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Estudos Literários e Educação Florianópolis - 2013 Rosana Kamita Período

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Estudos Literários e Educação

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Estudos Literários e Educação

Florianópolis - 2013

Rosana Kamita7ºPeríodo

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Governo FederalPresidência da RepúblicaMinistério de EducaçãoSecretaria de Ensino a DistânciaCoordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil

Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane NeckelVice-reitora: Lúcia Helena Martins Pacheco Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade E Inclusão: SecadiSecretária: Cláudia Pereira DutraPró-reitora de Ensino de Graduação: Roselane Fátima CamposPró-reitora de Pós-Graduação: Joana Maria Pedro Pró-reitor de Pesquisa: Jamil AssreuyPró-reitor de Extensão: Edison da RosaPró-reitora de Planejamento e Orçamento: Beatriz Augusto de Paiva Pró-reitor de Administração: Antônio Carlos Montezuma Brito Pró-reitora de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei Diretor do Centro de Comunicação e Expressão: Felício Wessling MargottiDiretor do Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor da Unidade de Ensino: Felício Wessling MarguttiChefe do Departamento: Rosana Cássia KamitaCoordenadora de Curso: Sandra QuarezemimCoordenador de Tutoria: Josias HackCoordenação Pedagógica: Cristiane Lazzarotto Volcão

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosSilvia Inês Coneglian Carrilho de VasconcelosCristiane Lazzarotto Volcão

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Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Coordenação: Ariane GirondiDesigner Instrucional: Daiana AcordiDiagramação: Raquel Darelli Michelon

Tamira Silva SpanholCapa: Raquel Darelli MichelonTratamento de Imagem: Raquel Darelli Michelon

Tamira Silva SpanholIlustração: Kamilla Santos de Souza

Copyright © 2013, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância

Ficha Catalográfica.

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária daUniversidade Federal de Santa Catarina

K15e Kamita, Rosana Cássia Estudos literários e educação : 7º período / Rosana Kamita. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2013. 104p. : il. , grafs., tabs.

Inclui bibliografia UFSC. Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância 1. Literatura – Estudo e ensino. 2. Literatura – História e crítica. 3. Leitura. 4. Interesses na leitura. I. Título. CDU: 82:37

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Sumário

Unidade A ............................................................................................ 91 Gêneros Literários ........................................................................................11

1.1 Gênero narrativo: o romance ........................................................................17

1.2 O gênero dramático .........................................................................................32

1.3 O gênero lírico....................................................................................................36

Unidade B ...........................................................................................472 O Leitor Literário ...........................................................................................49

2.1 Crítica Literária Feminista: Mulher e Literatura ......................................52

2.2 Cânone.................................................................................................................60

2.3 Literatura afro-descendente .........................................................................62

Unidade C ...........................................................................................673 Literatura e outras linguagens ................................................................69

3.1 Intertextualidade ..............................................................................................73

3.2 Literatura e Cinema ..........................................................................................74

3.3 Literatura e Música ...........................................................................................84

3.4 Literatura e Quadrinhos .................................................................................87

3.5 Literatura e Novas Tecnologias nos processos educativos ................93

Palavras Finais ...................................................................................99

Referências ...................................................................................... 101

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Apresentação

São vários os desafios para os profissionais de Letras, um deles é, além

de se dedicar para aproveitar ao máximo os conteúdos estudados, não

perder de vista o prazer da leitura. Apreciar a literatura é condição

imprescindível para quem terá com seus alunos o compromisso de auxiliar na

trajetória que será empreendida por eles. Todo o nosso empenho em apresen-

tar as principais questões relacionadas à literatura tem por objetivo que vocês

possam aproveitar ainda melhor os textos literários, estabelecendo uma visão

mais aprofundada sobre questões estéticas e políticas que envolvem o processo

de construção e recepção da literatura.

Estamos nós também escrevendo nossa história no processo ensino-aprendi-

zagem. Agora daremos mais um passo nessa direção, destacando os estudos li-

terários na prática docente, com análise de manifestações em textos narrativos,

poesias e também enfatizando o texto dramático. Outra questão relevante a

ser tratada é a que se refere à formação do leitor literário, contemplando ainda

a crítica literária feminista e a perspectiva da literatura afro-descendente. Na

última unidade do livro enfocamos as relações entre a literatura e outras lin-

guagens, como o cinema, a música e a história em quadrinhos, além de enfocar

a literatura e as novas tecnologias no processo educativo.

A intenção é a de consolidar o conhecimento de assuntos já vistos e apresen-

tar novos enfoques sobre algumas dessas temáticas. Será, portanto, mais uma

oportunidade de retomar conceitos discutidos e avançar em relação a eles, tan-

to no que se refere às questões apresentadas neste livro quanto às várias suges-

tões de leitura ao final de cada unidade.

Saliento que não pretendo esgotar os temas aqui abordados, este material é um

direcionamento de estudos e não deve jamais se constituir em única fonte de

referências. O trabalho com a literatura exige comprometimento e interesse,

são séculos de tradição e tentativas de sistematização de estudos, portanto,

não basta apreciar literatura, mas tentar compreendê-la em toda a sua riqueza,

limitações e ambiguidades.

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O universo literário é vasto é bastante sedutor, mas exige empenho e pesquisa

para que se ultrapasse sua superfície e, através do estudo da teoria, da críti-

ca e da história literárias, sejamos capazes de melhor compreender e apreciar

as obras literárias. Além da literatura como fruição, devemos pensá-la ainda

como objeto de trabalho docente. E, se talvez não tivermos boas lembranças

do ensino da literatura em nossos tempos de escola, devemos ter em mente que

agora possuímos, ao menos em parte, a capacidade de modificar esse cenário.

Digo em parte porque reconheço as limitações da atividade docente, o quanto

as bibliotecas das escolas carecem de acervo literário atualizado e de quali-

dade e como a rotina de várias horas de trabalho em sala de aula e o número

de alunos por turma podem pesar negativamente. Mas haverá sempre aqueles

que estarão esperando um estímulo, que gostariam de ler mais, de ampliar seus

conhecimentos sobre literatura e a formação do professor pode ser um fator

decisivo. Os assuntos tratados colaboram para sua formação e o conhecimento

adquirido servirá como base na qual vocês poderão alicerçar suas aulas.

Rosana Kamita

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Unidade A

Comédia e tragédia

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Capítulo 01Gêneros Literários

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Nesta unidade destacaremos os gêneros literários sob a perspectiva da prática docente. Assim, ofereceremos uma base teórica na qual os principais gêneros literários são apresentados e também estabelecere-mos um diálogo com as possibilidades de trabalho com os textos lite-rários em sala de aula, considerando as potencialidades de cada gênero, suas especificidades e hibridismos.

Gêneros Literários

Etimologicamente, a palavra gênero deriva do latim genus, ge-neris e remete à ideia de origem. Yves Stalloni em sua obra Os gêneros literários (1997) destaca que o termo se aproxima da concepção de “raça” ou “tronco”, esclarecendo que seu uso não se restringe à litera-tura, uma vez que a gramática, por exemplo, também dele se utiliza. No decorrer do tempo, houve um desvio semântico, encaminhando--se no sentido de “reagrupamento de indivíduos ou de objetos que apresentem entre eles características comuns”.

Não se constitui prerrogativa da literatura esse perfil taxonômico ao buscar uma organização das obras, pois outras manifestações tam-bém o fazem, como a pintura e a música. A teoria dos gêneros literá-rios trabalha no campo da análise de características e classificação dos modos de criação. Os critérios para essa abordagem sofrerão variações dependendo do tempo e do espaço e a ênfase poderá recair sobre dife-rentes aspectos, temáticos, estilísticos, formais, dentre outros.

A Arte Poética de Aristóteles foi obra primordial a enfatizar a diferenciação entre os gêneros literários. Ao longo dos séculos eles foram considerados, analisados e estudados sob diversos pris-mas, e, assim como a própria literatura, seu enfoque é dinâmico e encontra-se em constante processo de mudança. Reconhecer pre-viamente as características de determinados gêneros é uma possi-bilidade de interação entre o criador do texto literário e seu leitor, pois torna possível estabelecer expectativas em relação às manifes-

Parte deste texto foi apre-sentada no Cielli.

A Arte Poética, escrita pelo filósofo Aristóteles.

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tações literárias, as quais serão atendidas ou não, mas de qualquer forma cumprindo um papel paradigmático nessa relação. Assim, por exemplo, a tragédia e a comédia eram idealizadas para serem representadas, já em relação à epopeia, como não era escrita vi-sando a este fim, havia a possibilidade de simultaneidade da ação. Datam desse período algumas questões que permaneceram em evi-dência, como a que se refere à hierarquização dos gêneros, assim como sua consideração e transformações.

A preocupação em sistematizar a literatura através de classifi-cações prossegue ao longo do tempo, e após Aristóteles, houve um desfiar de estudos enfocando os gêneros literários. As manifestações literárias eram consideradas a partir de suas qualidades formais e con-ceituais. A divisão por gêneros literários intenciona reunir obras com características formais comuns, teorizando sobre essa classificação, acompanhando as modificações através das diversas manifestações li-terárias nos diferentes gêneros, provocando sua reavaliação constante, percebendo o ocaso de algumas formas e a ascensão de outras, assim como ramificações, subdivisões e limites. Para além de uma aborda-gem preceptiva dos gêneros, interessa destacar suas diferentes pers-pectivas, sua relação como determinados momentos, lugares e temáti-cas, seu uso mais intenso, sua valorização e críticas recebidas.

O que se observa dentre as principais tendências nos estudos sobre os gêneros literários é que até o Romantismo há uma postura voltada a considerar as classificações com mais rigor, de forma tradicionalista e normativa. A partir de então, os gêneros passaram a ser considerados em uma perspectiva que valorizasse a capacidade criativa do escritor. Assim, costuma-se fazer a classificação da classificação, ou seja, consi-derar momentos relevantes sobre a epistemologia dos gêneros. O seu estudo persiste com diferentes enfoques consolidando-se o posiciona-mento de não ser considerado como divisões e subdivisões visando às respectivas definições, mas ensejando o debate sobre o tema.

O século XX apresentou uma intensa discussão sobre os gêne-ros, com a colaboração de diversos teóricos, em abordagens que re-

Nicolas Boileau, crítico e poeta francês do século XIX, inspirado pelas prescrições da boa arte de escrever, imita o clássico de Aristóteles escre-vendo a sua versão de A Arte Poética.

A liberdade guiando o povo, Eu-gène Delacroix. 1830. Óleo sobre tela, 260 x 325 cm. Paris, Museu do Louvre.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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percutem até hoje. O seu aspecto prescritivo e normativo foi, em es-pecial, um dos maiores pontos de discussão, prevalecendo a postura em reconhecer a aproximação e mescla dos gêneros, a dificuldade em estabelecer limites rígidos e a consequente perspectiva mais livre das manifestações literárias.

Dentre os estudos relevantes sobre o tema, destaca-se o de Be-nedetto Croce, representativo daqueles que eram contrários à con-cepção normativa dos gêneros. Croce enfatiza que o leitor levava em conta se os textos literários estavam em conformidade com as convenções dos gêneros, muitas vezes considerando esse critério em detrimento de seu significado, no entanto, para o teórico, o critério do gosto é considerado relevante e contrapõe-se ao autoritarismo formal. Ao analisar a obra em sua individualidade artística, sua pos-tura era a de priorizar o juízo estético.

Enquanto os formalistas tentaram aproximar a questão da lin-guagem à da estilística, mantendo-se coerentes com sua perspecti-va imanente no estudo dos textos literários, Lukács apresenta uma visão diversa e enfoca justamente que os gêneros enquanto princí-pios estéticos estão condicionados por outras instâncias, sociais, históricas, econômicas e culturais. A dimensão histórica é conside-rada fator imprescindível para a sua compreensão, tanto pelo apa-recimento de determinadas formas como pelo desaparecimento ou arrefecimento de outras.

O caráter normativo dos gêneros literários compartilha espaço com uma postura mais descritiva, em busca de uma reflexão sobre as diferentes maneiras como um texto pode ser apresentado. Wel-lek e Warren apontam nesse sentido na obra Teoria da Literatura (1942). A teoria dos gêneros deve acompanhar o processo dinâmi-co que envolve o fazer literário, no qual seus diferentes critérios se-rão continuamente pensados e avaliados. O que se ressalta a partir dos estudos dos gêneros é que, ao mesmo tempo em que podem ser considerados normativos e referenciais, pondera-se também sobre sua dimensão transgressora, reconhecendo que as fronteiras de-

Crítico literário Benedetto Croce lendo.

Fonte, de Marcel Duchamp. 1917.

Georg Lukács, filósofo e crítico literário húngaro, falecido

em 1971.

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limitam, porém podem ser borradas, privilegiando hibridismos e intersecções. Ainda que haja subversão, ela só ocorre a partir de modelos estabelecidos, não se diria ser uma “subversão” se não fos-se considerada a partir de um paradigma. Assim, a teoria dos gê-neros mantém-se como categoria de análise, todavia com um olhar nuançado, não se restringindo a verificar se o texto seguiu ou não determinadas convenções, mas privilegiando as possíveis modifi-cações e suas implicações e a obra como um todo.

Várias foram as contribuições teóricas ao longo do tempo, al-gumas reforçando o conceito clássico em sua tríplice divisão – Épi-co, Lírico e Dramático – outras relativizando a classificação e con-siderando subdivisões. Houve ainda tentativas de compreensão por prismas diferenciados, e ao invés de privilegiar a forma, buscou-se um entendimento dos gêneros pelo viés estilístico, como propôs Emil Staiger. A obra de Staiger, Conceitos Fundamentais da Poéti-ca (1946), ofereceu contribuições relevantes, particularmente pelo fato de considerar os limites e transcendências da classificação dos gêneros literários e entender que não mais caberia a postura re-trógrada de se considerá-los como “modelos” de escrita para boas obras. O hibridismo das formas aparece em suas ponderações, ao refletir sobre a classificação de uma obra como “drama lírico”, por exemplo, drama por ter sido composta visando à representação e lírico pela carga subjetiva que possui. Ele se questiona: “Qual é, aqui, o critério para a determinação do gênero?”. O que se destaca é o fato de Staiger considerar a impossibilidade de uma obra ser puramente lírica, épica ou dramática. Para ele, uma poesia não é exclusivamente lírica, podendo participar em diversos graus e mo-dos de todos os gêneros, e apenas a primazia do lírico nos autoriza a chamar os versos de líricos. Os conceitos relativos ao gênero são questionados nessa obra de maneira a reavaliar as principais postu-ras sobre o assunto até então. Esse é o fator que mais interessa para este texto, reconhecer as várias e relevantes inserções sobre o tema e perceber essas contribuições como integrantes de um amplo e dinâmico painel, que será composto e recomposto continuamente.

Que aproximações pode-ríamos desenvolver entre as obras Otelo de William Shakespeare e Dom Casmur-ro de Machado de Assis?

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Capítulo 01Gêneros Literários

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Muitos autores “desafiam” a classificação tradicional dos gêne-ros. A sistematização dos gêneros literários convive com aspectos que envolvem a criatividade das obras, e, assim como os aspectos teóricos e formais existem como uma espécie de normatização das manifestações literárias, podem ser também um desafio para a sua subversão. A classificação de uma obra em determinado gênero não precisa ser necessariamente aprisionadora, mas possibilita impulsio-nar seus limites, muitas vezes sendo possível estabelecer um jogo por parte do próprio autor, que classifica seu texto tomando por base convenções particulares de gênero, como ocorreu com Mário de An-drade e Macunaíma (1928), apresentada como “rapsódia”.

Ainda que polêmico, o estudo dos gêneros é necessário, pois se constitui em um princípio de reconhecimento da obra, que pode per-mitir compreendê-la dentro de um contexto maior e descrevê-la a par-tir de determinados parâmetros, observando o aspecto dinâmico da apresentação das formas literárias, rupturas com padrões tradicionais, inovações e hibridismos.

Outra questão pertinente em relação aos gêneros literários é a que trata da temática. Na antiguidade clássica havia uma aproxima-ção entre forma e assunto, a tragédia era relacionada a temas ele-

Em Dom Casmurro e os Discos Voadores – mash up literário – a obra de Machado de Assis é reconta-da por Lucio Manfredi, que mistura novos enigmas de ficção científica à trama. O gancho aproveitado por Manfredi é os olhos de ressaca de Capitu, a partir dessa característica o romance ganha um novo arco narrativo. Dom Casmurro e os Discos Voadores faz parte de uma coleção de mash ups pulicados pela editora Lua de Papel, outros títulos como A Escrava Isaura e o Vampiro e O Alienista Caçador de Mutantes fazem parte da lista.

RapsódiaRapsódia (do grego rhapsoi-día; rahapsoidos = declama-dor) era, na Grécia antiga, a recitação de fragmentos de poemas épicos, geralmente homéricos, pelos rapsodos,

poetas ou declamadores am-bulantes, que iam de cidade

em cidade propagando a Ilíada e a Odisséia.

Os rapsodos surgiram, prova-velmente, no século VII a.C.

Não recitavam composições próprias e dispensavam o

acompanhamento de instru-mentos musicais, a lira, por

exemplo.A partir do século XIX, nos

domínios literários a palavra “rapsódia” equivale a compi-lação, numa mesma obra, de temas ou assuntos diferentes e de várias origens (miscelâ-nea). Macunaíma (1928) de Mário de Andrade, constitui

a rapsódia das principais lendas afro-indígenas que

compõem a base do folclóri-co nacional. [Ricardo Sérgio em http://www.recantodas-

letras.com.br]

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Estudos Literários e Educação

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vados, sublimes, enquanto a comédia trabalhava com temas menos nobres e personagens representativos de classes mais populares. De início, o conceito de mimesis pautou as tentativas de compreensão das manifestações literárias. Aristóteles percebia o ser humano do-tado da capacidade de imitar, considerando inclusive o prazer que advém dessa imitação, concluindo que o gênero poético é a concre-tização de diferentes maneiras de imitar, “consoante o caráter moral de cada um”. Os principais gêneros apontados – a epopeia, a poe-sia trágica e a comédia – apresentam três diferenças primordiais: os meios utilizados, os objetos imitados e a forma de imitá-los.

Atualmente a postura é a de compreender as manifestações lite-rárias com liberdade formal e temática, fronteiras borradas entre os diferentes gêneros e subgêneros, e até mesmo uma valorização e reco-nhecimento das obras que apresentem um aspecto original em relação ao já estabelecido, com romances desafiadores de modelos mais tradi-cionais, como, por exemplo, Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade, até as manifestações mais recentes e as suas perspectivas temáticas. Desta-que-se que a “subversão” às delimitações dos gêneros literários não é uma característica da literatura recente, temos romances de diferentes épocas que escapam às simples classificações, como Perto do Coração Selvagem (1944), de Clarice Lispector, Avalovara (1973), de Osman Lins, A Festa (1976), de Ivan Ângelo, dentre outros.

Refletir sobre os gêneros requer manter um olhar bastante abrangente em uma tentativa de captar as matizes e heterogeneida-des próprias de um contexto assim constituído. Alguns pressupos-tos se tornaram referenciais e a breve trajetória ensejada tem por objetivo apresentar as principais contribuições sobre os estudos dos gêneros literários. Não é a intenção aqui proceder a uma análise mais profunda, mas considerar a complexidade que envolve o tema e deli-near seus principais aspectos.

MimesesDo grego mímesis, -eos,

imitação.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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1.1 Gênero narrativo: o romance

O romance, conforme o conhecemos hoje, é um gênero recente e seu surgimento remete a uma aproximação com a epopeia, sem o rigor desta. Ou seja, ele aparece com a chancela de um gênero me-nor, mais simplificado e acessível, sem forma definida ou com várias possibilidades de variedade formal, o que vai depender do enfoque que se deseje adotar.

Assim como se destacou a etimologia da palavra gênero, o ter-mo romance também possui sua história. Recorrendo novamente a Stalloni, o autor explicita que a palavra “romance” surgiu na Idade Média, relacionada a um aspecto linguístico, uma vez que o latim era o equivalente a uma língua erudita, enquanto a língua romana represen-tava a língua falada, “vulgar”. O romance não surge, portanto, como “gênero”, mas relacionado às línguas românicas, designando um tipo de registro em um nível inferior, conforme o autor: “popular, como a obra que ele designa, ela mesma de um nível subalterno”. A origem do termo de certa maneira determinou, subsequentemente, um certo olhar de desconfiança e Stalloni conclui: “o romance sofreria as conse-quências dessa herança desvalorizadora”.

