízelo de Souza

(organizador). – Chapecó, SC : Argos, 2011.639 p. (Didáticos ; 2)

Contém textos traduzidos. ISBN: 978-85-7897-024-6

1. Literatura – Teoria. 2. Literatura moderna – História e crítica. I. Souza, Roberto Acízelo de. II. Título. III. Série.

CDD 801

Catalogação elaborada por Caroline Miotto CRB 14/1178Biblioteca Central da Unochapecó

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Apresentação

A reflexão ontológicaGiambattista VicoDa metafísica poética, que nos dá a origem da poesia (1725)

Alexander Gottlieb BaumgartenMeditações filosóficas sobre alguns tópicos referentes à essência do poema (1735)

Edmund BurkeUma investigação filosófica acerca da origem de nossas ideias sobre o sublime e o belo (1757)

Johann Gottfried HerderPoesia, língua e terra natal (1767)

Johann Christoph Friedrich von SchillerCartas sobre a educação estética da humanidade (1795)

Novalis [Georg Friedrich Philipp von Hardenberg]Miscelânea de observações (1798)Fragmentos logológicos (1798)Poesia (1798?)

José Bonifácio de Andrada e SilvaHeresias literárias (data não apurada)Fragmentos: sobre autores, livros e leituras (datas não apuradas)

Johann Christian Friedrich HölderlinPoesia, filosofia, nação e antiguidade (1798-1801?)

William WordsworthPrefácio [à segunda edição das Baladas líricas] (1800)

Madame de Staël [Anne Louise Germaine Necker Staël-Holstein]Literatura e instituições sociais (1800)Sobre as literaturas do norte e do meio-dia (1800)Sobre a poesia clássica e sobre a poesia romântica (1810)

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Sumário

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François-René de ChateaubriandPoética do cristianismo (1802)

William BlakeO gênio, a imitação e o particular (1808?)

Samuel Taylor ColeridgeImaginação, poema e poesia (1817)

John KeatsVida de sensações (1817-1818)

William Hazlitt Sobre a poesia em geral (1818)

Giacomo LeopardiLiteratura, poesia e filosofia (1821)

Percy Bysshe ShelleyUma defesa da poesia (1821)

Johann Wolfgang von GoetheOriginalidade (1825)Poesia e universalismo (1827)Poesia e história (1827)Poesia e originalidade (1828)Clássico e romântico I (1829)Clássico e romântico II (1830)Poesia e política (1832)

Alessandro Francesco Tommaso ManzoniDo romance histórico (1828-1829)

Thomas CarlyleSímbolos (1831)

John Stuart MillO que é poesia? (1833)

Vissarion Grigoryevich BelinskiSobre o significado da palavra “literatura” (1841)

Vicente Fidel LópezClassicismo e romantismo (1842)

Ralph Waldo EmersonO poeta (1844)

Manuel Antônio Álvares de AzevedoA poesia, o belo e o sublime (1848)

Friedrich Engels e Karl Heinrich MarxLiteratura mundial (1848)

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Bartolomé MitrePor uma república poética (1854)

Charles BaudelaireA imaginação (1859)

Domingos José Gonçalves de Magalhães Influências da poesia na ordem social (1859)

Gabriel René-MorenoPoesia e política na América (1864)

George Eliot [Mary Ann Evans]Observações sobre a forma em arte (1868)

Francesco Saverio De SanctisA nova literatura: o romantismo (1871)

Emile ZolaO romance experimental (1880)

Tristão de Alencar Araripe JúniorEstilo tropical (1888)

Oscar Fingal O’Flahertie WildeA decadência da mentira [diálogo] (1889)

Étienne [Stéphane] MallarméO livro, instrumento espiritual (1895)

Leon Nicolaievitch Tolstói O que é a arte? (1898)

José Veríssimo Dias de MatosQue é literatura? (1900)

Raimundo de Farias BritoA psicologia e a arte (1914)

Valentin Louis Georges Eugène Marcel ProustA obra de arte em busca do tempo perdido (1907-1922)

O sistema das artesImmanuel Kant O sistema das artes, o gênio e o gosto (1790)

Raul d’Ávila PompeiaAs sensações e a evolução do sistema das artes (1888)

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A questão dos gênerosFriedrich Wilhelm Joseph Ritter von SchellingOs gêneros poéticos (1802-1803)

Arthur Schopenhauer Sobre a arte poética (1820)

Georg Wilhelm Friedrich HegelPoesia e prosa (1820)

Victor-Marie HugoPrefácio [ao Cromwell] (1827)

Ferdinand Vincent-de-Paul Marie BrunetièreA evolução dos gêneros na história da literatura (1889)

A consciência artesanalHonoré de BalzacHistória, sociedade e romance (1842)

João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett O drama, o romance e a missão do poeta (1843)

Gustave FlaubertO fanatismo da arte (1846-1875)

Edgar Allan PoeO princípio poético (1848)

Joaquim de SousândradePoema e dilema: pensamento/forma; inteligência/natureza; individualidade/imperfeição; nacional/estrangeiro (1876/1877)

Robert Lewis [Louis] Balfour StevensonObservação sobre o realismo (1883)

Anton Pavlovitch Tchékhov A literatura: seu artesanato, sua crítica, suas funções (1883-1890)

Henry JamesA arte da ficção (1884)

Henri-René-Albert-Guy de MaupassantEstudo sobre o romance (1887)

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A reflexão metodológicaCharles PerraultParalelo entre os Antigos e os Modernos (1688)

David HumeDo padrão do gosto (1741)

Denis DiderotDos autores e dos críticos (1773)

Esteban de ArteagaIntrodução [às Investigações filosóficas sobre a beleza ideal] (1789)

Immanuel Kant Analítica do belo (1790)

