[livro ufsc] literatura classica latina

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Literatura Clássica Latina Florianópolis - 2013 José Ernesto de Vargas ais Fernandes Período

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Literatura Classica Latina

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  • Literatura Clssica Latina

    Florianpolis - 2013

    Jos Ernesto de VargasThais Fernandes9

    Perodo

  • Governo FederalPresidncia da RepblicaMinistrio de EducaoSecretaria de Ensino a DistnciaCoordenao Nacional da Universidade Aberta do Brasil

    Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane NeckelVice-reitora: Lcia Helena Martins PachecoSecretrio de Educao a Distncia: Ccero BarbosaPr-reitora de Ensino de Graduao: Roselane Ftima CamposPr-reitora de Ps-Graduao: Joana Maria PedroPr-reitor de Pesquisa: Jamil AssreuyPr-reitor de Extenso: Edison da RosaPr-reitora de Planejamento e Oramento: Beatriz Augusto de Paiva Pr-reitor de Administrao: Antnio Carlos Montezuma BritoPr-reitor de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei Diretor do Centro de Comunicao e Expresso: Felcio Wessling MargottiDiretor do Centro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a DistnciaDiretor da Unidade de Ensino: Felcio Wessling MarguttiChefe do Departamento: Rosana Cssia KamitaCoordenadora de Curso: Sandra QuarezeminCoordenador de Tutoria: Josias HackCoordenao Pedaggica: Cristiane Lazzarotto Volco

    Comisso EditorialTnia Regina Oliveira RamosSilvia Ins Coneglian Carrilho de VasconcelosCristiane Lazzarotto Volco

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Coordenao: Ane GirondiDesign Instrucional: Daiana AcordiDiagramao: Tamira Silva SpanholCapa: Tamira Silva SpanholTratamento de Imagem: Tamira Silva Spanhol

    Copyright 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria daUniversidade Federal de Santa Catarina

    Ficha Catalogrfica

    V297l Vargas, Jos Ernesto de Literatura clssica latina: 9 perodo / Jos Ernesto de Vargas, Thais Fernandes. - Florianpolis : UFSC/CCE/LLV, 2013. 144 p. : il., grafs, tabs.

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-61482-62-6

    1. Literatura latina Estudo e ensino. 2. Poesia latina. I. Fernandes, Thais. II. Ttulo. CDU: 871

  • Sumrio

    Unidade A ............................................................................................ 9

    Introduo .............................................................................................................11

    1 Histria de Roma ..........................................................................................13

    1.1 A religio ..............................................................................................................13

    1.2 Histria Poltica ..................................................................................................17

    1.3 A Sociedade Romana ......................................................................................28

    2 Cultura de Roma ...........................................................................................33

    2.1 A Cultura que No Morre(u) ..........................................................................33

    Unidade B ...........................................................................................49

    Introduo .............................................................................................................51

    3 Poesia ...............................................................................................................59

    3.1 A Poesia pica ....................................................................................................60

    3.2 A Poesia Dramtica...........................................................................................67

    3.3 A Poesia Lrica .....................................................................................................84

    3.4 A Poesia Satrica...............................................................................................109

    3.5 A Poesia Didtica .............................................................................................118

    4 Prosa. ....................................................................................................131

    Referncias Bibliogrficas...................................................... 139

  • Apresentao

    Carissimi discipuli,

    P or motivos de tempo e, em parte, de distncia entre ns, mas no necessariamente de espao, uma vez que o cibe-respao infinito, o contedo a ser focalizado nesta dis-ciplina a Literatura Latina, tomada aqui stricto sensu . Ou seja, a literatura que mais interessa num curso de Letras, a f iccional, a poesia e a prosa latina. Delimitando um pouco mais este vasto uni- verso, o perodo enfocado ser o de quatro sculos, de II a.C, mo-mento ainda de formao da literatura latina, at II d.C, quando se inicia a derrocada das artes e da prpria cultura romana. Dentro desse corpus encontraremos os principais autores e obras latinas, aqueles que compem a era clssica romana e que se tornaram mo-delos para os escritores posteriores e para outras literaturas.

    Comearemos nossos estudos com uma breve histria da civili-zao romana, sua religio poltica, sociedade e cultura (as artes: arquitetura, urbanizao e literatura lato sensu , ou seja, literatu-ra enquanto conjunto de textos no ficcionais escritos em latim). Essa ser a primeira Unidade.

    A seguir, na segunda Unidade, vir o principal tpico, o de lite-ratura, o maior de todos, que tratar de Poesia, subdividido em cinco Captulos: a poesia pica, a poesia dramtica, a poesia lrica, a poesia satrica e a poesia didtica e, por fim, a Prosa latina. A ordem se deve ao critrio de acompanhar uma tradio dada pelos estudos literrios, iniciada por Aristteles, com quem estaremos dialogando muitas vezes e, em parte, por uma sequncia de surgi-mento histrico no cenrio literrio.

    Jos Ernesto de Vargas

    Thais Fernandes

  • Unidade AHistria e Cultura Romanas

  • Introduo

    Nesta unidade iremos relembrar os principais elementos da Histria de Roma para um melhor aproveitamento dos contedos de literatura, tanto da crtica quanto da ficcional, para que o aluno perceba a permanncia e a im-

    portncia da cultura latina no mundo ocidental.

    Ingens orbis in Urbe fuit. (Ouidius, Ars Amatoria, 1, 174)

    O imenso mundo estava na Cidade de Roma. (Ovdio, A arte de amar, 1, 174)

    A histria da antiga Roma tem seus limites temporais entre os anos de 753 a.C e 476 d.C., perfazendo mais de mil duzentos e vinte anos de vida, s no Ocidente. Quatrocentos anos de glria, de conquistas b- licas, de administrao, de manuteno das anexaes territoriais, de vigor artstico. Duzentos anos de literatura representativa desse mundo. Entretanto, se considerarmos a durao do Imprio Romano no Orien- te, podemos falar de quase mil anos a mais, tendo em vista que este se estendeu at 1453. Se lembrarmos que menos de cinquenta anos depois os europeus, atravs dos povos ibricos, ocupariam a Amrica, podera- mos dizer que esse mundo se presentifica at muito recentemente, at a Era Moderna. Mas, logicamente, esta outra histria, que no nos diz respeito propriamente, se no s culturas orientais.

    Quanto aos limites espaciais, o Imprio compreende a geografia de trs continentes: Europa, frica e sia. No primeiro, ocupou a por- o ocidental como um todo, incluindo a Britnia (atual Inglaterra) e boa parte da poro oriental (excetuando as regies mais ao norte, em nossos dias a Rssia). No segundo, o norte africano, acima do deserto saariano. No terceiro, as regies costeiras mediterrnicas (Sria, Judeia e parte da Arbia). Dominando toda a bacia do Mediterrneo e por causa disso todo o mundo ocidental, Roma ento se autodenominava Domina gentium (Senhora dos povos).

  • Pois desta Roma que trataremos inicialmente, apontando seus principais aspectos histricos, sociais e polticos para ento, num segun-do momento, pensarmos num mundo e numa cultura que extrapolam esses limites e chegam aos nossos dias com pleno vigor, que chegam a lugares os quais no conheceram o Imprio Romano, justificando desse jeito o nome de Imprio e a profecia de que enquanto o Coliseu estiver de p, Roma estar de p, bem como a fama de Cidade Eterna.

  • Captulo 01Histria de Roma

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    Histria de Roma

    1.1 A religio

    A religio nunca deixou de ser o lao mais forte da cidade romana; com

    esta identificou-se a tal ponto que foi uma forma de patriotismo. Os interes-

    ses de uma eram os da outra. Tanto para o cidado quanto para o Estado,

    o temor dos deuses era o princpio da sabedoria e o ponto de partida para

    toda a atividade poltica. O servio dos deuses e o da Repblica eram uma

    s e mesma coisa. O esprito prtico dos romanos, pouco preocupados

    com coisas abstratas, conduziu-os a uma concepo apenas administrati-

    va e formalista das relaes do homem com a divindade. Era um contrato

    que ligava as duas partes. Nada de fantasia nem de interpretao entregue

    ao arbtrio individual, mas um ritual minucioso, obrigatrio, verdadeiro ins-

    trumento de terror, que assegurava pelo medo a docilidade popular.

    (BORNECQUE; MORNET, 1976, p. 67 apud FOUGRES).

    A religio em Roma teve uma formao heterognea, recebeu in-fluncias dos etruscos, gregos e, mais tarde, de religies orientais. Con-forme Brando,

    a Urbs, verdade, abriu as portas, em princpio, a toda sorte de deuses fo-

    rasteiros, mas soube manter, no curso de onze a doze sculos, o essencial

    de seu culto, graas a uma obstinada tradio de cerimnias e ritos de base.

    Ancorada em hbitos seculares, permitiu, no entanto, que se multiplicas-

    sem as variantes de um sentimento religioso at o triunfo do Cristianismo.

    (BRANDO, 1993, p. 11).

    Mas esse processo de adoo de deuses estrangeiros, segundo Bran-do (1993), nunca foi uniforme: o perfilhamento se realizou e se concre-tizou entre os quirites em planos diversificados, em dosagem e velocidade desiguais. Os aristocratas e plebeus nem sempre cultuaram os mesmos deuses e estes tampouco recebiam tratamento anlogo (p.7-8).

    Quirite era o nome dado aos antigos cidados de Roma.

    1

  • Literatura Clssica Latina

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    A religiosidade romana tinha um carter prtico, realista, meti-culoso e se orientava pelo rito, que respondia de maneira imediata s necessidades e angstias dos homens, diferentemente da Grcia que ti-nha uma religio inspirada pelo mito (BRANDO, 1993, p. 5). Brando (1993) entende que o romano invocava os deuses no propriamente para honr-los, mas para concili-los e captar-lhes a benevolncia; no para obedecer-lhes vontade, mas para fazer deles um instrumento til de sua prosperidade pessoal, familiar e estatal. (p.13). Cada famlia tinha seu culto particular que era, na essncia, a adorao das almas dos familiares falecidos, e devia ser prestado no interior da casa. Estes deuses eram honrados no Lararium, o santurio domstico, pelo pai da famlia, o pater familias. Ele fazia oferendas, sacrifcios e preces ao Lar familiaris, a alma do fundador da famlia; aos Manes, as almas dos ante-passados e aos Penates, que cuidavam do abastecimento da casa.

    Havia tambm cultos coletivos e pblicos: o cultos dos colegiados, que eram grupos de indivduos que se reuniam para honrar uma certa divindade, sem a interveno do Estado; o culto popular (sacra popula-ria), celebrado por todo o povo, e o culto do Estado (sacra publica ou pro populo): assim como existiam os deuses da famlia, existiam os Lares do Estado e os Penates publici. O culto oficial acontecia no Capitlio.

    Os deuses nacionais mais importantes eram Jpiter, Marte, Juno, Minerva, Jano e Vesta. As qualidades das pessoas tambm eram vistas como divindades personificadas: Paz, Vitria, Boa F, Fortuna (a mais venerada), entre outras. Os romanos ainda honravam outras divindades secundrias, a quem eles deviam se dirigir em certos momentos do dia:

    cada homem tinha seu gnio que olhava por ele, tomava parte em suas

    alegrias e tristezas; do mesmo modo, cada lugar, cada Estado, tem seu

    gnio, intimamente unido prpria existncia. O gnio acaba por assi-

    milar-se completamente pessoa em certas expresses, como genium

    curare ou indulgere genio, embriagar-se. Nos dias de festa faziam-se sa-

    crifcios ao gnio.