Dentre as principais características de um gênero que se es-quiva de classificações, encontra-se o fato de representar pessoas e situações comuns, sem a grandiosidade épica, e basear-se na ve-rossimilhança, o que o aproxima da ilusão de realidade. Nesse sen-tido, adquire relevância o uso da descrição, uma das formas mais utilizadas para produzir o “efeito do real”, enfatizando o mimetis-mo literário, em especial no século XIX, com as estéticas realista e naturalista, sem, no entanto, restringir-se a elas. No período de transição do surgimento do romance e sua aproximação com a epo-peia, vários estudiosos sobre o romance apontaram para algumas mudanças essenciais em relação ao gênero clássico. Uma delas se refere ao fato de que a nova narrativa apresentava personagens sin-gularizados, com perfis mais complexos.

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O romance é um exemplo desses diferentes aspectos, pois se constitui em uma ramificação do gênero épico, no século XVIII, na Europa, quando se fortaleceu como forma ideal para as manifesta-ções literárias de cunho realista. No Romantismo houve a reavalia-ção da teoria dos gêneros, em especial pelo destaque ao romance, considerado o meio ideal para a veiculação das ideias da época. Foi a partir daí que o romance se estabeleceu na cena literária alternando momentos de maior ou menor evidência, mas sempre como uma das formas literárias referenciais.

A discussão sobre os gêneros literários contou também com a co-laboração de Bakhtin, que procurou considerar as diferentes posturas no período e escreveu, dentre outras obras importantes, Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1975). Suas contribuições ao tema apontam que os gêneros não são categorias em si mesmas ou meras convenções, mas constituem-se em referenciais de existência histórica e por isso variáveis e em constante processo de mutação, pa-gando tributo ao sistema literário em vigor no momento, assim como aparecendo sintonizados com as conjunturas sociais e culturais. Os estudos de Bakhtin foram exponenciais no século XX, principalmente por tratar de maneira mais específica sobre o romance, gênero aqui enfocado. O conceito de polifonia permitiu reconhecer a multiplici-dade de vozes representativas de diferentes espaços sociais e valores culturais, nos quais cada personagem pode expressar ideias diferentes a partir dos lugares que ocupam. Em um romance, vários personagens expressarão suas ideologias, mas há possibilidades em relação à ma-neira como essas expressões se constituirão, ou seja, o resultado pode ser o de uma monofonia, na qual há diferentes vozes, mas elas expres-sam ideais comuns, como se a fonte de suas posturas fosse a mesma; ou uma polifonia, na qual as várias vozes conferem, em alguma me-dida, autonomia de pensamento aos personagens, coincidindo ou não com aquela expressa pelo autor. Nos textos dialógicos, é possível per-ceber o embate de diferentes vozes, representativas do espaço social ao qual pertencem. Já os textos monológicos são aqueles em que as vozes expressam uma espécie de voz única que reverbera em diferentes per-sonagens, de certa maneira uniformizando-os.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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O autor se pauta pela vertente social da linguagem, compreen-dendo a comunicação como um processo que possui nuanças, uma vez que, ainda que seja um texto literário, ele acreditava que esse texto não estaria a serviço apenas do viés estético, mas estabelece-ria outras relações possíveis, políticas e sociais. As vozes presentes nos romances representam, portanto, posturas histórico-sociais, as quais não são necessariamente as do autor, mas é ele o responsável por apresentá-las no texto. Bakhtin apoiou seus estudos na análise dos romances de Dostoievski [Por exemplo, o que Iven Karamázov pensa, em Os Irmãos Karamázov, não é o que pensa Dostoievski; romance Crime e Castigo] e neles reconhecia a polifonia manifestada através da maneira como os personagens faziam parte da sociedade, sua consciência e autoconsciência, expressas através de seus discur-sos em interação com outros enunciados.

Bakhtin pensava o romance como um gênero em constante reno-vação, e se pode compreender sua posição ao apontar que a teoria dos gêneros serve como critério e é constantemente reavaliada a partir das obras produzidas e não o contrário. Ou seja, é a própria produção dos textos literários em suas variadas formas que impulsiona o estudo dos gêneros. O autor alertava que o gênero romance ainda não estava con-solidado e que não era possível prever suas potencialidades e por estar em constante mudança, os temas e formas também se modificariam, assim como os parâmetros de sua leitura e análise.

Além do romance, há outras manifestações literárias que inte-gram o gênero narrativo, como as novelas, os contos e outras nar-rativas breves. O romance Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, por exemplo, o qual estudamos em Literatura Brasileira II, foi escrito a partir de um conto, “Baleia”. Em uma carta do escritor enviada a sua esposa Heloísa, ele registra que escreveu um conto sobre a mor-te de uma cachorra, tentando adivinhar o que se passava na alma do animal, relatando a dificuldade de trabalhar com os sentimen-tos dessa cachorra, que acaba por morrer “desejando acordar num mundo cheio de preás”. Outros capítulos do romance também foram publicados de forma independente, como contos. De maneira geral,

Arte sobre o ro-mance Crime e Castigo,

de Fiódor Dostoievski.

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os capítulos que integram o livro apresentam uma autonomia inter-na, além de se ligarem entre si. A intenção aqui é exemplificar que os gêneros literários servem como referencial para os estudos literários, mas não determinam como uma obra deve ser.

1.1.2 Outros gêneros narrativos

Além do romance, outros gêneros narrativos permitem contar uma história em prosa com narrador e personagens. Dentre essas, destaca-mos a novela, a fábula, o conto e a crônica. A diferença entre os gêneros narrativos pode orientar os textos a serem selecionados para o trabalho docente, de acordo com os objetivos a serem alcançados. Sob o ponto de vista clássico, o gênero romance subentende uma narrativa relativamen-

Os graphics novels – romances gráficos

A partir da década de 1970, principalmente

com a publicação de Um contrato com Deus,

de Will Eisner, os romances gráficos ganharam

narrativas engenhosas, temas “mais sérios”,

inovações na linguagem e no visual dos anti-

gos ‘quadrinhos’. Recentemente, o graphic no-

vell Persépolis, da escritora iraniana Marjani

Satrapi, cai no gosto da crítica e dos leitores-

funcionando como uma injeção de ânimo (e

de vendas) para o “novo gênero literário”.

Há na Academia ainda discussões sobre as engenhosidades deste

“tipo” de literatura. O que se sabe, no entanto, é que não há mais

a intenção do simples narrar, é inevitável que o novo formato dê

origem a novas linguagens a partir da fusão estilística do texto sin-

tético e dos detalhes visuais.

Capa do graphic novel Persepolis, de Marjani Satrapi.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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te longa, com um núcleo principal e núcleos secundários que possuam relações com o núcleo principal. O romance, por ser uma narrativa mais longa, necessitará de várias horas de leitura, que terão de ser realizadas, ao menos em parte, para além do horário da aula. Já um conto, por exemplo, por ser uma narrativa mais breve, com um núcleo narrativo principal, pode ser trabalhado em sala de aula, pois o tempo necessário para sua leitura possibilita esse procedimento. Por isso, geralmente, os romances são recomendados como leitura extra-classe, uma vez que os alunos precisarão de um tempo maior para ler a obra na íntegra.

Conforme antes havíamos destacado, é desafiador trabalhar com capítulos e excertos de romances, que são assim apresentados nos li-vros didáticos e apostilas para se adequarem à proposta desses ma-teriais pedagógicos (não seria viável reproduzir um romance inteiro em uma apostila). Trabalhar apenas com capítulos ou trechos de ro-mances é algo desafiador, difícil, mas não impossível. Dependerá do fragmento selecionado, no sentido de se perceber que, apesar de fazer parte de um todo, ele possui uma autonomia interna, que possibilita sua leitura separadamente. Ainda assim, será sempre necessário esti-mular os alunos para que eles leiam a obra na íntegra.

1.1.2.1 Novela

É complexo partir para uma definição dos gêneros literários, pois os mesmos são dinâmicos, mas precisamos delimitar algumas características que permitam delinear o gênero para melhor compre-endê-lo, juntamente com a ressalva das modificações constantes que ocorrem e o hibridismo de gêneros, que ocorre quando os mesmos se tangenciam e borram suas fronteiras. Algumas especificidades permitem caracterizar o gênero novela. Uma delas é a unidade de ação, ou seja, possui um determinado assunto, em torno do qual a história se constroi. Por isso acaba por se constituir em uma narra-tiva mais curta, possibilitando sua leitura “de um fôlego”. O fato de possuir menos páginas que um romance favorece essa unidade de ação, pois a história acaba se centrando em um acontecimento par-ticular. Ainda nesse sentido da brevidade, as descrições são feitas de

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Estudos Literários e Educação

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maneira mais sintética, favorecendo o desenvolvimento mais rápido do enredo e chegando mais rapidamente ao final.

No livro Os Gêneros Literários, o autor utiliza a definição de novela a partir do dicionário Robert:

Gênero que se pode definir como uma narrativa geralmente breve,

de construção dramática (unidade de ação), apresentando persona-

gens pouco numerosos cuja psicologia é estudada, à medida que re-

agem ao acontecimento que constitui o centro da narrativa. (p. 112)

Pelo verbete anterior se percebe a dificuldade em estabelecer parâmetros rígidos para a definição de um gênero literário. A no-vela acaba por ficar muito próxima ao romance, e há mesmo alguns descompassos nesse sentido, como, por exemplo, o fato de Clarice Lispector considerar seu livro A Hora da Estrela como uma novela, mas ele aparecer classificado como romance em bibliotecas e livra-rias. O que também se destaca é o fato de quase não se utilizar mais essa classificação, ficando todas as narrativas mais longas conside-radas como romances.

1.1.2.2 Fábula

O livro Dicionário de Termos Literários apresenta o verbete “fábula” destacando algumas características:

Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em

razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua es-

trutura dramática. No geral, é protagonizada por animais irracionais,

cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa

transparecer uma alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos seres

humanos. Escrita em versos até o século XVIII, em seguida adotou a

prosa como veículo de expressão.

De longeva origem, talvez oriental, a fábula foi cultivada superiormente

na Antiguidade clássica por Esopo, escravo grego do século VI a.C., e

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Capítulo 01Gêneros Literários

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por Fedro, escritor latino do século I da era cristã. La Fontaine destaca-se

como o mais inventivo dos fabulistas surgidos após a Renascença: as

suas histórias, dadas a lume entre 1668 e 1694, foram largamente tradu-

zidas, aplaudidas e imitadas.

Em vernáculo, a fábula foi apreciada desde a Idade Média, mas apenas

no século XVIII, graças ao exemplo de La Fontaine, entrou em moda; os

árcades portugueses cultivaram-na ora vertendo narrativas estrangeiras,

ora compondo espécimes originais. [...] Entre nós, a fábula começou a

circular no Romantismo; Anastácio Luís do Bomsucesso (Fábulas, 1860),

Coelho Neto (Fabulário, 1907), Monteiro Lobato (Fábulas, 1921), Maximi-

niano Gonçalves (Fabulário, 1950), etc.

[...]. (MOISÉS, 2004, p. 184)

As fábulas tornaram-se uma referência para a literatura infanto--juvenil. Geralmente se apresenta como uma narrativa curta, com per-sonagens que podem ser animais e cujo enredo prepara um desenlace que traz uma moral, implícita ou explícita (nesse caso aparece a “mo-ral da história”). Esse caráter pedagógico da fábula se apresenta como uma das características que provavelmente a tornaram um gênero mais voltado para as crianças, pois essa literatura visa à formação não apenas dos leitores, mas do público infantil em si, o que é considerado um problema, pois a literatura passa a ser utilizada como um meio de “educar” as crianças dentro de princípios morais, sociais, religiosos, etc. e as histórias seriam um veículo para a disseminação dessas ideias.

Monteiro Lobato (1882-1948) se dedicou a escrever para as crianças, sendo o Sítio do Picapau Amarelo uma obra referencial. Mas além dessa obra e de outras, voltadas para o público adulto, ele também escreveu fábulas, adaptadas de Esopo e de La Fontaine, den-tre as quais podemos citar “A Cigarra e a Formiga”, “O Lobo e o Cor-deiro”, etc. Em sua adaptação, o autor valorizou o contexto brasileiro, de acordo com sua intenção de oferecer uma literatura de qualidade às crianças. Através das figuras dos animais, as histórias trabalham com questões relativas aos seres humanos.

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As fábulas permitem que várias temáticas sejam exploradas, contribuindo para que conflitos próprios dos seres humanos sejam representados pelos animais. Uma das fábulas de Lobato que ense-jam a reflexão sobre o ser humano é “O burro juiz”, na qual a gra-lha e o sabiá disputavam para ver que voz valia mais. Os animais escolheram o burro para ser o juiz, pois era o que tinha as maiores orelhas. O sabiá esmerou-se em seus trinados, uma “pura maravilha, que deixou mergulhado em êxtase o auditório em peso”. Após, a gra-lha se apresentou e foi “uma grita de romper os ouvidos aos próprios surdos”. Findadas as apresentações, o burro juiz sentenciou: “Dou ganho de causa à excelentíssima senhora dona Gralha, porque canta muito mais forte que mestre sabiá”. Moral da história: “Quem burro nasce, togado ou não, burro morre”.

Podemos citar outras fábulas como exemplos, algumas delas bem

conhecidas, como “O Galo e a Raposa” e “A Raposa e as Uvas”:

O GALO E A RAPOSA

Fugindo as Galinhas com seu Galo de uma Raposa, subiram-se em

um pinheiro, e como a Raposa ali não pudesse fazer-lhes mal, quis

usar de cautela, e disse ao Galo: – Bem podeis descer-vos segura-

mente, que agora acabou-se de assentar paz universal entre todas

as aves e animais; portanto vinde, festejaremos este dia. Entendeu

o Galo a mentira; mas com dissimulação respondeu: – Estas novas

por certo são boas e alegres, mas vejo acolá assomar três Cães; dei-

xemo-los chegar, todos juntos festejaremos. Porém a Raposa, sem

mais esperar, acolheu-se dizendo: Temo que o não saibam ainda, e

me matem. Assim se foi e ficaram as Galinhas seguras.

A RAPOSA E AS UVAS

Chegava a Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e

formosas, e cobiçou-as. Começou a fazer suas diligências para subir,

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Capítulo 01Gêneros Literários

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1.1.2.3 Conto

O conto é uma narrativa breve e esse critério da brevidade é que serve para distingui-lo do romance, pois é uma história mais curta. Suas características se aproximam daquelas que discutimos na abordagem sobre a novela, ou seja, concentração do assunto e me-nos personagens. Assim como a fábula, também o conto guarda uma proximidade com a literatura infanto-juvenil, através dos contos de fadas. Essa aproximação com os contos de fadas remete à condição de literatura oral do gênero conto, que depois se caracterizou pelo registro escrito da história.

No livro Teoria do Conto, Nádia Gotlib recorre aos estudos de Edgar A. Poe para refletir sobre esse gênero e destaca dois pontos: a extensão do conto e o efeito que sua leitura causa no leitor. Isso se liga a algumas técnicas de escrita, na busca por “dosar” as informa-ções da narrativa e trabalhar com o efeito que poderia provocar no leitor e, ainda, que o conto possa ser lido de uma vez só. A autora cita a opinião de Poe sobre o gênero: “no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura atenta, a alma do leitor está sob controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção” (Apud Gotlib, 1985, p. 34). O escritor destaca que um bom conto dependerá da capacidade de seu criador em dominar sua construção e estabelecer uma interação com o leitor a partir de suas intenções. Segundo Poe: “Em toda a composição não deve haver

porém como estavam altas e íngreme a subida, por muito que fez,

não pode trepar; pelo que disse: – Estão uvas em agraço e botar-me-

-ão os dentes, não quero colhê-las verdes, que também sou pouco

amiga delas. E dito isto se foi.

(http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/infantil/esopo.html)

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nenhuma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não es-teja a serviço deste desígnio preestabelecido”. (p. 35). Assim, a ideia é valorizar a capacidade do contista na construção do texto, a fim de alcançar os objetivos propostos e atingir seus leitores através de uma narrativa breve, o que estabelecerá uma relação diferente da do romance, por exemplo, gênero em que a história será contada em várias páginas e cuja relação com o leitor se estabelecerá aos poucos, conforme o ritmo de leitura.

A autora ressalva, porém, que não basta o domínio técnico para garantir a qualidade literária de um conto. Nesse sentido, destacamos que a temática escolhida, as palavras utilizadas e a capacidade de tocar o leitor perpassam por um campo subjetivo, que transcende o domí-nio da linguagem literária. Ainda há a se considerar que cada leitor poderá reagir de forma específica ao mesmo texto literário, logo, o conto dependerá de seu público leitor.

Como estamos destacando desde o início da abordagem sobre os gêneros literários, há um movimento dinâmico determinando es-sas caracterizações e a perspectiva no estudo dos gêneros se assume como descritiva, e não prescritiva. Ou seja, não são os gêneros que determinam as obras, mas o contrário. Ressaltamos uma modalidade que vem assumindo um destaque nas últimas décadas na literatura brasileira, os minicontos. São narrativas brevíssimas, mas que pos-suem uma intenção literária e comunicam em poucas linhas. Em Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, obra organizada por Mar-celino Freire, o desafio era escrever um miniconto de até cinquenta letras. No Prefácio desse livro, Ítalo Moriconi escreveu: “São pílulas ficcionais, e das melhores”. Esse desafio foi aceito por vários escrito-res que integram essa antologia, inclusive escritores que se dedicam a outros gêneros, como João Gilberto Noll, Luiz Ruffato e Marçal, Aquino, dentre outros. A seguir, transcrevemos dois minicontos como exemplos dessa vertente do gênero conto:

Se eu soubesse o que procuro com esse controle remoto...

(Fernando Bonassi)

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(FREIRE, 2004, p. 30)

MONÓLOGO COM A SOMBRA

Não adianta me seguir. Estou tão perdido quanto você.

(Rogério Augusto)

(FREIRE, 2004, p. 84)

O trabalho em sala de aula com os minicontos tem a vantagem da maior característica apontada no gênero conto: a brevidade. As-sim, o professor poderá solicitar a leitura em sala de aula e explorar o texto na sequência. Essa vertente do gênero apresenta escritores mais jovens, que trabalham com temática atual, o que pode ser um contraponto interessante para o estudo da literatura de décadas ou séculos passados. É importante ainda para relativizar o pressuposto de que textos mais curtos são, necessariamente, mais fáceis. Como vimos, a interação entre o texto literário e o leitor será diferente, dependendo do gênero em questão, mas sempre exigirá uma leitura atenta e capacidade crítica para poder explorar a densidade e com-plexidade que uma obra pode oferecer.

1.1.2.4 Crônica

A crônica é um gênero que se desloca entre o jornalismo e a literatura e é bastante utilizada na prática escolar. Essa aproximação com o contexto jornalístico colabora para delinear seus contornos, o que inclui a brevida-de e a concisão e uma temática que privilegia os fatos do cotidiano. O cro-nista traz para o registro escrito o seu olhar sobre os acontecimentos do dia-a-dia, imprimindo literariamente suas impressões sobre esses fatos. As reflexões propostas pelo cronista podem apresentar uma vertente mais humorística, trabalhar com personagens em determinado tempo e espaço e geralmente apresenta uma linguagem mais próxima da informalidade. Seja através do riso ou da sobriedade, a crônica possui um viés crítico de nossa sociedade, sendo, portanto, um texto que convida à reflexão.

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Nesse gênero literário, além da brevidade no sentido de linhas ou páginas, há também a questão da efemeridade dos fatos. O tema de uma crônica pode ser específico de determinado momento (por exemplo uma temática que trabalhe com política), e perder sua for-ça caso seja lida tempos depois (quando o panorama político já for outro, e o assunto não despertar mais tanto interesse). O fato de ser escrita em uma linguagem mais leve e informal pode se costituir em um atrativo para os alunos, pois aí a crônica apresenta um diferen-cial em relação aos outros gêneros, mais marcadamente preocupados em utilizar a língua padrão. Esse coloquialismo apresenta a literatu-ra por uma ótica diferenciada, “dessacralizando-a” e a aproximando dos leitores, especialmente dos jovens leitores.

Segundo Antonio Candido:

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita

de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes

romancistas, dramaturgos e poetas. [...].