Karl Wilhelm Friedrich von SchlegelIntrodução [à História da literatura europeia] (1803-1804)

August Wilhelm von SchlegelA crítica, entre a história e a teoria da arte (1809)

Karl Heinrich MarxDesenvolvimento social e desenvolvimento artístico (1857)O ser social e a determinação da consciência (1859)

Antônio Joaquim de Macedo SoaresDa crítica brasileira (1860)

Charles-Augustin Sainte-BeuveSobre o meu método (1862)

Hippolyte Adolphe TaineIntrodução [à História da literatura inglesa] (1863)

Matthew ArnoldA função da crítica na atualidade (1864)

Joaquim Maria Machado de AssisO ideal do crítico (1865)

Walter Horatio PaterA função da crítica estética (1873)

Friedrich Wilhelm NietzscheO nosso conhecimento da arte (1871)

Marcelino Menéndez PelayoUm programa para o estudo da literatura espanhola (1878)

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Wilhelm DiltheyPoética e historicidade (1887)

François Élie Jules Lemaître A crítica como empatia e exercício intelectual egotista (1887)

Anatole France [Jacques Anatole François Thibault] Sobre a subjetividade radical da crítica (1888)

Émile Hennequin A crítica científica (1888)

Guilherme Moniz BarretoA crítica (1888)

Gustave LansonPrefácio [à História da literatura francesa] (1894)

Miguel de Unamuno y JugoSobre a erudição e a crítica (1905)

José Enrique RodóO ensino da literatura (1908)

Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos RomeroDa crítica e sua exata definição (1909)

A análise retóricaHugh BlairOrigem e natureza da linguagem figurada (1783)

Pierre FontanierAs figuras do discurso em geral (1821)

Richard Whately Introdução [aos Elementos de retórica] (1828)

Miguel do Sacramento Lopes Gama Da imitação (1851)

Henry Noble DaySobre a competência e as relações da retórica (1867)

Sobre o organizador

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Apresentação

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Embora se constitua hoje em presença pra-ticamente obrigatória nos currículos univer-sitários de letras, em nível de graduação e de pós-graduação, a teoria da literatura só alcan-çou esse status entre nós em data relativamente recente. Assim, enquanto a história da literatura nacional constitui disciplina desde a implantação desses cursos no Brasil, na década de 1930, o en-sino autônomo e sistemático de teoria da litera-tura se inicia na universidade brasileira somente em meados da década de 1960.

Essa falta de tradição mais sólida no nosso meio universitário talvez seja responsável pela insuficiência dos materiais disponíveis para aces-so ao campo da disciplina. Para uma avaliação sumária dessas fontes de estudo, podemos distri-buí-las em quatro classes.

A primeira é composta pelos manuais uni-versitários, de um modo geral prejudicados tan-to pela rápida obsolescência a que por definição permanecem sujeitos quanto pelo tratamento por demais esquemático das questões que costuma ca-racterizá-los, contrariando assim a índole especu-lativa e problematizante da disciplina. A segunda é integrada pelos estudos monográficos, natural-mente inadequados para uma visão de conjunto dos núcleos conceituais da especialidade, antes pressupondo tal visão. A terceira é representada pelos textos básicos, que, além de dispersos, ra-ramente são passíveis de identificação, reunião e contextualização imediatas por parte dos interes-sados, em particular daqueles que pretendem uma iniciação na área. Por fim, a quarta classe configu-ra-se nas antologias de textos básicos, entre nós bastante escassas, além de às vezes assinaladas pe-lo recorte de fragmentos de extensão mínima, o que lhes compromete a representatividade e mes-mo, em alguns casos, a própria inteligibilidade.

Considerando que os problemas apontados nas três primeiras classes parecem insanáveis, já que inerentes à própria natureza dos materiais pertencentes a cada uma delas, e que a quarta apresenta virtualidades até o momento pouco exploradas, pelo menos no Brasil, julgamos per-tinente organizar um repertório de textos fun-damentais para o estabelecimento do universo conceitual da disciplina, textos via de regra atual-mente conhecidos entre nós só de referência ou, quando muito, através de paráfrases diluidoras. O amplo universo de escolha, contudo, recomendou um corte cronológico, o que nos conduziu a res-tringir o âmbito da seleção ao período compre-endido entre fins do século XVII e início do XX, partindo-se do pressuposto de que nesse lapso de tempo se delineia e se consolida o que podería-mos chamar uma ideia moderna de literatura.

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Convém esclarecer, no entanto, que o qualifi-cativo “moderno”, aplicado ao conceito “literatu-ra”, num certo sentido implica uma redundância. É que, até em torno do século XVIII, enquanto a palavra “literatura” conservou sua acepção eti-mológica latina, significando, pois, habilidade de ler e escrever, bem como, por extensão, cultura alcançada mediante o exercício dessa habilidade, as produções escritas não se tinham unificado sob um conceito genérico.

Usavam-se assim, desde a Antiguidade, para designar os discursos escritos, os termos “poesia” e “prosa” e, mais tarde, a partir da Idade Média, as expressões “letras humanas”, “letras divinas” e “boas letras”, bem como uma extensa nomencla-tura relativa a espécies particulares de textos em verso ou em prosa, como ode, idílio, égloga, epo-peia, tragédia, epístola, fábula, sermão, novela etc. Não havia desse modo propriamente a literatura,

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mas diversos discursos heterogêneos legitimados basicamente por sua utilidade, evidente e exclu-siva no caso de textos destinados a instruir ou a moralizar – por exemplo, um tratado de direito e uma biografia de santo –, putativa e associada à propiciação de uma espécie de deleite intelectual, no caso de composições como poemas e peças dramáticas.