    (BORNECQUE; MORNET, 1976, p. 71).

  • Captulo 01Histria de Roma

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    As cerimnias religiosas eram muito frequentes. Os romanos acreditavam que se os deuses no fossem honrados e invocados da maneira correta, estes se vingariam daqueles atravs de prodgios como pedras em chamas cadas dos cus, crianas nascendo com trs pernas ou seis dedos, chuva de sangue, etc. Os romanos tambm ti-nham a crena de que os deuses forneciam sinais, os pressgios. Era possvel adivinhar o futuro atravs da compreenso desses sinais. A maioria dos pressgios era compreendida atravs dos movimentos dos pssaros, a isso se chamava tirar os auspcios.

    Quando um sinal se oferecia por si mesmo, supunha-se que os deuses

    o enviavam para avisar que no se devia continuar o rito; viam-se por

    exemplo como sinais desfavorveis uma tempestade, um tremor de ter-

    ra, um rato que atravessasse o caminho. Todos os romanos, mesmo os

    mais cultos, acreditavam nos pressgios; assim, quando lhes estava a

    peito levar um empreendimento a bom termo, davam sempre um jeito

    para nada ver nem ouvir.

    (BORNECQUE; MORNET, 1976, p. 73-74).

    Lista de alguns emprstimos e assimilaes feitas pelos gregos (co-luna da esquerda) aos romanos (coluna da direita), com alguns eptetos mais comuns: (de Brando, 2003, p. 9-10)

    Afrodite (Citeria, Cpria, Cpris) Vnus (Libitina)

    Apolo (Hlio, Febo, Lxias, Ptio, Xanto) Apolo

    Ares Marte, Mavorte

    rtemis (Hcate, Silene) Diana

    Asclpio Esculpio

    Aten (Palas) Minerva

    Crono Saturno

    Auis, pssaro, mais spicere olhar

  • Literatura Clssica Latina

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    Demter Ceres

    Dioniso (Baco) Liber (Baco)

    Ernias (Aleto, Tisfone, Megera) Frias (Aleto, Tis- fone, Megera)

    Eros Cupido

    Gia Terra

    Hades (Pluto) Dite (Pluto)

    Hebe Juventude

    Hefesto Vulcano

    Hera Juno, Lucina

    Hracles (Alcides) Hrcules (Alcides)

    Hermes (Cilnio, Trismegisto) Mercrio (Cilnio, Trismegisto)

    Hstia Vesta

    Leto Latona

    Moira Fado

    Persfone, Core Prosrpina

    Posdon Netuno

    Queres Parcas (Nona, D -cima, Morta e Cloto, Lquesis, tropos)

  • Captulo 01Histria de Roma

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    Reia Cibele, Ops

    Tnato Morte

    rano Cu

    1.2 Histria Poltica

    Roma conheceu trs importantes fases em se tratando de sistema poltico. Foram elas, na sequncia, a Monarquia, a Repblica e o Imp- rio, das quais nos ocuparemos a partir de agora.

    1.2.1 A Monarquia

    Esta foi a primeira experincia que Roma viveu como forma de fazer poltica. Certamente voc estudou esse contedo na escola, assim vamos apenas relembrar as questes mais importantes. A monarquia foi vivencia-da desde a fundao da cidade, em 753, mesmo que no comprovada his-toricamente, at o ano de 509 a.C. um perodo de que no se tem muito conhecimento, nem os prprios romanos tinham, razo pela qual as lendas falam mais alto. Uma delas muito famosa, a qual certamente voc j ouviu alguma vez, a dos irmos gmeos Rmulo e Remo, que foram amamenta-dos por uma loba. Outra, se voc no conhece, o far quando do estudo da poesia pica romana, a Eneida, ou a epopia de Eneias, o troiano.

    Apesar de possurem muita tradio em historiografia, gregos e romanos, supersticiosos como muitos povos antigos, lidavam tanto com os fatos quanto com lendas e outras imprecises, e mesmo su-persties. As Cincias antigas no devem ser entendidas do mesmo modo que as compreendemos modernamente. o que comprova o aforismo antigo Scribitur ad narrandum non ad probandum. Aristte-les, em sua Potica, deixa clara a percepo dos antigos em relao ao que era Histria e o que era fico:

    Pelas precedentes consideraes se manifesta que no ofcio de po-

    eta narrar o que aconteceu; , sim, o de representar o que poderia

    Escreve-se para narrar, no para provar.

    Rmulo e Remo

  • Literatura Clssica Latina

    18

    acontecer, quer dizer: o que possvel segundo a verossimilhana e

    a necessidade. Com efeito, no diferem o historiador e o poeta por

    escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em

    verso as obras de Herdoto, e nem por isso deixariam de ser histria,

    se fossem em verso o que era em prosa) diferem, sim, em que diz

    um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por

    isso a poesia algo de mais filosfico e mais srio do que a histria,

    pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por

    referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivduo de determi-

    nada natureza pensamentos e aes que, por liame de necessidade e

    verossimilhana, convm a tal natureza; e ao universal, assim entendi-

    do, visa a poesia, ainda que d nomes s suas personagens; particular,

    pelo contrrio, o que fez Alcibades ou o que lhe aconteceu.

    (ARISTTELES, 1984, p. 209)

    Tito Lvio, um dos principais historiadores romanos, tambm de- monstra clareza no que diz respeito ao que lenda e histria. Podemos dizer que ele um dos responsveis pela tradio de iniciar a Histria de Roma pela lenda da loba e dos gmeos, comum at os nossos dias, basta lembrar nossos livros didticos. Entretanto, ele aponta, embora no afirme categoricamente (e quem ousaria?), que a loba poderia no ter sido quadrpede, mas antes bpede, uma prostituta, como podemos ver atravs de suas prprias palavras:

    Conservou-se a tradio de que o bero onde as crianas tinham sido

    expostas comeou a flutuar, e ao baixarem as guas parou em lugar

    seco. Uma loba sedenta saiu das montanhas e atrada pelos vagidos das

    crianas dirigiu-se ao local. Ali, abaixada, oferecia as tetas s criancinhas

    e docemente as lambia quando as descobriu o pastor que as levou ao

    estbulo, entregando-as a sua mulher Larncia para criar. Outros julgam

    que Larncia era uma prostituta, uma loba, como chamavam os pasto-

    res. Teria sido esta a origem da lenda maravilhosa.

    (TITO LVIO, 1989, p. 25).

    Onde a Histria hesi-ta, a lenda continua.

  • Captulo 01Histria de Roma

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    De todo modo, s podemos contar com dados mais concretos so- bre essa parte da vida romana a partir dos dois ou trs sculos finais da era monrquica. Dos primrdios, sabe-se que os romanos eram pastores e pequenos agricultores. Os etruscos (um povo do norte da Itlia) foram uma das etnias que mais teve influncia e importncia na formao po- ltica e cultural de Roma. Dos momentos finais dessa era os dados nos dizem ser de origem etrusca os ltimos reis romanos. Eles detinham o poder poltico, judicirio e religioso, motivo de forte descontentamento de parte da classe mais elevada, os patrcios, vida por dividir o poder, quando da decadncia monrquica. Mesmo havendo uma representa- o do povo (no necessariamente popular, tendo em vista que defen- diam as elites) na figura do Senado e seus senadores (os homens mais velhos da cidade), o monarca possua o poder total e a ltima palavra. Isso levou os patrcios a praticarem um golpe de Estado, aproveitando- se de um ato criminoso no governo de Tarqunio, o Soberbo. Segundo consta, seu filho Sexto teria estuprado a mulher de um senador, gerando a revolta e o subterfgio para o desfecho da era monrquica.

    1.2.2 A Repblica

    Com a derrocada de Tarqunio e do sistema monrquico, tem incio a fase republicana, a mais decisiva da civilizao romana. A palavra rep-blica resultado da composio res, coisa e publica, relativa ao povo e ao Estado, ou seja, coisa pblica, coisa do Estado, pelo menos em palavras, na retrica. De qualquer modo, nesse perodo que, dois sculos e meio mais tarde, se dar o processo de dominao e imperialismo, os quais fa-ro de Roma a Grande Senhora. Podemos pensar que os primeiros du-zentos e cinquenta anos foram de organizao da casa, limpeza e tomada de posse. Esse perodo, porm, no deve ser entendido como algo fcil e tranquilo, antes pelo contrrio, foram tempos de muitos embates poltico--sociais, greves e manifestaes de repdio, etc. Ademais, existiram tam-bm inumerveis guerras, inicialmente de defesa, mais tarde de ataque.

    No ano de 390 a.C, Roma foi invadida pelos gauleses, com certeza os antepassados de nossos famosos personagens Asterix, Obelix e com- panhia. Invadida no, em verdade foi quase que destruda. Foi o sinal

  • Literatura Clssica Latina

    20

    de alerta e o comeo de uma ttica que previa o ataque como melhor defesa. A partir desse episdio, os romanos iniciaram as conquistas in- ternas, dentro dos limites da Itlia. A princpio, foram conquistando os vizinhos ao redor, do centro da pennsula itlica em direo ao norte e depois descendo rumo ao sul.

    Em 272, Roma toma a cidade de Tarento e passa a fazer contato direto com os gregos que habitavam a regio. Isso porque o sul italiano, de predominncia grega, mantinha relaes comerciais com os etrus- cos, ao norte, e certamente algum tipo de relao com os romanos devia acontecer tambm. As conquistas ao sul da Itlia proporcionaram aos romanos um incidente que implicou no combate contra dois importan- tes inimigos, os gregos e os fencios, que dividiam o poder martimo--comercial sobre o Mar Mediterrneo.

    Comea aqui a srie de trs guerras denominadas pnicas. Conco- mitante aos punos, os latinos lutaram juntamente com os gregos em sua ptria. As vitrias contra esses dois povos, ao final, significaram o poder absoluto de Roma sobre o Mediterrneo, sobre o Ocidente e parte do Oriente. Roma tornou-se a Senhora do mundo.

    Por se tratarem das guerras mais importantes e decisivas na rota do expansionismo romano, daremos maior destaque s mesmas.

    A primeira guerra pnica ocorreu entre os anos de 264 e 241 a.C. Os romanos tiveram que aprender a combater no mar, j que sempre ti-veram de lutar em cho firme e sempre foram ligados terra como todo povo agricultor e pastor. Para tanto, eles contaram com a tecnologia e as tcnicas dos gregos conquistados no sul da Itlia, entre elas pontes de abordagem, acopladas aos navios quando dos enfrentamentos com as naus inimigas. Ao final, Roma saiu vitoriosa da guerra. Contudo, apesar das pesadas multas e da escravizao de parte da populao, um pouco mais de duas dcadas depois, Cartago, a principal cidade fencia na po-ca, reergue-se e pe-se novamente apta a enfrentar os romanos numa segunda guerra, de 218 a 201.

    O termo pnico advm da forma como os lati-nos se referiam a este povo oriundo da sia anterior, na regio da

    Sria, os fencios.