“Graças a Deus”, – seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica

perto de nós. [...]. Por meio dos assuntos, da composição aparente-

mente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir,

ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque

elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser

mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização

lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra

mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento

de forma, que de repente pode fazer dela uma inesperada embora

discreta candidata à perfeição. (CANDIDO, p. 13-14).

A aproximação da crônica com o cotidiano e o uso de uma lin-guagem mais leve, colabora para uma aproximação dos alunos com a literatura, percebendo-a como parte integrante de nossas vidas, vei-culada em jornais e revistas. O estilo mais simples, direto e leve esta-belece uma conexão entre a linguagem oral e escrita, o que propicia a atividade docente tanto na área literária quanto no enfoque linguísti-

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co. Essa interação entre as diferentes abordagens também sinaliza ao aluno que os estudos da língua e da literatura não são estanques, eles podem caminhar juntos e explorar as potencialidades dos textos.

A seguir, apresentamos uma crônica de Machado de Assis, intitula-da “A Reforma pelo Jornal”:

A Reforma pelo Jornal

Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os mo-

vimentos populares; foi o jornal. Devia ser curioso vê-las quando um

século despertou ao clarão deste fiat humano; era a cúpula de seu

edifício que se desmoronava.

Com o jornal eram incompatíveis esses parasitas da humanidade, es-

sas fofas individualidades de pergaminho alçado e leitos de brasões.

O jornal que tende à unidade humana, ao abraço comum, não era

um inimigo vulgar, era uma barreira... de papel, não, mas de inteli-

gências, de aspirações.

É fácil prever um resultado favorável ao pensamento democrático. A

imprensa, que encarnava a idéia no livro, expendi eu em outra par-

te, sentia-se ainda assim presa por um obstáculo qualquer; sentia-se

cerrada naquela esfera larga mas ainda não infinita; abriu pois uma

represa que a impedia, e lançou-se uma noite aquele oceano ao novo

leito aberto: o pergaminho será a Atlântida submergida.

Por que não?

Todas as coisas estão em gérmen na palavra, diz um poeta oriental. Não

é assim? O verbo é a origem de todas as reformas.

Os hebreus, narrando a lenda do Gênesis, dão à criação da luz a prece-

dência da palavra de Deus. É palpitante o símbolo. O fiat repetiu-se em

todos caos, e, coisa admirável! sempre nasceu dele alguma luz.

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A história é a crônica da palavra. Moisés, no deserto; Demóstenes,

nas guerras helênicas; Cristo, nas sinagogas da Galiléia; Huss, no púl-

pito cristão; Mirabeau, na tribuna republicana; todas essas bocas elo-

quentes, todas essas cabeças salientes do passado, não são senão o

fiat multiplicado levantado em todas as confusões da humanidade.

A história não é um simples quadro de acontecimentos; é mais, é o

verbo feito livro.

Ora pois, a palavra, esse dom divino que fez do homem simples maté-

ria organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma

reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo;

escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o

monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o

monólogo, é a discussão.

E o que é a discussão?

A sentença de morte de todo o status quo, de todos os falsos prin-

cípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não

tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é

uma probabilidade de queda.

Ora, a discussão, que é a feição mais especial, o cunho mais vivo do

jornal, é o que não convém exatamente à organização desigual e

sinuosa da sociedade.

Examinemos.

A primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o der-

ramamento fácil em todos os membros do corpo social. Assim, o

operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá

encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia

social da comunhão pública. A propaganda assim é fácil; a discussão

do jornal reproduz-se também naquele espírito rude, com a diferen-

ça que vai lá achar o terreno preparado. A alma torturada da indivi-

dualidade ínfima recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstáculo

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Capítulo 01Gêneros Literários

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aquelas impressões, aquela argumentação de princípios, aquela ar-

guição de fatos. Depois uma reflexão, depois um braço que se ergue,

um palácio que se invade, um sistema que cai, um princípio que se

levanta, uma reforma que se coroa.

Malévola faculdade — a palavra!

Será ou não o escolho das aristocracias modernas, este novo molde do

pensamento e do verbo?

Eu o creio de coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é a

das inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores, não.

As aristocracias dissolvem-se, diz um eloquente irmão d’armas. É a ver-

dade. A ação democrática parece reagir sobre as castas que se levan-

tam no primeiro plano social. Os próprios brasões já se humanizam

mais, e alguns jogam na praça sem notarem que começam a confun-

dir-se com as casacas do agiota.

Causa riso.

Tremem, pois, tremem com este invento que parece abranger os sé-

culos — e rasgar desde já um horizonte largo às aspirações cívicas, às

inteligências populares.

E se quisessem suprimi-lo? Não seria mau para eles; o fechamento da

imprensa, e a supressão da sua liberdade, é a base atual do primeiro

trono da Europa.

Mas como! cortar as asas de águia que se lança no infinito, seria uma

tarefa absurda, e, desculpem a expressão, um cometimento parvo. Os

pergaminhos já não são asas de Ícaro. Mudaram as cenas; o talento

tem asas próprias para voar; senso bastante para aquilatar as culpas

aristocráticas e as probidades cívicas.

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Procedem estas idéias entre nós? Parece que sim. É verdade que o jor-

nal aqui não está à altura da sua missão; pesa-lhe ainda o último elo.

Às vezes leva a exigência até à letra maiúscula de um título de fidalgo.

Cortesania fina, em abono da verdade!

Mas, não importa! eu não creio no destino individual, mas aceito o

destino coletivo da humanidade. Há um pólo atraente e fases a atra-

vessar. — Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há sempre

uma tenda para descansar, e uma relva para dormir.

(Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

V.III, 1994. Publicado originalmente em “O Espelho”, Rio de Janeiro,

23/10/1859).

1.2 O gênero dramático

O gênero dramático se caracteriza pela representação, ou seja, um texto a ser interpretado, geralmente por meio de diálogos. Há que se dis-tinguir as diferentes dimensões que adquire esse gênero, pois, do ponto de vista clássico ele apresenta uma manifestação escrita (o texto dramá-tico, baseado em descrição das cenas e diálogos) e a representação desse texto, com interpretação em espaço específico (comumente o palco).

Assim como ocorre com outros gêneros, o gênero dramático apresenta ramificações, desde a tragédia, a comédia e o drama, pas-sando pela tragicomédia, a farsa e o melodrama, por exemplo. O gêne-ro dramático recebeu atenção especial já na Antiguidade, com a obra Arte Poética, de Aristóteles, citada no início desta Unidade. Porém, tal gênero vem se modificando ao longo do tempo, relativizando a composição do texto dramático, que ora é colocada em destaque, ora criticada e considerada até mesmo desnecessária; tradicionalmente a autoria das peças teatrais é única, mas a autoria coletiva passou a ser também valorizada. A representação não se restringe aos palcos, pois espaços alternativos são utilizados, até mesmo as ruas, dinamizando o

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contato com os espectadores, que inclusive podem ser parte integrante em uma apresentação.

Toda essa dinâmica e riqueza do gênero dramático podem ser bem exploradas no âmbito educacional. Os alunos têm a oportuni-dade de vivenciar a literatura por outro viés e várias atividades po-derão ser propostas, de acordo com a série e os objetivos de trabalho. Porém, é importante conhecer o gênero para melhor poder lançar mão dos recursos que ele pode oferecer.

A palavra drama, em grego, significa ação. No gênero dramático teremos, portanto, um texto em prosa ou verso (ou ainda nenhum texto, mas apenas indicações para a interpretação, registradas em ru-bricas) para ser encenado por intérpretes. A peça teatral, para ser apre-sentada, contará com o apoio de recursos como cenários, figurinos, sonoplastia, iluminação, dentre outros. Além do texto a ser encenado, os intérpretes trabalharão com a entonação, a expressão corporal e outros recursos, como maquiagem e figurino.

As peças teatrais podem ser encenadas de várias maneiras, des-de um espetáculo extremamente elaborado até uma manifestação alternativa realizada com poucos recursos. O relevante para o am-biente escolar é a interação estabelecida com os alunos e a criativi-dade expressa nas atividades propostas. O teatro na escola pode ser trabalhado apenas em sua dimensão escrita, ou seja, com a leitura de uma peça teatral (ou excertos) ou com a escrita de peças teatrais ou ainda com a representação de peças teatrais (sem contar a combina-ção possível entre essas possibilidades).

Maria Clara Machado (1921-2001) foi uma das maiores drama-turgas brasileiras e deixou um legado relevante para o teatro infanto--juvenil. Foi fundadora no Rio de Janeiro do Tablado, escola de teatro referencial para a formação de atores. Dentre suas peças, destacamos Pluft, o fantasminha, que conta a história do rapto de Maribel por um pirata Perna de Pau. A menina fica escondidade no sótão de uma an-tiga casa, habitada por fantasmas, dentre eles Pluft, o fantasminha que

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tinha medo dos seres humanos. A seguir, transcreveremos um trecho da peça e recomendamos sua leitura na íntegra:

MARIBEL - Socorro! Socorro! Socorro! João! Julião! Sebastião! Meus ami-

gos... Me salvem!

(Sempre choramingando, Maribel com muito medo procura conhecer

o sótão, olhando amedrontada para todos os lados; Pluft, que estava à

espreita, aproxima-se devagarzinho e muito receoso)

PLUFT - Oh!

(A menina ao ver Pluft, desmaia)

MÃE - (Chegando) Ora, Pluft, quem mandou você aparecer?... Assustou

a menina...

PLUFT - (Agarrando-se à saia da mãe) E agora?

MÃE - (Coloca a menina na cadeira) Agora temos que esperar que ela

volte do desmaio. Coitadinha! (Saindo) Vou procurar algum remédio

para desmaio de gente. Fica aí tomando conta dela.

PLUFT - (Segurando a mãe) Eu?!

MÃE - (Voltando-se) Você, sim.

PLUFT - Mas eu tenho medo de gente, mamãe!

MÃE - Você tem medo dela?

PLUFT - Dela... Muito não. Mas dele, te- nho sim!...

MÃE - (De dentro) Ele não volta tão cedo. A cidade é muito longe.

Pluft, o fantasminha.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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(Pluft fica na dúvida, vendo se segue a mãe ou não. Por fim, na pon-

ta dos pés, trata de observar a menina com curiosidade e medo.

Um momento a menina se mexe, e Pluft sai correndo, quase sem

fôlego, voltando depois para tornar a observá-la. Pega nos cabelos

da menina e sente prazer)

PLUFT - Gente é engraçado!... (Continua a observá-la até que a menina

torna a mexer) Mamãe!

MÃE - (De dentro) Que é, Pluft?

PLUFT - Você está aí?

MÃE - Estou.

PLUFT - (Aliviado) Ah!... (A menina torna a mexer-se) Mamãe, quem

sabe a gente pega isso aí e joga lá na noite e depois fechamos bem a

porta e botamos o baú de tio Gerúndio, com tio Gerúndio e tudo den-

tro, bem em frente da porta para o marinheiro não voltar, e ficamos

aqui, nós sozinhos, só fantasmas e gente não...

MÃE - (De dentro) Pluft, quem te ensinou a ser ruim assim? Foi o tio

Gerúndio?

PLUFT - (Sempre olhando a menina em atitude de defesa) Não é ruinda-

de não, mamãe... É medo!

MÃE - (De dentro) Se seu pai fosse vivo! Que fantasma corajoso ele era.

(Aparecendo só de rosto e tornando a desaparecer) Você quer mesmo

jogar esta menina fora pela janela, Pluft?

PLUFT - Acho que não quero, não. Mas ela podia bem ir logo embora.

(Rodeia a menina, muito aflito) Você não acha, mamãe? (Pluft levanta

a cabeça da menina) Ooooooooh!

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MÃE - (De dentro) O que é, Pluft?

PLUFT - (Radiante) Mas gente é uma gracinha, mamãe...

MÃE - (De dentro) Nem sempre, meu filho, nem sempre...

(Pluft se aproxima e cutuca a menina. Esta torna a se mexer um pou-

co... Pluft se assusta menos. Maribel torna a ver Pluft, se assusta, mas se

levanta e fita Pluft, espantada. Os dois ficam, um em frente do outro,

guardando certa distância, em atitude de mútua contemplação. Silen-

ciosos, com a respiração presa, ficam assim por algum tempo)

MARIBEL - (Tensa) Como é que você se chama?

PLUFT - (Tenso) Pluft. E você?

MARIBEL - Eu sou Maribel.

PLUFT - Você é gente, não é?

MARIBEL - Sou. E você?

PLUFT - Eu sou fantasma.

MARIBEL - Fantasma, mesmo?

PLUFT - É. Fantasma mesmo. Mamãe também é fantasma.

MARIBEL - (Relaxando) Engraçado, de você eu não tenho medo!...

PLUFT - (Idem) Nem eu de você. Engraçado...

(http://multirio.rio.rj.gov.br/portal/images/biblioteca/arq46.pdf )

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1.3 O gênero lírico

Da mesma forma como ocorreu com os gêneros anteriormente re-feridos, é difícil estabelecer uma definição para a poesia. Segundo o Di-cionário de Termos Literários de Carlos Ceia:

Na evolução da palavra até hoje, as conceituações mais estritas para

POEMA nem sempre são muito precisas, e, em muitos casos, confun-

dem-se com os conceitos para POESIA, embora, de modo geral, PO-

EMA seja entendido como uma das expressões possíveis da POESIA.

Destacamos algumas definições normalmente encontradas: 1. obra

literária em verso; 2. composição poética de extensão variável; 3.

obra literária em prosa, em que há ficção e estilo poético; 4. as peças

orquestrais de caráter descritivo: “poemas sinfônicos”; 5. da arte de

escrever em versos e cada um dos gêneros de composição poética

de pouca extensão; 6. maneira de fazer versos peculiar a um autor ou

a um estilo; 7. aquilo que desperta o sentimento estético do “belo”;

8. diz-se da atividade lingüística que tem um objetivo de arte e pro-

cura criar com a linguagem um estado psíquico de emoção estética

por meio da aplicação sistemática de processos estilísticos. A língua

transcende neste caso da função essencial de meio de comunicação,

para se tornar ela própria o objeto essencial da atividade e servir de

matéria-prima para uma obra de arte literária. Essa aplicação artística

de uma língua é espontânea e se encontra em todos os tipos de

sociedades, mesmo as mais rudimentares, na sua vida material e es-

piritual. Como expressão linguística, um poema tende a organizar-se

em frases ritmadas, com base na entonação, no número de sílabas,

na distribuição mais ou menos regular, ou irregular, das sílabas acen-

tuadas, constituindo-se desta maneira numa série de versos.

Segundo Octavio Paz, “poema” é uma palavra semanticamente instável,

que se vincula, pela etimologia e por natureza, à poesia: considera-se

poema toda composição literária de índole poética, “um organismo ver-

bal que contém, suscita ou segrega poesia”. Assumida ortodoxamente,

a conexão entre poema e poesia implicaria um juízo de valor, ainda que

de primeiro grau: todo poema encerraria poesia, e vice-versa, pois, siste-

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Estudos Literários e Educação

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maticamente, a poesia se coagularia em poema. Na verdade a correla-

ção apenas se observa como tendência historicamente verificável, pois

“existem poemas sem poesia”, e a poesia pode surgir, por exemplo, no

âmbito da estrutura formal de um romance ou de um conto, de modo

que muitos autores consideram que um poema pode ser estruturado

não apenas em versos, mas também em prosa.

Considerando de outra maneira, já em si poética, afirma o mesmo Oc-

tavio Paz: “[...] o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo,

e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia

universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo,

monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário.

Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e

pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces,

embora exista quem afirme que não tenha nenhuma: o poema é uma

máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda

obra humana!” ( Sílvia Regina Pinto. In: http://www.edtl.com.pt)

Dentre esses enfoques e tentativas de definições, é possível perce-ber duas dimensões, uma de teor técnico (a contrução dos poemas) e um enfoque que mira a qualidade estética, considerando o poema como manifestação literária capaz de “tocar” a sensibilidade do leitor. Esse se-gundo enfoque não diz respeito somente ao gênero lírico, pois como pudemos perceber, outros gêneros também podem afetar seus leitores.

Apesar de todas as possibilidades que um poema pode oferecer, o gênero lírico ainda se baseia na versificação e no trabalho com a linguagem, destacando o ritmo, as rimas e a sonoridade. A intenção não é a de estabelecer um elenco de características para que haja a identificação se determinado texto é um poema ou não. A relevân-cia aqui é a de discorrer sobre as potencialidades do gênero lírico e explorar essa potencialidade no trabalho docente. Assim, a seguir apresentaremos quatro características estéticas, consideradas com-ponentes tradicionais do poema, segundo Stalloni.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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O primeiro desses componentes é o verso, o qual caracteriza o po-ema. Ele é considerado o meio de identificação elementar (ainda que haja subversões e existam poemas narrativos, por exemplo, eles são con-siderados subversão justamente porque o uso dos versos é tido como paradigma). O verso será composto considerando a métrica, as sílabas poéticas, a rima e os efeitos no nível da sonoridade. Ao final dessa refle-xão, será apresentada a análise crítica de um poema (o haicai “Pereira em flor”) para exemplificar algumas das questões aqui abordadas.

Assim como os outros gêneros literários, as experiências hu-manas são refletidas nas diferentes linguagens e, no caso do gênero lírico, teremos um eu-lírico que expressará seus sentimentos atra-vés do trabalho com a linguagem, utilizando metáforas, compara-ções, etc. A linguagem do quotidiano se tornará linguagem poética, através do autor, o qual criará esse eu-lírico, que por sua vez ex-pressará seus sentimentos.

O gênero lírico se aproxima da música, conforme o próprio ter-mo lírico explicita, ao evocar a lira, instrumento musical que acom-panhava a entoação dos versos. Essa aproximação com a música se estendeu até a Renascença. O verso era composto para ser acom-panhado pelo ritmo musical. Em épocas posteriores, a sonoridade do poema era buscada no próprio trabalho com a linguagem e não necessariamente com o auxílio da música.

O último componente a ser citado é a intransitividade, ou seja, “o texto poético contém em si mesmo sua própria finalidade”. A ênfase ao trabalho com a linguagem distancia o gênero lírico de outros gêneros, pois nele esse trabalho é fundamental, distanciando-se do uso comum da linguagem. Sartre destacou esse viés no livro O que é literatura?: “O poeta retirou-se de uma vez da linguagem instrumento; ele esco-lheu, de uma vez por todas, a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos”. (Apud Stalloni, 2007, p. 146)

Devemos ainda destacar que o poema pode adquirir diversas for-mas, desde as formas fixas até as formas livres. A forma fixa se carac-

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Estudos Literários e Educação

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teriza por possuir regras mais rígidas de composição. Por exemplo, o soneto: ele deverá possuir dois quartetos e dois tercetos, ou seja, duas estrofes com quatro versos e duas estrofes com três versos. Esses ver-sos serão, prioritariamente, decassílabos (com dez sílabas poéticas) ou alexandrinos (com doze sílabas poéticas). Outro exemplo de poema com forma fixa é o que consta na análise poética a seguir, o haicai, que possuirá, a priori, três versos, com cinco sílabas poéticas no primeiro, sete sílabas poéticas no segundo e cinco sílabas poéticas no terceiro.

ANALISANDO O HAICAI PEREIRA EM FLOR DE HELENA KOLODY

* Este texto está publicado em http://www.jornaldepoesia.jor.br/rkami-

ta.html#haicai

A poetisa Helena Kolody nasceu em 1912 no Paraná, primogênita de

imigrantes ucranianos. Exerceu a profissão do magistério e foi au-

tora de numerosos livros. Antes de seus livros, seus poemas eram

publicados em jornais e revistas. Seu primeiro poema intitulava-se “A

Lágrima”, ela contava então com dezesseis anos. Seu primeiro livro

publicado intitulava-se Paisagem Interior, de 1941. Cumpre destacar

que já nesta obra são publicados três haicais: “Prisão”, “Arco-íris” e “Fe-

licidade”, que segundo Reinoldo Atem “são os primeiros publicados

no Paraná e demonstram sua tendência permanente e contínua para

a brevidade reflexiva”. No jornal Diário da Tarde, de 1942 foi publica-

da uma das primeiras críticas à obra de Helena Kolody, pelo poeta

Rodrigo Júnior: “Irrefragavelmente, o verso da autora de Paisagem

Interior se destaca, com magnífico relevo, exibindo um colorido iné-

dito, um frisson de idéias modernas, na poesia feminil paranaense da

hora presente”. No entanto, a autora não participou do Movimento

Modernista por ser retraída, mas buscava sempre manter-se informa-

da e tinha consciência da modernidade de seus versos. Nessa época

o Movimento Modernista buscava uma superação dos pressupostos

que ancoraram a Semana de Arte Moderna. Muitos poetas já tinham

trilhado um caminho diferente dos versos parnasianos, restando,

pois, amadurecer as idéias já plantadas.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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O haicai é uma forma de poesia japonesa, pequeno poema de três

versos, com cinco, sete, e cinco sílabas poéticas, sucessivamente.