A partir do século XVIII, porém, a legiti-mação pela utilidade começa a enfraquecer-se, à medida que, por uma complexa convergência de fatores, conceptualiza-se a distinção entre as esferas da razão e da sensibilidade. Com isso, passa a ser atribuída a competências específicas a configuração de cada uma dessas experiências nos discursos escritos: à filosofia e à ciência ca-be dar expressão verbal à razão, ao passo que às belas-letras compete expressar a sensibilidade. A designação “belas-letras”, no entanto, então surgi-da para designar certa parcela dos discursos ver-bais escritos individualizada a partir de critérios estéticos e não mais utilitaristas, perde terreno com rapidez, sendo logo mais ou menos preteri-da em favor do termo “literatura”, que, a partir do século XIX, passa a ser tomado não mais na sua antiga acepção latina, mas, em sentido moderno, como nome que unifica os gêneros da palavra ar-tística: o lírico, o épico e o dramático.

Por outro lado, a prática das letras, até en-tão integralmente submetida à legislação in-tercomplementar da gramática, da retórica e da poética – artes no sentido antigo, isto é, ha-bilidades, perícias, técnicas, ofícios específicos coletivamente passíveis de ensino e de apren-dizagem –, tem uma de suas vertentes – aquela dita “belas-letras” e logo “literatura”, constituída pelas manifestações líricas, épicas e dramáticas – reconcebida como arte no sentido moderno, isto é, não mais atividade útil devidamente regulada, mas criação subjetiva, manifestação gratuita do belo, expressão individual do complexo formado pelas faculdades do sentimento, da percepção e da sensibilidade. Em outros termos, uma parce-la das letras desloca-se da alçada de disciplinas antigas – gramática, retórica e poética – para o

domínio de saberes emergentes na modernidade: primeiro, no século XVIII, para a jurisdição da estética, especialidade filosófica aspirante a au-tonomia disciplinar; depois, no século XIX, para a esfera da história literária – com seus matizes biográfico, sociológico e filológico –, circunscri-ção dos estudos históricos interessada num ob-jeto particular, a cultura literária de cada nação; por fim, também no século XIX, para a compe-tência da crítica literária, praticada não como na tradição clássica (basicamente, verificação da autenticidade e do valor de textos mediante aferição do grau de sua conformidade a cânones de regras previamente fixadas), mas como livre exercício do gosto individual, mais ou menos las-treado por critérios intersubjetivos.

No entanto, embora o conceito “literatura” tenha sido construído nos tempos modernos, como vimos, o fato é que logo seria ele retroa-tivamente aplicado às produções antemodernas em geral, tornando-se assim uma concepção trans-histórica. Isso justifica, por conseguin-te, o título que atribuímos à presente antologia, livrando-o portanto do defeito de redundân-cia, pelo qual, sob certa perspectiva, poderia ser questionado.

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Sobre o conceito “moderno”, ainda que já sumariamente justificada sua presença em nosso título, julgamos conveniente algumas observa-ções concisas.

Surgido no latim da Alta Idade Média (se en-contra atestado no século VI), o adjetivo moder-nus provém do advérbio modo, que literalmente significa “agora mesmo”, “neste instante”, segun-do o mesmo paradigma que explica a formação da palavra hodiernus a partir do advérbio hodie, “hoje”. Mantinha relação de antonímia com anti-quus, adjetivo por sua vez derivado do advérbio ante, isto é, “anteriormente”, “dantes”, “outrora”.

Por muito tempo, assim, o par de conceitos polares antigo/moderno, aplicado à segmentação

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Apresentação 15

da história, conservou significação estável: “anti-go” dizia respeito à Antiguidade greco-latina, ao passo que “moderno” referia-se à fase histórica posterior à extinção política do Império Romano do Ocidente.

Sem que essa acepção perdesse a vigência, desenvolveu-se uma outra, que passou a coexis-tir com ela: “moderno” torna-se aplicável então à Renascença, em função do sentimento de que, como decorrência de turning points de forte im-pacto, como a invenção da imprensa e a desco-berta da América, o tempo presente – modernus, isto é, relativo ao “agora mesmo”, modo – pare-cia romper profundamente com um passado de atraso e ignorância. É basicamente com esse sig-nificado que o conceito circula na controvérsia cultural ocorrida na passagem do século XVII para o XVIII na França – conhecida como “Que-relle des Anciens et des Modernes”, rótulo-síntese mais tarde consagrado pela historiografia literá-ria –, alcançando certa repercussão na Inglaterra, como atesta The battle of the books, versão satíri-ca da polêmica, publicada por Jonathan Swift em 1704. Fundamentalmente, tanto no espaço fran-cês quanto no britânico tratava-se de uma disputa sobre os méritos das letras greco-latinas em rela-ção às letras vernáculas europeias desenvolvidas a partir da Idade Média e consolidadas no Renasci-mento, divididas as opiniões entre uma corrente que pregava a superioridade da cultura literária greco-latina ou antiga e outra que acreditava na preeminência da produção expressa nos idiomas nacionais, isto é, a produção moderna.

De novo, sem se perderem os sentidos já cristalizados, um terceiro viria a definir-se, se-gundo o qual “moderno” se aplicaria à época que se estende do Renascimento a fins do século XVIII, tomada a Revolução Francesa como mar-co inaugural simbólico do que veio a chamar-se “idade contemporânea”, o tempo presente, por conseguinte, vivenciado como distinto não só da idade antiga, mas também da própria idade mo-derna.