  • Captulo 01Histria de Roma

    21

    Nessa, o grande destaque est no lado cartagins. Chama-se An-bal. considerado at os nossos dias o pai da estratgia militar, justi-ficado pelas muitas escaramuas, marcadas por movimentos e ataques rpidos, como os de uma guerrilha. Imps tamanho susto e medo aos romanos a ponto de existir uma expresso latina para conferir a ideia de medo, empregada em muitas ocasies: Anibal ad portas. Seu gran-de feito foi invadir a Itlia, visando o rumo a Roma pelo norte. Ao olhar para um mapa do Imprio Romano voc poder observar que, atravessando em linha reta o Mar Tirreno, Roma e Cartago posicio-nam-se frente a frente, de modo que a dificuldade em atacar a Urbs seria maior por conta da organizao e preparo dos sitiados, embora supostamente mais racional. Invadindo por trs, os fencios poderiam arrebanhar pelo longo caminho mais povos dispostos a lutar contra os romanos, alm de contar com mais espao para estratgias, combates etc. E assim, partindo da Espanha, Anbal avanou atravs dos Piri-neus frente de cinquenta mil infantes, nove mil cavaleiros e trinta e sete elefantes (TITO LVIO, 1989, p.25), atravessou os Pirineus junto costa mediterrnica e depois os Alpes. Os paquidermes eram usados como arma de guerra, como se fosse um tanque blindado de nossos dias. Imaginemos o horror que isso devia representar para os euro-peus interioranos, que provavelmente desconheciam o animal. Matos Peixoto (1991) faz meno ao cheiro exalado, bem como aos urros das bestas como um grande incmodo para os cavalos:

    Era quase impossvel no recuar diante da carga daqueles enormes ani-

    mais, que soltavam rudos agudos, agitando, entre seus dois dentaos,

    a tromba imensa, em forma de serpente, e atacando vigorosamente,

    apesar das setas que se eriavam em seus corpos. Os cavalos que no

    haviam sido preparados para enfrent-los no podiam suportar sua sim-

    ples presena ou seu odor forte.

    (PEIXOTO, 1991, p. 91)

    Imaginemos principalmente as enormes dificuldades em atraves- sar rios e em transpor duas cadeias de montanhas como os Pirineus e os Alpes, com nmero to grande de homens e animais, mais ainda,

    Anbal s portas (de Roma).

  • Literatura Clssica Latina

    22

    pensemos no tamanho destes e na regio de clima quente de que eram oriundos. Entretanto, o intento de Anbal no se cumpriu, novamente os romanos fizeram-se vitoriosos. Mas, de novo os cartagineses, duros de dobrar, se reergueram cinquenta e dois anos mais tarde.

    Em 149 aconteceu a terceira e ltima guerra entre romanos e fe- ncios, a mais curta de todas, durou apenas trs anos. Embalados pelo bordo Delenda est Carthago, proferido junto ao Senado por Cato, o Antigo, os romanos cumpriram risca a proposta e encerraram a cam- panha contra os fencios. Como ltimo ato, despejaram sal por sobre as terras do que havia sido a capital cartaginesa, para que mais nada brotasse daquele solo.

    Vencidas as batalhas contra os oponentes externos mais impor-tantes, restavam ento as internas. Um sculo mais tarde, quando da crise da Repblica, a falncia desse sistema poltico, em certa medi-da mais democrtico, mostrou que esse no era cabvel para gerir um mundo to extenso e diversificado como o que Roma vivia. Eram mui-tos povos e culturas a dividirem as atenes de um Estado s. Surgi-ram ento os primeiros candidatos a ditador, as primeiras tentativas de usurpar o poder. Surgiram Silas e Mrio. Faa-se a ressalva porm de que, durante a Repblica, ditador era um cargo previsto por lei. Em casos extremos de crises polticas e/ ou de tragdias naturais, as leis previam a eleio e ocupao do cargo de ditador pelo perodo de seis meses, sem qualquer possibilidade de reeleio. Contudo, nos ca-sos supracitados o sentido de ditador o mesmo que compreendemos contemporaneamente, o de tomar para si o poder.

    A Repblica, por oposio monarquia, dividiu o poder entre diferentes grupos: o Senado e as assembleias, resqucios do antigo re-gime, e mais a alta e a baixa magistratura.

    Conforme Norma Musco Mendes (1988):

    Alm dos cnsules (herdeiros dos poderes reais) e dos questores

    (acompanhantes dos cnsules nas campanhas militares que aos pou-

    Cartago deve ser destruda

  • Captulo 01Histria de Roma

    23

    cos foram se tornando magistrados encarregados da administrao

    do tesouro), a forma inicial do regime republicano repousava na so-

    brevivncia dos institutos polticos da realeza etrusca: Senado, Assem-

    blia Curiata. Por outro lado em virtude da importncia do exrcito

    desenvolveu-se o Comitatus Maximus.

    (MENDES, 1988, p. 11)

    Assim, o Senado era uma assembleia formada por homens mais ve-lhos. A prpria raiz da palavra j indicava, a mesma de senex, que significa velho. O nmero de senadores variou muito ao longo dos tempos. Tito Lvio fala no aumento para trezentos logo no processo de instaurao do novo sistema, visto que Tarqunio havia diminudo a quantidade desses em seu governo. Para o final da era republicana, na poca de Ccero eram seiscentos, tendo atingido a cifra de novecentos, posteriormente.

    As assembleias existiram divididas sob quatro grupos distintos, no tendo existido necessariamente concomitantes: comitia curiata, co-mitia tributa, comitia centuriata e contio. Conforme Harmsem (1959, p.211), Os comcios curiatos (comitia curiata) no desempenham mais papel poltico no tempo de Ccero, ou seja, ao final da era republicana. No texto de Harmsem,

    A contio (assembleia do povo) no tinha carter legislativo, mas era

    simplesmente uma reunio do povo na qual um magistrado prestava

    esclarecimentos a respeito do momento poltico ou pronunciava um

    discurso para influir a opinio pblica. Em tais reunies foram proferidas

    a 2 e 3 Catilinrias.

    Os comcios centuriatos (comitia centuriata) eram convocados para ele-

    ger os cnsules, pretores e censores. No fim da Repblica perdem sua

    influncia na legislao e nas decises sobre guerra e paz, porque nisso

    se tornam dependentes do Senado.

    (HARMSEM, 1959, p. 211)

    Segundo o vocabulrio crtico, no livro da autora (p. 78), Comitatus Maxi- mus era uma reunio do exrcito para deliberar ou receber ordens e foi con-siderado o embrio da Assemblia Centuriata.

    As Catilinrias (In Lucium Catilinam orationes IV) so um conjunto de quatro discursos pro-feridos em 63 a.C. Em tais discursos Ccero faz veemente invectiva contra Catilina, seu rival poltico, acusado de pre-tender mat-lo e de ter desejado incendiar parte de Roma. (CARDOSO, 2003, p. 155).

  • Literatura Clssica Latina

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    Os comcios tributos (comitia tributa), ao contrrio, ganharam mais influncia. Elegeram os questores, edis e tribunos, e votaram projetos de lei (HARMSEM, 1959, p. 211).

    A magistratura dividia-se em dois grupos, a alta e a baixa magistra- tura. A primeira era formada por cnsules e pretores. Aqueles eram os primeiros magistrados, os que se posicionavam no mais alto grau hierr- quico. Em nmero de dois, tinham como atribuies convocar e presidir o Senado e os comcios, apresentar projetos de lei e executar os decre-tos, recrutar e comandar exrcitos. [...] Ao sair do cargo, o cnsul era en-carregado do governo de uma provncia, com o ttulo de procnsul (pro consul) (HARMSEM, 1959, p. 209). Os pretores, em nmero de oito, substituem em tudo os cnsules na ausncia destes. Alm disso, eram os presidentes e juizes dos tribunais (quaestiones perpetuae). Saindo do car- go, tomavam o governo de uma provncia, como ttulo de propretor (pro praetore) (HARMSEM, 1959, p.209). Tito Lvio, ao tratar dos primeiros momentos da Repblica e do papel dos cnsules em tal sistema diz:

    [...] a durao do mandato consular se limitou a um ano e no porque

    se restringiu sob qualquer aspecto o poder real. Os primeiros cnsu-

    les mantiveram todos os direitos e todas as insgnias da realeza. Apenas

    procurou-se evitar que ambos os cnsules dispusessem dos fasces ao

    mesmo tempo, para no parecerem duas vezes mais temveis.

    (TITO LVIO, 1989, p.106)

    A baixa magistratura era composta por vrios magistrados: ques- tores, censores, edis, ditadores e tribunos da plebe.

    Os questores,

    [...] 20 no tempo de Ccero, eram encarregados das finanas. Uns supe-

    rentendiam o errio pblico (aerarium) e fiscalizavam as receitas e des-

    pesas do Estado; outros administravam as finanas dos exrcitos e das

    provncias. Muitas vezes eram assistentes dos generais e governadores

    em tudo que dizia respeito s coisas militares e administrativas.

    (HARMSEM, 1959, p. 211)

  • Captulo 01Histria de Roma

    25

    Os censores, como j explicita o nome, eram os responsveis pelo censo. A contagem do nmero de cidados servia no apenas para quantificar a populao, mas principalmente, para avaliar seus bens, a fim de dividi-los em classes econmico-sociais para recrut-los aos exrcitos ou ao servio pblico, como senadores, como patrocinadores de obras pblicas.

    Os edis tinham como funo cuidar das ruas, dos mercados, edi- fcios pblicos e templos, do abastecimento e preo dos alimentos, bem como dos jogos pblicos. Atribuies prprias de nossa edilidade, ou da cmara de vereadores no Brasil atual.

    O ditador, j foi dito aqui, era um magistrado extraordinrio com autoridade absoluta, e amplos poderes em casos de situaes extremas e excepcionais, catstrofes, epidemias etc.

    Quanto aos tribunos da plebe, no dicionrio de Ernesto Faria en- contramos em uma observao para tribunus que o termo significava propriamente o magistrado da tribo, estendendo-se depois a diversos magistrados, civis ou militares (FARIA, 1993, p.), o que nos reme-te obrigatoriamente aos primrdios, ao perodo de fundao da Urbs, quando a populao ainda se dividia em tribos. Como magistrados eles representavam a plebe, sendo eles prprios plebeus, mas no detinham grande poder, a no ser o de opor-se a decises de outros magistra- dos e poder vetar decretos do Senado ou das assembleias. No dizer de Harmsem, algumas vezes, este cargo degenerava em pura demagogia (HARMSEN, 1959, p. 210).

    O consulado de Jlio Csar marca o perodo de passagem e trans- formao entre os dois sistemas, o republicano e o imperial. Muitas ve-zes citado como imperador, a que podemos nos referir do ponto de vista fatual, mas no histrico, tendo em vista que o primeiro oficial-mente ser o seu sobrinho Otaviano, ou Otvio Augusto.

  • Literatura Clssica Latina

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    1.2.3 O Imprio

    A terceira e ltima fase da histria de Roma colher os frutos do expansionismo. Viver intensamente o esplendor e a crise decorrentes do amadurecimento, envelhecimento e morte de um imperialismo. O que, alis, no deve ser confundido com Imprio. Se imperialismo pode significar, segundo Antnio Houaiss, sistema de governo que preconi- za uma monarquia chefiada por imperador ou imperatriz, governo ou autoridade imperial (HOUAISS, 2001, p. 1580), por outro lado, pode ser tambm a forma de poltica ou prtica exercida por um Estado que visa prpria expanso [...] pela submisso econmica, poltica e cul- tural (Houaiss, idem). Devemos lembrar que o processo de expanso e dominao poltica, militar e cultural romana teve incio justamente na fase republicana. A palavra imprio aplicada a esse sistema polti- co em Roma deriva de imperium, o basto que os generais portavam como smbolo de poder frente s tropas. Como todos os imperadores tiveram passagem pelos exrcitos e foram comandantes, o basto, que era smbolo militar, torna-se ento smbolo do poder poltico tambm. Qualquer semelhana que as repblicas latino-americanas possam ter com tal coisa no passa de mera coincidncia, naturalmente.

