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Estudos Literários I Florianópolis - 2008 José Ernesto de Vargas Período

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Estudos Literarios I

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Estudos Literários I

Florianópolis - 2008

José Ernesto de Vargas2ºPeríodo

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Governo FederalPresidente da República: Luiz Inácio Lula da SilvaMinistro de Educação: Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MullerDepartamento de Educação a Distância: Araci Hack CatapanPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: José Roberto O’SheaPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Carlos Alberto Marques

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretora Unidade de Ensino: Viviane M. HeberleChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

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Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsável: Thiago Rocha OliveiraAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraRevisão: Laura Martins RodriguesDiagramação: Laura Martins Rodrigues, Marcela Goerl, Karina Silveira, Rafael de Queiroz OliveiraFiguras: Rafael de Queiroz OliveiraRevisão gramatical: Tony Roberson de Mello Rodrigues

Design InstrucionalResponsável: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Verônica Ribas Cúrcio

Copyright © 2008, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

V297e Vargas, José Ernesto de Estudos Literários I / José Ernesto de Vargas. Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2008. 126p. : 28cm ISBN 978-85-61482-10-7 1. Literatura Latina. 2. Civilização Romana. 3. Poesia Latina. I. Título. CDD 82

Catalogação na fonte elaborada DECTI da Biblioteca da UFSC

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Sumário

Unidade A ............................................................................................ 9Introdução ...........................................................................................................11

1 História de Roma ...........................................................................................13

1.1 História Política ..................................................................................................13

1.2 A Sociedade Romana ......................................................................................23

2 Cultura de Roma ............................................................................................29

2.1 A Cultura que Não Morre(u) ..........................................................................29

Unidade B ...........................................................................................41Introdução ...........................................................................................................43

3 Poesia .................................................................................................................51

3.1 A Poesia Épica ....................................................................................................52

3.2 A Poesia Dramática...........................................................................................58

3.3 A Poesia Lírica .....................................................................................................73

3.4 A Poesia Satírica ................................................................................................96

3.5 A Poesia Didática .............................................................................................104

4 Prosa ................................................................................................................ 115

Referências Bibliográficas .......................................................... 123

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Apresentação

Carissimi discipuli,

Por motivos de tempo e, em parte, de distância entre nós, mas não ne-

cessariamente de espaço, uma vez que o ciberespaço é infinito, o con-

teúdo a ser focalizado nesta disciplina é a Literatura Latina, tomada

aqui stricto sensu. Ou seja, a literatura que mais interessa num curso de Letras, a

ficcional, a poesia e a prosa latina. Delimitando um pouco mais este vasto uni-

verso, o período enfocado será o de quatro séculos, de II a.C, momento ainda

de formação da literatura latina, até II d.C, quando se inicia a derrocada das

artes e da própria cultura romana. Dentro desse corpus encontraremos os prin-

cipais autores e obras latinas, aqueles que compõem a era clássica romana e que

se tornaram modelos para os escritores posteriores e para outras literaturas.

Começaremos nossos estudos com uma breve história da civilização romana,

sua política, sociedade e cultura (as artes: arquitetura, urbanização e literatura

lato sensu, ou seja, literatura enquanto conjunto de textos não ficcionais escri-

tos em latim). Essa será a primeira Unidade.

A seguir, na segunda Unidade, virá o principal tópico, o de literatura, o maior

de todos, que tratará de Poesia, subdividido em cinco Capítulos: a poesia épi-

ca, a poesia dramática, a poesia lírica, a poesia satírica e a poesia didática e, por

fim, a Prosa latina. A ordem se deve ao critério de acompanhar uma tradição

dada pelos estudos literários iniciada por Aristóteles, com quem estaremos

dialogando muitas vezes e, em parte, por uma seqüência de surgimento histó-

rico no cenário literário.

José Ernesto de Vargas

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Unidade AHistória e Cultura Romanas

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Introdução

Nesta unidade iremos relembrar os principais elementos da História de

Roma para um melhor aproveitamento dos conteúdos de literatura, tanto

da crítica quanto da ficcional, para que o aluno perceba a permanência e a

importância da cultura latina no mundo ocidental.

Ingens orbis in Urbe fuit.

(Ouidius, Ars Amatoria, 1, 174)

O imenso mundo estava na Cidade de Roma.

(Ovídio, A arte de amar, 1, 174)

A história da antiga Roma tem seus limites temporais entre os anos de 753 a.C e 476 d.C., perfazendo mais de mil duzentos e vinte anos de vida, só no Ocidente. Quatrocentos anos de glória, de conquistas bé-licas, de administração, de manutenção das anexações territoriais, de vigor artístico. Duzentos anos de literatura representativa desse mundo. Entretanto, se considerarmos a duração do Império Romano no Orien-te, podemos falar de quase mil anos a mais, tendo em vista que este se estendeu até 1453. Se lembrarmos que menos de cinqüenta anos depois os europeus, através dos povos ibéricos, ocupariam a América, podería-mos dizer que esse mundo se presentifica até muito recentemente, até a Era Moderna. Mas, logicamente, esta é outra história, que não nos diz respeito propriamente, se não às culturas orientais.

Quanto aos limites espaciais, o Império compreende a geografia de três continentes: Europa, África e Ásia. No primeiro, ocupou a por-ção ocidental como um todo, incluindo a Britânia (atual Inglaterra) e boa parte da porção oriental (excetuando as regiões mais ao norte, em nossos dias a Rússia). No segundo, o norte africano, acima do deserto saariano. No terceiro, as regiões costeiras mediterrânicas (Síria, Judéia e parte da Arábia). Dominando toda a bacia do Mediterrâneo e por causa disso todo o mundo ocidental, Roma então se autodenominava Domina gentium (Senhora dos povos).

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Pois é desta Roma que trataremos inicialmente, apontando seus principais aspectos históricos, sociais e políticos para então, num segun-do momento, pensarmos num mundo e numa cultura que extrapolam esses limites e chegam aos nossos dias com pleno vigor, que chegam a lugares os quais não conheceram o Império Romano, justificando desse jeito o nome de Império e a profecia de que “enquanto o Coliseu estiver de pé, Roma estará de pé”, bem como a fama de Cidade Eterna.

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Capítulo 01História de Roma

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1 História de Roma

1.1 História Política

Roma conheceu três importantes fases em se tratando de sistema político. Foram elas, na seqüência, a Monarquia, a República e o Impé-rio, das quais nos ocuparemos a partir de agora.

1.1.1 A Monarquia

Esta foi a primeira experiência que Roma viveu como forma de fazer política. Certamente você estudou esse conteúdo na escola, assim vamos apenas relembrar as questões mais importantes. A monarquia foi vivenciada desde a fundação da cidade, em 753, mesmo que não com-provada historicamente, até o ano de 509 a.C. É um período de que não se tem muito conhecimento, nem os próprios romanos tinham, razão pela qual as lendas falam mais alto. Uma delas muito famosa, a qual certamente você já ouviu alguma vez, a dos irmãos gêmeos Rômulo e Remo, que foram amamentados por uma loba. Outra, se você não co-nhece, o fará quando do estudo da poesia épica romana, a Eneida, ou a epopéia de Enéias, o troiano.

Apesar de possuírem muita tradição em historiografia, gregos e ro-manos, supersticiosos como muitos povos antigos, lidavam tanto com os fatos quanto com lendas e outras imprecisões, e mesmo superstições. As Ciências antigas não devem ser entendidas do mesmo modo que as compreendemos modernamente. É o que comprova o aforismo antigo Scribitur ad narrandum non ad probandum. Aristóteles, em sua Poéti-ca, deixa clara a percepção dos antigos em relação ao que era História e o que era ficção:

Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que po-deria acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimi-lhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam

“Escreve-se para narrar, não para provar.”

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Unidade A - História e Cultura Romanas

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de ser história, se fossem em verso o que era em prosa) – dife-rem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” enten-do eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensa-mentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.”

(ARISTÓTELES, 1984, p. 209)

Tito Lívio, um dos principais historiadores romanos, também de-monstra clareza no que diz respeito ao que é lenda e história. Podemos dizer que ele é um dos responsáveis pela tradição de iniciar a História de Roma pela lenda da loba e dos gêmeos, comum até os nossos dias, basta lembrar nossos livros didáticos. Entretanto, ele aponta, embora não afirme categoricamente (e quem ousaria?), que a loba poderia não ter sido quadrúpede, mas antes bípede, uma prostituta, como podemos ver através de suas próprias palavras:

Conservou-se a tradição de que o berço onde as crianças tinham sido expostas começou a flutuar, e ao baixarem as águas parou em lugar seco. Uma loba sedenta saiu das montanhas e atraí-da pelos vagidos das crianças dirigiu-se ao local. Ali, abaixada, oferecia as tetas às criancinhas e docemente as lambia quando as descobriu o pastor que as levou ao estábulo, entregando-as a sua mulher Larência para criar. Outros julgam que Larência era uma prostituta, uma “loba”, como chamavam os pastores. Teria sido esta a origem da lenda maravilhosa.

(TITO LÍVIO, 1989, p. 25).

De todo modo, só podemos contar com dados mais concretos so-bre essa parte da vida romana a partir dos dois ou três séculos finais da era monárquica. Dos primórdios, sabe-se que os romanos eram pastores e pequenos agricultores. Os etruscos (um povo do norte da Itália) foram uma das etnias que mais teve influência e importância na formação po-lítica e cultural de Roma. Dos momentos finais dessa era os dados nos dizem ser de origem etrusca os últimos reis romanos. Eles detinham o

“Onde a História hesita, a lenda continua.”

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Capítulo 01História de Roma

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poder político, judiciário e religioso, motivo de forte descontentamento de parte da classe mais elevada, os patrícios, ávida por dividir o poder, quando da decadência monárquica. Mesmo havendo uma representa-ção do povo (não necessariamente popular, tendo em vista que defen-diam as elites) na figura do Senado e seus senadores (os homens mais velhos da cidade), o monarca possuía o poder total e a última palavra. Isso levou os patrícios a praticarem um golpe de Estado, aproveitando-se de um ato criminoso no governo de Tarquínio, o Soberbo. Segundo consta, seu filho Sexto teria estuprado a mulher de um senador, gerando a revolta e o subterfúgio para o desfecho da era monárquica.

1.1.2 A República

Com a derrocada de Tarquínio e do sistema monárquico, tem iní-cio a fase republicana, a mais decisiva da civilização romana. A palavra república é resultado da composição res, ‘coisa’ e publica, ‘relativa ao povo e ao Estado’, ou seja, ‘coisa pública’, ‘coisa do Estado’, pelo menos em palavras, na retórica. De qualquer modo, é nesse período que, dois séculos e meio mais tarde, se dará o processo de dominação e imperia-lismo, os quais farão de Roma a Grande Senhora. Podemos pensar que os primeiros duzentos e cinqüenta anos foram de organização da casa, limpeza e tomada de posse. Esse período, porém, não deve ser enten-dido como algo fácil e tranqüilo, antes pelo contrário, foram tempos de muitos embates político-sociais, greves e manifestações de repúdio etc. Ademais, existiram também inumeráveis guerras, inicialmente de defesa, mais tarde de ataque.

No ano de 390 a.C, Roma foi invadida pelos gauleses, com certeza os antepassados de nossos famosos personagens Asterix, Obelix e com-panhia. Invadida não, em verdade foi quase que destruída. Foi o sinal de alerta e o começo de uma tática que previa o ataque como melhor defesa. A partir desse episódio, os romanos iniciaram as conquistas in-ternas, dentro dos limites da Itália. A princípio, foram conquistando os vizinhos ao redor, do centro da península itálica em direção ao norte e depois descendo rumo ao sul.

Em 275, Roma toma a cidade de Tarento e passa a fazer contato direto com os gregos que habitavam a região. Isso porque o sul italiano,

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“Aníbal às portas” (de Roma).

de predominância grega, mantinha relações comerciais com os etrus-cos, ao norte, e certamente algum tipo de relação com os romanos devia acontecer também. As conquistas ao sul da Itália proporcionaram aos romanos um incidente que implicou no combate contra dois importan-tes inimigos, os gregos e os fenícios, que dividiam o poder marítimo-comercial sobre o Mar Mediterrâneo.

Começa aqui a série de três guerras denominadas púnicas. Conco-mitante aos punos, os latinos lutaram juntamente com os gregos em sua pátria. As vitórias contra esses dois povos, ao final, significaram o poder absoluto de Roma sobre o Mediterrâneo, sobre o Ocidente e parte do Oriente. Roma tornou-se a Senhora do mundo.

Por se tratarem das guerras mais importantes e decisivas na rota do expansionismo romano, daremos maior destaque às mesmas.

A primeira guerra púnica ocorreu entre os anos de 264 e 241 a.C. Os romanos tiveram que aprender a combater no mar, já que sempre tiveram de lutar em chão firme, já que sempre foram ligados à terra como todo povo agricultor e pastor. Para tanto, eles contaram com a tec-nologia e as técnicas dos gregos conquistados no sul da Itália, entre elas pontes de abordagem, acopladas aos navios quando dos enfrentamentos com as naus inimigas. Ao final, Roma saiu vitoriosa da guerra. Contudo, apesar das pesadas multas e da escravização de parte da população, um pouco mais de duas décadas depois, Cartago, a principal cidade fenícia na época, reergue-se e põe-se novamente apta a enfrentar os romanos numa segunda guerra, de 218 a 201.

Nessa, o grande destaque está no lado cartaginês. Chama-se Aníbal. É considerado até os nossos dias o pai da estratégia militar, justificado pelas muitas escaramuças, marcadas por movimentos e ataques rápidos, como os de uma guerrilha. Impôs tamanho susto e medo aos romanos a ponto de existir uma expressão latina para conferir a idéia de medo, empregada em muitas ocasiões: Anibal ad portas. Seu grande feito foi invadir a Itália, visando o rumo a Roma pelo norte. Ao olhar para um mapa do Império Romano você poderá observar que, atravessando em linha reta o Mar Tirreno, Roma e Cartago posicionam-se frente a fren-te, de modo que a dificuldade em atacar a Urbs seria maior por conta da organização e preparo dos sitiados, embora supostamente mais ra-

O termo púnico advém da forma como os latinos

se referiam a este povo oriundo da Ásia anterior,

na região da Síria, os fenícios.

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Capítulo 01História de Roma

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cional. Invadindo por trás, os fenícios poderiam arrebanhar pelo longo caminho mais povos dispostos a lutar contra os romanos, além de contar com mais espaço para estratégias, combates etc. E assim, partindo da Espanha, “Aníbal avançou através dos Pirineus à frente de cinqüenta mil infantes, nove mil cavaleiros e trinta e sete elefantes” (TITO LÍVIO, 1989, p.25), atravessou os Pirineus junto à costa mediterrânica e depois os Al-pes. Os paquidermes eram usados como arma de guerra, como se fosse um tanque blindado de nossos dias. Imaginemos o horror que isso devia representar para os europeus interioranos, que provavelmente desconhe-ciam o animal. Matos Peixoto (1991) faz menção ao cheiro exalado, bem como aos urros das bestas como um grande incômodo para os cavalos:

Era quase impossível não recuar diante da carga daqueles enor-mes animais, que soltavam ruídos agudos, agitando, entre seus dois dentaços, a tromba imensa, em forma de serpente, e atacan-do vigorosamente, apesar das setas que se eriçavam em seus cor-pos. Os cavalos que não haviam sido preparados para enfrentá-los não podiam suportar sua simples presença ou seu odor forte.

(PEIXOTO, 1991, p. 91)

Imaginemos principalmente as enormes dificuldades em atraves-sar rios e em transpor duas cadeias de montanhas como os Pirineus e os Alpes, com número tão grande de homens e animais, mais ainda, pensemos no tamanho destes e na região de clima quente de que eram oriundos. Entretanto, o intento de Aníbal não se cumpriu, novamente os romanos fizeram-se vitoriosos. Mas, de novo os cartagineses, duros de dobrar, se reergueram cinqüenta e dois anos mais tarde.

Em 149 aconteceu a terceira e última guerra entre romanos e fe-nícios, a mais curta de todas, durou apenas três anos. Embalados pelo bordão Delenda est Carthago, proferido junto ao Senado por Catão, o Antigo, os romanos cumpriram à risca a proposta e encerraram a cam-panha contra os fenícios. Como último ato, despejaram sal por sobre as terras do que havia sido a capital cartaginesa, para que mais nada brotasse daquele solo.

Vencidas as batalhas contra os oponentes externos mais importantes, restavam então as internas. Um século mais tarde, quando da crise da Re-pública, a falência desse sistema político, em certa medida mais democrá-

“Cartago deve ser des-truída”

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tico, mostrou que esse não era cabível para gerir um mundo tão extenso e diversificado como o que Roma vivia. Eram muitos povos e culturas a dividirem as atenções de um Estado só. Surgiram então os primeiros candidatos a ditador, as primeiras tentativas de usurpar o poder. Surgiram Silas e Mário. Faça-se a ressalva porém de que, durante a República, dita-dor era um cargo previsto por lei. Em casos extremos de crises políticas e/ou de tragédias naturais, as leis previam a eleição e ocupação do cargo de ditador pelo período de seis meses, sem qualquer possibilidade de reelei-ção. Contudo, nos casos supracitados o sentido de ditador é o mesmo que compreendemos contemporaneamente, o de tomar para si o poder.

A República, por oposição à monarquia, dividiu o poder entre di-ferentes grupos: o Senado e as assembléias, resquícios do antigo regime, e mais a alta e a baixa magistratura.

Conforme Norma Musco Mendes (1988):

Além dos cônsules (herdeiros dos poderes reais) e dos questores (acompanhantes dos cônsules nas campanhas militares que aos poucos foram se tornando magistrados encarregados da adminis-tração do tesouro), a forma inicial do regime republicano repou-sava na sobrevivência dos institutos políticos da realeza etrusca: Senado, Assembléia Curiata. Por outro lado em virtude da im-portância do exército desenvolveu-se o Comitatus Maximus.

(MENDES, 1988, p. 11)

Assim, o Senado era uma assembléia formada por homens mais velhos. A própria raiz da palavra já indicava, a mesma de senex, que significa velho. O número de senadores variou muito ao longo dos tem-pos. Tito Lívio fala no aumento para trezentos logo no processo de instauração do novo sistema, visto que Tarquínio havia diminuído a quantidade desses em seu governo. Para o final da era republicana, na época de Cícero eram seiscentos, tendo atingido a cifra de novecentos, posteriormente.

As assembléias existiram divididas sob quatro grupos distintos, não tendo existido necessariamente concomitantes: comitia curiata, comitia tributa, comitia centuriata e contio. Conforme Harmsem (1959, p.211), “Os comícios curiatos (comitia curiata) não desempenham mais papel

Segundo o vocabulário crítico, no livro da autora

(p. 78), Comitatus Maxi-mus “era uma reunião do

exército para deliberar ou receber ordens” e foi “considerado o embrião

da Assembléia Centuriata”.

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político no tempo de Cícero”, ou seja, ao final da era republicana. No texto de Harmsem,

A contio (assembléia do povo) não tinha caráter legislativo, mas era simplesmente uma reunião do povo na qual um magistrado prestava esclarecimentos a respeito do momento político ou pro-nunciava um discurso para influir a opinião pública. Em tais reuniões foram proferidas a 2ª e 3ª Catilinárias.

Os comícios centuriatos (comitia centuriata) eram convocados para eleger os cônsules, pretores e censores. No fim da República perdem sua influência na legislação e nas decisões sobre guerra e paz, porque nisso se tornam dependentes do Senado.

(HARMSEM, 1959, p. 211)

Os comícios tributos (comitia tributa), ao contrário, ganharam mais influência. Elegeram os questores, edis e tribunos, e votaram projetos de lei (HARMSEM, 1959, p. 211).

A magistratura dividia-se em dois grupos, a alta e a baixa magistra-tura. A primeira era formada por cônsules e pretores. Aqueles eram os primeiros magistrados, os que se posicionavam no mais alto grau hierár-quico. Em número de dois, tinham como atribuições “convocar e presidir o Senado e os comícios, apresentar projetos de lei e executar os decretos, recrutar e comandar exércitos. [...] Ao sair do cargo, o cônsul era encar-regado do governo de uma província, com o título de procônsul (pro consul)” (HARMSEM, 1959, p. 209). Os pretores, “em número de oito, substituem em tudo os cônsules na ausência destes. Além disso, eram os presidentes e juizes dos tribunais (quaestiones perpetuae). Saindo do car-go, tomavam o governo de uma província, como título de propretor (pro praetore)” (HARMSEM, 1959, p.209). Tito Lívio, ao tratar dos primeiros momentos da República e do papel dos cônsules em tal sistema diz:

[...] a duração do mandato consular se limitou a um ano e não porque se restringiu sob qualquer aspecto o poder real. Os pri-meiros cônsules mantiveram todos os direitos e todas as insígnias da realeza. Apenas procurou-se evitar que ambos os cônsules dis-pusessem dos fasces [box a respeito dos fasces; relacionar com o fascismo italiano de Mussolini] ao mesmo tempo, para não pare-cerem duas vezes mais temíveis.

(TITO LÍVIO, 1989, p.106)

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A baixa magistratura era composta por vários magistrados: ques-tores, censores, edis, ditadores e tribunos da plebe.

Os questores,

[...] 20 no tempo de Cícero, eram encarregados das finanças. Uns superentendiam o erário público (aerarium) e fiscalizavam as receitas e despesas do Estado; outros administravam as finanças dos exércitos e das províncias. Muitas vezes eram assistentes dos generais e governadores em tudo que dizia respeito às coisas mi-litares e administrativas.

(HARMSEM, 1959, p. 211)

Os censores, como já explicita o nome, eram os responsáveis pelo censo. A contagem do número de cidadãos servia não apenas para quantificar a população, mas principalmente, para avaliar seus bens, a fim de dividi-los em classes econômico-sociais para recrutá-los aos exércitos ou ao serviço público, como senadores, como patrocinadores de obras públicas.

Os edis tinham como função cuidar das ruas, dos mercados, edi-fícios públicos e templos, do abastecimento e preço dos alimentos, bem como dos jogos públicos. Atribuições próprias de nossa edilidade, ou da câmara de vereadores no Brasil atual.

O ditador, já foi dito aqui, era um magistrado extraordinário com autoridade absoluta, e amplos poderes em casos de situações extremas e excepcionais, catástrofes, epidemias etc.

Quanto aos tribunos da plebe, no dicionário de Ernesto Faria en-contramos em uma observação para tribunus que o termo “significava propriamente ‘o magistrado da tribo’, estendendo-se depois a diversos magistrados, civis ou militares” (FARIA, 1993, p.), o que nos reme-te obrigatoriamente aos primórdios, ao período de fundação da Urbs, quando a população ainda se dividia em tribos. Como magistrados eles representavam a plebe, sendo eles próprios plebeus, mas não detinham grande poder, a não ser o de opor-se a decisões de outros magistra-dos e poder vetar decretos do Senado ou das assembléias. No dizer de Harmsem, “algumas vezes, este cargo degenerava em pura demagogia” (HARMSEN, 1959, p. 210).

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O consulado de Júlio César marca o período de passagem e trans-formação entre os dois sistemas, o republicano e o imperial. Muitas vezes é citado como imperador, a que podemos nos referir do ponto-de-vista fatual, mas não histórico, tendo em vista que o primeiro oficialmente será o seu sobrinho Otaviano, ou Otávio Augusto.

1.1.3 O Império

A terceira e última fase da história de Roma colherá os frutos do expansionismo. Viverá intensamente o esplendor e a crise decorrentes do amadurecimento, envelhecimento e morte de um imperialismo. O que, aliás, não deve ser confundido com Império. Se imperialismo pode significar, segundo Antônio Houaiss, “sistema de governo que preconi-za uma monarquia chefiada por imperador ou imperatriz, governo ou autoridade imperial” (HOUAISS, 2001, p. 1580), por outro lado, pode ser também a “forma de política ou prática exercida por um Estado que visa à própria expansão [...] pela submissão econômica, política e cul-tural” (Houaiss, idem). Devemos lembrar que o processo de expansão e dominação política, militar e cultural romana teve início justamente na fase republicana. A palavra ‘império’ aplicada a esse sistema políti-co em Roma deriva de imperium, o bastão que os generais portavam como símbolo de poder frente às tropas. Como todos os imperadores tiveram passagem pelos exércitos e foram comandantes, o bastão, que era símbolo militar, torna-se então símbolo do poder político também. Qualquer semelhança que as repúblicas latino-americanas possam ter com tal coisa não passa de mera coincidência, naturalmente.

Durante o governo do primeiro imperador, Augusto, de 27 a.C a 14 d.C, igualmente reconhecido como Princeps, o primeiro cidadão, Roma viverá o ápice de sua civilização. Cabe lembrar que é o período em que Cristo nasce e começa a nossa era. Otávio Augusto é reconhecido pela garantia da chamada Pax Romana, ou pacificação das guerras civis, que tiveram vez desde a última metade do século I a.C, desde a disputa pelo poder entre Silas e Mário, depois entre Júlio César, Pompeu e Crasso. E posteriormente, no segundo triunvirato, entre Otaviano (Otávio), Mar-co Antônio e Lépido.

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O imperador detinha a representação máxima, tanto política quan-to jurídica e/ou religiosa, essa última sob o nome de Maximus Pontifex, a mesma denominação que os Papas recebem hoje na Igreja Católica. O Estado e os cidadãos voltaram a ficar sob o mando de um único homem, igual ao que já acontecera no período inaugural de Roma, a Monarquia.

Costuma-se dividir o Império em dinastias. O poder era repassado seguindo a norma da hereditariedade, conforme herança política. O car-go era vitalício, mas não havia necessariamente consangüinidade. Sem-pre houve intenção de, mas nem sempre foi possível, cumprir o desejo do testamentário. Desse modo, foram duas dinastias: a júlio-claudiana e a dos antoninos. Depois disso, a situação ficou como que incontrolável.

Numa nítida demonstração da crise, em plena decadência, em vin-te e tantos anos o trono imperial foi ocupado por vinte e tantos impera-dores. Desses todos, apenas três morreram de causas naturais, os demais foram todos vítimas de assassinatos, golpes, insurreições e outros tipos de insubmissão. Diocleciano, que governou de 281 a 306 da nossa era, dividiu militar e administrativamente o Império em quatro, nomeando seus filhos como imperadores. Ao final do século IV, sob Honório, foi feita uma nova divisão, o Império era agora dividido em dois, o do Oci-dente (capital Roma) e o do Oriente (capital Constantinopla).