Com sua escrita icônica, os haikais japoneses têm sua origem no can-

to, faziam parte de diários de viagem, numa interação prosa/poesia

e eram desenhados em um quadro, fazendo parte de um todo plás-

tico. A concentração verbal dos haicais consegue o máximo efeito

estético numa linguagem sintética.

Em 1941 a autora publicou seus primeiros haicais, sendo criticada

com os argumentos de que aquilo não era soneto, não tinha rima,

não era poesia. Mas gostava de desafios, por isso fazia haicais, mes-

mo criticada. Por conta disso, tornou-se “haijin” (pessoa que cultua o

haicai), com o nome artístico de Reika, concedido em 1993 pela co-

munidade nipo-brasileira de Curitiba. O nome é composto por dois

ideogramas, Rei e Ka, podendo ser traduzido como “perfume da po-

esia”. O nome Reika sugere, na língua japonesa, algo como um perfu-

me que vai se espalhando pelo ar, cujo aroma é a poesia. No livro de

Helena Kolody, Música Submersa (1945), figura o haicai “Pereira em

Flor”, o qual será aqui analisado:

PEREIRA EM FLOR

De grinalda branca,

Toda vestida de luar,

A pereira sonha.

Todo poema é basicamente uma estrutura sonora. Observe-se a métrica

do haicai “Pereira em Flor”:

Verso 1- De/ gri / NAL / da / BRAN / ca,

Verso 2- To / da / ves / TI / da / de / LUAR,

Verso 3- A / pe / REI / ra / SO / nha.

Não há rima, porém, quando se fala em estrutura sonora, pensa-se no

poema como um todo, com sua sonoridade própria. O efeito expres-

sivo, neste caso, é obtido principalmente pelo valor semântico das

palavras escolhidas. De modo geral, a poesia moderna se apóia mais

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Estudos Literários e Educação

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no ritmo do que na rima, sendo muito utilizado o verso branco em

metros curtos, como ocorre aqui.

O ritmo é uma forma de combinar sonoridades. Segundo Antonio Can-

dido: “A idéia de ritmo é muito complexa, e frequentemente muito vaga.

Podemos chamar de ritmo a cadência regular definida por um compas-

so e, noutro extremo, a disposição das linhas de uma paisagem”.

Por esta definição, evidencia-se a dificuldade em trabalhar o ritmo do

poema, mas ele existe. Partindo então da leitura do haicai, percebe-se

que há uma alternância de sílabas mais acentuadas e de sílabas menos

acentuadas. Algumas se destacam, mais fortes; outras são menos for-

tes; outras, finalmente, são fracas. Chamando as três modalidades A, B

e C, respectivamente, obtém-se o seguinte esquema:

1º verso- C - C- A - C - A - C

2º verso- B - C - C - A - C - C - A

3º verso- C - C - B - C - B - C

Percebe-se nos dois primeiros versos a maior incidência de sílabas

mais fortes, podendo expressar a admiração por tão bela imagem

evocada pela árvore florida. O terceiro verso é composto de sílabas

menos fortes e fracas, provavelmente pelo significado do verbo so-

nhar. Como se passasse do plano da admiração ao plano onírico, a

realidade cede lugar à evasão, tranquila, numa sonoridade que tra-

duz essa calma de um sonho bom.

O ritmo é elemento essencial à expressão estética da palavra, sobretu-

do num poema, permitindo criar a unidade sonora na diversidade dos

sons. O ritmo cria a unidade sonora do verso; as palavras criam a sua

unidade conceitual, ou seja, o verso é formado pela integração entre

unidade sonora e unidade conceitual.

Consideremos, pois, o verso, unidade do poema.

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Capítulo 01Gêneros Literários

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No haicai “Pereira em Flor” os versos são brancos, por não apresen-

tarem rimas, e regulares, obedecendo às regras clássicas estabele-

cidas pela métrica, determinando a posição das sílabas acentua-

das em cada tipo de verso. Nos versos de 5 sílabas poéticas temos

acentuadas as sílabas 3 e 5. No verso de 7 sílabas a acentuação

inside nas sílabas 4 e 7. Portanto, os esquemas rítmicos são os se-

guintes: E.R. 5 (3-5); E.R. 7 (4-7).

É importante, porém, ressaltar que o haicai não é somente uma ex-

periência verbal, pois além da palavra, o alfabeto de ideogramas

(kanji) registra “imagens”, enquanto que o alfabeto ocidental registra

“idéias/sons”. Os haicais japoneses têm, portanto, uma escrita icôni-

ca. Tem havido debates, nos meios haicaísticos, sobre as melhores

maneiras de verter o haicai para o português, mas ainda não se che-

gou a um consenso sobre o assunto.

Atente-se ao fato de que as considerações sobre versos, métri-

cas, ritmos, não podem estar desvinculadas do sentido do poema

como meio de expressão de idéias. Especificamente quando se fala

em haicai, há a intrínseca evocação de uma singela e delicada im-

pressão do mundo e dos seres; às vezes com um ligeiro toque de

humor. O fato de o haicai ser um poema curto talvez reflita a ne-

cessidade de captar um momento simples, quotidiano, e torná-lo

poesia. Nesse sentido, os haicais de Helena Kolody são relâmpagos

de palavras, rápidos e luminosos. A poetisa consegue unir objeti-

vidade e subjetividade, numa viagem de versos repleta de signifi-

cados. Para Helena Kolody: “Poesia é a transfiguração/ da realidade

em beleza,/ pela magia das palavras”.

O trabalho criador do poeta consiste num arranjo semântico que

apresente ao leitor possibilidades de significado do poema. Para isso

o escritor pode lançar mão de alguns recursos, como as figuras de

linguagem, por exemplo. No haicai “Pereira em Flor” chama a atenção

a personificação da árvore. A linguagem do poema, aparentemente

simples, mas altamente elaborada e metafórica, revela uma organi-

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Estudos Literários e Educação

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zação de imagens e associações criativas. A concentração verbal dos

haicais de Helena Kolody alcançam o máximo efeito estético.

Quando a poetisa se refere à grinalda branca, a primeira imagem

evocada é a de uma noiva; no segundo verso ela continua adjetivan-

do a imagem: “Toda vestida de luar”, ou seja, vestida com o brilho da

lua, e, como já foi dito anteriormente, ela escreve estes dois versos

como se estivesse admirada pela beleza da imagem natural (acres-

cente-se que Helena Kolody comumente insere a natureza em seus

versos). No terceiro e último verso, a árvore aparece como sujeito

de um predicado verbal não passível à sua espécie vegetal: sonhar.

Como já foi visto no primeiro verso, seria a noiva que sonha. Aí sim,

o verbo sonhar estaria pleno de significado. Quem inicia uma nova

etapa da vida sempre está com muitas perspectivas e a figura da noi-

va presta-se bem como exemplo disso. O haicai “Pereira em Flor” foi

elogiado por Carlos Drummond de Andrade, que diz ter encontrado

com alegria poemas como esse: “em que à expressão mais simples e

discreta se alia uma fina intuição dos ‘imponderável’ poéticos”.

Interessante agora ler o relato da própria poetisa sobre como se inspirou

para escrever este poema:

“Eu morava na Rua Carlos de Carvalho. Uma noite, ao sair da casa de

uma amiga, dei com aquela pereira completamente florescida, banha-

da pela luz da lua cheia. A beleza do quadro foi um impacto na minha

sensibilidade. Fiz o poema bem mais tarde. Associei a pereira como

uma noiva toda vestida de branco, sonhando, como a pereira ao luar”.

Há que se reiterar o que já foi dito: o poema é um arranjo semântico

que assume vários significados, como, por exemplo, o verbo sonhar. Os

leitores poderão entendê-lo de várias formas, e aí residem a riqueza e a

força da linguagem poética.

Numa carta à Helena Kolody, Carlos Drummond de Andrade tece a

seguinte opinião crítica sobre a obra da poetisa: “Você dominou a arte

de exprimir o máximo no mínimo, e com que meditativa sensibilida-

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Capítulo 01Gêneros Literários

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Leia mais!

Sugerimos a leitura de obras que tratam sobre os gêneros literários, como a

de Yves Stalloni, Os Gêneros Literários. Outra sugestão importante é o livro

de Antonio Candido Na Sala de Aula: Caderno de Análise Literária.

de!” Helena Kolody tem a capacidade de transformar em palavras as

imagens captadas em sua existência, e mais, é capaz de reduzir essas

mesmas imagens em poucas palavras. No caso do haicai a poetisa tem

três versos para condensar e transmitir todo seu sentimento.

Sem dúvida, acredita Helena Kolody no poder da palavra, e o poeta

pode ser considerado o “escolhido” para fazer dela um instrumento de

transformação do mundo. A responsabilidade é enorme e alguns ar-

tistas da palavra conseguem levá-la a contento e vão gravando pelo

tempo suas ideias que geram novas ideias e assim sucessivamente

num trabalho longo, árduo e necessário.

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Unidade B

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Estudos Literários e Educação

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Capítulo 02O Leitor Literário

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Nesta unidade a ênfase será sobre a formação do leitor literário, os desafios e paradoxos que essa questão apresenta. Também traba-lharemos com a literatura considerando a crítica literária feminista, destacando a autoria e representação feminina e ainda os desafios da literatura afro-descendente.

O Leitor Literário

De acordo com Teresa Colomer no livro A Formação do Leitor Literário, a partir do século XVII surgiu a noção de infância, segun-do a qual, nesse período o ser humano necessitaria de uma atenção diferenciada dos adultos. Essa concepção se desenvolveu até o século XVIII, com a produção de uma literatura especialmente voltada para as crianças, já com a preocupação educativa referente a essa produ-ção. No entanto, como destaca a autora, foi apenas em meados do século XIX que o mercado editorial para a público infanto-juvenil passou a se consolidar e “sua expansão definitiva se produziu nos últimos cinquenta anos do século XX”. A percepção de que nesse período de vida as crianças estavam em formação e em uma eta-pa educativa relevante, fez com que a literatura passasse a ser vista como uma das possibilidades de se contribuir para essa formação. Esse interesse motivou a publicação de obras voltadas para esse pú-blico leitor, estimulando a leitura desde o início do aprendizado das primeiras letras. Nesse aspecto, estamos nos atendo à literatura es-crita, mas reconhecemos a importância da literatura oral, também integrante desse universo infantil.

A literatura infanto-juvenil vista sob o prisma da educação en-seja a se pensar sobre a função exercida por essa literatura, a qual varia de acordo com o contexto em que o assunto seja tratado, con-siderando os aspectos pedagógicos e mais especificamente literários. Assim, por se tratarem de obras destinadas a leitores em formação, há restrições explícitas e implícitas na maneira como determinadas questões são tratadas, com a preocupação de “oferecer aos leitores

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Estudos Literários e Educação

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modelos de conduta e de interpretação social da realidade”, além da preocupação com a capacidade de compreensão que o leitor apresen-ta, considerando-se sua idade e a sua trajetória enquanto leitor. É o que poderíamos chamar de “momento do leitor”, ou seja ainda que a obra seja considerada como referencial e tenha recebido críticas positivas, deve-se considerar se o leitor estava apto a compreendê-la e dela extrair o melhor. Parte-se de um pressuposto, o de que deter-minadas obras são recomendadas para determinadas idades, sendo estabelecidos parâmetros nesse sentido em catálogos de livros, li-vrarias, bibliotecas, etc. No entanto, o leitor não atenderá, obrigato-riamente, a esse parâmetro, tanto no sentido de leitores com idade menor, mas com uma formação como leitor à frente da maioria dos outros leitores de sua idade, quanto o contrário, ou seja, leitores que já possuem uma determinada idade, mas cuja formação como leitor não se deu dentro do previsível. Isso se torna mais fácil de ser com-preendido quando pensamos em nossa própria trajetória, quando lemos algum livro para o qual não estávamos preparados e tivemos possibilidade de lê-lo anos depois e ele assume uma nova dimensão.

Assim, a literatura infanto-juvenil passa pela chancela dos adul-tos, o que nos leva a outra reflexão, a de que as obras não são escri-tas necessariamente para as crianças, mas há uma preocupação em se atingir as expectativas dos adultos que recomendarão (ou não) as obras. Esse paradoxo trata, portanto, da criação de uma literatura infanto-juvenil, destinada a esse público, porém, com a necessidade de serem “sancionados pelos adultos”, o que leva os escritores a te-rem dois destinatários. A leitura realizada na escola pressupõe a figura intermediadora do professor, representante desse universo adulto, o qual colabora para a compreensão das obras, encaminhando o enten-dimento dos alunos em relação aos livros lidos e estudados.

Livros de Literatura Infantil

A relação entre literatura e educação perpassa pela questão da for-

mação do leitor e pelo papel desempenhado pelo educador na se-

leção de obras literárias e definição do trabalho a ser realizado com

os alunos.

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Capítulo 02O Leitor Literário

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O trabalho com o texto literário também deve ser considerado pelo viés da abordagem proposta, tanto pelos livros diáticos quanto pelas apostilas. Geralmente esses materiais são divididos por unida-des, abertas por um texto (de diferentes gêneros textuais, como pro-pagandas e reportagens, e não necessariamente literários, mas aqui focaremos nos textos literários). Após o texto, há a “interpretação de texto” (ou outra expressão similar, por exemplo “estudo de texto”). E então são apresentadas questões relativas ao texto, de fundo inves-tigativo e subjetivo, dentre outras, e aquelas que partem do texto, porém visam aos estudos gramaticais.

Assim, tanto a leitura literária de livros na íntegra quanto a lite-ratura em textos menores nas apostilas e livros didáticos perpassam por um crivo avaliativo, e a literatura é trabalhada em diferentes situ-ações com variadas nuanças e gradações, alternando erros e acertos (de ambos os lados).

Assim, a escolha do professor levará em conta vários aspectos, den-

tre os principais, o conteúdo do livro escolhido, a adequação à idade

dos leitores e a pertinência e aproximação aos assuntos previstos

para serem estudados em aula. O gosto e a fruição literária muitas ve-

zes ocupam lugar secundário, pois existe a crença de que determina-

das obras “são importantes” e os alunos acabarão por concordar com

isso (ainda que leve muitos anos, considerando-se o “momento do

leitor, acima referenciado). Acrescente-se a isso um elemento funda-

mental nessa relação entre literatura e educação: a obrigatoriedade.

Ela até pode vir “disfarçada” ou atenuada, mas é inegável que existe, o

ato de leitura do texto literário na escola “vale nota” e tem prazo. A for-

mação do leitor se dá de maneira didática e mensurável, estabelecen-

do algumas relações de tensão nesse processo, uma vez que o aluno

será avaliado a partir de sua leitura e capacidade de compreensão, ao

mesmo tempo em que se objetiva torná-lo um leitor.

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A literatura também existe fora do âmbito escolar, mas a esco-la continua sendo espaço referencial no qual a literatura possui um relevante papel. O que aqui se destaca é a forma como ela é trabalha-da, seus propósitos, as diferentes frentes nas quais atua e o desafio de “formar um leitor”. É possível conciliar todas essas dimensões? Elas precisam de fato existir na educação? Quais são os objetivos do estudo dos textos literários na atualidade? Não existem respostas pontuais aos questionamentos anteriores, eles certamente já foram propostos em outros momentos e as respostas vão variando ao lon-go do tempo. Mas é justamente essa reflexão contínua que colabora para as mudanças necessárias, pois é a busca por essas respostas que mostra o caráter dinâmico da literatura, assim como a constante e necessária reavaliação didática e metodológica.

2.1 Crítica Literária Feminista: Mulher e

Literatura

Representações Literárias de Gênero, Identidades, Etnias em Am-bientes e Experiências Educacionais.

Em Um teto todo seu, Virginia Woolf discorre sobre as mulheres e a ficção, entrecruzando os gêneros ensaístico e literário, registran-do um posicionamento que vem há anos sendo motivo de reflexões e debates. A partir de uma personagem criada por ela, as apreensões, receios e limitações femininas foram abordados para que possamos compreender melhor os motivos que explicam a tímida participação das mulheres na literatura. Logo no início da narrativa, a primeira transgressão: uma mulher deixou-se absorver de tal forma por seus pensamentos que se afastou da trilha a ela permitida e invadiu ter-ritório proibido, o caminho de uma universidade que estaria aberto apenas a quem pertencesse àquele mundo. Um bedel de olhar severo mostrou-lhe a impertinência de sua atitude, o que a fez recuar para o percurso de cascalhos a ela destinado. Outro local “sagrado” era a biblioteca, à qual ela não pôde adentrar, pois não possuía condições

Este texto consiste em uma versão a partir de um capítu-lo de minha tese intitulada Resgates e Ressonâncias: Mariana Coelho.

Virginia Woolf (1882-1941) é uma das princi-

pais referências, tanto no campo da literatura quanto nas discussões

sobre o feminismo e as relações de gênero.

Sua obra literária se destaca em especial pelo trabalho com o fluxo de consciência,

que se caracteriza, dentre outros aspec-

tos, pelo monólogo interior dos persona-

gens, recurso utilizado também por Clarice

Lispector (1920-1977).

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Capítulo 02O Leitor Literário

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para isso: “[...] as damas só são admitidas na biblioteca acompanha-das por um Fellow [estudante graduado] da Faculdade ou providas de uma carta de apresentação.” (p. 13) No entanto, haveria um aspec-to importante a ser considerado: não pagava tributo às convenções das quais esse espaço literário era guardião, assim sendo, ao analisar essa questão, pensou “em como talvez seja pior se ser trancada do lado de dentro [...].”(p. 33).

Virginia Woolf abordou de forma realista que a única maneira de conquistar espaço no mundo das letras seria a mulher garantir “quinhentas libras por ano e um quarto com fechadura na porta [...]”.(p. 137). Ou seja, autonomia de vida, o que muitas mulheres buscam até hoje. Seus argumentos circunscrevem a extrema vinculação femi-nina ao papel de mãe e esposa, o que pressupunha que não houvesse necessidade de estudar, pois imaginava-se que para cumprir esses papeis a mulher possuísse dons que faziam parte de sua natureza fe-minina. Em um discurso mesclado de afirmações pseudocientíficas na superfície e intenso preconceito no fundo, o chamado sexo frágil era mantido bem distante da literatura.

As escritoras teriam que contar com o desenvolvimento em re-lação às perspectivas sociais, históricas e econômicas, pois somente com o avanço em relação a esses campos, a imagem feminina não estaria restrita ao espaço privado e seria admissível ao menos que aspirasse a um status social diferente do preconizado pelas regras da vida em sociedade, explícitas umas, outras implícitas e não me-nos nocivas. A participação feminina no campo literário ou não se efetivava ou as escritoras eram recebidas ora com críticas acerbas ora com uma condescendência que em nada auxiliava para o ver-dadeiro reconhecimento da qualidade literária de seus escritos. Se-ria necessário que antigos conceitos fossem revistos e as mulheres deixassem de acreditar, elas mesmas, nos estereótipos de compor-tamento que lhes eram atribuídos.

Até o século XIX o mundo literário era habitado quase que ex-clusivamente por homens, logo, os padrões estéticos literários par-

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tiam desse paradigma, de uma literatura eminentemente masculina, que passa a equivaler como a literatura universal. Essa dedução, que à época soava de maneira tão óbvia, custou-nos esforços empreendidos ainda hoje no sentido de viabilizar uma nova ótica da questão.