Embora a introdução do conceito de “con-temporâneo” potencialmente significasse o des-

credenciamento da noção de “moderno” como equivalente de “atual” ou “mais avançado”, o fato é que, na passagem do século XIX para o XX, novamente um sentimento de satisfação com o presente e orientação para e pelo futuro, dessa vez especialmente circunscrito ao setor da cria-ção artística, reabilitaria o adjetivo “moderno” como apto a qualificar a atualidade, atribuin-do-lhe um novo conteúdo conceitual. Um seu derivado – “modernismo” – passa então a de-signar um movimento no terreno das artes, vocacionado para o experimentalismo e para a ruptura com padrões taxados de acadêmicos ou tradicionais. E como do movimento logo se transitou para a demarcação de um período, na-turalmente se prefigurava uma futura dificul-dade terminológica, pois, encerrada uma fase dita “modernista”, que assim se transformaria em passado, como continuar empregando o ad-jetivo “moderno” para qualificá-la? Ao mesmo tempo, que termo se poderia aplicar à nova atu-alidade, isto é, ao período seu sucessor, ao novo “agora” – modo –, senão o adjetivo “moderno”, o que implicaria uma ambiguidade intolerável?

Bem, esse o mal-estar terminológico que nos acomete já faz algum tempo, quando se percebe a superação do modernismo. A solução é bastan-te conhecida e se baseia numa espécie de desse-mantização do termo, ou, talvez melhor, em algo parecido com o que a retórica chamava catacrese, isto é, o emprego abusivo de uma palavra, numa acepção distanciada do seu sentido etimológi-co. Eis o que explica o recurso à expressão “pós-moderno”, em princípio um absurdo semântico, que, no entanto, se justifica segundo a figura de linguagem referida; com isso, por convenção consentida, “moderno”, não obstante sua signi-ficação originária de estilo próprio de “agora”, passa a designar um estilo de “antes” (ante), isto é, “antigo” (antiquus), enquanto que, correlativa-mente, para o estilo da atualidade, recorremos à expressão “pós-moderno”, abstraindo-nos do contrassenso semântico aí implicado, pois, pelo menos em princípio, a atualidade não poderia ser predicada como algo que se situa cronologica-mente depois dela.

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Uma ideia moderna de literatura16

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Mas esse não é o nosso ponto aqui; volte-mos, pois, ao que nos interessa, à luz do resumo apresentado acerca dos acidentes que perfizeram a carreira do conceito “moderno”.

Tomamos a palavra, nesta antologia, como atributo de certa concepção de literatura que rompe com a noção clássica das letras, bem co-mo com suas reciclagens medievais e neoclássi-cas (isto é, renascentistas, barrocas e arcádicas). Nesse sentido, a ideia moderna de literatura des-ponta já na primeira metade do século XVIII, no âmbito do iluminismo, com prelúdios datáveis de fins do século XVII, configurados na “Querelle des Anciens e des Modernes”, desenvolvendo-se e firmando-se no século XIX, no embalo do romantismo e seus desdobramentos – ditos rea-lismo, naturalismo, simbolismo –, para alcançar enfim as primeiras décadas do século XX, quan-do então, radicalizada, parece atingir o seu termo ao suscitar as experiências das vanguardas, con-fluentes na noção de modernismo.

Nesse período de pouco mais de dois sécu-los – de Perrault a Proust, segundo as balizas da nossa seleção –, convivem dois princípios anta-gônicos e concorrentes relativos ao conceito de literatura. Vejamos duas manifestações paradig-máticas de cada um deles, devidas respectiva-mente a Novalis e a Flaubert:

A arte de escrever livros ainda não foi inventa-da. Está porém a ponto de ser inventada. Frag-mentos desta espécie são sementes literárias. Pode sem dúvida haver muito grão mouco en-tre eles: mas contanto que alguns brotem!1

Trabalha, medita, medita acima de tudo, con-densa teu pensamento, sabes que os belos frag-mentos não são nada. A unidade, a unidade, tudo aí está! O conjunto, eis o que falta a todos de hoje, tanto nos grandes quanto nos peque-nos. Mil passagens bonitas, mas não uma obra.

1 Novalis [Friedrich von Hardenberg]. Pólen: fragmentos, diá-logos, monólogo. Tradução, apresentação e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 2001. p. 92.

Cerra o teu estilo, faz um tecido mais leve que a seda e forte como uma cota de malha.2

Talvez não seja arbitrário situar nesse anta-gonismo em relação às virtualidades da noção de fragmento uma síntese da encruzilhada vivida ao longo desse período que instala a modernida-de no âmbito estético. Num primeiro momento, prevalece claramente a posição aqui represen-tada na passagem de Flaubert, fundamento que afinal suscitou alturas artísticas dificilmente igualáveis: as grandes composições da música oi-tocentista, que lograram fazer da pura abstração uma espécie de apoteose racional do sensível; o romance, que, pela via da expansão analítica, er-gueu e meditou mundos históricos e sociais; a pintura, que fez o mesmo, pelo caminho das sín-teses figurativas; a lírica, que ultrapassou a mera egolatria em direção à profundidade reflexiva. Se vale a constatação, à hegemonia da “unidade” e do “conjunto” – para ficarmos com os termos flau-bertianos – segue-se a valorização do “fragmen-to”, promovida pelo modernismo: desenvolve-se a música atonal, prospera a narrativa não linear, a pintura torna-se antifigurativa, a poesia dissolve o verso e incorpora experiências antilíricas.

Tão profunda é essa reconcepção da ideia de arte representada pela ruptura modernista que podemos suspeitar ter sido o modernismo simul-taneamente a consumação e a ultrapassagem da modernidade estética. Nossa antologia reflete essa hipótese ao propor certo percurso da concepção moderna de literatura que, partindo de proposi-ções situadas na aurora do iluminismo, se encerra em pronunciamentos do início do século XX ain-da não comprometidos com a onda vanguardista.