Até o século II da nossa era, Roma ainda colheu os resultados do enriquecimento via expansionismo. A partir daí começou a fase de de-clínio. Logicamente, não devemos entender que tudo foi um mar de flo-res. Mesmo vivendo sob o auge da civilização, a Cidade Eterna e o mun-do romano conheceram muitos dissabores. Viram alguns imperadores deixarem aflorar seus inúmeros vícios e defeitos. Sofreram na própria carne as conseqüências de seus comportamentos e do poder centraliza-do nas mãos de figuras um tanto quanto desequilibradas, basta lembrar Calígula, Nero, Caracala, Heliogábalo e outros. Ainda na fase áurea, no ápice da civilização romana, Otávio Augusto já vislumbrava algo de de-cadente nesse ambiente. As políticas conservadoras de retorno aos anti-gos valores da sociedade romana, lá nos primórdios apregoadas, propa-gadas pelas artes, pela literatura, comprovam tal fato. Valores da época em que a velha Roma ainda estava apegada à terra, à simplicidade, à vida do campo, das plantações e do pastoreio.

O Pontífice Máximo, ou seja, o presidente do

Colégio dos pontífices, os sacerdotes romanos.

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Capítulo 01História de Roma

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1.2 A Sociedade Romana

A pirâmide social do mundo romano era formada por três catego-rias sociais. Na base da figura estavam os escravos, em maior número. A plebe fazia parte do segundo segmento. E no topo, os patrícios. En-tre plebeus e patrícios pode-se falar ainda de um mecanismo de ajuda sócio-econômica, tipicamente romano, mas não exatamente de uma classe: os clientes.

1.2.1 Os Escravos

Nos primórdios, os escravos eram adquiridos através de guerras ou de dívidas não pagas. Os maus pagadores poderiam ter que cumprir o compromisso não assumido com muito esforço e, certamente, de for-ma indesejada. (Se essa moda pega!) No período de expansão, Roma vai contar com uma enorme afluência de escravos, obtidos nas vitórias sobre as cidades e os povos conquistados, de maneira que quase toda a mão-de-obra e quase todas as atividades eram exercidas por eles, des-de as explorações de metais nas minas até serviços mais especializados, como o de magistério, medicina, administração. Observe a longa tradi-ção escravocrata aplicada a professores e médicos. Roma era tão depen-dente desse tipo de trabalho que, sob o nosso olhar moderno, talvez se pudesse considerá-la uma sociedade extremamente ociosa.

Legalmente, o escravo era reconhecido como instumentum cum voce, isto é, um instrumento tal qual uma pá, um arado, diferindo destes por ter a propriedade da fala. Naturalmente, as condições de vida dos ser-viçais variavam muito de acordo com o serviço prestado. Mineiros, gla-diadores, trabalhadores rurais, remadores das galés, tinham uma expec-tativa de vida bastante curta, dada a insalubridade do trabalho e da vida. Apuleio, em seu romance O asno de ouro, descreve em parte as condições do trabalho e dos escravos num moinho a fabricar farinha. É bela e assus-tadora a relação que o autor faz neste momento entre as duas situações. Transformado em asno e a serviço desse mesmo moinho, mas ainda com consciência humana, o animal ao final do dia é retirado do local para descansar, ao passo que os homens continuam em sua dura faina.

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Unidade A - História e Cultura Romanas

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Transcorrera a parte maior do dia, e eu estava deveras fatigado, quando me levantaram uma parte dos tirantes de fibra, e, livre da manivela à qual estivera ligado, puseram-me na manjedoura. Meu cansaço era extremo; sentia uma imperiosa necessidade de refazer as forças e estava perdido de fome. Não obstante, minha curiosidade natural me mantinha fascinado, com o espírito aler-ta. Negligenciando o alimento que estava diante de mim em abun-dância, observava com deleite a disciplina a que se submetia essa oficina indesejável. Bons deuses! Quantos cativos com a epiderme toda zebrada pelas marcas lívidas do chicote, e cujas machucadu-ras de pancada estavam mais escondidas que protegidas por uns trapos remendados! Alguns levavam uma faixa exígua, que não lhes cobria senão o púbis, e todos vestiam só farrapos, entre os quais nada deles ficava desconhecido. Tinham as frontes marca-das de letras, os cabelos raspados de uma banda, os pés carrega-dos de anéis, terrosa a tez, as pálpebras queimadas pelo tenebroso ardor de uma espessa fumaça, a ponto de mal enxergarem. E, tal como os pugilistas que se empoam para combater, por todo o seu corpo se espalhava a brancura encardida da poeira de farinha.

(APULEIO, [s.d.], p. 143-144)

Por outro lado, empregados domésticos, médicos, professores, ad-ministradores, excetuando-se a privação de liberdade e de direitos, não sofriam pelo excesso de esforço físico e escassez de alimento. Entretan-to, não estavam livres dos espancamentos e maus tratos, nem mesmo da morte decorrente destes, como nos informa o verso de Juvenal, na Sátira I: “Morrer deixando ao frio o nu escravo!” (JUVENAL, 1945, p. 10). O que motivava muitas revoltas. A mais famosa delas, a de Spartacus.

1.2.2 Os Patrícios e os Plebeus

Segundo Norma Musco Mendes estes dois estamentos, patrícios e plebeus, não existiam antes da era republicana, uma vez que na época monárquica, mesmo com as diferenças sociais que já havia, todos esta-vam submetidos ao poder real. No período republicano é que eles iriam se mostrar com mais clareza. Conforme a autora,

Patricii significava filhos e descendentes do Patres (senadores) e o nome Plebs apareceu no vocabulário para designar uma realida-de coletiva indiferenciada: se englobasse a totalidade das famí-

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Capítulo 01História de Roma

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lias estrangeiras, a linhagem patrícia seria, possivelmente, mais objeto de quantificação do que de qualificação. O caráter patrício estava restrito aos descendentes de senadores (gentes maiores) que herdaram certos privilégios religiosos especiais.

(MENDES, 1988, p. 13).

1.2.3 Os clientes

Clientes eram todos aqueles que ficavam sob a proteção econômi-ca e política do patronus, eram como que vassalos, aliados. Recebiam ajuda financeira de quem estivesse em melhor situação, em espécie ou em produtos, ou ainda em troca de favores, normalmente políticos. No período imperial, o único cidadão livre de tal subserviência era o impe-rador, o patronus, o protetor primeiro e maior. O prestígio político de uma pessoa era aferido muitas vezes pela fila de clientes em frente a sua casa. Assim nos mostra Horácio na ode 1 do livro III:

Feliz é somente aquele que domina as suas paixões

e se contenta com o suficiente para a vida:

Acontece neste mundo

que um disponha as suas plantações

em terrenos mais extensos do que seu vizinho.

[...]

Acontece que um

dispute as eleições

com outro menos virtuoso e com menos fama.

Acontece que um

concorra com número maior de clientes

do que outro [...]

(HORÁCIO, 1997, p. 63-64)

Desse costume nada positivo restou-nos uma herança e uma práti-ca muito comum e desagradável em nossa cultura latina, no Brasil prin-cipalmente: o clientelismo.

Ao longo de toda a extensa história de Roma não houve quase mui-ta possibilidade de ascensão sócio-econômica. O abismo entre ricos e

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pobres se manteve sempre, tal como se mantém até os nossos dias, ape-sar das muitas lutas e revoltas dos despossuídos romanos e de outras nações. Entre tantas, notabilizaram-se naqueles tempos: 1) a greve feita sobre o monte Capitólio, a retirada dos plebeus da cidade, para que ob-tivessem direitos e melhor consideração; 2) a exigência pelo direito de casamento entre plebeus e patrícios; 3) as leis estabelecidas por escrito. O resultado de tais manifestações foi a criação da famosa Lei das 12 Tábuas, das quais você já deve ter ouvido falar. Não se poderia deixar de citar também os embates e as mortes dos irmãos Graco, por conseqüên-cia, contra os latifundiários e a favor da reforma agrária.

Quando na fase expansionista romana, surgiu certa possibilidade de elevação social através do enriquecimento com o comércio e com os negócios, tipos de atividades consideradas espúrias pelos nobres. Irrompeu nesse cenário a figura dos chamados novos ricos, hoje reco-nhecidos como emergentes sociais, a denominada ordem eqüestre. Nas palavras de Rostovtzeff,

A guerra criou também uma nova classe de cidadãos ricos que não pertenciam à classe dos senadores. Já falei dos fornecedores do exército, comissários e vivandeiros. Esse tipo de negócio, im-próprio a um senador e contrário às tradições da aristocracia, não era aprovado pelo Estado, que graças a uma lei claudiana aprovada em 220 a.C. acabou proibindo aos senadores se de-dicarem ao comércio ou fazerem contratos com o Estado. Este, à medida que enriquecia, tinha necessidade cada vez maior de pessoas experimentadas em negócios. Após as guerras púnicas e orientais, Roma acumulara uma quantidade imensa de bens de raiz – florestas, minas, pedreiras, direito de pesca, salinas, pasta-gens. Essas propriedades precisavam ser usadas, e o único méto-do de conservá-las em atividade era transferi-las a terceiros, por contrato ou arrendamento. A Cidade-Estado, com seu sistema de magistraturas anuais, não tinha meios para desenvolver os recursos existentes nesses bens imóveis, a não ser indiretamen-te. Portanto, os arrendamentos e contratos foram parar natural-mente nas mãos de homens que não pertenciam à classe senato-rial e que, tendo sido levados aos negócios pelas necessidades da guerra, obtiveram com eles algum capital. Trabalhavam separa-damente ou em grupos, formando sociedades e companhias para explorar em comum os vários tipos de propriedade do governo.

Veja em: http://www.dhnet.org.br/direitos/

anthist/12tab.htm

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Capítulo 01História de Roma

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Como sua riqueza particular os qualificava para o serviço mili-tar na cavalaria, eles passaram, gradualmente, à mesma classe do corpo de cidadãos que atendia, a cavalo, o chamado às armas – em outras palavras, aos éqüites, que haviam formado no pas-sado as primeiras dezoito centúrias da primeira “classe”.

(ROSTOVTZEFF, 1983, p. 89-90).

Alguns escravos também tinham chance de enriquecer, caso lidas-sem com o dinheiro de seus amos, como os administradores, ou caso tivessem a sorte de ser beneficiados por herança e ao mesmo tempo pela manu missio, espécie de alforria. Um famoso personagem de Petrônio no romance Satyricon, Trimalquião, ilustra o caso. Afora esses casos, quem nascia pobre dificilmente deixava de morrer pobre.

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Capítulo 02Cultura de Roma

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Cultura de Roma

2.1 A Cultura que Não Morre(u)

Se o imperialismo político da Roma Ocidental começou a enfraque-cer a partir do segundo século da nossa era e, mais drasticamente, entre os povos dominados a partir do século quarto, o mesmo não se pode di-zer do imperialismo cultural. Passados quase mil e quinhentos anos, este continua a vigorar e não parece dar demonstrações de esmorecimento ou de um fim à vista. Antes pelo contrário, parece manter-se firme, com um grande fôlego e capacidade de manter-se por muitos séculos ainda, razão pela qual nos faz estar hic et nunc, no Brasil e em várias outras nações bastante distintas como a Finlândia e a China, em pleno século vinte e um, estudando o latim e o mundo do qual essa língua se originou.

Por imperialismo cultural entendemos as inúmeras heranças dei-xadas pelos romanos para os povos que habitaram a região abrangi-da pelo Antigo Império, nos planos artístico, lingüístico, literário, e na maneira de ser de vários povos do chamado Ocidente, sobretudo os denominados latinos. Na verdade, mesmo após o fim de uma vida polí-tica, esse imperialismo continuou a expandir-se indiretamente via cris-tianismo, por intermédio das línguas modernas e por intermédio da expansão marítima durante as grandes navegações, a ponto de alcançar as Américas, que não eram conhecidas nem imaginadas na época, e o Oriente mais longínquo, como Macau, local e região em que os roma-nos não chegaram.

2.1.1 A cultura Romana nas Artes

Entre as principais artes que a cultura romana influenciou com desdobramentos mais evidentes, poderíamos destacar a arquitetura, o urbanismo, as artes plásticas e, por último e primordialmente, no que nos diz respeito, a literatura. Nesses três ramos, assim como em muitos outros, os romanos não foram os precursores, nem inventores, antes se-guidores e, principalmente, disseminadores, que fizeram sua leitura e contribuíram para o seu enriquecimento e aprimoramento.

2

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Na arquitetura, o estilo romano, que por vezes deve ser entendido como greco-romano, pode ser visto em arcos, empregados na constru-ção de pontes e aquedutos; em colunas e capitéis, visíveis em prédios em geral, templos, foros, teatros; em gradis para proteção dos usuários em espaços aéreos, como sacadas, beiradas de pontes e de andares etc. Elementos estes muito empregados ainda hoje em muitos estilos arqui-tetônicos de diferentes épocas e lugares.

Em matéria de urbanismo, os romanos nos deixaram inúmeros modelos de estilo e funcionalidade. Por onde o Império se estendeu, em todas as cidades romanas lá estava estabelecida uma estrutura bási-ca urbana que marcava o seu modus uiuendi (a sua maneira de viver), ou como costumamos brincar, em alusão ao American way of life dos ianques, o seu Romanus modus uiuendi. Um complexo sistema que era composto por foros (versão antiga para os nossos contemporâneos sho-pping centers), termas, teatros, estádios, aquedutos etc.

Cabe dizer que os romanos foram responsáveis pela fundação de várias cidades pela Europa e pelo mundo de então. Algumas nasceram de sua preocupação com os banhos públicos e da propriedade e vocação termal local, entre elas podemos citar Bath (que significa ‘banho’ em in-glês) na Inglaterra, Baden (significa ‘banho’ em alemão) e Baden-Baden, ambas na Alemanha. Outras surgiram a partir de acampamentos roma-nos, que, aliás, já eram montados e estruturados em forma de quadrado, entrecruzados por quatro entradas, cada qual com uma viela, assim se encontravam e se cruzavam ao centro desta, lançando as bases para uma cidade. Dentre as cidades podemos enumerar algumas inglesas, como Londres e muitas outras: Winchester, Manchester, Lancaster, Glocesteretc. Nas artes plásticas a estatuária e os afrescos em matéria de pintura serviram de paradigmas para as artes posteriores.

2.1.2 A Cultura Romana dos/nos Povos Latinos

Uma forte marca da permanência romana no Ocidente está, sem sombra de dúvida, na chamada cultura latina, presente nos povos as-sim reconhecidos: italianos, portugueses, espanhóis, franceses e outros. Manifesta, sobretudo, na emotividade e na tão cantada em verso e prosa sensualidade. Alguns se referem ao machismo, mas quanto a isso, per-

-caster, -chester, -cester são variantes de castra,

acampamento em latim.

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guntamos: diz respeito apenas aos latinos? Manifesta também no humor, no riso, no sarcasmo. Os romanos, por exemplo, costumavam designar as pessoas pelos seus atributos físicos, surgindo assim alguns nomes co-muns até os nossos dias, bonitos, sonoros, mas que em sua origem não passavam de pilhéria. O nome do famoso escritor Cícero, por exemplo, passou a existir por conta de um antepassado seu que tinha uma berru-ga no nariz no formato de um ‘grão-de-bico’ (é o que significa a palavra cicer em latim), foi o que bastou para que toda a família recebesse tal herança. Segundo consta, o imperador Cláudio, que sucedeu Calígula, era manco. Claudius, em latim, significa coxo, de onde o nosso verbo ‘claudicar’. Tibério, da mesma forma, não escapou do humor romano, o povo o chamava pejorativamente de “Bibério”, uma alusão nítida ao ato de beber. Isso não parece coisa de brasileiro?

2.1.3 O Latim e suas Influências Diretas e Indiretas

No plano lingüístico, as grandes contribuições dos romanos foram certamente as muitas línguas neolatinas: o português, o espanhol, o francês, o italiano, o catalão, o romeno, e outros idiomas considerados por vezes como dialetos: o occitano, o sardo, o provençal...

Para além dessas línguas, o latim influenciou ainda outras, oriun-das de outros grupos lingüísticos, como o inglês, o alemão, o polonês e o russo. Para se ter idéia, o inglês possui em seu léxico um universo de 50 a 60 por cento de palavras de origem latina. Por isso que muitas vezes não se faz difícil ler textos científicos na língua de Shakespeare. O polo-nês e o russo, tanto quanto palavras latinas, oferecem ainda um sistema lingüístico nominal baseado em declinações, tal como acontecia com o idioma do nosso já famoso Cícero.

Afora isso, o latim, antes uma língua tosca em relação ao grego no auge do Império Romano, tornou-se mais tarde, já com a existência das línguas nacionais modernas, uma língua de comunicação, internacio-nal, portanto. Tornou-se padrão de excelência, a língua das ciências, por isso hoje a Ciência e as novas tecnologias se utilizam constantemente da língua latina como fonte de inspiração e de sugestão de termos. Bas-ta lembrarmos a tabela periódica dos elementos químicos e os nomes científicos em latim empregados pela Biologia. É possível se falar da pre-

Idioma que você conhe-cerá melhor nos próximos semestres, com as discipli-nas de Língua Latina.

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sença do latim na matemática, na geografia, na física etc. A cada revo-lução artística, científica e tecnológica, é no latim (e no grego também) que se buscam as palavras com que nomear a nova terminologia. Recor-demos o Renascimento, o classicismo nas artes em geral, o arcadismo, o parnasianismo. Observemos a informática, a resgatar a origem latina que muitos pensam ser do idioma bretão: data, delete...

Por fim, não poderíamos esquecer de que o latim é a língua oficial do Vaticano, da Igreja Católica Apostólica Romana.

2.1.4 A Literatura Latina lato sensu

Por literatura latina lato sensu referimo-nos ao conjunto de obras escritas em latim, mas que não pertencem ao gênero ficcional. Dentre esse grupo destacaríamos o Direito Romano, a filosofia, a historiografia e outros. Literatura esta que ilustra de certa forma o caráter eminente-mente pragmático dos romanos, por oposição ao espírito especulativo, inquiridor dos gregos.

O Direito Romano

É certamente uma das maiores contribuições dos romanos para o Ocidente. Juntamente com a sátira, foi semente autenticamente plan-tada, cultivada e nascida em solo romano. Foi a base da jurisprudência de muitas nações européias, americanas e mundiais. Como diz Mario Curtis Giordani, “O Direito Romano é uma criação típica do gênio ro-mano. Representa, acentua Marrou, ‘o aparecimento de uma forma nova de cultura, de um tipo de espírito que o mundo grego de nenhum modo havia pressentido’.” (GIORDANI, 1976, p. 254). E, citando Von Ihering, Giordani acrescenta:

A importância do Direito Romano para o mundo atual não con-siste só em ter sido, por um momento, a fonte ou origem do direi-to: esse valor foi só passageiro. Sua autoridade reside na profun-da revolução interna, na transformação completa que causou em todo nosso pensamento jurídico, e em ter chegado a ser, como o Cristianismo, um elemento da Civilização Moderna.

(VON IHERING, 1968, p. 8, apud GIORDANI, 1976, p. 254)

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A Filosofia

Os romanos não foram de modo algum superiores aos gregos neste quesito. Possuem alguns autores famosos, mas que devem isso mais à força de seus textos do que a alguma inovação ou revolução na história das idéias.

Contudo, não podemos deixar de mencionar duas escolas filosó-ficas gregas que tiveram grande influência em Roma e, no que nos in-teressa, na literatura latina. Estamos falando do epicurismo e do estoi-cismo. Ambas surgem no período helenístico, momento de decadência da filosofia e do mundo grego antigo, quando Alexandre, o Grande, morre, um pouco antes da ascensão do império romano. Segundo João da Penha,

Destruído o império grego, a filosofia reflete essa decadência. Ces-sara a preocupação em fornecer uma teoria racional do mundo. Os diversos sistemas filosóficos então vigentes pouco se preocu-pavam em conceituar um mundo ideal, inclinados que estavam, num período social e politicamente conturbado, em apontar, para o individuo, um meio de escapar às desordens externas através da tranqüilidade interior. Contrariamente à tradição helênica, firmada na elaboração de grandiosas construções especulativas, sendo Platão e Aristóteles exemplos supremos, os filósofos da época da decadência renunciaram a estudar a natureza e a vida social. Sua reflexão é de cunho estritamente moral o problema ético assume o centro da especulação filosófica. A preocupação se desloca para a conduta pessoal do homem; o interesse se desvia para a vida prática.

(PENHA, 1998, p. 42)

A tranqüilidade interior, assim como outros aspectos, é um dos pontos comuns entre as duas escolas, que apesar disso se mostram e se colocam de forma antagônica. Principalmente pela forma de obter a tranqüilidade da alma, a felicidade. Os epicuristas a buscavam na ataraxia, enquanto os estóicos procuravam atingir a felicidade através da apatia, porque, conforme Zenão, fundador dessa escola, o homem deve seguir a natureza e viver de acordo com a razão. Esta se opõe às paixões que advém da região inferior do homem e são uma doença da alma, das paixões advém o erro. De modo que “impõe-se, portanto, eli-

Consiste na liberação da “alma de todas as perturba-ções e o corpo de todo so-frimento”, em “curar a alma dos males que lhe roubam a tranqüilidade, quais sejam, o temor da morte, dos deuses e do destino”. (PENHA, 1998, p. 44)

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miná-las, logrando, assim, atingir a impassibilidade absoluta: a apatia. O ideal da vida é a virtude, e essa só se alcança cultivando-se os bons hábitos morais” (PENHA, 1998, p. 45).

O epicurismo deve o seu nome a Epicuro. Epicuro estabeleceu o prazer como ideal a ser buscado, mas não o prazer como satisfação fí-sica, corporal, antes o da alma. O prazer de realizar boas ações, de apri-morar as virtudes e o espírito. É o que ele próprio expressa em sua Carta sobre a felicidade:

Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos re-ferimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpre-tam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem pru-dência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e jus-tiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas.

(EPICURO, 1973, p. 43-46)

Foi mal compreendido, mesmo em seu tempo, como se pode ver, e por conta disso, ele e a escola ganharam fama, até hoje, de pervertidos. Em Roma, teve como principal defensor Lucrécio que num belo poema, De rerum natura (“Da natureza das coisas”) homenageou seu principal responsável e divulgou sua doutrina em língua latina.

O estoicismo recebeu este nome do lugar onde eram feitas as aulas e pregações da doutrina, o stoa, ‘pórtico’ em grego. Seu fundador e um dos mais importantes disseminadores foi Zenão de Cítio (340-264 a.C.). De Crescenzo diz:

Filósofo grego que viveu entre 341 e 270 a.C.

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Para compreender bem o estoicismo, é necessário confrontá-lo constantemente com o epicurismo, quase como se uma das dou-trinas existisse por oposição à outra. O mais interessante é que ambas as escolas se propunham alcançar os mesmos resultados, ou seja, viver com sabedoria. A única diferença é que, para os epicuristas, essa sabedoria se identificava com o prazer e, para os estóicos, com o dever. Nada mais.

Diga-se, porém, e desde já, o seguinte: enquanto os ensinamentos de Epicuro permanecem quase inalterados durante os séculos, os dos estóicos mudaram tanto que é difícil comparar os primeiros estóicos, os do século III a.C., com os últimos, os estóicos roma-nos dos séculos I e II d.C.

(CRESCENZO, 1988, p. 142)

A filosofia estóica negava e sugeria negar-se tudo o que propicias-se prazer, preocupação ou dor, a fim de que não trouxesse sofrimento mais tarde, propondo acima de tudo a apatia. Nas palavras de Sêneca, o homem feliz é aquele que desconhece outro bem ou outro mal senão uma virtuosa ou perversa vontade, cultivador da honestidade e satis-feito em ser virtuoso, que não se abate nem se exalta com os rumos de seu fado e que não conhece bem maior do que o bem que consegue alcançar por si e que, por fim, tem como verdadeiro prazer o desdém dos prazeres (SÊNECA, 1991, p. 28).

Dentre os nomes que podemos destacar na filosofia romana estão: Cícero, Sêneca, Marco Aurélio, Epicteto. Podemos lembrar outros no-mes que tiveram incursões pelo pensamento filosófico, mas cremos que não possamos denominá-los filósofos com propriedade.

Marco Túlio Cícero ( ǿ Marcus Tullius Cícero, 106 – 43 a.C. Prin-cipais obras: De finibus bonorum et malorum (Sobre as defini-ções do bem e do mal), Tusculanae disputationes (Discussões em Túsculo), De officiis (Sobre os deveres), De senectute (Sobre a velhice), De amicitia (Sobre a amizade), De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses), De diuinatione (Sobre a adivi-nhação), De fato (Sobre o destino). Segundo Zélia de Almeida Cardoso, “Cícero teve uma formação eclética, que se reflete em suas obras. Embora se revelasse hostil ao epicurismo, aprovei-

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tou-se da preceituação da doutrina estóica e do neo-academi-cismo, sem chegar, no entanto, a delinear claramente uma po-sição filosófica” (CARDOSO, 2003, p. 171).

Lúcio Eneu Sêneca, ( ǿ Lucius Annaeus Sêneca, 4 a.C.? – 65 d.C.), nasceu em Córdova, na Hispânia (hoje Espanha). Principais obras: De ira (Sobre a ira), As Consolatórias: Ad Marciam con-solatio (Consolação a Márcia), Ad matrem Heluiam (Consola-ção a Hélvia), Ad Polybium (Consolação a Políbio), De clemen-tia (Sobre a clemência), De breuitate uitae (Sobre a brevidade da vida), De constantia sapientis (Sobre a constância do sábio), De uita beata (Sobre a vida feliz), De tranquilitate animi (Sobre a tranqüilidade do espírito), De prouidentia (Sobre a providên-cia), Quaestiones naturales (Questões naturais), Ad Lucilium epistolae (Cartas a Lucílio). Para Jacques Gaillard,

É surpreendente que uma exigência de virtude tão rigorosa como a preconizada pela filosofia estóica pudesse tentar um homem como Sêneca que, afinal de contas, antes e depois de seu exílio, havia se moldado sem problemas à conduta dos bons servidores do Império. Por acaso o espetáculo dos vícios estimula a virtude? Somos obrigados a pensar assim após examinar a obra filosófica de Sêneca. Nela se limita a denunciar as desgraças dos tempos (aos quais às vezes ele também havia contribuído) e os excessos de que fora testemunha. Esta estranha tensão compreende-se melhor se sabemos entender, através da obra do filósofo, as in-quietações de um pensamento um pouco errante, fascinado pelo espetáculo do mal, mas também pelo sonho da sabedoria.