    Durante o governo do primeiro imperador, Augusto, de 27 a.C a 14 d.C, igualmente reconhecido como Princeps, o primeiro cidado, Roma viver o pice de sua civilizao. Cabe lembrar que o perodo em que Cristo nasce e comea a nossa era. Otvio Augusto reco-nhecido pela garantia da chamada Pax Romana, ou pacificao das guerras civis, que tiveram vez desde a ltima metade do sculo I a.C, desde a disputa pelo poder entre Silas e Mrio, depois entre Jlio C-sar, Pompeu e Crasso. E posteriormente, no segundo triunvirato, entre Otaviano (Otvio), Marco Antnio e Lpido.

    O imperador detinha a representao mxima, tanto poltica quan- to jurdica e/ou religiosa, essa ltima sob o nome de Maximus Pontifex, a mesma denominao que os Papas recebem hoje na Igreja Catlica. O Estado e os cidados voltaram a ficar sob o mando de um nico homem, igual ao que j acontecera no perodo inaugural de Roma, a Monarquia.

    O Pontfice Mximo, ou seja, o presidente do

    Colgio dos pontfices, os sacerdotes romanos.

  • Captulo 01Histria de Roma

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    Costuma-se dividir o Imprio em dinastias. O poder era repassado seguindo a norma da hereditariedade, conforme herana poltica. O car- go era vitalcio, mas no havia necessariamente consanguinidade. Sem- pre houve inteno de, mas nem sempre foi possvel, cumprir o desejo do testamentrio. Desse modo, foram duas dinastias: a jlio-claudiana e a dos antoninos. Depois disso, a situao ficou como que incontrolvel.

    Numa ntida demonstrao da crise, em plena decadncia, em vin- te e tantos anos o trono imperial foi ocupado por vinte e tantos impera- dores. Desses todos, apenas trs morreram de causas naturais, os demais foram todos vtimas de assassinatos, golpes, insurreies e outros tipos de insubmisso. Diocleciano, que governou de 281 a 306 da nossa era, dividiu militar e administrativamente o Imprio em quatro, nomeando seus filhos como imperadores. Ao final do sculo IV, sob Honrio, foi feita uma nova diviso, o Imprio era agora dividido em dois, o do Oci- dente (capital Roma) e o do Oriente (capital Constantinopla).

    At o sculo II da nossa era, Roma ainda colheu os resultados do enriquecimento via expansionismo. A partir da comeou a fase de de- clnio. Logicamente, no devemos entender que tudo foi um mar de flo- res. Mesmo vivendo sob o auge da civilizao, a Cidade Eterna e o mun- do romano conheceram muitos dissabores. Viram alguns imperadores deixarem aflorar seus inmeros vcios e defeitos. Sofreram na prpria carne as consequncias de seus comportamentos e do poder centraliza- do nas mos de figuras um tanto quanto desequilibradas, basta lembrar Calgula, Nero, Caracala, Heliogbalo e outros. Ainda na fase urea, no pice da civilizao romana, Otvio Augusto j vislumbrava algo de de- cadente nesse ambiente. As polticas conservadoras de retorno aos anti- gos valores da sociedade romana, l nos primrdios apregoadas, propa- gadas pelas artes, pela literatura, comprovam tal fato. Valores da poca em que a velha Roma ainda estava apegada terra, simplicidade, vida do campo, das plantaes e do pastoreio.

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    1.3 A Sociedade Romana

    A pirmide social do mundo romano era formada por trs cate-gorias sociais. Na base da figura estavam os escravos, em maior nme-ro. A plebe fazia parte do segundo segmento. E no topo, os patrcios. Entre plebeus e patrcios pode-se falar ainda de um mecanismo de ajuda scio-econmica, tipicamente romano, mas no exatamente de uma classe: os clientes.

    1.3.1 Os Escravos

    Nos primrdios, os escravos eram adquiridos atravs de guerras ou de dvidas no pagas. Os maus pagadores poderiam ter que cum-prir o compromisso no assumido com muito esforo e, certamente, de for- ma indesejada. No perodo de expanso, Roma vai contar com uma enorme afluncia de escravos, obtidos nas vitrias sobre as cidades e os povos conquistados, de maneira que quase toda a mo de obra e quase todas as atividades eram exercidas por eles, des- de as exploraes de metais nas minas at servios mais especializados, como o de magist-rio, medicina, administrao. Observe a longa tradi- o escravocrata aplicada a professores e mdicos. Roma era to depen- dente desse tipo de trabalho que, sob o nosso olhar moderno, talvez se pudesse conside-r-la uma sociedade extremamente ociosa.

    Legalmente, o escravo era reconhecido como instumentum cum voce, isto , um instrumento tal qual uma p, um arado, diferindo destes por ter a propriedade da fala. Naturalmente, as condies de vida dos serviais variavam muito de acordo com o servio prestado. Mineiros, gladiado-res, trabalhadores rurais, remadores das gals, tinham uma expectativa de vida bastante curta, dada a insalubridade do trabalho e da vida. Apuleio, em seu romance O asno de ouro, descreve em parte as condies do traba-lho e dos escravos num moinho a fabricar farinha. bela e assustadora a relao que o autor faz neste momento entre as duas situaes. Transfor-mado em asno e a servio desse mesmo moinho, mas ainda com consci-ncia humana, o animal ao final do dia retirado do local para descansar, ao passo que os homens continuam em sua dura faina.

  • Captulo 01Histria de Roma

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    Transcorrera a parte maior do dia, e eu estava deveras fatigado, quando

    me levantaram uma parte dos tirantes de fibra, e, livre da manivela

    qual estivera ligado, puseram-me na manjedoura. Meu cansao era ex-

    tremo; sentia uma imperiosa necessidade de refazer as foras e estava

    perdido de fome. No obstante, minha curiosidade natural me mantinha

    fascinado, com o esprito alerta. Negligenciando o alimento que estava

    diante de mim em abundncia, observava com deleite a disciplina a que

    se submetia essa oficina indesejvel. Bons deuses! Quantos cativos com

    a epiderme toda zebrada pelas marcas lvidas do chicote, e cujas ma-

    chucaduras de pancada estavam mais escondidas que protegidas por

    uns trapos remendados! Alguns levavam uma faixa exgua, que no lhes

    cobria seno o pbis, e todos vestiam s farrapos, entre os quais nada

    deles ficava desconhecido. Tinham as frontes marcadas de letras, os ca-

    belos raspados de uma banda, os ps carregados de anis, terrosa a tez,

    as plpebras queimadas pelo tenebroso ardor de uma espessa fumaa,

    a ponto de mal enxergarem. E, tal como os pugilistas que se empoam

    para combater, por todo o seu corpo se espalhava a brancura encardida

    da poeira de farinha.

    (APULEIO, [s.d.], p. 143-144)

    Por outro lado, empregados domsticos, mdicos, professores, ad- ministradores, excetuando-se a privao de liberdade e de direitos, no sofriam pelo excesso de esforo fsico e escassez de alimento. Entretan- to, no estavam livres dos espancamentos e maus tratos, nem mesmo da morte decorrente destes, como nos informa o verso de Juvenal, na Stira I: Morrer deixando ao frio o nu escravo! (JUVENAL, 1945, p. 10). O que motivava muitas revoltas. A mais famosa delas, a de Spartacus.

    1.3.2 Os Patrcios e os Plebeus

    Segundo Norma Musco Mendes estes dois estamentos, patrcios e plebeus, no existiam antes da era republicana, uma vez que na poca monrquica, mesmo com as diferenas sociais que j havia, todos esta- vam submetidos ao poder real. No perodo republicano que eles iriam se mostrar com mais clareza. Conforme a autora,

    Esprtaco era um gla-diador que liderou uma revolta entre 73 e 71 a.C. Seu exrcito rebelde contava com homens, entre gladiadores e escravos, revoltados com os maus tratos que re-cebiam de seus patres. Foi derrotado por Crasso, embora Pompeu tenha atribudo a vitria a si. H verses sobre a revolta de Esprtaco para a tele-viso e para o cinema.

  • Literatura Clssica Latina

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    Patricii significava filhos e descendentes do Patres (senadores) e o

    nome Plebs apareceu no vocabulrio para designar uma realidade

    coletiva indiferenciada: se englobasse a totalidade das famlias estran-

    geiras, a linhagem patrcia seria, possivelmente, mais objeto de quan-

    tificao do que de qualificao. O carter patrcio estava restrito aos

    descendentes de senadores (gentes maiores) que herdaram certos

    privilgios religiosos especiais.

    (MENDES, 1988, p. 13).

    1.3.3 Os clientes

    Clientes eram todos aqueles que ficavam sob a proteo econmi- ca e poltica do patronus, eram como que vassalos, aliados. Recebiam ajuda financeira de quem estivesse em melhor situao, em espcie ou em produtos, ou ainda em troca de favores, normalmente polticos. No perodo imperial, o nico cidado livre de tal subservincia era o impe- rador, o patronus, o protetor primeiro e maior. O prestgio poltico de uma pessoa era aferido muitas vezes pela fila de clientes em frente a sua casa. Assim nos mostra Horcio na ode 1 do livro III:

    Feliz somente aquele que domina as suas paixes

    e se contenta com o suficiente para a vida:

    Acontece neste mundo

    que um disponha as suas plantaes

    em terrenos mais extensos do que seu vizinho.

    [...]

    Acontece que um

    dispute as eleies

    com outro menos virtuoso e com menos fama.

    Acontece que um

    concorra com nmero maior de clientes

    do que outro [...]

    (HORCIO, 1997, p. 63-64)

  • Captulo 01Histria de Roma

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    Desse costume nada positivo restou-nos uma herana e uma prti-ca muito comum e desagradvel em nossa cultura latina, no Brasil prin- cipalmente: o clientelismo.

    Ao longo de toda a extensa histria de Roma no houve quase mui- ta possibilidade de ascenso scio-econmica. O abismo entre ricos e po-bres se manteve sempre, tal como se mantm at os nossos dias, apesar das muitas lutas e revoltas dos despossudos romanos e de outras naes. Entre tantas, notabilizaram-se naqueles tempos: 1) a greve feita sobre o monte Capitlio, a retirada dos plebeus da cidade, para que obtivessem direitos e melhor considerao; 2) a exigncia pelo direito de casamento entre plebeus e patrcios; 3) as leis estabelecidas por escrito. O resultado de tais manifestaes foi a criao da famosa Lei das 12 Tbuas, das quais voc j deve ter ouvido falar. No se poderia deixar de citar tambm os embates e as mortes dos irmos Graco, por consequncia, contra os lati-fundirios e a favor da reforma agrria.