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Os ensaios aqui reunidos foram selecionados não segundo um princípio exclusivo, mas con-

2 Flaubert, Gustave. Correspondance: première série (1830-1846). Nouvelle édition augmentée. Paris: Louis Conard, 1926. p. 375- -376.

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Apresentação 17

forme um amálgama de critérios. Assim, além da qualidade e da representatividade, levamos em conta a diversidade de origem, procurando manter no conjunto um relativo equilíbrio entre as especialidades dos autores escolhidos, razão por que se contemplam contribuições de poetas e ficcionistas, de filósofos, de retóricos e de his-toriadores e críticos literários. Do mesmo modo, buscamos acolher todas as grandes tradições li-terárias linguístico-nacionais, a fim de assegurar a presença de cada uma delas de acordo com a proporcionalidade possível. Diferentemente, por conseguinte, do que se verifica em obras congê-neres de procedência inglesa ou norte-americana (caso dos mais numerosos e melhores repertó-rios hoje disponíveis) – restritas a originais ingle-ses e a traduções para a língua inglesa de textos franceses, alemães, italianos e russos, permane-cendo assim, numa demonstração de ignorân-cia ou preconceito, inteiramente alheias a toda a produção do mundo ibérico –, aqui também se incluem, por razões óbvias, ensaios brasileiros, portugueses, espanhóis e hispano-americanos.

Não obstante a diversidade referida, deve-se assinalar, no entanto, que naturalmente todos os textos convergem num ponto, já que são todos percorridos, com ênfases variadas, pela mesma constante temática: a questão do conceito de li-teratura, na sua correlação com o problema do objeto, do método e dos procedimentos analí-ticos no campo dos estudos literários. No caso sobretudo da contribuição dos filósofos – e se-cundariamente também no caso daquela devida aos retóricos –, isso exigiu um cuidado especial: recortar passagens em que não só sobressaíssem traços marcantes do sistema do autor em causa, mas também em que não se perdesse de vista a referência explícita e direta à literatura, determi-nações mais ou menos contraditórias que nem sempre foram muito fáceis de conciliar.

Também de modo distinto do que se obser-va em obras concebidas com o mesmo objetivo, que não apresentam princípio ordenador nítido e coerente, ou agrupam os textos pelos critérios da cronologia, da procedência nacional dos au-

tores, dos temas ou das correntes de pensamen-to a que supostamente se filiam – critérios, pois, ora automáticos e mecânicos, ora arbitrários e idiossincráticos –, optamos por distribuir os en-saios segundo núcleos de questões com que pre-dominantemente se ocupam. Isso nos permitiu ordená-los em seções mais ou menos homogê-neas, distribuindo-os em ordem cronológica no interior de cada uma delas. Dividimos assim a antologia em seis segmentos: o primeiro – “A reflexão ontológica” – reúne ensaios dedicados a formular ou analisar concepções de literatura, empenhados, portanto, em discussões relativas ao modo de ser da arte literária; o segundo – “O sistema das artes” – acolhe estudos sobre o lugar da literatura nas classificações estéticas das ma-nifestações artísticas; o terceiro – “A questão dos gêneros” – agrupa textos consagrados a investi-gar os conceitos de lírico, narrativo e dramático; o quarto – “A consciência artesanal” – contém es-peculações sobre os processos técnicos do fazer literário; o quinto – “A reflexão metodológica” – compreende proposições sobre os fundamentos teóricos, os métodos e as divisões disciplinares dos estudos literários; o sexto e último – “A aná-lise retórica” – engloba indagações relacionáveis à literatura formuladas no âmbito de tratados re-tóricos que podemos considerar pós-clássicos, à medida que empreendem um esforço de conser-vação do tradicionalismo através de concessões à modernidade.

Todos os ensaios acham-se precedidos de uma sumária apresentação do respectivo autor, com ênfase na sua formação intelectual. Evitamos incursões analíticas nos textos ou comentários a seu respeito, procedimento que, na hipótese de descrição neutra, implicaria redundância, ao pas-so que, se pretendesse algo mais, representaria in-dução dos leitores a certa compreensão, quando o melhor é deixar por conta de cada um a cons-trução da sua própria, dada a riqueza conceitual dos ensaios selecionados. No caso dos filósofos, considerando a mencionada necessidade de uma articulação entre suas reflexões sobre literatura e o seu respectivo sistema, nem sempre suficiente-mente clara nas passagens selecionadas, tivemos

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Uma ideia moderna de literatura18

de nos estender um pouco mais, a fim de mini-mamente esboçar as linhas gerais do universo de conceitos característico de cada um deles.

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No caso dos ensaios originalmente escritos em língua estrangeira, em geral utilizamos tradu-ções já disponíveis, com umas poucas exceções, em que nos pareceu melhor providenciar novas traduções. Com isso, aproveitamos inclusive al-gumas traduções por assim dizer “históricas”, co-mo a de Chateaubriand assinada por Camilo Castelo Branco, publicada em 1897, e a de Oscar Wilde, devida a João do Rio e datada de 1912.

Evitaram-se sistematicamente traduções de traduções, pela óbvia razão de que tal procedi-mento constitui causa potencial de distorções conceituais. Foge a essa regra apenas o ensaio de August Schlegel, traduzido do francês, conside-rando a circunstância informada no “Avertisse-ment” que abre a edição-fonte:

O Sr. A. W. Schlegel, não sabendo se existe já uma tradução francesa do seu Curso de litera-tura dramática, sentiu-se no dever de declarar que esta foi empreendida segundo seu desejo, revista em parte por ele mesmo, e que é a única que reconhece como autêntica, e com base na qual consente ser julgado.3

As traduções especialmente preparadas para figurar nesta antologia observaram como critério geral o princípio da literalidade, eliminando-se assim o recurso a versões mais ou menos para-frásticas, a fim de se conservarem no texto tradu-zido, com a maior fidelidade possível, as relações conceituais estabelecidas no original. Isso não neutralizou, naturalmente, o empenho de con-formá-las à naturalidade da língua portuguesa, mediante minuciosa revisão estilística, visando a reduzir, tanto quanto possível, vestígios lexicais

3 Cours de littérature dramatique. Paris; Genève: J. J. Paschoud, 1814. v. 1. p. não numerada.

e sintáticos do idioma de origem. Por outro la-do, de modo a não comprometer a historicida-de dos conceitos, dispensou-se atenção especial ao vocabulário de época, buscando-se cuidado-samente equivalências em português aptas à sua integral preservação.