(GAILLARD, 1992, p. 91-92)

Marcus Aurelius ǿ (121 - 180 d.C.) Governou o mundo romano de 161 até o ano de sua morte, por isso é chamado imperador-filósofo. Em geral não costuma aparecer nos manuais de lite-ratura latina, porque escreveu sua obra em grego. Defendeu o estoicismo.

A Historiografia

Como não faz parte de nossa proposta estudarmos aqui detida-mente a historiografia romana, nos restringiremos apenas a apontar

Os textos em espanhol ao longo deste material

foram traduzidos pelo Prof. Dr. José Ernesto de

Vargas

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Capítulo 02Cultura de Roma

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os principais nomes, a época em que viveram e a obra. Desse modo, destacamos:

Caio Júlio César ǿ

Este autor é de fato o mesmo general e imperador. Nasceu no ano 100 e foi traiçoeiramente assassinado, como é sabido, no ano de 44 a.C., às portas do Senado. Insere-se como historiador por conta de duas obras referenciais ainda hoje, Comentários sobre a guerra da Gália (Commen-tarii de bello Gallico) e Comentários sobre a guerra civil (De bello ciuili commentarii). A primeira composição é, na verdade, um relatório de guerra organizado quase em sua totalidade, com exceção do último li-vro, durante sua participação e liderança nas batalhas pela conquista da Gália. Curiosamente é escrito em terceira pessoa, o que soa muitas vezes como falsa modéstia. A segunda revela a sua luta pelo poder de Roma contra o Senado Romano, na deflagração da guerra civil após o episódio do rio Rubicão. Conforme Zélia de Almeida Cardoso,

Os Comentários sobre a guerra civil têm caráter nitidamente po-lítico. Ao compor esse texto, César deve ter tido a intenção de justificar, de alguma forma, a usurpação do poder, despertando simpatias e procurando congregar forças em torno de sua pessoa. Daí o tom apologético de que a obra se reveste.

(CARDOSO, 2003, p. 135)

Caio Salústio Crispo ǿ

Salústio viveu entre os anos de 87 ou 86 e 35 a.C. De seu traba-lho, duas obras chegaram até os nossos dias e o tornaram reconhecido. São elas:

A conjuração de Catilina (De coniuratione Catilinae), que tra-1) ta da tentativa de tomada do poder feita por Sérgio Catilina. Passagem histórica que se tornou mais famosa ainda na obra de Cícero, ferrenho defensor da instituição republicana, que se empenhou numa grande campanha no Senado contra a insur-reição de Catilina, na reunião dos discursos proferidos contra o insurreto, conhecida mundialmente por Catilinária.

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Unidade A - História e Cultura Romanas

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A guerra de Jugurta (Bellum Iugurthinum), que narra a in-2) tervenção de Roma num episódio de assassinato e tomada de poder no reino da Numídia, levado a cabo por aquele que dá nome à obra, Jugurta.

Tito Lívio ǿ

Titus Liuius (59 a.C – 17 d.C) é, sem dúvida, o mais importante his-toriador romano. Viveu sob o governo de Augusto e dele se beneficiou. Sua extensa e grandiosa obra propõe abarcar desde a fundação de Roma (por isso é reconhecida como História de Roma Ab Urbe Condita) até a sua contemporaneidade. São cento e quarenta e dois livros, dos quais apenas trinta e cinco chegaram até nós. O francês Jacques Gaillard o dis-tingue como o “Virgílio da História”, já que sua obra pode ser colocada no mesmo nível da Eneida.

Públio Cornélio Tácito ǿ

As datas em que Tácito nasceu e morreu não são precisas, mas se acredita que entre os anos de 55 e 120 da nossa era. Além de história, o autor escreveu também sobre retórica, Dialogus de oratoribus, uma biografia, um ensaio sobre a geografia física e humana da Germânia. Seus textos historiográficos são Anais (Annales), em que narra os acon-tecimentos políticos durante os governos de Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, e Histórias (Historiarum libri), que faz referência ao período entre as mortes de Nero (68 d.C.) e Domiciano (96 d.C.).

Caio Suetônio Tranqüilo ǿ

De Suetônio igualmente não se sabe precisamente as datas de nas-cimento e morte, costuma-se citar os anos de 69 e 141 da nossa era. Foi secretário do imperador Adriano. Escreveu Homens ilustres (De uiris illustribus), obra que se perdeu em grande parte e Vidas dos doze Césares, ou seja, a vida dos doze primeiros imperadores, livro que o imortalizou.

E assim encerramos aqui o nosso Capítulo sobre a literatura lato sensu, bem como a primeira Unidade, a História do mundo romano. A literatura latina strictu sensu, por oposição, é a que diz respeito à pro-dução de caráter ficcional, objeto central de todo curso de Letras, e do nosso próximo capítulo.

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Leia mais! (Unidade A)

ARIES, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Atlas da história do mundo. São Paulo: Empresa Folha de São Paulo, 1995.

BAILEY, Cyril (org.). O legado de Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

BALSDON, J. P. V. D. O mundo romano. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

CARCOPINO, Jerome. Roma no apogeu do império. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1991.

COULANGE, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

DIAKOV, V.; KOVALEV, S. História da antiguidade: Roma. 2ª ed. Lis-boa: Estampa, 1976.

FEIJÓ, Martin Cezar. Roma antiga: a crise da República. São Paulo: Áti-ca, 1991. (O Cotidiano da História).

FERREIRA, Olavo Leonel. Visita à Roma antiga. 4ª ed. São Paulo: Mo-derna, 1993. (Coleção Desafios).

FINLEY, Moses I. História antiga: testemunhos e modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Antiguidade clássica. 2ª ed. Campinas: EdUNICAMP, 2002.

_______. Grécia e Roma. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2002.

_______. Roma: vida pública e vida privada. 7ª ed. São Paulo: Atual, 1998.

GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Imperialismo greco-romano. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1994.

Page 40: [Livro UFSC] Estudos Literarios I

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JÚLIO CÉSAR. Comentários sobre a guerra gálica. Trad. Francisco Sotero dos Reis; Estudo introdutivo: Otto Maria Carpaux. Rio de Janei-ro: Ediouro, [s.d.].

FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: economia e socie-dade. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção Tudo é História).

GIBBON, Edward. Declínio e queda do império romano. Org. e in-trod. Dero A. Saunders. Prefácio de Charles Alexander Robinson Jr. Trad. e notas suplementares de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1989.

GRANT, Neil; HOWAT, Andrew. As conquistas romanas. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1994.

MOMMSEM, Theodor; CARCOPINI, Jerome; OLINTO, Antonio. His-tória de Roma. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1971.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

PLUTARCO. Alexandre e César: vidas comparadas. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

TÁCITO. Anais. Trad. J.L. Freire de Carvalho. Rio de Janeiro: H.M. Jackson, 1964.

VEYNE, Paul. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, 1993.

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Unidade BLiteratura Latina

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Introdução

Nessa segunda unidade faremos uma leitura panorâmica da Literatura

Latina apresentando rapidamente os principais autores e obras da literatura

latina em latu sensu. Observaremos, igualmente, a manifestação dos gêneros

literários em Roma e também as heranças e a permanência de idéias e temas

na literatura, nas artes e na cultura do Ocidente.

“Uma literatura só será ouvida se tiver luz própria,

preservar suas normas e seus traços particulares.

O contrário será apenas uma cópia das outras.”

(Artur Pestana, ou Pepetela)

A literatura latina desponta para o mundo não como manifestação espontânea, mas antes como transposição de um modelo externo para a cultura local, no caso, a partir da transposição de modelos gregos para a cultura romana. Em parte esse fato pode ser justificado pela própria na-tureza romana, decorrente de um espírito pragmático e de uma história muito mais ligada à terra, às atividades agro-pastoris e à arte da guerra do que a um questionamento especulativo a respeito da vida e das ra-zões de se viver neste mundo, como foi parte da vivência dos gregos, a que os tornou mais famosos pelo menos.

Zélia de Almeida Cardoso, em A literatura latina (2003), uma das obras de referência para nossos estudos neste curso, aponta para o ano de 272 a.C, quando da conquista romana de Tarento, como uma data primordial no processo de formação da cultura e literatura latinas, pois é neste momento em que os latinos ou, se quiserem, os romanos, entram em contato direto com o mundo grego e iniciam um período de acultu-ração, decisivo para o surgimento de uma cultura literária e artística em Roma. Segundo a autora, até então

Roma ainda não se diferenciava grandemente de numerosas outras cidades espalhadas pelo mundo mediterrâneo e não des-frutava de grande importância política, militar ou cultural. Os romanos falavam o latim – língua de origem indo-européia, re-lativamente pobre e rústica – e, embora conhecessem a escrita

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por terem adaptado o alfabeto etrusco, somente a utilizavam em inscrições (algumas muito antigas, datadas do século VII ou VI a.C.) que têm apenas valor filológico, lingüístico e documental. A literatura se achava ainda em fase embrionária, restringindo-se quase exclusivamente às manifestações orais.

(CARDOSO, 2003, p. XI)

O poeta Horácio ressalta a importância da Grécia na formação cul-tural de Roma, ilustra essa passagem e nos alerta para o quanto foi deci-siva e tardia na formação da literatura latina:

A Grécia vencida

venceu seu feroz vencedor:

trazendo as artes ao agreste Lácio.

Assim desapareceu aos poucos

aquele verso horrível e saturnino

e a limpeza levou a sujeira nociva.

Contudo ficaram por muito tempo

e perduram ainda alguns traços rústicos daquele mau gosto.

Tarde, muito tarde, chegamos a apreciar os escritos gregos.

Apenas depois de feita a paz com Cartago,

descobrimos o que de útil nos trazem Sófocles, Tespis e Ésquilo.

Foi então que os traduzimos para o latim

e o trabalho agradou a todos:

talento temos para o sublime,

o patético não nos falta,

temos inspiração para o trágico,

nossos atrevimentos têm êxito feliz:

naturalmente, temos preguiça para o trabalho de lima

e consideramos a lima desnecessária e até vergonhosa.

(SCHEID, 1997, p. 230).

Em sua Arte poética, Horácio torna clara a diferença entre o espí-rito inquiridor e o gosto estético dos gregos e o estilo pragmático dos romanos:

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Musa deu aos Gregos o talento e a possibilidade de falar com gran-de elevação, a eles que eram ambiciosos, mas só de alto renome. Os jovens romanos, por seu lado, aprendem a reduzir, com grandes contas, um asse em cem partes. [...] Esperaremos nós, porventura, que estes espíritos, uma vez imbuídos da preocupação corrosiva do dinheiro, possam criar versos dignos de serem cobertos com óleo de cedro e conservados na madeira do cipreste bem polido?

(HORÁCIO, 1989, p. 103-105).

O “óleo de cedro” e a “madeira do cipreste bem polido”, carissimi discipuli, referem-se às técnicas empregadas para conservar os escritos da fragilidade material própria da época.

Um dos primeiros passos rumo ao desenvolvimento da literatura em Roma se dá logo após a capitulação de Tarento. Conforme Zélia de Almeida Cardoso, junto aos despojos de guerra, junto aos prisioneiros levados para a capital romana,

havia um adolescente cujo nome era Andronico. Tornando-se escravo da família Lívia, adotou o nome de seus senhores em combinação com o seu, como era habitual. Desde cedo, Lívio An-dronico se ocupou da educação de meninos, mas, na condição de preceptor e mestre de primeiras letras, esbarrou em uma pri-meira dificuldade: a falta de textos adequados para o ensino. A educação grega em sua primeira fase exige o manuseio de textos literários. É por meio deles que se procede à alfabetização das crianças e que se ministram a elas as primeiras noções de his-tória, geografia, ética, mitologia e religião. A não-existência de textos para esse fim levou Lívio Andronico a traduzir a Odisséia. Em seu trabalho de tradução, ele se utlizou do grosseiro e primi-tivo verso satúrnio, tão diferente dos sonoros versos gregos, e teve de lutar também, certamente, com a pobreza de um vocabulário não afeito ao tratamento literário.

A tradução de Lívio Andronico, entretanto, por medíocre e rudi-mentar que fosse, ao lado de tornar o poeta conhecido da socie-dade, colocou o romano em contato direto com um texto literário grego, embora traduzido, e propiciou o aparecimento de outros poemas épicos.

(CARDOSO, 2003, p. 8).

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Neste sentido não há como negar que quase a totalidade da literatura latina se desenvolveu a partir de modelos copiados dos gregos. Diríamos que, com exceção do Direito romano e da sátira, os demais gêneros, literá-rios ou não, foram todos transplantados do solo helênico para o romano.

É preciso que se diga, porém, que, apesar de secundária, a literatura latina tem seu valor. Adquiriu vida própria, tornou Roma igualmente digna das artes no cenário mundial de que era Senhora. O que, aliás, foi perseguido por Augusto, um dos grandes responsáveis por isso, além dos autores, graças ao seu apoio e a sua política de incentivo às artes, em troca de propaganda ideológica, diga-se, contudo. Mais tarde, nas eras subseqüentes, esta literatura também serviu de modelo para a formação de outras literaturas, escritas em línguas neolatinas, e mesmo as de outras origens. Como negar influências, por exemplo, de Ovídio sobre Shakes-peare e de Plauto sobre Moliére ou Ariano Suassuna? De Virgílio sobre Dante, Camões e outros grandes poetas? Como negar os ideais de Ricar-do Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, buscados junto a Horácio?

Faz-se necessário até lembrar a concepção de aemulatio para os an-tigos gregos e romanos, que consiste, num sentido positivo, no desejo de imitar e igualar-se em grandeza à obra de um autor antigo, por isso, melhor. João de Oliva Neto, ao discorrer sobre a passagem da experiên-cia oral para a da escrita, da importância da Biblioteca para este novo momento, afirma:

Por conseqüência, de necessidade que era, imitar objetivou-se como valor, sem o traço negativo que a sensibilidade moderna, sobretu-do após o Romantismo, denuncia e rejeita. Tendo, de início, nos monumentos do passado seu objeto, imitar era antes homenagem do que plágio. Era a possibilidade que esses autores tinham de emular, segundo o eterno caráter agonístico da cultura grega. Imi-tar permitia-lhes exibir sua vasta erudição, palavra-chave desta poética, pois o movimento de elaboração de novas obras, direito assegurado de qualquer época, voltava-se não para a novidade isenta de substância, por isso mesmo impensável, mas para o re-buscar na origem aspectos menos conhecidos dos antigos mitos e tradições. Só assim eram originais. O elemento diferenciador com que todo autor procura suprir uma lacuna e que motiva seu tra-balho insinuava-se a partir do antigo patrimônio comum.

(OLIVA NETO, 1996, p. 26).

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Longino, em seu tratado sobre o sublime, afirma: “imitar não cons-titui furto; é como um decalque de belos sinetes, de moldados, ou de obras manuais”; “Belo, na verdade e merecedor de coroa de glória é esse embate em que mesmo em ser derrotado pelas gerações anteriores não deixa de haver glória” (LONGINO, 1997, p. 85-86). A poética descritiva e prescritiva de Aristóteles, a afirmação dos modelos ideais, autores e obras a serem imitados corroboram e comprovam tudo o que foi dito acima.

Jacques Gaillard, a respeito da importância da imitação para os an-tigos, diz o seguinte:

Entendamos por ele (pelo caráter imitativo) que a originalidade so-mente pode significar um enriquecimento da tradição e que uma obra literária nunca poderá surgir como “tranqüilo bloco caído aqui sob um desastre obscuro” ou por um golpe de sorte. Não há dúvida que, para o poeta antigo, seria um desastre não ter na me-mória os versos de um mestre a quem admirar e imitar, a um au-tor, fundador de um gênero ou virtuoso em habilidade e talento. É necessário, com efeito, advertir que a antiguidade desconfia da inovação “absoluta”; em Roma, a expressão res novare, “fazer algo novo”, significa “revolucionar” no sentido negativo do termo e im-plica em transtornos que são por vezes temerários e perigosos.

(GAILLARD, 1997, p. 18).

Avançando um pouco mais em nosso assunto, o mesmo autor fran-cês nos oferece um panorama da produção literária latina ao longo de seus quatro séculos de profícua existência, bem como dos problemas decorrentes de nosso distanciamento em relação àquele tempo:

No começo deste século, um estudioso da antiguidade clássica (A. F. Wert) fez um censo muito curioso. Vejamos os resultados: co-nhecemos 772 autores latinos; destes somente 276 são em nossos dias citados aqui e ali por outro autor, em um comentário ou em um catálogo; a obra de 352 autores se resume para nós hoje em poucos fragmentos, se reduz a uma palavra comentada por um gramático, a uma expressão, a uns poucos versos, incluindo um amplo corpus de citações; sobram somente 144 autores dos que nos é possível ler uma ou várias obras que se conservaram integralmente (ainda que tenhamos que pagar o preço de algu-mas lacunas). Nossa visão da literatura latina é tributária desta

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sobrevivência muito seleta a que necessariamente há de se referir. Do mesmo modo, as condições materiais, culturais e estéticas em que se elaborava uma obra literária na antiguidade latina são sensivelmente diferentes das que conhecemos hoje.

(GAILLARD, 1997, p. 9).

As condições materiais, culturais e estéticas a que Gaillard se refe-re são, de fato, partes importantes desse processo; importantes para a compreensão do quanto esse corpus é fragmentado e escasso. A ponto de nos fazer ver que a literatura antiga é um grande quebra-cabeça, em que as peças mais faltam do que sobram. Segue o autor francês em suas considerações:

Doze dezenas de autores “legíveis” em um período de tantos sécu-los é muito pouco: apenas 20% do catálogo geral de nomes de au-tores conhecidos. É pouco e é muito, pois deve-se advertir que, na antiguidade, o livro é objeto perecível sob qualquer ponto de vista que se olhe. Materialmente teme ao fogo e à umidade; seu for-mato, sobretudo sob a configuração antiga de volumen (um rolo de papiro) não é fácil; o suporte é muito frágil, rasga-se, mancha, embolora, a tinta borra e é presa fácil dos ratos.

(GAILLARD, 1997, p. 9).

Alude o autor ainda que, apesar da mudança de material e do for-mato, do papiro para o pergaminho, do volumen para o codex ainda na idade antiga, no século IV da nossa era, havia a questão da censu-ra imposta por autoridades políticas, espirituais ou intelectuais. Desse modo, “os autores cujas obras chegaram até nós em bom estado são os que suscitaram primeiramente o interesse mais fervoroso e contínuo; depois vêm aqueles que ninguém se atreveria a destruir; finalmente os que tiveram sorte” (GAILLARD, 1997, p. 10).

Se pensarmos no quadro desses autores no circuito editorial bra-sileiro, então, a situação se complica mais ainda, tendo em vista que o país não conheceu o domínio e a ocupação romana. E por causa disso as traduções dos textos latinos, na maior parte dos casos, advém de ou-tros idiomas (são poucas as que são feitas diretamente do latim para o português do Brasil).

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Zélia de Almeida Cardoso divide a literatura latina em quatro fases, de acordo com diferentes momentos históricos, políticos e sociais.

Como não poderia deixar de ser, num curso básico de Literatura Latina os autores focalizados serão os mais importantes e significativos, os da fase clássica primordialmente, portanto.

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Capítulo 03A Poesia

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Poesia

Aut insanit homo, aut versus facit. Horatius

(Ou o homem faz versos, ou enlouquece. Horácio)

A justificativa para começarmos com o estudo da poesia pode es-tar no fato de que esse foi o meio de produção literária mais prolífico, pensamos que por herança recente da oralidade à época, forma como se perpassava os conhecimentos até então. São muitos os tratados antigos - que para nós, atualmente, tem um caráter científico ou técnico, e que são escritos hoje em forma de prosa - a se apresentarem sob versos. Tra-tados filosóficos, de literatura, de agricultura, de gastronomia etc.

Antes do advento da escrita, a poesia era empregada de modo prag-mático, funcional. A musicalidade, presença marcante e fundamental nessa arte, servia de suporte para o processo mnemônico, ou seja, aju-dava na memorização dos conteúdos e do próprio texto. Processo, aliás, que continua a ser utilizado até os nossos dias. Alunos da pré-escola guardam determinadas informações, quando ainda não sabem ler nem escrever, entoando pequenas cantigas. Alunos já alfabetizados memo-rizam certos conteúdos e fórmulas matemáticas de caráter mecânico de que modo, se não através de pequenas músicas? Afinal, como que tribos ágrafas ao longo da história e ainda hoje fazem para conservar suas histórias, conhecimentos e sabedorias? Como que os cordelistas do Nordeste de nosso país, muitas vezes iletrados, fazem para lembrar tamanho repertório?

Conforme Massaud Moisés, a palavra poesia vem do grego “poie-sis, ação de fazer, criar alguma coisa”, ligada, pois, à idéia de criação, composição. A palavra verso vem do latim “versu(m), virado, voltado; vertere, virar, voltar, retornar. Ao pé da letra, designa o movimento de retorno para a segunda linha métrica, depois que a primeira se comple-tou” (MOISÉS, 1999, p. 402). A etimologia da palavra verso é importan-te para refletirmos sobre a dificuldade que é, muitas vezes, até criarmos o hábito e perceber o processo de ler poesia, e o quanto seu caminho é labiríntico, cheio de idas e vindas, por isso mesmo desafiador, instigan-

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Unidade B - Literatura Latina

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te, apaixonante depois que se aprende a caminhar por tais veredas. Prin-cipalmente a poesia clássica, como é o nosso caso aqui. O que alguns textos modernos em prosa também proporcionam por vezes.

3.1 A Poesia Épica

Canto os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino,

veio das plagas de Tróia para a Itália e para as praias de Lavínio.

(Virgílio, En., I, 1)

O primeiro tipo de poesia a ser enfocado aqui, por uma questão histórica, por tradição herdada dos antigos gregos, que a colocam como um dos gêneros mais elevados, é a poesia épica. Aristóteles considera Homero o grande modelo épico a ser buscado e a epopéia como uma das artes mais sublimes.

Segundo aquele autor, o gênero só é superado pela tragédia e o au-tor grego por ninguém mais em tal arte, pelo menos até a sua época, século III a.C., prova disso são as citações que seguem: “Mas Homero, tal como foi supremo poeta no gênio sério, pois se distingue não só pela excelência como pela feição dramática das suas imitações” (ARISTÓ-TELES, 1984, p. 204); “Homero parece elevar-se maravilhosamente aci-ma de todos os outros poetas” (Idem, p. 149); “refiro-me a poemas quais a Ilíada e a Odisséia, com várias partes extensas todas elas (se bem que estes dois poemas sejam de composição quase perfeita e, tanto quanto possível, imitações de uma ação única)” (Idem, p. 229).

Massaud Moisés nos traz algumas reflexões a respeito da épica as quais nos parecem encerrar os elementos essenciais para a compreen-são da mesma, ao mesmo tempo em que resgatam alguns pressupostos aristotélicos:

A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tem-po, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonis-ta da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode

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Capítulo 03A Poesia

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inserir-se na trama heróica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de guerra. Do ponto de vista da estrutura, o poema épico se desdobraria em três partes autônomas: a proposição, ou seja, o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora; a narração, parte central e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo herói; a narração deve obedecer a uma seqüência lógica; entretanto, à ordem cronológica seria preferível à artificial, que surpreende a ação em meio (in media res); o epílogo, fecho da ação, deve guardar um imprevis-to, mas ser verossímil e coerente, além de conter um final feliz.

(MOISÉS, 1999, p. 184)

Cá estão os fundamentos de uma epopéia clássica, o caráter su-blime e solene, o assunto bélico como determinante, a história por um viés ficcional. E mais o maravilhoso a que Massaud Moisés se refere na seqüência do mesmo texto, ou “o impacto de forças sobrenaturais na ação dos heróis”, subentenda-se a intervenção constante dos deuses na ação dos personagens. Visível como você pode notar na epígrafe do ca-pítulo. Acrescente-se também o aspecto social, político, coletivo deste gênero. Octavio Paz, ao falar da poesia épica e trágica diz: “Ambas, ade-mais, não têm por objeto o homem individual, mas a coletividade ou o herói a que encarna [...] na épica, o povo se vê como origem e como futuro” (PAZ, 1983, p. 195).

Em Roma a poesia épica é fundadora, lembrando que foram as duas epopéias de Homero as primeiras obras a serem traduzidas e introduzi-das entre os nobres romanos, apesar de serem conhecidas as referências de muitos textos e autores épicos nascidos em solo latino, por exemplo Névio e Ênio. A respeito do primeiro, o pouco que se sabe é o nome in-completo Naeuius e que teria morrido em 201 a.C. Escreveu Poenicum bellum, ou a Guerra Púnica. Ênio, reconhecido por Quintus Ennius, vi-veu entre 239 e 169 a.C. Apesar de se falar de Farsalia, de Lucano, de se questionar a natureza épica das Metamorfoses de Ovídio, o único texto reconhecido unanimemente e que, de fato, preenche os requisitos bási-cos do gênero chama-se Eneida, de Virgílio.

Publius Vergilius Maro nasceu em Mântua, norte da Itália, no ano de 70 a.C., vindo a falecer em 19 a.C., dez anos após começar sua obra-

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Unidade B - Literatura Latina

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prima Eneida. Além desta, as obras mais marcantes e famosas que es-creveu foram As bucólicas (lírica) e Geórgicas (poesia didática), a serem referidas nos respectivos Capítulos. Segundo consta, mesmo após dez anos de escritura, Virgílio teria pedido a amigos para que destruíssem a Eneida, pois a entendia inacabada, sem o retoque final. Parece ter servido de exemplo para os preceitos de Horácio, em sua “carta aos Pisões” ou Arte poética, que recomendava o descanso “em rolos de per-gaminho” por nove anos, algo necessário para o amadurecimento de uma boa produção. Para sorte da humanidade, Augusto não permi-tiu tamanha atrocidade, até porque tinha interesse em sua publicação completa, visto que fora encomendada pelo mesmo junto ao poeta. Pelo que consta, alguns cantos já haviam sido lidos em sessões públicas e privadas, como era a prática de então.

A Eneida é um poema épico composto por doze cantos ou livros (que devem ser entendidos aqui como a antiga divisão possível para o formato da época, o uolumen, e não como se pensa hoje). Possui um tamanho menor que as duas epopéias homéricas, a metade dos cantos e narra em versos, como convém ao gênero, as façanhas do herói troiano Enéias.