    Quando na fase expansionista romana, surgiu certa possibilidade de elevao social atravs do enriquecimento com o comrcio e com os negcios, tipos de atividades consideradas esprias pelos nobres. Ir-rompeu nesse cenrio a figura dos chamados novos ricos, hoje reco- nhecidos como emergentes sociais, a denominada ordem equestre. Nas palavras de Rostovtzeff,

    A guerra criou tambm uma nova classe de cidados ricos que no

    pertenciam classe dos senadores. J falei dos fornecedores do

    exrcito, comissrios e vivandeiros. Esse tipo de negcio, imprprio

    a um senador e contrrio s tradies da aristocracia, no era apro-

    vado pelo Estado, que graas a uma lei claudiana aprovada em 220

    a.C. acabou proibindo aos senadores se dedicarem ao comrcio ou

    fazerem contratos com o Estado. Este, medida que enriquecia, tinha

    necessidade cada vez maior de pessoas experimentadas em negcios.

    Aps as guerras pnicas e orientais, Roma acumulara uma quantidade

    imensa de bens de raiz florestas, minas, pedreiras, direito de pesca,

    salinas, pastagens. Essas propriedades precisavam ser usadas, e o ni-

    co mtodo de conserv-las em atividade era transferi-las a terceiros,

    Veja em: http://www. dhnet.org.br/direitos/ anthist/12tab.htm

  • Literatura Clssica Latina

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    por contrato ou arrendamento. A Cidade-Estado, com seu sistema de

    magistraturas anuais, no tinha meios para desenvolver os recursos

    existentes nesses bens imveis, a no ser indiretamente. Portanto, os

    arrendamentos e contratos foram parar naturalmente nas mos de

    homens que no pertenciam classe senatorial e que, tendo sido le-

    vados aos negcios pelas necessidades da guerra, obtiveram com eles

    algum capital. Trabalhavam separadamente ou em grupos, formando

    sociedades e companhias para explorar em comum os vrios tipos de

    propriedade do governo. Como sua riqueza particular os qualificava

    para o servio militar na cavalaria, eles passaram, gradualmente,

    mesma classe do corpo de cidados que atendia, a cavalo, o chamado

    s armas - em outras palavras, aos qites, que haviam formado no

    passado as primeiras dezoito centrias da primeira classe.

    (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 89-90).

    Alguns escravos tambm tinham chance de enriquecer, caso lidas- sem com o dinheiro de seus amos, como os administradores, ou caso tivessem a sorte de ser beneficiados por herana e ao mesmo tempo pela manu missio, espcie de alforria. Um famoso personagem de Petrnio no romance Satyricon, Trimalquio, ilustra o caso. Afora esses casos, quem nascia pobre dificilmente deixava de morrer pobre.

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    2 Cultura de Roma

    2.1 A Cultura que No Morre(u)

    Se o imperialismo poltico da Roma Ocidental comeou a enfra-quecer a partir do segundo sculo da nossa era e, mais drasticamente, entre os povos dominados a partir do sculo quarto, o mesmo no se pode dizer do imperialismo cultural. Passados quase mil e quinhen-tos anos, este continua a vigorar e no parece dar demonstraes de esmorecimento ou de um fim vista. Antes pelo contrrio, parece manter-se firme, com um grande flego e capacidade de manter-se por muitos sculos ainda, razo pela qual nos faz estar hic et nunc, no Brasil e em vrias outras naes bastante distintas como a Finlndia e a China, em pleno sculo vinte e um, estudando o latim e o mundo do qual essa lngua se originou.

    Por imperialismo cultural entendemos as inmeras heranas dei-xadas pelos romanos para os povos que habitaram a regio abrangida pelo Antigo Imprio, nos planos artstico, lingustico, literrio, e na maneira de ser de vrios povos do chamado Ocidente, sobretudo os denominados latinos. Na verdade, mesmo aps o fim de uma vida po-ltica, esse imperialismo continuou a expandir-se indiretamente via cristianismo, por intermdio das lnguas modernas e por intermdio da expanso martima durante as grandes navegaes, a ponto de al-canar as Amricas, que no eram conhecidas nem imaginadas na poca, e o Oriente mais longnquo, como Macau, local e regio em que os romanos no chegaram.

    2.1.1 A cultura Romana nas Artes

    Entre as principais artes que a cultura romana influenciou com desdobramentos mais evidentes, poderamos destacar a arquitetura, o urbanismo, as artes plsticas e, por ltimo e primordialmente, no que nos diz respeito, a literatura. Nesses trs ramos, assim como em muitos outros, os romanos no foram os precursores, nem inventores, antes se-

    Segundo Pppelmann, Esta expresso significa aqui e agora ou imedia-tamente; foi consagrada pelo filsofo italiano Pie-tro Pomponazzi em sua obra Tractatus de immor-talitate animae (Tratado sobre a imortalidade da alma). De fato, Pompona-zzi chegou concluso de que no existe alma imortal e, portanto, so-brevivncia na vida aps a morte. Desse modo, a determinao do homem no est em preparar-se para uma vida melhor aps a morte, mas sim hic et nunc, portanto, nesta vida e logo, visan-do a uma ordem social moral. (PPPELMANN, 2010, p. 60).

  • Literatura Clssica Latina

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    guidores e, principalmente, disseminadores, que fizeram sua leitura e contriburam para o seu enriquecimento e aprimoramento.

    Na arquitetura, o estilo romano, que por vezes deve ser entendido como greco-romano, pode ser visto em arcos, empregados na constru-o de pontes e aquedutos; em colunas e capitis, visveis em prdios em geral, templos, foros, teatros; em gradis para proteo dos usurios em espaos areos, como sacadas, beiradas de pontes e de andares etc. Elementos estes muito empregados ainda hoje em muitos estilos arqui-tetnicos de diferentes pocas e lugares.

    Em matria de urbanismo, os romanos nos deixaram inmeros modelos de estilo e funcionalidade. Por onde o Imprio se estendeu, em todas as cidades romanas l estava estabelecida uma estrutura bsi-ca urbana que marcava o seu modus uiuendi (a sua maneira de viver), ou como costumamos brincar, em aluso ao American way of life dos ianques, o seu Romanus modus uiuendi. Um complexo sistema que era composto por foros (verso antiga para os nossos contemporneos sho-pping centers), termas, teatros, estdios, aquedutos etc.

    Cabe dizer que os romanos foram responsveis pela fundao de vrias cidades pela Europa e pelo mundo de ento. Algumas nasceram de sua preocupao com os banhos pblicos e da propriedade e vocao termal local, entre elas podemos citar Bath (que significa banho em in-gls) na Inglaterra, Baden (significa banho em alemo) e Baden-Baden, ambas na Alemanha. Outras surgiram a partir de acampamentos roma-nos, que, alis, j eram montados e estruturados em forma de quadrado, entrecruzados por quatro entradas, cada qual com uma viela, assim se encontravam e se cruzavam ao centro desta, lanando as bases para uma cidade. Dentre as cidades podemos enumerar algumas inglesas, como Londres e muitas outras: Winchester, Manchester, Lancaster, Glocester etc. Nas artes plsticas a estaturia e os afrescos em matria de pintura serviram de paradigmas para as artes posteriores.

    -caster, -chester, -cester so variantes de castra,

    que significa acampa-mento em latim.

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    2.1.2 A Cultura Romana dos/nos Povos Latinos

    Uma forte marca da permanncia romana no Ocidente est, sem sombra de dvida, na chamada cultura latina, presente nos povos as- sim reconhecidos: italianos, portugueses, espanhis, franceses e outros. Manifesta, sobretudo, na emotividade e na to cantada em verso e prosa sensualidade. Alguns se referem ao machismo, mas quanto a isso, per-guntamos: diz respeito apenas aos latinos? Manifesta tambm no humor, no riso, no sarcasmo. Os romanos, por exemplo, costumavam designar as pessoas pelos seus atributos fsicos, surgindo assim alguns nomes co-muns at os nossos dias, bonitos, sonoros, mas que em sua origem no passavam de pilhria. O nome do famoso escritor Ccero, por exemplo, passou a existir por conta de um antepassado seu que tinha uma berru-ga no nariz no formato de um gro-de-bico ( o que significa a palavra cicer em latim), foi o que bastou para que toda a famlia recebesse tal herana. Segundo consta, o imperador Cludio, que sucedeu Calgula, era manco. Claudius, em latim, significa coxo, de onde o nosso verbo claudicar. Tibrio, da mesma forma, no escapou do humor romano, o povo o chamava pejorativamente de Bibrio, uma aluso ntida ao ato de beber. Isso no parece coisa de brasileiro?

    2.1.3 O Latim e suas Influncias Diretas e Indiretas

    No plano lingustico, as grandes contribuies dos romanos foram certamente as muitas lnguas neolatinas: o portugus, o espanhol, o francs, o italiano, o catalo, o romeno, e outros idiomas considerados por vezes como dialetos: o occitano, o sardo, o provenal...

    Para alm dessas lnguas, o latim influenciou ainda outras, oriun-das de outros grupos lingusticos, como o ingls, o alemo, o polons e o russo. Para se ter ideia, o ingls possui em seu lxico um universo de 50 a 60 por cento de palavras de origem latina. Por isso que muitas vezes no se faz difcil ler textos cientficos na lngua de Shakespeare. O polo-ns e o russo, tanto quanto palavras latinas, oferecem ainda um sistema lingustico nominal baseado em declinaes, tal como acontecia com o idioma do nosso j famoso Ccero.

  • Literatura Clssica Latina

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    Afora isso, o latim, antes uma lngua tosca em relao ao grego no auge do Imprio Romano, tornou-se mais tarde, j com a existncia das lnguas nacionais modernas, uma lngua de comunicao, internacio-nal, portanto. Tornou-se padro de excelncia, a lngua das cincias, por isso hoje a Cincia e as novas tecnologias se utilizam constantemente da lngua latina como fonte de inspirao e de sugesto de termos. Bas-ta lembrarmos a tabela peridica dos elementos qumicos e os nomes cientficos em latim empregados pela Biologia. possvel se falar da pre-sena do latim na matemtica, na geografia, na fsica etc. A cada revo-luo artstica, cientfica e tecnolgica, no latim (e no grego tambm) que se buscam as palavras com que nomear a nova terminologia. Recor-demos o Renascimento, o classicismo nas artes em geral, o arcadismo, o parnasianismo. Observemos a informtica, a resgatar a origem latina que muitos pensam ser do idioma breto: data, delete...

    Por fim, no poderamos esquecer de que o latim a lngua oficial do Vaticano, da Igreja Catlica Apostlica Romana. So bastante conhe-cidas as expresses latinas: habemus papam, sede vacante...

    2.1.4 A Literatura Latina lato sensu

    Por literatura latina lato sensu referimo-nos ao conjunto de obras escritas em latim, mas que no pertencem ao gnero ficcional. Dentre esse grupo destacaramos o Direito Romano, a filosofia, a historiografia e outros. Literatura esta que ilustra de certa forma o carter eminente- mente pragmtico dos romanos, por oposio ao esprito especulativo, inquiridor dos gregos.