As barreiras foram ao longo do tempo sendo transpostas, antigos problemas foram solucionados, ou ao menos encaminhados, enquan-to outros, não menos difíceis, se impuseram. Não bastaria garantir um espaço de atuação para as autoras, mas assegurar que esse espaço fosse legítimo, e não marginalizado, como grande parte da história literária tem demonstrado, ao restringir as citações de mulheres escritoras ao mínimo, ou então, colocá-las em capítulos à parte. A desconstrução de antigas idéias que dessem espaço às novas abordagens fez-se e faz-se necessária. Alterar o tom dos velhos discursos é um dos objetivos da crítica literária feminista, no sentido de garantir a incursão das mu-lheres na literatura, incursão de fato e de direito.

Há várias conquistas que se constituem em marcos para o feminis-mo, mas ainda não significa que as arestas de anos de submissão femi-nina tenham sido aparadas e possamos declarar que haja uma relação equânime no território das letras. Ainda se percebem os bedéis a es-preitarem as mulheres que se afastam de seu caminho de cascalhos e ensaiam alguns passos em percurso proibido.

A crítica feminista tem se dedicado nos últimos tempos a ques-tionar sobre a construção social do gênero, o que significa historica-mente ser mulher. Essa reflexão considera as variáveis de tempo e es-paço que contextualizam a abordagem. Variáveis que não se aplicam, no entanto, ao poder de comando, que ainda permanece distante da esfera feminina, ou, ao menos, não tão próximo como seria o ideal em uma sociedade que se baseie na eqüidade. Isso, tomando-se por parâmetro as nações democráticas, uma vez que há países com uma tradição ainda mais cerceadora em relação ao papel da mulher. Es-crever, era, portanto, também uma forma de expressar a insatisfação com essa circunstância, além de demonstrar na prática da escrita o

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princípio iníquo no qual se baseava a sociedade em relação às mu-lheres no geral e às escritoras em particular.

Uma das conquistas do feminismo foi proporcionar condições de maior visibilidade para a produção literária das mulheres, garantindo--lhes espaço para que suas obras sejam lidas e estudadas, ainda que com limitações, indicando que há muitas escritoras a serem resgatadas, ou-tras muitas a serem devidamente valorizadas, obras a serem reeditadas.

O trabalho de resgate que se vem efetivando nos últimos anos deve ser obstinadamente constante, uma reescrita da história lite-rária. Conhecer esse passado das letras significa, entre outros im-portantes aspectos, estabelecer um percurso onde se possa conhecer o que se passou, como ocorreu, protagonistas e antagonistas desse enredo, descobrir obras que jamais deveriam ter permanecido ocul-tas em algum canto de biblioteca sem que as pudéssemos avaliar. A apreciação literária se modifica no tempo e no espaço, inclusive em relação ao mesmo leitor, que em determinado momento considera a obra a partir de certos valores e posteriormente baseia-se em jul-gamentos diversos. Essa reavaliação só é possível com o trabalho de resgate, caso contrário, com o afinco suspeito com que as escritoras foram ao longo do tempo caindo em quase completo esquecimento, não restarão referências que nos permitam restabelecer a tradição literária da literatura produzida por mulheres.

Ao atacar a ordem constituída em uma sociedade moralista e sexista, contribuiu para o desenvolvimento da literatura de autoria feminina. A partir da perspectiva feminista, o território das letras

O feminismo contribuiu para a reavaliação de antigos conceitos,

estabeleceu novos posicionamentos em relação aos estereótipos

referentes aos temas e gêneros literários, assim como lançou luz às

sombras das convenções da escrita produzida por mulheres, que

passaram a sujeitos da história e da criação literária.

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seria extensivo também às mulheres, que nunca foram em tese efe-tivamente proibidas de a ele adentrar, no entanto, na prática, essa proibição se apresentava de forma dissimulada e sub-reptícia. As-sim, a literatura, considerada eminentemente ligada ao masculino, poderia legitimar a contribuição feminina. Atualmente a mulher tem, na maior parte das vezes, livre acesso à literatura, cabe agora ponderar-se sobre o poder político desse acesso e os espaços ocupa-dos por essa produção literária.

O papel da mulher na sociedade vem se alterando ao longo dos tempos, no sentido de ampliação dos espaços de atuação. Nas pri-meiras décadas do século XX, esse progresso já se tornou mais vi-sível e o círculo literário de mulheres escritoras desenvolvia-se. No entanto, a sociedade dessa época via de forma diferenciada as mu-lheres intelectuais, com um certo receio de suas atitudes, em espe-cial aquelas que não se dedicavam aos gêneros literários comumente associados a elas, de tom mais intimista, como diários, memórias, epístolas e poemas. Nesse sentido, mesmo com a intensificação da participação feminina na literatura em princípios do século XX, não seria fácil superar os tabus que envolviam essa atuação.

A literatura é um espaço no qual coexistem conflitos e afirma-ções em relação à participação feminina, principalmente no que concerne ao gênero narrativo. Existe a expressão, direta ou indireta-mente, de uma percepção da realidade de quem escreve, e, no caso das mulheres, muitas eram herdeiras de uma vivência limitada, a qual transparecia em seus escritos.

O fato de os textos escritos por mulheres terem pouca visibi-lidade, passa a impressão primeira de que se de fato houve as que escreveram, sua contribuição literária não ficou à altura de trabalhos de autoria masculina, uma vez que raramente figuram em livros de história literária ou antologias.

A mesma literatura que aos homens conferia status, honra, às mu-lheres era motivo de conflito. Enquanto mulheres, estavam à margem

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de questões ligadas à filosofia, à sociologia e à literatura, por exemplo. Sendo assim, mesmo que escrevessem, muitas mulheres ainda se sen-tiam condicionadas a essas determinações sociais, as quais se consti-tuíam nos pilares de sua formação. No entanto, a partir dessa insur-gência em postular a entrada no mundo das letras, sua participação se efetivará cada vez mais. E muitas delas conquistaram, ainda que em parte, sua emancipação, livrando-se da tutela de pais e maridos, assumindo uma posição notadamente transgressora e contribuindo diretamente para o panorama atual em construção.

A altercação da parte de alguns críticos da literatura de que o que importa é a obra literária e não quem a escreveu, é uma falsa premissa cujo enfoque privilegia apenas um ângulo da questão. Defendemos justamente isso, que a autoria não deveria exercer influência em re-lação aos critérios utilizados para perenizar determinadas obras em detrimento de outras. O fato de se considerar como sendo “natural” que até hoje permaneça essa discrepância nos estudos literários, adia o estabelecimento de uma nova perspectiva no mundo das letras.

A literatura foi, portanto, especialmente para as escritoras nasci-das no século XIX, um ato de rebeldia, pelo fato de que ela era educa-da para não questionar, mas obedecer, e agir não de acordo com suas próprias vontades, mas segundo o que outros esperavam dela. Esse tradicional silêncio seria quebrado pelas palavras.

O questionamento do saber institucionalizado, de suas intrín-secas e rígidas regras em diferentes campos, do debate em torno de antigas ideologias que permanecem há tempos guiando a sociedade, propiciam um modo diverso de se conceber a literatura, em especial a de autoria feminina, que surpreende muitas vezes, quando estudada sob prismas metodológicos renovadores.

Virginia Woolf, em Um teto todo seu, contou a história da irmã de Shakespeare. A autora parte da hipótese de que o escritor inglês tivesse uma irmã, Judith, com grande capacidade intelectual, cujo desejo era se dedicar à criação artística e literária:

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Permitam-me imaginar, já que é tão difícil descobrir fatos, o que teria

acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irmã maravilhosamente

dotada, chamada, digamos Judith. [...] era tão audaciosa, tão imagina-

tiva, tão ansiosa por ver o mundo quanto ele. Mas não foi mandada à

escola. Não teve oportunidade de aprender Gramática e Lógica, quan-

to menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro de vez em quando, tal-

vez um dos de seu irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas ocasiões,

os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar

do guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis.

(WOOLF, Virginia, 1985, p. 61-62.)

As dificuldades dessa suposta irmã não foram poucas: teve que se contentar com uma formação autodidata, uma vez que as mulhe-res não eram aceitas nas escolas. Seu desejo de ligar-se ao teatro não contou com a aprovação de seus pais, com o agravante de que queriam lhe impor um casamento. Deixou de morar com a família e partiu em busca de um emprego. Desnecessário dizer que o mundo por esses tempos não era pródigo em acolher jovens que quisessem trabalhar. Mesmo no teatro, a participação da mulher era dispensável, pois os rapazes atuavam nos papéis femininos. O final da irmã de Shakespea-re foi melancólico e bastante sugestivo ao expor os reveses de Judith, personificando mulheres insurgentes dessa época e o destino que as aguardava, bem distante da glória literária do irmão. Suicidou-se, as-sim como a própria Virginia Woolf faria anos depois.

Vamos imaginar como seria a vida da pequena Maria, irmã de Machado de Assis. Ela nasceu em 1841, no Rio de Janeiro, mula-ta, em um família pobre. Inteligente e de vivo espírito, infelizmente pouco pôde estudar, mas tinha o sonho de tornar-se escritora. Ainda menina, ficou órfã de mãe, e logo teve que trabalhar auxiliando a madrasta a fazer os doces que Machado ajudava a vender. Os anos se passaram, o irmão vivenciava o mundo da literatura, mas Maria casou-se, constituiu uma numerosa família e passou o resto da vida cuidando do lar. As linhas anteriores foram apenas uma licença poé-tica nesse texto que não se pretende uma narração literária, e a inten-ção é a de exemplificar que assim como as escritoras inglesas e fran-

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cesas do século XIX, também as brasileiras que tivessem intenção de escrever teriam que enfrentar vários obstáculos, ainda maiores, uma vez que nosso país não atingiu até hoje os níveis de desenvolvimento dos países europeus citados.

A partir do momento em que as mulheres tiveram acesso ao saber e o feminismo tomou corpo e forma, o espaço da leitura e da escrita deixou de ser território sagrado. No entanto, mesmo hoje se percebe uma participação desproporcional de escritores e escritoras que contribuem para escrever a história literária contemporânea. A desigualdade simbólica, social e política reflete-se nessa participa-ção literária, o que, de certa forma, mostra que a crítica literária fe-minista ainda tem muito a fazer.

O feminismo, ao apontar para novas maneiras de se conceber um texto, modificou consequentemente o modo de se ler e valorizar determinada obra, apontando para princípios críticos diversos dos tomados comumente por parâmetros e o cânone literário passa a ser questionado. Compreender a literatura de autoria feminina é, por-tanto, não se limitar à estreita visão da tradição literária, mas contex-tualizá-la observando as relações que mantém com outros textos e as estruturas sociais e culturais que compõem o panorama da época. O cânone literário é o reflexo da sociedade que o produz, se nela as mulheres estavam à margem... desnecessário prolongar o raciocínio. Somente não observando as regras canônicas foi possível conhecer melhor os textos escritos por mulheres, tidos, em geral, como defi-cientes e secundários. Essa outra maneira de se ler os textos constitui uma história literária escrita sobre diferentes bases, cuja intenção é reconhecer a denúncia e subversão de alguns textos escritos por mu-lheres, com atenção inclusive para os relatos de cunho autobiográfi-co mostrando geralmente uma estreita vivência. O que para muitos significa uma “limitação” literária, revela-nos uma história muitas vezes silenciada pelas vias oficiais.

Como ponderou Simone de Beauvoir (1908-1986) em O segun-do sexo, a mulher representa o “outro”. O “Um” identifica-se com o

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racional, lógico, capaz, ao “Outro”, por sua vez, atribuem-se carac-terísticas ligadas aos sentimentos, como a capacidade de oferecer carinho e a abnegação, ao lado de alguns termos, menos enaltecedo-res, em geral atribuídos às mulheres na primeira metade do século XX, como nevrótica e histérica. Sempre houve aquelas que escreve-ram e de alguma forma se afirmaram no território das letras, como Mary Shelley e as irmãs Brontë, por exemplo, mas foram exceções, somente subvertendo os conceitos de uma sociedade em que pre-domina o desequilíbrio é que se dará a participação ativa e efetiva dos sexos. Para que a mulher não seja vista apenas como o “outro”, torna-se necessário que construa sua própria identidade.

2.2 Cânone

João Ferreira Duarte apresenta a definição do verbete cânone e, dentre os pontos destacados, reproduzimos o excerto a seguir, que ex-põe os prismas através dos quais o termo pode ser compreendido: “en-quanto objeto de investigação e enquanto tema de controvérsia”.

1) Na primeira perspectiva, os conceitos de cânone e canonização

têm sido apropriados pelas teorias sistêmicas da literatura e da cul-

tura, onde servem para descrever um dos processos privilegiados de

funcionamento dos sistemas literários. Um sistema pode ser definido

como uma totalidade auto-regulada composta por elementos em

inter-relação. De acordo com os estudos empíricos da literatura, com

origem na obra do teórico alemão Siegfried Schmidt, são quatro os

elementos básicos do sistema de comunicação literária: produtores,

intermediários, receptores e agentes de transformação. É a estes úl-

timos (críticos, tradutores, imitadores, adaptadores, etc.) que cabe o

papel sistemicamente central de canonizadores. A teoria do polissis-

tema, primeiro desenvolvida em Israel por Itamar Even-Zohar, opera

com os conceitos de centro e periferia, respectivamente a literatura

canônica, legitimada pelos estratos sociais dominantes e a literatu-

ra marginal (popular, de massas, etc.). O acesso ao cânone, fonte de

evolução do sistema, faz-se pela migração ou transferência de textos

Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851). Romancista inglesa, autora de Frankens-tein (1818). Filha da

feminista Mary Wolls-tonecraft.

Charlotte (1816-1855), Emily (1818-1848) e

Anne (1820-1849). Romancistas inglesas.

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e normas estéticas da periferia para o centro. Finalmente a teoria do

sociólogo francês Pierre Bourdieu divide o “campo de produção literá-

ria” em dois grandes subsistemas: o campo de produção restrita, que

se caracteriza pela denegação “vanguardista” do lucro imediato e das

motivações econômicas dos produtores, que se dirigem prioritaria-

mente aos seus pares, e o campo de produção em larga escala, impul-

sionado pelas leis do mercado e produzindo para o público em geral

obras de consumo fácil. No campo de produção restrita, a ação sistê-

mica de um certo número de instituições, como as casas editoriais, a

crítica, os prêmios literários, a escola, é responsável pela “consagração”

de autores e de obras, isto é, da sua canonização e sequente estatuto

de “mercadorias” economicamente lucrativas. Com base nestes mode-

los teóricos se tem produzido muita investigação descritiva e empírica

sobre a construção de cânones, por exemplo, estudando os critérios

do discurso crítico-avaliativo, a constituição diacrônica de um cânone

nacional, por vezes com recurso a instrumentos estatísticos.

2) A segunda perspectiva surge nos anos 80, com particular inci-

dência nos Estados Unidos, em parte por razões intradisciplinares - a

imensa influência do discurso teórico na reestruturação metodológi-

ca e curricular dos estudos literários - e em parte por razões sociais

- o acesso à consciência de uma identidade própria por parte de

grupos étnica e sexualmente definidos: os afro-americanos, os his-

pânicos, os homossexuais, as mulheres. É de salientar, a propósito, o

êxito com que os estudos feministas arrancaram ao esquecimento

dos arquivos tantas obras escritas por mulheres num passado remo-

to ou recente e que hoje circulam em edições de bolso e são estuda-

das nas escolas e lidas pelo público em geral.

Neste ambiente multicultural, o cânone das grandes obras e auto-

res é visto como um instrumento de repressão e discriminação ao

serviço de interesses dominantes, do poder branco e masculino e

de uma ideologia de contornos patriarcais, racistas e imperialistas.

A menos radical das reivindicações surge, então, sob a forma de

revisão e abertura do cânone a textos representativos de saberes,

classes e minorias tradicionalmente excluídos, numa espécie de su-

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primento da representatividade imperfeitamente assegurada pelas

instituições políticas.

(Fonte: http://www.edtl.com.pt)

2.3 Literatura afro-descendente

Há várias maneiras de entrarmos em contato com a literatura, mas existem algumas obras e autores que possuem uma chancela, um reconhecimento que faz com que se perenizem e integrem o que se convencionou chamar de cânone literário (como pudemos ver an-teriormente na transcrição do verbete cânone). O cânone literário vai se delineando ao longo do tempo, através da literatura que figu-ra nos livros didáticos, que consta na lista de obras literárias para o vestibular, enfim, a literatura que é sistematicamente valorizada pelo enfoque que recebe. Porém, há também a literatura com menor vi-sibilidade e que por motivos vários (preconceito, comodismo, difi-culdade de acesso às obras, etc) não recebe o devido valor. Assim como as escritoras brasileiras tiveram sua capacidade literária julgada a partir dos conceitos de gênero, a literatura brasileira produzida por afro-descendentes também causa um estranhamento, por não inte-grarem esse cânone anteriormente referido. Sempre haverá exceções, ou seja, escritoras e escritores afro-descendentes reconhecidos, mas são, como o termo explicita, exceções. Acabam por figurar à parte e causam ainda certa estranheza. É necessário reconhecer que não de-vemos tratar essa questão no século XXI da mesma maneira como foi tratada em séculos anteriores, mas é igualmente necessário reconhe-cer que tal discussão não pode se dar por finalizada.

O trabalho desenvolvido nos últimos anos por pesquisadores lite-rários brasileiros garantiu um relevante espaço de discussão que deve ser preservado e ampliado. São iniciativas como a que ocorreu com a Antologia de Escritoras Brasileiras do Século XIX (organizada em três volumes, por Zahidé L. Muzart e Literatura e Afro-descendência no Brasil: Antologia Crítica (organizada em quatro volumes, por Eduardo

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de Assis Duarte). São publicações que representam o trabalho de vá-rias pessoas, empenhadas em registrar, resgatar ou reavaliar a literatu-ra produzida por pessoas à margem da história literária.

A noção de nacionalidade na literatura já era questionada desde o início da sistematização dos estudos literários por Sílvio Rome-ro (1851-1914) e José Veríssimo (1857-1916). Em seus livros sobre a história da literatura no Brasil os autores problematizam o con-ceito de nacionalidade, uma vez que o Brasil havia sido colônia e diferentes nacionalidades faziam parte de nosso país. Porém, essa preocupação estava centrada no trânsito luso-brasileiro (escritores brasileiros, mas que moravam em Portugal e portugueses que mora-vam no Brasil). O desafio era como considerar esses escritores como representativos da literatura brasileira. A literatura afro-brasileira ou afro-descendente não estava em pauta nesse momento, em especial pela visão escravocrata da época.

A produção literária afro-descendente não recebeu, ao longo do tempo, a devida atenção. A falta de acesso à educação escolar foi um impedimento relevante no início, pois a literatura oral igualmente não era valorizada. Assim, para ser considerado um escritor, seria necessário ter aprendido a ler e a escrever. Posteriormente, com a ampliação de acesso à educação formal, outros impedimentos per-maneciam, como a dificuldade em publicar seus livros e, quando pu-blicados, conseguirem um público leitor.

Assim como já foi dito em relação às escritoras podemos pen-sar na literatura de afrodescendentes no que se refere ao argumen-to de que não importa quem escreve, mas o que escreve. De fato, teoricamente seria o ideal, mas a História Literária e o rol de obras e escritores canônicos subvertem essa lógica. Logo, há uma espé-cie de paradoxo, pois ao mesmo tempo em que se deseja que a li-teratura seja considerada sem o alijamento de determinados gru-pos, ocorrem publicações destacando apenas a autoria feminina ou afro-descendente. A discriminação existiu/existe e essas antologias vêm cumprir o papel de recuperar parte dessa literatura e lhe dar

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luz. Essa publicações fazem parte de um processo complexo que pretende oferecer vez e voz, reconhecendo o descompasso entre a teoria e a prática que envolve a questão da participação de grupos à margem do cânone, portanto devemos considerá-las como parte desse processo e não como o objetivo final.

A educação cumpre papel importante nesse processo, pois é no âmbito da literatura institucionalizada que as distorções tendem a se perenizar, tratando como “natural” uma visão historicamente construída. Isso se reflete, como dissemos, nas referências literárias dos livros didáticos, apostilas e listas de vestibulares, mas ocorre também nos currículos e aulas. Faz parte do trabalho docente man-ter-se em constante formação, acompanhando a literatura que está sendo produzida e ampliando a leitura das obras de períodos ante-riores. Desse modo, a proposta aqui é a de se pensar de que manei-ra o trabalho docente pode influenciar e alterar uma postura mais tradicional e conservadora em relação à literatura ou posicionar-se criticamente, oferecendo aos alunos a oportunidade de conhecer diferentes obras e autores. Os estereótipos precisam ser revistos e o espaço educacional é imprescindível para o ensejo desse posi-cionamento crítico. Conceição Evaristo é uma escritora negra cuja obra vem cada vez mais se destacando na literatura brasileira e em entrevista à Revista Raça ela aponta:

“Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas

funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às

vezes me perguntam: ‘você canta?’. E eu digo: ‘não canto nem danço’.”