Vamos juntos rastrear a partir de agora o que disse Massaud Moi-sés sobre o gênero, olhando para o poema épico de Virgílio. A Eneida apresenta como assunto ilustre o destino e as aventuras de nosso herói, Enéias, ao fundar junto com seu povo novas cidades, mas especialmente uma, a nova Tróia, aquela que bem mais tarde seria Roma. É o que já nos adianta de antemão a proposição do poema:

Canto os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino, veio das plagas de Tróia para a Itália e para as praias de Lavínio. Longo tempo foi o joguete, sobre a terra e sobre o mar, do poder dos deuses superiores, por causa da ira da cruel Juno; durante muito tempo, também sofreu os males da guerra, antes de fundar uma cidade e de transportar seus deuses para o Lácio: daí surgiu a raça latina e os pais albanos e as muralhas da soberba Roma.

(VIRGÍLIO, 1994, p. 19).

A ação principal é narrada de acordo com as recomendações, in media res. Já no primeiro canto encontramos o herói em meio a turbu-lências no seu trajeto rumo à península italiana. Turbulência comum a

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Capítulo 03A Poesia

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toda viagem marítima, só que nesta há dedos e mãos de Juno, sempre na tentativa de atrapalhar as empreitadas dos troianos.

Os seis primeiros cantos relatam a trajetória do herói troiano desde sua saída da terra natal até a chegada à Itália. Imita de certa forma a idéia principal da Odisséia, a viagem de Ulisses de volta para casa. Contudo, distingue-se desta em larga escala. A começar pelo vetor, que no caso do troiano aponta para fora de seu berço, seu chão, a cidadela de Tróia, aponta para um recomeço longe da pátria, para a reconstrução de uma nova cidade a homenagear a primeira.

O amor, instigado por Cupido a mando de Juno, aparece na relação entre a viúva Dido, rainha de Cartago, e Enéias, viúvo também. Relacio-namento trágico interrompido drasticamente com a partida do herói na calada da noite, após ser lembrado e advertido pelos deuses de que seu estabelecimento deve se dar na Itália e não na África. O que levaria a rainha a cometer suicídio. Aqui, de novo, a relação é de ruptura e não de retomada, como aconteceu na volta de Odisseu para junto de Penélope.

Virgílio buscou num passado extremamente longínquo, por ora improvável pela arqueologia, os elementos que dão azo a sua fantasia. Um passado muito anterior a qualquer romanidade. Tal qual o histo-riador Tito Lívio, por falta de dados comprobatórios, deixa que as len-das falem mais alto e se estabeleçam. Entretanto, o histórico também se faz presente na obra, seja de forma ficcional, seja como projeção de um futuro distante. A história ficcionalizada pode ser vista no episódio recém mencionado, o do amor entre Dido e Enéias. Apesar da existência histórica da rainha, a relação amorosa é criação virgiliana. Por outro lado, não há como esquecer o enfrentamento entre Roma e Cartago. A respeito disso, Gaillard diz o seguinte:

Os amores de Dido e Enéias não são somente um elemento nove-lesco na epopéia (também aos alexandrinos agradava o tipo de interferência, e Virgílio, como bom imitador de Apolônio de Ro-des, não foi insensível a tal coisa); Dido destrói a si mesma como Cartago será destruída, vencida pelo destino de Roma, e Vênus, protetora de Enéias, vence Juno, que apoiava Dido. O simbolismo do episódio, longe de esconder seu lado patético, o reduz a seu alcance. O destino de Enéias coincide com o de Roma, e o tempo do mito ilumina o da história.

(GAILLARD, 1997, p. 69).

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Apenas para ilustrar mais um caso de ficcionalização da história, podemos lembrar o futuro casamento entre Enéias e Lavínia, afiança-do na segunda parte do livro, quando nosso herói chega ao centro da península itálica. Lavínia é filha de Latino, rei do povo homônimo, lati-no. Observamos o casamento fantasioso, mas também histórico, entre dois povos que darão à luz a uma grande nação: Roma. Afora estes casos, existem várias passagens no texto que projetam um futuro muito distante da época de Enéias, mas contrariamente muito próximo da realidade conhecida pelos contemporâneos de Virgílio, são momentos em que estes conseguem se ver num espelho. Um deles ocorre no canto oitavo, quando Enéias recebe um escudo, forjado por Vulcano a pedido da mãe Vênus. “Nele, o deus poderoso do fogo, que não ignora a arte dos vates nem os segredos do porvir, havia gravado a história da Itália e os triunfos dos romanos, assim como toda a seqüência dos futuros des-cendentes de Ascânio” (VIRGÍLIO, 1994, p. 178). Nele o deus da forja havia inscrito o resultado, num futuro remoto, dos feitos de Enéias e o tempo presente de Roma:

No meio podiam-se ver armadas de brônzeo rostro, a guerra de Ácio, e se via todo o Leucates ferver em guerra acesa e a água refletir o ouro das armaduras. De um lado Augusto César, con-duzindo os ítalos para o combate, de pé sobre uma alta popa: suas têmporas alegres cintilam dupla chama e a constelação pa-terna lhe fulge sobre a cabeça. Do outro lado Agripa, secundado pelos ventos e pelos deuses, conduzindo seus exércitos, de porte marcial: suas têmporas brilham sob os rostros da coroa naval, soberba insígnia de guerra. Na frente, Antônio, com tropas es-trangeiras e armas de toda espécie, voltando vencedor dos povos da Aurora e do litoral Vermelho; transporta com ele o Egito e os poderes do Oriente e a longínqua Bactriana e é seguido, ó abomi-nação! por uma esposa egípcia.

(VIRGÍLIO, 1994, p. 179-180).

No que diz respeito à constituição física e psicológica de nosso pro-tagonista, devemos descrevê-lo como forte, afinal ele não foge à luta, é um chefe, um líder. Quanto à índole, diferente de Ulisses, famoso pela engenhosidade, astúcia, eloqüência e coragem, nosso herói destaca-se sobretudo pela piedade, entendida aqui não pelo sentido cristão, mas

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antes pelo sentimento de dever e obediência para com os deuses, para com os pais e para com a pátria. Atributo que lhe determina o epíteto de Enéias, o pio.

Os seis últimos cantos imitam, retomam e homenageiam a Ilíada. A guerra entre Enéias e Turno, rei dos rútulos, toma o palco e a ação de todo o restante da história. Quando o príncipe troiano chega ao Lácio, é recebido pelo rei Latino, que um pouco antes havia consultado um oráculo. Este profetizara a chegada de um estrangeiro para quem o mo-narca deveria prometer a mão da filha, Lavínia, em casamento, porque dessa união surgiria um grande povo e uma grande nação. Não obstante a jovem princesa já era prometida a outro homem, Turno. Novamente, a disputa por uma mulher é a causa do enfrentamento bélico.

Em especial, digno de destaque é o canto VI, que narra o fantástico passeio de Enéias pelo mundo das sombras, pelos infernos. De novo, este último termo não deve ser pensado a partir da cultura cristã. Infer-no em tal contexto corresponde ao Hades grego, ou o reino da morte. Em latim, o adjetivo infernus faz referência àquilo que se encontra em-baixo, em uma região inferior, palavra esta com a qual compartilha a mesma raiz etimológica. Inferior aqui significa embaixo da terra, que é o ambiente dos vivos. Já inferna nomeia as regiões infernais, a morada dos deuses infernais. Guiado pela profetisa Sibila, afinal nenhum mortal adentra esse reino vivo, a não ser com convite e acompanhado, nosso herói desfila por diferentes lugares desse tenebroso espaço. À semelhan-ça do canto XI da Odisséia, lá ele encontra as almas de companheiros de jornada na vida corpórea na terra, soldados que lutaram com ele por Tróia, o piloto Palinuro, que caíra da popa ao mar enquanto observava os astros, e a rainha Dido. Estando lá, ele conhece muitos dos recantos do mundo sombrio, com seus rios e geografia diversa, o Aqueronte, o Letes, a região tartárea, os campos elíseos. Conhece as criaturas que vivem para o serviço do palácio infernal, o barqueiro Caronte e o cão Cérbero. A razão fundamental desta viagem não muito agradável é conversar pela última vez com o pai Anquises, morto há um pouco mais de um ano. É o que acontece na última etapa do tour. No momento em que os dois alegremente se vêem e se falam, por três vezes Enéias tenta abraçar o pai, mas este é apenas sombra, virtual como o cinema produziria a cena hoje,

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“três vezes a imagem escapou-se das suas mãos, semelhante aos ventos ligeiros e semelhante a um sonho alado” (VIRGÍLIO, 1994, p. 134).

A derradeira conversa entre pai e filho servirá para que aquele mostre a este a importância da realização de seus feitos para o futuro da humanidade. Anquises mostra a Enéias as almas que aguardam o seu tempo de nascer. Ali estão, a esperar, os espíritos dos descendentes de Enéias e Lavínia, e de Ascânio. Ali estão Júlio César, Otávio Augusto e famílias de famosos romanos, os Gracos, os Décios, os Drusos. Ali estão as almas de habitantes ilustres de Roma (a Nova Tróia) a vingar a derro-ta e a destruição da cidade asiática e dos antepassados:

Aquele, vencedor de Corinto, conduzirá seu carro sobre as alturas triunfais do Capitólio, ilustre para sempre por causa do massacre dos aqueus. Aqueloutro destruirá Argos e a Micenas de Agame-não e o próprio Eácida descendente de Aquiles poderoso pelas ar-mas, vingando seus antepassados de Tróia e o templo ultrajado de Minerva. Quem poderia, o grande Catão, ou tu, Cosso, vos não mencionar? Quem poderia esquecer a família dos Gracos, ou aqueles dois raios de guerra que foram os dois Cipiões, flagelo da Líbia, ou Fabrício, glorioso pelas suas pequenas posses, ou tu, Ser-rano, semeando teu campo? Fatigado, para onde me levas, Fábio? Tu, famoso Máximo, és o único que, sozinho, em temporizando, nos restabeleceste a república.

(VIRGÍLIO, 1994, p. 137).

Aqui, pela primeira vez na grandiosa obra, Virgílio mostra aos seus contemporâneos e conterrâneos o espelho para que esses se mirem e se vejam, aqui ele justifica para o mundo a grandeza dos romanos e os motivos da escritura: propagar os ideais da pátria e igualar-se aos gregos neste gênero literário.

3.2 A Poesia Dramática

A comédia é o amor ao semelhante,

assim como o drama é a nossa contingência.

(Nei Duclós)

Se para os gregos a poesia dramática foi como que a menina dos olhos, a ponto de Aristóteles enxergar na tragédia um gênero superior

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a todos os demais, Sófocles o seu maior nome e Édipo o melhor texto, o mesmo não podemos falar da poesia dramática em Roma. Nem o tea-tro teve tanto sucesso, e tampouco a tragédia foi representativa naquele solo. R. M. Rosado Fernandes (1984) afirma a respeito da Arte Poética que Horácio, cultor da poesia lírica, formula regras para a poesia dra-mática e o que ele acha mais estranho é que isso acontece numa cidade “onde o teatro não fazia parte integrante da vida social, como na Grécia” (FERNANDES, 1984, p. 27).

É certo que isso se dá em outra época que não a dos autores de que trataremos aqui, em todo caso o teatro nunca foi uma constante e uma unanimidade na vida romana. Nessa arte, menor prestigio alcan-çou a tragédia, prova disso é que apenas um autor ganhou notoriedade e manteve seu nome e sua obra ao longo dos séculos, e isto já na primeira centúria de nossa era: Sêneca. Para Gaillard,

o teatro latino sempre se distinguirá do teatro grego porque se sabe e se pretende antes de tudo lúdico: o que nos gregos podia alcançar a intensidade de uma comunhão religiosa ou cívica, em Roma transforma-se em um simples espetáculo de entretenimen-to, temperado com emoção ou risos.

(GAILLARD, 1997, p. 29).

Podemos mencionar alguns tipos de manifestações teatrais cômi-cas originários da Itália, perdidos no tempo e em tempos de oralidade, a comédia togata e tabernaria, a atelana e o mimo. De certa forma, in-fluenciaram o desenvolvimento do gênero em Roma, no entanto, em se tratando de teatro romano, existem basicamente três nomes que chega-ram até os nossos dias no Brasil: Plauto, Terêncio e Sêneca. Além deles temos os nomes de Lívio Andronico, Névio, Ênio e Cecílio, cujas obras se perderam em grande parte ao longo dos tempos. Os dois primeiros são os únicos autores que ilustram o século II a.C., período helenístico e de formação da literatura latina, e que se perpetuaram. O último é um dos representantes do século primeiro de nossa era, já nos limites da decadência literária e cultural. Parece que o espírito romano comum estava mais voltado para o riso e a pilhéria que para a gravidade, como já tivemos a oportunidade de mencionar no Capítulo referente à cultura.

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No entanto, antes de olharmos para a produção destes escritores, convém que se retomem os conceitos básicos de poesia dramática, ou drama, conforme o verbete do referido dicionário de Massaud Moisés:

DRAMA – Grego drâma, ação.

A princípio, como sugere a etimologia, o vocábulo designava sim-plesmente a ação. E como a ação se afigurava exclusiva do teatro, passou a conter um significado específico. Aristóteles, na Poética (tr. de Eudoro de Sousa, s.d., 1448 a 28), distingue a imitação, ou mimese, “na forma narrativa” daquela em que as “pessoas agem e obram diretamente”, ou seja, em que se processa a imitação da ação. Ao segundo tipo confere o apelativo de drama. Portanto, em sentido amplo, a qualquer peça destinada a representar-se caberia análoga denominação.

(MOISÉS, 1999, p. 161).

Isto é, para Aristóteles, uma das diferenças entre a poesia épica e a que hoje determinamos como dramática (para ele comédia e tragédia), diferença esta que reside na natureza da ação: enquanto que, na epopéia, a ação é descrita por um narrador, na arte que atualmente denomina-mos drama é representada e mostrada in loco por atores. Outra variação entre os dois tipos diz respeito ao tempo, ou extensão segundo o pensa-dor grego, “[...] a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopéia não tem limite de tempo – e nisso diferem, ainda que a tragédia, ao princípio, igualmente fosse ilimitada no tempo, como os poemas épicos.” (ARIS-TÓTELES, 1984, p. 205).

Dito isso, conviria agora distinguirmos a comédia da tragédia, já que em comum entre si está o fato de serem as duas drama, teatro, ação representada por atores em presença do público. Segundo Aristóteles, divergem no objeto de imitação. De modo compartilhado, a “epopéia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitações de homens superiores” (Idem, p.205). Já a

comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito,

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torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expres-são de] dor.

(Idem, 1984, p. 205).

Uma definição mais completa de tragédia, que Aristóteles sugere no parágrafo 27, diz assim:

É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, com-pleta e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas par-tes [do drama], [imitação] que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”.

(ARISTÓTELES, 1984, p. 205).

O que se pode depreender é que a tragédia imita as ações de ho-mens elevados, nobres. Os episódios da ação são contados de forma mais completa, prevendo uma seqüência cronológica mais encadeada, prevendo noções de causa e efeito e uma extensão relativamente grande, mas que caiba no período de um dia, ou pouco o exceda, para que possa ser apresentado ao público, ao vivo. A linguagem ornamentada é o em-prego adequado do verso trágico pelo poeta e também do canto coral durante o espetáculo. Da imitação por atores já tratamos.

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A idéia de suscitar terror e piedade significa que este gênero visa a proporcionar este tipo de sentimento no espectador e não o riso como a comédia; a purificação dessas emoções implica na concepção de ca-tarse, ou seja, ao sentir terror e piedade os espectadores diante da ficção estariam aliviando, purgando os próprios sentimentos em relação ao mundo e à vida. Em parte, trata-se da famosa válvula de escape, para a qual toda a arte e entretenimento se fazem importantes, neste caso para exorcizar os sentimentos de terror. No mundo romano a política do cir-co, juntamente com a do pão, serviu a esses princípios.

Segundo Zélia de Almeida Cardoso, o teatro literário latino foi contemporâneo da epopéia na Itália:

O teatro literário se inicia em Roma, ao que se sabe, em 240 a.C. Alguns anos antes, durante os Jogos Romanos que se realizavam anualmente em honra de Júpiter, no começo de setembro, os ro-manos haviam tido oportunidade de assistir a um drama grego, representado por ocasião da visita do rei Hierão I. Só em 240 a.C., porém, ao comemorar-se o primeiro aniversário da primei-ra guerra púnica, com a vitória dos romanos sobre os cartagi-neses, é que o povo vai ter a possibilidade de assistir a uma peça representada em latim.

(CARDOSO, 2003, p. 25).

Gaillard, por sua vez, nos ajuda a entender o porquê de ter restado tão pouco da produção teatral latina:

Por efeito, como ocorria na Grécia, as obras são escritas para uma representação “oficial”, teoricamente única. É uma questão fun-damental saber em que medida estas obras voltavam a ser re-presentadas posteriormente. Na maioria das vezes os textos não eram editados, salvo no caso dos melhores autores, o que permi-te deduzir que havia “reposições” oficiais ou privadas, parciais pelo menos, e que, à falta de dispor de um repertório no sentido moderno da palavra, as companhias (greges) de atores, em seus “giros” (por exemplo, por províncias e municípios) propunham, senão reestréias, pelo menos adaptações. Mas a regra geral era que a obra de teatro, ingrediente de uma cerimônia, é utilizada somente uma vez: marca o acontecimento, e somente se dissocia dele raras vezes por uma conservação literária.

(GAILLARD, 1997, p. 30).

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A Comédia

O modelo assumido pela comédia latina foi o da chamada comé-dia nova grega, cujas principais referências para os latinos foram Me-nandro, Dífilo e Filemão, principalmente o primeiro. A comédia nova desenvolveu-se no final do século IV, quando a Grécia já não contava com a liberdade da polis. Distinguia-se da irmã mais velha a comédia antiga (século V) justamente neste aspecto. Juntamente com a tragédia, era um produto decorrente da democracia, que permitia a livre expres-são, incluindo críticas diretas ao sistema e a pessoas públicas. Como as que Aristófanes, seu maior representante, fez a figuras como Sócrates em sua peça As nuvens.

Ou seja, o riso era extraído de motivos políticos, as personagens muitas vezes eram históricas, famosas, um tipo de humor que em nos-sos dias pode ser relacionado com a charge, a caricatura e/ou certos programas humorísticos que mostram e criticam pessoas de diferentes esferas, política, esportiva ou artística.

Mais tarde, à democrática polis sucede um regime mais fechado, em que o poder se concentra nas mãos de poucos. Foi o que ocorreu com a unificação impetrada pelo macedônico Filipe e com o imperialismo de Alexandre Magno. Horácio, na sua Arte poética, ao traçar um histórico do teatro no mundo grego desde a mitológica época de Tespis até a de Ésquilo, confirma em parte e registra os problemas por tanta liberdade: “A estes sucedeu a comédia antiga e foi recebida não sem aplauso; mas a liberdade degenerou em vício e em abuso que teve de ser reprimido pela lei. Depois de aceite a lei, calou-se o coro, para sua vergonha, porque se lhe tirara o direito de injuriar” (HORÁCIO, ano 1984 p. 96-7).

Por esta época a comédia sofre transformações. Ao ficar impossibi-litado de criticar abertamente a política e as pessoas públicas, o humor torna-se impessoal e o alvo passa a ser o de figuras mitológicas. A comé-dia desta fase é classificada pelos críticos como “média”, intermediária entre a antiga e a nova. Não é agressiva para com pessoas, portanto, não causa problemas muito sérios. Posteriormente, irrompe no cenário a chamada comédia nova. O objeto do riso não são mais personagens históricas ou mitológicas, mas a personagem-tipo.

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Em Plauto vemos tipos tais como o do avarento (Euclião, em Aulu-laria), o soldado fanfarrão, a que alude o título do texto Miles gloriosus, prostitutas (as irmãs Báquides, em comédia homônima) e escravos as-tutos: Crisalo (Báquides).

Plauto ǿ

Tito Mácio Plauto nasceu na cidade úmbria de Sarcina, acredita-se que entre os anos 254 e 250 a.C. Atribuem-se a ele cento e trinta peças teatrais, das quais somente vinte se conservaram. Anfitrião (Amphitruo), Os burros (Asinaria), Aululária ou A marmita (Aulularia), As Báquides (Bacchides), Os prisioneiros (Captiui), Cásina (Casina), O cofre (Cistella-ria), O gorgulho (Curculium), Epídico (Epidicus), Os Menecmos (Mena-echmi), O mercador (Mercator), O soldado fanfarrão (Miles gloriosus), O fantasma (Mostellaria), O persa (Persa), Psêudolo (Pseudulus), A corda (Rudens), Estico (Stichus), O trinumo (Trinummus), Truculento (Trucu-lentus), A valise (Vidularia), O cartaginês (Poenulus).

Comum à época e ainda aos nossos dias, Plauto não somente escre-veu como experimentou a direção, atuação e outras funções do meio.

A característica mais marcante de sua obra estava no público a quem dirigia seu espetáculo, a plebe, a camada mais popular e menos instruída de Roma, o que implicava em certos aspectos próprios de sua poética. Por exemplo, a linguagem, a estética, a necessidade de informar e educar sua platéia, o que ele fazia nos prólogos de suas peças.

Plauto é uma das raras fontes de estudos para o latim vulgar. A linguagem é uma particularidade muito instigante, sinal da criatividade de seu trabalho. Nela observa-se o uso constante de diminutivos e de expressões incomuns e divertidas.

Esteticamente o autor recorre ao gosto popular, suas peças são reple-tas de grosserias, às vezes até de conotação sexual e escatológica, de corre-rias e pancadarias, bem ao estilo modernamente chamado “pastelão”. Em Aululária, exempli gratia, o avarento Euclião interrompe suas conversas freqüentemente, sai de cena para entrar em casa e verificar se o seu tesou-ro está no devido lugar. Os escravos sempre sofrem de maus tratos. A cena entre Euclião e Estróbilo, escravo do vizinho, o demonstra:

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EUCLIÃO: Fora daí, minhoca! que saíste agora debaixo da terra. Há bo-

cado nem aparecias, mas agora, apareces para morrer. Por Pólux! meu

feiticeiro! vou dar-te um tratamento desgraçado.

ESTRÓBILO: Mas que fúria te agita! Que tenho eu que ver contigo, ve-

lho? Por que é que me insultas? Por que é que me puxas? Por que é

que me bates?

EUCLIÃO: Ainda mo perguntas? Meu safado! Não és um ladrão, és um

tríplice ladrão!

(PLAUTO; TERÊNCIO, s.d. p. 117)

Observe os xingamentos, “minhoca! que saíste agora debaixo da terra”, a irreverência da linguagem (“meu safado!”).

Dado o momento histórico-literário em que o autor viveu, a pre-sença grega nas peças plautianas é muito forte. As cidades em que se passam as ações são gregas. Em Anfitrião é Tebas. Os nomes das perso-nagens são todos gregos, o que por si só já causava riso à platéia, pouco familiarizada com o idioma. Mesmo hoje acarretam tal efeito, não?! Eu-clião, Estáfila, Licônidas, Estróbilo, Antraz (este não andou em voga há pouco tempo?), Congrião, Pitódico, Dromão, Macrião, só para ficar com os de Aulularia. Estrangeirismos sempre proporcionam estranhamento, e daí riso. O tipo de comédia é reconhecido como paliata, porque os atores trajavam o pálio, roupa típica dos gregos, curta, em oposição a dos romanos, comprida, a cobrir todo o corpo.

Apesar disso, os romanos conseguem se ver em determinados pon-tos das histórias. O responsável pelo prólogo da Comédia da Panela, o deus Lar, é uma divindade tipicamente romana.

No mesmo texto há uma passagem em que Euclião dirige-se ao pretor a fim de buscar a sua quota de dinheiro distribuída entre os po-bres. Ele não quer deixar transparecer que tem uma panela cheia de ouro em casa. O panteão dos deuses algumas vezes é romano. Em An-fitrião, os deuses são Júpiter e Mercúrio, equivalentes a Zeus e Hermes no Olimpo grego.

Um recurso bastante empregado por Plauto é o do qui pro quo. A tradução literal, nada prática nem produtiva, seria “o que por qual”, ou “isto por aquilo”, insinuando a idéia de troca. São inúmeras as ocorrên-

Expressão em latim muito comum, empregada atual-mente para dizer confu-são, engano, erro, troca.

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cias nos textos de Plauto, das quais citaríamos algumas. Em As Báquides, as duas irmãs, de mesmo nome, são gêmeas. Só isto já é motivo para muitas confusões... Em Anfitrião, enquanto Anfitrião se encontra na guerra, o deus Júpiter toma a forma deste, a fim de fazer amor com sua esposa, por quem se apaixonara. Por sua vez, Mercúrio, fiel escudeiro do deus supremo, se transforma em Sósia, escravo de Anfitrião. Resultado: muita confusão. Imagine as cenas, ou melhor, leia, se possível e, com sorte, veja-as como espectador, no teatro, ou quem sabe reproduza-as para os colegas do pólo, para a escola em que você trabalha ou para a sua comunidade: imagine Sósia encontrando-se consigo mesmo em frente de sua casa, apanhando de outro Sósia, igualzinho a ele e tendo que ex-plicar tudo isso ao amo!

Um diálogo maravilhoso em Aululária, excelente exemplo de qui pro quo, encontra-se abaixo:

A panela cheia de ouro, pertencente a Euclião, havia sido roubada. Licô-

nidas havia engravidado Fedra, filha de Euclião, e este, tão obcecado pelo

ouro, nem percebera. Os dois se encontram e o diálogo se dá desse jeito:

LICÔNIDAS: Quem é esse homem que está diante de casa soluçando, e

queixando-se, todo triste? Mas é Euclião, acho eu! Ai, que estou perdido!

já se descobriu a coisa. Creio que a filha dele já deve ter tido o menino.

E agora estou aqui sem saber o que hei de fazer: vou ou fico? Aproximo-

me ou fujo? Por Pólux, não sei que hei de fazer, por Pólux!

EUCLIÃO: Mas que diz este homem?

LICÔNIDAS: Eu sou um infeliz.

EUCLIÃO: Eu é que sou um infeliz, um homem perdido de desgraças, tão

grandes são os males e tão grande a tristeza que veio sobre mim.

LICÔNIDAS: Deixa-te estar sossegado.

EUCLIÃO: Mas de que maneira é que eu posso estar sossegado?

LICÔNIDAS: É que eu tenho a confessar que esse crime que te atormen-

ta o espírito fui eu quem o cometeu.

EUCLIÃO: Que é que tu estás a dizer?

LICÔNIDAS: O que é verdade.