    O Direito Romano

    certamente uma das maiores contribuies dos romanos para o Ocidente. Juntamente com a stira, foi semente autenticamente plan-tada, cultivada e nascida em solo romano. Foi a base da jurisprudncia de muitas naes europias, americanas e mundiais. Como diz Mario Curtis Giordani, O Direito Romano uma criao tpica do gnio ro- mano. Representa, acentua Marrou, o aparecimento de uma forma nova

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    de cultura, de um tipo de esprito que o mundo grego de nenhum modo havia pressentido. (GIORDANI, 1976, p. 254). E, citando Von Ihering, Giordani acrescenta:

    A importncia do Direito Romano para o mundo atual no consiste s

    em ter sido, por um momento, a fonte ou origem do direito: esse valor

    foi s passageiro. Sua autoridade reside na profunda revoluo interna,

    na transformao completa que causou em todo nosso pensamento

    jurdico, e em ter chegado a ser, como o Cristianismo, um elemento da

    Civilizao Moderna.

    (VON IHERING, 1968, p. 8, apud GIORDANI, 1976, p. 254)

    A Filosofia

    Os romanos no foram de modo algum superiores aos gregos neste quesito. Possuem alguns autores famosos, mas que devem isso mais fora de seus textos do que a alguma inovao ou revoluo na histria das ideias.

    Contudo, no podemos deixar de mencionar duas escolas filosficas gregas que tiveram grande influncia em Roma e, no que nos interessam, na literatura latina. Estamos falando do epicurismo e do estoicismo. Para melhor compreender essas duas escolas e de que maneira influenciaram a literatura dos romanos, convm entender um pouco sobre a Filosofia Antiga, aquilo que antecedeu o epicurismo e o estoicismo.

    Estudar a Filosofia Antiga hoje importante porque, segundo Hirs-chberger, ela nos fornece o patrimnio espiritual do qual ainda vive o pensamento ocidental (HIRSCHBERGER, 1969, p. 25). Os conceitos essenciais do nosso atual pensamento cientfico, em geral, so oriundos do pensamento antigo, assim como as disciplinas filosficas e os tipos de pensamento filosfico.

    Compreende-se que a Filosofia Antiga estende-se mais ou menos do VI sculo a.C. at o VI sculo d.C. Didaticamente, podemos dividi-la em quatro perodos, conforme Hirschberger (1969, p.26):

  • Literatura Clssica Latina

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    1) Filosofia Pr-Socrtica: perodo anterior a Scrates. Desenvol-ve-se, principalmente, nas colnias gregas, na Jnia, na Itlia Meridional e na Siclia. Durante este perodo o interesse se concentra na filosofia natural. Os pr-socrticos so relevantes para o pensamento filosfico de hoje principalmente em virtu-de dos originais problemas que suscitam e da sua posio on-tolgica em geral. At relativamente pouco tempo atrs eram tidos apenas como os filsofos da natureza, mas hoje se en-tende que eles enxergaram muito mais longe: quando falavam de natureza, pensavam tambm no esprito, e no ser em geral. Eram, portanto, mais metafsicos do que fsicos. A origem da filosofia grega foi a Jnia, nas cidades de Mileto, feso, Cla-zomenas, Colofnia, Samos, onde se encontram a maior parte dos pr-socrticos. Por conta disso a Filosofia pr-socrtica tambm conhecida por Filosofia jnica. O pai da Filosofia Tales de Mileto (ca. 624-546 a.C.).

    2) Filosofia tica: a filosofia da Grcia, a Filosofia eterna. S-crates, Plato e Aristteles so os principais autores. Eles conduzem a Filosofia grega ao seu mximo expoente e criam uma obra da qual ainda hoje vivemos. Discute-se, em igual-dade, o ciclo completo dos problemas filosficos: a natureza, a moralidade, o Estado, o esprito e a alma. um perodo de esplendor poltico que vai at Alexandre Magno, cujo precep-tor foi o filsofo Aristteles.

    3) Filosofia do Helenismo: compreende o perodo que vai de Ale-xandre Magno at a dissoluo do Estado dos seus sucessores, aproximadamente de 300 a 40 a.C. a poca das grandes escolas filosficas: Estoicismo, Epicurismo, Ceticismo, Cinismo. Aqui, consolida-se um processo histrico espiritual, cujo resultado ainda importante para o nosso pensamento moderno sobre a Filosofia: a evoluo da Filosofia como uma cincia especial. No perodo pr-socrtico, o filsofo era tudo: cientista, mdico, tcnico, poltico e sbio. No perodo helenstico as cincias par-ticulares se separam em disciplinas independentes, com centros

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    prprios de investigao, onde essas cincias so cultivadas, por exemplo: Alexandria, Antioquia, Prgamo, Rodes. O objeto da Filosofia continua sendo as grandes questes que Plato e Aris-tteles tinham indicado como propriamente filosficas: a lgica, a tica e a metafsica. Assim, essas questes so aprofundadas, ocupa-se a Filosofia com o homem como tal e, nesse perodo to incerto, tempestuoso pelas guerras, busca ela a salvao e a felicidade no homem interior, o que j no podia ser buscado nas relaes externas... Por isso prevalece nessa poca a discusso so-bre o papel da tica, que, ao mesmo tempo, acaba por exercer a funo desempenhada antigamente pelo mito religioso, que se extingue aos poucos, dando lugar ao pensamento racional.

    4) Filosofia da Roma Imperial: compreende a metade do sculo I a.C. at 529 d.C., quando Justiniano fecha a Academia platni-ca em Atenas. No pode ser considerada uma poca criadora, mas um perodo em que se vive das aquisies do que j existiu.

    O estoicismo e o epicurismo, portanto, surgem no perodo hele-nstico, momento de decadncia da filosofia e do mundo grego antigo, quando Alexandre Magno, morre, um pouco antes da ascenso do im-prio romano. Segundo Joo da Penha,

    Destrudo o imprio grego, a filosofia reflete essa decadncia. Cessara a

    preocupao em fornecer uma teoria racional do mundo. Os diversos sis-

    temas filosficos ento vigentes pouco se preocupavam em conceituar

    um mundo ideal, inclinados que estavam, num perodo social e politica-

    mente conturbado, em apontar, para o individuo, um meio de escapar

    s desordens externas atravs da tranqilidade interior. Contrariamente

    tradio helnica, firmada na elaborao de grandiosas construes es-

    peculativas, sendo Plato e Aristteles exemplos supremos, os filsofos da

    poca da decadncia renunciaram a estudar a natureza e a vida social. Sua

    reflexo de cunho estritamente moral o problema tico assume o cen-

    tro da especulao filosfica. A preocupao se desloca para a conduta

    pessoal do homem; o interesse se desvia para a vida prtica.

    (PENHA, 1998, p. 42)

    A Academia de Plato (tambm chamada de Academia Platnica, Academia de Atenas ou Academia Antiga) foi fun-dada por Plato, aproxi-madamente em 387 a.C., nos jardins localizados no subrbio de Atenas, con-sagrados deusa Atena. considerada a primeira escola de filosofia. Nela ingressou Aristteles, com 17 anos de idade. Mulheres eram admiti-das na Academia, mas precisavam usar roupas de homens. A Academia de Plato s foi fechada em 529, por imposio do imperador romano, Justiniano.

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    A tranquilidade interior, assim como outros aspectos, um dos pontos comuns entre as duas escolas, que apesar disso se mostram e se colocam de forma antagnica. Principalmente pela forma de obter a tranquilidade da alma, a felicidade. Os epicuristas a buscavam na ataraxia, enquanto os esticos procuravam atingir a felicidade atravs da apatia, porque, conforme Zeno, fundador dessa escola, o homem deve seguir a natureza e viver de acordo com a razo. Esta se ope s paixes que advm da regio inferior do homem e so uma doena da alma, das paixes advm o erro. De modo que impe-se, portanto, elimin-las, logrando, assim, atingir a impassibilidade absoluta: a apa-tia. O ideal da vida a virtude, e essa s se alcana cultivando-se os bons hbitos morais (PENHA, 1998, p. 45).

    O epicurismo deve o seu nome a Epicuro. Segundo Russel (1967), o pai de Epicuro era um pobre ateniense, colono em Samos. Epicuro, que sempre teve uma sade frgil, nasceu em 342-1 a.C. e aos quatorze anos comeou seus estudos de filosofia. No ano 311 fundou sua escola que ficava no jardim da sua prpria casa, e era nele que ensinava os preceitos de sua escola filosfica. Tinha como adeptos estudantes de filosofia, amigos e at escravos. A vida da sua comunidade era simples, em parte por princpio e em parte por falta de dinheiro; seu sustento vinha principalmente de doaes. Sua alimentao consistia basica-mente de po e gua. Como um homem gentil e amvel com a maio-ria das pessoas, mas bastante rigoroso em relao aos seus princpios. Seus adeptos tinham de aprender uma espcie de credo que encerrava suas doutrinas, sobre as quais ele no admitia dvidas. At o fim, ne-nhum dos seus adeptos ou sucessores acrescentou ou modificou coisa alguma. De seus escritos nada resta, exceto umas poucas cartas, alguns fragmentos e uma exposio das Doutrinas principais.

    Epicuro estabeleceu o prazer como ideal a ser buscado, mas no o prazer como satisfao fsica, corporal, antes o da alma. O prazer de rea-lizar boas aes, de aprimorar as virtudes e o esprito. o que ele prprio expressa em uma de suas cartas, intitulada Carta sobre a felicidade:

    Consiste na liberao da alma de todas as

    perturbaes e o corpo de todo sofrimento, em curar a alma dos males que lhe roubam a tran-qilidade, quais sejam, o temor da morte, dos

    deuses e do destino. (PENHA, 1998, p. 44)

    Filsofo grego que vi-veu entre 341 e 270 a.C.

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    Quando ento dizemos que o fim ltimo o prazer, no nos referimos

    aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos

    sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensa-

    mento, ou no concordam com ele, ou o interpretam erroneamente,

    mas ao prazer que ausncia de sofrimentos fsicos e de perturbaes

    da alma. No so, pois, bebidas nem banquetes contnuos, nem a pos-

    se de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras igua-

    rias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame

    cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeio

    e que remova as opinies falsas em virtude das quais uma imensa per-

    turbao toma conta dos espritos. De todas essas coisas, a prudncia

    o princpio e o supremo bem, razo pela qual ela mais preciosa do

    que a prpria filosofia; dela que originaram todas as demais virtudes;

    ela que nos ensina que no existe vida feliz sem prudncia, beleza

    e justia, e que no existe prudncia, beleza e justia sem felicidade.

    Porque as virtudes esto intimamente ligadas felicidade, e a felicida-

    de inseparvel delas.

    (EPICURO, 1973, p. 43-46)

    Para Russel (1967), como se Epicuro desejasse, se possvel, estar sempre num estado de quem comeu moderadamente, e nunca no de quem sente o desejo incontrolvel de comer. Um homem que desejas-se todo o tempo riquezas e honrarias estaria sempre inquieto, quando poderia estar contente, se estivesse tranquilo. Para Epicuro o maior de todos os bens a prudncia: uma coisa ainda mais preciosa do que a filosofia (RUSSEL, 1967, p. 279).