Atualmente, existe a preocupação em não reproduzir essa vi-são parcial da literatura, incentivando uma revisão do que se con-sidera referencial ou fundamental nos estudos literários, enfati-zando a necessidade de se conhecer a memória cultural africana. Importantes escritores brasileiros afrodescendentes, como Maria Firmina dos Reis (1825-1917, em 1859 publicou Úrsula, romance abolicionista) Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898), Lima Barreto (1891-1922), colaboraram com a História da

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Capítulo 02O Leitor Literário

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Literatura no Brasil e abriram caminho para que outros escritores negros também pudessem publicar suas obras.

Leia mais!

Para esta unidade destacamos os estudos referenciais de Teresa Colomer, A

formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Também ressal-

tamos as obras Escritoras Brasileiras do Século XIX: Antologia e Literatura e

Afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica.

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Unidade C

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Capítulo 03Literatura e outras linguagens

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Nesta unidade aproximaremos a literatura de outras linguagens, como o cinema, a música e a arte sequencial dos quadrinhos. Além disso, destaca-remos a literatura e as novas tecnologias no processo educativo, como o uso de computadores e acesso à internet e redes sociais, sites e blogs literários, bibliotecas virtuais e e-books e sites especializados em literatura.

Literatura e outras linguagens

A literatura vem, ao longo do tempo, sendo constantemente ava-liada e reavaliada em seu papel, tanto sob um ponto de vista mais es-trito, compreendendo a literatura em si e a forma como determinadas obras são construídas, quanto por sua inserção social, considerada como fator integrante de um contexto histórico, político e social. A partir dessa perspectiva, pensamos ainda nas possibilidades de diálogo e interação entre a literatura e outras linguagens, tais como o cinema, a música e as histórias em quadrinhos, por exemplo. Essa aproxima-ção é bastante rica e produtiva, pois potencializa as especificidades de cada uma das linguagens, proporcionando um maior aproveitamento daquilo que elas por si já são capazes de oferecer.

Assim, em sala de aula é possível explorar as muitas possibili-dades oferecidas pelas diferentes linguagens no estudo da literatura, tanto no que se refere às narrativas como em relação ao gênero lírico (vamos pensar na grande aproximação entre os poemas e as letras de música). Esse diálogo colabora ainda para que se dissipem os precon-ceitos ainda dirigidos à literatura, especialmente àquela produzida nos séculos passados, considerada muito distante da atualidade, com uma construção gramatical difícil e palavras desconhecidas. Ler (ou reler) esses textos em uma perspectiva contemporânea, aliando-os a outras manifestações artísticas pode ser uma estratégia bem interessante. Porém, é necessário avaliar quais são os conteúdos que se pretende abordar, os objetivos e metas na construção dessa aprendizagem e as formas de avaliação a serem utilizadas.

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O importante nesse processo é reconhecer a ampliação das possibi-lidades de trabalho e dedicar-se para aprofundar os conhecimentos refe-rentes a essas linguagens, para melhor explorar o que elas têm a oferecer. Uma questão relevante é a interação com os alunos, ou seja, conhecer as expectativas deles em relação aos conteúdos de estudos literários a se-rem estudados, o ponto onde já avançaram e outros que precisam de uma maior atenção. O trabalho com as outras linguagens será considerado como uma estratégia para enriquecer o estudo da literatura, como tam-bém a valorização da cultura através do destaque para as diferentes artes.

A aproximação da literatura com outras linguagens pode ocorrer de diversas maneiras, desde uma mais explícita, como a adaptação de um ro-mance para o cinema, por exemplo, até outras mais sutis, como algumas referências a determinados personagens em outras obras que não as suas de origem. É importante frisar que cada uma dessas linguagens possui sua “luz própria” e não estão a serviço da literatura, mas estabelecem uma via de mão dupla, ou seja, a literatura influencia e é influenciada por outras artes. Portanto, as linguagens não são equivalentes, mas tangenciadas em determinados aspectos. Logo, não se espera que o filme seja o romance em imagens, pois o romance trabalha com a linguagem verbal e o cinema en-foca a linguagem cinematográfica, com recursos que lhes são pertinentes.

O trabalho a ser estabelecido com outras linguagens não “substitui” a leitura da obra literária, a leitura da obra será desdobrada e ampliada por um olhar diferenciado através das experiências com outras mani-festações artísticas, o que pode ser estimulante e desafiador, pois o uni-verso literário será visto por si mesmo e em interação com novas pos-sibilidades, que poderão revelar características não apreendidas apenas com a leitura de determinado texto literário que esteja sendo estudado.

A aproximação da literatura às outras linguagens permite uma abordagem diferenciada nos estudos literários, pois além da escrita, os alunos poderão interagir com imagens, acordes, instrumentos musicais, traços de desenho, enfim, recursos gráficos e sonoros com estímulo a diferentes possibilidades de percepção. Para cada uma dessas aproxima-ções haverá diversas oportunidades para que as obras literárias possam

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Capítulo 03Literatura e outras linguagens

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ser apreciadas e os alunos terão a oportunidade de conhecerem e in-teragirem com diferentes manifestações, aprimorando sua formação e ampliando seus conhecimentos artísticos e culturais.

Esse diálogo a ser estabelecido não possui regras a priori, mas de-penderá, como dissemos, dos conteúdos e objetivos de determinada dis-ciplina. Não há normas que determinem quais são as outras linguagens que devem ser utilizadas, ou uma hierarquia que estipule uma gradação das manifestações. O que existe é a diferença entre elas, e é justamen-te essa diferença que torna o trabalho mais interessante, pois a ideia é destacar o benefício dessa interação, a multiplicação de oportunida-des de trabalho, os novos prismas que se apresentam, o incentivo para considerar a literatura por um viés dinâmico de diálogo no panorama artístico-cultural. Outra questão envolvida refere-se ao gosto pessoal, e sempre haverá aqueles que dirão preferir a música, outros vão preferir o filme e ainda outros que não concordarão jamais com a escolha de um intérprete de filme para determinado personagem do universo literário. Tudo isso faz parte das discussões e o pensamento crítico se afina justa-mente pela diversidade de ideias, sendo a oportunidade para que cada um possa reavaliar sua opinião a partir das opiniões dos outros, ou ain-da retornar à obra para justificar ou subsidiar seus argumentos e buscar um exemplo que considere fundamental para ilustrar seu ponto de vista.

Um importante fator que temos que levar em conta é o momento do leitor (conceito anteriormente apresentado), ou seja, dentre os alunos de uma mesma disciplina, teremos os que leem muito, os que leem pouco e os que são avessos à leitura literária. Porém, esses momentos são represen-tativos de um estágio, que se modifica no decorrer do tempo, conforme as diferentes oportunidades desse leitor, tanto na literatura, estritamen-te falando, quanto em sua formação mais geral. Assim, um livro lido às pressas para uma prova na sexta série, pode ser melhor apreciado alguns anos adiante, em outra circunstância. Esse fato pode ocorrer em diversas situações, mas geralmente ocorre quando as leituras são obrigatórias e os alunos leitores não se interessam pelo livro e acabam realizando a leitura apenas por obrigação, ou se restringindo à leitura de resumos. Porém, é necessário frisar que o leitor está em constante formação e, portanto, pode

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mudar sua postura em relação às obras. Tal mudança pode ser estimulada a partir do contato da literatura com outras linguagens, no movimento de leitura e releitura constantes e o conhecimento e valorização das diferen-tes possibilidades de manifestação literária.

O momento do leitor e o envolvimento com a literatura não se res-tringem aos alunos, mas também aos próprios professores. Dependen-do da formação recebida, alguns profissionais das letras não tiveram um maior estímulo para a área de literatura ou acabaram enfocando o estudo de uma língua estrangeira ou linguística, por exemplo. No en-tanto, em sua atuação profissional o docente também trabalhará com a literatura e tem o compromisso de que esse conteúdo seja desenvolvido com a qualidade esperada e necessária. Assim, a postura docente como leitor é imprescindível nessa relação de ensino-aprendizagem de litera-tura. E ainda que a formação literária tenha sido a melhor possível no Ensino Médio e na Graduação, o universo literário é amplo e dinâmico, exigindo um acompanhamento constante. São muitas obras e diferentes estéticas e gêneros literários, com escritores mais e menos conhecidos, e a literatura atual se apresenta sempre desafiadora pela proximidade cronológica. O século XIX, por exemplo, foi em boa parte marcado pelo Romantismo, tanto na poesia quanto no romance, que justamen-te surgiu nesse período no Brasil. Foram décadas de produção, em um contexto histórico-político-social que em vários aspectos influenciou a literatura. Nosso país carecia de estrutura educacional, de maneira que o público leitor era bastante restrito e incipiente, pois a literatura no Brasil era fragmentária e recente. Os escritores, por sua vez, seguiam os modelos europeus, dando algumas cores e tintas locais aos seus escritos.

Assim, nos anos de formação acadêmica, o futuro professor terá con-tato com parte desse conteúdo, com destaque para autores e obras que estejam figurando nos livros e apostilas adotados ou que integrem listas de obras literárias para vestibulares. Mas é preciso mais e cabe ao profes-sor manter suas leituras no decorrer da vida profissional, com a certeza de que os anos de formação literária nunca serão suficientes para assunto tão vasto, o que exigirá de cada um constante compromisso profissional, de reconhecer a necessidade de manter suas leituras. Para isso, é impor-

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Capítulo 03Literatura e outras linguagens

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tante ressaltar o papel exercido pelas bibliotecas, ainda uma das melhores alternativas de leitura, uma vez que os livros continuam sendo produtos com preços considerados altos. Um ponto a ser igualmente destacado é o aumento de oferta de livros de bolso, edições com preços mais acessíveis. Neste momento estamos ressaltando que as dificuldades são reconheci-das, porém, há opções para que sejam superadas. O hábito de ter sempre um livro em processo de leitura é fundamental e o professor de literatura há de apreciar a literatura ou deveria atuar em outra área.

O compromisso profissional exigirá que o professor seja um leitor e que oriente as leituras literárias propostas e busque explorar ao máximo o que elas possam oferecer e, assim sendo, o diálogo com as outras artes será uma estratégia relevante. A seguir, serão apresentadas algumas possibilida-des de diálogo entre a literatura e outras linguagens. É importante destacar que serão algumas possibilidades dentre várias possíveis e elas serão repre-sentativas de uma multiplicidade de aproximações, que dependerão, como foi dito, do conteúdo e dos objetivos que estiverem sendo trabalhados.

3.1 Intertextualidade

Quando são abordadas as relações entre a literatura e outras lingua-gens é pertinente destacar o conceito de intertextualidade. Esse conceito permite compreender as ligações passíveis de serem estabelecidas entre diferentes obras, que se tangenciam e criam uma nova possibilidade, conforme se destaca a seguir:

Na literatura relativa à Linguística Textual, é frequente apontar-se como

um dos fatores de textualidade a referência - explícita ou implícita - a

outros textos, tomados estes num sentido bem amplo (orais, escritos,

visuais - artes plásticas, cinema - , música, propaganda etc.) A esse “diálo-

go” entre textos dá-se o nome de intertextualidade.

Evidentemente, a intertextualidade está ligada ao “conhecimento de

mundo”, que deve ser compartilhado, ou seja, comum ao produtor e ao

receptor de textos.

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A intertextualidade pressupõe um universo cultural muito amplo e

complexo, pois implica a identificação / o reconhecimento de remissões

a obras ou a textos / trechos mais, ou menos conhecidos, além de exigir

do interlocutor a capacidade de interpretar a função daquela citação ou

alusão em questão.

Entre os variadíssimos tipos de referências, há provérbios, ditos popula-

res, frases bíblicas ou obras / trechos de obras constantemente citados

- literalmente ou modificados -, cujo reconhecimento é facilmente per-

ceptível pelos interlocutores em geral.

(Maria Christina de Motta Maia. http://acd.ufrj.br/~pead/tema02/inter-

textualidade2.htm).

Portanto, quando associamos a literatura ao cinema, à música, aos quadrinhos, essa associação amplia a percepção que se tem de cada uma dessas manifestações, potencializando sua capacidade artística e esti-mulando o conhecimento de suas especificidades. Assim, por exemplo, uma determinada narrativa existe enquanto conto, enquanto filme e o que mais a criatividade permitir.

3.2 Literatura e Cinema

Iniciaremos nosso estudo sobre a aproximação entre literatura e cinema através da abordagem sobre os contos de fadas, uma das mais antigas formas de narrativa e que permanece como ponto de interesse, em especial na educação.

A primeira obra a ser apresentada será História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. A obra é inesgotável, propicia abertura de análise, pela sua riqueza de conteúdo. E ainda que fosse analisada exaustivamente, será possível perceber uma frase que antes havia passado despercebida, e que surge em uma nova leitura, carregada de significação. Por vezes, o que pode parecer apenas uma passagem cômica, constitui-se em uma crítica ferrenha. É, portanto, praticamente impossível reduzir toda essa

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Capítulo 03Literatura e outras linguagens

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complexidade a apenas algumas páginas. Na análise que será apresentada a seguir, os números entre parênteses indicam as páginas do livro.

História meio ao contrário é uma crítica ao autoritarismo e à sociedade vista como imutável e busca romper com as imposições sociais, hierarquias rígidas, mentes embotadas. Ana Maria Machado faz uma crítica severa à alienação das pessoas que não se questionam sobre o que acontece a sua volta (no caso do povo) e o descaso de quem detém o poder (o Rei), que “vivia feliz para sempre”, ignorando os acontecimentos, mesmo os mais comuns, como a mudança do dia para a noite, e até mesmo quem fosse o povo, em um total distancia-mento entre governante e governados. O Rei oscila entre o detentor do poder e a criança mimada que tudo exige.

A autora propõe uma ruptura dos padrões estabelecidos, contando uma história que mexe, ou melhor, sacode o institucionalizado. Como o título sugere, a história é meio ao contrário, começa pelo fim de outra his-tória (a dos pais da Princesa). No entanto, fora o início singular (pelo fim), o tempo da aventura é linear, obedecendo a uma sequência cronológica.

O início é uma analepse (flashback): “Para casar com ela ele tinha enfrentado mil perigos, derrotado monstros, sido ajudado por uma fada [...]. Depois viveram felizes para sempre.” (6) O narrador vai contando uma história que já se passou, no entanto, sem adiantar nenhum fato. No final da narrativa, o tempo é presente: “Vem sempre passar as férias no real castelo e conta uma porção de novidades” (38).

A narrativa é em terceira pessoa, o narrador não é personagem, porém, não há distanciamento em relação ao leitor, pois o narrador não se limita a narrar os acontecimentos, mas deles participa, compro-mete-se, opina, chama a atenção e brinca com o leitor:

“Viver feliz para sempre não é fácil, não”. (6)

“Eu não vou explicar aqui tudo de novo, porque todos nós já sabemos.” (28)

“Que moça? Ora, a Pastora, você está ficando esquecido?” (34)

Capa de uma das edições do livro História meio ao contrário.

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Com este posicionamento, o narrador acaba passando o seu ponto de vista com relação aos fatos, pois vai narrando e se “intrometendo” na história, levando os leitores a lerem com os seus (dele) olhos.

A obra é uma paródia aos contos de fadas tradicionais, e neste aspec-to situa-se em um reino, com direito a castelo e tudo o mais que faz parte deste cenário já descrito tantas vezes. Porém, tem tons de ironia que levam o leitor, em muitas passagens, a rir de toda a situação provocada pelo Rei. Isso se estabelece pelo fato de a história se utilizar da tradição dos contos de fadas aliada a uma nova visão no presente, o que gera conflito e tensão, as-sociando alguns aspectos dos contos de fadas tradicionais, mas subvertendo outros, estabelecendo uma forma diferente de interação com os leitores.

Bruno Bettelheim, autor do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, defende a necessidade de se manter este encantamento e cita a frase que foi bastante discutida por Ana Maria Machado: “E viveram felizes para sempre”. Segundo Bettelheim, essa frase encerra em si o significado de que quando há uma união verdadeira com outra pessoa, foi alcançado “o má-ximo, em segurança emocional de existência e permanência de relação disponível para o homem”. Já para Ana Maria Machado, esse destino de “ser feliz para sempre” acaba passando a imagem de viver sob uma redoma, ignorando o que se passa a sua volta, com a vida transcorrendo, mas como se estivesse parada. Ora, a felicidade só existe a partir do momento em que as dificuldades são superadas, problemas resolvidos, etc. Fora isso, a pessoa não estará tendo uma vida feliz, mas uma existência monótona.

O Príncipe não queria para si o “viver feliz para sempre”: “[...] en-quanto pensava que na verdade, não queria saber de coisas eternas nem iguais para sempre”. (36) Apaixonou-se pela Pastora que não se tornou princesa, mas sim o Príncipe tornou-se Vaqueiro. Outros pontos tor-nam a história meio ao contrário, como, por exemplo, o povo acabar conseguindo o que deseja através de sua união.

O livro se propõe a contar a história da Princesa: “Vai ser a história da filha desses tais que se casaram e viveram felizes para sempre.” (4) O final da narrativa traz a Princesa tendo atitudes surpreendentes, pois

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nega-se a casar com o Príncipe, quebrando a tradição que havia sido mantida até sua mãe. Rompe com comportamentos pré-estabelecidos e resolve decidir sua vida. Viaja para outros lugares: “No dia seguinte, a Princesa começou uma longa viagem para conhecer outras pessoas, outras terras, outros reinos. E até mesmo algumas repúblicas”. (38)

Regina Zilberman, no capítulo “A representação da família”, do livro A Literatura Infantil na Escola, trata do desenvolvimento do pensamento familiar e cita modelos de vida familiar. Podemos pensar a personagem Princesa a partir do modelo emancipatório, que veicula a autonomia da criança, no caso a jovem Princesa, que recusa a intermediação dos pais no momento de decidir entre se casar ou não, e se coloca em uma posição de autonomia em relação aos que representam “uma instância superior e dominadora”, quando decide conhecer outros lugares e pessoas.

Este é um conto de fadas moderno, que se mantém nos moldes do tradicional sob alguns aspectos e rompe sob outros. A fantasia está sempre presente, conta com ingredientes de sucesso dos contos de fadas tradicionais, como o Gigante, o Dragão, o Rei, a Princesa, dentre outros. Há de se ressaltar, porém, que alguns desses personagens tomam rumos diferentes, como, por exemplo:

Gigante: não representa o mal. É uma figura simbólica representan-

do o Brasil. Vivia adormecido. Quando o povo se uniu para ajudar o

Dragão Negro ele despertou, tornou-se poderoso e sua ação foi fun-

damental para o curso da história. Quando o Gigante é citado, há a

lembrança do Hino Nacional: “É mesmo... Deitado eternamente...” / “[...]

um passeio bonito pelos risonhos lindos campos cheios de flores e

pelos bosques cheios de vida” (26). No livro Histórias de Nossa Terra, de

Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), aparece o gigante Brasilião, assim

descrito: “O Gigante Brasilião é tudo isto: estas montanhas enormes,

que são seu dorso, estas árvores altíssimas, que são os seus músculos;

estes rios e mares que são suas fertilíssimas veias; este aroma de seiva,

que é seu hálito, e as rochas duras, que são os seus ossos; e mais as

noites estreladas, que são os seus sonhos!”. (242).

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O gigante Brasilião é o Brasil, descrito com elementos da nature-za. No livro de Ana Maria Machado o Gigante representa a natureza (a roupa do Gigante é toda verde). E também simboliza a união do povo, que desperta e se torna gigante, adquire forças que não possuía enquanto ser individualizado. É esta comparação de Júlia Lopes de Al-meida em confronto com Ana Maria Machado que transcende a visão simplesmente patriótica e ufanista do Brasil.

Dragão Negro: em uma linguagem simbólica e metafórica significa a noite. Tem um olho só: a lua (esta simbologia é reforçada pela ilus-tração, que traz a lua com contornos de olho (13); solta fumaça pelas narinas (neblina); lança fagulhas pela boca (estrelas). Também como o gigante, o Dragão Negro não é mau.