EUCLIÃO: Mas ouve, moço, que mal te fiz eu para procederes assim e me

perderes a mim e aos meus filhos?

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LICÔNIDAS: Foi um deus que me impeliu, foi ele que me atraiu a ela.

EUCLIÃO: De que maneira?

LICÔNIDAS: Confesso que errei, e sei que mereço castigo, mas venho

pedir-te que tenhas a bondade de me perdoar.

EUCLIÃO: Mas como é que tu ousaste fazer isto? Tocar no que não te

pertencia?

LICÔNIDAS: Que queres tu? Aconteceu. Não se pode negar o que é um

fato. Eu acho que os deuses o quiseram. Sei bem que, se o que não qui-

sessem, nada teria havido.

EUCLIÃO: O que os deuses quiseram foi, sem dúvida, que eu te mandas-

se enforcar em minha casa.

LICÔNIDAS: Não digas isso.

EUCLIÃO: Por que é que tu sem eu o permitir foste tocar na minha...

LICÔNIDAS: Eu fiz isso por causa do vinho e do amor.

EUCLIÃO: Ó homem sem vergonha nenhuma! Como é que ousas vir

ter comigo com esse discurso, meu descarado? Se isso agora é direito,

então já nos podemos desculpar de roubarmos à luz do dia o ouro das

senhoras; se nos apanharem, desculpar-nos-emos dizendo que o fize-

mos porque estávamos embriagados e porque o amor... Coisa vil, bem

vil, o vinho e o amor. Se é lícito, a quem se embriagou e a quem ama,

fazer o que lhe parece.

LICÔNIDAS: Mas eu venho espontaneamente pedir-te desculpa da mi-

nha estupidez.

EUCLIÃO: Não gosto dos homens que depois de terem feito o mal vêm

pedir desculpa. Tu sabias que ela não te pertencia, não lhe devias ter

tocado.

LICÔNIDAS: Mas, já tive a audácia de tocar, não vejo nenhum impedi-

mento a que não fique com ela!

EUCLIÃO: Então tu vais ficar, contra minha vontade, com a...

LICÔNIDAS: Eu não a exijo contra tua vontade. O que eu acho é que deve

ser minha. Tu mesmo vais concordar, Euclião, que ela deve ser minha.

EUCLIÃO: Se tu não tornas a trazer...

LICÔNIDAS: Não torno a trazer o quê?

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EUCLIÃO: Aquilo que me pertencia e que tu tiraste. Olha que te levo ao

pretor e te levanto uma ação.

LICÔNIDAS: O que te pertencia e eu tirei? Donde? Afinal que é isso?

EUCLIÃO (ironicamente): Oxalá Júpiter te proteja assim como é verdade

que tu não sabes nada!

LICÔNIDAS: Se não me dizes o que queres...

EUCLIÃO: O que eu te exijo, ouves bem, é a panela de ouro que tu con-

fessaste ter-me roubado.

LICÔNIDAS: Por Pólux! Eu nunca disse isso, nem fiz uma coisa dessas.

[...]

(PLAUTO; TERÊNCIO, [s.d.], p. 117).

Gaillard abre um espaço em seu texto para falar da proposição ma-nifesta de Plauto em fazer o público rir, “para nosso autor, uma obra bem feita é simplesmente uma obra que faz rir” (GAILLARD, 1997, p. 32), com o que concordamos plenamente. Com Plauto conseguimos rir, gargalhar de fato.

Terêncio ǿ

Públio Terêncio Afer teve uma vida curta. Embora não se tenha certeza do ano de seu nascimento, os dados são desencontrados, de todo modo não chegou a viver quarenta anos (De 185? a 159 a.C.). Mesmo assim teve tempo de produzir seis obras: A moça de Andros (Andria), Os Adelfos (Adelphoe), A sogra (Hecyra), O eunuco (Eunuchus), O au-topunidor (Heautontimoroumenos) e Fórmio (Phormion). Assim como Lívio Andronico, foi também escravo, trazido da África, possivelmente de Cartago. Por conta de sua habilidade com as palavras foi liberto e recebeu formação literária. Gaillard observa que “a aristocracia romana gostava de formar ‘seus’ artistas como se fossem uma espécie de ‘botim intelectual’” (GAILLARD, 1997, p. 37). Poderíamos pensar em atitude típica de emergentes econômico-sociais, de novos ricos.

Terêncio surge no cenário artístico-literário algumas décadas de-pois de Plauto, e seu trabalho se distingue do antecessor em muitos as-pectos, mas todos relacionados a um quesito fundamental: o público ao qual destinavam-se seus textos. No caso de Terêncio, dirigia-se a uma

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Capítulo 03A Poesia

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platéia mais requintada, elitizada. Em função disso sua obra se opõe, em quase todos os tópicos destacados, no que dissemos a respeito de Plauto. Na ação, na linguagem, nas informações e na formação (desnecessárias) aos que assistiam seu teatro.

Em Terêncio vemos novamente e, ainda, a presença do mundo grego. Contudo, não podemos esquecer que este é um período de formação lite-rária para os romanos. De novo, as cidades, os nomes, as roupas das perso-nagens são gregas. Só que aqui o efeito é diferente, o helenismo não suscita estranhamento e riso, mas antes destaque e distinção cultural. Um provin-cianismo, poderíamos pensar, mas desejável talvez para seus espectadores. Do mesmo modo que Plauto, as bases de seus textos eram resultantes da contaminatio, da fusão de dois ou mais textos gregos em um latino.

Diferentemente de Plauto, Terêncio não precisava educar, resumir a peça, nem explicar nada antecipadamente ao seu público, mais eru-dito. Por essa razão, seus prólogos eram usados para se defender das críticas que sofria.

A propósito, segundo P. A. Martín Robles, Terêncio se queixava do populacho típico que freqüentava o teatro de Plauto e que, de certa forma, caracterizava o gosto teatral romano em geral,

porque abandonava o teatro durante as representações de suas obras para assistir a um espetáculo de feras; que somente man-tinha-se no teatro para [assistir] palhaçadas, ou para satisfazer seu paladar estético com os sabores intolerantemente picantes dos mimos, ou para os combates de gladiadores.

(ROBLES, 1947, p. 12-13).

Suas peças têm como característica básica a contenção nas ações. Não há correrias, bordoadas, xingamentos ou licenciosidades. Sua força concentra-se nas intrigas e nos diálogos. Fundamentam-se num tipo de comédia denominada fabula ou comedia stataria, isto é, de pouca ação, movimentação, por oposição a fabula/comedia motoria, de ação, movi-mentação, típicas de Plauto, embora este também tivesse exemplares do primeiro tipo, como Bacchides, e Terêncio também apresentasse algumas do segundo. Em Os Adelfos o embate se dá entre a educação rígida de um pai, Dêmea, que vive no campo, e a liberal do irmão deste, Micião.

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Terêncio não obteve o mesmo sucesso de Plauto. Talvez a proximi-dade com a elite o afastasse das massas. Recebeu muitas críticas, entre elas a maledicência de que suas peças eram escritas pelos irmãos Lélio e Cipião Emiliano, pessoas cultas de quem recebeu apoio, formação e influências. Agostinho da Silva, em nota biográfica sobre o autor, nos afiança:

Todo o temperamento de Terêncio o inclinava à reflexão moralis-ta, quase à meditação filosófica, e a linguagem geralmente deli-cada das suas personagens não era a mais apropriada para pren-der a atenção do público dos teatros romanos. Por outro lado, a sua ligação com os aristocratas deve-o ter prejudicado junto do povo e oferecia campo fácil de ação às intrigas dos que lhe eram adversos; faziam tudo quanto podiam para lhe diminuir a origi-nalidade e o talento.

(SILVA, [s.d.], p. 217).

Com Terêncio alcançamos risos, dificilmente uma gargalhada. São comédias porque, de acordo com Aristóteles, a trama se dirige do infor-túnio para a resolução feliz do problema.

A Tragédia

Em se tratando de teatro trágico romano, apesar de ter chegado até nossos dias apenas um nome, Lucius Annaeus Seneca, sabe-se, por intermédio de críticos e autores da época, que foram vários os autores: no período de formação literária, os já famosos Lívio Andronico, Névio, Ênio, e Pacúvio (220 – 13 a.C.). Da época de Augusto, destaquem-se Cássio, Quinto Cícero, Balbo, Vário Rufo, Ovídio, Mamerco Escauro, Pompônio.

Sêneca ǿ

Lúcio Aneu Sêneca nasceu em Córdoba (Espanha), de uma família tradicionalmente poderosa e culta, por volta de 4 a.C., e faleceu em 65 d.C, por conseqüência de uma ordem de suicídio dada pelo imperador Nero, conforme o historiador Tácito (Anais, XV, 60-64). Ainda jovem, dirigiu-se à capital do Império, onde conviveu por muitos anos junto ao poder, junto à corte, ou se quiserem, junto às cortes, de Calígula, de

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Capítulo 03A Poesia

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Cláudio e, por fim, do seu assassino. Durante o reinado de Cláudio foi exilado na Córsega por causa de intrigas palacianas, retornando oito anos mais tarde a pedido de Agripina, a fim de que educasse e fosse tu-tor de seu filho, Nero, ainda criança. Conforme Almeida Cardoso:

Sêneca é o último autor dramático romano a desfrutar de impor-tância literária. [...] No século I da nossa era, o teatro nos moldes clássicos já não atraía tanto o espectador. Os mimos, com sua le-veza e alegria, com danças, música, presença de mulheres e cenas de nudez, eram muito mais apreciados do que as antigas comé-dias e as austeras tragédias. Além disso, os espetáculos circenses, grandiosos e violentos, expandiam-se cada vez mais, disputando com o teatro a preferência do público.

(CARDOSO, 2003, p. 43-44).

Escreveu nove tragédias, retomando temas e personagens enfoca-dos pelo teatro grego tradicional, por Eurípedes e Sófocles. São elas: As fenícias (Phoenissae), A loucura de Hércules (Hercules furens), Hércules no Eta (Hercules Oeataeus), Édipo (Oedipus), Fedra (Phaedra), Medéia (Medea), As troianas (Troades), Agamêmnon (Agamemnon) e Tiestes (Tyestes).

Mesmo em seus textos teatrais, Sêneca defendeu o estoicismo, visí-vel no embate e na moral subentendida na necessidade de sobreposição e vitória da razão sobre as paixões.

Um aspecto importante na obra senequiana está no desejo e no individualismo das personagens trágicas. Diferentemente das tragédias gregas, em que os seres humanos não expressam suas vontades e o seu individualismo, visto que são completamente guiados pelos desígnios do Destino, pelos interesses dos deuses, as personagens deste tragedió-grafo são marcadas fortemente pela vontade própria. A passagem a se-guir, retirada de Medeia, exemplifica claramente:

Medeia

Eu afastar-me daqui? Se eu tivesse saído, voltaria para gozar do espe-

táculo destas novas núpcias. Para que hesitar, ó minha alma? Estou se-

guindo o teu feliz ímpeto. Como este esboço de vingança, que tanto

te alegra, é pouca coisa! [...] Meu ódio não foi senão um prelúdio: era

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possível ousar algo verdadeiramente grandioso com mãos ainda inex-

perientes? Com o meu furor de virgem? Agora, só agora sou Medeia:

meu talento tornou-se grande no mal. Sou feliz, sim, sou feliz por ter

cortado a cabeça de meu irmão, feliz por ter esquartejado o seu corpo,

por ter despojado meu pai de seu tesouro sagrado que ele guardava tão

cuidadosamente; feliz por ter armado as filhas para que matassem seu

velho pai. Ó meu ódio, tu não deves senão procurar um objeto: seja qual

for o crime, tua mão não será inexperiente. Então, ó minha cólera, onde

te atiras? Quais dardos queres dirigir contra o pérfido inimigo? Não sei o

que minha alma feroz decidiu em seu âmago e ainda não ousa confes-

sar a si mesma. Eu fui tola na minha pressa excessiva: ah! se meu odioso

esposo já tivesse uns filhos de minha rival! – Mas basta pensar que to-

dos os filhos que ele te deu foram gerados por Creusa. Gosto deste tipo

de castigo; e com justa razão: é o crime supremo, eu reconheço-o; e é

preciso que minha alma se prepare para isso. Vós, que fostes antes meus

filhos, vós deveis expiar os crimes de vosso pai! – O horror fez bater, meu

coração, meus membros tremem pelo gelo, meu peito sente calafrios.

Meu ódio abandonou-me e o amor materno reaparece inteiro em mim,

afastando os sentimentos da mulher. Eu, eu vou derramar o sangue dos

meus próprios filhos, de minha própria prole? Inspira-te melhor, ó minha

demente cólera. Este espantoso crime deve ficar longe de meu pensa-

mento. Qual seria a culpa que estes infelizes iriam expiar? – O seu crime

é ter Jáson como pai; e um crime ainda pior; ter Medeia como mãe.

Eles devem ser mortos, não são meus... Devem morrer: são meus... Eles

não têm culpa, não fizeram nada de mal: são inocentes, confesso-o...

Mas também meu irmão era inocente! – Ó minha alma, tu vacilas. Por

quê? Por que as lágrimas banham o meu rosto, por que sou arrastada

por impulsos contraditórios, entre o ódio e o amor? Uma dúplice agita-

ção produz esta incerteza. Assim como quando os ventos lutam entre

si cruelmente e lançam para opostas direções as ondas do mar, umas

contra as outras, e o oceano se agita indeciso, assim são as indecisões de

meu coração: a ira expulsa a piedade, a piedade expulsa a ira. Ó minha

dor, cede à piedade.

– [chamando os filhos] Aproximai-vos, ó meus queridos filhos, única

consolação de minha casa abatida, aproximai-vos e abraçai com ternura

vossa mãe. Possa vosso pai possuir-vos incólumes, com a condição de

que também vossa mãe possa possuir-vos. Mas... o exílio, a fuga, me es-

peram. Agora os meus filhos, em lágrimas e gementes, serão arrancados

à força de meu peito... Que o pai os perca: a mãe já os perdeu. Nova-

mente cresce minha dor e meu ódio ferve. A antiga Erínis, malgrado

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Capítulo 03A Poesia

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meu, apodera-se de meus braços. Ó ira, acompanha-me onde quiseres:

seguir-te-ei. Ah! por que a sorte não me deu tantos filhos, quantos foram

gerados pela soberba filha de Tântalo? Por que eu não dei a existência

a quatorze crianças? Fui estéril demais para minha vingança; mas... o fui

bastante para vingar meu irmão e meu pai: dei à luz dois filhos! [...].

(SÊNECA, 1991, p.107-108).

Apesar de forte e assustadora, a cena ilustra precisamente a afir-mação. Infelizmente, fatos dessa envergadura são noticiados com muita freqüência pela mídia. O ser humano e suas paixões muitas vezes não conseguem ser refreados pela razão, apesar de todos os alertas de filó-sofos e religiosos.

3.3 A Poesia Lírica

Mas estes assuntos tão sérios

não ficam bem a uma lira prazenteira:

Ó Musa, onde andas ou desandas?

Deixa de ser audaciosa!

E deixa de revelar as deliberações dos deuses!

Deixa de rebaixar matéria tão sublime

pela fraqueza dos teus cantos.

Horácio (Ode III, 3)

Aristóteles, como você deve lembrar, ressalta as qualidades da tra-gédia acima das outras artes, a epopéia e a comédia. Desta última não nos chegou o seu estudo, mas percebe-se que não possuía o mesmo sta-tus, o próprio autor o afirma em seu estudo descritivo. E a lírica? A ela o estagirita sequer abre espaço para descrevê-la. Há de se considerar que ele não se refere ao termo porque o mesmo ainda não era usado. Em seu lugar emprega as formas “aulética”, “citarística” e outras, referindo-se aos instrumentos musicais de que se faziam acompanhadas. De todo modo não lhe dedica nenhum estudo. Possivelmente porque ainda era tida como música e não literatura, como hoje a entendemos. Porque não existia como arte autônoma, estava a serviço das artes maiores já citadas. Porque não é imitativa de ações, ou de uma grande ação, funda-

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mental para aquelas artes. Porque é pequena em extensão e individual em um mundo que prioriza o grandioso e o coletivo.

Por tudo isso, não encontramos nenhum conceito de lírica em Aris-tóteles, nem na Arte poética de Horácio, um lírico por excelência, tam-pouco em Boileau-Despréaux, um estudioso já em pleno século XVII. Este último é considerado por Célia Berretini (1979) “um definidor da doutrina chamada clássica”, embora tenhamos que lembrar que ele se pauta muito no estudo horaciano. Assim, na falta de um conceito de lírica dos clássicos, devemos observar o que os modernos nos dizem a respeito e montarmos nossos próprios conceitos.

Massaud Moisés recupera o termo “lírica” do grego lyrikós, “cantar ao som da lira” e complementa:

A conotação do vocábulo “lírica” articula-se estreitamente à sua etimologia: no início, designava uma canção que se entoava ao som da lira. Assinalava, pois, a aliança espontânea entre a músi-ca e a poesia, ou entre a melodia e as palavras. Inaugurada pelos gregos já no século VII a.C., essa modalidade poética permaneceu até a Renascença, quando o primitivo significado – poesia can-tada – entrou em desuso. Entretanto, a mudança dificultou, em vez de facilitar, o trabalho dos críticos, que passaram a enfrentar mais uma perplexidade: como distinguir entre o texto poético voltado ao canto e o meramente verbal? Apenas no século XIX, com o empenho que os românticos puseram no deslindamento dos problemas relacionados com o “eu”, é que novas luzes foram lançadas sobre a questão da lírica.

(MOISÉS, 1999, p. 306).

Temos aqui, portanto, uma encruzilhada a que nos remete a na-tureza da lírica: canto, sonoridade e palavra. Encruzilhada que em de-terminados momentos marcou e marca a ruptura entre as partes. Por exemplo, quando da leitura do texto, a palavra escrita se fez mais impor-tante que a música. Processo que se iniciou com o helenismo e a univer-salização do mundo, e pluribus unus, de muitas nações, uma só a ditar as ordens. No entanto, indiferente às questões e preocupações teóricas, a poesia continua a manter o casamento entre canção e palavra. Mesmo com o advento da poesia moderna, muitas vezes com o seu apelo visu-al, esta comunhão consegue perdurar. Como esquecer o alaúde de um

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trovador medieval, o repente nordestino que se faz acompanhado de um pandeiro, ou o arranhar de um já velho disco Long Play, a marcar o ritmo do hip-hop americano, hoje global, globalizado?

A dificuldade em definir a Lírica acreditamos que esteja na sua própria complexidade, dada a variedade de versos suscetíveis de serem empregados, dado o fato de que o poeta lida com inúmeros temas e inúmeros sentimentos, tantos quantos os momentos lhe sugerirem. Um casamento suscitará alegria e, portanto, um verso alegre. Um funeral, tristeza e um verso triste etc. Dado o fato de que são vários poemas reu-nidos em um livro a tratar cada qual de uma temática diferente; dado o fato de que não precisa haver muita unidade entre as partes, noção de causa e conseqüência, por oposição à tragédia, epopéia e comédia, por exemplo, podemos pensar em pequenos fragmentos que se juntam e não necessariamente formam uma imagem completa, concreta.

Octavio Paz nos apresenta algumas distinções entre as poesias lí-rica, trágica e épica que nos ajudam a compreender a primeira. Para o poeta mexicano, “Épica e teatro são formas nas quais o homem se re-conhece como coletividade ou comunidade, ao passo que a lírica se vê como indivíduo” (PAZ, 1989, p. 193). O poeta épico tem como objeto de seu olhar o herói que representa a nação, a coletividade. O trágico olha para os exemplos, os crimes e as ações que um bom cidadão deve evitar fazer. Já o lírico olha para dentro de si e traz à tona suas próprias questões e, principalmente, emoções. O seu ‘eu’ e seus sentimentos são mais importantes que a pátria, que os outros. Neste sentido, a lírica é pequena não apenas em extensão, mas também em abrangência. Ela al-cança e atinge não a todos, mas tão somente àqueles que compartilham do mesmo sentimento ou situação.

Emil Staiger, em seus Conceitos fundamentais de poética, concei-tuação já sob a era do Romantismo, nos fala que “A ‘disposição anímica’ é inteiramente individual e só pode unir pessoas igualmente dispostas; não pode formar nenhuma comunidade no sentido lato da palavra” (STAIGER, 1975, p. 73). Por ‘disposição anímica’ podemos entender o possível compartilhamento de sentimentos e sensações entre o poeta e seu leitor/receptor. Além da individualidade, Staiger salienta a solidão do poeta lírico:

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Ao poeta lírico, propriamente, não importa se um leitor também vibra, se ele discute a verdade de um estado lírico. O poeta líri-co é solitário, não se interessa pelo público, cria para si mesmo. Mas uma tal afirmação exige esclarecimentos. Composições líri-cas também publicam-se. A colheita de anos e anos é reunida e entregue a um público.

(STAIGER, 1975, p. 48)

Passemos aos poetas líricos latinos que pretendemos destacar.

Catulo ǿ

Caio Valério Catulo teve uma breve vida entre as décadas de oitenta e cinqüenta antes de Cristo, não se sabe com precisão as datas. Nasceu em Verona junto a uma família da alta burguesia. Fez parte, e foi um dos mais importantes nomes, de uma geração denominada “poetas novos”.

Gaillard (1997, p. 60) observa que esta geração se mostra nova não somente naquilo que propunha, poesia lírica em confronto com as poe-sias mais nobres, coletivas e coletivistas até então, mas também pelo fato de muitos virem da Itália setentrional. Antes disso, a grande maioria dos autores provém do sul, da Magna Grécia.

Catulo compôs um conjunto de cento e dezesseis poemas dedica-dos ao historiador Cornélio Nepo, em que trata de assuntos diversos. A parcela maior é de foro individual, mas há também um grupo de sete cantos de louvor a deuses, Príapo e Himeneu, e a figuras mitológicas.

Os metros, os tipos e o número de versos são variados. Elegias, epigramas, hinos etc. Poemas longos e curtos, de até dois versos. Os sentimentos expressos são diversos: amor, ódio, rancor, ciúmes. A for-ma de expressar tais sentimentos diverge também, ora terna, ora irônica e até sarcástica. Sem se importar com o decoro defendido pela Poética de Aristóteles e de Horácio, manifestou em versos o erotismo, por vezes chegando à raia do pornográfico. Sobressai-se em sua obra o chamado cancioneiro de Lésbia, cantos dirigidos a esta Musa, que muitos atri-buem como sendo um pseudônimo para Clódia, irmã de um tribuno. Melhor é se pensar em uma homenagem à famosa poetisa grega Safo que viveu na ilha de Lesbos. Para com Lésbia os sentimentos oscilam da paixão exacerbada, no poema 92,

Poetae noui, ou neoteroi, em grego.

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Capítulo 03A Poesia

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Lésbia lança-me incessantemente imprecações

e em momento algum pára de falar de mim.

Que eu morra se Lésbia não me ama.

- Por qual sintoma chegas a esta conclusão?

- Porque são estas precisamente as minhas reações.

Constantemente estou a desejar-lhe mal,

mas que eu morra se não a amo.

(NOVAK, 1992, p. 25).

ao sentimento de perdição, no poema 75,

A tal extremo, Lésbia minha, por tua culpa

meu espírito foi arrastado, de tal modo

por seus sentimentos do dever ele se desnorteou

que já nem é capaz de te querer bem

se te tornares ótima, nem de te deixar

de amar ainda que tudo faças contra mim.

(NOVAK, 1992, p. 29).

alternando-se entre o amor e o ódio (poema 58):

Odeio e amo. Por que o faço, talvez tu me perguntes.

Não sei, mas sinto acontecer e sofro.

(NOVAK, 1992, p. 33 [tradução nossa])

Entretanto, Lésbia não é o único amor professado, há vários outros, alguns nomeados, outros não.

Chorai, ó Deusas e Deuses dos amores,

e quanto houver de homens impregnados

de muito amor.

O pássaro de minha amada morreu,

o pássaro, o afeto de minha amada,

a quem ela mais amava

do que a seus próprios olhos.

(NOVAK, 1992, p. 3).

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Chama a atenção o fato de que o poeta expressa os sentimentos e as questões que mais lhe interessam, as de foro íntimo, sem se ocupar ou se preocupar com a coletividade. Pelo contrário, há um excessivo indi-vidualismo e até mesmo uma indiferença para com as questões públicas, para com a pátria, o que é natural, considerando o período posterior ao helenístico. O dístico de número 93 atesta:

Não me interesso, César, em te querer agradar,

muito menos em saber se és alguém branco ou preto.

(NOVAK, 1992, p. 35).

A esse respeito, Gaillard afirma que “vinculado a César inicialmente, depois em inimizade com ele (em várias epigramas se mostrou feroz para com o ditador), Catulo faz uma única concessão à vida pública, acompa-nhar até a Bitínia ao pretor Mêmio [...]” (GAILLARD, 1997, p. 62).

Catulo fez uso intenso da epigrama. Este poema se caracteriza por ser curto, alguns apresentam apenas dois versos, e satírico, bem de acor-do com o espírito romano. O tamanho desse texto é herança e tradição do seu passado, uma vez que ele surge basicamente como inscrição so-bre pequenos objetos, vasos ou lápides. Junto ao individualismo e indi-ferença para com as questões públicas, as epigramas devem ter ajudado os críticos do poeta na tarefa de execrá-lo, como o fez muitas vezes Cíce-ro, graças ao emprego de uma linguagem não erudita, chegando muitas vezes à raia do chulo.

Horácio ǿ

Quinto Horácio Flaco nasceu em Venúsia, no sul da Itália, no ano de 65, e faleceu em 8 a.C. Era filho de um escravo alforreado, possuidor de pequenas terras. Seu pai o mandou para Roma a fim de estudar junto aos filhos de senadores e cavaleiros. Depois, dando continuidade aos es-tudos, vai para a Grécia, como era o costume para aqueles que queriam e podiam ter uma formação superior. Na volta, ingressa no exército de Bruto (o mesmo que participara do assassinato de Júlio César), a que menciona em alguns versos de suas odes. Ao final da batalha de Filipos, que ocasionara o suicídio de Bruto, Horácio retorna e encontra uma si-tuação difícil: o pai está morto e a propriedade confiscada. “Emprega-se

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então como scriba quaestorius, ou seja, qualquer coisa como amanuense do Ministério das Finanças, sem que todavia, deixasse a ocupação que lhe era mais agradável, a publicação de versos, que o ajudava a aumentar o pecúlio mensal” (FERNANDES, 1984, p. 13-14).