    O isolamento e o afastamento da vida pblica acabavam sendo con-sequncias naturais dos ensinamentos epicuristas, pois, medida que um homem alcana o poder, aumenta o nmero daqueles que o invejam e que desejam, por isso, fazer-lhe mal. Mesmo que das adversidades exteriores, a paz de esprito impossvel em tal situao. Assim, o homem sensato procurar viver sem chamar a ateno dos outros, evitando, dessa forma, fazer inimigos. De certa maneira, era uma filosofia de valetudinrio, des-tinada a adaptar-se um mundo no qual a problemtica da felicidade se

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    tornara quase impossvel. (RUSSEL, 1967, p. 280). O epicurista deveria comer pouco, se teme a indigesto; beber pouco, se teme a ressaca; evitar a poltica, o amor e todas as atividades muito passionais. Nas palavras de Russel: A dor fsica , certamente, um grande mal, mas, se severa, breve e, se prolongada, pode ser suportada mediante disciplina mental e o hbi-to de se pensar, apesar de tudo, em coisas felizes. Acima de tudo, viver-se de modo a evitar o medo. (1967, p. 280). Por fim, Epicuro afirmava que a morte no nada para ns, pois o que dissolvido no se sente, e aquilo que no se sente no nada para ns. Segundo seus preceitos, os deuses existem, mas no se preocupam com as questes humanas. Portanto no h fundamento algum em sofrer por ter medo do castigo dos deuses.

    No geral, foi mal compreendido, mesmo em seu tempo, como se pode ver, e por conta disso, ele e a escola ganharam fama, at hoje, de pervertidos. Em Roma, teve como principal defensor Lucrcio que num belo poema, De rerum natura (Da natureza das coisas) homenageou seu principal responsvel e divulgou sua doutrina em lngua latina.

    Embora o Estoicismo seja contemporneo ao Epicurismo, o pri-meiro teve uma histria mais longa e menos constncia em suas doutri-nas. Os ensinamentos de Zeno, seu fundador, em princpios do sculo III a.C., no foram idnticos aos de Marco Aurlio na segunda metade do sculo II a.C. Ao contrrio do que aconteceu com o Epicurismo, cada sucessor de Zeno modificava a sua maneira a doutrina estoica.

    Zeno era um fencio nascido em Ctio, no Chipre. Sua famlia pro-vavelmente se dedicava ao comrcio, e por conta de assuntos comer-ciais, eles foram, pela primeira vez, a Atenas. L Zeno sentiu-se ansioso por estudar filosofia. Assim como aconteceu com as obras de Epicuro, poucos escritos de Zeno chegaram at ns.

    O estoicismo recebeu este nome do lugar onde eram feitas as aulas e pregaes da doutrina, o stoa, prtico em grego. Sobre a doutrina, De Crescenzo diz:

    Para compreender bem o estoicismo, necessrio confront-lo cons-

    tantemente com o epicurismo, quase como se uma das doutrinas exis-

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    tisse por oposio outra. O mais interessante que ambas as escolas

    se propunham alcanar os mesmos resultados, ou seja, viver com sa-

    bedoria. A nica diferena que, para os epicuristas, essa sabedoria se

    identificava com o prazer e, para os esticos, com o dever. Nada mais.

    Diga-se, porm, e desde j, o seguinte: enquanto os ensinamentos de

    Epicuro permanecem quase inalterados durante os sculos, os dos es-

    ticos mudaram tanto que difcil comparar os primeiros esticos, os do

    sculo III a.C., com os ltimos, os esticos romanos dos sculos I e II d.C.

    (CRESCENZO, 1988, p. 142)

    Os estoicos dividiam a filosofia em lgica, fsica e tica, e sua gran-de preocupao era com a ltima. Negava e sugeria negar-se tudo o que propiciasse prazer, preocupao ou dor, a fim de que no trouxesse so-frimento mais tarde, propondo acima de tudo a apatia. Nas palavras de Sneca, o homem feliz aquele que desconhece outro bem ou outro mal seno uma virtuosa ou perversa vontade, cultivador da honestidade e satisfeito em ser virtuoso, que no se abate nem se exalta com os rumos de seu fado e que no conhece bem maior do que o bem que consegue alcanar por si e que, por fim, tem como verdadeiro prazer o desdm dos prazeres (SNECA, 1991, p. 28).

    Russel (1967) explica outros preceitos do estoicismo e sobre a rela-o dos homens com a natureza:

    Deus no est separado do mundo. Ele a alma do mundo, e h em

    cada um de ns uma parte do Fogo Divino. Todas as coisas so par-

    te de um nico sistema, que chamado Natureza; a vida individual

    boa quando est em harmonia com a Natureza. Em certo sentido, toda

    vida est em harmonia com a Natureza, j que foram as leis desta ltima

    que a causaram; mas, em outro sentido, a vida humana somente est

    em harmonia com a Natureza quando a vontade individual dirigida

    a algum fim que est entre os da Natureza. A virtude consiste em uma

    vontade que est de acordo com a Natureza.

    (RUSSEL, 1967, p. 290).

  • Literatura Clssica Latina

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    Para os estoicos todos os homens so livres, contanto que se liber-tem dos desejos mundanos. somente por conta dos juzos falsos que esses desejos prevalecem; o sbio, cujos juzos so verdadeiros, dono de seu destino em tudo aquilo que para ele tem valor, j que nenhuma fora exterior pode priv-lo da virtude. Russel entende que existe uma certa frieza implcita na concepo estica de virtude (1967, p. 291): o sbio no sente simpatia quando sua esposa ou seus filhos morrem, pensa que esse acontecimento no constitui obstculo prpria virtude e, por isso, no sofre profundamente. Em resumo, o estico no virtuoso a fim de fazer o bem, mas faz o bem a fim de ser virtuoso. (RUSSEL, 1967, p. 291).

    Dentre os nomes que podemos destacar na filosofia romana esto: Ccero, Sneca, Marco Aurlio, Epicteto. Podemos lembrar outros no-mes que tiveram incurses pelo pensamento filosfico, mas cremos que no possamos denomin-los filsofos com propriedade.

    Marco Tlio Ccero (Marcus Tullius Ccero, 106 43 a.C. Prin-cipais obras: De finibus bonorum et malorum (Sobre as defini-es do bem e do mal), Tusculanae disputationes (Discusses em Tsculo), De officiis (Sobre os deveres), De senectute (Sobre a velhice), De amicitia (Sobre a amizade), De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses), De diuinatione (Sobre a adivi-nhao), De fato (Sobre o destino). Segundo Zlia de Almeida Cardoso, Ccero teve uma formao ecltica, que se reflete em suas obras. Embora se revelasse hostil ao epicurismo, aprovei-tou-se da preceituao da doutrina estica e do neo-academi-cismo, sem chegar, no entanto, a delinear claramente uma po-sio filosfica (CARDOSO, 2003, p. 171).

    Lcio Eneu Sneca, (Lucius Annaeus Sneca, 4 a.C.? 65 d.C.), nasceu em Crdova, na Hispnia (hoje Espanha). Principais obras: De ira (Sobre a ira), As Consolatrias: Ad Marciam con-solatio (Consolao a Mrcia), Ad matrem Heluiam (Consola-o a Hlvia), Ad Polybium (Consolao a Polbio), De clemen-tia (Sobre a clemncia), De breuitate uitae (Sobre a brevidade da vida), De constantia sapientis (Sobre a constncia do sbio),

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    De uita beata (Sobre a vida feliz), De tranquilitate animi (Sobre a tranqilidade do esprito), De prouidentia (Sobre a providn-cia), Quaestiones naturales (Questes naturais), Ad Lucilium epistolae (Cartas a Luclio). Para Jacques Gaillard,

    surpreendente que uma exigncia de virtude to rigorosa como a pre-

    conizada pela filosofia estoica pudesse tentar um homem como Sneca

    que, afinal de contas, antes e depois de seu exlio, havia se moldado sem

    problemas conduta dos bons servidores do Imprio. Por acaso o es-

    petculo dos vcios estimula a virtude? Somos obrigados a pensar assim

    aps examinar a obra filosfica de Sneca. Nela se limita a denunciar as

    desgraas dos tempos (aos quais s vezes ele tambm havia contribu-

    do) e os excessos de que fora testemunha. Esta estranha tenso com-

    preende-se melhor se sabemos entender, atravs da obra do filsofo,

    as inquietaes de um pensamento um pouco errante, fascinado pelo

    espetculo do mal, mas tambm pelo sonho da sabedoria.

    (GAILLARD, 1992, p. 91-92)

    Marcus Aurelius (121 - 180 d.C.) Governou o mundo romano de 161 at o ano de sua morte, por isso chamado imperador-filso-fo. Em geral no costuma aparecer nos manuais de literatura la-tina, porque escreveu sua obra em grego. Defendeu o estoicismo.

    A Historiografia

    Como no faz parte de nossa proposta estudarmos aqui detida-mente a historiografia romana, nos restringiremos apenas a apontar os principais nomes, a poca em que viveram e suas obras mais importan-tes. Desse modo, destacamos:

    Caio Jlio Csar

    Este autor de fato o mesmo general e imperador. Nasceu no ano 100 e foi traioeiramente assassinado, como sabido, no ano de 44 a.C., s portas do Senado. Insere-se como historiador por conta de duas obras

    Os textos em espanhol ao longo deste material foram traduzidos pelo Prof. Dr. Jos Ernesto de Vargas.

  • Literatura Clssica Latina

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    referenciais ainda hoje, Comentrios sobre a guerra da Glia (Commen-tarii de bello Gallico) e Comentrios sobre a guerra civil (De bello ciuili commentarii). A primeira composio , na verdade, um relatrio de guerra organizado quase em sua totalidade, com exceo do ltimo li-vro, durante sua participao e liderana nas batalhas pela conquista da Glia. Curiosamente escrito em terceira pessoa, o que soa muitas vezes como falsa modstia. A segunda revela a sua luta pelo poder de Roma contra o Senado Romano, na deflagrao da guerra civil aps o episdio do rio Rubico. Conforme Zlia de Almeida Cardoso,

    Os comentrios sobre a guerra civil tm carter nitidamente poltico. Ao

    compor esse texto, Csar deve ter tido a inteno de justificar, de algu-

    ma forma, a usurpao do poder, despertando simpatias e procurando

    congregar foras em torno de sua pessoa. Da o tom apologtico de que

    a obra se reveste.

    (CARDOSO, 2003, p. 135)

    Caio Salstio Crispo

    Salstio viveu entre os anos de 87 ou 86 e 35 a.C. De seu traba-lho, duas obras chegaram at os nossos dias e o tornaram reconhecido. So elas:

    a) A conjurao de Catilina (De coniuratione Catilinae), que tra-ta da tentativa de tomada do poder feita por Srgio Catilina. Passagem histrica que se tornou mais famosa ainda na obra de Ccero, ferrenho defensor da instituio republicana, que se empenhou numa grande campanha no Senado contra a insur-reio de Catilina, na reunio dos discursos proferidos contra o insurreto, conhecida mundialmente por Catilinria.

    b) A guerra de Jugurta (Bellum Iugurthinum), que narra a in-terveno de Roma num episdio de assassinato e tomada de poder no reino da Numdia, levado a cabo por aquele que d nome obra, Jugurta.

  • Captulo 02Cultura de Roma

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    Tito Lvio

    Titus Liuius (59 a.C 17 d.C) , sem dvida, o mais importante his-toriador romano. Viveu sob o governo de Augusto e dele se beneficiou. Sua extensa e grandiosa obra prope abarcar desde a fundao de Roma (por isso reconhecida como Histria de Roma Ab Urbe Condita) at a sua contemporaneidade. So cento e quarenta e dois livros, dos quais apenas trinta e cinco chegaram at ns. O francs Jacques Gaillard o dis-tingue como o Virglio da Histria, j que sua obra pode ser colocada no mesmo nvel da Eneida.