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Para o estabelecimento dos textos, obtidos sempre em edições confiáveis, observaram-se os seguintes critérios:

- procedeu-se à atualização da ortografia e corrigiram-se erros tipográficos evidentes;

- supressões de parágrafos foram sinalizadas com linha pontilhada;

- indicaram-se com reticências entre colche-tes cortes de trechos no interior dos parágrafos;

- títulos gerais e intertítulos foram, como re-gra, conservados; houve casos, no entanto, em que os títulos foram atribuídos pelo organizador, intervenções devidamente explicitadas em notas;

- utilizaram-se quatro categorias de notas: dos autores, todas conservadas na íntegra [N.A.]; das edições-fonte (aí compreendidas as dos edi-tores e as dos tradutores), reproduzidas apenas aquelas julgadas pertinentes [N.E.F.]; do tradutor [N.T.]; e do organizador [N.O.]. No caso das três primeiras modalidades, indicou-se a respectiva natureza no final de cada uma, entre colchetes; no caso das notas do organizador, as mais nu-merosas, como regra, dispensou-se a indicação, exceção feita para aquelas inseridas entre colche-tes no interior de outras notas;

- notas do organizador foram utilizadas em geral para elucidações factuais. Não tendo sido, como é compreensível, muito seguro e automá-tico decidir sobre passagens que as justificas-sem, decidimos antes pecar por excesso do que por omissões. Desculpamo-nos assim por notas eventualmente desnecessárias, empenhadas em explicar talvez o óbvio. De qualquer forma, bus-camos sempre redigi-las do modo mais funcio-nal e conciso que nos foi possível.

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A reflexão ontológica

Giambattista VICO(Nápoles, 1688-1744)

Não obstante a erudição seiscentista, um tanto extravagante para os padrões que se impuse-ram no século XVIII, é considerado o fundador da moderna filosofia da história. Adversário do car-tesianismo, concebeu a história como construção inteligível, à medida que é produto da ação huma-na, ao contrário da natureza, criada por Deus, e como tal só por Ele compreensível. Central no seu sistema é a ideia de que todas as nações cumprem um ciclo recorrente de três idades sucessivas – a divina, a heroica e a humana –, cuja consumação propicia sempre o começo de um novo ciclo em que as mesmas três idades inexoravelmente se su-cederão. Como nas idades divina e heroica vigo-raria uma “sabedoria poética”, caracterizada pelo desenvolvimento da faculdade primordial da “fan-tasia”, sua obra figura entre as primeiras contribui-ções constitutivas de um ramo da filosofia que, a partir de Baumgarten, se tornaria conhecido pelo nome de estética. Pouco valorizado enquanto vi-veu, seu pensamento seria objeto de retomadas a partir do século XIX, fecundando especialmente as reflexões de Michelet, Coleridge e Croce.

Da metafísica poética, que nos dá a origem da poesia*

(1725)

Seria a partir de tais homens, assim estúpi-dos, insensatos e horrivelmente apalermados,

que todos os filósofos e filólogos deveriam co-meçar suas reflexões a respeito da sabedoria dos primeiros Gentios. O que equivale a dizer que deveriam tratar desses gigantes, até agora to-mados em sua acepção literal, porém já o padre Boulduc,1 De Ecclesia ante Legem...,2 afirma que os nomes de gigantes, nos li vros sagrados, devem compreender-se como “homens pios, ve-neráveis, ilustres”. Ora, isso não se pode compre-ender senão referido aos gigantes nobres, que, atra vés das adivinhações, fundaram as religiões dos Gentios e emprestaram o seu nome para a idade dos gigantes. E teriam que começar pela metafísica, justamente aquela que vai retirar as suas provas não mais de fora, mas de dentro das modifi cações da própria mente de quem a exco-gita. Isso porque este mundo das nações certa-mente foi feito por homens, nos quais se hão de encontrar os princípios dele [mundo de nações].3 Ora, a natureza humana, enquanto comum [no que respeita à animalidade] às bestas feras, traz consigo esta propriedade: que os sentidos sejam as únicas vias mediante as quais ela [natureza animal dos homens] conhece as coisas.

Temos, portanto, que a sabedoria poética, que foi a primeira forma de sabedo ria da gen-tilidade, precisou começar de uma metafísica, não racional e abstrata (qual a dos nossos dou-trinadores), mas sentida e imaginada (qual deve ter sido a dos tais homens primevos, já que eles não dispunham de raciocínio algum e eram ape-nas robustos sentidos e vigorosíssimas fantasias,

1 Trata-se de Jacques (?) Boulduc (1575-1650?), em De Ecclesia ante Legem Libri Tres, London, 1626. [...] [N. T.].

2 Sobre a Igreja perante a lei.3 Os trechos entre colchetes constituem interpolações do tradu-

tor, visando a contornar dificuldades de tradução decorrentes da riqueza e de certo arcaísmo de linguagem característicos do original.