Mas, ao mesmo tempo, a Fortuna, a sorte para os antigos, lhe sorri. Por esta época ele conhece os poetas Vário e Virgílio, que o apresentam a Mecenas, o grande colaborador de Otávio Augusto em sua política de incentivo e prestígio às artes, principalmente à literatura.

Assim, Horácio é incorporado ao restrito círculo de artistas prote-gidos pelo Estado e pela administração de Otávio Augusto. Ironicamen-te, justo ele que lutara do lado oposto ao do imperador em sua busca de vingança pelo assassinato do tio, Júlio César.

Em sua obra, Horácio mostra grande carinho e amizade para com Mecenas. O mesmo não pode ser dito a respeito de Augusto. Ainda que evoque, que em alguns momentos exalte o imperador em muitos de seus textos, o poeta não finge haver certo distanciamento da sua parte. Em nosso modo de ver, é a divisão entre as obrigações para com o Estado e a vontade de escrever poesia que marcará a poesia de Horácio. Não há como negar que seus compromissos como vate ele cumpre.

O número de poemas a exaltar à pátria transparece em números re-lativamente equivalentes aos de foro particular. Alguns poemas e versos desta linha fizeram fama. Como esquecer “É doce e decoroso morrer pela pátria”, contido na ode 2, do livro III, poema a conclamar os jovens a de-fender os ideais nacionalistas? No entanto, a nós parece muito mais que, seguindo a seu mestre Catulo, seus maiores desejos e intenções são os de tratar de assuntos típicos da lírica, individuais, sentimentais, fugazes.

Em alguns poemas ele manifesta a encruzilhada em que se encon-tra – entre o cantar a guerra, necessária às nações e mais próxima da tarefa de um vate, e o cantar o amor e a vida. É quando se posiciona claramente em favor do segundo. Por necessidade, Horácio deixa “por algum tempo o teatro, a musa da severa tragédia”, canta os episódios bélicos e políticos de Roma, mas, sem dúvida, prefere os temas amenos, leves e fugazes que a lírica proporciona: “[...] temerária musa, não co-metas, deixando os leves assuntos, imitar os cantos do vate de Céus; vem

O termo mecenato é comum até os nossos dias para designar proteção às artes.

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antes, comigo, na gruta de Dione, modular na lira mais alegres acordes” (PEREIRA, [s.d.], p. 72). Ou ainda, na ode 6, do livro I:

[...]

Quem dignamente pintará a Marte,

da adamantina túnica coberto?

E Meríone negro ao pó de Tróia?

E o filho de Tideu, graças a Palas,

aos próprios deuses súperos erguido?

Os banquetes e os prélios, onde as virgens,

unhas cortadas, contra os jovens lutam,

é que, ociosos, cantamos, quando, acaso,

ao coração leviano, como sempre,

algo de fogo as fibras lhes aquece.

(HORÁCIO, 2003, p. 39).

Sua porção lírica foi construída a partir de dois grupos básicos de poemas: epodos e odes. A ordem de disposição diz respeito à própria seqüência de produção do poeta. Horácio escreveu o primeiro grupo em conjunto com suas sátiras, antes ainda de entrar e pertencer ao se-leto grupo de autores protegidos pelo Estado, e o segundo, depois de já consagrado. Epodo é uma forma lírica inventada por Arquíloco, em que um verso mais longo é seguido de outro mais curto. No verbete sobre a ode, Massaud Moisés destaca o epodo como um poema em que a es-trofe e a antístrofe apresentam organização divergente. Quanto à ode, a palavra oriunda do grego oidê remete a canto. “De remota origem grega, inicialmente a ode consistia num poema destinado ao canto. Sinônimo, pois, de canção, reduzia-se a um cantar monódico, interpretado pelo próprio autor, ao som da lira, ou de semelhante instrumento de corda [...]” (MOISÉS, 1999, p. 372).

Dentre os temas típicos de uma ode, Horácio cantou o amor, a ami-zade e o vinho. Foi onde professou os ideais epicuristas, a necessidade de preservar as virtudes, de aproveitar a vida, nos momentos que evo-cam o que há de melhor e mais belo nela. O objeto de seu amor não foi único, mas antes dedicado a diferentes mulheres: Glícera, Clói, Lídia - a quem Ricardo Reis, o heterônimo de Fernando Pessoa, também amará

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séculos mais tarde, embora de forma mais platônica. E outras, e outros. (III, 9). O que significa este parênteses?

Na ode 13 do livro I, o envolvimento do poeta com esta última mulher, Lídia, suscita a lembrança da relação entre Catulo e Lésbia e os sentimentos de paixão e de ciúme:

Quando a Télefo, ó Lídia, o colo róseo louvas

e nos seus céreos braços tanto encanto encontras,

o fígado me ferve, ó Lídia, inflado em bílis.

Já nem a minha mente, nem a minha cor

em sede certa assentam; mas, rolando a furto

pelo meu rosto, bem as lágrimas revelam

o quanto em lento fogo inteiro me definho.

Ardo em ciúme, se te vejo os brancos ombros

macerados nas lutas lascivas do amor

regado a vinho, ou se nos lábios inda levas,

marcado a dente, o sensual furor de um jovem.

(NOVAK, 1992, p. 77).

Para além do amor, foram muito recorrentes também assuntos como a amizade – para com Mecenas, Virgílio, Válgio, Varo e outros. A ode 7 do livro II é uma canção que festeja a alegria pelo retorno de um amigo, Pompeu, vindo da guerra:

Finalmente de volta, meu amigo:

Ó Pompeu,

o primeiro dos meus companheiros,

arrastado tantas vezes comigo ao perigo extremo,

sob o comando de Bruto,

com quem muitas vezes passei parte de longos dias

com o copo na mão

e ornados de flores os cabelos perfumados de aromas da Síria.

Quem foi que te restituiu

à Roma,

aos deuses pátrios,

e ao céu da Itália?

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Compartilhei contigo a derrota de Filipos

e a rápida fuga dos nossos,

lançando para longe o escudo vergonhoso

quando o valor dos nossos estava quebrado

e quando os mais corajosos enterraram o queixo no solo

[ensangüentado...

(SCHEID, 1997, p. 50).

A brevidade da vida, o tempo fugaz, e, sempre à espreita, a morte, apresentam-se concentrados em um só texto nesta ode 11, do livro II, ou esparsos em diferentes poemas:

A brevidade da vida não permite preocupar-se com o futuro:

Quíncio Hirpíno,

não te preocupes com o que andem tramando

o belicoso Cântabro e o Cita;

separados de nós pelo Adriático;

não te aflijas com as necessidades da vida que se contenta com

[pouco.

Foge de nós a juventude imberbe com sua graça e beleza.

A velhice árida afugenta os amores folgazões e o doce sono.

As flores da primavera nem sempre conservam o seu viço,

nem a lua rubra brilha sempre com o mesmo aspecto.

Por que fatigas o teu espírito com planos eternos que estão acima

[de tuas forças?

Maior felicidade têm aqueles que olham para o presente:

Enquanto ainda é tempo,

por que não bebemos sem preocupações

à sombra de alto plátano

ou à sombra deste pinheiro?

perfumadas as frontes encanecidas com rosas,

ungidas de nardo assírio?

O vinho dissipa cuidados desgastantes...

que servo nos há de servir um copo de Falerno ardente

enquanto aos pés murmuram as águas de apressado regato?

(SCHEID, 1997, p. 52-53).

Page 83: [Livro UFSC] Estudos Literarios I

Capítulo 03A Poesia

83

Ao poeta, no entanto, é possível a eternização através da arte. Horá-cio vaticinou a sua e funcionou. Passados dois mil anos, cá estamos nós a ler a poesia deste nada modesto autor:

Um monumento ergui mais perene que o bronze,

mais alto que o real colosso das pirâmides.

Nem a chuva voraz vingará destruí-lo,

nem o fero Aquilão, nem a série sem número

dos anos que se vão fugindo pelos tempos...

Não morrerei de todo e boa parte de mim

há de escapar, por certo, à Deusa Libitina.

Crescerei sempre mais, remoçando-me sempre,

no aplauso do futuro, enquanto ao Capitólio

silenciosa ascender a virgem e o pontífice.

Celebrado serei, lá onde estrondeia

o impetuoso Áufido e onde Dauno reinou

sobre rústicos povos, em áridas terras,

como o primeiro que, de humilde feito ilustre,

o canto eólio trouxe às cadências da Itália.

O justo orgulho por teu mérito alcançado,

ó Melpômene, assume e, propícia, dispõe-te

a cingir-me os cabelos com délficos louros.

(NOVAK, 1992, p. 93).

Entretanto, foram, sem dúvida, dois os elementos que ajudaram a imortalizar a obra, a glória e a própria vida de Horácio, o carpe diem e a não menos aurea mediocritas. O famoso carpe diem vem citado na ode 11, do livro I. Depois não é mais proferido com as mesmas palavras, mas com variações, e são muitos os momentos em que fica subentendido.

Indagar, não indagues, Leuconói

qual seja o meu destino, qual o teu;

nem consultes os astros, como sói

o astrólogo caudeu:

não cabe ao homem desvendar arcanos!

Como é melhor sofrer quanto aconteça!

Page 84: [Livro UFSC] Estudos Literarios I

Unidade B - Literatura Latina

84

Ou te conceda Jove muitos anos,

ou, agora, os teus últimos enganos,

– prudente, o vinho côa e, mui depressa

a essa longa esperança circunscreve

a tua vida breve.

Só o presente é verdade, o mais, promessa...

O tempo, enquanto discutimos, foge:

Colhe o teu dia, – não no percas! – hoje.

(HORÁCIO, 2003, p. 39).

Na famosa expressão aurea mediocritas, o segundo termo não deve ser entendido conforme nossa concepção. Significa o meio termo, ou a busca pelo equilíbrio em todas as coisas nesta vida. Retomado várias vezes em outros poemas, aparece na ode 10 do livro II desta forma:

Muito melhor, Licínio, viverás,

não buscando o mar alto, sempre afoito,

nem te ficando, cauto, junto à praia,

rábido o mar.

À áurea mediocridade, se alguém a ama,

da velha casa o desasseio evita;

mas também, sóbrio, foge aos ricos tectos,

causa de inveja.

O vento agita sempre altos pinheiros,

fragorosas, desabam altas torres

e o raio fulminante o pico fere

de altas montanhas.

No dia aziago, espera; no bom, teme,

preparado o teu peito à sorte adversa.

Se Jove hoje nos dá duros invernos,

leva-os depois.

Se vais, agora, mal, nem sempre o irás.

Desperta Apolo, em sua lira, às vezes,

a silenciosa musa, pois nem sempre

o arco distende.

Page 85: [Livro UFSC] Estudos Literarios I

Capítulo 03A Poesia

85

Sê animoso, sê forte, na desgraça:

sábio, saibas, porém, quando te é muito

próspero o vento, contrair a tua

túrgida vela.

(HORÁCIO, 2003, p. 105).

Todavia, o poeta venusiano soube ser não apenas elegante e refina-do, mostrou igualmente sua veia mordaz, o tom satírico e os assuntos vis, à moda do mestre Catulo, especialmente nos epodos, uma das obras iniciais em sua carreira literária, veja no epodo XII:

Que queres tu, mulher dos elefantes

negros digníssima! Por que a mim, não

vigoroso, mas cujo olfato é vivo

mandas tu cartas, mandas tu presentes?

Pois, mais sagaz o cheiro mau percebo,

quando se aninha em cabeluda axila,

pólipo ascoso ou fétido bodum,

do que o cão de bom faro, quando junto

ao lugar, onde o javali se oculta.

Que suor! que cheiro mau tresanda e cresce

dos murchos membros, quando, ensarilhadas

minhas armas, indômita, se apressa,

para acalmar o fogo, em que se agita;

quando já lhe não fica sobre o corpo

o úmido pó de gesso e aquela cor

tirada às excreções do crocodilo;

e quando, em tanta afobação, se rompem

e colchão e dossel que cobre o leito!

Ou, quando, com palavras de violência,

censura o meu fastio: “Assim, não lhe falhas,

com Ínaca; com ela, podes, bem,

três vezes e, uma só, comigo, e mal!

Miserável pereça aquela Lésbia,

a quem, pedindo um touro, a ti me trouxe,

fraco, impotente, quando eu tinha Amintas

Page 86: [Livro UFSC] Estudos Literarios I

Unidade B - Literatura Latina

86

de Cós, em cujo corpo se implantava

nervo mais rijo e forte do que nova

árvore, nas colinas. A que, pois,

essa pressa em, três vezes, mergulhar,

no múrice de Tiro, a lã de esponja?

Para ti, sim, para que não houvesse

conviva igual, que mais quisesse a sua

amada do que tu! Ah! como sou

infeliz! Foges-me assim, como foge

do lobo a ovelha e do felino as cabras.

(HORÁCIO, 2003, p. 217).

Ovídio ǿ

Públio Ovídio Naso viveu entre os anos de 43 a.C. e 17 d.C. Nasceu em Sulmona, na Itália central, e faleceu em Tomos, atual Constanta (na Romênia) durante seu sétimo ano de exílio. Podemos pensá-lo como o poeta do amor, seu grande e primordial tema, principalmente no início de sua carreira. Do total de sua obra que chegou a nossas mãos atual-mente, poucas escapam deste foco.

Fastos, que você poderá observar no Capítulo sobre Poesia Didáti-ca, é uma delas. Talvez, por isso, não tenha sido encerrada devidamen-te. Como aponta e repara Gaillard, uma revisão do calendário religioso romano, em que o poeta “se cansou do projeto no sexto mês”, isto é, “no sexto canto”. O poeta “não se apaixonou pelo tema e isto se nota”. (GAILLARD, 1997, p. 81). Afora este último e os produzidos durante o exílio, os demais livros se relacionam todos ao amor. Alguns, os títulos evidenciam: A arte de amar, um manual de conquista amorosa dirigido aos homens e, inovadoramente, às mulheres, e Os remédios do amor, um contraveneno ao texto anterior, um manual para se desvencilhar dos amores conquistados.

Em Produtos de beleza para o rosto da mulher, esse nobre sentimen-to é o que motiva a escritura, visto que posteriormente, em sua Arte de amar, ele postula os artifícios, inclusive estéticos, como ações possíveis para a conquista feminina de um amor. Esta passagem justifica:

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Capítulo 03A Poesia

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Sobre os meios de embelezá-las [a vocês, mulheres, refere-se o poeta] escrevi um tratado: ele é curto, mas é uma obra importan-te pelo cuidado que lhe dediquei. Vocês podem também procurar nele os socorros para os danos causados em seu rosto: para tudo que lhes interessa, minha arte fornece artifícios.

(OVÍDIO, 2001, p. 93).

Em Metamorfoses, o amor é muitas vezes a mola propulsora e de-sencadeadora de muitas metamorfoses. É ele que faz com que Orfeu vá aos infernos buscar sua amada Eurídice, já morta. É ele que proporciona o longo definhar de Narciso, apaixonado por si mesmo, e a posterior transformação em flor.

Ovídio foi sobretudo um bon vivant. Soube como poucos carpere diem / uitam, aproveitar o dia (talvez mais a noite) e a vida. Viveu plena-mente a vida em sociedade, o convívio social. Amou. Pela compreensão de Gaillard,

É o poeta, por excelência, dos novos tempos e de suas contradições, pois, se por um lado, foi o homem dos salões, o poeta mundano, o artista admirado por seu virtuosismo e engenho, por outro, teve sérios problemas com a moral oficial (por razões obscuras, mas, sem dúvida, por conta de um escândalo), e o Príncipe o exilou no litoral do Mar Negro, em Tomo(i) no ano 8 d.C., de onde nunca mais regressou. Deste modo, o poeta dos jogos amorosos se trans-formou no lírico dos lamentos do exilado, e é curioso constatar que a crítica tradicional, que reprovou sua futilidade, viu nesta mutação uma espécie de redenção. Se há de sofrer para ser poeta, Ovídio teve a sorte de conhecer esta desgraça.

(GAILLARD, 1997, p. 20)

Foi mais um poeta lírico a deixar de lado as coisas coletivas em detrimento dos desejos e sentimentos de interesse particular. Foi poeta lírico por excelência. Cumpriu parcialmente sua função público-poética com Fastos, com Metamorfoses, mas preferiu falar das artes do amor.

Dos motivos que o levaram ao exílio não se sabe nada, especula-se apenas. O prefácio do livro A arte de amar, de Dúnia Marinho da Silva, dá a sua sugestão:

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Unidade B - Literatura Latina

88

Poeta do corpo, eis o que ele é. Quem sabe não fosse por isto que descontentasse tanto Augusto. Não sabemos o que aconteceu, é verdade, e o método de Augusto que consiste em fingir reger os costumes para melhor reduzir o espaço da palavra se revelou, com o tempo, exemplar, eficaz e muito útil: ele é aplicável atual-mente. Não vemos a qual facção perigosa poderia pertencer Oví-dio, nem qual doutrina perniciosa teria podido favorecer o poeta de Fastos, esse calendário respeitoso – mas é pedir muito querer perguntar ao homem que reina sobre o Estado as razões de seu capricho: é provável que Ovídio tenha sido perseguido por ter pregado uma tolerância que não era praticada e que incomoda-va o absolutismo. Qualquer que seja o motivo, as lições do mestre Ovídio a seu aluno da Arte de amar são baseadas na existência da mulher como pessoa humana – mesmo que se trate, durante o primeiro canto, de considerá-la como objeto de conquista, praça forte a invadir, presa fácil.

(SILVA, 2001, p. 12)

Em todo caso, a expatriação propiciou uma mudança no espírito e na obra do poeta, da alegria de viver para a tristeza e o lamento.

Ovídio escreveu elegias. Apesar de ser desconhecida a origem do vocábulo ‘elegia’, sabe-se que a origem remete a ‘cantos fúnebres’. Para Massaud Moisés,

O termo “elegia” aparece pela primeira vez com o poeta Clonas, mas considera-se Calinos (século VII a.C.) o mais antigo autor de poesia elegíaca, de assunto bélico. A elegia melancólica e som-bria, introduziram-na Arquíloco e Simônides de Ceos, nos sécu-los VII e VI a.C., respectivamente. Derivada da poesia épica, e com ela mantendo apreciável semelhança, a elegia, na sua ori-gem, girava em torno dos mais variados assuntos: em realidade, consistia numa das fôrmas líricas “onde a pessoa do poeta mais francamente se põe em cena. Ele queixa-se e louva; moraliza; geralmente exorta. Quase atua como orador: seja o orador po-lítico e popular, que busca desencadear nas almas sentimentos belicosos e patrióticos; seja o orador filósofo, que disserta acerca da vida humana, seus prazeres e males; sempre voltado para a prática e pressuroso de concluir. A elegia é, freqüentemente, como uma primeira manifestação do gênio oratório” entre os gregos (Alfred Croiset, Histoire de la litérature grecque, t.2, Paris, 1890,

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Capítulo 03A Poesia

89

pp. 90-91). Outras vezes, o poeta demorava-se a carpir sua má-goa pelo passamento de alguém ilustre ou seu amigo. Todavia, quer glosando temas festivos, quer meditando gravemente, a ele-gia identificava-se por seu caráter sentencioso, ou, como diziam os gregos, gnômico: encerrava conceitos e máximas morais que visavam fornecer aos ouvintes regras de bem servir e suportar os transes da fortuna.

(MOISÉS, 1999, p. 167-168)

Metamorfoses são 150 pequenas narrativas mitológicas, divididas em quinze livros, que evocam transformações de seres vivos e do próprio mundo, explicações míticas para fenômenos naturais, sentimentos e sen-sações que o homem percebe, como a inveja e a fama. Apesar de um tem-po mítico, atemporal, portanto, reporta um período desde as origens do universo, com a criação do mundo até a transmutação do personagem histórico Júlio César em cometa. Vale dizer, de um tempo lendário, quase que totalmente ligado à cultura grega até chegar às lendas e às persona-gens de Enéias e Rômulo, aos primórdios da História de Roma, como já falamos. E, principalmente, até chegar a um período histórico, o de Júlio César, ainda que se mantenha num plano distante, religioso, mítico. A seguir, carissimi discipuli, temos uma tradução do poeta português Boca-ge para o belo artifício ovidiano a fim de explicar o sono:

A Gruta do Sono

(Livro XI, 592-645)

Junto aos Cimérios, num cavado monte

Jaz uma gruta, de âmbito espaçoso,

Interna habitação do sono ignavo.

Nos extremos do céu, do céu nos cumes

Nunca lhe pode o Sol mandar seus raios;

A terra exala escurecidas névoas,

O crepúsculo incerto ali é dia:

Ali não chama pela aurora o galo;

Do lugar o silêncio nunca rompem

Os solícitos cães, os roucos patos,

Sagazes inda mais, para pressentidos

Não fera, não rebanho ali se escutam,

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Nem ramo algum, que os Zéfiros embalem.

O calado sossego ali reside.

De baixa, e rota pedra sai, contudo,

De água do Letes pequenino arroio,

Que, por entre os mexidos, leves seixos

Com murmúrio suave escorregando,

Convida molemente ao mole sono.

À boca da sombria, ampla caverna

Florescem mil fecundas dormideiras

Inumeráveis ervas lá se criam,

De cujo sumo, ó Noite, extrais os sonos

Que úmida entornas pela terra opaca.

Porta alguma não há estância toda:

Volvendo-se, ranger, bater pudera;

Ninguém vigia na fragosa entrada.

(OVÍDIO, 2000, p. 113).

Observe, caro(a) aluno(a), o poder de descrição, bastante plásti-co, do poeta romano. Segundo João Oliva Neto (2000, p. 7), no prefá-cio dessa mesma obra, “As Metamorfoses apresentam espetacularmente como que os efeitos especiais da linguagem verbal.”

Virgílio ǿ

A contribuição do talento virgiliano para a lírica é dada sob o nome de Bucólicas, obra composta por dez cantos de assunto pastoril. Zélia de Almeida Cardoso recupera o termo grego boukoliká, que significa “can-tos de boiadeiros”, porque “assim se designavam as canções que, ver-sando sobre assunto relacionado com o pastoreio, eram apresentadas em concursos públicos na Sicília” (CARDOSO, 2003, p. 61). Um pouco antes, a autora afirmara:

A Grécia, desde os primórdios de sua história, conheceu muitos ti-pos de canções. As condições geográficas parecem ter contribuído para o desenvolvimento do canto, especialmente favorecido pela existência de intensa atividade pastoril. Diferentemente do que ocorre com o lavrador, labutando o dia todo na lida com a terra

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Capítulo 03A Poesia

91

e extenuando-se com o trabalho pesado que lhe exaure as forças, o pastor vigia simplesmente o gado, permanece solitário muitas vezes e tem disponibilidade suficiente para cantar ou tocar.

(CARDOSO, 2003, p. 49).

A partir dessas informações cabe salientar dois elementos que vão compor certa tradição pelo mundo ocidental afora:

a poesia enunciada por pastores, que vai repercutir no Brasil 1) inclusive, em nível erudito, no movimento arcadista, com To-más Antonio Gonzaga;

a poesia popular, na trova gauchesca e no repente nordestino, 2) ambos frutos da natureza do trabalho pastoril de tropeiros e vaqueiros, e o embate poético, o desafio, a busca de superar o adversário na destreza dos versos, de que o trovadorismo euro-peu, o rap de origem afro-americana e as duas poesias brasilei-ras antes citadas são remanescentes, direta ou indiretamente.

Nas Bucólicas de Virgílio, diálogos entre pastores podem ser vistos nos cantos I, III, V, VII e VIII. O exemplo a seguir, uma conversa poética entre Melibeu e Títiro, diz respeito ao primeiro canto:

MELIBEU

Títiro, reclinado sob a copa de frondosa faia,

tocas na flauta leve uma canção silvestre.

Quanto a mim, estou deixando os limites da Pátria e seus doces campos,

estou abandonando a minha Pátria. Tu, Títiro, indolente na sombra,

ensinas as árvores a ressoar o nome da bela Amarílis.

TÍTIRO

Melibeu, foi um deus que me propôs um ócio tal.

Por isso, ele será sempre um deus para mim.

Um tenro cordeiro de meu aprisco banhará freqüentemente o seu altar.

Ele permitiu, como vês, que o meu gado pastasse livre

e que eu tocasse no cálamo agreste aquilo que desejasse.

(NOVAK, 1992, p. 43).

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Unidade B - Literatura Latina

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Esta cena, comum neste tipo de poema, bem como na lírica em geral, nos faz lembrar o bucolismo retratado na pintura, nas artes plás-ticas e nas artes erudita e popular ao longo dos tempos. Muitas delas re-tiradas da maestria poético-descritiva dos poetas clássicos. Os regatos, os rebanhos a pastar ao largo, a natureza em seu esplendor e pureza, um convescote à sombra de frondosas árvores, um casal de namora-dos. O que os estudiosos denominam locus amoenus (lugar agradável, aprazível, ameno).

Como se esquecer de tais paisagens e cenas em quadros, nos bi-belôs de nossas avós, ou em apara-barros de caminhões pelas estradas brasileiras? Uma estradinha, um rio serpenteando ao lado, um boi, uma casinha com a chaminé fumegando... Como se esquecer disso na música popular? “Eu quero uma casa no campo”, de Zé Rodrix. “Além do hori-zonte”. Não entendi objetivo da frase...

Para Gaillard,

Virgílio toma de Teócrito a forma – diálogos em hexâmetros da-tílicos – e o cenário: um campo bastante convencional que cor-responde bastante com a idéia que dele se faz para o habitante da cidade. Mas também toma do poeta de Siracusa os nomes dos pastores, e sua forma de viver. A Arcádia é transportada indene ao campo italiano, pois, nos versos dos poetas alexandrinos, ha-via deixado de ser definitivamente uma rude região situada no coração do Peloponeso para se converter em uma paisagem ima-ginária: a da pastoral. Segundo uma antiga tradição, os pasto-res da Arcádia freqüentavam [os bosques, campos e montanhas] de Pan e de Ártemis, e se entregavam com fervor à música. As circunstâncias históricas contribuíram não pouco a colocar em moda, na Roma do final do século I, esta estilização do paraíso terreno: demasiadas guerras e enfrentamentos políticos, exces-sivas tensões também na vida urbana, alimentaram o desejo de um país maravilhoso no qual as únicas rivalidades que enfrenta-vam seus habitantes eram poéticas e musicais.

(GAILLARD, 1997, p. 67)

Daí o artificialismo que muitos críticos imputam à obra, visível na passagem a seguir, extraída do Canto VI:

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A primeira a dignar-se a compor em versos rústicos,

não se envergonhando por morar no bosque, foi a nossa Tália.