    Pblio Cornlio Tcito

    As datas em que Tcito nasceu e morreu no so precisas, mas se acredita que entre os anos de 55 e 120 da nossa era. Alm de histria, o autor escreveu tambm sobre retrica, Dialogus de oratoribus, uma biografia, um ensaio sobre a geografia fsica e humana da Germnia. Seus textos historiogrficos so Anais (Annales), em que narra os acon-tecimentos polticos durante os governos de Tibrio, Calgula, Cludio e Nero, e Histrias (Historiarum libri), que faz referncia ao perodo entre as mortes de Nero (68 d.C.) e Domiciano (96 d.C.).

    Caio Suetnio Tranquilo

    De Suetnio igualmente no se sabe precisamente as datas de nas-cimento e morte, costuma-se citar os anos de 69 e 141 da nossa era. Foi secretrio do imperador Adriano. Escreveu Homens ilustres (De uiris illustribus), obra que se perdeu em grande parte e Vidas dos doze Csares, ou seja, a vida dos doze primeiros imperadores, livro que o imortalizou.

    E assim encerramos aqui o nosso Captulo sobre a literatura lato sensu, bem como a primeira Unidade, a Histria do mundo romano. A literatura latina strictu sensu, por oposio, a que diz respeito pro-duo de carter ficcional, objeto central de todo curso de Letras, e do nosso prximo captulo.

    De acordo com Pppel-mann, Ab urbe condita (Desde a fundao da cidade Roma) o ttulo da maior epopeia histrica de Roma, que Tito Lvio (c. 59 a.C.-17 d.C.) escreveu em 142 volumes. Apresenta a histria de Roma desde a lendria origem at o ano 9 a.C. Mas Ab urbe condita foi tambm o ponto de partida de uma poca, estabelecido pelo erudito Varro. Colocou a fundao de Roma no ano de 753 a.C., 440 anos depois da suposta queda de Troia, no ano 1193 a.C., portanto, 440 anos como um pero-do de renascimento e Roma era vista como um renascimento de Troia. Se, no caso de Troia, se pudesse calcular com mais exatido sua idade, Roma poderia ser, na verdade, de duzentos a trezentos anos mais antiga. A cronologia de Varro ab urbe condita foi estabelecida apenas por volta do ano 400. Na Antiguidade, contava-se o ano segundo os cnsu-les reinantes. (PPPEL-MANN, 2010, p. 5)

  • Unidade BLiteratura Latina

  • Introduo

    Nessa segunda unidade faremos uma leitura panormica da Literatura Latina apresentando rapidamente os principais autores e obras da literatura latina em latu sensu. Observaremos, igualmente, a manifestao dos gneros

    literrios em Roma e tambm as heranas e a permanncia de ideias e temas na literatura, nas artes e na cultura do Ocidente.

    Uma literatura s ser ouvida se tiver luz prpria, preservar suas normas e seus traos particulares.

    O contrrio ser apenas uma cpia das outras.

    (Artur Pestana, ou Pepetela)

    A literatura latina desponta para o mundo no como manifestao espontnea, mas antes como transposio de um modelo externo para a cultura local, no caso, a partir da transposio de modelos gregos para a cultura romana. Em parte esse fato pode ser justificado pela prpria na-tureza romana, decorrente de um esprito pragmtico e de uma histria muito mais ligada terra, s atividades agro-pastoris e arte da guerra do que a um questionamento especulativo a respeito da vida e das ra-zes de se viver neste mundo, como foi parte da vivncia dos gregos, a que os tornou mais famosos pelo menos.

    Zlia de Almeida Cardoso, em A literatura latina (2003), uma das obras de referncia para nossos estudos neste curso, aponta para o ano de 272 a.C, quando da conquista romana de Tarento, como uma data primordial no processo de formao da cultura e literatura latinas, pois neste momento em que os latinos ou, se quiserem, os romanos, entram em contato direto com o mundo grego e iniciam um perodo de acultu-rao, decisivo para o surgimento de uma cultura literria e artstica em Roma. Segundo a autora, at ento

    Roma ainda no se diferenciava grandemente de numerosas outras

    cidades espalhadas pelo mundo mediterrneo e no desfrutava de

    grande importncia poltica, militar ou cultural. Os romanos falavam o

  • latim lngua de origem indo-europia, relativamente pobre e rsti-

    ca e, embora conhecessem a escrita por terem adaptado o alfabeto

    etrusco, somente a utilizavam em inscries (algumas muito antigas,

    datadas do sculo VII ou VI a.C.) que tm apenas valor filolgico, lin-

    gstico e documental. A literatura se achava ainda em fase embrion-

    ria, restringindo-se quase exclusivamente s manifestaes orais.

    (CARDOSO, 2003, p. XI)

    O poeta Horcio ressalta a importncia da Grcia na formao cul-tural de Roma, ilustra essa passagem e nos alerta para o quanto foi deci-siva e tardia na formao da literatura latina:

    Grcia vencida

    venceu seu feroz vencedor:

    trazendo as artes ao agreste Lcio.

    Assim desapareceu aos poucos

    aquele verso horrvel e saturnino

    e a limpeza levou a sujeira nociva.

    Contudo ficaram por muito tempo

    e perduram ainda alguns traos rsticos daquele mau gosto.

    Tarde, muito tarde, chegamos a apreciar os escritos gregos.

    Apenas depois de feita a paz com Cartago,

    descobrimos o que de til nos trazem Sfocles, Tespis e squilo.

    Foi ento que os traduzimos para o latim

    e o trabalho agradou a todos:

    talento temos para o sublime,

    o pattico no nos falta,

    temos inspirao para o trgico,

    nossos atrevimentos tm xito feliz:

    naturalmente, temos preguia para o trabalho de lima

    e consideramos a lima desnecessria e at vergonhosa.

    (SCHEID, 1997, p. 230).

  • Em sua Arte potica, Horcio torna clara a diferena entre o esprito inquiridor e o gosto esttico dos gregos e o estilo pragmtico dos romanos:

    Musa deu aos Gregos o talento e a possibilidade de falar com grande

    elevao, a eles que eram ambiciosos, mas s de alto renome. Os jovens

    romanos, por seu lado, aprendem a reduzir, com grandes contas, um

    asse em cem partes. [...] Esperaremos ns, porventura, que estes espri-

    tos, uma vez imbudos da preocupao corrosiva do dinheiro, possam

    criar versos dignos de serem cobertos com leo de cedro e conservados

    na madeira do cipreste bem polido?

    (HORCIO, 1989, p. 103-105).

    O leo de cedro e a madeira do cipreste bem polido, carissimi discipuli, referem-se s tcnicas empregadas para conservar os escritos da fragilidade material prpria da poca.

    Um dos primeiros passos rumo ao desenvolvimento da literatura em Roma se d logo aps a capitulao de Tarento. Conforme Zlia de Almeida Cardoso, junto aos despojos de guerra, junto aos prisioneiros levados para a capital romana,

    havia um adolescente cujo nome era Andronico. Tornando-se escra-

    vo da famlia Lvia, adotou o nome de seus senhores em combinao

    com o seu, como era habitual. Desde cedo, Lvio Andronico se ocupou

    da educao de meninos, mas, na condio de preceptor e mestre de

    primeiras letras, esbarrou em uma primeira dificuldade: a falta de tex-

    tos adequados para o ensino. A educao grega em sua primeira fase

    exige o manuseio de textos literrios. por meio deles que se procede

    alfabetizao das crianas e que se ministram a elas as primeiras no-

    es de histria, geografia, tica, mitologia e religio. A no-existncia

    de textos para esse fim levou Lvio Andronico a traduzir a Odissia.

    Em seu trabalho de traduo, ele se utlizou do grosseiro e primitivo

    verso satrnio, to diferente dos sonoros versos gregos, e teve de lutar

    tambm, certamente, com a pobreza de um vocabulrio no afeito ao

    tratamento literrio.

  • A traduo de Lvio Andronico, entretanto, por medocre e rudimentar

    que fosse, ao lado de tornar o poeta conhecido da sociedade, colocou o

    romano em contato direto com um texto literrio grego, embora tradu-

    zido, e propiciou o aparecimento de outros poemas picos.

    (CARDOSO, 2003, p. 8).

    Neste sentido no h como negar que quase a totalidade da literatura latina se desenvolveu a partir de modelos copiados dos gregos. Diramos que, com exceo do Direito romano e da stira, os demais gneros, liter-rios ou no, foram todos transplantados do solo helnico para o romano.

    preciso que se diga, porm, que, apesar de secundria, a literatura latina tem seu valor. Adquiriu vida prpria, tornou Roma igualmente digna das artes no cenrio mundial de que era Senhora. O que, alis, foi perseguido por Augusto, um dos grandes responsveis por isso, alm dos autores, graas ao seu apoio e a sua poltica de incentivo s artes, em troca de propaganda ideolgica, diga-se, contudo. Mais tarde, nas eras subsequentes, esta literatura tambm serviu de modelo para a formao de outras literaturas, escritas em lnguas neolatinas, e mesmo as de outras origens. Como negar influncias, por exemplo, de Ovdio sobre Shakes-peare e de Plauto sobre Molire ou Ariano Suassuna? De Virglio sobre Dante, Cames e outros grandes poetas? Como negar os ideais de Ricar-do Reis, heternimo de Fernando Pessoa, buscados junto a Horcio?

    Faz-se necessrio at lembrar a concepo de aemulatio para os antigos gregos e romanos, que consiste, num sentido positivo, no de-sejo de imitar e igualar-se em grandeza obra de um autor antigo, por isso, melhor. Joo de Oliva Neto, ao discorrer sobre a passagem da experincia oral para a da escrita, da importncia da Biblioteca para este novo momento, afirma:

    Por conseqncia, de necessidade que era, imitar objetivou-se como va-

    lor, sem o trao negativo que a sensibilidade moderna, sobretudo aps

    o Romantismo, denuncia e rejeita. Tendo, de incio, nos monumentos

    do passado seu objeto, imitar era antes homenagem do que plgio. Era

  • a possibilidade que esses autores tinham de emular, segundo o eterno

    carter agonstico da cultura grega. Imitar permitia-lhes exibir sua vasta

    erudio, palavra-chave desta potica, pois o movimento de elaborao

    de novas obras, direito assegurado de qualquer poca, voltava-se no

    para a novidade isenta de substncia, por isso mesmo impensvel, mas

    para o rebuscar na origem aspectos menos conhecidos dos antigos mi-

    tos e tradies. S assim eram originais. O elemento diferenciador com

    que todo autor procura suprir uma lacuna e que motiva seu trabalho

    insinuava-se a partir do antigo patrimnio comum.

    (OLIVA NETO, 1996, p. 26).

    Longino, em seu tratado sobre o sublime, afirma: imitar no consti-tui furto; como um decalque de belos sinetes, de moldados, ou de obras manuais; Belo, na verdade e merecedor de coroa de glria esse embate em que mesmo em ser derrotado pelas geraes anteriores no deixa de haver glria (LONGINO, 1997, p. 85-86). A potica descritiva e prescriti-va de Aristteles, a afirmao dos modelos ideais, autores e obras a serem imitados corroboram e comprovam tudo o que foi dito acima.

    Jacques Gaillard, a respeito da importncia da imitao para os an-tigos, diz o seguinte:

    Entendamos por ele (pelo carter imitativo) que a originalidade somente

    pode significar um enriquecimento da tr