* In: Princípios de (uma) ciência nova: acerca da natureza co-mum das nações. Seleção, tradução e notas do Prof. Dr. Antônio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 75-80. Título abreviado pelo organizador; texto integral da pri-meira parte (1. Da metafísica poética, que nos dá as origens da poesia, da idolatria, das adivinhações e dos sacrifícios), [Capítu-lo] II (Da metafísica poética), Livro II (Da sabedoria poética) dos Princípios de (uma) ciência nova. Direitos exclusivos sobre a tradução deste volume Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo.

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como ficou dito nas Dignida des4). Esta foi pa-ra eles a própria poesia, que para eles constituiu uma faculdade que lhes era conatural (dotados que eram de tais sentidos e de tais fantasias), pro-vinda de uma ignorância de razões, sendo-lhes a matriz de maravilharem-se de todas as coisas. E eles, justamente por ignorantes de todas essas coisas, forte mente se encantavam delas, como fi-cou dito nas Dignidades.

Tal poesia começou neles por ser divina, pois, ao mesmo tempo que eles imaginavam as razões das coisas, contemporaneamente as sen-tiam e admiravam como divinas, como já vimos nas Dignidades, abonados em Lactân cio.5 O que agora o confirmamos através dos americanos, que chamam “deuses” a todas as coisas que su-peram a sua modesta capacidade. E acrescenta-remos tam bém os germanos antigos, habitantes da região junto ao mar gelado, dos quais Tácito6 conta que afirmavam poder ouvir o Sol, em plena noite, já que aquele pas sava pelo mar, no Orien-te, assim como também afirmavam ver os deuses.

Note-se que tais nações, muito rudes e simpló-rias, fazem-nos compreender muito mais a res-peito dos autores da gentilidade. Elas, ademais, conferiam às coisas admira das a condição enti-tativa de suas próprias ideias, o que corresponde à natureza das crianças, que, como dissemos nu-ma Dignidade, observamos tomarem nas mãos coisas inanimadas e recrearem-se e conversarem com elas como se fossem pessoas vivas.

Desse modo, os primeiros homens das na-ções gentílicas, quais infantes do nascente gênero humano, como os caracterizamos nas Dignida-des, cria vam, a partir de sua ideia, as coisas, mas num modo infinitamente diverso daquele de Deus. Pois Deus, em seu puríssimo entendimen-to, conhece e, conhecendo-as, cria as coisas. Já as crianças, em sua robusta ignorância, o fazem por decorrência de uma corpulentíssima fantasia. E

4 Termo com que Vico designa seus aforismos ou axiomas. 5 Lucius Caelius Firmianus Lactancius (240-320 d.C.), professor

de retórica e apologeta cristão latino.6 Publius Caius Cornelius Tacitus (55-120 d.C.), historiador e fi-

lósofo latino.

o fazem com uma maravilhosa sublimidade, ta-manha e tão considerável que perturbava, em excesso, a esses mesmos que, fin gindo, as forja-vam para si, pelo que foram chamados “poetas”, que, no grego, é o mesmo que “criadores”. Eis, de resto, as três tarefas que deve cumprir a grande poesia: inventar sublimes fábulas, adequadas ao entendimento popular, e como vê-lo ao máximo, para, ao fim e ao cabo, atingir o fim que a si pró-prio se prefi xou, qual o de ensinar o povo a agir virtuosamente, na mesma forma pela qual eles a si próprios se ensinaram, como iremos agora demonstrar. E dessa natureza das coisas huma-nas resultou esta eterna propriedade, explicitada por Tácito, com nobilíssima expressão: que os homens, fantasticamente aterrorizados, fingunt simul creduntque.7

Dotados de tal natureza devem ter-se reco-nhecido os primeiros autores da humanidade pagã quando – duzentos anos depois do dilúvio para o resto do mundo, e cem na Mesopotâmia, conforme se viu num postulado (pois tanto tem-po se requereu para que a terra atingisse aquela situação de, ressecada da umidade8 da universal inundação, poder exalar, já seca, matérias ígneas para os ares, e assim ali gerar os raios) – o céu finalmente relampejou, reboou com trovões e raios terríficos, como convinha para introduzir no ar, pela vez pri meira, uma impressão de tal forma violenta.

Ali alguns poucos gigantes, por força os mais robustos, havendo-se disper sado pelos bosques localizados nos cimos das montanhas, e dado que feras mais robustas instalaram em tal sítio os seus covis, eles próprios, terrificados e aturdi dos pelo grande efeito, cuja razão desconheciam, al-çaram para o céu, que só então perceberam. E, dado que em tal caso a natureza da mente huma-na leva a tomar a natureza pelo seu efeito, como dissemos nas Dignidades, sendo que a natureza deles era, em tal estado, de homens, constituída

7 “Supunham e, ao mesmo tempo, acreditavam”.8 Na edição-fonte, “humanidade”; corrigimos, na suposição de

erro.

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A reflexão ontológica | Giambattista VICO 21

tão só de robustíssimas forças do corpo, que a ur-rar e a murmurar, explicitavam suas violentíssi-mas paixões; imaginativamente cogitaram que o céu fosse um formidável corpo animado. E por tal prisma chamaram Júpiter, primeiro deus das gentes chamadas “maiores”, o qual, com o silvo dos raios e o fragor dos trovões, [imaginaram] lhes quisesse dizer alguma coisa. E começaram, dessa forma, a pôr em exercício a sua natural curiosidade, filha da ignorância e mãe da ciên-cia, e que engendra, com o despertar da men-te que provoca, a estupefação, como se viu nos Elementos por nós defini da. Uma tal natureza é ainda pertinaz no vulgo, pois, ao verem um co-meta ou o parélio,9 ou outra coisa não habitual na natureza, e, de modo específico, no aspecto do céu, imediatamente descaem na curiosidade, e, numa ansiosa indagação, perguntam-se o que possa significar tal coisa, como explicitamos nu-ma Dignidade. E, sempre que admiram os estu-pendos efeitos do ímã sobre o ferro, nessa mesma idade mais advertida e bem mais esclarecida pe-las filosofias, ainda asseveram: que o ímã teria uma oculta simpatia pelo ferro, convertendo, por tal modo, toda a natureza em um vasto corpo animado, que sente paixões e afetos, conforme nas Dignidades também se viu.