Quando eu cantava reis e batalhas, Cíntio tocou-me a orelha

e me advertiu: “É mais oportuno, Títiro, que um pastor

apascente ovelhas gordas e entoe canções modestas”.

Hoje, vou tocar uma ária agreste na flauta suave

pois que tu, Varo, terás, em grande número,

quem te deseje louvar ou celebrar tristes guerras.

Não canto o que não foi pedido. Mas se alguém ler meus versos,

se algum amante os ler, nossos tamarindos, Varo,

e o próprio bosque te cantarão. Nada é mais grato ao Deus Febo

que a página que ostenta o nome de Varo.

(NOVAK, 1992, p. 59).

Ainda hoje seria incomum um simples pastor viver do pastoreio e da poesia, muito mais ainda à época.

De certo modo, as Bucólicas de Virgílio ajudaram ou se propuse-ram a ajudar na busca política de Augusto em promover um retorno ao interior, em tentar diminuir as populações dos grandes centros urba-nos, principalmente Roma. Propaganda institucional que se pode ver no canto I e em outros:

TÍTIRO

Como um tolo, Melibeu, pensei que a cidade a que chamam Roma

era semelhante a esta nossa, para onde, nós pastores, muitas vezes,

costumamos levar os filhotinhos separados das ovelhas.

Julgava, assim, os cãezinhos semelhantes aos cães, e os cabritos

às mães; assim costumava confrontar grandes coisas com pequenas.

Mas esta cidade, realmente, elevou tanto a cabeça entre as demais

quanto os ciprestes costumam elevar entre juncos flexíveis.

(VIRGÍLIO, In: Poesia lírica latina. NOVAK, Maria da Glória (org.). Tradução desse poema de Zélia de Almeida Cardoso. São Paulo:

Martins Fontes, 1992, p. 43)

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É muito freqüente na obra a oposição entre campo e cidade, a pure-za e naturalidade daquele, a maldade e o artificialismo desta.

Marcial ǿ

Marco Valério Marcial é o poeta que escolhemos como represen-tante da lírica após o período áureo de Augusto. Viveu entre 40 e 104 d.C. De um modo geral a tradição no Brasil não lhe incluiu entre os grandes poetas, talvez por conta de seu tom de zombaria e mesmo pela falta de decoro em algumas de suas epigramas. Seguiu em grande parte a linha poética de Catulo e de Ovídio, tratou mais de questões pessoais e menos, ou quase nada, da vida pública. Por isso mesmo parece ser propício, se quisermos olhar para uma Roma possivelmente mais ver-dadeira e original...

Segundo Zélia de Almeida Cardoso,

Marcial escreve Epigramas (Epigrammaton libri), cerca de mil e quinhentos pequenos poemas sobre assuntos diversos que nos fornecem, em traços rápidos mas executados com precisão e ma-estria, preciosos retratos da vida romana da época. Realistas e divertidos, pitorescos e originais, revelam o talento de um artista, de estilo vivo, criativo e elegante, simultaneamente conciso e rico, variado e natural.

(CARDOSO, 2003, p. 87).

Em sua poesia estão presentes os livros, a literatura e outras afini-dades:

16 (Livro I)

Aqui lês dois versos bons,

três passáveis, mil ruins.

Não há outro modo, Avito:

um livro se faz assim.

[...]

40 (Livro I)

Você que franze os sobrolhos

E não me lê de bom grado,

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Capítulo 03A Poesia

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Que morra sempre de inveja

Sem nunca ser invejado.

[...]

63 (Livro I)

Que eu recite meus versos

me pedes quase a implorar.

Não quero, Célere, almejas

não ouvir, mas recitar.

[...]

91 (Livro I)

Não mostras, Lélio, teus versos;

criticas, contudo, os meus.

Ou pára de criticar,

ou então publica os teus.

(NOVAK, 1992, p. 271)

Marcial demonstra um humor mordaz, corrosivo, agressivo por ve-zes, como neste de número 19, do livro 1:

Se bem me lembro, Élia, tu tinhas quatro dentes;

uma tosse cuspiu dois e outra tosse, mais dois.

Já tu podes sem susto os dias inteiros tossir,

que uma terceira tosse o que tirar mais não tem.

(NOVAK, 1992, p. 271)

Ou, nestes outros:

8 (Livro 3)

Quinto ama Taís.

Que Taís? A caolha.

Ela é cega de um olho

ele é cego dos dois.

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Unidade B - Literatura Latina

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[...]

38 (Livro 2)

Você quer, Lino, saber

que lucro meu sítio dá?

Me dá esse lucro, Lino:

não vejo você por lá.

(NOVAK, 1992, p. 277-279).

Há o Marcial erótico, à moda de Catulo:

22 (Livro 4)

Sofridos os primeiros assaltos conjugais

e a seu marido ainda de todo não dobrada,

a braços e abraços fugindo melindrosa,

num banho de águas claras Cleópatra imergiu...

Mas a água traidora revelou-a escondida.

Como esplendia linda, velada em transparências!

Assim em vidros limpos os lírios brilham mais,

assim cristais proíbem se escondam finas rosas...

Atiro-me nas águas e, nelas imergindo,

os beijos que relutam vou ávido colhendo.

O resto me impedistes, ó águas transparentes...

(NOVAK, 1991, p. 281).

3.4 A Poesia Satírica

DA SÁTIRA

A sátira é um espelho: em sua face nua,

Fielmente refletidas,

Descobres, de uma a uma, as caras conhecidas,

E nunca vês a tua...

(Mario Quintana)

Ao anunciar poesia satírica refirimo-nos à sátira, o único gênero literário nascido real e espontaneamente em solo romano. De difícil de-

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Capítulo 03A Poesia

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finição, segundo Zélia de Almeida Cardoso é “uma espécie de crônica social em versos”, que “não se inspirou em modelos gregos equivalentes” (CARDOSO, 2003, p.89), o que ensejou a Quintiliano dizer: satura tota nostra est. (A sátira é toda nossa). Para Massaud Moisés,

Modalidade literária ou tom narrativo, a sátira consiste na crítica das instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos indivíduos. Vizinha da comédia, do humor, do burlesco e cognatos, pressupõe uma atitude ofensiva, ainda quando dissi-mulada: o ataque é a sua marca básica. De onde o substrato mo-ralizante da sátira, inclusive nos casos em que a invectiva parece gratuita ou fruto do despeito.

(MOISÉS, 1999, p. 469-470).

Como se pode notar por intermédio dessas duas proposições, não é simples a sua demarcação, é uma poesia que por vezes pode nos lembrar a epigrama pelo sarcasmo, mas desta se distingue pela extensão, em nú-mero bem maior de versos. Embora possa se assemelhar à comédia an-tiga grega pela crítica direta a instituições ou pessoas, desta se diferencia pelo fato de não ser teatro, por não apresentar atores, nem ação ao vivo. Há, sem dúvida, o aspecto cronístico, a que Massaud Moisés também alude, “a sátira caracteriza-se por sua efemeridade: tende a envelhecer e a perecer com os eventos que a suscitaram; obra de momento, desva-necida a conjuntura que lhe motivou o aparecimento, a sátira perde o sentido e força à medida que o tempo passa” (MOISÉS, 1999). Entre-tanto, entendemos que como todo bom texto, como toda boa crônica, pode resistir ao tempo, sim. Algumas sátiras latinas oferecem-nos uma visão da época, como que uma fotografia, importante para pensarmos a História e, mais do que isso, a percepção de quanto a humanidade muda sem mudar em quase nada.

O vocábulo sátira não ajuda muito, tendo em vista que apresenta mais de uma sugestão para a versão etimológica. É o que aponta Almei-da Cardoso:

Muitas elucubrações lingüísticas foram feitas em torno da palavra satura. Alguns nela viram uma possível origem grega, aproximan-do-a do nome dos sátiros (satyroi), divindades campestres asso-ciadas aos faunos e presentes nos dramas satíricos. De outro lado,

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como a palavra satura designava também a cesta de primícias de frutas de várias qualidades, ofertada aos deuses no início do outono, e uma espécie de patê em cuja composição eram usados diferentes tipos de carne, a aproximação metonímico-catacrética possivelmente foi feita. A característica da satura – dramática ou literária – seria a exploração de assuntos variados em sua compo-sição e a utilização de diversidade de metros e de tons. Em ambos os casos a satura pode ser considerada como criação latina.

(CARDOSO, 2003, p. 90).

De qualquer modo, parece prevalecer a idéia de mistura, variedade...

Além disso, existiram em Roma dois tipos diferentes de sátiras: uma forma primitiva, teatral, cujo texto era fundamentalmente oral, e a sátira com apelo cronístico, de que nos ocuparemos aqui. Sobre essas duas, Almeida Cardoso as especifica assim:

É preciso, porém, fazer uma distinção entre as sátiras literárias que chegaram até nossos dias, trazendo preciosas informações sobre a vida cotidiana do romano, e a satura dramática da época primitiva. As sátiras literárias, produzidas por diversos autores, são composições poéticas narrativo-dissertativas ou dialogadas, que, apresentando fatos ou pondo pessoas em foco, ridicularizam os vícios e defeitos de maneira jocosa ou indignada e assumem não raro um tom filosófico-moral; a satura dramática, à qual já nos referimos, é uma modalidade teatral rudimentar, que nunca encontrou expressão escrita e resulta da combinação de cantos fesceninos com danças mímicas.

(CARDOSO, 2003, p. 89).

Cabe ainda destacar a compreensão e a versão que Salvatore D’Onofrio tem da sátira. Em sua tese Os motivos da sátira (1968), ele defende que a sátira latina surge no cenário romano como resistência e oposição à cultura e literatura gregas...

O primeiro nome como referência para sátira é Lucílio. Embora antes dele tenhamos autores, é com ele que o gênero se estabelece em Roma. Mas deste não nos restou nenhum texto, a não ser citações feitas por contemporâneos. De modo que falemos dos poetas satíricos cujas obras podem ser conferidas.

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Capítulo 03A Poesia

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Horácio ǿ

Junto à diversidade de gêneros textuais que Horácio escreveu estão as sátiras, originalmente intituladas Sermones, isto é, Conversas. Aliás, muitas delas apresentam uma forma dialogada. Os temas dessas con-versas são variados, discutem sobre poesia, epicurismo, perturbações do dia-a-dia...

Na sátira de número 1, do livro II, por exemplo, o poeta discute com Trebácio sobre o gênero em questão, quando Horácio delimita sua posição não agressiva e seu espírito tranqüilo até onde possível dentro deste tipo poético:

Minha pena, no entanto,

por si não atacará a ninguém,

e me defenderá a mim como defende a espada embainhada:

Por que eu haveria de puxar esta espada?

Com certeza só diante dos malvados salteadores!

Ó pai e rei Júpiter,

que a arma pereça por sua própria ferrugem, abandonada!

que ninguém me ataque, eu só quero a paz!

Mas aquele que me provoca, tome cuidado!

Gritarei por meio de versos!

Melhor é não tocar-me.

Ele chorará e será cantado bem bonito em toda a cidade.

O Cérvio, se está irado, ataca as leis e a urna judiciária,

Canídia de Albúcio ataca com seus venenos potentes,

Túrio, juiz cruel e corrupto, a todos aterra

na hora de julgar a causa que defendes.

Assim, por aquilo em que alguém é mais versado,

ele se defende,

e a própria natureza manda que seja assim.

Raciocina comigo:

o lobo se defende com o dente,

o touro ataca com os chifres,

Quem lhes ensina assim?

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Unidade B - Literatura Latina

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se não fossem ensinados por sua própria natureza?

Confia a Ceva a mãe de longa vida,

ela faz uso de sua mão direita impiedosa...

(SCHEID, 1997, p. 164-165).

Já na de número 4 do livro I, ele diz que só atacará a quem tiver alguma culpa, e começa assim o poema:

Eupolis,

Cratino,

Aristófanes

e todos os poetas da antiga comédia

descreviam com muita liberdade

a quem merecia ser descrito

por ser mau, ladrão, adúltero, assassino

ou famoso por outra qualquer infâmia.

[...]

e arremata

[...]

Outra ocasião veremos se a comédia é verdadeira poesia ou não.

Agora eu gostaria de tratar da questão:

se a sátira, com razão, te assusta?

Cáprio e Súlcio andam por aí pelas ruas

tremendamente roucos e com os libelos de acusação nas mãos...

ambos são o terror dos ladrões e dos salteadores.

Mas quem tem a consciência e as mãos limpas,

despreza os dois...

Embora tu sejas semelhante

aos ladrões e devassos Célio e Bírrio,

eu não sou semelhante ao Cáprio e Súlcio,

por que tens medo de mim?

(SCHEID, 1997, p. 143-146).

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Capítulo 03A Poesia

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Um pouco do cotidiano de Roma pode ser visto nas sátiras horacia-nas, como nas passagens a seguir. A primeira retrata uma cena escolar e a prática pedagógica de premiação aos alunos mais atentos à lição:

Enfim, para não tratar o assunto, brincando,

embora também se possa dizer a verdade, brincando...

como um professor distribui às vezes

biscoitos aos meninos,

para que aprendam com mais docilidade as primeiras letras...

(SCHEID, 1997, p. 128).

A segunda, o ataque de um poeta importuno a desejar que Horá-cio o apresente e o coloque junto ao círculo social-literário de Mecenas. Como se vê não é de hoje que o homem tem dificuldades em se desven-cilhar de aporrinhadores, ainda não havia o serviço de tele-marketing, mas era pior que isso porque o contato físico era inevitável. É o que acontece na sátira 9, do livro I:

HORÁCIO

Ia eu casualmente pela Via Sacra,

pensando como de costume,

não sei em que bagatelas,

todo abismado nelas...

Quando, de repente, vem correndo para mim

um sujeito conhecido apenas de nome,

agarrou-me pelo braço e me disse:

IMPORTUNO

Como vais, meu caríssimo amigo?

HORÁCIO

Tudo bem por enquanto...

Passe bem!

Como ele continuasse a meu lado,

corto-lhe a palavra, dizendo:

Desejas alguma coisa?

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Unidade B - Literatura Latina

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IMPORTUNO

Deverias conhecer-me...

Sou também um grande letrado.

HORÁCIO

Estimo...

enquanto me esforçava desesperadamente para livrar-me dele:

ora caminhando mais depressa,

ora parando,

ora dizendo qualquer coisa ao ouvido de meu servo,

com o suor a correr-me até os tornozelos.

Pensava, então, com os meus botões:

“Ó Bolano, feliz de ti que tens um gênio explosivo”...

enquanto ele tagarelava qualquer bobagem,

louvando os bairros e a cidade...

Como eu nada lhe respondesse, disse-me em tom magoado:

IMPORTUNO

Queres esquivar-te?

Já estou percebendo...

Não vai adiantar nada!

Não te largarei, ficarei sempre a teu lado...

Para onde vais agora?

(SCHEID, 1997, p. 156-157).

E desta forma segue o diálogo e a dificuldade de Horácio, que só se livra de tal figura quando um adversário deste lhe retira para outro lugar. Por acaso, você já não vivenciou uma situação assim?

Por esta última passagem, colocamo-nos mais uma vez em posição contrária a Massaud Moisés quanto à temporalidade, finitude e limi-tação no tempo a que se refere o autor em relação às sátiras. Por esta e outras, lembrando as modernas narrativas a que chamamos crônica, é possível perceber que o texto e a situação se mantêm muito atuais e váli-dos, tanto em humor quanto em reflexão sobre a natureza humana.

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Capítulo 03A Poesia

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Juvenal ǿ

Décimo Júnio Juvenal cumpriu sua existência entre os anos de sessenta e cento e trinta da nossa era, não existe comprovação exata nas datas. Escreveu dezesseis sátiras denominadas Satyrae, em cinco livros, em que censurou a moral e os vícios da sociedade romana, prin-cipalmente das altas classes. Seus textos variam quanto ao número de versos, quanto à extensão. Jean Bayet, ao falar do caráter geral de sua escritura, diz assim:

Lento em encontrar sua vocação, Juvenal o foi também em sua evolução: aparece constantemente atrasado em relação a seu tempo. A indignação – disse ele – o fez poeta; mas trata-se de uma indignação retrospectiva e cuidadosamente alentada: no-meia as suas vítimas, que são – unicamente – mortas; ataca seus vícios, mas seleciona os maiores extremismos nos costumes dos reinados precedentes. As últimas sátiras respondem melhor à regeneração moral da alta sociedade sob o império de Trajano, mas não foram escritas até Adriano. Juvenal não é um satírico de “atualidades”, combina sempre leituras e experiências do pas-sado com as do presente.

(BAYET, 1996, p. 374-375).

No conjunto de sua obra critica as mulheres, a miséria dos inte-lectuais, os excessos na mesa, a educação dada aos filhos. Por acaso, não seriam (são) todos esses itens motivos de críticas em nossos dias? O autor começa a obra justificando e expondo as muitas razões em escrever sátiras.

Das mulheres, o autor inicia dizendo que, dignas de serem cha-madas nobres, só existiram “nos primórdios das Eras”, depois disso, à sua época, elas se fazem gladiadoras, doutoras, são bêbadas, messalinas (JUVENAL, 1945, p. 63-78).

O tom moralista pode ser exemplificado nestes versos: “A vergonha fugiu de Roma, e poucos / Que alguma ainda tem, são apupados.” (Idem, p. 149). A crítica ao poder dos ricos e a impotência dos pobres, nestes: “Na riqueza desculpa alcança eterna! / No Pobre, o jogo, um adultério, é crime: / Neles é graça, é bagatela, é brinco.” (Idem, p. 154).

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Pelos títulos de algumas sátiras suas, como “Miséria dos intelec-tuais”, “O luxo da mesa”, pelos conteúdos de seus textos, a educação dada aos jovens e o burburinho e a agitação das ruas de Roma, você pode per-ceber claramente que não há muita efemeridade neste gênero literário. Muitos dos vícios que Horácio e Juvenal apontam em seus livros podem ser aplicados perfeitamente em nosso mundo contemporâneo, em nossa sociedade e em várias outras de diferentes tempos.

3.5 A Poesia Didática

ARTE POÉTICA

Um poema que não te ajude a viver

E não saiba preparar-te para a morte

Não tem sentido: é um pobre chocalho de

palavras.

(Mário Quintana)

Esta divisão e classificação podem parecer estranhas se lembrar-mos que para os antigos gregos e romanos a arte e, como tal, a literatu-ra, tinham por si só um caráter informativo e educativo, buscava-se por seu intermédio incutir bons exemplos no plano da moral, civilidade, religiosidade etc. Contudo, por poesia didática entendemos o conjunto de obras em que o ensinamento e a informação estão acima do elemen-to artístico, ficcional. É um tipo de poesia em que o autor pretende an-tes de tudo apresentar e/ou defender uma teoria, expor técnicas, mais do que fazer arte.

No texto de Zélia de Almeida Cardoso, já muito reconhecido por você a esta altura, carissime discipule, encontramos a seguinte retomada histórica:

O romano sempre demonstrou ter espírito prático e pragmático. Ao aprender a manejar o verso foi levado, evidentemente, a des-cobrir-lhe uma função utilitária. E nasceu dessa forma a poesia didática, que coexistiu com os demais gêneros poéticos em todas as fases da literatura latina.

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Na época primitiva surgiram, sob forma de oráculos (uaticinia), predições (sortes) e provérbios (sententiae), as primeiras mani-festações, ainda embrionárias, da poesia didática. Alguns desses versos se mantiveram até a época clássica e foram reproduzidos por historiadores.

(CARDOSO, 2003, p. 103)

Entre os primeiros autores dessa linha de escritura, a autora cita Ápio Cláudio Cego, ao final do século IV a.C., o polivalente Ênio e Ca-tão. Mas destes muito pouco de suas obras chegou até nós. Passemos então aos principais nomes.

Lucrécio ǿ

Tito Lucrécio Caro nasceu no começo do primeiro século de nossa era e morreu em 75, segundo alguns estudos. Sua única e grande obra foi De rerum natura, um longo poema escrito em hexâmetros datílicos, os mesmos versos empregados na poesia épica. Obra em que, ainda que muito artística, apresenta, expõe, defende e homenageia o ideário epi-curista. No texto do nosso já muito conhecido Jacques Gaillard, encon-tramos a seguinte asserção:

Epicuro havia considerado a poesia como um dos prazeres ilusó-rios que nos distanciam da lucidez. Lucrécio se explica: sabedor de que o pensamento de Epicuro é difícil, para não dizer auste-ro, trata de adoçá-lo mediante a forma poética, como quando se unta com mel a borda de um copo que contém uma amarga poção de absinto.

(GAILLARD, 1997, p. 58).

Horácio ǿ

A Arte Poética de Horácio se insere no grupo das três principais reflexões sobre literatura na antiguidade, juntamente com a de Aristó-teles e o tratado sobre o sublime, de Longino. Destas duas se distingue pela extensão e sistematização, tendo em vista que foi escrita sob a for-ma de carta dirigida ao Pisões, forma com que também muitas vezes é reconhecida. Esta epístola foi escrita em forma de versos, precisamente em hexâmetros datílicos. Rosado Fernandes, na introdução da edição portuguesa da editora Inquérito, afirma que Horácio, como pensador

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da poesia se posiciona como moderado, in aurea mediocritate (no áureo meio-termo) que defendeu fortemente em muitos de seus textos:

Mas Horácio não toma partido por qualquer posição extremista: não é arcaizante, mas tão-pouco é modernizante em todo o sen-tido. Se é helenizante, é porque julga que a cultura refinada dos Helenos poderá trazer algum bem ao talento agreste dos Roma-nos. Quanto à função do poeta na sociedade, acha que este lhe pode ser útil, sem que, contudo, perca todo o seu individualismo. Tudo o que apregoa, já Horácio pusera em prática na poesia até então publicada e isto era a garantia de que os princípios que teorizava levavam, de facto, a uma poesia cuidada e de excelente nível, qualidades que ele prezava.

(FERNANDES, 1984, p. 21)

Em seu texto podemos distinguir três momentos diferentes. Um primeiro, em que o pensador propõe idéias gerais e preceitos sobre a arte de escrever, como por exemplo, o cuidado com as palavras e o seu arranjo:

No arranjo das palavras deverás também ser subtil e cauteloso e magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transforma-res em novidade as palavras mais correntes. Se porventura, for necessário dar a conhecer coisas ignoradas, com vocábulos recém criados, e formar palavras nunca ouvidas pelos Cetegos cintados, podes fazê-lo e licença mesmo te é dada, desde que a tomes com discrição. Assim, palavras há pouco forjadas, em breve terão ganho largo crédito, se, com parcimônia, forem tiradas de fonte grega.

(HORÁCIO, 1984, p. 59).

Excerto que comprova a afirmação da moderação horaciana feita por Rosado Fernandes.

Num segundo momento, Horácio aponta os gêneros literários, des-tacando principalmente a poesia dramática, razão principal da epístola, e tão somente um pouco da lírica, justo ele que foi poeta lírico.

Sobre a poesia dramática ele salienta a famosa lei dos cinco atos, regra que os estudiosos supõem ter surgido no período helenístico e que se faz presente muitas vezes até os dias de hoje: “Que a peça nunca tenha

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mais do que cinco actos nem menos do que esse número, se acaso dese-jar que voltem a pedi-la e tornar à cena depois de estreada” (HORÁCIO, 1984, p. 83). Sobre o papel do coro Horácio afirma:

Que o coro defenda a sua individualidade recitando o seu papel como um actor, e não cante, no meio dos actos, o que não se rela-cionar nem se adaptar intimamente ao argumento. Que ele seja propício aos bons e, com palavaras amigas, os aconselhe, aos ira-dos insuflando calma e aos que temem pecar, concedendo amor.

(HORÁCIO, 1984, p. 85).

Depois, fala a respeito da tragédia e da comédia, um pouco de suas origens, os metros e os assuntos empregados.

Da poesia lírica ele apenas cita alguns tipos, como a elegia. E o ob-jeto da Lírica: “A Musa concedeu à lira o cantar deuses e filhos de deu-ses; o vencedor no pugilato e o cavalo que, primeiro cortou a meta nas corridas, os cuidados dos jovens e o vinho que liberta dos cuidados” (HORÁCIO, 1984, p. 67-68). Observe, discipule, que, tal como Aristóte-les, o autor não define o que é poesia lírica.

Por fim, na terceira parte, Horácio trata do poeta. “Os poetas ou querem ser úteis ou dar prazer ou, ao mesmo tempo, tratar de assunto belo e adaptado à vida” (Idem, p. 105). Aos poetas aconselha evitar es-cutar a crítica de aduladores e amigos:

Se a alguém tiveres dado alguma coisa ou tiveres intenção de lha dares, não o convides a ouvir teus versos, porque ele, por si só, está cheio de alegria e só clamará: “Que lindo! Que bem! Que certo!” Ficará pálido ao ouvi-los e mesmo de seus olhos amigos alguma lagrimita brotará ao mesmo tempo que baterá a terra com o pé. Como, nos enterros, os que para carpir são pagos, qua-se sobrelevam em ditos e acções aos que trazem o luto no peito, igualmente o adulador, que intimamente troça, se comove mais do que o amigo que, com sinceridade, louva.

(HORÁCIO, 1984, p. 119).

Preferindo antes as críticas mais duras e o árduo trabalho de rees-crever inúmeras vezes até que fique boa a obra.

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Fedro ǿ

Caio Júlio Fedro ou Feder foi um ex-escravo de Augusto, liberto pelo próprio imperador. Em verdade não era romano, já que nascera na Trácia. Não se tem dados sobre datas de nascimento e morte, mas viveu no século I, acredita-se que tenha vivido até o reinado de Nero. Desta-cou-se por suas Fábulas (Phabulae) e através delas criticou fortemente a crueldade e outros vícios dos poderosos, graças ao disfarce dos animais falantes. Conforme Jean Bayet,

Algumas alusões de sua obra atraíram sobre ele a vingança de Sejano, favorito de Tibério: continham certamente a complacên-cia na sátira e uma queixa/um lamento cheia de dor contra os poderosos, contra os invejosos, que dissimula mal sob o véu do apólogo. Tende a lograr uma elegância pura e concisa. Bem longe da fluidez de Horácio, da sensibilidade, da riqueza lírica e do gênio/genialidade de expressão de La Fontaine, foi, todavia, o primeiro a demonstrar que a fábula é capaz de expressar os mais variados tons, desde o epigrama ou a anedota contemporânea até o drama e a meditação moral.

(BAYET, 1996, p. 304).