Povo: representado pelos personagens Tecelão, Ferreiro, Cam-ponês, Carpinteiro, Pastora. Descobriram sua força na união. O povo pensa e discute sobre a situação do reino. No exemplo a seguir, há ên-fase no verbo pensar: “E ficaram pensando. Pensaram muito, mesmo depois que a conversa acabou...” (24).

O povo se une, contrariando a vontade do Rei: “Era preciso ajudar o Dragão Negro antes que o Príncipe Valente e Encantador acabasse com ele...” (26). Outros exemplos de união e conscientização do povo:

“Hoje nosso trabalho é outro. Tão importante como o trabalho de todo

dia. Não faz mal parar de trabalhar aqui uma tarde, porque é para ajudar

toda a vida da gente.” (27)

“Você pensa, sua boba, que é fácil acordar um gigante? Se não formos

todos juntos e não gritarmos bem forte e bem alto, não adianta nada.”

(27)

Aparece ainda a força do povo, que adquire poderes antes igno-rados: “Para os homens, todas essas coisas levam muito tempo. Para o Gigante não. Foi rapidinho.” (30). Destaca-se dentre o povo a Pastora, moça firme e decidida, que se apaixona pelo Príncipe e é correspondida.

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Não queria distanciamento do Príncipe, o que foi resolvido a partir do momento em que ele se tornou vaqueiro.

Os personagens não têm nome próprio: são a Princesa, o Rei, o Va-queiro, iniciados com letra maiúscula. A ausência de nome próprio não individualiza as personagens. Segundo Bettelheim os personagens dos contos de fadas são mais típicos que únicos e nessa obra a escritora opta por torná-los representativos a partir da ausência de nomes próprios ao mesmo tempo em que os individualiza a partir de seus atos.

O texto é bastante enriquecido pelas ilustrações coloridas de Hum-berto Guimarães, que estão em harmonia com o texto. Em quase todas as páginas há uma ilustração e o que chama a atenção nessas gravuras são os olhares das personagens. Por exemplo, na página 3, tanto o Rei quanto a Rainha têm olhares estáticos, vitrificados, como se quem vive feliz para sempre não vivesse, estagnasse.

Bettelheim critica as histórias modernas por estas evitarem tratar de problemas existenciais, alienando a criança, impossibilitando-a de lidar com estes problemas e, consequentemente, crescer e amadurecer. Porém, essa crítica não se aplica à História meio ao contrário, pois esta obra tra-ta de vários problemas. O livro de Ana Maria Machado ocupa um lugar de destaque na literatura infanto-juvenil, pois aborda temas muito sérios, sem quebrar a magia e o encantamento dos contos de fada tradicionais.

Pelo fato de o livro ser um conto de fadas atual, nada melhor do que aproximá-lo de outras obras similares, inclusive em outras linguagens. É o que se pretende neste momento, agregando à discussão a temática abor-dado nos filmes de animação Shrek. Há filmes similares, mas Shrek mar-cou essa subversão aos contos de fadas no cinema e tratou com humor e irreverência temáticas que perpassam por preconceitos e estereótipos. Para esta análise nos deteremos no primeiro filme, lançado em 2001.

O filme se inicia com o ogro Shrek lendo um conto de fadas tradi-cional, com uma princesa presa em um castelo vigiada por um dragão e sendo salva por um príncipe. Shrek diz ao final: “Quem acredita nisso?

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E sai para viver a sua própria história. O filme apresenta vários perso-nagens já conhecidos do universo infanto-juvenil, como Pinóquio, Os três Porquinhos, os sete anões, o Burro Falante, o Gato de Botas, Robin Hood e vários outros. Nesse sentido, a obra se assume enquanto inter-textualidade, ou seja, várias referências já existentes nos contos de fadas dialogam diretamente com o filme, assim como o filme dialogará com várias outras narrativas, como História Meio ao Contrário.

O “vilão”, Lord Farquaad, procura uma princesa para se casar e se tornar príncipe, para isso ele busca por candidatas e recebe três opções do Espelho Mágico: a Cinderela, a Branca de Neve ou Fiona. O perfil das prin-cesas é apresentado aos moldes dos concursos de miss. Fiona é apresentada com a seguinte descrição: “Por último, mas também especial, a candidata número três é uma ruiva ardente de um castelo guardado por um dragão e cercado por lava. Mas não deixe que isso te assuste. Ela é um estouro. Gosta de Piña Colada e de passear no meio da chuva. Esperando que a salvem... Princesa Fiona!”. Ele a escolhe. Shrek faz um acordo com o Lord para salvar Fiona em troca de ter de volta seu pântano que agora se encontrava povoa-do por criaturas dos contos de fadas capturadas e lá depositadas justamente por Lord. O ogro forma uma dupla com o Burro Falante e partem para a sua missão, uma vez que Fiona estava refém do dragão.

A primeira aventura de ambos foi derrotar o dragão, na verdade um dragão fêmea, que se apaixona pelo burro. Fiona aguarda placida-mente (como era de se esperar de uma princesa que esperava um ca-valheiro corajoso para salvá-la), mas Shrek frustra suas expectativas. O dragão é derrotado e os três seguem para o castelo de Fiona, que já demonstra afeição por Shrek, ainda que manifeste um certo desa-pontamento ao descobrir que ele era um ogro após tirar o capacete. A princesa queria ter sido salva por seu futuro noivo.

Apesar da aparência de Shrek, ele é bastante sensível e se entristece com a forma como as pessoas o tratam, considerando-o um monstro. A princesa, por sua vez, também foge do estereótipo, com iniciativa e personalidade própria, participando das aventuras, inclusive lutando. Durante o trajeto, Shrek e Fiona acabam se conhecendo melhor e desco-

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brindo afinidades, por mais estranho que parecesse no início a possibi-lidade de aproximação entre um ogro e uma princesa. O curioso burro acaba por descobrir um grande segredo de Fiona, ela se transforma em ogro no por-do-sol e assim permaneceria enquanto não amanhecesse. Isso se manteria até que o primeiro beijo do amor verdadeiro quebrasse o feitiço lançado anos atrás por uma bruxa.

O encontro com o Lord é uma decepção, mas mesmo assim ela decide se casar com ele. Porém, o burro e Shrek partem para salvar Fiona nova-mente, desta vez de um matrimônio no qual o Lord esperava apenas tornar--se rei. Durante ao cerimônia, Fiona deixa-se transformar na frente de to-dos e é desprezada e atacada, juntamente com Shrek, pelo guardas do Lord. Burro chega montado no Dragão fêmea apaixonada e os resgata. Shrek e Fiona trocam juras de amor, agora como ogros. Porém, quando trocam o beijo do amor verdadeiro ela não se transforma novamente em Princesa, mas mantém-se na sua forma de ogro. O filme termina com Shrek fechan-do um livro e lendo a frase final: “E viveram feios para sempre”.

Ainda privilegiando o diálogo entre as diferentes linguagens, abor-daremos a figura da Chapeuzinho, aproximando diferentes versões: Cha-peuzinho Amarelo, a releitura feita por Chico Buarque a partir de Cha-peuzinho Vermelho, o tradicional conto de fadas (ambos na linguagem literária) e Deu a louca na Chapeuzinho (na linguagem cinematográfica).

Chapeuzinho Amarelo

O livro Chapeuzinho Amarelo foi escrito por Chico Buarque e recebeu ilustrações de Ziraldo. A menina dessa versão é apresentada como “ama-relada de medo”, não ia a festas, não subia escadas, “ouvia conto de fada e estremecia”, não brincava. A lista do que a garota tinha medo era imensa, mas o medo maior de todos era o que ela sentia pelo Lobo, assim como a Chapeuzinho Vermelho. Porém, mesmo estando bem longe do lobo, ela viva pensando nele e se apavorava só em imaginar que um dia pudesse en-contrá-lo. Mas o “pior” aconteceu: “E Chapeuzinho Amarelo, de tanto pen-sar no LOBO, de tanto sonhar com o LOBO, de tanto esperar o LOBO, um dia topou com ele”. E ele se apresentou mesmo com toda a ideia que cada

Chapeuzinho Amarelo, Chico Buarque.

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criança tem: “carão de LOBO, olhão de LOBO, jeitão de LOBO e principal-mente um bocão tão grande que era capaz de comer duas avós, um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e uma avó de sobremesa”.

Esse era um momento muito importante para a Chapeuzinho Ama-relo, pois ela teria que enfrentar o seu maior medo, e ele se apresentou bem assustador. Nesse ponto a história ganha contornos particulares, distanciando-se ainda mais da versão tradicional, pois o Lobo estava ali, mas agora que ela o encontrou, o medo foi diminuindo, foi ficando só um pouquinho de medo e por fim acabou o medo do lobo e ficou só o lobo. Mas ele ficou bem aborrecido com isso, afinal era um Lobo e Lobo sem o medo fica como um “lobo sem pelo”. Inconformado, ele gritou: “Sou um LOBO”, e continuou berrando para a Chapeuzinho, que não se importava mais. Aí, de tanto gritar LO BO LO BO LO BO, acabou ficando BOLO.

E assim a menina encontrou uma maneira de lidar com seus me-dos: “O raio virou orrái; barata é tabará; a bruxa virou xabru [...]”.

Deu a louca na Chapeuzinho

O filme Deu a louca na Chapeuzinho recebeu uma continuação, Deu a louca na Chapeuzinho 2, mas para este estudo vamos utilizar ape-nas a primeira versão. Trata-se de um filme de animação que inicia pela clássica cena com o lobo, a menina estranhando os olhos, boca, mãos da “vovó”, culminando na entrada teatral do lenhador com seu machado. Corte da cena e retomada com a investigação de um crime, no caso a confusão entre a Chapeuzinho, a Vovó, o Lenhador, considerados en-volvidos em roubo de receitas de doces. O sapo inspetor, Nick, surge para assumir o caso, pois as receitas de doces estão sumindo. Chapeuzi-nho passa a ser interrogada e resolve contar a história desde o início, ini-ciando um flashback, adotando a estratégia de alternar presente e pas-sado. O perfil de Chapeuzinho é delineado de uma forma diferenciada, mais moderna, andando de bicicleta, trabalhando como entregadora de doces, mas com o tradicional chapeuzinho vermelho. A preocupação maior é buscar pistas sobre o roubo das receitas de doces.

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A investigação leva Chapeuzinho para o alto das montanhas, para a casa da Vovó, porém no trajeto ela acaba por ficar sozinha em um ambien-te com mistérios e ameaças. E assim que se perde na floresta, encontra-se com o Lobo, mas acaba por fugir dele e tem dificuldades para encontrar sua avó, que por sua vez, também desafiando estereótipos, apresenta-se bas-tante ativa. Chapeuzinho relata ao sapo inspetor os acontecimentos já bem conhecidos do universo infantil, o estranhamento com a aparência da Vovó, a ameaça do lobo, o lenhador chegando para livrá-las do perigo. Mas a his-tória não é tão simples assim, pois além da alternância entre o presente e o passado, ainda há a mudança de foco narrativo, pois a mesma história será agora contada pelo Lobo ao inspetor, que passa a interrogá-lo.

O Lobo se apresenta como um repórter investigativo, que estava atrás do criminoso ladrão de receitas de doces e suspeitou de Chapeu-zinho, pois ela ficava na floresta entregando doces e ele desconfiava que ela estava ligada ao roubo das receitas. Um carneiro corrobora essas suspeitas, ao dizer ao Lobo que avó da Chapeuzinho morava no alto da colina e trabalhava com doces. O Lobo desconfiava que Cha-peuzinho e a Vovó é que eram as criminosas e por conta disso ele pega um atalho para chegar à casa da Vovó, fazendo-se passar por ela para conseguir uma confissão do crime de Chapeuzinho.

O próximo a ser chamado a depor foi o Lenhador. Ele na verda-de estava ensaiando na floresta para um teste pensando em traba-lhar em um comercial. Ele foi escolhido para representar o lenhador e foi fazer um “laboratório” para o papel, ou seja, vivenciar ser um lenhador na floresta. Por conta de um acidente na vida de lenhador (ele derruba uma árvore que cai e rola atrás de si) ele entra de forma intempestiva na casa da avó de Chapeuzinho.

A investigação avança e os depoimentos vão mostrando diferentes perfis dos personagens já tão conhecidos pelo universo infantil dos contos de fadas até chegar à subversão do final do filme. Assim, algumas referên-cias básicas dos tradicional conto de fadas se mantêm, no entanto outras referências são agregadas, “atualizando” os personagens aos nossos tem-pos e relativizando a bondade e a maldade da história tradicional.

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3.3 Literatura e Música

Como vimos anteriormente, a literatura possui uma dimensão dinâ-mica, que permite sua constante reavaliação interna, no sentido de novas possibilidades de manifestação, assim como em relação à sua interação com outras linguagens. Iniciamos a unidade aproximando a literatura das narrativas que trabalham com a linguagem cinematográfica. Neste mo-mento, traremos a discussão para o universo musical, e assim como o fizemos anteriormente, destacamos que são diversas as opções de abor-dagem entre literatura e música, e aqui nos centraremos em uma dessas muitas opções. A ideia é utilizar as obras apresentadas como referenciais para muitos outros trabalhos a serem desenvolvidos em sala de aula. O objetivo maior é estabelecer uma abordagem de um ponto de vista mais abrangente e destacar diferentes estratégias para o ensino de literatura.

As letras das músicas já por si estabelecem uma relação com a li-teratura, pois há um lirismo e uma forma bem similares aos poemas. A própria gênese do gênero lírico já assim o demonstra, como a etimo-logia da palavra lírico expõe, uma vez que remete à lira, instrumento musical que acompanhava a apresentação das composições poéticas, imprimindo musicalidade e potencializando o ritmo dos versos.

A música “Amor I love you” foi composta em parceria entre Marisa Monte e Carlinhos Brown, e integra o álbum Memórias, Crônicas e Decla-rações de Amor, lançado em 2000. A letra apresenta temática romântica, como o título ilustra, e a aproximação com a literatura se estabelece a partir da utilização de um trecho do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós.

Amor I Love You

Deixa eu dizer que te amo

Deixa eu pensar em você

Isso me acalma, me acolhe a alma

Isso me ajuda a viver

Hoje contei pras paredes

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Coisas do meu coração

Passei no tempo, caminhei nas horas

Mais do que passo a paixão

É um espelho sem razão

Quer amor, fique aqui

Deixa eu dizer que te amo

Deixa eu gostar de você

Isso me acalma, me acolhe a alma

Isso me ajuda a viver

Hoje contei pras paredes

Coisas do meu coração

Passei no tempo, caminhei nas horas

Mais do que passo a paixão

É o espelho sem razão

Quer amor, fique aqui

Meu peito agora dispara

Vivo em constante alegria

É o amor que está aqui

Amor I Love You

“... tinha suspirado,

tinha beijado o papel devotamente!

Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades,

e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas,

como um corpo ressequido que se estira num banho tépido;

sentia um acréscimo de estima por si mesma,

e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante,

onde cada hora tinha o seu encanto diferente,

cada passo condizia a um êxtase,

e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”

Amor I Love You

O escritor Eça de Queirós (1845-1900) é representante do Realismo português, justamente uma estética literária que vem após o Romantis-

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mo, Romantismo esse com suas personagens idealizadas e valorização dos sentimentos, em especial o sentimento amoroso, e uma postura de distanciamento em relação ao contexto histórico-político-social. Eça de Queirós se apresenta como um escritor crítico, imprimindo um olhar atento para a sociedade do final do século XIX, que a par do desenvol-vimento econômico, ainda apresentava muito problemas sociais, como Machado de Assis similarmente apontou na literatura brasileira em ro-mances como Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, o qual estudamos em Literatura Brasileira II.

Em O Primo Basílio, publicado em 1875, Eça mostra os “males” do Romantismo através da personagem Luísa, burguesa entediada pela vida vazia e que se deixa seduzir pelo primo do título. Luísa era leitora de ro-mances românticos, em grande parte responsabilizados pela superficiali-dade de sua existência. A futilidade dos romances-folhetins românticos contribuía para o estado de alienação da personagem. Outras obras do autor também se alinham a essa perspectiva, como O Crime do Padre Amaro, obra que polemizou ao expor as instituições religiosas que pos-suem em seu interior pessoas como o Padre Amaro, o qual se envolve com Amélia, jovem “romântica”. Esse relacionamento tem desdobramentos, que envolvem a gravidez de Amélia, mortes e a hipocrisia social.

Em O Primo Basílio Eça de Queirós ataca a constituição da famí-lia portuguesa em seus meandros e frágil constituição moral. Os perso-nagens são representativos dessa sociedade. O casal principal, Luísa e Jorge, vive um matrimônio ditado por essas convenções, e que deveria funcionar, não fosse pelo fato de Luísa ter a oportunidade de romper com essas convenções através de um romance clandestino com Basílio. Porém, é importante destacar, o relacionamento de Luísa e Basílio servia apenas para distração de sua vivência fútil, voltados ambos apenas para si mesmos. Os planos do casal foram dificultados por Juliana, empre-gada da casa, explorada em seu trabalho doméstico. Ao descobrir o se-gredo da patroa, passou a chantageá-la para garantir uma vida melhor.

É dessa obra que foi extraído o excerto da letra da música, que traz o narrador do romance descrevendo a emoção de Luísa, ao estilo da

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estética do Romantismo, emoção essa, conforme o dissemos, que cor-responde a um simulacro de paixão, uma ilusão para o preenchimento do tempo ocioso. Válido ainda destacar que em uma traição, a punição para a personagem feminina costuma ser mais exemplar do que para a figura masculina, representando na ficção o que também ocorre fora dela. Ou seja, havia uma lição de moral, para “desestimular” outras bur-guesas entediadas para que não adotassem o mesmo comportamento. Mesmo sendo Eça de Queirós um crítico da sociedade de seu tempo, não deixou de a ela pagar tributo nesse sentido das relações de gênero, pois Luísa é exemplarmente punida no romance.

A associação entre música e literatura na canção “Amor I love you” destaca a temática romântica, mas apresentando o sentimento amoroso em diferentes perspectivas. A letra propriamente dita expõe a subjeti-vidade do eu-lírico externando seus sentimentos, enquanto o excerto a partir da obra de Eça de Queirós apresenta um olhar diferenciado, pois aborda o amor, mas de um ponto de vista crítico-social e de reavaliação da estética romântica do século XIX.

Ao explorar as diferentes linguagens, tanto a música quanto a literatu-ra, várias serão as possibilidades, desde o ritmo, rimas, o lirismo próprio da canção, até o estudo do Realismo oitocentista, tanto em Portugal quanto no Brasil. A temática da música pode ser comparada a outras manifestações em diferentes tempos, selecionando uma música ou filme do século XXI como contraponto, por exemplo, e ampliando a visão sobre o tema.

3.4 Literatura e Quadrinhos

As histórias em quadrinhos, ou HQs, como também são conheci-das, trabalham essencialmente com a narrativa, mas com uma lingua-gem própria, que inclui a divisão em quadros, o uso de balões para os diálogos e o traço do desenho que registra a história com um design específico. Já houve um tempo em que as histórias em quadrinhos eram consideradas com certo preconceito, mas atualmente se percebe uma mudança nessa postura. No livro A Leitura dos Quadrinhos, de Paulo

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Ramos, o autor destaca a relação harmoniosa entre quadrinhos e educa-ção e a “presença deles nas provas de vestibular, a sua inclusão no PCN (Parâmetro Curricular Nacional) e a distribuição de obras ao ensino fundamental”. Isso faz com que os quadrinhos se constituam em uma importante ferramenta no processo ensino-aprendizagem.

3.4 .1 A linguagem dos quadrinhos

As diferentes linguagens acabam por se tangenciar em alguns recur-sos e se distanciam em suas especificidades. No caso dos quadrinhos, há a aproximação “com os recursos da ilustração, da caricatura, da pintura, da fotografia, da parte gráfica, da música e da poesia (trabalhadas por ele de forma integrada), da narrativa, do teatro e do cinema”, conforme o destaca Paulo Ramos. Os quadrinhos trabalham fundamentalmente com as imagens e os diálogos. Também há a presença do narrador, mas bem menor do que em um romance, por exemplo. Os quadrinhos representam a estrutura narrativa da história, registrando o tempo e o espaço. Os per-sonagens são delineados por narrações que acompanham os quadrinhos, através dos diálogos, mas também, e aí encontramos a principal diferença em relação aos romances, pela representação gráfica, através dos traços do desenhista responsável, que não corresponde, necessariamente, à figura do roteirista da história, ou seja, podemos ter um escritor e um ilustrador (ou ainda uma equipe de redatores e uma equipe de desenhistas). A arte sequencial pode ser criada com um trabalho coletivo.