Mas, da mesma maneira pela qual agora – e isso graças à natureza de nos sas mentes huma-nas, muito afastada dos sentidos até no próprio povo, pelas mui tas abstrações de que estão reple-tas as línguas, e tornada bastante sutil, com a ar-te de escrever, e como que espiritualizada com a prática dos números, que vulgari zada está pelos cômputos e pelos cálculos – é-nos defeso forjar a enorme ima gem de tal mulher a que chamam “Natureza simpatética” (pois, enquanto pronun-ciam com a boca, nada têm na mente, dado que a mente deles braceja no falso, que nada é, nem se veem socorridos já pela fantasia, de modo a po-derem formar dela uma vastíssima imagem fic-cional), assim também agora nos é naturalmente defeso poder penetrar na vasta imaginativa da-

9 Meteoro luminoso que se mostra juntamente com o halo, e as-sim parece multiplicar a imagem do sol.

queles homens primevos, cujas men tes em na-da eram abstratas, em nada refinadas, de forma alguma espiritualizadas, pois jaziam completa-mente imersas nos sentidos, totalmente embota-das pelas pai xões, todas sepultadas nos corpos. Por isso foi que dissemos que agora ape nas se poderá entender, mas jamais imaginar, como pensavam os primeiros ho mens que fundaram a humanidade gentílica.

Foi dessa maneira que os primeiros poetas teólogos elaboraram ficcional mente para si a pri-meira fábula divina, a maior de quantas cons-truíram depois. E foi Júpiter essa fábula, rei e pai dos homens e dos deuses, sempre na postura [de deus] tonante. E foi uma fábula tão popular, per-turbante e ilustrativa que eles próprios que a for-jaram nela creram, mediante terríficas religiões, que, segundo iremos logo demonstrar, todas o temeram, o reverenciaram e lhe respeitaram as prescrições. E, por aquela propriedade da razão humana que nas Dignidades vimos advertida por Tácito, tais homens tudo quanto viam ima-ginavam e até mesmo eles próprios faziam, acre-ditaram ser Júpiter. E a todo o universo de que se aperceberam assim como a todas as partes desse mesmo universo concederam o caráter entitativo de substância animada. Eis a história civil daque-la expressão:

... Iovis omnia plena,10

que, a seguir, Platão tomou pelo éter, que penetra e enche tudo.11 Para os poetas teólogos, porém (como logo veremos), Júpiter não estava mais al-to do que os cimos dos montes.

(continua...)

10 “Tudo está repleto de Júpiter.” A expressão é de Vergílio: Bucó-lica, III, 60. [N.T.].

11 Para fugirmos a um anacronismo, qual seja de pospor Platão a Vergílio, temos que admitir acreditasse Vico ser muito antiga a expressão recolhida por Vergílio. Pertenceria ela a uma lon-geva tradição do mundo antigo. Sublinhe-se também [...] que Vico adota, de modo forçado, um passo platônico do Crátilo. [N.T.].

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Argos EditorA dA UnochApEcó

títuloUma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922)

organizadorRoberto Acízelo de Souza

coleçãoDidáticos

coordenadoraMaria Assunta Busato

Assistente editorialAlexsandro Stumpf

Assistente de vendasNeli Ferrari

secretariaAlexandra Fatima Lopes de Souza

divulgação, distribuição e vendasNeli Ferrari, Eduardo Weschenfelder, Luana Paula Biazus,Renan Claus Alves de Souza

projeto gráfico e capa da coleçãoAlexsandro Stumpf

capaAlexsandro Stumpf diagramação Alexsandro Stumpf, Caroline Kirschner, Sara Raquel Heffel

preparaçãoCarlos Pace Dori, Araceli Pimentel Godinho

revisãoCarlos Pace Dori, Araceli Pimentel Godinho, Lúcia Lovato Leiria,Cristiane Santana dos Santos

dados técnicosFormato: 16x23Tipologia: Minion Pro entre 8,5 e 15 pontos Papel: offset 80gNúmero de páginas: 639Tiragem: 800 Publicação: junho de 2011

impressão e acabamentoGráfica e Editora Pallotti – Santa Maria (RS)

www.unochapeco.edu.br/argos

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Sobre o organizador

Roberto Acízelo de Souza

É licenciado em letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição onde é professor titular de literatura brasileira, tendo também lecionado teoria da literatura na Universidade Fede-ral Fluminense, de 1976 a 2002. É doutor em teoria da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e realizou estudos de pós-doutorado na Universidade de São Paulo. Entre seus princi-pais trabalhos publicados � guram Teoria da literatura (1986 [10.ed. em 2007]), Formação da teoria da literatura (1987), O império da eloqüência: retórica e poética no Brasil oitocentista (1999), Inicia-ção aos estudos literários: objetos, disciplinas, instrumentos (2006) e Introdução à historiogra� a da literatura brasileira (2007). Organizou ainda duas edições anotadas de trabalhos do historiador e crítico romântico Joaquim Norberto – História da literatura brasileira (2002) e Crítica reunida: 1850-1892 (2005), esta em colaboração com José Américo Miranda e Maria Eunice Moreira –, bem como uma edição dos ensaios sobre história literária nacional de Fernandes Pinheiro: Histo-riogra� a da literatura brasileira: textos inaugurais (2007).

Este livro está à venda:

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