A palavra ‘fábula’, em seu primeiro sentido, significa em latim con-versa, conversação. Em sentido especial é narração dialogada, ou sim-plesmente narração. Conforme o verbete no Dicionário de termos literá-rios, de Massaud Moisés,

Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua estrutura dramática. No geral, é protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa transparecer uma alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos seres humanos. Escrita em versos até o século XVIII, em seguida adotou a prosa como veículo de expressão. De longeva origem, talvez oriental, a fábula foi cultivada superior-mente na Antiguidade clássica por Esopo, escravo grego do século VI a.C., e por Fedro, escritor latino do século I da era cristã. Mo-dernamente La Fontaine destaca-se como o mais importante dos fabulistas: suas histórias, dadas a lume entre 1668 e 1694, foram largamente traduzidas, aplaudidas e imitadas.

(MOISÉS, 1999, p. 226).

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Assim, os elementos constitutivos fundamentais do gênero são: 1) “a história protagonizada por animais irracionais”; 2) animais que possuem comportamentos semelhantes e falam como humanos; e 3) a moral e/ou “alusão” “satírica ou pedagógica” dirigida aos homens.

É justamente Fedro o responsável pela escritura do gênero em ver-sos, tendo em vista que Esopo, a quem o primeiro atribui a autoria de suas traduções, o fez em prosa. É o próprio poeta que afirma: “Polir de Esopo as fábulas tentei / Em versos de seis pés que concertei.” (FEDRO, 2001, p.39).

Bayet, em nota ao texto citado anteriormente, reproduz L. Havet, que diz: “A fábula foi idealizada para ocultar o pensamento de quem não é livre, em suas origens, foi uma invenção dos escravos” (HAVET, 1996, p. 304). É, portanto, um libelo contra a opressão.

Até os nossos dias a fábula é empregada como instrumento peda-gógico, como ensinamento moral para crianças, tradição iniciada no século das luzes, e La Fontaine nesse sentido foi o principal responsável por isso. No entanto, à época clássica antiga, este didatismo era dirigido aos adultos mesmo. Cabe lembrar que a fábula, de algum modo, mui-to contribuiu para o desenvolvimento das histórias em quadrinho e o desenho animado: animais agindo e falando como seres humanos. É o que podemos ver na proposta de Samuel Pfromm Netto na introdução da obra de Fedro, em texto intitulado De Esopo e Fedro aos Muppets: a trajetória da fábula (1996).

Para ilustrar, aí vão duas fábulas de nosso amigo Fedro, que talvez você já conheça em versões modernas de La Fontaine, Monteiro Lobato ou, quem sabe, em versão mais irônica e debochada de Millôr Fernan-des, autores que também cultuaram o gênero:

O Lobo e o Cordeiro

É fácil oprimir o inocente.

Por sede ardente impelidos,

O feroz Lobo e o Cordeiro

Tinham vindo saciar-se

Na corrente de um ribeiro:

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Água arriba aquele estava,

Longe – abaixo este ficava,

Súbito, as fauces inchando,

O quadrúpede voraz

Busca de rixa um pretexto

E assim prorrompe falaz:

— “Por que turvas revolvendo

Est’água que estou bebendo?”

Contesta o manso Cordeiro:

— “Como, ó Lobo, ser assim,

Se a clara linfa que sorvo

Corre de ti para mim?”

Desta verdade a evidência,

Susta do bruto a inclemência.

— “Há seis meses murmuraste

De mim”, replica o insofrido.

— “Não pode ser, porque ainda

Eu não havia nascido.”

— “Que importa!? Se és inocente,

Foi teu pai o maldizente.

E cerval, inexorável,

Sem que a inocência lhe importe,

Contra o mísero arremete,

Lacera-o, ‘té dar-lhe a morte.

— Nesta fábula o retrato

Se exibe dos prepotentes

Que com frívolos pretextos

Oprimem os inocentes.

(FEDRO, 2001, p. 40-41).

Tal como a anterior, a próxima também trata do poder cruel dos que se julgam superiores sobre os mais fracos. Entretanto, não é só para este vício que as fábulas apontam, mas para muitos que são próprios da humanidade.

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A vaca, a Ovelha a Cabra e o Leão

Jamais é feliz a sociedade com o poderoso.

Do Leão na companhia,

Por ínvias, bastas florestas,

Associaram-se um dia,

Cheias de si, muito lestas,

A Vaca e a Cabra ligeira,

Tendo mais por companheira

A mansa Ovelha, e se foram

A caçar de parceria.

Feliz correu-lhes a empresa,

Pois que um nutrido Veado

Caiu no laço, e quartado,

Cada qual quis quinhoar-se

Na parte que lhe cabia.

— “Chitom! Bradou-lhes então

Qual deles mais força tinha:

A primeira parte é minha,

Porque me chamo Leão;

A segunda heis de entregar-me,

Porque primo em ser valente;

A terceira acompanhar-me

Há de por força de lei

Que me fez o vosso rei;

Se a quarta algum imprudente

Ousar para si querer,

Que a não toque! o delinqüente

Terá de se arrepender!”

— Toda a presa, desta sorte,

Caiu na mão do mais forte.

(FEDRO, 1996, p. 48).

Se você quiser, pode ouvir a versão dada por colegas de Letras da UFSC, em Florianópolis. Se quiser, pode propor aos seus alunos outras versões (se acaso já é professor, ou quando o for).

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Ovídio ǿ

Como já dissemos anteriormente, uma das únicas e poucas obras de Ovídio que foge de seu espírito individual e usualmente cortesão é Fastos (Fasti). Livro que aborda a questão do calendário religioso tal como sugere o título, referência aos dias que não são feriados, mas de audiência, de atividades e, portanto, não consagrados aos deuses. A res-peito desta obra, Zélia de Almeida Cardoso diz o seguinte:

A estrutura do poema é bastante original. O projeto de Ovídio seria dividi-lo em doze cantos ou livros, correspondendo cada um, a um dos meses do ano. O resultado seria a elaboração de um grande calendário (fasti), com a indicação cronológica de to-das as solenidades usualmente realizadas em Roma. Chegaram a nossos dias apenas os seis primeiros cantos. Não se sabe se o texto não foi concluído ou se os cantos finais se perderam, sendo mais viável a primeira hipótese uma vez que o exílio do poeta, em 8 d.C., poderia ter determinado a interrupção do poema.

Os cantos são ricos em informações sobre as antigüidades roma-nas; há descrições minuciosas de rituais, explicações sobre sua origem e indicações dos locais em que se realizavam. Por meio do texto temos notícias importantes sobre festividades realizadas anualmente, tais como as Agonalia, as Lupercalia, as Feralia, as Matronalia, as Palilia, as Qüinquátrias, as Vinalia, Flora-lia e Lemuria, sobre cerimônias em homenagem a divindades tipicamente latinas como Jano, Carmenta, Caco, a Concórdia, Término, Mater Matuta, os Lares, a deuses latinos assimilados a gregos, como Marte, Vênus, Ceres, Juno e Vesta, e, ainda, sobre festas comemorativas a figuras histórico-lendárias como Quiri-no, Numa, Ana Perena e Túlia.

(CARDOSO, 2003, p. 116).

Só para você ter uma idéia, temos a seguir uma amostra do texto, a abertura, com o mês de Janeiro. A palavra é derivada de Januarium, homenagem a Janus, o deus de duas faces, uma voltada para a entrada, outra para a saída, ou para o começo e para o fim. Ele era a divindade que protegia as portas de entrada de Roma, por isso o deus que abre e fecha o ano. Em discurso direto, sem intermediários nem musas, Janus fala de si para o poeta Ovídio:

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Outra razão de serem dois meus rostos

Me vais agora ouvir, que juntamente

Explica o mister meu; tudo que avistas,

Céu, nuvens, terra, mar, tudo se fecha,

Se abre, por minha mão; sou do universo

O guardador supremo, o que o revolve

Em continuado giro. A paz ridente

Sai do meu templo, porque eu mando; e livre

Vai folgar, vai florir por toda a parte.

Se eu descerrasse os meus portões às guerras,

Todo esse globo se afogara em sangue.

Velo no átrio do céu coas Horas ledas.

Para sair e entrar, Júpiter mesmo

Necessita de mim; donde me hão feito

De janitor o título de Jano,

E inda outros mais, que ao mesmo ofício aludem;

Quando no altar me oferta o sacerdote

Os salsos grãos coa cereal fogaça,

Que me chama o Sacrifício (são nomes

Que te hão-de fazer rir): Patúlcio e Clúsio:

Patúlcio, porque entradas patenteio;

Clúsio, por clausurar; o que em dois termos

Me abrangeu todo a rude antiguidade. [...]

(OVÍDIO, p. 109-110).

Virgílio ǿ

As Georgicas foram mais uma obra de Virgílio escrita sob enco-menda. O nome do título advém do grego, em que o elemento ‘geo’ sig-nifica terra. O texto está dividido em quatro livros. O primeiro trata do cultivo de cereais; o segundo é sobre árvores e arbustos, vinhas e oliveiras; o terceiro diz respeito à criação de animais, pecuária e o últi-mo, apicultura. Todos eles entremeados e ilustrados com passagens mi-tológicas, históricas e, logicamente, poéticas, de muita sensibilidade, a grande força, compreensão e trunfo do poeta. A respeito disso, Zélia de Almeida Cardoso afirma que

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Várias foram as fontes de que Virgílio se valeu para compor seu poema. É sensível a influência de Hesíodo (Os trabalhos e os dias), Aristóteles (História dos animais e História das plantas), Aratos (Fenômenos), Catão (Sobre a agricultura), bem como em menor escala, das obras de Teofrasto, Nicandro, Magão e Varrão. A criatividade artística do poeta, entretanto, permitiu-lhe que inserisse, entre os versos informa-tivos, belas descrições, elogios e quadros. São famosos, entre os versos outros, o elogio da Itália, a descrição do inverno na Cítia, a da peste que acometeu os rebanhos do Nórico, a evocação do velho de Tarento e, sobretudo, no final do livro IV, o epyllion de sabor nitidamente alexandrino, onde Virgílio relata a história do deus rústico Aristeu, o primeiro que conseguiu restaurar um enxame, fazendo nascer abe-lhas de uma carcaça de um boi oferecido em sacrifício. Tal epyllion não constava da primeira versão do poema. Virgílio o colocou na se-gunda, a fim de substituir um elogio a Cornélio Galo, retirado das Geórgicas quando o poeta, pessoa de confiança do imperador, caiu em desgraça perante o Senado, acusado de alta traição.

(CARDOSO, 2003, p. 113).

Sobre a grandiosidade de Virgílio, mesmo em um texto classificado de didático, Jean Bayet discorre:

O interesse pelos camponeses, a certeza de que neles residia a força de Roma e o amor pela terra italiana não eram coisas novas. Mas a expressão é nova nas Geórgicas. Virgílio soube conferir a essas idéias e sentimentos um conteúdo universal; o poema é mais humano que italiano: a natureza e o homem são heróis. Todavia, não deixa de ser atual: no momento em que se escreve, a Itália trata de recobrar sua personalidade e viver de novo em si mesma; o ideal do peque-no camponês, lavrador e soldado, dá alento aos homens de estado e economistas. Otávio e Mecenas não acreditavam, sem dúvida, que as Geórgicas poderiam restituir a plebe urbana à terra; entretanto, devem ter pensado que seu êxito não causaria danos a seus projetos. Ademais, Virgílio, em seu desejo ardente pela paz rústica, sonha com eles, com uma nova sociedade de união nacional e trabalho organi-zado sob (o comando de) um venerável caudilho; a adulação a Otá-vio no começo dos cantos I e III é um testemunho quase excessivo; com maior delicadeza este sonho social transparece na complacente pintura da “cidade” das abelhas, às vezes perturbadas pelas lutas ci-vis, mas tão ordenadamente laboriosa em torno de seu “rei”.

(BAYET, 1996, p. 210).

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Capítulo 04Prosa

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Prosa

O amor é prosa, sexo é poesia.

Rita Lee

Como já dissemos na unidade anterior, se a poesia é a ação de dis-por e expor o pensamento de um autor através do verso, o que implica para o leitor um percurso de ida e volta na retomada desse pensamento, a prosa, por contraposição é, na definição de Massaud Moisés (1999, p. 418), “o discurso direto, livre, em linha reta”. Elucidando a questão, o mesmo autor propõe uma tipologia da narrativa:

No parágrafo acima fala de Massaud Moisés....

Genericamente entendida como oposta ao verso, a prosa apre-senta, segundo as retóricas tradicionais, dois tipos básicos: a narrativa (correspondente à História e à prosa de ficção: conto, novela e romance) e a demonstrativa (que compreende a Ora-tória e a prosa didática: tratados, diálogos, cartas, ensaios). Ou-tra sistematização divisa cinco modalidades de prosa segundo a sua função: 1) narrativa (equivalente à prosa de ficção), 2) argumentativa (representada pelos tratados em geral), 3) dra-mática (praticada no Teatro), 4) informativa representada pelos “livros escolares ou científicos, enciclopédias, livros de instrução em diversas áreas e ofícios, relatórios de várias espécies, e todos os artigos de jornal e reportagens com objetivo de informar”, e 5) contemplativa, exemplificada pelo ensaio, “livros de medita-ção religiosa, especulação política, ou fantasia, e alguns livros de linguagem descritiva”

(Marjorie Boulton, The Anatomy of Prose, 1968, pp. 4-7)

(MOISÉS, 1999, p. 418).

Contudo, não podemos deixar de ressaltar que neste ponto Moisés faz menção mais específica ao que se conhece modernamente, ao tea-tro e à literatura moderna, porque, como já foi visto, não corresponde necessariamente ao que se dava na literatura antiga, em que estas artes eram escritas sob a forma de verso em geral.

4

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Unidade B - Literatura Latina

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A prosa latina compreende as seguintes variações de escritura: his-toriografia, filosofia, oratória, retórica, erudição, epistolografia (estas quatro últimas não explicitadas aqui por causa do foco privilegiado) e os romances, de que trataremos agora.

Antes de tudo e qualquer coisa é preciso esclarecer que o termo ro-mance é um uso que parte de nosso olhar contemporâneo em direção ao passado antigo, visto que é posterior à criação desses autores. A palavra romance é derivada do advérbio romanice, isto é, em língua românica, ou seja, em língua que já não é mais o latim e ainda não tem foro de língua nacional. O advérbio é empregado por oposição a latine loqui, à língua latina.

Dito isso, voltemo-nos então para os autores latinos e as narrativas, que modernamente são classificadas de romance.

Petrônio ǿ

Caio Petrônio Árbitro (Caius Petronius Arbiter) é o nome do autor a quem se atribui a maestria do romance Satiricon. Não se tem tanta certeza a esse respeito. O primeiro nome, alguns entendem que é Tito. O terceiro é um epíteto incorporado muitas vezes ao nome, por causa de sua função de árbitro da elegância quando freqüentava a corte de Nero. Até que foi acusado de conjuração e obrigado a cometer “suicídio”, tal qual acontecera com Sêneca.

Nas palavras de Bayet,

Petrônio pertence à grande sociedade de Roma. É clássico por formação; e continua sendo em seus gostos: representa para nós a continuidade da corrente que dissimula o êxito arrebatador dos Sênecas, Pérsio e Lucano. Seus sentidos são delicados e finos, como os de um Ovídio. Mas sua experiência é muito mais ampla e variada. A falta de freio da alta sociedade sob o governo de Nero avivou sua curiosidade e lhe permitiu satisfazê-la.

(BAYET, 1996, p. 341).

Gaillard inicia o seu texto sobre Satiricon destacando já no título que esta é a obra em que desponta o nascimento do romance:

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Capítulo 04Prosa

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O Satiricon de Petrônio é, pelo que se pode observar, o primeiro texto ao qual se pode dar o nome de “romance” na história da literatura. Os teóricos do gênero – Lukács, por exemplo – não levaram em conta, como tampouco os romances gregos (sem dú-vida, posteriores), o que é um grave erro, posto que toda uma tendência do romance/novela do século XVII, por exemplo, se inspira abertamente nestes textos antigos. Diremos para recor-dar que novela picaresca implica, por definição, histórias de bandidos, e os romances antigos, latinos ou gregos, fazem desta violência um dos motores da intriga; do mesmo modo, confe-rem às mulheres (e à relação amorosa ou hostil, entre homens e mulheres) um papel que não existia na historiografia, mas que alcançará grande fortuna no romance do futuro. Poderíamos citar muitos outros indícios aqui.

(GAILLARD, 1997, p. 88).

A fim de comprovar tal afirmação, ele demonstra com os seguintes argumentos: projeto épico adornado pelo realismo cotidiano, persona-gens e estilos bem diferentes, as aventuras e desventuras dos desclassifi-cados Encolpo e Ascilto, o diálogo que vem da poesia dramática, espaço desprovido de qualquer idealização, a história individual.

O titulo Satiricon desta narrativa suscita nos estudiosos da obra muitos questionamentos. Seria, por acaso uma sátira? Elementos que nos façam pensar em tal hipótese não faltam, a mistura de prosa e ver-so, a presença do diálogo como no teatro, o espaço em que se movem as personagens, desprovido de qualquer idealização etc. A passagem a seguir pode nos sugerir tal hipótese:

– Roubar tudo bem – me disse Ascilto –, mas sem sangue, por favor.

Ele conhecia bem o interior da casa, e nos levou direto para os lugares

onde coisas preciosas estavam nos esperando. Só passamos a mão no

bom e no melhor e, ao amanhecer, ganhamos a rua, e não descansa-

mos até nos julgarmos seguros. Ascilto, então, respirando fundo, en-

fatizou com quanta alegria tinha pilhado a casa daquele avarento do

Licurgo. Era um unha-de-fome. Nunca nenhum presentinho por tantas

noites de amor, refeições sem vinho, jantares sem carne. Tão avarento

era o miserável que, embora podre de rico, até das coisas indispensá-

veis se privava.

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Infeliz Tântalo que não bebe o líquido,

nem come dos frutos que sua fome anseia.

Então é isso que é ser rico,

nadar, nadar, e morrer na areia?

(PETRÔNIO, 1987, p. 25).

Afora isso, é possível perceber nesta passagem o caráter picaresco das personagens, a amoralidade, a despreocupação com o ato de roubar.

A fim de engrossar a idéia de satura, de cesta com muitas varie-dades de frutas ou do que se quiser, podemos colocar nesta a reflexão de Satiricon como uma sátira, uma crítica e uma crônica da sociedade da época. É o que nos possibilita o capítulo XLIV da obra, em meio a discursos disparatados, provavelmente de bêbados, em que destacamos este, de Ganimedes:

– O que vocês estão falando não tem pé nem cabeça. A fome ronda em

nossa volta. Não, por Hércules!, hoje, o dia inteiro, não consegui um pe-

daço de pão para comer. Sabem por quê? A seca prossegue. Faz um ano

que eu passo fome. Malditos os vereadores que fazem lá seus pactos

com os padeiros. Você livra a minha, que eu livro a sua, e o povo miúdo

que se foda, enquanto as mandíbulas desses sanguessugas mastigam

banquetes. Ah, se tivéssemos ainda entre nós aqueles homens fortes

como leões, que encontrei aqui, quando vim da Ásia! Aquilo que era

viver. A Sicília estava seca, os campos sem gota d’água, como se Júpi-

ter a tivesse amaldiçoado. Me lembro de Safinium, ele morava perto do

aqueduto velho, eu, criança, ele, uma verdadeira fera. Por onde ele pas-

sava, a terra tremia. Mas era gente fina, limpo, amigo do amigo, o tipo

de gente com quem você pode tranqüilamente jogar par ou ímpar no

escuro. E no tribunal? Precisava vê-lo! Ele moía seus adversários. E não

falava por esquemas, não. Dizia direto. Quando falava no tribunal, sua

voz crescia como uma tuba que vai subindo de tom. Não suava, nem

cuspia. Tinha alguma coisa de asiático. E como era bem-educado! Cum-

primentava, lembrava do nome de todo mundo, como se fosse um de

nós. Naquele tempo, não havia fome. Enquanto era edil, dois homens

esfomeados não conseguiam comer um pão que custava um centavo.

Agora, por esse preço, você compra um pão do tamanho de um olho de

boi. Ai, ai, ai, cada dia pior! Esse país cresce que nem cauda de vaca, para

baixo! E por que não? Temos um edil de meia pataca que dá mais valor

a um centavo do que a nossa vida. Em casa, vive na maior abundância.

Ganha num dia mais do que você vai ganhar em toda a sua vida. Sei de

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Capítulo 04Prosa

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uma negociata dele que, num dia, lhe rendeu mil denários de ouro. Se

nós tivéssemos vergonha na cara, uma coisa dessas não acontecia. Mas

agora o povo é assim, em casa, uns leões, na rua, rabo entre as pernas,

como as raposas. Quanto a mim, já vendi todas as minhas roupas para

poder comer e, se a seca perdurar, vou ter que vender a roupa do corpo.

Que futuro nos aguarda, se nem os deuses, nem os homens fizerem

alguma coisa por nossa terra? Os deuses que me perdoem, mas acho

que é a vontade dos céus. Hoje em dia, ninguém mais acredita em nada,

ninguém observa os dias de jejum, ninguém está dando a mínima se

existe um Júpiter ou não. Todos, olhos bem abertos, ficam contando

seu dinheiro. Antigamente, as mulheres iam descalças, cabelos soltos,

um véu no rosto, a alma pura, para orar a Júpiter que mandasse chuva.

Logo, chovia a cântaros, e todo mundo ficava com um sorriso de orelha

a orelha. Assim era então, hoje, jamais. Como os ratos, os deuses cami-

nham com os pés calçados em lã. É porque não temos mais fé nos céus

que não chove mais nos campos.

Que discurso mais estranho, não? Deve ser pela distância de qua-se dois mil anos. Por acaso não parece o discurso de uma pessoa mais velha, de um conservador e passadista? Um avô ou um tio nosso? Não parece os nossos discursos enraivecidos contra os políticos de hoje, de sempre?

Apuleio ǿ

Lúcio Apuleio viveu entre os anos 125 e 170 da nossa era, mais uma vez não são precisas as datas. Nasceu de uma família rica em Madaura, na Numídia (atual Argélia). Fez seus estudos superiores na Grécia, re-tornando depois ao continente africano, para Cartago. Conforme Bayet, foi um homem singular e muito representativo de sua época, apesar de estar acima dela. Viajou bastante e como bom observador esteve atento a tudo, de obras de arte do passado a costumes do presente, ávido por detalhes, curioso pelas ciências, as naturais em especial, mas também pela magia, que vai estar muito presente no livro que o fez notável. Sua obra comprova a diversidade e a curiosidade. Ainda seguindo o raciocí-nio e as palavras do autor francês,

Apuleio escreveu muito. Seus tratados técnicos, perdidos (sobre as árvores, a medicina, a astronomia, os provérbios), deviam ser compilações ou resumos, como os opúsculos filosóficos em que condensa os ensinamentos platônicos (De Platone et eius dog-

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mate); insiste sobre a teoria dos demônios intermediários entre o homem e a divindade (De deo Socratis), ou se inspira na teoria peripatética do universo (De mundo).

(BAYET, 1996, p. 412).

Ao que Gaillard complementa, “Apuleio é um extraordinário con-tista, capaz de variar os registros de sua obra até o infinito – desde a brincadeira maliciosa, do realismo mais cru aos impulsos poéticos da mais pura ‘prosa de arte’”(GAILLARD, 1997, p. 105).

A obra mais conhecida de Apuleio, a qual chegou até nossos dias no Brasil, chama-se O asno de ouro, ou também, Metamorfoses (Libri Me-tamorfoseon). É mais um texto que se enquadra no que denominamos atualmente de romance. Foi composto originalmente por onze livros. Conta a história de Lúcio, que, ao ingressar na casa de uma feiticeira disposto a usar um ungüento para se transformar em pássaro, acaba por errar de frasco e transmutar-se em asno. A partir daí é descrita a lon-ga trajetória da personagem principal, que, enquanto burro, passa pelas mãos de diferentes donos, bandidos, proprietário de padaria (episódio já exposto aqui, à página 16). Conferir e atualizar durante editoração!

A respeito do romance, Zélia de Almeida Cardoso observa que “a obra de Apuleio foi considerada por alguns como uma representação alegórica do mito platônico de Fedro: a alma deve morrer para chegar à concepção do divino e sofrer duras provas para elevar-se até deus” (CARDOSO, 2003, p. 130). Mas não só, Gaillard acrescenta: “Numa primeira aproximação, os temas da novela coincidem com os de uma novela de aventuas, ‘picaresca’, como era, em certa medida, o Satyricon” (GAILLARD, 1997, p. 105).

Muito digno de nota é o conto, dentro do romance, sobre o amor entre Cupido e Psiquê, em que pese a importância da segunda persona-gem, por ser a protagonista. A narrativa é tão bela que o melhor a fazer é lê-la. A fim de instigá-lo(a) mais um pouco, quem sabe o fragmento a seguir não o(a) convence.

Ao retornar dos Infernos, cumprindo determinação dos deuses, Psiquê traz uma caixa a ser entregue a Vênus. Embora advertida de que não tentasse abri-la, a moça desobedece e tenta pegar um pouquinho do seu conteúdo: beleza. E então...

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Capítulo 04Prosa

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XXI. Ainda falando, abriu a caixa. Mas naquele cofre não havia nada. De beleza nem sinal. Nada senão um sono infernal, um verdadeiro sono do Estige, que, libertado de sua caixa, a tomou toda, infundindo em todos os seus membros uma espessa letar-gia, e estendendo-a, em colapso, no caminho, no próprio lugar onde pousara o pé. Ei-la, pois, jacente, imóvel, como um cadáver adormecido.

Mas Cupido, com seu ferimento já cicatrizado, convalescia. Como não podia suportar a longa ausência de Psiquê, escapara pela alta janela do quarto onde o tinham encerrado. Revigoraram-se-lhe as asas durante o tempo de repouso. Com um vôo mais rápido que nunca, reuniu-se a sua Psiquê, afastou com cuidado o sono, fechou-o de novo dentro da caixa, no lugar que ali ocupa-va. Depois, despertando Psiquê com a inofensiva picada de uma de suas flechas, disse-lhe: ‘És vítima uma vez mais, desgraçada criança, da curiosidade que já te perdeu. Agora vai, acaba a mis-são de que te encarregou minha mãe. O resto compete a mim.’ Com estas palavras, o amante alado retomou o vôo e Psiquê se apressou a levar a Vênus o presente de Prosérpina.

(APULEIO, [s.d.], p. 99-100).

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