Outra característica dos quadrinhos é a possibilidade de manter os mesmos personagens e publicar diferentes histórias em que eles apareçam. Há vários exemplos a serem citados, como os clássicos dos super heróis ou mesmo personagens da Turma da Mônica. O tempo e o espaço podem sofrer alterações, com edições que apresentam o passado dos personagens, por exemplo a história que mostra porque Bruce Wayne se transforma em Batman (a maneira como seus pais são assassinados por ladrões, situação que desperta seu senso de justiça); ou ainda as edições que apresentam Mônica e Cebolinha como adoles-centes, ou seja, além das histórias em que eles aparecem como crianças (e que representam o a priori da narrativa), há também histórias em

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que ocorre o deslocamento temporal, apresentando-os com mais ida-de e vivenciando histórias próprias dessa fase.

O principal recurso gráfico para a representação da fala e do pensa-mento é o balão. É através dos balões que as falas e pensamentos dos per-sonagens são registradas, com diferenças, pois o balão do pensamento é semelhante a uma nuvem, enquanto o da fala apresenta traços mais retilí-neos. Essa linha que delimita o balão é chamada de “signo de contorno” e é onde aparece o texto, seja do diálogo direto, seja do monólogo interior. É importante ainda destacar que além do balão da fala e do pensamento, há outras espécies de balões, como o balão cochicho, com linha pontilhada, in-dicando que o personagem está falando baixinho; o balão berro, com traços maiores, indicando a alteração do tom do voz; os balões intercalados, repre-sentativos do diálogo, nos quais no meio da fala de um personagem aparece o balão da fala de outro; o balão sonho, aquele que representa através de desenho o conteúdo do sonho do personagem; dentre outros.

Os quadrinhos aproximam-se do cinema no sentido de apresen-tarem a história através de cenas narrativas. O quadrinho geralmente trabalha elementos relativos ao tempo, ao espaço, com os personagens que estejam envolvidos em determinado momento da história. Assim, a leitura dos quadrinhos comporta uma dimensão ampliada em relação à literatura, pois além da escrita verbal, há também o registro icônico, através dos traços dos desenhos.

Os quadrinhos podem apresentar diferentes formatos, com diver-sos propósitos, desde contornos mais convencionais (como o quadrinho propriamente dito), passando por contornos em formatos circulares, por exemplo. Esse contorno delimita a cena do quadrinho e compõe uma se-quência narrativa, podendo ser maiores ou menores, de acordo com as intenções do ilustrador, que pode optar por um desenho que mostre uma cena mais panorâmica, com vários elementos e personagens ou o close de um livro ou ainda apenas os olhos de determinado personagem.

Quando se fala em quadrinhos há essa denominação mais geral, po-rém, existe uma subdivisão do gênero (charge, cartuns, tiras). Em nossa

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abordagem utilizaremos o termo quadrinhos como uma referência mais geral, pois não é nossa intenção aprofundar os estudos sobre essa lingua-gem, mas sim aproximá-la das manifestações literárias. Neste ponto de nossas reflexões sobre a literatura e as outras linguagens, trabalharemos com a adaptação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para os quadrinhos, com roteiro e ilustrações de Sebastião Seabra. Será interes-sante observar a mesma história em outra linguagem e perceber como essa obra de Machado de Assis se apresenta através de desenhos e o papel do narrador (tão importante na narrativa literária, conforme pudemos constatar em Literatura Brasileira II) nessa versão quadrinística.

Romance em Quadrinhos: Memórias Póstumas de Brás Cubas

A linguagem dos quadrinhos apresenta como característica ser me-nos formal do que a linguagem dos romances, por exemplo. No entanto nos quadrinhos, com a adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a opção foi a de manter a linguagem mais próxima do século XIX. Como o romance é narrado em primeira pessoa, há uma distinção: quando se trata do narrador, o texto aparece em retângulos no alto dos quadrinhos, quando se trata da fala de Brás Cubas são utilizados os balões. Há também uma preocupação em registrar o que é retirado do livro utilizando aspas. Por exemplo, no início aparece um retângulo com o seguinte excerto: “Al-gum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, pelo meu nascimento ou pela minha morte”. Logo, a utilização de aspas marca os excertos que são transcritos do livro de Machado de Assis, enquanto outros retângulos trazem o texto adaptado para os qua-drinhos. É de se entender que romances são romances e quadrinhos são quadrinhos, ou seja, não teremos o romance na íntegra nos quadrinhos, mas o que temos é uma narrativa sequencial, com ilustrações, a qual re-contará a história do romance. Como alertamos no início desta unidade, o que está em questão não se reduz a comparar qual é a melhor lingua-gem, ou estabelecer uma hierarquia de linguagens, mas reconhecê-las em suas diferenças e especificidades e explorar o potencial que elas oferecem.

As ilustrações são coloridas e se mantêm em consonância com as características do século XIX no que se refere ao figurino dos perso-

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nagens e aos desenhos que representam os diferentes espaços, móveis e utensílios. Além do figurino, o perfil das personagens apresenta tam-bém cortes de cabelo e penteados condizentes com a época em que a narrativa transcorre. A história contada nos quadrinhos está em con-sonância com a que é apresentada pelo romance. O início traz a morte do narrador protagonista e, a partir daí, as reminiscências de sua vida. A edição traz também notas de rodapé, no sentido de esclarecer o sig-nificado de alguns nomes e termos, auxiliando o leitor com o vocabu-lário da época. Um exemplo é quando o Dr. Vilaça se põe a glosar a partir de motes, e Brás (ainda criança) tinha que aguardar o final dessa apresentação para poder se servir de uma compota. Em nota de roda-pé vem a explicação: “mote: tema, assunto expresso em um ou mais versos para ser glosado, desenvolvido em uma composição poética”.

Um dos casos amorosos marcantes de Brás Cubas foi o que ele estabe-leceu em sua juventude com Marcela, a cortesã. No livro, o caso é descrito em várias páginas, mas na arte sequencial são poucos os quadrinhos que mostram o romance. Brás a conhece em um passeio e demonstra interesse pela “linda Marcela”, logo em seguida já aparece cortejando-a e lhe entre-gando o colar que ela finge não ligar. Em um retângulo reservado para a narração da história há o registro entre aspas da célebre frase: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos”.

No romance temos o narrador personagem contando sua própria história ao longo da vida, em diferentes fases, com diferentes idades. Na história em quadrinhos o narrador personagem aparece translúcido, muito provavelmente para dar a ideia de alguém que já se foi, o “defunto autor”, e quando aparece em outras fases de sua vida, ele é representado sempre de acordo com a idade e a época nas quais os fatos se passaram. Isso colabora graficamente para a compreensão da obra, pois estabelece uma diferença marcada no design entre o narrador e o personagem em momentos diferentes de sua vida (ou morte, no caso do narrador), é tam-bém uma forma de manter a construção tão específica do narrador intru-so, pois ele aparece intercalando os quadrinhos das reminiscências, com seus comentários escritos “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

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Na página 18, temos o uso do balão de pensamento, quando Brás Cubas visita Dona Eusébia (a que Brás flagrou anos antes beijando o Dr. Vilaça no jardim, às escondidas, no dia em que queria a compota e o glosador emendava um mote atrás do outro). A senhora chama pela filha e a apresenta a Brás: “Minha filha, Eugênia”. Ao que Brás pensa: “A flor da moita!”. Apesar dos muitos atributos de Eugênia, Brás não leva adiante o relacionamento, pois ela tinha um problema físico que a fazia mancar. E o personagem segue adiante pensando cinicamente: “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”.

Do ponto de vista sentimental, a vida de Brás Cubas é marcada por seu envolvimento com Virgília. Quando eram solteiros não investiram no relacionamento, mas passaram a se interessar um pelo outro quando ela já estava casada com Lobo Neves, tendo assim um romance clan-destino (como o de Luísa, em O Primo Basílio). Por fim, as convenções os chamam à “realidade” e voltam a cumprir os papéis sociais a eles atribuídos. O sofrimento de ambos é apenas o suficiente para compor o contexto da situação e superado em vista de outros compromissos. O narrador expõe ao leitor: “A lembrança de Virgília aparecia de quando em quando, mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, terna, luminosa, angé-lica”. Ele se referia a Nhá Loló, sua nova conquista, que faleceu precoce-mente, cabendo neste momento mais uma reflexão do narrador: “Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte”.

As pretensões políticas de Brás não se concretizaram, assim como o relacionamento com Virgília, ou a fabricação do emplasto. Ele era um típico representante das elites, enfadado e alheio aos problemas sociais. O realismo machadiano estava pois representado justamente por uma obra cujo narrador era um defunto, livre das penas terrenas para escre-ver e refletir sobre sua vida. A consciência de si mesmo não lhe permitiu avançar muito nesse sentido, pois durante a história se mostra sempre muito condescendente consigo. Suas atitudes e palavras são respaldadas por essa falta de consciência crítica, potencializando a maneira superfi-cial que ele tem ao contar suas memórias.

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3.5 Literatura e Novas Tecnologias nos

processos educativos

O desenvolvimento tecnológico atingiu diversos setores, inclusive o contexto cultural e, mais especificamente em nosso estudo, a literatu-ra. Nos últimos anos aumentou expressivamente o número de pessoas que têm acesso ao computador e à internet. Isso fez com que a relação com a literatura também se modificasse, pois o tradicional suporte de papel passou a dividir espaço com o registro virtual. Dentre as muitas iniciativas, destacam-se as bibliotecas virtuais e os e-books, os sites es-pecializados em literatura e endereços eletrônicos para a divulgação de produção literária e os blogs, espaço mais individualizado para tornar públicos poemas, contos, romances, por exemplo.

De início muito se especulou sobre os problemas possíveis com relação a essa inovações, considerando-se que a literatura estaria pre-judicada nessas relações, que os livros em papel seriam abandonados ou substituídos, que haveria uma precarização da leitura, dentre outros argumentos. Mas o que se percebe ao longo do tempo é que a literatura não foi absorvido pela tecnologia, ao contrário, adaptou-se a ela, desdo-brando e ampliando suas possibilidades.

O dia-a-dia das pessoas acabou por ser alterado pelas novas fer-ramentas de informação e comunicação, hoje é quase inconcebível que alguém trabalhe ou estude sem um computador ligado à internet. Até mesmo as relações pessoais foram afetadas através dos sites de relacio-namento, como o twitter e o facebook. As notícias são veiculadas prati-camente em tempo real e rapidamente reproduzidas. Esses fatos pos-suem virtudes e também podem causar problemas, especialmente pelo excesso, quando as pessoas se tornam dependentes dessa tecnologia. O importante a ser destacado é que a literatura não poderia ficar alheia a esse processo, pois ele é abrangente e dinâmico. Ou seja, destacamos que ao invés de se perceber esse movimento como “negativo”, devemos explorar positivamente as novas ferramentas que se apresentam.

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Essa rede de novas possibilidades, no entanto, requer nossa atenção no sentido de acompanhar e orientar o estudo da literatura através das novas tecnologias. Essencialmente, o estudo da literatura é feito através do suporte do livro didático (ou apostilas) e, em alguns casos, com a soli-citação da leitura de obras literárias específicas. No caso do livro didático, a literatura é apresentada através de excertos de obras mais longas, como capítulo ou trechos de romances, contos e crônicas que não ultrapassem muitas páginas ou poemas. Conforme antes abordado, após a apresenta-ção do texto literário são propostas algumas questões para “interpretação” do texto, mas que acabam por se reduzir a uma verificação de leitura. Cla-ro está que esse encaminhamento é precário e insuficiente para o trabalho com a literatura. Os excertos e trechos de obras mais longas são apresen-tados sem a noção do todo e muitas vezes, sequer o próprio professor leu a referida obra na íntegra. No caso de contos, crônicas e poemas, teremos um texto que provavelmente faz parte de um livro com vários outros e a noção de conjunto acaba por se perder. Nesse sentido, o uso das bibliote-cas virtuais e sites especializados em literatura pode colaborar de maneira efetiva. Através do acesso a esses espaços virtuais, o aluno pode ampliar suas leituras a respeito de um determinado autor ou de determinada es-tética literária e complementar/enriquecer o trabalho realizado com o apoio do livro didático. Porém, o professor deve orientar essas pesquisas e sugerir endereços eletrônicos confiáveis.

A navegação por sites literários se constitui em uma maneira diferen-te de se estudar literatura e até mesmo a experiência de leitura será outra. Ser diferente não significa ser melhor ou pior, mas apenas isto: diferente. Será outra forma de abordagem, com uma liberdade que o livro didático ou a obra escolhida para a sala toda ler não oferecem. O aluno poderá ler outros poemas, outros contos, passar a escritores que trabalham com te-máticas que ele considere mais interessantes, enfim, vivenciar a literatura por novos prismas e se tornar ele também um agente nesse processo de construção do conhecimento literário (e que nunca se encerra, pois uma vida só é pouca para tantas obras importantes e interessantes).

Essas modificações tecnológicas podem alterar o modo de se fa-zer literatura e sua recepção, seja através de temáticas pertinentes a esse

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momento atual, seja mesmo por novas possibilidades literárias, como por exemplo, o gênero miniconto que tratamos anteriormente, breve, sintético, buscando estabelecer um contato instantâneo com o leitor.

O computador oferece instrumentos que viabilizam o contato com a literatura em diferentes suportes. Como destacamos nas relações es-tabelecidas pela literatura em interação com outras linguagens, o com-putador pode oferecer o acesso ao livro, ao filme adaptado desse livro e até ao game baseado no livro e no filme. A narrativa pode permanecer centrada na linguagem verbal, mas pode também ser ampliada para ou-tras linguagens, com diferentes propósitos. Não existe uma obrigatorie-dade de se trabalhar com todas as linguagens, como vimos, o professor selecionará as obras que serão estudadas de acordo com os propósitos da disciplina. Nem aqui se sugere o trabalho com os games (embora isso seja possível, desde que esse trabalho esteja integrado aos objetivos pro-postos no estudo de determinado conteúdo). O que se destaca é que há variadas maneiras de não centralizar e restringir o estudo da literatura ao livro didático. Há uma diversidade de ferramentas, programas, su-portes, mídias que podem ser auxiliares na educação, uns mais clássicos, outros mais inovadores ou até mesmo lúdicos. Todos eles se apresentam como possibilidades para subsidiarem o trabalho docente.

A aprendizagem com o apoio da internet remete à noção de hiper-texto, ou seja, em um texto em formato digital, surgem termos, símbolos ou expressões destacadas que, ao serem clicados, levam o internauta a outros espaços virtuais que explicam, exemplificam ou se centram em mais informações sobre o assunto. Assim, por exemplo, um romance do século XIX em formato digital pode apresentar dados complementares sobre determinada expressão ou até mesmo o significado de algum ter-mo. Logo, é possível estabelecer uma grande rede de ligações, interco-nectando dados ao texto principal.

O hipertexto é um dos paradigmas básicos em que a teia mundial se

baseia. Ele é uma espécie de texto multi-dimensional em que numa pá-

gina trechos de texto se intercalam com referências a outras páginas.

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Clicando com o ``mouse’’ numa referência destas a página corrente é

substituída pela página referenciada. [...]

O hipertexto é muito apropriado para a representação de informações

no computador por dois motivos: permite subdividir um texto em tre-

chos coerentes e relativamente curtos, facilitando a sua organização e

compreensão; permite também fácil referência a outras partes do texto

ou a outros textos, totalmente independentes, muitas vezes armazena-

dos em locais distantes. Isto cria uma característica própria de leitura

da informação que, após um curto processo de adaptação, passa a ser

intuitivo para o usuário, que se refere a esta leitura como “navegação”’.

(http://www.ime.usp.br/~is/abc/abc/node9.html)

A rapidez das atuais relações entre a literatura e a tecnologia exige atenção, pois recursos utilizados em um passado não muito distante já vão cedendo espaço para outros mais modernos. É o caso do CD-Rom, por exemplo, que superou o disquete, mas que agora está sendo suplan-tado pelo pendrive. Mesmo os DVDs aparecem como obsoletos frente a outras alternativas e o próprio aparelho de DVD pode ser substituído por um computador com um programa adequado para a reprodução de vídeos. Ou seja, a aproximação da literatura com a tecnologia está cons-tantemente sendo modificada, o que exige bastante do ponto de vista do investimento necessário para que as escolas se mantenham atualizadas e em consonância com as inovações desse setor.

A atuação docente pode, portanto, beneficiar-se da tecnologia por meio da renovação da prática e metodologia de ensino. As novas tec-nologias são capazes de colaborar diretamente com o ensino de litera-tura, possibilitando aos alunos maneiras diversas de entrar em contato e explorar os textos literários. Além do texto previsto no livro didático e questões de interpretação, é possível ampliar essa abordagem lançan-do mão de novas ferramentas, conforme destacamos anteriormente. Alguns endereços eletrônicos trazem inclusive comentários de pessoas que visitaram o site, compartilhando opiniões sobre os textos. Essas ex-periências devem ser exploradas também em sala de aula, coletivizando

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as pesquisas realizadas na internet, sugerindo endereços virtuais com fontes fidedignas, atualizando assim as formas de leitura e estimulando o espírito crítico construído em bases mais sólidas e abrangentes.

Dependendo dos recursos disponíveis na escola e em casa, os pro-fessores poderão trabalhar com seus alunos com diferentes ações, en-volvendo a criação de grupos para troca de informações e comentários através de e-mails; com o estimulo à criação de blogs literários (e su-gestão de blogs para leitura); construção de uma lista de sites confiáveis para pesquisa literária; dentre outras possibilidades.

Diante dos muitos desafios na educação, os avanços tecnológicos devem ser considerados como aliados para o desenvolvimento e estí-mulo ao estudo da literatura. O computador pode ser um elo entre a escola e a sociedade contemporânea, que exige cada vez mais habilidades das novas gerações. Portanto, não basta conhecer os principais escritores e obras e as diferentes correntes literárias. É preciso estabelecer conexões entre esse conhecimento formal e a capacidade de inferir, construindo um saber que não seja enciclopédico, mas que capacite a pensar criticamente.

Leia mais!

Recomendamos que vocês conheçam o NUPILL, Núcleo de Pesquisas em

Informática, Literatura e Linguística da UFSC, coordenado pelo prof. Alckmar

Luiz dos Santos, o qual apresenta, dentre outras iniciativas, a Biblioteca Digi-

tal de Literatura e o Portal Catarina, com ênfase à literatura catarinense. Em

http://www.nupill.org/ .

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Palavras Finais

Ao longo do livro destacamos diferentes perspectivas em suas nuanças e complexidades. Com certeza são conteúdos de grande im-portância para sua formação acadêmica assim como para sua atuação profissional. Tente sempre aliar teoria e prática, utilizando os conheci-mentos teóricos como base fundamental para uma leitura mais crítica e especializada dos textos literários. Há leitores em todas as esferas da sociedade, mas vocês, docentes e futuros docentes, precisam de um diferencial em relação aos outros leitores, pois trabalharão justamente para mostrar o potencial oferecido pela literatura e sua representação enquanto fato cultural.

O processo de conhecimento de cada um de vocês precisa ser cons-tante e dinâmico, será sempre necessário dedicar-se e considerar, em meio às exigências recebidas, a importância de manter-se atualizado, lendo tanto os textos teóricos quanto os textos literários.

Encerramos essa disciplina, mas ela suscitará mais, e estimulará a busca incessante de conhecimento, considerando as dificuldades próprias nesse processo. Neste momento destacamos que as respostas não estão prontas, elas devem ser construídas, o processo ensino-aprendizagem é dinâmico e mútuo. O objetivo maior de quem busca o saber não é en-contrá-lo pronto acompanhado de um “manual de uso”, é colocar-se no centro da discussão, visando aprender o máximo possível, reconhecendo que atingir esse objetivo é um dos grandes desafios que se impõem.

Assim, espero que tenham aproveitado ao máximo as oportunidades de estudo e reflexão aqui propostas e dêem continuidade ao curso com a certeza de terem cumprido mais uma etapa importante em sua formação.

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RefeRênCias

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